Plano Urbanístico Comunitária da Muribeca - Caderno 01

Page 1

PLANO URBANÍSTICO COMUNITÁRIO DA MURIBECA

1


PUC MURIBECA

leitura técnico comunitária

caderno1/3

recife, dezembro 2020


coordenação

colaboração


EQUIPE CAUS Clara Melo Luan Melo Manoela Jordão Matheus Nascimento Pauline Paixão Wallace Rodrigues Vitor Araripe Luana Alves Bruno Fonseca

Renan Castro

Advogado Popular | CPDH

Tereza Mansi Advogada Popular | CPDH

Thiago Scavuzzi de Mendonça Advogado Popular

Antônio Celestino Advogado Popular | CENDHEC

André Felipe Silva do Nascimento

EQUIPE PROJETO Clara Melo Arquiteta e urbanista | CAUS

Luan Melo Arquiteto e urbanista | CAUS | CPDH

Manoela Jordão Arquiteta e urbanista | CAUS

Matheus Nascimento

Graduando em Arquitetura e Urbanismo | CAUS

Pauline Paixão

Somos Todos Muribeca

Charles Henrique do Nascimento Somos Todos Muribeca

Daniela Trindade Somos Todos Muribeca

Israel José da Silva Filho Somos Todos Muribeca

Jamilly Maia Somos Todos Muribeca

João Marcelo Mendes Trindade Somos Todos Muribeca

Graduanda em Arquitetura e Urbanismo | CAUS

Katalliny Garcez

Wallace Rodrigues

Luiz Cláudio Gomes de Melo

Arquiteto e Urbanista | CAUS

Diogo Galvão Dr. Geógrafo | CAUS

Lucia Siqueira

Me.Arquiteta e Urbanista | Rede Interação

Somos Todos Muribeca

Somos Todos Muribeca

Valdênio Ferreira do Nascimento Somos Todos Muribeca

Paulla Mattos e diagramação


SUMÁRIO 11

1 • APRESENTAÇÃO

15

2 • INTRODUÇÃO:

17

3 • LEITURA TÉCNICO COMUNITÁRIA - PARTE 1:

17 39

39

43 53 61

O que é a leitura técnico comunitária?

O conflito

3.1. O conflito e a luta pela permanência

3.2. Assessoria técnica em contexto de conflito 3.2.1. Reflexões sobre o processo de elaboração do PUC

3.2.2. Processo de Regularização Fundiária - Centro Popular de Direitos Humanos e Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social 3.2.3. Autorrecenseamento - Rede Interação e Poupança Comunitária 4 • CONCLUSÃO


apresentação

Como fruto de um complexo processo, este documento compreende o Caderno 01/03 do Plano Urbanístico Comunitário da Muribeca (PUC-Muribeca) e denomina-se Leitura Técnico Comunitária - Parte 1: O conflito. Trata-se do segundo produto decorrente do processo de assessoria, sucedendo ao Plano de Trabalho do PUC. A Leitura Técnico Comunitária recebe esta denominação por ser resultado de uma análise crítica e coletiva acerca do território da Muribeca¹ e do conflito instalado na área, que compreende a demolição do antigo Conjunto Habitacional da Muribeca e os possíveis rumos do terreno em questão (Fig. 01, 02 e 03). A leitura é realizada pela associação comunitária Somos Todos Muribeca (STM), que facilitou o diálogo com a comunidade, em parceria com uma rede de assessorias técnicas e organizações da sociedade civil. O caderno se propõe a ser um repositório dos dados e fontes oficiais e empíricas sobre os aspectos físico-territoriais, bem como, das relações afetivas dos moradores com o território, identificadas durante as oficinas comunitárias realizadas no ano de 2019. Além disso, configura um importante registro histórico, atento às imprevisibilidades do conflito. Por conta da experiência vivenciada ao longo do processo, este documento teve seu conteúdo alterado, divergindo do que havia sido proposto inicialmente no Plano de Trabalho. Na prática, o conflito acabou por desmistificar a linearidade planejada e adotamos aqui uma postura orgânica e dialógica, em resposta às “situações-limites”² as quais fomos e estamos colocados. É preciso ressaltar que também é objetivo deste documento estabelecer diálogo com instituições públicas, produzindo um material técnico que reflita os anseios dos atores comunitários envolvidos. Sendo assim, a linguagem aqui utilizada pode não ser tão acessível para a maioria dos moradores da Muribeca, porém, a partir deste material poderão ser desenvolvidos outros formatos que permitam um diálogo ampliado. É importante negritar que a iniciativa para elaboração do PUC Muribeca partiu do STM, que demonstrou interesse na construção de uma proposta, de base popular, que pudesse orientar a tomada de decisão acerca da reocupação do terreno do antigo Conjunto Muribeca. A partir de 2018, inicia-se uma parceria entre a Cooperativa Arquitetura, Urbanismo e Sociedade (CAUS), grupo que presta assessoria técnica popular em arquitetura e urbanismo, o geógrafo e professor Diogo Galvão, da Faculdade ESUDA, e o STM, com o intuito de viabilizar o planejamento comunitário. A atuação em rede também abrange outros atores, e é por meio desta articulação que se busca fortalecer a luta popular por direitos. Sendo assim, colaboram com este documento e com as demais ações de mobilização no território, destacadamente, o Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH) e o Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social (Cendhec), que vem atuando como assessoria jurídica. Também integra o time de parceiros a Rede Interação e a Poupança Comunitária da Ilha de Deus. Cada qual contribui, neste documento, com sua perspectiva, seja ela jurídica, técnica, política, social ou de vivência no território.

¹ No ano de 2016 em face da luta dos moradores foi instituída a Zona Especial de Interesse Social da Muribeca, por meio do Decreto-Lei 1294/2016, que foi resultado de um processo de mobilização comunitária que culminou na ocupação da Câmara Municipal de Vereadores. Embora esta ainda não esteja prevista no Plano Diretor de Jaboatão dos Guararapes, a ZEIS Muribeca salvaguarda hoje cerca de 65.2 hectares da área do entorno do antigo Conjunto Residencial Muribeca, prevendo em seu perímetro o uso residencial de baixa renda como prioritário. A ZEIS abarca outros assentamentos populares circunvizinhos ao antigo Conjunto Muribeca, como as ocupações urbanas espontâneas Brasil Novo e Nova Muribeca. Nas proximidades também há o Loteamento Brasil Novo, loteamento popular que está fora do perímetro da ZEIS. Sempre que nos referimos neste documento à “Muribeca” estamos falando do território que compreende a ZEIS e seu entorno imediato, composto pelos assentamentos supracitados. ² A “situação-limite”, para o educador pernambucano Paulo Freire, é a forma como as relações da sociedade capitalista expropriam os recursos da natureza e a dignidade do trabalhador, em determinada intensidade, que se torna inevitável a busca por uma reação, ou “ato-limite”.

11


01

03

02

Fig. 01 - Localização do Conjunto Muribeca em relação a Região Metropolitana do Recife (RMR). FONTE: Elaboração CAUS, base Google Maps. Janeiro, 2020. Fig. 02 - Localização do Conjunto Muribeca em relação ao contexto urbano imediato. FONTE: Elaboração CAUS, base Google Maps. Janeiro, 2020. Fig. 03 - Identificação do perfil de ocupação na Muribeca. FONTE: Elaboração CAUS, base Google Maps. Janeiro, 2020.

12

13


introdução

O PUC-Muribeca surge como ferramenta de registro e planejamento que parte do desejo da população em retomar o território que lhe tem sido expropriado. Este anseio se manifesta através da possibilidade de reocupar o vazio que tomou conta do coração da localidade logo após a demolição do Conjunto construído em meados da década de 80. A princípio num contexto urbano isolado, caracterizado pela escassez de serviços e equipamentos urbanos, dotado de uma arquitetura monofuncional, o conjunto teve seus espaços residuais e seu entorno imediato ocupados por milhares de famílias, que findaram por consolidar, entre os canais Três Carneiros e Mariana, uma comunidade, um território pulsante. A missão, portanto, que o PUC-Muribeca assume é nada além que enaltecer o óbvio: assegurar a vontade do povo sobre o território que lhe pertence. Para a compreensão das dinâmicas e os conflitos experienciados no território, é preciso uma leitura orientada por duas frentes principais, que estão sistematizadas neste documento em dois subcapítulos. O primeiro subcapítulo propõe sistematizar as problemáticas referentes ao conflito, discorrendo sobre os fatos ocorridos em um breve resgate histórico até o momento de início das atividades do PUC-Muribeca, em março de 2019, marco inicial do recorte temporal utilizado nesta leitura. Segue, então, uma descrição pormenorizada dos acontecimentos até fevereiro de 2020, quando são definidos na 5ª Vara da Justiça Federal de Pernambuco: o valor indenizatório para os antigos proprietários dos apartamentos e a destinação do terreno do Conjunto Muribeca. O segundo subcapítulo traz uma reflexão sobre as estratégias adotadas pelos grupos de assessoria frente à leitura do território, ao relacionamento com a população afetada e ao conflito propriamente dito. São abordados questionamentos do modelo tradicionalmente aplicado de planejamento, que não contemplam a adaptabilidade exigida frente a um conflito urbano e não agregam a devida valorização dos anseios populares sobre seu próprio território. Também são pontuadas e contextualizadas, técnico e politicamente, algumas ações adotadas no PUC ao longo do processo. Conta-se, ainda, com as contribuições da rede de parceiros, que trazem informações sobre as ações realizadas por estes grupos junto à população local no processo de luta por direitos, são elas: a regularização fundiária e o autorrecenseamento, respectivamente.

