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revista de comunicação, jornalismo e espaço público

9

mediapolis

Periodicidade Semestral

tema Reinventando Pactos Globais para a Ética da Comunicação e do Jornalismo

Imprensa da Universidade de Coimbra

Reinventing Global Pacts for

Coimbra University Press

Communication and Journalism Ethics

1


revista de comunicação, jornalismo e espaço público

9 Periodicidade Semestral

Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra University Press

Ficha técnica Edição Publisher

Direção Editor

Adriana Bebiano adrianabebiano@gmail.com

Carlos Camponez carlos.camponez@fl.uc.pt

Universidade de Coimbra

Universidade de Coimbra

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Imprensa da Universidade de Coimbra

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Design Carlos Costa ISSN 2183-5918 ISSN Digital 2183-6019 DOI https://doi.org/10.14195/2183-6019_9

Normas da revista e princípios éticos: https://impactum.uc.pt/pt-pt/ revista?id=107213&sec=5

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Rosa Sobreira rosa.sobreira@gmail.com Mediapolis – Revista de Comunicação,

Escola Superior de Educação de Coimbra

Jornalismo e Espaço Público N.º 9 – 2.º SEMESTRE DE 2019

Sílvio Santos silvio.santos@fl.uc.pt Universidade de Coimbra


Sumário Summary INTRODUÇÃO INTRODUCTION

mediapolis 9

New Media, New Deontology ethical

federal government: evaluating

constraints of online journalism

journalism within the political sphere

Reinventando Pactos Globais

Novos Media, Nova Deontologia –

Lorena Maria Caliman Fontes | 73

para a Ética da Comunicação

constrangimentos

e do Jornalismo

éticos do jornalismo digital

Accountability e transparência na

Reinventing Global Pacts for

Samuel Mateus | 13

mídia: diálogo da experiência espanhola

Communication and Journalism

com os países lusófonos1

Ethics

Uma nova ética para um novo

Accountability and transparency

Carlos Camponez & Rogério Christofoletti | 5

jornalismo?Revisitando o imperativo

in the media: dialogue between

da responsabilidade

the Spanish experience and the

A new ethics for a new journalism?

Portuguese-speaking countries

Revisiting the imperative of

Rogério Christofoletti, Juan Carlos Suárez Villegas,

responsibility

Xavier Ramon Vegas | 89

Ana Leonor Morais Santos | 27

Abundância Comunicativa, Escassez O rigor como eixo central da

da Política? Desafios À Democracia

atividade jornalística

na Era do Monitoramento

Accuracy as the cornerstone of

Communicative Abundance, Political

journalistic activity

Scarcity? Challenges To Democracy

Paulo Jorge dos Santos Martins | 41

in The Monitoring Era Lucas Henrique Nigri Veloso, Ângela Cristina

Confidencialidade da fonte em

Salgueiro Marques, Ricardo Fabrino Mendonça | 101

jornalismo: perspetivas morais Source confidentiality in journalism:

As redes e o espaço público

moral perspectives

Networks and the Public Sphere

Suzana Cavaco | 57

Diogo Pires Aurélio | 119

A imparcialidade nas notícias do governo federal brasileiro: avaliando o jornalismo no espaço da política Impartiality in the news from Brazil’s 3



Carlos Camponez

INTRODUÇÃO

mediapolis 9

carlos.camponez@fl.uc.pt Centro de Estudos Interdisciplinares do Séc. XX https://orcid.org/0000-0003-0832-7174

Reinventando Pactos Globais para a Ética da Comunicação e do Jornalismo

Rogério Christofoletti rogerio.christofoletti@uol.com.br Universidade Federal de Santa Catarina https://orcid.org/0000-0003-1065-4764

Reinventing Global Pacts for Communication and Journalism Ethics https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_0

É uma evidência que as tecnolo-

mais democratizantes, criaram novos

motivos para dirimir as suas (des)es-

gias da era digital estão ainda longe

problemas sem ainda terem resolvi-

peranças.

de ter cumprido as suas melhores pro-

do algumas inquietações do passado

Obviamente que as razões deste

messas, sobretudo agora que dela já

(Curran, Fenton & Freedman, 2011).

regresso ao passado no discurso con-

conhecemos alguns dos seus efeitos

A fragmentação dos públicos não

temporâneo acerca do espaço público,

perversos. A tal ponto esta realidade

criou uma verdadeira alternativa ao

dos media, do jornalismo, das tecnolo-

se coloca nos nossos dias que, por

problema da massificação das men-

gias da comunicação e da informação

vezes, parece que a reflexão acerca

sagens (Adorno, 2003); a crítica do

não resultam de um desejo saudosista,

dos desafios do jornalismo, da comu-

distanciamento trouxe formas mais

na busca das respostas para o tempo

nicação e da esfera pública no mundo

insidiosas de manipulação, travesti-

presente. Trata-se, pelo contrário,

contemporâneo mais não faz do que re-

das de proximidade (Camponez, 2012);

de tornar renovar a centralidade da

visitar paradigmas do passado, numa

o aparente caos num espaço público

comunicação e das mediações nos

espécie de passeio teórico saudosista.

onde todos falam para todos (Castells,

processos sociais, evocando saberes

O equívoco suscitado por esta pri-

2008), permitiu sublinhar a importân-

que quotidianamente se atualizam nas

meira observação resulta, em grande

cia social dos rituais de comunicação

transformações em curso. Saudosismo

medida, da constatação das rápidas

(1999); o hábito de lidar com os pro-

não deve ser, pois, confundível com

transformações que as tecnologias de

cessos propagandísticos do passado

a mobilização do lastro que as ciên-

comunicação e da informação estão

(Quintero, 1993; Thomson, 2000)

cias da comunicação já nos legaram

a produzir nas sociedades e à escala

deixou-nos desarmados perante as

e que, por vezes, tende a ser diluído e

global, não obstante as suas diferentes

falsas informações transmitidas como

esquecido quer na vertigem das trans-

e paradoxais formas de recetividade,

notícias (Alandete, 2019); a emergên-

formações do mundo contemporâneo,

de utilização e de apropriação.

cia dos populismos e das convicções

quer ainda nos modismos da própria

Com efeito, uma breve revisitação

geradas nas bolhas de opinião (Keane,

investigação científica.

dos grandes problemas comunicativos

2013), faz-nos, erradamente, pensar

As sociedades contemporâneas

identificados na segunda metade do

nos eventuais efeitos benéficos da es-

estão hoje confrontadas a ter de re-

século passado, no auge da comu-

piral do silêncio (Noelle-Neumann,

cordar que, tal como no passado, a

nicação de massas, demonstrariam

1995); o poder de agendamento das

inovação tecnológica e o saber não

rapidamente como as expectativas

fontes assume um caráter bem mais

são, por si, garantes da autodetermi-

iniciais trazidas pelas “novas” tec-

transparente face ao poder oculto dos

nação e do progresso dos indivíduos

nologias da comunicação e da infor-

algoritmos. Apocalípticos e integra-

e das sociedades, mas que elas são

mação, acolhidas geralmente como

dos (Eco, 1990) têm, hoje, redobrados

também parte da sociedade e, dessa 5


forma, portadoras das suas contradi-

uma transversalidade, nem sempre fá-

O tema que dá corpo à presente

ções. Com efeito, os impactes tecnoló-

cil de gerir, mas indispensável para o

edição teve por inspiração um encon-

gicos na sociedade e na comunicação

seu desenvolvimento.

tro internacional realizado em Coim-

pública processam-se no quadro de

bra, em 2018, que levou à criação da

“regimes comunicacionais” complexos

Pactos Globais da Ética

Rede Lusófona pela Qualidade da

que implicam os contextos de comu-

da Comunicação

Informação (RLQI). Nesse encontro

nicação, as suas atividades, as suas

e do Jornalismo

científico, para além de outros convi-

proporções respetivas, as técnicas e as

Por tudo isto, as ciências sociais e

dados internacionais, estiveram pre-

tecnologias utilizadas, as instituições

humanas e, em particular, as ciências

sentes investigadores e jornalistas de

que constituem o lugar da sua reali-

da comunicação, não podem deixar de

todo o espaço da língua portuguesa,

zação (Balle, 1987, p. 145).

estar presentes nesta discussão, não

desde as Américas à Europa, de Áfri-

O regresso ao pensamento das

só pela responsabilidade social que

ca à Ásia. Desse espaço de diálogo e

ciências da comunicação é uma ope-

decorre da compreensão da natureza

compromisso profícuos nasceu a ideia

ração essencial à atualização e à afir-

das transformações sociais em curso,

de incluir as questões da ética e da

mação da autonomia do pensamento

como também pelo facto dessas trans-

qualidade da informação numa agenda

científico, como forma de resistência

formações interpelarem diretamente o

científica que envolvesse não apenas

à sua redução a um meio ao serviço

campo da comunicação, impondo-lhe

a edição do n.º 9 da Mediapolis mas

de fins que ela poderá não controlar;

novos desafios e exigindo-lhe um pa-

também a Estudos em Jornalismo e

é a resistência do pensamento cien-

pel na construção do futuro. Também

Mídia (Volume 16 nº 2 e Volume 17 nº

tífico à sua instrumentalização e às

por tudo isto, um projeto editorial de

1), da Universidade Federal de Santa

ameaças das fakes sciences que as

uma revista científica denominada Me-

Catarina, no Brasil, dedicadas à Qua-

novas formas de pensamento obs-

diapolis, que faz apelo aos conceitos

lidade no Jornalismo, Democracia e

curantista emergente não deixarão

de comunicação, de jornalismo e de

Ética. No seu conjunto, cremos que

de tentar incentivar e tutelar. Neste

espaço público, não podia deixar de

estas iniciativas darão um contribu-

sentido, importa não esquecer que as

marcar presença com os seus contri-

to importante para a atualização do

responsabilidades que atribuímos aos

butos nesta discussão, tendo por isso

tema junto da comunidade lusófona.

