ÍNDICE Enquadramento 01. O meu caderno cor-de-rosa pág. 8 02. David e Golias pág. 11 03. Mãe - O Reencontro pág. 14 04. Ultrapassar o luto pág. 16 05. Aixelsid pág. 19 06. Mudar uma vida (ou várias) com uma conversa pág. 22 07. Amor, perda e dor pág. 26 08. Depois ele voltou…e tudo melhorou pág. 29 09. Apenas um capítulo pág. 31 10. Luta envergonhada pela sobrevivência pág. 34 11. João Chorão pág. 36 12. As horríveis segundas-feiras pág. 39 13. Tarefas e Karaté pág. 42 14. Equilíbrio pág. 44 15. A união faz a força pág. 47 16. O triângulo pág. 50 17. O menino de ninguém pág. 52 18. Não há impossíveis pág. 55 Testemunhos
Pedra Filosofal
contraponto, sinfonia, máscara grega, magia, que é retorta de alquimista,
Eles não sabem que o sonho é uma constante da vida tão concreta e definida como outra coisa qualquer, como esta pedra cinzenta em que me sento e descanso, como este ribeiro manso em serenos sobressaltos, como estes pinheiros altos que em verde e oiro se agitam, como estas aves que gritam em bebedeiras de azul.
mapa do mundo distante, rosa-dos-ventos, Infante, caravela quinhentista, que é cabo da Boa Esperança, ouro, canela, marfim, florete de espadachim, bastidor, passo de dança, Colombina e Arlequim, passarola voadora, pára-raios, locomotiva, barco de proa festiva, alto-forno, geradora, cisão do átomo, radar,
Eles não sabem que o sonho é vinho, é espuma, é fermento, bichinho álacre e sedento,
ultra-som, televisão, desembarque em foguetão na superfície lunar.
de focinho pontiagudo, que fossa através de tudo num perpétuo movimento.
Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha
Eles não sabem que o sonho é tela, é cor, é pincel, base, fuste, capitel,
o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.
arco em ogiva, vitral, pináculo de catedral,
António Gedeão
Para
a Câmara Municipal de Odivelas, a Educação é uma área-chave de evolução de qualquer comunidade. Aliás, o sucesso de uma sociedade depende muito
dos níveis de educação e de formação das pessoas, a qual será tão mais justa e próspera quanto mais habilitações e qualificações tiverem os elementos que a compõem. Por isso mesmo, a aposta desta Autarquia neste domínio sempre foi permanente, tendo-se revelado como umas das grandes prioridades do Município de Odivelas desde a sua criação há 18 anos atrás. Desde então, tem sido percorrido um caminho firme, positivo e ambicioso em estreita articulação com toda a comunidade educativa, registando-se evidentes e significativos progressos ao nível da formação e da literacia de alunos e alunas. É nesse contexto que se enquadra o projeto municipal “SEI! Odivelas”. Este programa tem-se destacado pelo seu importante contributo no combate à exclusão social e ao abandono e insucesso escolar, bem como na promoção de uma educação de qualidade, da igualdade de oportunidades e do desenvolvimento integral das crianças e jovens do concelho. Por isso, ao assinalarmos 18 anos de existência do nosso Concelho, nada como partilharmos aqui 18 diferentes histórias de sucesso escolar que evidenciam a importância do trabalho meritório desenvolvido, em prol de mais e melhor Educação no nosso território. Esta é mais uma estratégia integradora, de aposta no conhecimento, na formação e no aproveitamento escolar, que procura reafirmar Odivelas como Município Educador e exemplo de boas práticas pois, para nós, aqui está a porta do futuro e do progresso, porque “Todos Somos Odivelas”. O PRESIDENTE DA CÂMARA Hugo Martins
Enquadramento
O Município
de Odivelas atinge a sua maioridade, ao fazer 18 anos de existência, no dia
19 de novembro. Atingindo a maioridade, fazem-se balanços da história que ficou para trás, com a perspetiva de olhar em frente para o futuro. Fazendo parte dessa história, o Projeto para o Sucesso Educativo (SEI! Odivelas), entendeu compilar 18 histórias de alunos do Concelho, em risco de insucesso escolar. São histórias contadas na primeira pessoa pelos profissionais da equipa do Projeto SEI! Odivelas, que refletem dificuldades, comportamentos, emoções na vida das crianças, dos jovens e famílias, dos técnicos e professores. Histórias de todos os “personagens” que vivem nas escolas do nosso Concelho, de todos aqueles que, direta ou indiretamente, procuram contribuir para o sucesso escolar. Nem todas têm o final “e viveram felizes para sempre” que ambicionamos, mas estamos certos que contribuímos para momentos de viragem na vida destes atores, de descoberta de novas emoções, de alteração de alguns comportamentos menos felizes, contribuindo, assim, para melhores resultados escolares e, portanto, geradores de uma sociedade mais equilibrada, justa e coesa.
01. O Meu Caderno Cor-de-Rosa Nome: Filipa Idade: 10 anos Agregado Familiar: pais e irmão Sinalização: falta de atenção Ano escolar: 5º ano
Era
uma vez uma menina de 10 anos a quem vamos chamar Filipa. A Filipa era uma criança igual a todas as outras, feita de sonhos, expetativas e fantasias, feita de esperança, beleza e de alegria. Nada fazia prever que as coisas mudassem, até ao dia em que, após iniciar o 5.º ano de escolaridade numa escola básica em Odivelas, e para espanto dos pais e dos novos professores, o seu rendimento escolar começou a decrescer. É frequente o rendimento escolar das crianças decrescer um pouco com a entrada no 5.º ano do ensino básico. É até expetável, face às mudanças significativas que enfrentam e ao choque entre as suas capacidades com os novos desafios. O que não é frequente é a criança entristecer, perder a alegria de frequentar a escola, derrotar-se perante os seus medos e anseios. Claro que, quando a Filipa foi encaminhada para o Projeto SEI! Odivelas, a descrição da Diretora de Turma foi mais “aprofessorada”: “A Filipa está sempre distraída, a pensar noutras coisas. Participa pouco nas aulas e as notas são fraquinhas. Vem do 1.º ciclo habituada à brincadeira e isto agora é diferente. Tem
de estudar e trabalhar mais e deixar de ser tão infantil, pois ela tem capacidades!”. Não podemos condenar o Professor por nem sempre conseguir detetar alunos entristecidos ou preocupados. No acompanhamento individual, temos uma relação privilegiada de um para um, para além de estarmos treinados para o efeito. Já o Professor, na sua tarefa hercúlea de transmitir conhecimento, trabalha numa proporção de um para trinta... No dia em que a Filipa veio à primeira sessão, vinha com “olhos de choro”, algo que acabou por nos facilitar a vida e poupar algum tempo. Como é desejável, o Psicólogo optou por conversar um pouco, apostando na criação de um clima de confiança e segurança, absolutamente fundamental no estabelecimento de qualquer relação. O passo seguinte: desenho, desenho, desenho! E que jeito tinha a Filipa para desenhar! Desenhou a sua família, a si própria e até os seus amigos, com uma mestria impressionante. Confessou adorar desenhar e pintar desde sempre. Inesperadamente, tirou da sua mochila um pequeno caderno de capa cor-de-rosa e, com entusiasmo, exibiu ilustrações que havia desenhado ao longo dos anos. Aquele caderno, riquíssimo em informação, faria as delícias de qualquer psicólogo mas, para o efeito, a informação mais relevante estava contida numas pequenas folhas quadriculadas, meticulosamente dobradas e guardadas na última página. Na verdade, o Psicólogo só as detetou porque, no meio do folhear entusiasmado, essas folhas caíram no chão sem que a Filipa reparasse. Pensando que seriam mais ilustrações, o psicólogo abriu-as e, rapidamente, o caderno escureceu e do rosa se fez preto. Eram recados. Ou melhor, ameaças trapalhonas e agressivas. “Se continuares a falar com a Matilde vais ver o que te acontece...”; “Ou paras de conversar com o Pedro ou vais encontrar a morte”, recados quase sempre assinados por “Morte”, ou então por uma assinatura codificada, com a chave no verso, tão fácil de descodificar que até uma criança de seis anos o faria. Um outro recado avisava: “Se disseres ao teu irmão...” (o irmão mais velho da Filipa estudava na mesma escola) “... quem morre é ele!”. Na mais desafiante das ameaças lia-se: “Hoje vais encontrar a morte no pavilhão X da escola, às 11h00. Aparece se tiveres coragem”. Como seria de esperar, na ingenuidade cómico-trágica de uma criança de 10 anos, a Filipa compareceu ao encontro no pavilhão X. Não foi bem a morte que encontrou,
mas sim uma colega mais velha, encapuçada, que, seguramente por encomenda, lhe pregou uma rasteira e deu um estalo. Miúda essa que, convenientemente, nunca conseguiu identificar. Por isso tinha chegado à sessão com “olhos de choro” – o episódio da agressão tinha acontecido naquela manhã. Pois bem, Bullying. Ciumeira, tontice, parvoeira, infantilidade, aquilo que lhe quiserem chamar, mas, acima de tudo, cobardia da mais pura e irracional. O primeiro passo, após confortar a Filipa e garantir que a situação iria ser resolvida, foi falar com a Diretora de Turma e colocar os pais (e até o irmão) de alerta. Uma simples análise da caligrafia dos recados foi o suficiente para a Professora, juntamente com o Psicólogo, identificarem as autoras dos textos. As infelizes criaturas eram, pasme-se, as melhores amigas da Filipa. Sim, leu bem, quem ameaçou reiteradamente a Filipa foram as suas duas melhores amigas, que a acompanhavam desde o 1.º ciclo. As ameaças eram motivadas por ciúmes entre amigas, apimentados por uma considerável dose de imaturidade e inconsequência. Segundo passo: o Psicólogo, munido de recursos do Projeto SEI! Odivelas criados para situações semelhantes, “varreu” todas as turmas do 5.º ano com as sessões “Bullying na Minha Escola? Não, Obrigado!”, “SEI Escolher os Meus Amigos”, “SEI Comportar-me na Escola”. Os nomes das sessões são elucidativos e não carecem de grande explicação. O Psicólogo foi especialmente assertivo na turma da Filipa, onde referiu a “moda” de ameaçar com recados escritos, cujos autores eram facilmente identificados. Simultaneamente, a Diretora de Turma convocou os encarregados de educação das “meninas maldosas” e a questão ficou resolvida. Os ânimos acalmaram, as amigas fizeram as pazes e os recados acabaram. Até ao final do ano letivo, não foi detetado mais nenhum episódio naquela turma. A Filipa, que chegou a pensar trocar de escola, voltou a sorrir, como só as crianças o sabem fazer. As notas melhoraram e transitou sem qualquer negativa. Com excelente nota a Educação Visual e Tecnológica, óbvio! No ano seguinte, numa derradeira sessão com o Projeto SEI, a Filipa voltou a mostrar o pequeno caderno com os seus desenhos. O caderno estava imaculadamente cor-de-rosa e assim permaneceu. 10
02. David e Golias Nome: Francisco Idade: 9 anos Agregado Familiar: mãe Sinalização: défice de atenção e concentração Ano escolar: 3º ano
Chamava-se sempre sozinho. A mãe nunca e o David estava a baixar as
David e a Diretora de Turma do 8º D veio falar comigo porque o menino andava vinha à escola quando convocada às reuniões notas. No segundo período teve cinco negativas.