15


leitura técnico comunitária - parte 1 3.1. o conflito e a luta pela permanência

As paulatinas interdições de blocos no Conjunto iniciadas ainda na década de 1980, se encerraram a partir da conclusão de um estudo do Instituto de Tecnologia de Pernambuco (ITEP), finalizado em 2015, que apontou a má qualidade dos materiais e o emprego inadequado da técnica da alvenaria autoportante como as principais causas dos danos nas edificações, o que levou à condenação de todo Conjunto Residencial Muribeca. A desocupação gradual alcançou sua totalidade também em 2015, como podemos identificar na Figura 04, constituindo um processo que alterou profundamente a dinâmica vivida pelos moradores em seu cotidiano, quer seja em relação aqueles que deixaram de habitar a Muribeca, quer seja aqueles que residiam no entorno do residencial. Nesse contexto de desocupação, junto ao caso de demolição de seis casas que ficavam na faixa leste da Quadra 2, surge a ONG Somos Todos Muribeca (STM) como uma voz insurgente no território. Entre as principais consequências da condenação está a transformação da Caixa Econômica Federal (CEF) à condição de ré no processo judicial, que inicialmente determinaria a reconstrução dos blocos, ou, em caso de inviabilidade técnico-financeira, a indenização aos proprietários de apartamentos. A princípio, como a ação judicial previa a reconstrução do Conjunto Residencial Muribeca, é firmado em 2015 um acordo de cooperação técnica entre a CEF e a Prefeitura Municipal de Jaboatão dos Guararapes (PMJG), que pressupunha a elaboração de proposta de solução integrada para a reconstrução: o Plano Urbanístico Integrado (PUI). Para elaboração do PUI foi realizado um Diagnóstico Local (PMJG e CEF, 2015)³ no qual consta um Plano de Demolição. Neste plano foram determinadas zonas de segurança, delimitadas conforme a distância dos blocos do Conjunto, que visavam proteger as residências vizinhas do impacto gerado pelo “bota abaixo” das edificações da antiga “COHAB”. Foram estabelecidas então, duas zonas correspondentes aos perímetros que veremos no mapa contido na Figura 05. A primeira zona de segurança, cujo perímetro está indicado pela linha azul escura no mapa, representa a distância equivalente a seis metros do limite de cada bloco. A diretriz prevista para esta zona era de que todas as edificações em seu interior fossem demolidas. Já o perímetro da segunda zona está indicado por uma linha verde e tracejada no mapa, e compreende uma faixa com início na linha azul, limite distante 6m dos blocos, atingindo até doze metros de distância, linha verde tracejada. Para esta zona estava prevista a desocupação temporária dos imóveis, durante as demolições, com a possibilidade de retorno dos moradores uma vez constatada a inexistência de danos irreparáveis em suas habitações. O Plano também previa alternativas habitacionais para os impactados, alocando-os na própria comunidade, contando ainda com um cadastramento por parte da equipe técnica e social da PMJG que visava assistir à população durante o processo de demolição. Porém, as propostas do PUI tiveram seu encaminhamento interrompido em função de uma análise equivocada, por parte ³ Extraído dos Anexos do Relatório Final contido no Acordo de Cooperação Técnica firmado entre a Caixa Econômica Federal e a Prefeitura Municipal de Jaboatão dos Guararapes para Proposta de Solução Integrada para o Conjunto Muribeca e Entorno Imediato.

17


04

Fig. 04 - Conjunto Muribeca ainda de pé e já desabitado. FONTE: Acervo CAUS. Abril, 2019.

18

19


05

06

Fig. 05 - Diagnóstico local. Acordo de Cooperação Técnica Caixa/ PMJG - Grupo de Trabalho: Proposta Requalificação para o Conjunto Residencial Muribeca. Novembro, 2015. FONTE: PMJG e CEF, 2015. Elaboração CAUS, 2020. Fig. 06 - Grupo de atores locais definidos durante o conflito do Conjunto Muribeca. FONTE: Elaboração CAUS. Janeiro, 2020.

20

21


da justiça federal, dos dados contidos no Plano de Águas Pluviais do Baixo Jaboatão4, estudo elaborado em 2015. A justiça adota o entendimento de que não seria viável a reconstrução dos blocos por suscetibilidade a alagamento do terreno do antigo Conjunto Muribeca. É possível observar os equívocos mencionados por meio da leitura do relatório de complementação ao Ofício CAR-GE-171-16 relativo à solicitação para a cota de aterro da área do Conjunto Residencial Muribeca. O documento de novembro de 2016 foi elaborado pelo Consórcio Téchne-Engeconsult e endereçado a PMJG, por meio da Secretaria Executiva de Meio Ambiente, Habitação e Saneamento, e da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Sustentabilidade. Neste escrito, motivado pelo pedido da prefeitura de antecipação do projeto dos Canais Mariana e Tres Carneiros, vizinhos a Muribeca, o consórcio negrita que obteve da municipalidade apenas as informações necessárias para a realização do previsto no Termo de Referência do contrato celebrado entre as partes, que compreendia o projeto de engenharia, gestão, manejo e drenagem urbana das águas pluviais da região da Muribeca, localizada no Baixo Jaboatão. Por sua vez, o consórcio indica no texto do documento que não estava no escopo do contrato “a determinação de cota para aterramento, nem projetos de arquitetura ou urbanização, externos a faixa de levantamento topográfico do canal”. Ou seja, não estava incluído nos serviços contratados a análise específica e aprofundada do terreno correspondente ao antigo Conjunto Muribeca, apenas o entorno imediato dos canais supracitados. O grupo destaca, ainda, que o material fornecido pela PMJG, um conjunto de fotografias aéreas associadas a curvas de nível, “apresenta inconsistências”, é o que podemos atestar neste trecho retirado do documento: “Esse material é suficiente apenas para a visualização da situação geral da drenagem municipal, como determinação de área de contribuição e extensão do canal, devendo ser complementada por topografia convencional, para elaboração do projeto. Além disso, o material fornecido apresenta algumas inconsistências, que não permitem o detalhamento do projeto, reforçando a necessidade do levantamento de campo específico, conforme previsto nos Termos de Referência.” No próximo caderno do PUC aprimoraremos a discussão da drenagem trazendo dados sobre a localidade de Muribeca, apresentando uma análise em contraponto ao equívoco do judiciário, explorando as condições de habitabilidade da região e apontando possibilidades para a reconstrução dos blocos da COHAB-PE5. Neste momento, para entender o conflito que se instalou, nos interessa evidenciar que a argumentação utilizada pela justiça foi determinante para a divisão da comunidade em grupos específicos com reivindicações, muitas vezes, divergentes. Desde a condenação dos blocos, pode-se observar a conformação de cinco grupos de atores na comunidade, quando considerados os impactos diretos e específicos resultantes do destino sentenciado do Conjunto. O Plano de Águas Pluviais do Baixo Jaboatão é fruto do contrato 009/2015 celebrado entre o consórcio de consultorias Technè Engeconsult como prestador de serviço da Prefeitura Municipal de Jaboatão dos Guararapes (PMJG). O plano visava a elaboração de projetos de engenharia para gestão das águas pluviais, manejo das águas pluviais e drenagem urbana de 37 canais no Município do Jaboatão dos Guararapes, componentes das bacias do Baixo Jaboatão e da Lagoa Olho D’água. 5 Companhia de Habitação Popular do Estado de Pernambuco. 4

22

O primeiro é constituído pelos proprietários dos apartamentos do Conjunto, prejudicados pelo processo de condenação ao perderem a moradia. O segundo grupo corresponde às famílias moradoras dos assentamentos populares6 internos do terreno do Conjunto, que também tiveram condenadas as suas moradias, por ocuparem os “puxadinhos”7 e construções nas áreas destinadas para estacionamento de veículos no projeto original. O terceiro grupo trata-se das famílias que habitam os assentamentos populares externos, ocupando as áreas adjacentes aos limites do terreno do Conjunto, expostos diversas vezes à insegurança quanto à permanência no território diante da possibilidade de remoção. O quarto grupo de atores do território são os moradores de loteamentos e assentamentos populares do entorno, área externa ao terreno do conjunto. Estes espaços foram sendo ocupados à medida que a dinâmica urbana se desenvolvia no território. Destaca-se aqui, um processo de adensamento populacional e construtivo nessas áreas ocorrido a partir da evasão de moradores do Conjunto Muribeca dado o processo de condenação dos blocos. O quinto grupo se trata dos comerciantes, podendo ou não também ser moradores do território, mas em especial, os que perderam seus locais de trabalho em face das demolições dos blocos residenciais, o que impactou nas rendas familiares e no atendimento à população local (Figura 06). O reconhecimento dos moradores de Muribeca junto ao judiciário era praticamente exclusivo aos mutuários8, ou seja, os proprietários dos apartamentos. Estes eram considerados lesados do seu direito enquanto consumidores e proprietários de unidades habitacionais do Conjunto, por isso ocupavam a posição de parte no processo judicial. Essa prerrogativa possibilitou aos proprietários o acesso a um auxílio-moradia pago pela CEF em valores próximos à um salário-mínimo, cujo valor é muito superior ao auxílio disponibilizado pela municipalidade em casos semelhantes. Às famílias de moradores dos assentamentos internos, por não serem proprietárias de apartamentos, coube à PMJG disponibilizar outra alternativa. O que foi oferecido a este grupo foi a realocação para o Conjunto Habitacional Fazenda Suassuna, localizado cerca de 9km do Conjunto Muribeca (Figura 07). Ademais, a total desconsideração pela Justiça Federal das famílias impactadas pela condenação do Conjunto, em especial as que não são proprietárias de apartamento, provoca discordâncias e acentua desigualdades entre os próprios moradores do bairro. Aos demais moradores da comunidade, que por ventura foram notificados a deixarem seus imóveis, também foi apresentada alternativa de realocação para o Fazenda Suassuna, em caso de enquadramento para serem atendidos pelo programa habitacional. Em Junho de 2019, a juíza responsável pelo processo junto à 5ª Vara da Justiça Federal de Pernambuco determinou a demolição de todos os blocos do Conjunto Muribeca, condicionando a retomada das discussões acerca das indenizações dos proprietários de apartamentos ao final do processo demolitório. Para não tornar pejorativa ou taxativa a forma como enxergamos essas nucleações, e, por reconhecer que as condições de moradia nesses territórios foram e continuam sendo fruto de um processo histórico de exclusão, neste escrito optamos por utilizar o termo assentamento popular, para descrever áreas de ocupação espontânea, independente de determinados aspectos legais, como a aprovação de seu parcelamento do solo perante o poder público ou inscrição no registro de imóveis, etc. Vale ressaltar a existência de várias terminologias utilizadas institucionalmente para definir áreas tidas como precarizadas. Dentre elas: “aglomerados subnormais”, terminologia utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e “núcleos urbanos informais” termo trazido na Lei nº 13.465/2017 que regulamenta a regularização fundiária rural e urbana no Brasil. 7 Expressão popular utilizada para descrever as unidades habitacionais construídas em anexo a edificações existentes, muitas vezes destinadas a abrigar pessoas de uma mesma família em face de seu crescimento. 8 Pessoa que possui contrato de compra e venda perante construtora, incorporadora ou instituição bancária, conferindo legitimidade na participação como parte no processo. 6