media e ao Jornalismo na conservação

proposto à comunidade científica a

Não será demasiado recordar que este

e renovação da democracia não é fun-

apresentação de estudos, análises e

tema tem um impacte particular no

damentalmente distinto do papel so-

reflexões subordinados ao tema geral

Brasil, onde se situa a maior comu-

cial reservado ao pensamento crítico,

de Pactos Globais da Ética da Comu-

nidade científica das ciências da co-

exigindo das ciências da comunicação

nicação e do Jornalismo.

municação no espaço lusófono, cujo


processo político está a suscitar um

uma aldeia global (Ash, 2017). Nessa

tanto mais pertinente quanto, embo-

atento acompanhamento a nível inter-

cosmopolis encontram-se e confron-

ra esteja já bem presente na reflexão

nacional. No entanto, não obstante a

tam-se visões, formas de pensamento,

científica e socioprofissional, ela per-

sua menor mediatização, não podemos

culturas, projetos políticos e sociais

manece ainda muito inconsequente,

esquecer que importantes discussões,

diversos, exigindo pactos globais, onde

refletindo ainda a confortável ideia de

envolvendo questões políticas e dos

a humanidade, na sua diversidade, tem

que os valores do jornalismo conti-

media, estão a realizar-se também

de se sentir reconhecida nos seus di-

nuam a dar resposta aos desafios da

em países como Angola, Cabo Verde,

reitos de cidadania e de ocupar um

era digital.

Guiné-Bissau, Moçambique, Macau,

lugar na construção de um futuro cada

só para citar alguns exemplos.

vez mais, inevitavelmente, comum.

Se esta constatação pode ser interpretada como mais um libelo acu-

O tema teve ainda duas outras ins-

satório contra a ineficácia da autor-

pirações. Em primeiro lugar, o pres-

Percursos conceituais

regulação dos media e do jornalismo,

suposto de que a ética é uma parte

A reflexão desenvolvida ao longo

não podemos esquecer que a ética e

essencial para o debate contemporâ-

dos textos da presente edição poderia,

a deontologia socioprofissional têm o

neo sobre a comunicação e o jorna-

a nosso ver, ser apresentada a partir

seu fundamento nos valores morais das

lismo, ajudando-os a estabelecer os

de conceitos-chave tais como ética,

sociedades em que se inserem, fazen-

seus fundamentos normativos. Esses

jornalismo, espaço público e repre-

do parte do seu sistema normativo.

fundamentos foram importantes para

sentações e representa claramente

Por isso, não será de esperar – talvez

estruturar e legitimar o seu papel so-

um esforço crítico de compreensão

nem seja desejável – que os valores

cial, criar um corpo profissional e

das mudanças da comunicação, do

socioprofissionais se transformem ao

definir a importância da comunicação

jornalismo e do espaço público con-

sabor dos modismos do presente, de-

e da informação no espaço público

temporâneos, assim como a propõe

vendo, pelo contrário refletir as mu-

das sociedades democráticas. Num

revisitar, repensando-os, alguns dos

danças estruturantes e adaptar-se em

momento em que tanto se fala de crise

seus conceitos estruturantes.

resultado de um processo que se pre-

de representação e de crise do jorna-

Com a organização dos textos desta

tende consciente e deliberativo, onde

lismo, torna-se importante, a nosso

edição decidimos começar por retomar

o debate ético tem um lugar central

ver, revisitar esta discussão.

a discussão acerca da necessidade de

(Bernier, 2004).

Em segundo lugar, a ética faz parte

uma nova ética para um novo ecossis-

Samuel Mateus introduz-nos esta

da nova esfera comunicativa que se

tema mediático e de uma nova deonto-

temática, partindo da ideia de que

está a construir no mundo, à luz de

logia para um jornalismo que enfrenta

estando o jornalismo ligado a valo-

uma imensa cosmopolis mais do que

novos desafios. A questão parece-nos

res deontológicos, estes estão a ser 7


desafiados pelos diferentes usos da

cidadão enquanto jornalista, são al-

no que concerne à responsabilidade

internet, que impõe ao jornalismo on-

guns temas que, no entender de Sa-

dos jornalistas” – argumenta.

line a readaptação a novas linguagens

muel Mateus, carecem de aprofun-

As duas abordagens anteriores

e práticas discursivas. O investiga-

damento e clarificação nos códigos

são uma boa forma de enquadrar um

dor da Universidade da Madeira está

deontológicos para a era digital.

conjunto de temáticas mais específicas

entre os autores que defendem que

Na mesma linha de reflexão, Ana

da ética e da deontologia do jornalis-

estas transformações tornam urgente

Leonor Morais Santos, procura pen-

mo, tratadas nesta edição, tais como

a formulação de novos valores deonto-

sar quais os valores nucleares de uma

o rigor da informação, o estatuto de

lógicos, ajustados ao novo ecossistema

ética do jornalismo, suscetíveis de

independência dos jornalistas dentro

mediático, de modo a atualizarem o

configurarem a razão de ser do pacto

dos órgãos de comunicação social, o

pacto social entre jornalistas e cida-

entre jornalistas e cidadãos, de que

tratamento das fontes e os processos

dãos. Em seu entender, essa readap-

falávamos atrás. Para a investigado-

de prestação pública de contas por

tação não passa apenas por introduzir

ra da Universidade da Beira Interior,

parte dos media e dos jornalistas, es-

uma nova terminologia nos códigos

esse pacto assenta, nomeadamente,

tes últimos, constituindo uma dimen-

deontológicos, através de expressões

em valores como o rigor, a exatidão,

são ética que não deve ser descurada.

ou conceitos tais como “online”, “di-

a independência e a integridade, que

O serviço do direito de informar

gital” e “novos media”. Pelo contrário,

têm simultaneamente uma dimensão

implica a exigência de rigor, um

implica a criação de uma ética norma-

intrínseca e instrumental, uma vez

conceito-chave a que Paulo Martins

tiva mais forte, capaz de orientar em-

que estamos perante valores ao serviço

recorre para discutir o jornalismo e

piricamente os jornalistas no quadro

do direito à informação, que “assiste

distinguí-lo da imensa amálgama de

dos problemas quotidianos, na linha

a todos os cidadãos, e que transforma

derivas que compõem atualmente o

do que se vai vendo em alguns – não

o direito de informar no dever de bem

fast food noticioso. As fake news, a

muitos – exemplos de códigos emer-

informar”. Nessa perspetiva, sustenta,

informação sem verificação, títulos

gentes. Os enquadramentos legais,

a responsabilidade social do jorna-

vazios de conteúdo, as estratégias

também eles em mutação, os cons-

lismo não é contingencial e não pode

para promover clickbaits, os conteú-

trangimentos empresariais, as rotinas

estar sujeita aos condicionalismo do

dos híbridos que descredibilizam o

profissionais e o relativo isolamento

mercado: “Negociar com a informação

jornalismo, ainda que possam servir

dos jornalistas no contexto das em-

é negociar o futuro da humanidade,

objetivos comerciais a curto prazo,

presas de produção de conteúdos, a

para o bem e para o mal, e também

minam o pacto entre jornalistas e ci-

subjetividade, o lugar da liberdade

por essa razão falhar na função eman-

dadãos e, acrescenta o investigador

do jornalista enquanto cidadão e do

cipadora é falhar em termos absolutos

da Universidade de Lisboa, a própria


democracia. Com efeito, hoje, as novas tecnologias e a abundância da informação encarregaram-se de mostrar de forma evidente que o jornalismo é algo bem mais complexo do que a transmissão da informação pública e a revelação do que é segredo. O jornalismo constrói-se num pacto (ético) que, de alguma forma, resume o núcleo do que deve ser a atitude dos seus profissionais: pessoas empenhadas com a qualidade da informação e a credibilidade do jornalismo. Esse empenhamento passará por um trabalho aturado na certificação e crítica das fontes de informação, outro aspecto central quer da ética quer da

As novas

fontes de informação? Até que ponto isso é compatível com a ideia de que o

tecnologias e

jornalista é o último responsável pela informação divulgada?

a abundância

A crítica das fontes é algo mais do que um procedimento estritamente

da informação

deontológico. Não será por acaso que Paulo Martins, na sua abordagem a

mostraram

que fizemos referência anteriormente, trata igualmente o problema das

que o jornalismo

fontes de informação, salientando que o papel do jornalista não se limita a

não é apenas

ouvir vozes diferentes, mas também de ponderar a sua legitimidade na sua

transmitir

relação com a verdade. Se ainda dúvidas houvesse a este respeito, Lorena

informarção

Caliman Fontes poderia desfazê-las

qualidade da informação. Sobre isso,

com o estudo que fez sobre o progra-

Suzana Cavaco, da Universidade do

ma mais antigo da rádio brasileira,

Porto, faz um trabalho comparativo

a Voz Brasil, onde põe em evidência

sobre a forma como a questão do sigi-

os impactes que a escolha editorial

lo das fontes é tratada por diferentes

das fontes pode ter na qualidade da

códigos de diferentes países, pondo

informação, nomeadamente, tipifican-

a nu aquele que é um dos pomos de

do ou apagando as críticas ouvidas

discórdia entre os jornalistas, mesmo

em antena e viabilizando, ou não, a

em Portugal. Deverá a proteção da fon-

criação de um espaço aberto de dis-

te ser total, mesmo em situações em

cussão mobilizador de uma opinião

que, comprovadamente, o jornalista

pública vibrante. Expressões como

foi enganado por ela? O compromisso

o jornalismo institucional ou outras

para com a qualidade da informação é

declinações que a era digital parece

do jornalista, ou pode ser estendido às

propor ao jornalismo estarão sempre 9


comprometidas na sua credibilidade, se elas não se fizerem acompanhar de uma estratégia duradouramente empenhada com o serviço da cidadania. Desse empenhamento resulta o pacto efetivo de expetativas estabelecido entre o media, os jornalistas e a sociedade. E esse parece ser o grande mal de que padece a Voz Brasil. Estas situações são tão mais graves quanto elas forem destituídas de um verdadeiro esforço e de uma cultura de prestação pública de contas (accountability). Nas suas diferentes expressões, os instrumentos de pres-