David entrou no meu gabinete e perguntou-me se eu era psicóloga. Respondi que não, que era mediadora escolar e que o meu objetivo na escola era ajudar os alunos a passarem de ano. Disse-me que não queria falar dele, que não gostava de psicólogos, que queria ir embora dali. Acedi, dizendo-lhe no entanto que a porta estava aberta para quando ele decidisse aparecer. Na semana seguinte, entusiasmado pelo facto dos colegas populares da turma terem vindo falar comigo e terem dito que até tinha sido “fixe”, bateu à porta e sentou-se. Falou-me que tinha um defeito, que adorava jogar à bola mas que agora não conseguia, que o seu ídolo era o Cristiano Ronaldo e perguntei-lhe “mas que defeito é esse que te impede de ir para o campo jogares à bola?”. David levantou-se, arregaçou as calças. O meu coração parou: David tinha uma prótese na perna direita. Com um esforço que atualmente não sei onde fui buscar, respirei fundo e tentei agir com normalidade, marcando com ele uma sessão na semana seguinte. David realmente passava muito tempo sozinho. Passei a observar os seus comportamentos perante os 11
colegas. Com os rapazes, empinava o nariz no ar e era muitas vezes rude nas respostas. Com as raparigas também não se aventurava: se para os outros era difícil, para ele era impossível. Quando se encontravam no corredor, era frequente ouvir chamar: “olha lá, oh perneta!”. Depois havia a mãe de David que marcava reunião comigo mas nunca comparecia. Um dia pedi à Diretora de Turma que me desse a morada do aluno, para marcar com a mãe nas redondezas da sua casa e assim fiz. A senhora ficou espantada com a minha insistência, pois em dois anos de filho sem a perna, era a primeira vez que falava com alguém da escola sobre ele. Que estava cansada, que ao seu filho único tinha sido amputada a perna na sequência de uma perna partida mal tratada, que os médicos eram uns aldrabões, que a segurança social se negava a pagar a prótese mais cara e que a outra dava muitas dores ao filho, que o mundo estava contra ela e o filho. Estava ali tanta ‘matéria-prima’ para trabalhar. Nas sessões seguintes, David tirou aquele ar desafiante que punha para todos para se proteger e contou-me, entre lágrimas, que tinha saudades da sua perna, que às vezes ainda a sentia e que muitas vezes sonhava tornar a jogar à bola. Depois, foi a minha vez de ser dura e perguntei-lhe se aquela perna valia mais do que tudo o resto? Procurei nas redondezas e percebi que havia uma piscina onde treinava um conjunto de nadadores paralímpicos. Perguntei ao David se gostava de ir experimentar. No início inventou dificuldades, 12
nomeadamente questionando como se ia deslocar, já que o autocarro não esperava pelas limitações dele, mas por fim lá aceitou e começou a treinar com outros jovens como ele. O estado de espírito do David alterou-se. Conhecer outros jovens como ele, conviver com pessoas com as mesmas dificuldades e que pareciam ser felizes, foi um renascer para o jovem David que aprendeu a combater Golias (a sua perna invisível). A mãe do jovem, que vivia num estado de tristeza profundo, continuou com as suas amarguras, mas passou a comparecer às reuniões da escola, a trocar impressões com a Diretora de Turma, a ser afinal uma encarregada de educação em pleno. O David transitou de ano e a última vez que o vi já estava no 10º ano. Eu estava junto do meu carro que, com o passar dos anos já precisa de uma reforma, e ele disse-me ao ouvido:
“Stôra, quando fizer 18 anos vou ter um carro melhor que o seu. Sabia que a minha deficiência faz os carros ficarem mais baratos?”
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03. “Mãe” – O reencontro Nome: Amina Idade: 16 anos Agregado familiar: mãe e irmão Sinalização: fraco aproveitamento escolar Ano de Escolaridade: 8º ano
Amina,
a jovem africana dos olhos azeitona e sorriso aberto, foi sinalizada ao Projeto SEI! Odivelas por fraco aproveitamento escolar.
A jovem chegou a Portugal no início do ano letivo, vinda do seu país de origem, e foi integrada no 8.º ano de escolaridade numa escola do Concelho. Com 16 anos de idade, não via a sua mãe desde os seus cinco anos, altura em que a mãe veio trabalhar para Portugal. Era viúva e deixou os seus filhos com familiares ou, no caso de Amina, com uns vizinhos a quem enviava dinheiro para a sua alimentação e educação. Durante os 11 anos afastados da mãe, a jovem Amina foi sonhando com a sua vinda para Portugal. Durante esse tempo, a jovem sofreu maus tratos e negligência por parte destes vizinhos. Foi retirada da escola para tratar das lides domésticas, sofria repreensões físicas quando “se portava mal” e passava fome… sim, muitas vezes ia para a cama sem que lhe dessem o que comer. Das poucas vezes em que a mãe regressava ao país de origem, era bem tratada e comia bem, quando a mãe voltava para Portugal, todos os cuidados escasseavam. E assim Amina passou a sua infância, tendo o cão da casa como melhor amigo e uma vizinha que lhe dava 14
comida sem ninguém saber e que ela partilhava com o seu companheiro e fiel amigo: o cão. Sonhava com Portugal e com os braços da sua mãe, que não sabia o que na realidade se passava. Quando, finalmente, veio viver para Portugal, nada era como sonhara. Era tudo tão diferente…tão novo…tão difícil. Veio viver com a mãe e com o irmão. A mãe tinha uma casa à sua espera e um quarto para cada filho. Mas uma série de problemas e preocupações surgiram… “não consigo falar com a minha mãe”, dizia. “Ela não fala”… “eu não consigo passar de ano”… “a minha mãe não me ama”. Durante o acompanhamento do projeto, foram trabalhadas várias áreas com a jovem e com a mãe. Numa primeira fase, de integração, Amina passou a escrever num caderno tudo o que sentia e lhe ia na alma. Esses pensamentos eram lidos e trabalhados nas sessões. Tentámos encontrar, em conjunto, alternativas face àquilo que eram as suas dificuldades. Foi integrada no Português Língua não Materna, foi integrada em Aulas de Apoio, foi apoiada com o passe (uma vez que o seu processo de residência ainda estava em curso e não tinha direito ao ASE) e, acima de tudo, foram trabalhados os seus medos, as suas expetativas, a sua autoestima e a comunicação e conflitos com a mãe. A mãe, por sua vez, “mulher dura” que trabalhava 12 horas por dia, demonstrava o seu amor pelo seu trabalho no sentido de oferecer melhores condições de vida aos seus filhos. Para Amina, o carinho era muito bem-vindo. Afinal, tinha passado por tanta dor… “A mãe não me ama”, repetia constantemente. Juntas, trabalhámos a capacidade de expressar sentimentos e o culminar desse trabalho deu-se no dia em que Amina abraça a mãe… Foi este o dia em que se reencontraram verdadeiramente. Amina começou, entretanto, a trabalhar à noite nas limpezas para ajudar nas despesas da casa, enquanto continuou a estudar de dia. Fez o 9º ano com sucesso e foi fazer um curso profissional de ótica ocular. Hoje, terminado o curso, trabalha e continua a viver com a mãe e o irmão. E tem dias em que se sente amada pela mãe. Mas também tem outros em que ainda me liga a dizer: “a minha mãe não me ama”. 15
04. Ultrapassar o Luto Nome: João, André e Ana Idade: dos 7 aos 10 anos Sinalização: luto Ano escolar: 2º, 3º e 4º anos
Quando
são confrontadas com a morte, com a perda de alguém que lhes é querido e especial, de uma forma natural as crianças podem dizer: “eu sabia que ia acontecer pois ela estava muito doente”. Mas quando o episódio acontece de uma forma inesperada e abrupta, são apanhados de surpresa. “Foi o coração dele que deixou de bater. Não estávamos à espera”, descreveu o João. Até determinada idade, as crianças não têm noção da irreversibilidade e universalidade de um episódio como a morte. É normal surgirem perguntas como a do André: “Eu sei que ele morreu, mas quando é que ele volta?” É o próprio desenvolvimento cognitivo que possibilita a compreensão da morte. É normal e natural que, numa primeira vez confrontada com esta situação, as crianças se questionem sobre a existência de algo para além delas, ou se outro elemento da família também vai morrer. É normal o aparecimento de novos sintomas quando são assaltadas com sentimentos diferentes, como a angústia de separação ou de perda, medos noturnos etc. “Será que o coração da minha mãe também vai deixar de bater?” anseia o João. “Será que o meu pai também vai ficar doente?”, questiona a Ana. Mais frequentemente do que gostaríamos, os técnicos dos Gabinetes de Apoio Psicológico e Mediação Escolar têm que lidar com crianças de diferentes idades que vivem de perto com a morte de um 16
familiar. As razões são variadas. Desde acidentes de automóveis, ataques cardíacos, suicídio, etc. Estas são situações dolorosas, incluindo para o psicólogo que acompanha as crianças de perto. É frequente sentirmo-nos invadidos com questões para as quais não temos respostas. Que dizer ao João sobre o pai que morreu de um ataque de coração fulminante com 38 anos, que dizer ao André sobre o suicídio do pai, ou o que dizer à Ana sobre a luta da mãe contra o cancro, que a deixou a ela e 3 irmãos sem mãe? Estas mortes deixam uma marca nas crianças, especialmente naquelas que têm estruturas familiares frágeis e com poucos recursos afetivos, numa idade crucial do seu desenvolvimento. Os psicólogos dos Gabinetes de Apoio Psicológico e Mediação Escolar estão presentes no dia-a-dia para avaliar, mas também para lidar e ajudar a lidar com os sintomas reativos, como alterações de humor, problemas de comportamento, dificuldades escolares, queixas alimentares, problemas relacionados 17
com o sono, que surgem naturalmente perante um episódio como a morte. Independentemente das idades, o fundamental é facilitar a reorganização psíquica destas crianças depois da perda, utilizando diferentes abordagens que facilitam o luto. Muitas vezes, são as crianças a apresentar soluções que devemos desde logo abraçar, como se pode ler nos seguintes excertos retirados de sessões de acompanhamento: “Eu gostava de escrever uma carta ao meu pai” ou: “Vou passar a andar sempre com uma fotografia da minha mãe”. As famílias sentem-se muitas vezes perdidas, assumindo uma postura de fuga, não falando sobre o familiar que morreu, tal como refere a mãe do João: “Já não há nada que o possa fazer pensar no pai, e não o quero traumatizar”, ou a mãe do André: “Tirei todas as fotografias que tinham o pai lá de casa”. Compete-nos explicar às famílias que resistir a estes pedidos é negativo, e que é fundamental preservar a imagem do familiar na memória da criança. Se o adulto reforçar a atitude de negação da morte, a criança não consegue progredir nas fases do luto para alcançar a aceitação. Há momentos e temas que são extremamente dolorosos, mas também sobre eles devemos conversar, ouvir, acolher, permitindo à criança o expressar de emoções, como refere o André: “Eu tenho mesmo muitas saudades dele”, ou o João: “Ele fazia-me tantas cócegas”. Os sentimentos devem sempre ser valorizados. A experiência da perda e da dor que surge com a morte, é um fenómeno inevitável na vida, pelo que se considera fundamental contrariar a tendência errada de os ignorar e silenciar, como fazem alguns familiares inconscientemente: “A minha mãe nunca mais falou sobre o meu pai” ou “a morte dele é um tema proibido”. O acompanhamento do GAPME foi um sucesso no caso do João, André e Ana, uma vez que conseguimos passar a mensagem que apesar da crença da fragilidade das crianças, estas têm a capacidade de amadurecer e adotar estratégias e capacidades psicológicas para criar uma representação interna da morte como um acontecimento natural e inevitável e que mesmo causando forte sofrimento, é possível de ser ultrapassado. 18
05. AIXELSID… Nome: Mariana Idade: 7 anos Agregado familiar: Pai, Mãe Sinalização: dificuldades no português Ano escolar: 2º ano
“Dizem-me que sou uma menina inteligente… mas porque é que eu não consigo ler como eles (colegas)?”