23


07

Este processo é dividido em quatro fases, onde cada fase equivale a uma quadra do Conjunto. As primeiras a serem derrubadas seriam as quadras 1 e 2, que ficam a sul do terreno, e posteriormente, as quadras 3 e 4 à norte (Figura 08). O início e o desenvolvimento das demolições é marcado por uma série de impactos à comunidade de Muribeca e seu entorno. O procedimento acontecia, simplificadamente, na seguinte ordem: 1) o entorno dos blocos era isolado; 2) as escavadeiras derrubavam as edificações; 3) o entulho produzido era processado no próprio local; e por fim, 4) os resíduos eram transportados. Durante as demolições, as famílias que residiam dentro do perímetro de segurança, entre 6 e 12m, foram orientadas a deixar o local em razão dos tremores causados pela ação das máquinas pesadas e da poeira resultante do processo. Mas, na prática, nem todas famílias tiveram condições de realizar a mudança temporária, e mesmo os moradores que estavam a mais de doze metros sofreram com o procedimento. Vale ressaltar, que durante a celeuma judicial relatada neste caderno, ocorreu um desgaste de ordem emocional muito grande dos moradores, principalmente os mais antigos, casos de depressão e até de morte em decorrência deste processo são constantemente relatados. Esse não é o único impacto que coloca em cheque a saúde dos que permaneceram. Desde 19959 o manuseio de amianto no Brasil é proibido e, o entulho resultante da demolição do Conjunto, processado “in loco”, também era composto por pedaços de telhas dos blocos, que por serem peças da década de 80, continham o minério em sua composição. A inalação do pó de amianto causa, entre outras doenças, o câncer, toda a população do bairro estava exposta ao risco. Isto evidencia outra dimensão do conflito, o racismo ambiental10, ao qual a população da Muribeca foi submetida. (Figuras 09, 10, 11, 12, 13, 14 e 15).

08

Como resultado das demolições e movimentação de entulhos onde antes estavam erguidas as edificações, recentemente as quadras 3 e 4 sofrem com a chegada do período chuvoso. A água que cai acumula em frente às casas que margeiam o terreno do antigo Conjunto, e, dependendo da intensidade da chuva, ela acaba transbordando para dentro das moradias. Esse fenômeno se intensificou dado o entulho deixado no terreno, o que elevou sua a cota, além de causar o encobrimento de meio fios e sarjetas que direcionam e distribuem a água pluvial, fazendo parte do sistema de drenagem urbana do território. Ou seja, o processo aqui relatado comprometeu ainda mais o funcionamento da infraestrutura de drenagem existente, contribuindo para o efeito de alagamento, mais um impacto dessa ação pública arbitrária. Durante as demolições, em novembro de 2019, a Justiça Federal mudou os critérios estabelecidos anteriormente no PUI, que previam a demolição dos blocos e edificações nas faixas de segurança do Plano de Demolição. Agora deveriam ser demolidas todas as edificações localizadas no interior do perímetro do Conjunto Muribeca, registrado, descrito e ilustrado oficialmente na planta original da COHAB. Excetuavam-se dessa decisão apenas as áreas comerciais no centro do antigo residencial. Este fato surpreendeu diversos moradores dos assentamentos externos, Brasil. Lei nº 9.055 de 1 de junho de 1995. Disciplina a extração, industrialização, utilização, comercialização e transporte do asbesto/amianto e dos produtos que o contenham. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9055.htm>. Acessado em 11/06/2020. 10 “O racismo ambiental é a discriminação racial no direcionamento deliberado de comunidades étnicas e minoritárias para exposição a locais e instalações de resíduos tóxicos e perigosos, juntamente com a exclusão sistemática de minorias na formulação, aplicação e remediação de políticas ambientais.” retirado do site: https://www.geledes.org.br/racismo-ambiental-o-que-e-importante-saber-sobre-o-assunto/ 9

Fig. 07 - Localização do Habitacional Fazenda Suassuna em relação ao Conjunto Muribeca. FONTE: Elaboração CAUS, base Google Maps. Janeiro, 2020. Fig. 08 - Esquema cronológico: demolição das quadras do Conjunto Muribeca. FONTE: Elaboração CAUS, base Google Maps. Janeiro, 2020. 24

25


09

Fig. 09 - Volume de poeira gerado durante a demolição da Quadra 1. Sequência extraída de vídeo gravado da janela de um morador do entorno do Conjunto Muribeca. FONTE: Acervo CAUS. Outubro, 2019.

26

27


Fig. 10 - Entulho ou “metralha” sendo transportada por caminhões fazendo poeira enquanto duas crianças caminham. FONTE: Acervo STM, vídeo filmado por moradores. Outubro, 2019. Fig. 11 - Quadra 3 em processo de demolição. FONTE: Acervo CAUS. Outubro, 2019.

28

10

12

11

13

Fig. 12 - Quadra 3 em processo de demolição. FONTE: Acervo STM, vídeo filmado por moradores. Outubro, 2019. Fig. 13 - Quadra 1 completamente demolida. FONTE: Acervo CAUS. Outubro, 2019.

29


14

que por sua vez, foram notificados para que saíssem de suas casas num prazo de quinze dias, abordagem completamente diferente da prevista no Plano de Demolição. Entre as dezenas de imóveis que inesperadamente foram notificados para demolição, está o Centro de Saúde Alternativa da Muribeca - Cesam11, um equipamento erguido e gerido por mulheres do bairro que trabalham com o cultivo de plantas medicinais, manipulação e comercialização de remédios para fins terapêuticos. O Centro é referência internacional em medicina fitoterápica, por isso, a ameaça de demolição gerou um novo alcance de mobilização para a luta na Muribeca. A divulgação e repercussão do caso na mídia12 explicitou as divergências entre os discursos da CEF e da Prefeitura, ambas negando a responsabilidade pela notificação. O fato resultou na anulação da condenação, não só do Cesam mas de muitas outras casas vizinhas ao equipamento (Figura16). Com o novo critério de demolição e a notificação inesperada de edificações, surge a preocupação em saber quais os reais limites do terreno do Conjunto Muribeca. A incerteza sobre esse perímetro, e consequentemente, o número de impactados por possíveis remoções gerou duas ações de resposta. A primeira, tomada pela iniciativa e articulação entre moradores e Assessorias Técnicas Populares no mês de dezembro de 2019, foi a solicitação da Regularização Fundiária das casas do entorno, com base na Lei 13.465/2017, visando evitar novas investidas de remoção que poderiam vir a ser empreendidas contra os diversos grupos de atores do território. No próximo tópico do documento explicaremos com mais detalhes o pedido de regularização como estratégia de salvaguarda dos moradores e seu patrimônio.

15

Já a segunda ação foi tomada pela PMJG, em fevereiro de 2020, em resposta ao referido pedido de regularização fundiária, que possibilitou o levantamento topográfico para verificação dos limites do lote do Conjunto e a determinação de um perímetro compreendendo as edificações passíveis de regularização, configurando um primeiro passo para assegurar os direitos dos moradores de Muribeca. O resultado apresentado para o levantamento feito pela Prefeitura mostra, primeiramente, a demarcação da área passível de regularização, que diz respeito aos assentamentos externos que circunvizinham o terreno do Conjunto, e a um trecho da Nova Muribeca.A outra deliberação trata da mudança no entendimento que embasa os critérios para a demolição, que antes condicionava todas as edificações na área delimitada para o Conjunto à demolição, independente das distâncias para os blocos. Após finalizadas as demolições, a expectativa sobre a sentença cresce. Estando já consolidada a visão equivocada da inviabilidade de reconstrução, a discussão se direciona aos valores das indenizações dos mutuários. Paralelamente, as 21 famílias que não se enquadraram nos requisitos da PMJG para recebimento de uma unidade no Habitacional Suassuna, e outras dezenas de comerciantes que viram seus estabelecimentos derrubados, ainda não têm perspectivas de como serão amparados por suas perdas.

Fig. 14 - Quadra 3 com blocos parcialmente demolidos. FONTE: Acervo CAUS. Outubro, 2019. Fig. 15 - Entulho sendo processado e armazenado nas proximidades das casas do entorno do Conjunto Muribeca. FONTE: Acervo CAUS. Outubro, 2019.