Crise de mediação, crise de representação e crise de democracia são conceitos interligados

Catarina, no Brasil, Pompeu Fabra, e de Sevilha procura fazer esse esforço a partir da investigação realizada no âmbito do projeto da “MediaACES. Accountability y Culturas Periodísticas en España”. Sem o intuito de revelar um “paraíso espanhol”, o estudo demonstra que os instrumentos de accountability têm por base uma realidade multifacetada que passa por: incentivos internos das empresas; a promoção de uma cultura de responsabilidade; sistemas jurídicos, políticos e económicos - que incentivem a transparência, e

tações de contas são o assumir de

eventualmente punam a opacidade -;

um compromisso de responsabilidade

agentes económicos que invistam

dos jornalistas e dos media na cria-

na abertura das corporações de me-

ção de uma esfera pública de discus-

dia; e movimentos organizados que

são, de credibilidade e de qualidade

ajudem a consolidar a estabilidade

da informação. A sua pluralidade

política e a cultura democrática. Por

reflete também culturas e tradições

isso, não será possível encontrar mo-

próprias de regulação dos media e

delos universais de accountability,

do jornalismo. No entanto, apesar da

nem tão-pouco no espaço da lusofo-

sua especificidade, é importante que,

nia, um dos objetos finais de refle-

numa era que se diz de crescente glo-

xão do artigo assinado por Rogério

balização, essas experiências sejam

Christofoletti, Juan Carlos Villegas

divulgadas, conhecidas e partilhadas

e Xavier Ramon Vegas. Entre o mer-

em contextos que não os estritamente

cado brasileiro de bens simbólicos

nacionais. O trabalho efetuado pelos

de 209 milhões de pessoas e o da

colegas das Universidades de Santa

Guiné-Bissau, que não chega a ser


1% desse número, existe um mosai-

Estes são mecanismos que os cientis-

regressar às questões fundamentais

co multifacetado de mundividências

tas sociais, comunicólogos, jornalis-

evocadas no início desta introdução.

marcadas por idiossincrasias, passi-

tas e cidadãos devem defender, como

O professor da Universidade Nova

vos históricos, capacidades e poten-

condição de funcionamento da pró-

de Lisboa não deixa de notar que é

ciais próprios que a língua comum é

pria democracia. Mas esses procedi-

numa altura que os novos dispositivos

incapaz de apagar.

mentos são também condições meto-

comunicativos alimentaram as espe-

dológicas destinadas a garantir novas

ranças dos neo-iluministas que mais

Uma agenda para o espaço lusó-

formas de significar a política e a

se fala também em crise da repre-

fono para aperfeiçoar e aprofundar

democracia, “como uma experiência

sentação, que surgem novas formas

a transparência e a prestação de

ativa, propositiva, criativa e com vista

de populismo e em que os cidadãos

contas da mídia passa inevita-

à produção de ‘comuns’ outros mais

aparecem alheados das urnas de voto.

velmente por consolidar merca-

igualitários, mais democráticos”. No

E conclui:

dos produtores e consumidores

entender dos autores da Universidade

de informação em cada país, por

Federal de Minas Gerais, do suces-

O problema é que, por mais níti-

fortalecer os regimes de estabili-

so deste empreendimento depende a

da que seja a perda de influência

dade política, com alternância de

democracia e a luta contra os novos

das elites tradicionais, o apogeu

poder e direção democrática, e por

populismos.

das multidões também não parece

enaltecer as demandas dos públi-

Inevitavelmente, é na qualidade

estar no horizonte. Pelo contrá-

cos e das cidadanias, escrevem

da democracia que culmina toda a

rio, o que tem vindo a surgir são

os autores.

discussão em torno do jornalismo e

núcleos clandestinos de produção,

naquilo que ambos têm de mediação.

manipulação e distribuição de in-

Numa linha de discussão mais

O estudo e a reflexão sobre a natureza

formação – verdadeira ou falsa,

alargada, inspirada em Keane e

das mediações será certamente uma

tanto faz – que operam à escala

Rosanvallon, Lucas Veloso, Ângela

das tarefas centrais que as ciências da

planetária e estão rapidamente

Marques e Ricardo Mendonça reto-

comunicação não podem descurar, sob

a transformar-se numa arma es-

mam a discussão em torno dos temas

pena de não perceberem uma das di-

tratégica para alguns Estados e

da transparência, a partir da ideia

mensões profundas das transformações

numa ameaça para todas as de-

de que abundância comunicativa do

do mundo contemporâneo. É com essa

mocracias.

mundo contemporâneo exige cada vez

reflexão que encerra a presente edi-

mais monitoramento e mecanismos de

ção da Mediapolis, através do artigo de

Crise de mediação, crise de re-

verificação do princípio de igualdade.

Diogo Pires Aurélio, que nos permite

presentação, crise do jornalismo e 11


crise da democracia aparecem-nos

Bernier, M.-F. (2004). Éthique et Déon-

Keane, J. (2013). Democracy and Media

como conceitos profundamente liga-

tologie du Journalisme. Saint-Foy:

Decadence. Nova Iorque: Cambridge

dos. Estamos, pois, colocados perante

Les Presses de l’Université Laval.

University Press.

o desafio de reinvenção de formas

Camponez, C. (2012). Jornalismo regio-

Quintero, A. P. (1993). História da Pro-

de revigorar a dimensão política, a

nal: proximidade e distanciações.

paganda. Lisboa: Planeta editora.

exemplo do que o conceito de opi-

Linhas de reflexão sobre uma ética

Traquina, N. (2000). O Poder do Agen-

nião pública e de espaço público

da proximidade no jornalismo. In

damento: Análise e textos da teoria

conseguiram fazer nos últimos dois

João Carlos Correia (org), Ágo-

do agendamento. Coimbra: Miner-

séculos… relativamente aos mode-

ra - Jornalismo de Proximidade:

vaCoimbra.

los representativos do ancien régime.

Limites, desafios e oportunidades

Thomson, O. (2000). Uma História da

Mas mais do que um neo-Iluminismo,

(35-47). Covilhã: Livros Labcom.

Propaganda. Lisboa: Temas &

talvez enfrentemos a necessidade de

Castells, M. (Março de 2008). The new

um Novo Iluminismo.

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bal governance. The Annals of the

tra piel social. Barcelona, Buenos

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Samuel Mateus Universidade da Madeira

Recebido em: 12/01/2018 | Aceite em: 01/05/2018

Labcom; ICNOVA

New Media, New Deontology

samuelmateus@uma.pt https://orcid.org/0000-0002-1034-6449

Ethical constraints of online journalism Novos Media, Nova Deontologia – Constrangimentos éticos do jornalismo digital https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_1

Abstract

Resumo

As New Media bring new challenges – as

Há medida que os Novos Media trazem

well as new risks – to the function and

novos desafios – bem como novos riscos –

identity of journalism, there is a growing

para a função e identidade do jornalismo,

pressure to adopt – and also to adapt

há uma crescente pressão para adotar – e

– self-regulatory mechanisms, such as

adaptar – mecanismos de auto-regulação,

deontological codes, in order to better

como por exemplo, códigos deontológicos,

determine the ethical boundaries of on-

a fim de melhor fixar os limites éticos do

line journalism.

jornalismo digital.

This paper emphasizes key principles of

Este artigo destaca os princípios dos Novos

New Media (such as hypermedia, hyper-

Media (como hipermédia, hiperlinks, inte-

links, interactivity, glocality, customiza-

ratividade, glocalidade, personalização e

tion, and instantaneity) that, together, pose

instantaneidade) que, tomados em conjunto,

legal, corporate, professional, and indivi-

colocam constrangimentos éticos de ordem

dual ethical constraints. Such limitations

jurídica, corporativa, profissional e indivi-

suggest a new deontology is needed for

dual. Estas limitações sugerem que uma

journalists to establish specific guidelines

nova deontologia é necessária para que os

to direct their online practice.

jornalistas possuam diretrizes específicas

Finally, this article suggests that the first

que direcionem a sua prática online.

step towards a generalized ethical reas-

Sugere-se que o primeiro, passo crucial,

sessment of online journalism could be

para esta revisão ética generalizada sobre

accomplished by means of supranational

o jornalismo digital pode ser feito através

deontological codes of journalism.

de códigos deontológicos supra-nacionais.

Keywords: Online journalism; ethics;

Palavras-Chave: Jornalismo digital;

deontology; new media.