A Mariana
tinha sete anos e frequentava o 2º ano de escolaridade quando foi sinalizada pela professora titular de turma ao Gabinete de Apoio Psicológico. Apresentava muitas dificuldades na área do Português, nomeadamente na capacidade, compreensão leitora e na escrita. Tida como uma menina bem-disposta, bem integrada na turma, esforçada, e com um discurso oral superior ao das crianças da sua idade, a professora dizia-me que a Mariana ainda não lia e que revelava muitas dificuldades na escrita e na organização espacial. Não obstante, revelava bom raciocínio matemático. Dando seguimento aos procedimentos definidos para os Gabinetes de Apoio Psicológico e Mediação Escolar, convoquei os pais para uma reunião, no sentido de recolher a informação necessária ao desenvolvimento do caso. Os pais, dedicados e atentos ao desenvolvimento da sua filha, referiram já terem falado com o pediatra 19
da menina, bem como com a professora, acerca das suas preocupações com a Mariana. Segundo os pais, a Mariana era “muito mimada, enérgica, meiga, amiga, que acata bem o não mas que, por vezes, tem tendência a quebrar as regras”. O que mais os preocupa, enquanto pais, é o facto de a Mariana estar com muitas dificuldades na leitura e na escrita, aspeto este, que consideram estar a ser desmotivador para a Mariana, referindo mesmo: “Já temos receio de pedir-lhe para ler ou escrever, pois ela fica logo chateada, e começa a recusar-se a fazê-lo.” Após uma hora reunidos, eis que surge a tão esperada questão: “Ela tem Dislexia, não é?”. Sorri, e percebi que estes pais já tinham feito muita pesquisa acerca do tema. Claro que, face à informação recolhida, existiam indícios no sentido desse diagnóstico. Contudo, expliquei que, para isso, seria necessário proceder a uma avaliação psicopedagógica formal, e que essa seria a próxima etapa. De salientar que, nestes casos, é comum pedir rastreio auditivo e oftalmológico. Na primeira sessão com a Mariana, senti que esta estava muito ansiosa e envergonhada. Conversámos, deixei-a falar sobre o que gostava e o que não gostava e, após algum tempo, referiu: “Não gosto de português”. Ficou parada a olhar para mim e, de repente, baixou os olhos e a sussurrar disse: “Não sei ler!”. Respondi-lhe: “Ok Mariana, mas é para isso que nós cá estamos, para te ajudar. Vamos trabalhar 20
as duas juntas, para tentar perceber porque é que está a ser difícil tu leres e escreveres. Pode ser?”. Prontificou-se logo, e disse: “Claro que sim”. Nas sessões seguintes (avaliação formal) a Mariana revelou sempre capacidade de esforço e empenho nas tarefas propostas, contudo, continuava algo apreensiva. No final, e após integração de todos os resultados e dados obtidos, confirmou-se o diagnóstico de Dificuldades de Aprendizagem Especifica da Leitura (Dislexia) e Escrita (Disortografia). Devolvidos os resultados aos pais e professora titular de turma, foi sugerida uma intervenção que integrasse os vários contextos da criança, para que os ganhos fossem mais efetivos: desde o apoio pedagógico personalizado (educação especial), às adequações no processo de avaliação, passando pelas tecnologias de apoio e, claro, não descurando o apoio psicológico inicial para gestão cognitiva e emocional, dado a Mariana encontrar-se cada vez mais desmotivada, e com menor autoestima. Explicar à Mariana o porquê de não estar a conseguir ler foi a etapa seguinte. Expliquei-lhe o que era a Dislexia, disse-lhe que existiam mais meninos como ela e, sobretudo, sublinhei que ela não tinha culpa de não conseguir ler e escrever tão bem, mas que isso não fazia com que ela não tivesse que se esforçar. Ao fim de algum tempo, a sua motivação ganhou outro rumo, a sua autoestima melhorou e até se prontificou, mais tarde, a falar com outra menina que tinha as mesmas dificuldades que ela. Hoje continua a ser uma grande aluna. Sabe que tem dislexia, mas também sabe que isso não a faz ser diferente ou menos que os outros!
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06. Mudar uma vida (ou várias) com uma conversa Nome: Fábio Idade: 15 anos Agregado Familiar: mãe e irmãos Sinalização: indisciplina, consumos, faltas, bullying Ano escolar: 7º ano
A sinalização
do Fábio ao Projeto SEI! Odivelas foi um pouco atípica. Veio ‘embrulhado’ numa turma problemática de mais de 20 alunos repetentes, todos eles a necessitar de acompanhamento especializado, cada um deles com necessidades individuais e específicas. No decurso deste ano, pouco mais fiz nesta escola se não intervir com os alunos do 7ºE. Apesar do insucesso escolar ser um fator comum, os motivos pelos quais este acontecia eram diversos: indisciplina, consumos de álcool e drogas, falta de assiduidade, bullying e uma panóplia de tudo o que de adverso a um percurso escolar bem-sucedido pode haver. O Fábio destacava-se precisamente por não manifestar na escola nenhum comportamento desadequado. Era um miúdo pacato, bem-educado e interessado, que estava naquela turma de alunos problemáticos simplesmente porque tinha chumbado no ano anterior. No entanto, o motivo pelo qual tinha chumbado preocupava o Diretor de Turma, pois estava a acontecer novamente: o Fábio faltava 22
imenso. Quisemos saber o porquê, pois contornar este aspeto era essencial para mudar o rumo desta história. O procedimento habitual e estabelecido pelo protocolo de intervenção pelo qual os técnicos do SEI! Odivelas se regem, estipula que a intervenção com o aluno pode apenas ter lugar após autorização do encarregado de educação. Esta autorização é dada numa entrevista inicial, em que é explicada a índole da intervenção que poderá vir a ser efetuada, e se recolhem dados anamnésicos (dados relativos à história de vida do aluno), preciosos para o trabalho a desenvolver com o aluno, com a família e, eventualmente, com a comunidade. O diretor de turma do 7º E era um professor bastante dedicado que, não obstante a turma complicadíssima que lhe calhara em sorte, não baixara os braços e estava desde o início do ano a fazer um esforço para ajudar cada um dos alunos. Avisou-me logo que iria ser difícil trazer alguém da família do Fábio à escola. O pai trabalhava no estrangeiro e já convocara a mãe do Fábio por diversas vezes e esta nunca comparecera. Liguei para a senhora, que me disse que faria os possíveis para ir ter comigo à escola, mas acabou por não comparecer uma e outra vez. Encontrei o Fábio e perguntei-lhe se não podia pedir à mãe para ir ter comigo. Era importante 23
para eu poder começar a intervir. Disse-me que seria complicado, pois a mãe tinha problemas de locomoção. Perante esta informação, nova para mim, e tendo em conta o panorama, achei que teria que arranjar uma alternativa. Liguei à senhora e disponibilizei-me a ir ter com ela a um local que me indicasse. Pediu-me para ir ter a sua casa. Quando me desloquei até casa desta família senti-me, confesso, a Alice no País das Maravilhas: a ser engolida pelo buraco que a levou para uma outra dimensão. Essa dimensão era a vida do Fábio. A casa situava-se numa urbanização de difícil acesso. Quando cheguei, foi o Fábio que me abriu a porta e me conduziu pelo interior da casa até ao pátio onde se encontrava a mãe. Toda a casa estava impregnada com um forte cheiro a humidade, agravado pelos três cães que saltavam alegremente à nossa passagem. Quando vi a mãe do Fábio, imediatamente uma série de dúvidas que tinha em relação a este caso se dissiparam. A senhora deslocava-se numa cadeira de rodas. Daí a dificuldade em ir até à escola, daí a dificuldade acrescida em manter a casa em ordem e, explicou-me ela, daí o motivo pelo qual o Fábio faltava tanto às aulas. Tinha que acompanhar a mãe às consultas e tratamentos. Tinha que acompanhar e tratar dos irmãos mais novos. Tinha que tratar de tudo aquilo que a mãe não conseguia (por estar incapacitada e ao mesmo tempo por ser analfabeta). A entrevista a esta família foi um ponto de viragem nesta história. Apesar de ter estado ao longo do ano várias vezes com a mãe e muitas com o Fábio, foi naquela tarde que muitas coisas importantes se decidiram. Todas as soluções estavam ao alcance da família, que precisava apenas de alguma ajuda para as encontrar. A situação da mãe não era, felizmente, irreversível. No entanto, o Fábio não poderia continuar a acompanhá-la quase diariamente aos tratamentos, em detrimento de ir à escola. Existiam outros recursos na família que foram acionados. À mãe, foi explicada a extrema importância de não permitir, muito menos incentivar, o filho a faltar à escola. Para além das possíveis medidas em termos de proteção ao menor, tínhamos as consequências para a formação do jovem que, apesar de toda a circunstância familiar, era esforçado e empenhado, com capacidades de chegar longe academicamente. 24
Conseguimos reatar a relação da família com a assistente social de referência para que pudesse usufruir dos apoios sociais a que tivesse direito, pois, assim como faltava aos atendimentos na escola, a mãe do Fábio também não comparecia aos atendimentos na segurança social. Também no agrupamento conseguimos regularizar a parte burocrática para que as crianças (que frequentavam todos o mesmo agrupamento) pudessem tomar as três refeições gratuitamente na escola. Com a situação financeira estabilizada, a casa de poucas condições viria mais tarde a ser substituída por outra, já que a renda de 350€ que a família pagava não era, de todo, congruente com as condições da habitação. Aos poucos, a mãe foi recuperando a independência para se deslocar e outros aspetos foram consequentemente melhorando. O Fábio agarrou a oportunidade com unhas e dentes, prosseguindo os seus estudos sem percalços de maior. Quando o conheci, frequentava o 7º ano e era o mais instruído da família alargada. Da última vez que tive notícias dele já estava no 12º ano e sonhava com um curso superior.