30

Para mais informações sobre o CESAM acessar: https://cesamfitoterapia.wordpress.com/. Matéria publicada nos portais Marco Zero Conteúdo e Brasil de Fato, em novembro de 2019. Acesse os links, respectivamente: <https://marcozero.org/a-ameaca-ao-centro-de-saude-alternativa-da-muribeca-e-a-extincao-de-um-bairro/> e <https://www.brasildefatope. com.br/2019/11/27/centro-de-medicina-alternativa-e-ameacado-de-despejo-na-periferia-de-jaboatao>

11 12

31


Esse recente cenário de remoções e realocações de moradores se coaduna com um contexto de valorização imobiliária desta região, na qual têm surgido novos empreendimentos habitacionais e loteamentos que tiram proveito do valor relativamente baixo da terra “isolada” do contexto urbano, garantindo uma elevada margem de lucro para as construtoras e incorporadoras imobiliárias que tem explorado o potencial do Baixo Jaboatão.

Para sistematizar todo o conteúdo relatado neste tópico, elaboramos a linha do tempo a seguir que evidencia todos os acontecimentos que marcaram a história do povo de Muribeca, desde a decisão pela demolição dos blocos até a indenização, (VER FIGURA 17). Entendemos que a reconquista do território, por um projeto atento aos anseios da população, precisa levar em consideração tais fatos históricos, em toda a sua complexidade e diversidade de desdobramentos.

Vale mencionar que o contexto urbano no qual a Muribeca se insere caracteriza-se pela intensa atividade do setor de logística, que por sua vez, ao gerar postos de trabalho com emprego formal, também desperta o interesse de imobiliárias na região, abrindo a possibilidade de um mercado consumidor para linhas de financiamento de moradias. Nesse sentido, a instância jurídica e a municipalidade vinham especulando a ideia de construção de um parque na área onde hoje se localiza o terreno do Conjunto Muribeca, que consta como de posse da CEF. Essa proposta, que surpreendeu a comunidade, surge amparada pela tese da Muribeca alagável, na qual seria inviável empreender habitação no local. É nessa perspectiva que o prefeito de Jaboatão, Anderson Ferreira, vai à Brasília-DF, em setembro de 2019 para solicitar ao então presidente do Senado Federal, Davi Alcolumbre, apoio político para a construção do parque na Muribeca13. Em março de 2020, a Justiça Federal convoca audiência pública onde seria realizado acordo para a definição dos valores indenizatórios, assim como maiores detalhes do procedimento administrativo necessário para dar entrada ao pedido de indenização por parte dos proprietários de apartamentos. Sendo assim, os valores definidos em audiência são: R$120.000,00 (cento e vinte mil reais) para proprietários de apartamentos de dois quartos; e, R$140.000,00 (cento e quarenta mil reais) para os proprietários de apartamentos de três quartos. Em sentença fruto deste mesmo acordo, ocorre a cessão do terreno do antigo habitacional para a PMJG, e são determinados os usos permitidos em todo o perímetro do Conjunto, como consta no trecho do documento abaixo: “Implantação, em toda a área/perímetro do Conjunto Residencial Muribeca, de parque municipal público e instalação de equipamentos públicos comunitários (inclusive mercado público, UPA, etc), no prazo de até 10 (dez) anos. [...] sendo vedada qualquer destinação do terreno/espaço à construção de prédios ou edículas com finalidade habitacional/residencial, ou mesmo edificação de imóveis comerciais, para fins negociais ou de contrapartidas (exceto Mercado Público)”.14

16

A decisão para a construção do parque no terreno do Conjunto segue sem respaldo da legislação urbanística local, tampouco legitimidade de participação popular. Contudo, desde o final de 2019 a comunidade na Muribeca foi surpreendida por obras de infraestrutura no Canal Mariana, que margeia a sua faixa oeste. Nota-se que houve a movimentação de terra e o desvio de parte do curso do canal, embora não se tenha, até os dias atuais, maiores informações acerca da finalidade da obra. Com o avanço da pandemia do novo coronavírus ainda no mês de março, as atividades institucionais em Pernambuco são suspensas resultando na paralisação do processo indenizatório dos proprietários de apartamentos. Anderson Ferreira e o presidente do Senado tratam sobre a construção de um parque no Conjunto Muribeca. Folha de Pernambuco, Recife, 17/09/19. Disponível em: <https://www.folhape.com.br/colunistas/blogdafolha/2419-ANDERSON-FERREIRA-PRESIDENTE-SENADO-TRATAM-SOBRE-CONSTRUCAO-PARQUE-CONJUNTO-MURIBECA/12333/>. Acesso em: Jun. de 2020. 14 Segundo o Cumprimento Provisório de Sentença, referente acordo judicial firmado entre a CEF, PMJG e a 5ª Vara da Justiça Federal. 13

32

Fig. 16 - Manchetes sobre a ameaça de demolição do CESAM. Marco Zero Conteúdo (acima) e Brasil de Fato (abaixo). FONTES: Site https://marcozero.org/ , acessado em 25/11/2020 e site https://www.brasildefato.com.br/ , acessado em 25/11/2020.

33


linha do tempo

1982

1986

1991

entrega e início da ocupação do conjunto

condenação do balança mas não cai

parte da comunidade vida ZEIS

1995 demolição do balança mas não cai

1998

2005

2008

inauguração do CESAM

é proibida a construção de prédio caixão na RMR

termo de ajuste de conduta deixa de ser ZEIS na revisão do PD

2009

2011 cheia histórica

condenação de 70 blocos


1o trimestre 1a oficina integrada: mapeamento de atores 2o trimestre 1a oficina integrada: mapeamento de atores demolição das quadras 1 e 2 3o trimestre

2015

2016

elaboração do PUI

ocupação da câmara dos vereadores

interdição do conjunto desocupação em massa surgimento do STM assessoria do CPDH

consórcio techne-engeconsult: estudos de drenagem reinstituição e redefinição dos limites da zeis

início do puc

1o trimestre 3a oficina comunitária: cartografia de desejos (oficina do fórum atp-ne) fim das demolições sentença indenização

1a oficina comunitária do puc: mapeamento afetivo

início da pandemia de covid-19 na RMR

2019

2020

4o trimestre

2o trimestre

2a oficina comunitária: matriz f.o.f.a

2a oficina integrada (online): linha do tempo

demolição das quadras 3e4

início das negociações para regularização e urbanização

inicio da regularização

demolição das casas

início do autorrecenseamento

ocupação do ministério

notificação do cesam e das casas (quadra 1)

3o trimestre entrega caderno 1 da leitura técnico- comunitária


3.2.

assessoria técnica em contexto de conflito

A decisão da Justiça Federal fortaleceu a necessidade de uma assessoria no sentido da construção de estratégias de reação popular às frequentes investidas do poder público e demais agentes urbanos sob o território da ZEIS Muribeca e seu entorno. Neste tópico será discutido como a CAUS, e os outros grupos que prestam assessoria aos moradores, construíram conjuntamente ferramentas de suporte à luta popular. A CAUS inicia os diálogos junto aos membros da ONG STM em outubro de 2018, por intermédio do grupo de assessoria jurídica, CPDH, que acompanha a comunidade desde 2015. As atividades da Cooperativa estiveram focadas, inicialmente, na produção e coleta de informações que pudessem alimentar um parecer técnico acerca da situação da macrodrenagem da Muribeca, se contrapondo ao ofício do Consórcio Techne-Engecunsult, documento utilizado pelo poder público para fortalecer o argumento da inviabilidade da reconstrução do conjunto no seu local de origem (Figura 18). É nesse contexto que emerge a estratégia de concepção de um Plano Urbanístico Comunitário (PUC), a partir do desejo da reestruturação do território em meio ao andamento dos trâmites judiciais. Com o objetivo de pautar a reocupação e a permanência no território, o PUC se insere no conflito como instrumento técnico-político de defesa dos direitos. Tomou-se a decisão de ampliar o escopo deste documento, tornando-o parte integrante de um processo de construção participativa de propostas para a retomada do território da ZEIS Muribeca em sua totalidade. A atuação da CAUS se consolida junto ao STM a partir da necessidade desta retomada. Nos tópicos seguintes abordaremos as diferentes estratégias frente ao conflito colocado, discorrendo sobre as ações que subsidiam a luta popular, e no caso da Muribeca, tem se constituído em três frentes de ação interligadas e complementares: o PUC (1), a regularização fundiária (2) e o auto recenseamento (3). 3.2.1.

reflexões sobre o processo de elaboração do PUC

O processo de elaboração do PUC tem como ponto de partida a compreensão da realidade vivida no território, a qual enseja a concepção de estratégias de base popular que deem suporte a luta comunitária. Essas propostas têm como objetivo dar sustentação técnica à reivindicação dos moradores pela permanência no território, cuja dinâmica teve significativas mudanças diante da supressão de sua espinha dorsal, símbolo e referência do lugar15: o conjunto habitacional recém demolido. Para que alcancemos este objetivo é preciso respeitar os condicionantes ambientais, sociais, econômicos, urbanísticos, e a memória de uma comunidade construída de forma autônoma entre dois canais. O contexto de conflito da ZEIS Muribeca impôs condições específicas ao planejamento do território. A desocupação massiva de moradores do residencial, por exemplo, iniciada a partir da condenação do conjunto e finalizada no ano de 2015, transformou o curso da dinâmica urbana na ZEIS, trazendo limitações para a análise da realidade ali vivida. Outro fator bastante relevante é o início do processo de demolição de todos os blocos do residencial, deflagrado em 2019, que 15

Lugar para a geografia pode ser entendido como o espaço que é vivido.