ética; deontologia; novos media;

13


Introduction

construction of the world giving a

journalism. These forms exist in close

Journalism adopts, in its practice,

responsible interpretation and sym-

association with Web 2.0, and Social

ethical standards that help professio-

bolically mediation of the word. To be

Media owing them the easy targeting

nal to respect truth, transparency and

true, there is no journalism without

and interaction with mass audiences.

exemption. At the same time, those

ethics (cf. Alsina & da Silva, 2018:

Besides the technical, social,

ethical standards help them to attain

727) because it relies on ethics to

cultural, economic and professional

the trust of the public and gain the

be a dependable organization of the

dimensions, New Media bring new

confidence of citizens, institutions and

social world respecting the right to

challenges to journalism Ethics sin-

communities.

information and its liberty, truth as

ce the relationship between bloggers,

an absolute duty, or the respect by the

social media users and online publi-

human person (Cornu, 2015).

shers of news and information is to-

We trust journalism because there is a fiduciary contract (Rodrigo-Alsina, 2009) sustained by ethical

With the rising of modern media

day symbiotic (Friend&Singer, 2007:

procedures, routines and methods of

and special with New Media, a kind

133) even if it may also be conflicting

news-gathering that are bounded by

of journalismorphosis happened. In a

and contradictory. No doubt there is

the public interest. Citizens trust that

time of news abundancy and an in-

multiple layers in journalism (Ward,

behind each story there is a space

tensification of the informative flux,

2009) but the inclusion of new actors

of liberty mas also a space of res-

journalists primarily changed from

in online journalism may raise par-

pect by those involved. Journalism is

gatekeepers to gatewatchers (Singer,

ticular concerns to what the specific

not a fictional narrative or a random

2009). In the context of cyberspace

characteristics, purposes and social

reality- based entertainment, but a

and hypertexts (and, in some cases,

identity journalism should have to-

reliable, responsible and accountable

an excess of information) journalism

day. Because if, with New Media, it

report of the public world. By sear-

is facing a mutation in its professio-

is true that almost anyone can be a

ching, gathering, editing, selecting

nal routines where journalists have

publisher, this does not necessarily

(including hierarchy) and diffuse the

no more the primacy of event selec-

mean that everyone is doing journa-

news, journalism is a professional ac-

tion and have few control on the dis-

lism (Friend&Singer, 2007: xxiii). In a

tivity but also a civic one (Fidalgo,

semination and uses of their news.

digital world, the distinction between

2013) that reflects a commitment

By other hand, there is also other

journalism and other forms of publi-

to avoid being a hollow narrative.

forms of selecting and publishing of

cation rests fundamentally in ethics,

It is because it is an informed and

information – like citizen journalism,

rather than in professional categories

ethical-bounded activity that jour-

for instance – that in some respects

or technical skills (Fidalgo, 2013: 24;

nalism may contribute to the social

compete with the traditional role of

Ess, 2009).


More, given the vast amount of data

facts, not on actual facts. Allcott and

The Ethical Constraints on

and information in Internet determi-

Gentzkow (2017: 213), for example,

Online Journalism

ning the trustworthiness of online news

define them as “news articles that are

Online journalism is not just the

can be a daunting – maybe a utopic –

intentionally and verifiably false, and

transposition of print content into the

task even though the media’s attributes

could mislead readers”. And the very

World Wide Web. It is, above all, a

of Internet facilitate the job of social

notion of Post-Truth that emerged along

re-adaptation of traditional media dis-

surveillance and self-policing.

the rise of New Media is riddled with

course into new language and discur-

By other hand, from an etymologi-

conceptual shortcomings (Carlson,

sive practices. For example, the inver-

cally point of view, online journalism

2018: 1789) uncovering the idea an

ted pyramid gives place to the tumbled

may be something totally diverse from

absolute truth is not a realistic goal of

pyramid in which “journalists are able

traditional journalism since the speed,

journalism to achieve.

to provide new and immediate reading

urgency and rhythm of doing online

New Media, thus, bring new chal-

horizons by creating links between

journalism incite superficiality, and

lenges – as well as new risks – to the

texts or other multimedia components

hampers fact validation or confirma-

function and identity of journalism. If

which can be organized into layers of

tion. Many “so-called” online news

we accept that ethics is the regulation

information” (Canavilhas, S/D). This

articles are condensed on the title or

of human activity based on systema-

is similar to the news diamond model

the lead without developing the sub-

tized moral principles, it is, then, in-

authored by Paul Bradshaw (2008)

ject (sometimes committing clamorous

separable from journalistic practice

that describes a new way to concep-

mistakes and putting in risk the basic

as a form of social construction of the

tualize the journalist writing of news

assumption of journalism: to enlighten

world (Correia, 2012). Therefore, an

in online environments.

and inform public opinion (Bentham,

appraise and reflection of the ethical

From the mediamorphosis (Fidler,

1821).

boundaries of online journalism is

1997) emerged a set of principles of

a much-needed effort and it will be

New Media that influence and sha-

addresses here.

pe contemporary online journalism

There also concepts very closely associated with New Media, such as Post-Truth (Harsin, 2018) or Fake News

In this paper we identify relevant

such as hypermedia (combining text,

(Levinson, 2017), that contribute to a

questions and dilemmas online jour-

image, sound and multimodal semio-

social distrust in online journalism. Po-

nalism is facing today while answering

tics), hyperlinks (directing the de-

pularly, fake news refers to viral posts

the need to an ethical evaluation by

velopment of information in parallel

based on fictitious accounts that are

emphasizing the need to reevaluate

sites or pages according to a singular

made to look like news reports. They

self-regulatory, (supra-national) deon-

path chosen by the user), interactivi-

are based on potential or alternative

tological codes of journalism.

ty (where internet users are not just 15


readers as commentators and pro-

in 2012, CNN suspended the journa-

definition of ethical standards and we

ducers/influencers of information),

list Roland Martin for “offensive and

will indicate some of those who pose

glocality (in which local information

regrettable” remarks on his personal

more consequences to journalism

acquires a wide, global spread), cus-

Tweeter after having made jokes about

ethics. It is these hodiern conditions

tomization (the possibility of online

gay community during Superbowl.

and constraints that make urgent to

news reader only consume those news

CNN wrote that “Language that de-

formulate an adequate and revised

that corresponds to a previously set

means is inconsistent with the values

deontology, one that can successfully

of preferences and thematic defini-

and culture of our organization and

articulate and enforce the ethical stan-

tion) and instantaneity (New Media

is not tolerated. We have been giving

dards to the profession of journalism

make possible to publish the news

careful consideration to this matter,

and, at the same time, can guarantee

the moment it is produced).

and Roland will not be appearing on

that the fiduciary contract between

It can also be added two other

our air for the time being”. A personal

journalists and citizen remains intact.

principles. First, hypermobility (San-

commentary on a well-known social

These are not exhaustive limita-

taella, 2007) designating a portability

media made CNN to reject the colla-

tions yet they seem to be the most

and electronic mobility analogous to

boration with Roland Martin because

pressing ones: legal framing, corporate

physical mobility in cities. Hypermo-

it was understood that such comment,

constraints, professional routines and

bility consubstantiates the intersec-

and its homophobic content, would be

subjectivity.

tions and overlaps of news in online

publicly extended into CNN. A perso-

environments. Second, transmediali-

nal tweet was seen as representing a

Legal Framing: a virtuous

ty (Gambarato&Tárcia, 2017; Prado,

world-wide institution, capable to risk

and a vicious constraint

2010) in which a news story is unfol-

the credibility of the news television

The first ethical limitation we

ded in several, updated, reiterations

channel and their professionals ali-

highlight is law. Law is a necessa-

in other media (such as television or

ke. This example brings into full light

ry field of journalism and one that

radio, and vice-versa)

the serious imbrications between the

makes possible reporting the world.

These features are not attributes

personal and the professional dimen-

But it is also one that restrings its

but they are at the very core of online

sion of the journalist as New Media’s

scope of action. For one hand, the

journalism today, decisively shaping

interactivity, glocality, transmediality

legal framing incites the journalist

its discourse as well as testing its ethi-

and instantaneity tends to erode old

to do the social good while legitimi-

cal boundaries. For instance, it was

ethical frontiers.

zing journalistic activity. Take, for

due to interactivity, glocality, trans-

Contemporary online journalism

instance, the liberty of press. Law is

mediality and instantaneity that, back

discloses serious limitations to the

a virtuous constraint (Cornu, 2015,


112) enabling the regulation of the

the author rights and plagiarism is not

Corporate Constraints:

profession and giving it a rightful

always easy to respect. For example,

between the compromise to

ground for action that order the in-

there are new ethical questions to be

inform and the compromise

teraction between journalism and the

answered: is the use of a pre-existent

to respect editorial norms

remain social institutions.

Youtube video something akin to an

The fact journalism involves the

Nonetheless, the legal framing

ethical journalism that is characte-

information market and journalists

is also a vicious constraint when we

rized by the autonomous creation of

exercise their public and civic du-

think that sometimes the journalist’s

informative content? Is the use of blog

ties integrated in corporate busines-

abidance to superior ethical rules for-

contents in online news something that

ses also raises important questions.

ce them to surpass or exceed the law.

is aligned with what citizens expect

Because journalists are imbued in

A classic example is the protection of

from journalism?

corporations some deontological du-

journalistic sources. There are times

Or, should online journalism crea-

ties (as objectivity or facts checking)

when doing journalism according to

te photographic albums of victims,

can be, potentially, at risk if they go

the public interest oblige journalist

or make public audiovisual files that

against corporate guidelines. This is

not to disclose its sources.

where secretly recorded (in a hidden

the second ethical limitation in today’s

camera) without the consent of those

professional practice.

In online journalism, there are new conditions that enhance this ten-

who appear in them?