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07. Amor, perda e dor… Nome: Joana Idade: 9 anos Agregado familiar: mãe e avó Motivo de Sinalização: luto Ano de Escolaridade: 4º ano
“Ele era muito importante para mim, era muito bom… muito carinhoso e amoroso. Ajudava-me sempre nos trabalhos de casa e brincava muito comigo. Ele será sempre o meu pai!”
A Joana
tinha nove anos e frequentava o 4º ano de escolaridade, quando foi sinalizada ao Gabinete de Apoio Psicológico e Mediação Escolar. O motivo era a perda recente do pai.
Ainda me lembro da primeira vez que fui buscar a Joana à sala de aula. A professora já a tinha abordado no sentido de saber se ela quereria falar comigo. Chamei-a e, de cabeça baixa e tímida, dirigiu-se a mim. Apresentei-me ainda no caminho em direção ao gabinete. Ela, interpelando-me, disse de imediato saber quem eu era. Entrámos na sala e sentámo-nos ao lado uma da outra. Por vezes, nestas alturas parece que ficamos sem palavras ou como iniciar a conversa sobre um tema tão doloroso. Nesta situação não foi necessário, pois a Joana parecia que estava desejosa de falar sobre o assunto, assunto este que, por vezes, é considerado tabu. O pai falecera num acidente de viação. Iam quatro pessoas no carro, mas só o pai, que era o condutor, 26
é que morreu. Os sentimentos de raiva, frustração, injustiça começam a tomar conta do seu discurso. Os porquês são constantes. “Ele ia rápido demais, devia andar mais devagar!”, “Dos quatro que iam no carro porque é que foi ele que morreu?”. A par destas questões, as lágrimas vão-lhe escorrendo pela cara, frágil, desamparada e desorientada. Aproximo-me dela e, no seu turbilhão de sentimentos, fica encostada a mim a chorar. Dou-lhe o seu tempo… precisava de chorar, aspeto que, mais tarde, constato que ainda não o tinha feito, ainda não lhe tinha sido permitido. A sua família, também desorientada com o inesperado, não estava a conseguir ajudá-la. A mãe isolara-se, passava os dias no seu quarto a chorar e a não querer falar com ninguém da família, nem com a Joana, a sua única filha. Existia apenas mais uma avó, mas pouco disponível emocionalmente, e pouco presente no dia-a-dia. Passava o dia a trabalhar. Dizia-me: “Alguém tem que trabalhar e sou eu, pois a minha filha passa os dias enfiada naquele quarto e não faz nada”. Tentei várias vezes falar com a mãe da Joana, mas sempre sem sucesso. A Joana continuou a ser acompanhada por mim com o objetivo de trabalharmos o seu luto. Quando tudo parecia estar a correr melhor, a situação agravou-se. Numa das sessões, a Joana verbaliza que o que mais a preocupa no momento é a mãe, afirmando: “O meu pai morreu, eu estou triste mas agora estou muito preocupada com a minha mãe, e eu não quero perder a minha mãe”. A Joana descobrira que a mãe andava a beber às escondidas. Embriagada, respondia mal à Joana quando esta se dirigia 27
a ela. Com os seus nove anos, a Joana sabia perfeitamente que a mãe se refugiara no álcool para não ter que enfrentar a morte do marido. A par de tudo isto, a Joana começou a revelar dificuldades na aprendizagem. A professora dizia-me: “Dou com ela com a cabeça noutro sítio, distraída. Não está a acompanhar o grupo”. Mas como poderia a Joana aprender? A sua mente era constantemente assaltada por todas estas preocupações! Quem é que numa situação destas, de perda, de sofrimento, de preocupação, consegue estar disponível para aprender? É nestas alturas que, enquanto técnicos, nos sentimos impotentes. Mas afinal como ajudamos uma criança a ultrapassar a morte de um progenitor, quando o contexto familiar não a ajuda, e pior ainda, traz ainda mais preocupações e sofrimento? Felizmente, os técnicos dos Gabinetes de Apoio Psicológico e Mediação Escolar trabalham e articulam sempre que necessário com a rede social, outros técnicos que nos podem ajudar, e munindo esforços, todos podemos tentar melhorar a vida das crianças. Após esforços conjuntos, conseguiu-se que a sua mãe fosse encaminhada para a consulta de psiquiatria. Foi acompanhada clinicamente, começou a trabalhar, a ter uma ocupação, e como consequência a estar mais disponível para a sua filha. A avó, apesar das suas limitações, também colaborou e após outra conversa comigo, percebeu que a Joana e a sua filha precisavam do seu apoio. Com a mudança de comportamento da mãe após o acompanhamento, também a Joana ficou mais disponível na escola, o alheamento diminuiu e a sucesso aumentou!
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08. Depois ele voltou...e tudo melhorou Nome: Gonçalo Idade: 10 anos Agregado Familiar: mãe e pai (separados) Sinalização: quebra súbita no rendimento escolar Ano escolar: 4º ano
O Gonçalo
, de 10 anos de idade, foi sinalizado ao Gabinete de Apoio Psicológico e Mediação Escolar por quebra súbita no rendimento escolar. Numa reunião com a mãe, esta fala-me da crise do casal, que levou a uma separação recente. Refere: “o pai saiu de casa há três meses” e continua: “será que nos devemos divorciar ou esperamos mais algum tempo?”. A mãe do Gonçalo mostra-se insegura, perdida, confusa e incapaz de pensar. No entanto, mostra clareza quando diz: “Tudo o que sinto passa para o meu filho! Ele não aprende nada na escola desde que o pai saiu de casa, eu tenho medos à noite e ele teve que vir dormir para o meu quarto. Ainda está lá um retrato do pai, mas ele volta-o para a parede antes de se meter na cama”. A mãe do Gonçalo diz que, antes de tudo isto, o filho não tinha qualquer problema na escola nem em casa. No 29
entanto, agora tudo parece estar diferente quando refere: “está terrível, dá-me ordens, grita comigo, tira más notas”. “Não acha que o pai é culpado de tudo isto?”, pergunta ela. Instantes depois faço notar a esta mãe que o Gonçalo perdeu a presença do pai em casa, mas também perdeu mais coisas, como por exemplo o espaço para pensar por si só, e poder preencher dentro dele o vazio desta ausência. Comento com esta mãe que, após uma perda, são normais uma série de pensamentos, confusões inconscientes e alterações. Tento que ela se aperceba que, na relação com o filho, ela promoveu-o a pai, como um mecanismo de defesa, provavelmente associado à depressão. No entanto, admira-se quando passa a ser o filho que agora manda e decide. Na realidade, a mãe colocou-o no lugar do pai como se houvesse uma equivalência de estatutos, de gerações. Quando converso com o Gonçalo ele apresenta, no início, uma atitude de firmeza e segurança com um discurso agressivo e adulto quando diz: “Ele saiu de casa e por isso tem que pagá-las!... e que não se atreva a voltar, porque aí é comigo que vai levar”, etc. O Gonçalo deixou de poder ser criança. O pensamento dele passou a ser limitado e concreto, não havendo espaço para o sonho, para a fantasia e criatividade. O Gonçalo só conseguiu recuperar isto quando o pai voltou para casa, referindo-se a este acontecimento como: “Eles agora já estão bem, e eu sinto-me muito melhor”. Durante todo o tempo em que se sentiu perdido, o Gonçalo foi incentivado por mim a falar sobre o seu mal-estar, a desenhar sobre o que o fazia feliz. Era recorrente o desenho da família onde apareciam os três, mãe, pai e ele, de mãos dadas. Escrevia sobre as coisas que queria dizer à mãe e ao pai, mas que não conseguia. Após o pai ter regressado a casa, o Gonçalo regressou ao seu quarto e, aí, pôde retomar as suas preocupações características da sua idade, e o seu espaço. Por consequência, conseguiu retomar o seu ritmo normal de aprendizagem na escola.