39


17

acelerou a remoção de moradores e comerciantes no interior do Conjunto e contribuiu significativamente para a perda de densidade populacional na localidade. Assim como a realidade física de Muribeca, as estratégias adotadas na nossa atuação em assessoria também foram se transformando, e nesse sentido, o processo de construção do PUC-Muribeca foi atravessado por novas demandas que emergiram do contexto da disputa pelo território. Vimos a necessidade de recolocar nossas ações junto à comunidade e junto ao planejamento do PUC, à luz dos novos condicionantes, reforçando a necessidade de interagir com profissionais de outros campos, como o direito e a geografia, o cinema e o jornalismo. A materialização dessa atuação se deu através de campanhas para a mobilização e envolvimento de moradores nas atividades pensadas na comunidade; realização de oficinas; escrita de artigos jornalísticos para a denúncia das violações que aconteciam; registro audiovisual do processo de demolição dos blocos do residencial; engajamento junto à personalidades políticas por meio da elaboração de dossiês; entre outros. Dessa maneira, repensar métodos parece uma tarefa difícil quando se tem um referencial consolidado como o da cartilha do planejamento estratégico, que vem sendo reproduzida e amplamente utilizada no meio profissional do planejamento urbano. Subjugada à lógica da cidade-mercadoria16, essa cartilha impõe uma linearidade estruturada por fases, procedimentos e produtos que não necessariamente dialogam com as intermitências e desdobramentos das “situações-limites” às quais estão submetidas comunidades em contexto de conflito, como a Muribeca.

Fig. 17 - Reunião de alinhamento CAUS e STM no Bar de Lula. FONTE: Acervo CAUS. Abril, 2019. Fig. 18 - Plano Popular da Vila Autódromo. FONTE: Associação de moradores e pescadores da Vila Autódromo. 2016.

Ao incorporar outras ações que não estavam previstas inicialmente, o PUC e sua metodologia findam por adotar um processo dialógico que se propõe a interagir e traçar caminhos frente às realidades enfrentadas. 18

Bebendo na fonte da movimentação acadêmico-extensionista e política em nível nacional, que vem se consolidando no campo da Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (ATHIS) e tomando como referência experiências brasileiras, como: o Plano Popular da Vila Autódromo17, no Rio de Janeiro, e, o Plano Popular da Favela da Paz18, em São Paulo, nos propusemos a elaborar uma leitura que também extrapolasse os limites de campos de atuação profissional específicos, explorando respostas contra hegemônicas aos desafios dos territórios populares na luta pela garantia do seu direito à moradia e à cidade (Figura 19). O contexto de conflito desvela outros papéis para o planejamento dentro do campo de arquitetura e urbanismo, tendo como fio condutor a luta pela garantia e conquista de direitos. Portanto, o que as assessorias atuantes na Muribeca propõem ao elaborar as ações é pensar uma outra cidade, questionando a forma, os limites e as possibilidades de (re)construção de um espaço carregado de afetividade. Partindo da premissa que lá estamos não para impor soluções, mas construir estratégias de ação, juntos. O professor do IPPUR/UFRJ Carlos Vainer, junto às professoras Ermínia Maricato e Otília Arantes da FAUSP, lançam no início dos anos 2000 o livro A Cidade do Pensamento Único - Desmanchando Consensos. Nesse livro Vainer publica a crítica “Pátria, empresa e mercadoria” que ficou conhecida no meio acadêmico por desvelar as nuances do Planejamento Estratégico Urbano, apresentando conceitos como o do “marketing urbano” e da “cidade-mercadoria”. Para o autor a “mercadoria-cidade tem um público consumidor muito específico e qualificado” que renega aos pobres a condição de mero “entorno social”, termo utilizado pelas duas maiores referências deste tipo de planejamento a nível mundial, os catalães Borja e Castells, em seus escritos sobre o tema. Na apresentação do livro, podemos encontrar um bom resumo da análise do autor: “Tais fatalidades se fabricam, como mostrará Carlos Vainer nos dois ensaios seguintes. Para o autor, esta via de mão única que, entre outras designações, também atende pelo nome de Planejamento Estratégico Urbano, vem sendo difundida (para dizer o menos) no Brasil e na América Latina pela ação combinada das agências de cooperação e instituições multilaterais (Banco Mundial, BlD, Agência Habitat das Nações Unidas, PNUD etc.) e de consultores internacionais, sobretudo catalães, cujo marketing agressivo, como se diz, aciona incansavelmente o realejo do “sucesso” de Barcelona.Trata-se da transposição para o espaço

16

40

41


Logo, o PUC é plano mas também é registro histórico, é diretriz mas também é resposta aos ataques, é material de consulta, sistematização de dados técnicos, mas também é crítica e formação em rede. Uma primeira reflexão, que emana dessa tentativa de construção de um planejamento crítico na elaboração desse documento, tem relação direta com a escolha de terminologias e do título Leitura Técnico Comunitária em detrimento do termo Diagnóstico, mais utilizado no âmbito do planejamento urbano. A importação do termo da medicina reforça vícios profissionais que têm legitimado processos verticalizados de construção e tomada de decisão do arquiteto urbanista, que aqui não é mais visto como o responsável pelo papel de trazer a “cura”, mas antes, de ser um mediador técnico do processo. Construir em processos participativos não significa abdicar da técnica, mas sim praticá-la de outra forma, trazendo em consideração outros elementos para o debate. Uma segunda reflexão parte do entendimento que, dada a condição de embate com a prefeitura e outras instâncias de interesse público, que por muitas vezes são as praticantes da violação de direitos, a comunidade assessorada passa a assumir o papel de fonte primária de informação, o que demanda a construção de um processo contínuo de compartilhamento de saberes. Soma-se a isto, a atipicidade do contexto da Muribeca, que limita a utilização de fontes reconhecidas, como o IBGE, visto que seu recorte temporal de coleta dos dados é anterior à desocupação e à demolição das edificações do Conjunto, fato que alterou consideravelmente as dinâmicas territoriais e sua tradução em dados. A tentativa de acesso às informações públicas municipais19 se deu via Defensoria Pública da União (DPU), como a solicitação ao Plano de Drenagem do Baixo Jaboatão, estudo que baseou a decisão de inviabilidade de reconstrução dos blocos. Porém, só foi possível obter o documento incompleto, constando apenas um laudo resumido. Logo, para a leitura do território da Muribeca, a busca in loco dos dados junto à população foi a alternativa possível. Inicialmente, os procedimentos de coleta in loco foram direcionados aos aspectos topográficos do território, correspondendo a um voo de drone que, além de registrar a ocupação antes das demolições, colheu as cotas do território da ZEIS. Em seguida foi realizado um levantamento topográfico das cotas do canal Mariana, dando mais precisão às análises de suscetibilidade à alagamento, que serão apresentados no próximo caderno desta Leitura. Um outro momento de coleta ocorreu a partir de uma parceria com o Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade ESUDA, que através da disciplina de “Geoprocessamento” foi montada a base cartográfica utilizada ao longo do PUC. Durante a visita ao território, os alunos sob a orientação da CAUS, do STM e do Professor Diogo Galvão realizaram o levantamento dos usos das edificações internas ao terreno do Conjunto e do seu entorno próximo (Figuras 20 e 21). urbano - público até segunda ordem - dos conceitos e metodologias do planejamento estratégico empresarial, elaborados originalmente na Harvard Business School. Do que resulta um projeto de cidade paradoxalmente articulado por três analogias constitutivas: a cidade é uma mercadoria e como tal está à venda num mercado em que outras cidades igualmente são vendidas; a cidade é uma empresa, e como tal resume-se a uma unidade de gestão e de negócios; a cidade enfim é uma pátria, entendamos uma marca com a qual devem se identificar seus usuários, cuja fidelidade ao produto, vendido como civismo, requer algo como o exercício bonapartista do poder municipal.” (ARANTES; VAINER; MARICATO, 2000). 17 Plano Popular da Vila Autódromo: Plano de Desenvolvimento Urbano, Econômico, Social e Cultural. Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza - ETTERN, IPPUR UFRJ.

42

Uma terceira reflexão, parte da compreensão que existem diversas arenas de discussão entre atores que formam a rede de mobilização. O processo de planejamento, no caso da Muribeca, se materializa por meio da articulação entre sujeitos atuantes nas frentes de: Mobilização Comunitária e Política, Assessoria Jurídica e Assessoria Técnica. Foi pensando nisso que subdividimos as Oficinas de Diálogo que alimentaram a Leitura do Território em 3 tipos: Integrada, Técnica e Comunitária. Nesse sentido, a Oficina Técnica é composta pelas assessorias e eventuais parceiros objetivando a construção de estratégias e subsídios técnicos, à exemplo da Oficina Técnica que tratou da análise do território junto a um engenheiro sanitarista, buscando construir uma leitura preliminar das condições da drenagem. A Oficina Integrada é composta pelas assessorias técnicas e o STM e busca se estabelecer como uma instância de interlocução, como exemplo, foi realizado o Mapeamento de Atores, que buscou reconhecer todos os atores envolvidos no conflito. Já a Oficina comunitária é realizada diretamente com os moradores, que objetiva o acolhimento das impressões, angústias e demandas sobre o território. Deste tipo, foram feitas as oficinas de Mapeamento Afetivo, Matriz FOFA e a Oficina de Desejos20 (Figuras 22, 23 e 24). Mesmo com as atividades planejadas para o PUC acontecendo, a ação acelerada e agressiva das demolições demandava que a permanência da população fosse assegurada. A partir desta urgência, os parceiros CPDH e Cendhec formalizaram pedido extrajudicial solicitando a abertura do processo de regularização fundiária das habitações da ZEIS Muribeca. Em complementação a esta ação, a Rede Interação e o grupo da Poupança Comunitária da Ilha de Deus inicia a aplicação dos questionários do autorrecenseamento junto aos membros do STM e outros representantes da comunidade, objetivando a apropriação das informações demográficas pelos próprios moradores. Essas iniciativas também se alinham aos objetivos do PUC, potencializando os resultados esperados e fortalecendo a população em meio ao conflito, e estão descritas nos subtópicos 3.2.2 e 3.2.3 a seguir.

processo de regularização fundiária centro popular de direitos humanos e centro dom helder camara de estudos e ação social 3.2.2.