A simple example: if an exclusi-

sion between ethics and the law. One

These are just a few ethical ap-

vely online newspaper does not have

of the most cited virtues of Internet

prehensions concerning the legal

enough cars to cover an event or to

is the free access to multiple con-

framing that online journalism come

interview social actors, how can the

tents and its potential to knowledge.

to question today. They can be sum-

online journalist verify facts and listen

Everything seems to be there. This

moned I one query: how may the ri-

to all the parts involved? Well, she

raises a series of difficulties to online

gid legal framings deal with the fluid

may make a phone call or arrange a

journalism.

nature of Internet and how the law

videoconference with them. But the

protects or assault journalism in on-

deontological question remains: is it

line environments?

acceptable to check facts, opinions

Since it is so easy to retrieve data and information from an Internet search, online journalism faces the

These are undoubtedly impor-

and events thought exclusively media-

possibility of plagiarism and the in-

tant questions deontological codes

tized, non-presential, no-testimonial

fringement of copyright laws. By ga-

need to address. The second set of

ways?

thering information and use them in

queries have to do with corporate

online news, the distinction between

limitations.

This is related to cover an event through indirect means. When an 17


online journalist writes ( or adapts)

a big weight on the reporting of the

journalism is now facing two strong,

an article based on the print article

world.

concomitant forces: first, online jour-

of his fellow colleague, is this conform

By other hand, economical cons-

nalist become more and more isolated

to journalism ethical standards? Be-

traints can make online journalist be

in their role among so many other ones

cause, just like traditional journalism,

directed in his work by the number of

involved in the news production and

citizens expect online journalism to

clicks (click-baiting) his articles can

reception. Second, a growing frag-

cross check, select facts and report

gain, instead of the social importance

mentation of his task does not enable

them in first hand. When an online

they could have.

journalists to have a complete control

journalist can only write small articles

The price online journalism pays

of their work. Hence, before an online

from the arrangement of other (press)

to try to be profitable may be an au-

article reaches the public, it passes

articles, is this is good, ethical jour-

dience dictatorship (Cornu, 2015: 113)

through designers, audiovisual editors

nalism?

in which the search for the ultimate

and computer giving journalists the

There is also another crucial as-

scoop (and its financial implications)

sensation there are not the fundamen-

pect relating to corporate constraints:

may displace journalism from the

tal authors of online news.

the selective cover of events based on

public interest to the interest of the

editorial norms.

fleeting online audiences.

Also, the tendency for polyvalence may lead online journalists to sacrifice

When an online newspaper inte-

In fact, this was already noted by

essential aspects of his work such as

grates a media corporation it is more

Steensen (2009: 702) who suggests

investigations, verification, thinking

probable to cite news investigation

that “online feature journalists prac-

and reflection (Cornu, 2015: 113). As

and articles from the same media

tise a more audience-driven and sour-

they have to satisfy the exigencies of

conglomerate. In some cases, it may

ce-detached kind of journalism than

urgency and constant obsolescence of

even cut out other institutional sour-

their print counterparts�.

the online news environment, they may

ces of information. This is unders-

become more of mechanism wheels pi-

tandable because access to the news

Professional Routines:

voting the mass production of contents

and reports is easier if they belong to

Journalist’s relative

mainly devoted to catch attention.

the same institution since they share

isolation

At the same time, New Media

resources. Yet, it may be less unders-

Professional routines of online

accentuates the risk of transforming

tandable that corporate property has

journalism may also result in severe

online journalism in simple desk jour-

such an influence on the editorial

ethical constraints. This is the third

nalism. Relying in the Internet and So-

scope of the online newspaper and

ethical limitation in contemporary di-

cial Media platforms, basing their work

that editorial guidelines have such

gital practice of journalists. Online

in print news or tending to write news


every hour, online journalists tend to be incarcerated in the office. No longer being on the ground, stopping of banging doors and cultivating news sources, online journalism is getting stuck behind desks. As newsrooms have limited resources desk journalism is also compliant into data journalism, the combination of “the traditional ‘nose for news’ and ability to tell a compelling story, with the sheer scale and range of digital information now available” (Gray, Bounegru, Chambers, 2017). So, from an ethical point of view based on professional routines, what

The revision of supra-national journalism standards will lead to a major updating online journalism’s deontology

preferences. So, their stories cannot be total abstracted from their personal values, their culture, convictions or hopes. The symbolic construction operated by journalism cannot be detached from the personal views journalists have as individuals and citizens. This has special ethical consequences in the case of online journalism. In a recent survey to 300 Portuguese journalists, 81% assumed that they combined a professional as well as personal use of Social Media. From this, 86% had only one social media’s account or profile. Further on, 95% of

can we expect from online journalism

these journalists specify their profes-

when is becomes more and more a desk

sion and the media they work for (Ma-

job? This is another question that need

teus, 2015: 55). This means it is not

to be urgently answered.

easy to make the distinction between what is posted as citizen and what is

Subjectivity- the restrictive

posted as a professional journalist.

manifestation of personal

Besides, their duties to neutrality

opinion

and impartiality are in check because

The fourth ethical limitation we

“Liking” in the Facebook’s profile of

highlight as to do with the fact jour-

a political candidate can sound as a

nalists being social actors and moral

public and professional recommenda-

subjects (Cornu, 2015: 114).

tion. How can this journalist, be in

They have subjectivity and, besides being information professionals, they

ethical condition to cover the political campaign of this candidate?

are citizens too with their own preoc-

Also, the same survey revealed that

cupations, expectations and political

91% of journalists have professional 19


sources in their Facebook’s friends or

In Search of a Specific

in the mutations introduced by New

other Social Media followers, and even

Deontological Code to

Media in journalistic practice.

that 64% of them are Facebook frien-

Online Journalism

ds with members of the Government

In the New Media environment jour-

set of ethical assumption on the everyday

(Mateus, 2015: 55). What’s more, 43%

nalism is of even greater importance.

practice of journalists is through the

admit to post opinions and personal

While technologies facilitate journalist’s

self-regulatory codes of deontology.

comments about politics or economics

tasks, at the same time, they also erode

in their social media profile (Mateus,

traditional ethical boundaries.

2015: 57).

The most effective way of imposing a

Deontology brings the fundamental ethical concerns to journalism without

However, journalism is not some-

fall into the rigidity of the law or state

New Media, thus, exacerbates

thing we can prescind on because

regulation, or the absolute fluid sub-

ethical problems of journalism by

he is the guarantor of credible, rigo-

jectivity of each professional. It is a

making public and easier to put into

rous and contextualized information.

code sufficiently malleable to adapt

jeopardy the obligation of impartiality.

Hyperinformation and its abundance

to key mutations in Journalism (such

More specifically, New Media brings

only calls for the renew of the critical

as the online transformations) and,

to the fore this problem by making

role of journalism in today’s demo-

simultaneously, sufficiently solid to

problematic the relationship with news

cratic societies. Filtering information

bind professional routines to ethics.

sources and political officials.

and certifying contents is the great

Through deontological codes, jour-

In this section we highlighted four

challenge to contemporary journalism

nalism becomes more autonomous as

different domains that represent ethi-

and one that is even more required

well as more accountable and trustful.

cal limits to online journalism.

by New Media. In fact, the more

The one-million-dollar question is

This paper suggest that in order to

information there is, the more the

to know if current codes of ethics in

answer these ethical problems, jour-

necessity of the intermediary role of

journalism remain valid for the In-

nalism must look into its deontology

journalists (Wolton, 1999). The more

ternet too. In other words, we must

as these self-regulatory texts are

virtually endless supply of informa-

ponder if online journalism requires a

mainly practical responses to ethi-

tion is flowing through, the greater

re-appreciation of its deontology. Whi-

cal challenges. So, online journalism

the need for journalistic judgement.

le there is general consensus that New

ethics can only be respected if its

Equal access to New Media does not

Media changed journalism, there no

practical guidance and application

stand for equal use of information.

solid agreement on the impact such

improves.

So, we still trust journalism to im-

changes have on ethics.

That’s why we need to ponder on deontology.

pose a kind of symbolic order to the ever-evolving world and this is truer

Positions about this move around two main perspectives.


First, a possible explanation is that

new Deontology. This is due to the

friend’s profile (or possibly creating a

existing ethical guidelines and deon-

consensual opinion that, as we have

false one)? There are many practical

tological codes are equally effective

just seen, online journalists are now

questions that the mere inclusion of

for the New Media. After all, Ethics is

confronting with a different kind of is-

words such as “online” do not fully

Ethics and no matter where to apply it

sues traditional journalists face. “Old

answer.

those principles remain intact. This is

assumptions about journalistic roles

In fact, it seems that the referen-

to say, according to this perspective,

and values can no longer be accep-

ce to “digital communication” in the

that online ethical issues are similar

ted uncritically nor old approaches to

Editor’s Code of Practice is a simple

to those of “traditional” journalism”.

them continued indefinitely” (Hayes

addendum: “The press must not seek

Independently from being old or new

et ali., 2007: 275).

to obtain or publish material acquired

Media, deontological guiding princi-

Adding “online”, “digital” or “New

by using hidden cameras or clandesti-

ples are still valid to online journa-

Media” to existing deontological codes

ne listening devices; or by intercepting

lism (cf. Diaz-Campo&Segado-Boj,

would not suffice since these terms

private or mobile telephone calls, mes-

2015: 736).

would only refer to the generic prin-

sages or emails; or by the unauthorized

Second, and in contrast, there is

ciples of “traditional” journalistic

removal of documents or photographs;

this notion that even if the essence

ethics. For instance, United Kingdom’s

or by accessing digitally-held infor-

of journalism (searching, gathering,

Editor’s Code of Practice mentions “di-

mation without consent.

editing, selecting information) remains

gital communications” even if being

Hence, a possible solution to solve

unchanged, it is also evident that New

vague: “Everyone is entitled to respect

the problems arisen with digital in-

Media re-defined or re-shaped new

for his or her private and family life,

formation is to create a code that can

ethical issues, as well as deepen old

home, health and correspondence,

specifically refer to online journalism.

ethical issues- as we have demonstra-

including digital communications”.