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09. Apenas um capítulo Nome: Ricardo Idade: 15 anos Agregado Familiar: mãe, pai e avó Sinalização: rendimento escolar Ano escolar: 7º ano de percurso curricular alternativo
Podia
ser uma personagem de um livro. Um livro triste, muito triste, tal o acumular de infortúnios na vida deste jovem. Os motivos pelos quais foi sinalizado foram os de quase sempre: percurso escolar atribulado com um aproveitamento escolar quase nulo. O Ricardo desde cedo “deu nas vistas”. Assim que ingressou no jardim-de-infância foi sinalizado para a Comissão de Proteção de Menores. Falta de cuidados. Falta de tudo, diríamos nós. A escola foi empurrando (talvez também amparando) o Ricardo até ao 7º ano. Não chegou lá pela via regular, mas através de um Percurso Curricular Alternativo. Tudo era alternativo na vida do Ricardo. A saúde tinha dado lugar a um problema respiratório, inicialmente com pouca importância, que tinha evoluído para algo mais complicado. A família só o era no Cartão do Cidadão. O pai, com problemas psiquiátricos e a mãe com hábitos alcoólicos marcados, compunham o agregado familiar, cujo único meio de subsistência era uma pensão da avó. Não havia espaço para nenhum tipo de afetividade e a mãe do Ricardo atribuía a inércia do filho à preguiça, chegando a confessar com naturalidade que, de manhã, como o Ricardo era muito “dorminhoco”, tinha que acordá-lo com um pau, “para o abanar, não para lhe bater!”. Mas voltemos ao Ricardo, que é a nossa personagem principal, desta história que gostávamos de não ter que escrever com estas palavras. O exterior espelhava o que lá ia dentro: aspeto frágil e muito pouco 31
cuidado. Olhar evitante. Tão evitante que não sabemos se poderia ser chamado de olhar. Parecia apenas um ‘abrir os olhos’. Tão pouco falava. Quanto muito, respondia ao que lhe era perguntado com respostas vagas e descomprometidas. Muitas vezes, ambientes familiares como o do Ricardo, despoletam nas crianças e jovens comportamentos desadequados, disruptivos, agressivos. O Ricardo não. Não tinha força para nada disso. E parte dessa fraqueza vinha do mais cruel motivo: fome. Percebemos rapidamente que não comia, exceto na escola. Foi fácil perceber por onde tinha que começar a intervenção do SEI! Odivelas: não se pode trabalhar nada se o estômago não estiver a trabalhar. Começámos por conseguir acrescentar aos almoços na escola, um pequeno-almoço e um lanche, triplicando assim o número de refeições fixas, certas, equilibradas. Contactámos uma associação que conseguiu proporcionar à família bens alimentares essenciais duas vezes por mês. Esta solução, aparentemente de uma simplicidade incrível, trouxe-nos dois aliados. O Ricardo, não pelos alimentos, 32
mas por perceber que alguém se importava, e a mãe do Ricardo, que ficou notoriamente satisfeita por esta ajuda inesperada, já que se lamentava constantemente que ninguém a ajudava. Também foi possível ajudar a família com bens materiais, como roupas e alguns objetos que faziam falta em casa, recorrendo à loja social da Câmara Municipal de Odivelas. Depois do básico estar assegurado, pudemos começar a trabalhar o que nos preocupava muito: o ar triste e frágil do Ricardo. Apesar do ambiente familiar explicar muito do insucesso escolar, não pudemos descartar outras possíveis dificuldades ao nível cognitivo, tal como já tinha anteriormente sido tentado, durante o percurso escolar do jovem, embora sem sucesso, uma vez que não comparecia às sessões. Ultrapassada esta situação, e percebendo de forma mais objetiva e consistente quais as suas potencialidades e expectativas, o Ricardo foi encaminhado para um CEF para que pudesse prosseguir com o seu percurso escolar da melhor forma possível. Durante este processo, o Ricardo foi acompanhado semanalmente pelo SEI! Odivelas. Não aparecia de forma espontânea como acontece com outros alunos que acompanhamos. Mas no dia e hora marcados, lá estava religiosamente. Lembramo-nos de um ou outro sorriso que esboçou. Das frases que foram crescendo de semana para semana. A mãe compareceu várias vezes às sessões do SEI! Odivelas. A maior parte delas para pedir ajuda para aspetos práticos relacionados com papéis que precisava de tratar e não sabia como. Mas lá ia aceitando, ou fingindo que aceitava, as nossas indicações para melhorar a vida do filho e a sua própria vida. Esta história ainda não teve o final feliz que o Ricardo merece. O Ricardo não passou a andar sempre de sorriso nos lábios e o ar frágil não deu lugar a um aspeto robusto. Mas passou a ter um ar menos triste e menos frágil. Queremos acreditar que este período em que interviemos na vida do Ricardo se tratou apenas de um capítulo que representou um ponto de viragem. E que será um daqueles livros em que, ao contrário do que estava predestinado, o personagem principal vai superar todos os obstáculos.
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10. Luta envergonhada pela sobrevivência Nome: Ludmila Idade: 16 anos Agregado Familiar: mãe e irmã Sinalização: desmaios na escola Ano de escolaridade: 9º ano
Ludmila
chegou ao nosso gabinete acompanhada pela sua Diretora de Turma. Era uma jovem de 16 anos, alta e magra, de origem cabo-verdiana, com umas olheiras demasiado marcadas para a idade que tinha. Frequentava o 9º ano pela terceira vez e, ultimamente, desmaiava na escola sem se perceber porquê. Na sala de professores já tínhamos ouvido falar dos desmaios desta menina, cujas causas eram atribuídas às dietas loucas de adolescente, despoletadas pela mania das magrezas da moda, ou à anorexia. Segundo a Diretora de Turma, os episódios do desmaio tinham acontecido em várias alturas do dia, dentro e fora da sala de aula, e repetiam-se sucessivamente, semana após semana. Ludmila não nos quis falar sobre este problema, fechouse em copas e regressou ao recreio para junto das colegas. 34
Com alguma insistência, convencemos a mãe a vir à escola. Esta apareceu no nosso gabinete com um ar muito cansado, de quem aparentava ter feito uma maratona para ali chegar. Havia razões fortes para esta aparência consumida: sofria há anos de uma doença hepática que a impossibilitava de trabalhar continuamente, fazendo por isso alguns “biscates” como empregada doméstica. Viúva há alguns anos, vivia com a Ludmila e a filha mais velha Mariama. Mariama era o único sustento regular da família. Trabalhava num call center e conseguia arrecadar, nos seus melhores meses, 600 euros de ordenado. Feitas as contas, 350 euros de renda da casa, 100 euros de água, luz e gás, 50 euros para o passe do metro e autocarro para ir trabalhar, 30 euros para despesas de transporte para a mãe se deslocar ao hospital e ainda mais 30 para despesas médicas não comparticipadas, a família ficava com 40 euros para todas as outras despesas. Por outras despesas, entenda-se alimentação. A D. Teolontina, mãe de Ludmila, admitiu que na sua casa havia fome e que, muitas vezes, as suas refeições eram constituídas por um único alimento: arroz. Ludmila ia para a escola muitas vezes depois de ter tomado um pequeno-almoço constituído por um prato de arroz. Os desmaios não eram mais do que a consequência de uma jovem mal nutrida, mas por indicação da mãe ela jamais devia contar a alguém o que se passava em casa. Contactados os vários parceiros da rede social, agilizou-se a contribuição de bens alimentares sistemáticos para esta família, sendo que, ainda agora, a D. Teolontina se desloca alguns quilómetros para ir buscar estes bens alimentares. Também a Associação de Apoio a Doentes Hepáticos disponibilizou ajuda sistemática a esta família, nomeadamente no apoio à aquisição dos medicamentos. A jovem Ludmila naturalmente deixou de desmaiar e, com mais frequência, vemo-la na escola a sorrir, rodeada dos seus amigos. Está, de momento, a frequentar um Curso Profissional de Cabeleireira numa escola secundária do Concelho.
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11. João chorão Nome: João Idade: 8 anos Agregado Familiar: mãe Sinalização: agressividade com professora e colegas, choro e amuos na sala de aula Ano de escolaridade: 3º ano
O caso
chegou às minhas mãos antes mesmo da professora falar comigo. Tenho por hábito circular nos recreios para ver os meninos fazerem aquilo que gostam mais: brincar, correr, falar, comer… Uma rotina de psicóloga que se habituou a sair do Gabinete porque, às vezes, observar os meninos para os compreender chega a ser mais útil que estarmos horas fechadas num Gabinete a tirar conclusões baseadas em livros e testes infindáveis. O João estava num canto amuado. A “amarrar o burro” como é costume dizer-se. Dirigi-me a ele e perguntei-lhe o que se passava, ao que ele respondeu: “oh, deixe-me” e virou-me as costas. Naquele momento pensei: “Uma zanga de miúdos… certamente daqui a pouco já andará por aqui nas correrias com os outros…”. Mas no intervalo seguinte, ali estava ele no mesmo canto, com o mesmo ar carregado. Passado uns dias, estava eu no meu Gabinete, e a professora do João veio falar comigo a propósito de um menino que estava a causar alguma perturbação na sala de aula. Explicou-me que o menino amuava, recusava-se a fazer os trabalhos e muitas vezes acabava por chorar quando a professora insistia para ele acabar as fichas. Descreveu-mo assim: “Chama-se João e costuma estar ali no recreio 36
encostado àquele canto”, apontando para o mesmo canto onde eu, há dias, tinha tentado interagir com o João, sem resultados. Quando fui à sala de aula onde a turma do João costumava ter aulas, pedi à professora para me mostrar os cadernos do João. Os cadernos do João estavam todos desorganizados, a letra era quase impercetível, enfim, um grande desalinho. Quando os alunos entraram, aproveitei para me sentar lá atrás num lugar desocupado e pus-me a observar os meninos. O João atropelava os outros meninos 37