A crise de insegurança da posse manifesta-se sob muitas formas e em muitos contextos. As remoções forçadas são seu sinal mais visível e chocante (…) os impactos negativos das remoções são enormes: aprofundam a pobreza e destroem comunidades, deixando milhões de pessoas em situação extremamente vulnerável” (ROLNIK, p. 149, 2015). A compreensão do processo de Regularização Fundiária na comunidade da Muribeca nos convida a pensar como dialogam o contexto nacional do novo marco legal da Regularização Fundiária e o histórico da ocupação territorial da Muribeca. Plano Popular Alternativo para a Comunidade da Paz. Coletivo Comunidades Unidas de Itaquera, Peabiru TCA, Instituto Pólis. São Paulo, 2012 - 2013. 1 19 Projeto original do Conjunto Residencial Muribeca (sob a responsabilidade da Perpart (Pernambuco Participações e Investimentos); Plano Urbanístico Integrado e Anexos (2015); Plano de Águas Pluviais de Jaboatão dos Guararapes; e o Projetos de Engenharia para Gestão das Águas Pluviais, Manejo das águas Pluviais e Drenagem Urbana de 37 Canais no Município de Jaboatão dos Guararapes, no Estado de Pernambuco, Componentes das Bacias do Baixo Jaboatão e da Lagoa Olho d’Água. 20 A Oficina Comunitária dos Desejos foi realizada no âmbito do I Fórum de Assessorias Técnicas do Nordeste, realizado em fevereiro de 2020, onde se reuniram moradores do bairro, assessores e participantes inscritos no evento. 18

43


Fig. 19 - Apresentação do PUC em sala de aula na Faculdade ESUDA. FONTE: Acervo compartilhado PUC Muribeca. Fevereiro, 2019. Fig. 20 - Visita da turma de Geoprocessamento à Muribeca. FONTE: Acervo compartilhado PUC Muribeca. Fevereiro, 2019.

44

19

21

20

22

Fig. 21 - Oficina Integrada de Mapeamento de Atores. FONTE: Acervo compartilhado PUC Muribeca. Maio, 2019. Fig. 22 - Oficina Comunitária de Mapeamento Afetivo. FONTE: Acervo compartilhado PUC Muribeca. Setembro, 2019.

45


23

Fig. 23 - Oficina Comunitária dos Desejos. FONTE: Acervo Fórum de Assessoria Técnica Popular do Nordeste. Fevereiro, 2020.

A crise da insegurança da posse pode ser pensada como uma questão essencialmente econômica. Leis, instituições e processos de tomada de decisão são sempre atravessados pelas estruturas de poder existentes na sociedade. Os espaços institucionais de políticas de gestão do solo e planejamento urbano revelam a centralidade da disputa inclusão/exclusão no território das cidades. Em tempos de financeirização do capital, sobrepondo-se à extração da renda sob o capital produtivo, as terras urbanas e rurais convertem-se em ativos cada vez mais disputados. A liberalização do mercado se estende também para terra com consequências especialmente drásticas para economias emergentes onde as comunidades mais pobres, despidas da segurança da posse, encontram-se sob a constante ameaça da tomada forçada de seus territórios. (ROLNIK, 2015). No Brasil, a chamada Agenda da Reforma Urbana pode hoje ser revisitada em três períodos cruciais: a) final dos anos 1970 até 1988, com a inclusão por emenda popular do Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal de 1988; b) 1988 até 2003, com a constitucionalização do Direito à Moradia (ano 2000) e Aprovação do Estatuto à Cidade (Lei 10.257, de 2001); c) desde 2003, Criação do Ministério das Cidades e do Conselho das Cidades (anos 2003/ 2004); Lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007); Lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida (2009); Aprovação de reformas legais (anos 2003/ 2015). Hoje, passado mais de 30 anos de sua promulgação, a Constituição da República vive provações que guardam simetria com as contradições que a gestaram. Dentre avanços e retrocessos, o cenário é de desafio para o Direito Urbanístico/Direito à Cidade no Brasil. De Lefebvre a Harvey, da Plataforma da Reforma Urbana ao Estatuto da Cidade, os movimentos sociais e a luta proletária nos legou o “direito à cidades sustentáveis, compreendendo o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (art. 2º, I da Lei 10.257 de 2001). A partir de 2015, no entanto, a exemplo dos demais direitos sociais, também o Direito à Cidade e a Agenda de Reforma Urbana passa a sentir a desconstrução pelo modelo de gestão franqueado pelo Golpe. Sob a caneta de Temer é aprovada a Lei 13.465 que, dentre outros descaminhos, comina a desconstrução do marco progressista da Regularização Fundiária. Quando publicada, a então Medida Provisória nº 759/2017, o Ministério das Cidades emitiu nota em que se afirmava que o novo marco legal da Regularização Fundiária trazia consigo inovações à legitimação fundiária, afirmando o então Ministro Bruno Araújo que a titulação garantida através da desburocratização promovida pela lei traria a possibilidade de se colocar milhões de ativos na economia, ativos passíveis de serem colocados no mercado e no acesso ao crédito. O documento em mãos garantiria a valorização do imóvel (RICALDE, 2019). Nos termos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5571, a Lei 13.465/2017 afronta uma série de princípios constitucionais, o direito à moradia, a função social da propriedade, a proteção ao meio ambiente e as políticas de desenvolvimento urbano, agrário e de redução da pobreza. Impetrada pela Procuradoria Geral da República – PGR, à época sob a procuradoria

46

47


geral de Rodrigo Janot, a ADI sustenta que a nova Lei promove verdadeiro retrocesso legislativo, favorecendo a grilagem e o desmatamento de terras. Segundo o Ministério Público Federal – MPF, a legislação fomenta o quadro de concentração de terras nas mãos de poucos, bem como o cenários de conflitos fundiários (RICALDE, 2019). Modificando mais de uma dezena de leis ordinárias, fruto de uma conversão de uma MP, subtrai mais de uma década de normas fruto de ampla participação popular e promove verdadeira distorção no sistema democrático. Afirmando-se mais simples, a lei subverte seu propósito possibilitando uma institucionalização da grilagem. Neste sentido, o instituto da “legitimação fundiária”, nova forma de aquisição originária prevista pelo art. 23 do referido diploma legislativo, confere direito real de propriedade “àquele que detiver, em área pública ou privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016”. Ora, a fixação do referido marco temporal para fins de aquisição de propriedade, dissociado de qualquer exigência de tempo mínimo de ocupação da área ou vinculação específica de seu uso a moradia, não faz senão premiar grileiros e desmatadores (RICALDE, 2019). Vale salientar, a nova lei dispensa a necessidade de que os núcleos urbanos se situem em áreas demarcadas como Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), deixando de condicionar a regularização fundiária ao zoneamento. É, portanto, diante do desmonte do marco legal da Regularização Fundiária que se dá a atuação da Assessoria Técnica Popular junto ao território da Muribeca. Durante os 40 (quarenta) anos de existência e consolidação do território, os moradores da Muribeca tiveram a chamada posse mansa e pacífica de suas casas, ou seja, nunca tiveram seu domínio sob a área contestada, seja por particulares ou entes do poder público. Assim, nas áreas onde o terreno é de particular, já daria para pleitear o direito à usucapião, garantido pela Constituição. Ademais, segundo o artigo 26 da Lei de Regularização Fundiária em vigor, a Municipalidade deveria, nos casos das áreas particulares, emitir o título de Legitimação da posse, para que após decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, a conversão desse título para título de propriedade seja automática, como garante o dispositivo: Art. 26. Sem prejuízo dos direitos decorrentes do exercício da posse mansa e pacífica no tempo, aquele em cujo favor for expedido título de legitimação de posse, decorrido o prazo de cinco anos de seu registro, terá a conversão automática dele em título de propriedade, desde que atendidos os termos e as condições do art. 183 da Constituição Federal, independentemente de prévia provocação ou prática de ato registral. § 1º Nos casos não contemplados pelo art. 183 da Constituição Federal, o título de legitimação de posse poderá ser convertido em título de propriedade, desde que satisfeitos os requisitos de usucapião estabelecidos na legislação em vigor, a requerimento do interessado, perante o registro de imóveis competente . § 2º A legitimação de posse, após convertida em propriedade, constitui forma originária de aquisição de

48

direito real, de modo que a unidade imobiliária com destinação urbana regularizada restará livre e desembaraçada de quaisquer ônus, direitos reais, gravames ou inscrições, eventualmente existentes em sua matrícula de origem, exceto quando disserem respeito ao próprio beneficiário. Mas, o direito não contempla apenas os que estão em áreas particulares, como também, e sobretudo, os que estão em área pública. Neste caso, haveria a legitimação fundiária, que também pode se dar em área particular, e é o instrumento adequado para regularização fundiária de núcleos urbanos informais consolidados. Percebemos portanto, que, mecanismos para a garantia e segurança da posse aos moradores de Muribeca, o Município teria, o que faltou no caso, foi vontade política. Trata-se, de partida, portanto, de um problema histórico em que um dos principais instrumentos de promoção do direito à moradia, as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS (Decreto-Lei 1294/2016), passa ao largo do tempo sem que sua face habitacional, de regularização e de planejamento urbanístico seja implementada. Aqui o diagrama dos grupos de atores da comunidade ganha especial sentido, isso porque enquanto apenas os proprietários/mutuários eram admitidos como parte legítima do processo judicial que estabeleceu a demolição dos mais de 70 blocos do Conjunto (Processo Judicial Eletrônico nº. 0011887-77.2013.4.05.8300), diversas decisões judiciais paralelas, no mesmo processo, eram tomadas ameaçando restringir direitos dos demais atores da comunidade. Porque estes “não eram partes legítimas” do processo ficavam então limitados em manifestar sua contrariedade nos autos judiciais. A conformação observada de grupos entre proprietários dos apartamentos; moradores dos assentamentos internos; moradores dos assentamentos externos; e comerciantes parece expressar uma atuação articulada dos atores institucionais que quando confrontados com a necessidade de promoção de uma solução habitacional a mutilam em seu sentido e contexto resumindo a questão ao objeto do processo, essencialmente a uma relação consumerista entre os mutuários e a Caixa Econômica Federal – CEF. Conforma-se um fenômeno político em que a atuação do poder executivo é retroalimentada pela atuação do poder judiciário. “invasões” (expressão utilizada pelo executivo) e “edículas” (expressão utilizada pelo judiciário) são as palavras que substituem “casa” na narrativa deste tipo de território em conflito fundiário. Divide-se para conquistar. A morosidade da máquina judiciária é outro elemento neste fenômeno de conflito urbano, o longo tempo para a definição entre reconstrução e a demolição acaba por acirrar as relações entre os atores da comunidade. Aqueles que acreditam que o curso do processo não está correto ou os que desejam ingressar na demanda (a exemplo dos moradores dos assentamentos externos) para a solução de questões cujas decisões os afetam são considerados ameaças à finalização do processo.