This perspective defends self-regula-

ted. “Internet shapes and redefines a

But, what a journalist should beha-

tion codes, specifically deontological

number of moral and ethical issues

ve in case of personal comments, pho-

ones, can have the task of inducing pu-

confronting journalists when opera-

tos and videos that are shared through

blic expectations of ethical standards,

ting online or making use of online

social media? By publishing them in

as well as defining ideal standards of

resources” (Deuze&Yeshua, 2001:

Social Media, individuals make their

(offline and online behavior).

276). Some authors (Suárez Villegas,

posts public but if they do so in restrict

Following this line of argument,

2015; Demir, 2011) have argued that

circles of social media (ex: Facebook’s

deontological codes are key to adapt

New Media calls, therefore, for a new

friends), is it licit the journalist ac-

the old standards to the new tech-

practical Ethics, more exactly, to a

cess that information even if using a

nological, economic and empirical 21


conditions of online journalism. We

of the profession (Mateus, 2015: 63).

re-posting or the sharing of non-con-

are here arguing for the making of

And, most importantly, 62% of them

firmed information. In fact, one can

stronger normative ethics (in the sen-

are favorable to a revision of the deon-

interpret that journalism should not be

se of Cornu, 2015: 108) capable of

tological code in order to include spe-

a matter of “copy-pasting” facts. At the

guiding online journalists empirically

cific guidelines to online journalism

same time, we can also understand in

through the everyday problems they

(Mateus, 2015: 101).

that quotation that New Media’s sense

encounter.

What is perhaps a great surprise is

of speed, urgency and instantaneity

Particularly, self-regulation me-

that from 99 self-regulation codes of

should not be a reason to not be careful

chanisms, such as deontological co-

around the world, 90 of them overlook

and accurate with the facts.

des, may take journalistic ethics to

the specific problems of doing jour-

The same Canadian code declares

other level, providing detailed orien-

nalism in New Media. This is to say,

“We encourage the use of social ne-

tations to the new reality in specific

91% of the world deontological codes

tworks as it is one way to make connec-

domains such as making online con-

of journalism lack references to onli-

tions, which is part of our core work as

tent reliable; how to use data to pro-

ne journalism (Diaz-Campo&Segado-

journalists. However, we keep in mind

duce and diffuse information; linking

-Boj, 2015: 737) - and the particular

that any information gathered throu-

procedures; measures to prevent po-

challenges of we have identified in

gh online means must be confirmed,

tentially harmful content; or how to

this paper (legal framing, corporate

verified and properly sourced.” while

make compatible journalism integri-

constraints, professional routines and

summing up some advantages of social

ty and commercial pressures (Diaz-

subjectivity).

networking. It is a recognition of social

In fact, only Canada’s and

networks’ importance in journalism

This defense of deontology as a

Luxembourg’s deontological codes in-

and it almost legitimizes this tool in

way to help journalism dealing with

clude explicit mentions to journalism

the process of gathering information.

ethical issues emerged with New Me-

in Digital Media. For example, the Ca-

Yet, it also warns: “However, journa-

dia does not come only from acade-

nadian deontological code states: “The

lists should not use subterfuge to gain

mia but also directly from professional

need for speed should never compromise

access to information intended to be

journalists.

accuracy, credibility or fairness. Online

private”. Even if there is, in special

-Campo&Segado-Boj, 2015: 736).

For instance, 98% of Portuguese

content should be reported as carefully

cases, the possibility of it: “journalist

journalists believe that, in a time of

as print content, and when possible, sub-

may go undercover when it is in the

informational abundancy, a strong

jected to full editing”.

public interest”.

ethics is the main guarantee citizens

It also emphasizes the accuracy of

Pursuing the defense of privacy

have and best promise to the future

information and implicitly discourages

in digital environments, and specially


by children, the Canadian code affir-

The Netherlands deontological

ms: “we take special care when using

code is very clear in this respect be-

any material posted to social media by

cause it has an entire section devoted

The Canadian, Dutch or Norwe-

minors, as they may not understand

to dealing with online commentaries

gian deontological codes of journalism

the public nature of their postings”.

named “responses on websites”. And

give us a few examples how ethical

There are more examples of deon-

it stresses that if a response to an ar-

standards are already starting to being

tological codes that refer specifically

ticle on the website contains a serious

adapted to the practical need of online

to the New Media’s condition of jour-

accusation or defamatory expression

journalists and they should provide a

nalism.

towards one or more known persons,

great starting point to make deontology

For example, Luxembourg’s code

the editorial office, on request of tho-

a set of ethical rules easier to unders-

urges journalists to confirm that the

se involved, must investigate whether

tand and, above all, easier to apply

websites they are creating a link or

there are actual grounds for the accu-

in everyday professional routines by

sharing, do not contain illicit material.

sation or allegation and, if it is not the

online journalism.

In case of illicit materials, it is clearly

case, to remove the response.

stated journalists should refrain from linking.

obstacles to covering an issue with fairness and independence.

In fact, we suggest that journa-

The last remark on deontological

lists will probably be less confused

codes that specify online journalism

by what they should or should not do.

On its turn, Norwegian deontolo-

is about the Canadian Code and how

Without omissions or ambiguities,

gical code advises professional jour-

it plainly asserts that cyberactivism

online journalist’s work will be much

nalists to clearly mark links to other

and civic engagement via Social Media

easier to handle, and the public will

sites and at the same time it places

compromise journalist’s obligation to

also easily know better what to expect

a great amount of responsibility on

impartiality. “As fair and impartial

journalism on online environments.

editors by making them obliged to

observers, we must be free to com-

delete inappropriate and indecorous

ment on the activities of any publicly

Conclusion

comments: “Should the editorial staff

elected body or special interest group.

This paper brings light to the

choose not to pre-edit digital chatting,

But we cannot do this without an appa-

legal, corporate, professional and

this has to be announced in a clear

rent conflict of interest if we are active

individual ethical constraints in on-

manner for those accessing the pages.

members of an organization we are co-

line journalism while highlighting

The editorial staff has a particular

vering, and that includes membership

the particular need to update deon-

responsibility, instantly to remove in-

through social media”. So, to “Like” a

tological codes to face the challenges

serts that are not in compliance with

political candidate or to subscribe an

of doing journalism in digital media

the Ethical Code”.

online, public petition may be serious

environments. 23


It calls for the professional and

There are only a few core themes or

of existence. We are referring here to

academic need of adapting the exis-

common references in all those codes.

UNESCO’s Principle of Professional

ting deontological codes to contem-

Also, there is no universal standard from

Ethics in Journalism (dating from

porary online practice of journalism

which different countries can extrapo-

1983), the International Federation of

presenting a concise analysis of the

late their deontology. So, each country’s

Journalists’ Code (approved in 1986)

existing deontological codes given

deontology stresses only those aspects

and the European Code of Journalism

that a large majority of them are not

that are considered more relevant to

Deontology (agreed in 1993). These

particularly sensible to the ethical

their professional, cultural, technolo-

major, internationally acclaimed, and

challenges of online journalism.

gical and political realities. There are

wide-accepted deontological codes

Numbers don’t lie. Although ethi-

no perceived trends that give us a solid,

could be the steady platform from which

cal concerns about doing journalism

coherent and comprehensible view of

to derive all the national deontological

online have been growing in the last

deontology in online journalism.

codes about exercising journalism in a

decades, there is a general lack of in-

What the 9 deontological codes have

New Media context. The revision of the-

terest in making deontological codes

in common is the assumption that online

se supra-national journalism standards

fully adequate to New Media.

journalism is subject to the same ethical

will hopefully take the necessary step

Since only 9% of world’s deontolo-

principles as “traditional” journalism.

to lead to a major updating on online

gical codes make an explicit effort to

Given the legal, corporate, professio-

journalism’s deontology throughout the

regulate journalist’s practices in Digi-

nal and individual ethical constraints

world. But the great advantage would

tal Media, it seems fair – as statistics

identified earlier in this paper, based

be that national deontological codes

point out – to say that there is a wide-

on the will of most journalists to build a

would have a firm reference point, a

-ranging neglect in defining new ethical

specific deontology to online journalism

beacon in the sea of possibilities, that

boundaries to online journalism. More,

and given, still, the lack of homogeneity

would enlighten and bring safe all the

there is also a lack of consistency and

in the existing deontological codes that

deontological initiatives.

uniformity in defining those boundaries

mention digital media, there is much

since deontological codes that mention

waiting to be done.

This seems not just to be a long-anticipated move but also a very ne-

digital media – such as United King-

One first step could be revisiting

cessary one in order to preserve the

dom, Canada, Luxembourg or Canada’s

supra-national ethical codes. We

crystal-clear landscape that tells,

self-regulatory texts – give distinct em-

agree with Diaz-Campo and Segado-

beyond doubt, what journalists are

phasis to certain aspects (social ne-

-Boj (2015: 741), when they suggest

expected to do, how they should do it

tworking, or social responsibility and

updating those universal codes. In fact,

and what they, for the sake of public

accountability for links, for instance).

some of them have more than 30 years

trust, cannot do.