para falar e respondia com alguma agressividade quando era repreendido por não ser a sua vez. Por fim, quando se apercebia que o tempo para acabar os seus trabalhos se estava a esgotar, desatava num pranto sem fim. Chamei a mãe do João e apareceu-me uma senhora muito bem apresentada, que me disse que vivia para aquele filho e que a sua maior ambição era vê-lo a prosseguir os estudos. A mãe do João tinha começado a trabalhar aos 14 anos para ajudar a família e agora, que era uma empresária com algum sucesso, gostava muito que o filho fosse para a universidade tirar um curso superior. Contou-me ainda que tinha sido mãe tardiamente. Aos 42 anos a sua vida dera uma reviravolta pois pensava que nunca iria conseguir realizar o sonho de ser mãe. Por isso, desde que o menino nasceu, fazia tudo por ele. A mãe do João continuava a dar-lhe banho, a apertar-lhe os atacadores, a fazer-lhe a mochila para a escola. Quanto às vontades do João, era o que ele quisesse: se queria uma playstation comprava, se passado seis meses saísse um novo modelo, comprava também. Era preciso que o menino não sofresse o que ela tinha sofrido quando tinha a idade dele. Quando o João era contrariado, bastava um “ai” e a mãe lá lhe fazia a vontade. Percebemos as razões que estavam na origem do comportamento do João e, logo naquele momento com a mãe, a advertimos para a necessidade dela desempenhar o seu papel de autoridade, explicando que educar também é impor regras e que as regras também são demonstrações de afeto. O João tinha que aprender a ultrapassar as contrariedades da vida. Por vezes, é preciso dizer um “não” definitivo, sob pena do João crescer infeliz. Chamado ao meu gabinete durante o ano letivo, aos poucos e poucos o João foi crescendo. Aprendeu a conter a sua agressividade, a esperar pela sua vez, a organizar melhor os seus cadernos. Esta alteração de comportamento levou algum tempo, mas passei a ver o João no recreio a brincar à apanhada com outros meninos e deixei de o ver no canto da escola onde amuava constantemente. O João passou de ano e, há pouco tempo, passou por mim na escola e perguntou-me: “Posso ir
ter consigo? Estou com um grande problema… Estou apaixonado e não sei o que hei-de fazer…” 38
12. As horríveis segundas-feiras... Nome: Luís Idade: 11 anos Agregado Familiar: mãe e irmã Sinalização: problemas de comportamento Ano de escolaridade: 5º ano
O
pequeno Luís estudava numa escola em Odivelas e frequentava o 5.º ano do ensino básico. Na altura em que foi sinalizado ao Projeto SEI! Odivelas, o Luís tinha 11 anos de idade. Os motivos que levaram o Diretor de Turma a encaminhar a criança para o SEI! Odivelas foram os seus constantes problemas de comportamento. As repreensões e chamadas de atenção eram constantes, sobretudo nas primeiras horas da manhã e nos primeiros dias da semana (2.ª e 3.ª feiras). Com o passar das horas e da semana, o Luís acalmava, embora nunca totalmente. A criança vinha diagnosticada com Hiperatividade com Défice de Atenção, estando medicada e devidamente acompanhada, não sendo, portanto, expectável tanta agitação durante as aulas. O diagnóstico de Hiperatividade é complexo, mas podemos resumir o quadro clínico numa agitação constante da criança e, em muitos casos, uma incapacidade em se concentrar ou prestar atenção, nos diversos contextos da sua vida. Como é fácil de compreender, a criança hiperativa acaba por ter dificuldades em aprender e a conviver com os outros, acabando por sofrer com isso. Algo se passava com o Luís e o pedido da Diretora de Turma vinha no sentido de tentar perceber a situação e o que tinha levado à deterioração do comportamento da criança, visto que, durante o 1.º período daquele ano letivo, o Luís não apresentava comportamentos diferentes da generalidade 39
das crianças. O primeiro desafio, no entender da Professora, seria conversar com a Encarregada de Educação (mãe), que raramente comparecia quando convocada. E tinha razão. Depois de um par de “faltas de comparência”, o Psicólogo do SEI! Odivelas não teve outra alternativa senão deslocar-se ao local de trabalho da mãe do Luís e, após uma pequena conversa, foi possível agendar uma reunião na escola. Nessa reunião, a situação tornou-se mais clara. Os pais do Luís tinham-se divorciado há pouco mais de seis meses, sendo que a criança passava diversos fins de semana na casa dos avós paternos, onde o pai estava a residir. A separação dos pais, por si só, é motivo mais que suficiente para desestabilizar emocionalmente qualquer criança, com eventuais repercussões no seu comportamento, mesmo quando a separação é “pacífica”. No caso do Luís, a questão emocional revelou-se importante, mas não era a única. Na casa dos avós, onde passava os fins de semana com o pai, o conjunto de regras e limites era muito diferente do que se passava na casa da mãe. De uma forma resumida: praticamente não existiam. Esta heterogeneidade de regras e limites é frequente (e até normal) em casais divorciados, tendo a generalidade das crianças a capacidade para se adaptarem aos diversos contextos, desde que as diferenças não sejam exageradas. Ou seja, os estilos parentais podem ser ligeiramente diferentes, sem que isso tenha consequências no desenvolvimento e felicidade da criança. Porém, nas crianças hiperativas, a estabilidade dos contextos, das regras e dos limites assume grande importância no controlo da situação. Estabilidade essa que, no caso do Luís, não era salvaguardada. Esta ausência de regras e limites durante os fins de semana com o pai, justificava a agitação das segundas-feiras seguintes. À medida que a semana avançava, fruto dos ambientes estruturados da escola/casa da mãe, o Luís ia “acalmando”. Toda a situação era ainda agravada com uma toma de medicação intermitente. Nem sempre os pais tinham a possibilidade de comprar a medicação e, mesmo quando compravam, nem sempre a administravam, por diversos motivos: “O Luís fica cheio de sono, mole... não gosto de o ver assim”, “Saímos cedo de casa e, às vezes, acabo por me esquecer”, dizia a mãe. No caso do pai, a preocupação 40
com a toma da medicação era praticamente nula, visto que o médico tinha sugerido que, ao fim de semana, a criança não administrasse a terapêutica – algo que é frequente no tratamento. A resolução do problema era então complexa, passando, sobretudo, pela intervenção com a família, na tentativa de mudar padrões de comportamento e atitudes incompatíveis com o bem-estar do Luís. Foi possível trazer ambos os progenitores às sessões de acompanhamento do Projeto SEI! Odivelas, mas demorou algum tempo até que aceitassem que a solução passava pela mudança da forma como lidavam um com o outro, e de como encaravam quer a educação, quer a doença do filho. As regras e os limites foram calibrados, na medida do possível, e o pai acabou por assumir uma atitude mais responsável, face ao sofrimento do filho, do qual nem sempre tinha tido consciência. Paralelamente, a Escola aceitou responsabilizar-se pela medicação do Luís, evitando assim inconsistência na administração da mesma. Com os contextos parentais e a medicação estabilizados, o comportamento do Luís melhorou consideravelmente, atingindo um rendimento escolar aceitável e reduzindo drasticamente o número de recados na caderneta escolar. Nos meses seguintes, a criança manteve-se acompanhada pelo Projeto SEI! Odivelas, no intuito de restabelecer o equilíbrio emocional e estruturar a separação dos pais, assumindo a hiperatividade um papel secundário na intervenção. O Luís acabou por transitar de ano, com a necessária ajuda e adaptações dos Professores. Atualmente, o Luís encontra-se no 3.º ciclo do ensino básico, sem nenhuma retenção. Os Professores consideramno um pouco distraído, mas dedicado.
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13. Tarefas e Karaté Nome: Francisco, Tiago, Manel, Sandra, Cátia, João, Patricia, Joana, Gonçalo e Pedro Idade: entre 8 e 10 anos Sinalização: graves problemas de indisciplina Ano de escolaridade: 3º e 4º ano
Francisco,
Tiago, Manel, Sandra, Cátia, João, Patricia,
Joana, Gonçalo e Pedro eram 10 miúdos do 3º e 4º ano de diferentes turmas de uma Escola de Odivelas. Cada um deles tinha sido identificado com um problema grave de indisciplina. Eram alunos respondões e desafiantes, como agora nos habituámos a chamá-los. Sabíamos que a alteração de comportamentos também se faz em grupo e, em tempos de crise, aprendemos que com alguma criatividade os recursos se reinventam. Desafiámos o professor do desporto escolar que lhes ensinava Karaté a juntar-se a nós e, em pouco tempo, às quartas-feiras de manhã, ‘trabalhávamos’ os 12, em grupo, os comportamentos e as emoções. Nestas reuniões distribuíamos as tarefas semanais a cada elemento do grupo, tarefas executadas precisamente nos locais onde costumavam ocorrer os conflitos iniciados por estas crianças rebeldes. Ao João, que costumava gozar com os alunos mais pequenos no refeitório, foi distribuída a tarefa de ajudar a auxiliar da escola a dar de comer aos mais pequeninos. A Cátia, que antes andava ao pontapé com todos os que lhe apareciam à frente, passou a ajudar a auxiliar a vigiar os comportamentos no recreio. Os papéis dos alunos do grupo trocavam-se, semana após semana, e os meninos passaram a identificar as novas emoções que sentiam ao assumirem outros comportamentos. 42
Nestas reuniões também se praticava Karaté, uma modalidade que ensina o princípio de ‘calar e esperar’. Ou seja, os meninos do grupo passaram, pouco a pouco, a assimilar os valores deste desporto, que é muito mais do que lutar. Estas sessões realizaram-se durante todo o ano, em sala de aula. A pouco e pouco, os meninos desafiantes passaram a ouvir a professora, a esperar pela sua vez e, no recreio, a respeitar os auxiliares. Ainda hoje nos cruzamos com eles. Estão na escola dos crescidos e, agora mais confiantes, lembram aquele ano em que aprenderam tanto sobre os outros e, sobretudo, sobre eles próprios. Com este grupo também nós aprendemos: as mudanças são possíveis, mas lentas, por isso apenas temos que saber esperar o “tempo” de cada um.
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14. Equilíbrio Nome: Luís Idade: 7 anos Agregado Familiar: mãe e pai Sinalização: instabilidade emocional Ano de escolaridade: 2º Ano
“Será
que o meu pai me vem buscar?”, ouvia a mãe do Luís, nos dias em que o pai tinha assumido que o ia buscar a casa para passar uma tarde com ele.