49


O processo judicial nº. 0011887-77.2013.4.05.8300 inicia sua fase de execução da sentença estabelecendo a demolição dos mais de 70 blocos pela Caixa, em razão dos danos estruturais irreversíveis verificados pela justiça nos referidos prédios. Com o advento das decisões paralelas tomadas no processo, tornou-se urgente a Regularização Fundiária através da titulação dos imóveis das habitações vizinhas ao conjunto de prédios, tratavam-se de decisões que, pouco a pouco, mudavam o critério de demolição de prédios vizinhos, afetando diretamente vários imóveis e criando um clima de absoluta instabilidade comunitária. Alternativas rápidas precisam ser refletidas em coletivo diante da mudança rápida da realidade do quadro de habitações que possam vir a ser afetadas definitivamente pela demolição. É importante que se entenda que nesta fase de atuação da Assessoria as demolições dos blocos ocorriam em ritmo acelerado, a própria percepção visual do fenômeno influía nos ânimos e no passo das decisões coletivas. Em razão da urgência apresentada, a Ong STM, com apoio do CPDH, Cendhec e outras organizações decidem em assembleia pelo protocolo do pedido de Concessão de uso Especial para fins de Moradia (CUEM) e, cumulativamente, “Reurb-S” junto à prefeitura de Jaboatão dos Guararapes, em meados do ano de 2019. Em atuação que acentua as influências indevidas entre executivo e judiciário, a Justiça Federal delega a PMJG a realização das intimações dos moradores que devem sair de suas casas mesmo sem uma solução habitacional, seja auxílio aluguel ou habitacional. Neste sentido, o Requerimento de Regularização Fundiária utilizado, previsto na MP 2.220/2001, cumulado com pedido previsto na Lei 13.465/2017 e Decreto 9.310/2018, tinha por principal objetivo a imediata suspensão do processo de remoção forçada de famílias, por haver evidente relação de prejuízo entre os pedidos de Regularização junto à municipalidade e a continuidade das remoções com indenização apenas das benfeitorias, desconsiderando os direitos de posse e propriedade das famílias moradoras da comunidade ZEIS-Muribeca. Mesmo entendendo que a Lei 13.465 contribui para a financeirização da moradia, e que ela trouxe muitos retrocessos, precisamos trabalhar com o que há de bom nela, tendo em vista que esta é a Lei vigente no Brasil, sobre o assunto. Neste sentido, é que utilizamos o § 8º da referida Lei, que dispõe que o requerimento de instauração da Reurb garante a permanência dos ocupantes no local, até o arquivamento definitivo do procedimento administrativo da Reurb-s, impossibilitando dessa maneira, a remoção. O art. 31, § 8º da Lei 13.465/2017 dispõe: O requerimento de instauração da Reurb ou, na forma de regulamento, a manifestação de interesse nesse sentido por parte de qualquer dos legitimados garantem perante o poder público aos ocupantes dos núcleos urbanos informais situados em áreas públicas a serem regularizados a permanência em suas respectivas unidades imobiliárias, preservando-se as situações de fato já existentes, até o eventual arquivamento definitivo do procedimento. Ou seja: o pedido apresentado veio no sentido de, sobretudo, proteger a comunidade de possíveis remoções em razão de decisões acessórias (interlocutórias) tomadas no processo judicial que cuidava das demolições do Conjunto.

50

Por outro lado, o Estatuto das Cidades (Lei Federal nº. 10.257/2001) também previu o instituto da CUEM no art. 4º, inc. V, alínea ‘h’. Porém, a regulamentação veio somente com a edição da Medida Provisória nº. 2.220/2001, que previu ainda a possibilidade de reconhecimento coletivo do instituto e a contagem do tempo de posse do ocupante antecessor (art. 2º, § 1º). O pedido cumulativo de CUEM e Reurb-S tem duplo viés: é ferramenta tática da Assessoria para o conflito, porque prejudica a imediatidade das remoções, e também tem horizonte estratégico para a Regularização fundiária, pois provoca a manifestação do Poder Público acerca do cumprimento de mandamentos constitucionais que dizem respeito a Função Social da Cidade e da Propriedade Urbana e historicamente inobservadas pelos referidos poderes. A avaliação do conflito instalado em concreto indicava a importância da regularização fundiária prevista na Lei 13.465/17, pois, sem margem para dúvidas a coletividade é detentora do direito ali previsto, por residirem no núcleo urbano informal acima descrito, comprovadamente existente até 22 de dezembro de 2016, nos termos do art. 9º da citada lei, que abaixo se transcreve: Art. 9o Ficam instituídas no território nacional normas gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana (Reurb), a qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. § 1o Os poderes públicos formularão e desenvolverão no espaço urbano as políticas de suas competências de acordo com os princípios de sustentabilidade econômica, social e ambiental e ordenação territorial, buscando a ocupação do solo de maneira eficiente, combinando seu uso de forma funcional. § 2o A Reurb promovida mediante legitimação fundiária somente poderá ser aplicada para os núcleos urbanos informais comprovadamente existentes, na forma desta Lei, até 22 de dezembro de 2016. A Lei 13.465/17 apenas reforça a obrigatoriedade prevista na CF 88 e em outros diplomas, no sentido de priorizar o acesso à cidadania, por meio de instrumentos como a demarcação urbanística, a legitimação da posse e a legitimação fundiária para fins de habitação de interesse social. Com a abertura do procedimento administrativo de REURB, estes instrumentos jurídicos devem ser utilizados segundo a realidade local e respeitado o modo de ocupação do território, aplicados numa sequência lógica pelos municípios a fim de concretizar a Regularização Fundiária dos chamados “núcleos urbanos informais” e, ao final, formalizar o registro imobiliário dos parcelamentos de fato existentes nas cidades até 22 de dezembro de 2016, concedendo-os em favor dos seus respectivos ocupantes, conforme previsto no art. 11 e seus incisos. o acordo judicial feito e suas consequências na Regularização Fundiária

Importante mencionar o desfecho, até então, do processo de remoções tomado no âmbito do processo judicial nº. 0011887-77.2013.4.05.8300 e as possíveis consequências do acordo homologado, no que diz respeito ao processo de Regularização Fundiária em curso em favor das unidades habitacionais circunvizinhas à área do conjunto Muribeca (Figura 25).

51


PRODUCED BY AN AUTODESK STUDENT VERSION

Q-04

IGR

A. IN

STIT

UCI

ONA

L

PRODUCED BY AN AUTODESK STUDENT VERSION

PRODUCED BY AN AUTODESK STUDENT VERSION

SAM

CE

Quadro de Áreas

Descrição QUADRA 01 QUADRA 02 QUADRA 03 QUADRA 04 A. INSTITUCIONAL IGREJA Total

m² 17.046,23 29.729,96 34.181,69 38.494,35 22.246,42 1.058,20 142.756,85

AREA IGREJA AREA INSTITUCIONAL A SER DEMOLIDO POLIGONAL CAIXA

Q-02

Q-01

Em 18/03/2020 fora homologado judicialmente acordo feito entre a Caixa, Ministério Público Federal e Município de Jaboatão dos Guararapes. Dentre outras deliberações e à revelia da participação popular, ficou acertada a cessão do terreno por parte da Caixa Econômica Federal ao Município de Jaboatão dos Guararapes, sendo a destinação do antigo terreno dos prédios do conjunto Muribeca para a construção de um parque municipal público e instalação de equipamentos públicos comunitários, no prazo de 10 (dez) anos. No item “b” da Cláusula Sexta do referido acordo pode-se ver uma deliberação que certamente deve afetar o pedido de Regularização Fundiária, ao mencionar que quaisquer ocupantes e construções não relacionadas ao parque ou aos equipamentos devem ser removidos. Porém, do ponto de vista legal, o requerimento de Regularização Fundiária deve ser avaliado antes de qualquer remoção, sob pena de descumprimento do §8º do art. 31 da referida Lei 13.465/2017 e o pertinente direito declaratório a Moradia descrito no art. 183 da CF/88.