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Ana Leonor Morais Santos moraissantos.ana@gmail.com

Recebido em: 12/01/2018 | Aceite em: 01/05/2018

Universidade da Beira Interior

Uma nova ética para um novo jornalismo?

https://orcid.org/0000-0001-9248-6375

Revisitando o imperativo da responsabilidade A new ethics for a new journalism? Revisiting the imperative of responsibility https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_2

Resumo

Abstract

Se, por um lado, a realidade de uma nova

It is an unquestionable and obvious

forma de fazer jornalismo parece evidente

fact that there is a new type of journa-

e inquestionável, por outro lado, a neces-

lism today. Nevertheless, the need for a

sidade de uma nova ética como correlato

new ethics as a correlate of this reality

dessa nova realidade não se afigura com o

is not so obvious or unquestionable.

mesmo grau de evidência e indiscutibilida-

While it is tr ue that there are new

de. Sendo verdade que há novas variáveis,

variables, such as the predominance

como a predominância dos grandes grupos

of media groups, and new categories,

de comunicação social, e novas categorias,

such as web journalism, whose ethi-

como a de webjornalismo, cujas implica-

cal implications should be assessed,

ções éticas importa avaliar, na realidade,

professionals seem to consider that the

os profissionais parecem considerar que

existing deontological norms in current

as normas deontológicas existentes enqua-

journalistic practices are sufficient. In

dram cabalmente as práticas jornalísticas.

fact, these norms ref lect fundamen-

De facto, estas refletem princípios éticos

tal, transverse, and timeless ethical

fundamentais, transversais e intemporais,

principles that could be collated un-

que poderiam ser coligidos sob o princípio

der the principle of responsibility and

da responsabilidade e que se direcionam

directed towards an imperative of the

para um imperativo da mesma ordem.

same order.

Palavras-chave: Deontologia; emancipa-

Keywords: Accountability; deontology;

ção; ética; jornalismo; responsabilidade.

emancipation; ethics; journalism; responsiability.

27


Introdução

diferença entre ética e deontologia, re-

porque introduzem novos modelos de

A realidade de uma nova forma

cuperando características dos códigos

produção e de receção de notícias, mas

de fazer jornalismo é evidente e in-

deontológicos e fazendo uma incursão

também porque suscitam um questio-

discutível. Seria, pois, expectável que

pela revisão do Código Deontológico

namento ético, a saber: interatividade;

daí decorressem a evidência e a indis-

dos Jornalistas portugueses, de 2017;

hipertextualidade; personalização; e

cutibilidade da necessidade de uma

por fim, será proposto o modelo ético

instantaneidade.

nova ética. Não é, contudo, o caso.

que nos parece mais adequado para o

A interatividade é uma das marcas

Subjacente às transformações pode es-

jornalismo, e que tem no seu cerne o

do webjornalismo que pode concreti-

tar a constância da ética jornalística,

imperativo da responsabilidade.

zar-se de múltiplas formas: em caixas

naquilo que são os seus princípios e valores fundamentais.

de comentários, em fóruns de discusO jornalismo atual: novas

são, na eventual troca de emails, etc.

categorias, novas variáveis e

A máxima desta marca é a de que

dos grandes grupos de comunicação

novos desafios

“a notícia deve ser encarada como o

social, a mercantilização do traba-

Embora as novas tecnologias da

princípio de algo e não um fim em si

lho jornalístico, as características

informação e da comunicação sejam

própria, deve funcionar apenas como

diferenciadoras do webjornalismo, e

responsáveis por grande parte das

o “tiro de partida” para uma discussão

categorias híbridas como infoentrete-

mudanças ocorridas nos últimos anos

com os leitores” (Canavilhas, 2003, p.

nimento e publirreportagem, surgem

no jornalismo, elas não são os únicos

65). A questão ética é: que limites? A

novas variáveis e novos desafios de

fatores a considerar. A predominância

partir do momento em que se incita

natureza ética, que importa pensar, e

dos grandes grupos de comunicação

o leitor a discutir o que é noticiado,

que sustentam o desejo de ver baliza-

social e a mercantilização do traba-

assume-se o pleno direito ao exercício

dos normativamente comportamentos

lho jornalístico, com a informação a

da liberdade de expressão? Sabe-se

associados a tais contextos. A pergun-

seguir as leis da oferta e da procura,

que não há unanimidade quanto ao

ta a fazer é se precisamos de uma nova

têm grande impacto no modo como se

espaço mediático a conceder a ideo-

ética para o novo jornalismo. O ca-

encara a profissão e as correlativas

logias politicamente extremadas, por

minho a percorrer na busca de uma

responsabilidades. As vulnerabilida-

exemplo. Além disso, este apelo à in-

resposta passará por, primeiramente,

des dos profissionais traduzem-se em

teratividade parece funcionar como

apresentar uma súmula das principais

vulnerabilidades éticas.

um convite permanente à doxa, em

Na verdade, entre a predominância

marcas do jornalismo atual e estabe-

Por outro lado, há características

que todos podem opinar sobre tudo,

lecer os correlativos desafios éticos;

específicas do webjornalismo, que não

independentemente do grau de conhe-

num segundo momento, revisitar a

devem ser descuradas, não apenas

cimento do assunto.


No que diz respeito à hipertextua-

leitor para material de autoria diversa

propósito, a pergunta é: que critérios?

lidade, devemos recuar até aos anos 60

compromete o jornalista com a veraci-

As “notícias ao minuto”, a atualização

do século passado, década em que foi

dade e fidedignidade do que aí consta?

contínua, serão compatíveis com a deon-

utilizada pela primeira vez a palavra

Não sendo autor do conteúdo, é, ainda

tologia jornalística? Por outro lado, esta

“hipertexto”, para compreendermos

assim, compositor das ligações. Esta-

dimensão está associada a uma abun-

que não se trata de uma absoluta no-

rão os jornalistas dispostos a assumir

dância e superficialidade informativas,

vidade. Theodor Nelson cunhou este

a responsabilidade decorrente dessa

que exploraremos mais adiante.

termo para se referir a uma “escrita

composição?

Para já, importa assinalar que

não sequencial, um texto com várias

Quanto à categoria da personaliza-

qualquer um dos elementos referidos

opções de leitura que permite ao lei-

ção, esta remete para a possibilidade

implica, direta ou indiretamente, um

tor efetuar uma escolha” (Canavilhas,

de configurar a receção de informa-

acréscimo de responsabilidade quanto

2014, p. 4). O webjornalismo, ao as-

ções de acordo com os interesses do

à forma e ao conteúdo das informações

sumir esta dimensão, aproveitou a

usuário. Sendo um procedimento es-

jornalísticas.

possibilidade veiculada pelo digital

tritamente informático, seja por esco-

A par destes elementos, catego-

de exponenciar as opções de leitura

lha própria, através do registo numa

rias híbridas como infoentretenimento

a partir de uma única publicação.

publicação, seja por via de cookies,

e publirreportagem vão conquistando

Assim, e se da década de 60 até hoje

não se trata de uma característica

terreno, o que nos conduz ao segun-

diversos autores foram propondo de-

cujas consequências possam ser di-

do tópico, relativo à atualização do

finições mais ou menos complexas de

retamente imputáveis aos jornalistas.

Código Deontológico do Jornalista

hipertextualidade, há dois elementos

Não obstante, esta é uma realidade

português.

constantes e, nessa medida, definido-

proporcionada pelo webjornalismo e

res desta categoria: blocos informati-

também dela decorre uma questão

Ética e deontologia

vos e hiperligações. A informação é

com implicações éticas: que abran-

no jornalismo

segmentada e pode apontar-se para

gência? A personalização reforça a

Uma das características comuns a

outros textos complementares, outras

tendência para ficar circunscrito ao

todos os códigos deontológicos é a res-

páginas relacionados com o assunto,

que coincide com as crenças pessoais,

petiva abertura. Não são documentos

material de arquivo do próprio jornal,

limitando horizontes de sentido e a

cristalizados, refletindo, antes, a evo-

publicidade, etc.

diversidade de perspetivas.

lução cultural, social e das profissões.

A questão ética que aqui encontra-

Por fim, a instantaneidade, que está

No caso do jornalismo, esta abertura

mos é: que responsabilidade? A suges-

presente tanto na produção jornalística

significa atenção às transformações

tão de hiperligações que conduzem o

quanto no acesso à informação. A este

sociais e tecnológicas relacionadas 29


com a prática profissional. Contudo,

cláusula sobre a consciência, antes

códigos deontológicos devem ser mais

o reconhecimento de que há princí-

integrada na norma relativa à respon-

pormenorizados no enquadramento

pios e valores transversais a diferentes

sabilidade. Note-se que a recusa de

normativo das práticas profissionais,

sociedades e culturas, e intemporais,

práticas jornalísticas que violentem

mas não é necessário que assim seja,

conduz-nos à constância da ética ini-

a consciência individual é colocada

desde que os princípios fundamentais

cialmente referida.

como um dever, não como um direito,

estejam solidamente definidos.

Os princípios éticos fundamentais que constituem os pilares do jornalis-

abrindo espaço para o êthos do jornalista.