Desde que os seus pais se tinham separado, a cabeça do menino de sete anos andava, como se costuma dizer, “a mil”. Ouvia a mãe a zangar-se com o pai e, quando estava com o pai, ouvia-o zangar-se com a mãe. Afinal e este menino? O menino que se chamava Luís estava numa idade em que as suas preocupações deviam limitar-se às corridas no recreio, ao jogo da bola, quando muito em fazer os TPC. Mas não, as suas preocupações iam muito para além disto: como gerir esta informação e estas emoções? Há alguns anos, ouvi um juiz de menores numa conferência sobre guarda parental dizer que “o impacto no cérebro de uma criança ao ouvir as zangas dos pais separados, é igual à violência física, como se tivesse recebido um murro no estômago”. Se assim for, pensei eu, o Luís anda constantemente a levar ‘sovas’. Como estará o “estômago” (cabeça) do Luís? Chamei os pais do menino separadamente. Era preciso ouvi-los e explicar-lhes o impacto das suas escolhas e dos seus comportamentos na vida do filho. Percebi que o processo de divórcio tinha sido 44
longo, marcado por muitas discussões e que, mesmo agora que estavam separados, continuavam as discussões causadas, maioritariamente, pelos incumprimentos, no que dizia respeito ao regime de visitas e nos pagamento de despesas relativas às partilhas dos bens. Decidi que, antes de mais, tinha de lhes falar sobre “o murro no estômago”, do que o filho sentia cada vez que o telemóvel tocava e os pais se insultavam mutuamente, porque o Luís já me tinha dito: “eu gosto muito dos meus pais e eu gosto dos dois, mas…”. Depois tentei demonstrar-lhes a importância da participação assertiva de ambos nas rotinas do filho, porque as crianças constroem a segurança e a confiança no seu mundo através das rotinas e o mundo do Luís eram as pessoas que faziam parte da sua vida: o pai e a mãe. Foi então que fui surpreendida com uma mãe e um pai a pedirem: “ajude-me”. Cada um deles tinha consciência que este processo de divórcio estava a fazer muito mal ao Luís e ambos estavam dispostos a fazer tudo o que fosse necessário para encontrarem uma forma de proteger o seu filho e de se ajudarem a eles próprios a resolver este conflito que lhes parecia, na altura, não ter fim! Ambos, individualmente, queriam o mesmo e ambos pediram a mediação familiar para um bem maior: o bem-estar do Luís! Decidimos então que era necessário uma mediação sistemática e, assim, de boa-fé, acabaram com a guerra que pretendiam continuar/iniciar em tribunal. Entre muitas reuniões e muitos emails, explicouse tudo sobre como deveria ser estabelecida a comunicação entre estes pais. E quando digo tudo, era mesmo tudo: definição das rotinas dos dias e visitas do pai; a forma como a criança era entregue pelos progenitores ao outro progenitor; a forma como utilizavam o telemóvel para comunicar, etc… Acima de tudo, foi assegurado pelos pais que todas as regras definidas teriam que ser sempre respeitadas, sempre! Ao longo deste longo processo de mediação familiar, fui acompanhando, semanalmente, a evolução do Luís e foi com muita satisfação que pude assistir - e a sua professora me pôde confirmar - às mudanças positivas que se foram verificando no dia-a-dia do menino. Estava mais tranquilo, menos ansioso e muito mais alegre. Chegou mesmo a dizer que estava “feliz porque finalmente podia estar com a mãe e com o pai sem haver chatices ou zangas E SEM SENTIR AQUELE NÓ NO ESTÔMAGO”. 45
Quando os pais estão na espiral do divórcio ou pós-divórcio, muitas vezes não conseguem reconhecer o mal-estar que estão a causar a si mesmos, à sua volta e, consequentemente, aos seus filhos. Salvo raríssima exceção, é sempre necessário alguém de fora “levantar as cortinas”, ajudar a definir objetivos e as regras para os alcançar e, às vezes, “puxar as orelhas” também, sempre a pensar no principal objetivo e comum a todos: a felicidade da criança. O papel do SEI! Odivelas passa, muitas vezes, por esta perseguição e luta na busca do equilíbrio, por forma a ser possível alcançar harmonia e a paz que muitas vezes as crianças e os seus pais já julgavam perdidas. No final desta história houve quem me dissesse que eu era a “ponte milagrosa”. Do ponto de vista pessoal e profissional, sem dúvida que fico muito feliz. O trabalho foi bem feito porque cada um fez a sua parte e deu o seu melhor… Mas o resultado milagroso é o que está expresso, dia após dia, no sorriso do Luís… Quero e vou continuar a fazer pontes.
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15. O Triângulo: família, escola e aluno Nome: Bruno Idade: 11 anos Agregado Familiar: avó e irmã Sinalização: fraco rendimento escolar Ano de escolaridade: 5º Ano
Estava eu
numa das “minhas escolas” com um grupo de alunos a trabalhar as questões de métodos de estudo, quando me bate à porta a Sofia. A Sofia faz parte daquele tipo de professores que encara a profissão como uma missão. Professora há mais de 10 anos, insiste em trabalhar todos os seus alunos como fossem únicos e, quando lhe aparece na sua direção de turma um daqueles casos difíceis, não é mulher para abandonar o barco… A Sofia estava muito agitada. Tinha um aluno que se chamava Bruno, repetente do 5º ano e que pelo “andar da carruagem” este ano letivo ia pelo mesmo caminho. Estávamos no início do 2º período e já somava seis negativas, e a Diretora de Turma decidiu telefonar para a sua encarregada de educação (já que esta dificilmente comparecia às suas convocatórias na caderneta do aluno) para lhe dar conta do “progresso” do Bruno. A encarregada de educação, mesmo ao telefone, mostrou-se pouco disponível, mas comprometeu-se a estar presente. A professora Sofia percebeu que não iria ser fácil, já que a encarregada de educação se tinha mostrado muito ansiosa e renitente nesta primeira abordagem, por isso mesmo decidiu pedir-me ajuda para estar presente nesta reunião. No dia marcado, a encarregada de educação do Bruno entra na sala. Era uma senhora com 50 anos, cujos traços marcados do rosto aparentavam mais 20. Tratava-se, afinal, da avó do Bruno, 47
que achou por bem que o neto também estivesse presente. Mal se sentou, começou logo a descarregar a grande tensão e pressão que sentia sobre os seus ombros: “ As senhoras fazem ideia do que tem sido a minha vida? Há cinco anos que o meu neto vive comigo. Ele e a irmã, os meus dois netos de que a minha filha não quer saber… Sabem porquê? Porque este miúdo (apontando com o queixo para o Bruno, que a esta altura se sentia mais pequeno que uma formiga), levava porrada do padrasto e a mãe nada…”. Foi naquele momento que, antecipando-me à Diretora de Turma, pedi para sair uns breves minutos com o Bruno para outra sala, para conversar um pouco com ele, mas sobretudo para lhe explicar que nada do que ele tinha ouvido era culpa dele ou significava que ele tinha feito alguma coisa de mal. Ele abraçou-se a mim, sorriu, disse ‘obrigado’ e foi para o recreio para junto dos colegas, já com a certeza de que voltaríamos a estar juntos e a conversar no dia seguinte. Voltei para a reunião com a avó e a Sofia, e depois de ouvir a história que a avó tinha para contar, agarrei a mão dela e disse-lhe: “Muito bem avó, a senhora foi quem protegeu os seus netos e protege desde então”. A senhora começou a chorar e partilhou todas as suas dificuldades e entendeu que estávamos ali para a ajudar a ser a melhor cuidadora que poderia ser para o Bruno e que já não precisava mais de se sentir “sozinha contra o mundo”. Esta família era muito carenciada e, por isso, foram tratados de todos os encaminhamentos que poderiam ajudar. A avó ouviu e interiorizou todas as palavras que lhe foram explicadas sobre como poderia evitar fazer o Bruno reviver todo aquele sofrimento, e como poderia demonstrar todo o afeto que tem por ele. Foi explicado, sobretudo, que esse afeto era importante para que ele pudesse crescer de forma saudável e feliz, em casa e na escola também. Foram combinadas algumas estratégias, e a avó cumpriu com todas, pois o Bruno bem soube expressar a sua alegria naquela tarde, e todas as semanas, quando estávamos juntos. O Bruno disse-me que se sentia “feliz e que sabia agora que a avó não estava zangada com ele e que não quer viver sem ele”. O Bruno era uma criança triste, calada e que se assustava com facilidade quando era abordada, tanto por colegas como por professores. Com praticamente 12 anos não sabia o que era estudar, nunca 48
ninguém se tinha sentado com ele à mesa a perguntar-lhe pelos trabalhos de casa. Até então, mimos e afetos também eram palavras que não tinha por hábito escutar. Numa primeira fase,e sossegando a Professora Sofia que foi a minha aliada no apoio ao Bruno, foi importante “trabalhar aquela avó”. E esta avó quis trabalhar comigo. Veio várias vezes ter comigo, quis aprender sobre como podia ajudar melhor os seus netos, e aprendeu que cuidar é mais do que sustentar: é dar atenção, é valorizar, é amar. Em suma, aprendeu a demonstrar no dia-a-dia o que sentia, mas de uma forma mais positiva e percetível de afeto para os seus netos, porque no fundo tudo o que ela sempre fez era motivado pelo que sentia: amor. O Bruno esteve comigo todas as semanas durante o ano inteiro. Falámos sobre as emoções, sobre a mãe, sobre o padrasto, sobre o processo de retirada da mãe, sobre a avó… Mas como o ano letivo exigia que a nossa atenção também se direcionasse para o estudo, o Bruno também aprendeu a estudar, a estar atento, a fazer apontamentos e a sentir-se bem por ser tal e qual como é. O Bruno passou de ano, agora no 6.º ano parece mais confiante. A professora Sofia fez tudo para poder continuar a ser a diretora daquela turma. A Sofia conseguiu e fez muito bem, pois as inseguranças de uma criança não se perdem de um dia para o outro. Continuo a vê-lo mas o seu olhar já está diferente. Já lhe vejo algum brilho de orgulho nos olhos…porque este orgulho cresceu dentro dele e fez com que, hoje, ele próprio se veja com “outros olhos”… e nós também!
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16. A união faz a força Nome: Rui, Ema e Vanessa Idade: 14 e 15 anos Sinalização: comportamento, retenções, desinteresse e desmotivação Ano de escolaridade: 7º Ano
Não costuma
haver surpresas quando, na Mediação Escolar, recebemos uma ficha de sinalização. Os motivos que trazem os alunos até nós não variam muito e o nosso observatório mostra-nos isso mesmo. Problemas comportamentais, retenções repetidas, desinteresse e desmotivação estão sem dúvida no top três. O Rui, a Ema e a Vanessa eram o espelho dessa estatística. Eram todos alunos da mesma turma de 7º ano e tinham idades compreendidas entre os 14 e os 15 anos. Apesar dos problemas de comportamento, eram miúdos de trato fácil e nunca demonstraram o desinteresse e desmotivação descritos aquando da sinalização. Criámos uma espécie de grupo de trabalho. Começámos por alterar os hábitos e métodos de estudo, treinámos a postura em sala de aula e a atenção, definimos objetivos por disciplina e foram combinadas as estratégias que entre os três utilizariam para se monitorizarem e auto monitorizarem em contexto de sala de aula. Analisámos os pontos fortes e fracos de cada um, e como poderiam utilizar o que de melhor tinham, em prol da melhoria dos outros elementos do grupo. Rapidamente perceberam que esta estratégia poderia fazer melhorar cada um dos membros do grupo. Inclusivamente aquele que estava a “ensinar” os outros saía, sempre, mais conhecedor da matéria depois de o ter feito. Posteriormente, este grupo começou a juntar-se espontaneamente, conseguindo gerir horários e matérias. O resultado deste 50
trabalho foi uma melhoria rápida e notória no aproveitamento escolar de cada um, recuperando as várias negativas que tinham (4, 5 e 6, respetivamente). Os três alunos transitaram para o 8º ano e segundo a diretora de turma, com quem falámos no ano seguinte em contexto de follow up, mantiveram uma postura adequada e motivada na escola. Mais importante que isso, foi perceberem as vantagens do trabalho em equipa, e esse terá, talvez, sido o maior dos ganhos.
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17. O menino de ninguém Nome: Miguel Idade: 10 anos Agregado Familiar: instituição de acolhimento Sinalização: agressividade Ano de escolaridade: 3º ano
Dizem que existem os meninos de ninguém… Aqueles que ninguém quis… Eu conheci um desses meninos.