EJA

Q-03

24

REGULARIZACAO FUNDIARIA 650 UNIDADES CESAM

O acordo também vedou qualquer possibilidade de construção habitacional na área do conjunto, o que configura grave violação legislativa, quando um juízo de 1º Grau invade a competência de promoção da Ordem Urbanística de âmbito municipal, que deve estar de acordo com o zoneamento proposto para determinadas áreas, como é o caso da ZEIS-Muribeca.Trata-se de aberração judicial que negrita uma atuação autoritária e sem qualquer fundamento querer fazer valer um acordo judicial sem qualquer legitimidade, pois a revelia da participação do povo. Pior, numa ação judicial de natureza particular, imposta unilateralmente desta maneira, frente à legislação municipal que, de forma fundamentada, é a legítima delegatária do zoneamento urbano de um município. 3.2.3.

autorrecenseamento - rede interação

O autorrecenseamento é parte da metodologia para o fomento e fortalecimento de organizações comunitárias, desenvolvido pelo SDI21 em países da América Latina, África e Ásia. Aqui no Brasil os disseminadores da metodologia são a Rede Interação22 e os representantes de Grupos de Poupança, em Pernambuco a Poupança PE23. O autorrecenseamento é um censo feito pelos próprios moradores. Consiste em gerar tanto informações tradicionalmente presentes em cadastros do poder público, como também, e prioritariamente, dados de interesse da comunidade como as percepções sobre aquele determinado território. Ou seja, são informações de interesse dos moradores, construídas e executadas por eles e que qualificam as lutas e o diálogo com o poder público. Na metodologia existe um referencial constituído basicamente de sete etapas, porém isso pode sofrer variações pois é fruto da construção coletiva, da singularidade da organização e das lutas travadas pela comunidade. O mesmo acontece com o tempo de execução do autorrecenseamento, que também segue a dinâmica comunitária. O ideal é que seja o mais otimizado possível para não implicar em caducidade das informações e não responder ao objetivo definido no início do processo. Mas fatos externos podem levar ao prolongamento do processo como ações judiciais que colocam em risco a permanência da comunidade ou mesmo pandemias, como no caso da Muribeca.

Fig. 24 - Demarcação das áreas a serem regularizadas pela PMJG. FONTE: Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Fevereiro, 2020. PRODUCED BY AN AUTODESK STUDENT VERSION

52

Slum Dwellers International. http://redeinteracao.org.br/ 23 https://www.facebook.com/poupancape 21 22

53


etapas do autorrecenseamento etapa 1: Apresentação da metodologia aos representantes da comunidade Essa etapa consiste numa primeira conversa entre a Interação e/ou Grupo de Poupança com os representantes da comunidade interessada no autorrecenseamento. Na Muribeca, a primeira apresentação foi feita ao STM em agosto de 2019. Nessa reunião o Grupo de Poupança PE expôs todo o processo da metodologia e conheceu o território. Após esse momento, houve outras reuniões de apresentação da metodologia para os parceiros e outros moradores do conjunto. etapa 2: Perfil comunitário O perfil é coleta e sistematização de informações sobre a comunidade, que inclui sua história, organizações atuantes, acesso aos serviços básicos e outras características. Pode ser gerado através de entrevistas com moradores, líderes comunitários, informações do poder público. Na Muribeca essa etapa foi bastante fácil de ser trabalhada devido ao grau de organização do STM e articulação com outras entidades como a CAUS, CPDH e CENDHEC. O desafio na Muribeca foi definir o público a ser trabalhado.Inicialmente a proposta colocada pelo STM foi de aplicar o autorreceseamento para os moradores do entorno do conjunto que residiam no local e para os ex-moradores dos blocos. Mas esse último público, por se encontrar disperso, não poderia ser incluído no censo, já que o princípio da metodologia é coletar informações sobre os moradores de uma área. Além disso, o objetivo inicial apresentado pelos membros do STM era a regularização fundiária, logo o atendimento a um direito de quem mora no local. Depois de alguns encontros e troca de ideias com o movimento e parceiros foi definido que o autorrecenseamento seria aplicado nas ocupações localizadas no entorno do conjunto e de forma paulatina de acordo com o risco de permanência no local, assim o censo foi dividido em três momentos, sendo a primeira no entorno imediato aos prédios (Figura 26). etapa 3: Construção do questionário

54

Nossa base foram os instrumentos utilizados em Recife, Osasco e Várzea Paulista. A cada encontro, as adequações e sugestões eram coletadas e apresentadas na reunião seguinte. Assim, em outubro de 2019 estávamos com a primeira proposta de questionário. Porém, o instrumento só foi fechado no ano seguinte, em fevereiro de 2020, no momento da capacitação dos voluntários e do pré-teste. Apesar do hiato de tempo, essa circunstância favoreceu o amadurecimento do instrumento e adequação da linguagem pelos pesquisadores, favorecendo a sua aplicação. etapa 4: apresentação do autorrecenseamento a comunidade. A apresentação da metodologia a comunidade é um momento importante no processo, pois tem o objetivo de informar e envolver os moradores, parceiros e outros profissionais da área. Na Muribeca isso aconteceu em dois momentos, o primeiro em outubro de 2019 e o segundo em fevereiro de 2020. Em outubro foi apresentada a metodologia, etapas de execução e experiências de outros locais do Brasil. Foi um momento bastante rico em que muitos voluntários se inscreveram para participar do processo, porém as atividades tiveram que ser adiadas em detrimento a outras ações para barrar o risco iminente da demolição de parte das casas objeto do censo. Em 2020 houve a retomada do autorrecenseamento, o momento teve como marco a selagem (descrita no próximo item) e a assembleia realizada em fevereiro, onde, dentre outros assuntos de interesse da comunidade, foi feito o anúncio do retorno das atividades do censo e o convite aos moradores para participar do processo. etapa 5: Enumeração dos domicílios ou selagem. A selagem é o momento onde se tem a ideia do número de imóveis existentes na área e uma oportunidade de divulgar o autorrecenseamento na comunidade. A identificação do imóvel e a forma de numeração são construídos e acordados com os pesquisadores. Na Muribeca a selagem foi iniciada em outubro de 2019 e finalizada em dezembro do mesmo ano, ao todo foram identificados 548 imóveis na primeira área trabalhada (Figuras 27 e 28).

A elaboração do questionário é produto da discussão da comunidade. Partindo da finalidade das informações, o exercício constante são os questionamentos sobre o objetivo da pergunta e como fazê-la (linguagem mais clara para a comunidade), e sobre a estratégia que pode vir a ser estabelecida diante da informação. Por exemplo, se o objetivo do levantamento de informações é reivindicar o acesso a saúde pública, perguntas como qual o posto de saúde utilizado e se existe atendimento dos agentes de saúde no local são mais importantes que a propriedade do imóvel. Já nos casos sobre regularização fundiária o tempo de moradia é essencial.

etapa 6: Capacitação dos voluntários e aplicação do questionário

A construção do questionário foi feita inicialmente através de um grupo de trabalho com representantes do STM, Interação, Poupança Comunitária, CAUS, CPDH e CENDHEC.Tomamos como ponto de partida o objetivo do censo: a coleta de informações para a regularização fundiária.

Em Muribeca essas atividades foram realizadas em fevereiro de 2020 e acompanhadas por moradoras da Ilha de Deus e da técnica da Interação. Para o pré-teste foram formados trios (dois moradores da Muribeca e um da Ilha de Deus ou Interação). Ao final, o questionário foi validado

Essa atividade se dá em dois momentos, no primeiro os pesquisadores são apresentados ao instrumento e ao método de abordagem para a sua aplicação. No segundo, é feito um pré-teste do instrumento, aplicando em uma pequena amostra na comunidade, e por fim, uma avaliação do mesmo, propondo ajustes quando necessários. Todo esse processo é assistido por pessoas de outras comunidades que já aplicaram o autorreceseamento e um técnico da Interação.

55


25

e os pesquisadores deram início a aplicação do instrumento. O acompanhamento da Interação e da Poupança presencial foi diminuindo à medida que a comunidade adquiriu a confiança na capacidade de gerir o processo. O trabalho foi interrompido em março de 2020 devido a pandemia do Coronavirus, com cerca de 200 questionários aplicados. etapa 7: Tabulação dos dados, análise e apresentação dos resultados à comunidade. Após a aplicação dos questionários os dados são tabulados, para isso podem ser utilizadas várias plataformas ou programas de dados, e assim como outras etapas do processo isso vai depender da habilidade das pessoas envolvidas. Afinal, serão elas que devem alimentar e depois extrair as informações que qualificam as lutas e o diálogo com o poder público e outras instituições. Depois da tabulação os resultados deverão ser apresentados à comunidade que terá oportunidade de questionar, criticar e/ou confirmar os dados e a sua interpretação com base nos conhecimentos existentes. Correções e melhorias podem ser feitas se necessário.

Fig. 25 - Etapas do Autorrecenseamento. FONTE: Elaboração CAUS. 2020. Fig. 26 - Selagem e capacitação dos voluntários. FONTE: Acervo compartilhado PUC Muribeca. Fevereiro, 2020. Fig. 27 - Selagem e capacitação dos voluntários. FONTE: Acervo compartilhado PUC Muribeca. Fevereiro, 2020.

56

57


26

58

27

59


conclusão

Neste primeiro caderno focamos em explorar os desafios e limites nas esferas judicial, pública, da mobilização comunitária e das assessorias técnica e jurídica, que foram colocados desde a condenação do conjunto até a decisão pela indenização. Como síntese dos vários acontecimentos relacionados ao conflito na Muribeca, foi elaborada uma linha do tempo. Esta configura importante fruto da sistematização dos processos vividos no território no recorte temporal adotado por este documento, estando constantemente aberta à atualização, e que finaliza os relatos presentes no tópico 3.1. As motivações e os detalhamentos das estratégias adotadas, que transpassam o desenvolvimento do PUC, pelo conjunto de assessorias técnicas e jurídicas, são descritas no tópico 3.2. Este caderno também se configura como importante instrumento político, que busca reconhecer as diversas conquistas alcançadas como fruto do processo de luta da comunidade, face aos flagrantes ataques empreendidos pelo poder público, que tem se portado como principal violador de direitos na disputa travada na Muribeca. Frente aos projetos que a PMJG tem para o território da Muribeca, notadamente a implantação de um parque urbano com equipamentos no terreno do antigo Conjunto, e o plano urbanístico relacionado à regularização fundiária das habitações circunvizinhas, é preciso estruturar um reconhecimento da realidade resultante, física e socialmente. Logo, no próximo Caderno trataremos de observar questões territoriais sob os eixos: habitacional, ambiental e das dinâmicas atuais.

61


coordenação

colaboração

recife, dezembro 2020



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.