O Miguel
tinha 10 anos quando o conheci. Tinha acabado de chegar a uma das escolas do Concelho vindo de uma instituição de acolhimento. Este menino tinha uma figura franzina, um rosto pálido e uma expressão vazia…vazia de tudo aquilo que faz de nós seres plenos. Vazio como que um buraco escuro, sem sentido nem nexo, perdido, sem alma e emoção. Sem amor… quero eu dizer! O discurso era confuso e raramente acompanhado da adequada emoção, sobretudo dificilmente olhava nos olhos e, quando olhava, não se detinha. Pediram-me para avaliar o Miguel, pois este manifestava comportamentos desajustados. Agredia os colegas e a si próprio. Era impulsivo e mal controlava a frustração. Rasgava papéis como quem não controla a raiva que tem dentro de si. Atirava-se contra o gradeamento da escola como se quisesse através do seu corpo ferido castigar o sentimento de abandono que trazia em si. O Miguel foi abandonado aos seis meses pelos pais. O pai não quis saber da gravidez, a mãe, demasiado alheada pela toxicodependência, era incapaz de tratar do bebé de forma digna. Dos seis meses aos 10 52
anos passou a frequentar ininterruptamente Centros de Acolhimento Temporário e Lares para crianças e jovens à espera de serem adotados. À espera…à espera… O Miguel por duas vezes esteve para ser adotado…por duas vezes foi devolvido ao Lar… Sim, foi isso que eu disse: devolvido, como quem devolve um equipamento ou produto que não gostou. Por duas vezes, enfrentou a frustração de não voltar a ser amando, de não ter qualquer tipo de valor ou história que pudesse encantar os dois casais que iriam ficar com ele. Mas o Miguel tinha uma história, tinha uma família… Eram quatro irmãos, infelizmente todos em lares diferentes. Da avaliação que fiz ao Miguel, pude perceber que manifestava sintomas de esquizofrenia. Não é
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muito frequente na infância, mas os sintomas era manifestos. O discurso era fragmentado, a perceção das coisas, da realidade distorcida, a emoção era atípica e certamente alguém conspirava contra ele, sobretudo na sala de aula. Fiquei preocupada, pois, efetivamente, o quadro emocional era mais grave do que imaginava e, por isso, encaminhei o Miguel para consulta de Pedopsiquiatria. Este era um caso urgente e prioritário e considerei que tinha condições para acompanhar este aluno. O início foi difícil, mas com o passar do tempo, o Miguel foi confiando em mim, ainda que mantendo um certo distanciamento, evitando cruzar os seus olhos com os meus com medo de sentir novamente a desilusão e frustração. Trabalhei essencialmente com o Miguel a enorme revolta que sentia por não estar com os irmãos. Passou a escrever num caderno, decorado por ele próprio, para eles, na espectativa de um dia as suas mensagens chegarem a eles. A escrita era uma forma de colocar na folha branca tudo aquilo que pensava, e o que tinha medo e pavor de pensar. Resultava, pois era uma forma de conter os impulsos agressivos, de estruturar um pouco melhor as emoções e de preencher um pouco o tal vazio que sentia. O Miguel passou a controlar melhor os seus momentos de descompensação, a estar em sala e a aprender… O Miguel era um aluno brilhante…fez amizades e isso, para ele, era recompensador. O ano letivo terminou e o Miguel mudou mais uma vez de Lar. Não sei para onde foi, mas espero que tenha levado com ele as experiencias boas e os risos que tinha com os amigos.
Ser abandonado é difícil… ser devolvido é impensável… não ser amado é inultrapassável… ser menino de ninguém é não existir… Espero que hoje o Miguel, com 19 anos, tenha encontrado o seu caminho.
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18.
Não há impossíveis… Nome: Pedro Idade: 15 anos Agregado Familiar: pais e 4 irmãos Sinalização: fraco rendimento escolar Ano de escolaridade: 7º ano
Era uma vez
um menino chamado Pedro - ou seria Rafael?, o nome pouco importa!- que vivia no seio de uma família muito carenciada e numerosa. O Pedro tinha quatro irmãos com quem dividia o pequeno quarto, sem condições, frio e desconfortável onde, frequentemente, em dias chuvosos de inverno, se aconchegavam uns contra os outros para que os seus corpos, tiritando com frio, pudessem aquecer um pouco. O pai trabalhava nas obras, levantava-se pela madrugada, comia um naco de pão, que molhava na malga cheia de café e partia, apressado, para apanhar o transporte que o levava ao trabalho. Era um trabalho duro, aquele que conseguiu arranjar, mas ajudava a colocar algum dinheiro na mesa que a mãe ia gerindo com sabedoria. O pai regressava a casa, no final do dia, quando o sol teimava em se esconder no horizonte, dava-lhes um beijo a fugir, que era, ainda assim, para eles o prémio de mais um dia de grande azáfama. A mãe, grande guerreira, também tinha que trabalhar. Saía logo pela manhã, de madrugada ainda, quando os galos ainda dormem, em direção à grande empresa onde fazia limpezas. Depois, tinha que ir limpar a casa de duas senhoras e só no final do dia regressava, cansada, para 55
enfim se dedicar à sua casa e preparar o jantar e as roupas para eles levarem na manhã seguinte. Era muito trabalho, mas esse dinheiro era necessário para o sustento da família. Os irmãos acompanhavam-se uns aos outros como podiam, e o Pedro começava a ter grandes dificuldades lá na escola. Sentia-se perdido. As aulas eram uma seca- como ele dizia- e não compreendia o que estava ali a fazer. Gostava de ficar na rua, como alguns colegas lá do bairro que passavam o dia correndo livremente e jogando no campo de terra rapada com uma bola já velha e debotada. A professora insistia que era necessário estudar! Mas como poderia ele fazer isso? Ele não sabia estudar! E em casa nem os irmãos mais velhos o conseguiam ensinar. Mas um dia - há sempre um dia na vida de uma pessoa que muda o destino de alguém - a professora disse-lhe que, na escola, estava uma senhora que ajudava os meninos com dificuldades e que já muitos dos seus colegas tinham conseguido a ajuda que faltava. Explicou-lhe quem era e onde ficava o seu gabinete e ele, muito a medo, ao princípio muito desconfiado, lá foi timidamente falar com a senhora. Pensava ele, cabisbaixo enquanto caminhava: “vamos ver como é. Sim, porque eu não vou para ali para contar a minha vida, não. Se ela começar com muitas perguntas, vou-me embora! Está decidido!” Esta tomada de decisão descansou mais o Pedro e, muito a custo, bateu à porta do gabinete. Foi recebido com um grande sorriso e convidado a entrar. O Pedro encolheu-se na cadeira, um pouco atrapalhado. “Eu venho pedir ajuda”, balbuciou. 56
A conversa prolongou-se e as defesas do Pedro começaram a esbater-se. Aquela senhora até era simpática e não estava ali para o castigar ou para lhe pregar grandes sermões, como acontecia com outros adultos. O Pedro começou a pensar que talvez pudesse confiar e aceitar a ajuda que lhe ofereciam. Depois daquela sessão, muitas outras se seguiram. Agora, era o Pedro que procurava a mediadora nos intervalos a quem falava dos seus problemas e a quem recorria quando não entendia como devia estudar alguma matéria. Os resultados dos testes começaram a aparecer, bem diferentes daqueles que até então ele tinha tido. E o seu comportamento na sala de aula também mudou. A professora até um dia comentou que ele devia ser o delegado de turma. Ficou feliz! Tão feliz! Afinal - pensava o Pedro - estudar até pode ser bom. Sempre é melhor que trabalhar no duro como o meu pai. O final do ano estava a aproximar-se e o Pedro via com satisfação que, das cinco negativas que tinha tido no 1º período, já tinha conseguido recuperar quatro. Foi um grande esforço, mas, se não tivesse a ajuda da mediadora, sua amiga desde então, não teria conseguido. O Pedro até já sonhava em continuar os estudos. Ele queria ser educador de infância para poder ajudar meninos como o seu irmão mais novo. E a sua nova amiga sempre lhe disse que, se se esforçasse e estudasse muito, podia ser o que quisesse. Olhos postos no horizonte, lá ao fundo, o Pedro sorria e pensava: 57
“Vou ser educador de infância! NÃO HÁ IMPOSSIVEIS!”
Esta é a história de um menino, como tantos outros, que nasceu num bairro pobre da nossa cidade, no seio de uma família carenciada. Frequenta uma das escolas do nosso Concelho e tinha muita dificuldade em perceber porque é que a aprendizagem e a aquisição de conhecimentos são tão importantes. É a história de um menino com um coração grande, cheio de amor que aceitou a ajuda de alguém e transformou a sua vida. Eu acredito nestes meninos e meninas e acredito que o projeto SEI! Odivelas pode ser o motor que transforma a sua vida, rasga horizontes e lhes mostra que o Sol, quando nasce, é para todos. É preciso acreditar! Fernanda Franchi
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TESTEMUNHOS Antes de finalizarmos deixamos-vos com algumas reflexões e testemunhos de alunos e famílias decorrentes do trabalho no terreno realizado pela equipa do projeto SEI!Odivelas. Esperamos que com este trabalho tenhamos conseguido transmitir que aquilo que nos move também são as emoções.
Nunca terei palavras para agradecer à Doutora X, o que ninguém conseguiu, até aquele momento (advogados, família, amigos), A HARMONIA E FELICIDADE DO NOSSO FILHINHO, QUE TANTO AMAMOS e estávamos a magoá-lo, a mesma conseguiu fazer ultrapassar grandes obstáculos entre os pais. Esta Sra., tornou-se para o nosso filho, não só uma psicóloga, mas sim uma amiga, um porto seguro de conselhos e dúvidas e nós pais sentimos o mesmo.
Obrigada pelo que fez por nós e todo o tempo que disponibilizou. Que Deus a ajude e à sua família, desejo-lhe um Feliz Natal e Um Próspero Ano Novo. (mãe de aluna acompanhada)
Obrigada por estar aqui ao pé de mim. Adoro-a!
Adoro-a, é uma pessoa incrível, é uma boa pessoa. Ajuda as pessoas que necessitam.
As boas pessoas são bem recompensadas. Gosto muito de si. Obrigada por me ajudar em tudo o que pode, é um gesto que significa muito para mim, nunca a vou esquecer. É um amor! (aluna acompanhada)
(aluna acompanhada)
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Projeto SEI! Odivelas Rua Fernรฃo Lopes (Junto aos Paรงos do Concelho - Quinta da Memรณria) 2675-348 Odivelas T. 219 320 359