Assim sendo, podemos considerar que o que há a esperar da ética

mo não são flutuantes – ou não seriam

Na destrinça entre ética e deon-

no jornalismo do século XXI não é

fundamentais. É certo que o rigor, a

tologia joga-se a tese desta reflexão.

substancialmente diferente do que se

prestação de um serviço público e

Na primeira, encontramos princípios e

esperava antes. Em 1983, quando se

a responsabilidade social são fac-

valores, fruto de um processo reflexivo,

estabeleceram os Princípios Interna-

tualmente comprometidos pela nova

e que devem ser integrados pelo indi-

cionais da Ética Profissional no Jorna-

relação com o tempo que se impõe

víduo. A segunda, inscrita no âmbito

lismo, ressaltou-se o valor duradouro

aos jornalistas, mas tal circunstân-

da ética aplicada, consubstancia-se

da declaração da UNESCO, e não se

cia apenas reforça a necessidade de

num conjunto de deveres que regulam

considerou necessário ir além de dez

aproximar o que é e o que deve ser.

o exercício de uma profissão. Deste

princípios, que têm a responsabilidade

Fazendo uma incursão sobre a úl-

modo, a ética jornalística deve manter-

como ponto de fuga.

tima revisão do Código Deontológico

-se inalterável nos seus princípios e

do Jornalista português, aprovada no

valores, ainda que a deontologia que

Do princípio da

IV Congresso dos Jornalistas, de ja-

rege a profissão possa incorporar um

responsabilidade à ideia de

neiro de 2017, e confirmada no refe-

acrescido enquadramento normativo

responsabilidade social

rendo de outubro do mesmo ano, com

de novas possibilidades de ação, de

O conceito de ética aplicada, sur-

o objetivo assumido de atualizar um

novas exigências e de novos desafios.

gido na década de 1960 e desenvolvido

documento datado de 1993, verifica-se

Enquanto possibilidade, inscreve-se

sobretudo na década seguinte, permitiu

que nenhuma das alterações efetuadas

no âmbito do contingente, cuja defi-

pensar a responsabilidade numa ver-

inclui referências às novas práticas

nição aristotélica recuperamos: con-

tente coletiva, refletindo, por um lado,

jornalísticas. Uma das alterações vi-

tingente é aquilo que é, mas poderia

o facto de a mesma ser inerente à di-

sou a questão da igualdade e da não-

não ser, ou que, sendo como é, pode-

mensão da ação, e, por outro lado, a

-discriminação, e outra, extremamente

ria ser diferente daquilo que é. Neste

realidade das transformações sociais e

significativa, foi a autonomização da

sentido, podemos considerar que os

dos desafios entretanto surgidos. Áreas


como as da bioética e ética biomédica,

longevidade cada vez mais alargadas,

normatividade-ação-consequências ao

da ética do ambiente, da ética econó-

em grande medida por via do desen-

lado das consequências acabou verti-

mica e da ética empresarial1, fomenta-

volvimento tecnológico. A abordagem

da num conjunto de princípios regula-

ram o diálogo entre interlocutores com

é, portanto, consequencialista, sendo

dores de práticas coletivas, segundo o

diferentes formações, redirecionando

esse registo que facilitou a incorpo-

pressuposto da respetiva mais-valia.

os tradicionais estudos de metaética e

ração da ética em domínios tenden-

Tal conceção conheceu um gran-

de ética normativa.

cialmente dela excludentes, uma vez

de desenvolvimento no domínio em-

Neste contexto, Hans Jonas sur-

que permitiu que, ao invés de ser

presarial na última década do século

ge como pioneiro na constatação da

considerada uma limitação imposta

XX, quando as empresas começaram

necessidade de uma “nova ética”,

por princípios teóricos, tenha sido

a preocupar-se mais com a sua ima-

decorrente do crescente domínio de

reconhecida, na sua vertente apli-

gem social, procurando mostrar que

ação coletiva, que impõe uma outra

cada, como mais um instrumento de

as exigências de rentabilidade que

dimensão de responsabilidade (Jo-

decisão ou inclusivamente como uma

lhes são inerentes são compatíveis

nas, 1972, p. 37). O princípio da

propedêutica à decisão (Lacroix, 2009,

com valores como a justiça e o res-

responsabilidade será erigido pelo

p. 96 ). O raciocínio prático implicado

peito pelas pessoas3 (Marzano, 2008,

filósofo como princípio fundamental

neste processo deve operar tendo em

p. 110). Porém, a compatibilidade não

da ação humana, tendo em conta que

atenção as prováveis consequências

institui, por si só, o dever. Donde que

as repercussões resultantes dos nossos

das escolhas em ponderação, sendo

o conceito de responsabilidade social

atos assumem uma extensão e uma

que a atenção dirigida no triângulo

tenha surgido enquadrado num mode-

2

lo que visa estabelecer os critérios de 1 A partir deste ponto, o texto recupera em parte o artigo “Entre “personas panqueques” y ciudadanos emancipados: la responsabilidad social de los medios de comunicación”, publicado, em 2016, no Libro de Actas del III Congreso Internacional de Ética de la Comunicación: Desafíos éticos de la comunicación en la era digital (pp. 287-295). L. Rico, J. Villegas e M. Jiménez (ed.). Madrid: Dykinson. A nossa perspetiva é a de enquadramento da ética empresarial no âmbito da ética aplicada, embora esta opção possa não ser unânime. Para uma apresentação da divergência em causa, v., p. ex., Conill, 1995, pp. 201- 203.

2 “On dira que l’éthique appliquée a une fonction d’aide à la délibération, à la résolution de dilemmes moraux et à la clarification d’enjeux éthiques, tant pour les individus considérés dans leur singularité que pour ceux qui mènent une action commune au sein d’institutions. Dans ce contexte, l’éthique se présente comme le point de jonction entre l’action individuelle et l’action collective pour l’agent moral. L’intervention en éthique vise par conséquent à concilier l’action individuelle et les «contraintes» normatives et axiologiques auxquelles celles-ci est exposée. Pour aller maintenant au-delà de la simple fonction normative à laquelle on restreint trop souvent ce concept, je pose l’éthique comme une propédeutique à la décision”.

“respeitabilidade” das empresas. Citamos, a este propósito, Donna Wood e os princípios por ela identificados 3 É nesta época que surgem revistas especializadas em ética dos negócios, como a Business Ethics Quartetly, criada em 1991, e a Business Ethics, surgida em 1992. Podemos, contudo, recuar até 1953, ano da publicação da obra Social Responsibilities of the Businessman, da autoria de Howard Bowen, para aí encontrarmos já apresentado o conceito de responsabilidade social em relação com o mundo dos negócios.

31


no âmbito da responsabilidade social das corporações, a saber: (i) o princípio da legitimidade; (ii) o princípio da responsabilidade pública; e (iii) o princípio da gestão socialmente responsável . O primeiro relaciona-se com o 4

que é expectável, estabelecendo que uma empresa, enquanto instituição, não deve abusar do seu poder, sob pena de a sociedade não lho reconhecer mais. O segundo refere-se explicitamente às responsabilidades das empresas para com a sociedade, quer diretas quer indiretas, em função do respetivo campo de ação. O terceiro coloca em destaque a vertente individual, remetendo para a dimensão moral dos membros das empresas, nomeadamente dos gestores, ao estabelecer que estes são agentes morais e que devem tomar decisões focados na responsabilidade social. (Wood, 1991).

A reciprocidade constitui a essência da responsabilidade social, e as organizações que a ela não aderirem perdem a confiança da sociedade, ao não lhes reconhecer credibilidade

no seio da opinião pública, foram colocadas em sintonia por James Grunig e Jon White, na constatação de que as organizações excelentes se deram conta de que podem alcançar os seus objetivos dando aos públicos algo do que estes pretendem, ou seja, integrando a “norma da reciprocidade” na organização. Segundo os autores, a reciprocidade constitui a essência da responsabilidade social, e as organizações que a ela não aderirem perdem a confiança da sociedade, ao não lhes reconhecer credibilidade (Grunig & White, 1992). É necessário, contudo, atender à conceptualização da ideia de “responsabilidade social” para ultrapassar o mero pressuposto da “rentabilidade ética”, o qual também pode ser associado à ética empresarial. Como refere Grunig, os teóricos da gestão

As questões respeitantes à com-

discutiram extensamente o significado

patibilidade entre fins empresariais e

a atribuir a esta expressão (Grunig,

valores morais, bem como à credibili-

2014, p. 4), sendo que o essencial

dade que as empresas procuram deter

da sua compreensão está patente na definição de Kathryn Bartol e David

4 O terceiro princípio é apresentado pela autora com a designação de the principle of managerical discretion. Optámos neste caso por uma tradução livre, que julgamos mais imediatamente compreensível, baseada na substância do princípio.

Martin: a responsabilidade social de uma organização designa o dever de privilegiar as ações que protegem e melhoram o bem-estar dos membros


da sociedade, servindo os seus pró-

p. 115). Promove-se, desse modo, a

antes complementares5. Há os fins em-

prios interesses (Bartol & Martin,

confiança de consumidores e de in-

presariais, relativos à obtenção de be-

1991, p. 115). Note-se que, mais do

vestidores, retirando daí benefícios

nefícios, cuja transversalidade a meios

que evidenciar a compatibilidade

empresariais.

de comunicação social públicos e pri-

entre a economia e a ética, ou inclu-

Não é, contudo, a questão das

vados nos parece evidente, embora

sivamente a rentabilidade da última

motivações inerentes à ética empre-

com graus de relevância diferenciados:

(no que pode configurar uma forma

sarial e da atenção que lhes deve

ao serviço público não tem, necessa-

de instrumentalização que conduz à

ser prestada que nos ocupa. Aquilo

riamente, que estar associado o lucro

dúvida acerca da eticidade das prá-

que pretendemos advogar é que a

(aliás, a sua finalidade não é essa),

ticas dela decorrentes), encontra-se

responsabilidade social dos órgãos

mas a questão da respetiva sustenta-

aqui postulado um dever, sem que,

de comunicação, não obstante a sua

bilidade também não lhe é alheia. Si-

todavia, a discussão a este propósito

qualidade de empresas – ou, se se

multaneamente, é-lhes atribuída uma

esteja encerrada.

preferir, precisamente enquanto em-

finalidade política, que pode ser enun-

Cabe perguntar se as empresas

presas, cuja dimensão institucional

ciada como referente à fomentação do

têm, de factum et de jures, respon-

cria responsabilidades para com a

bom funcionamento democrático. Em

sabilidades em relação à sociedade

sociedade –, é uma responsabilida-

terceiro lugar, identificamos o garante

ou se a sua função está limitada aos

de direta, intrínseca e basilar, pelo

do direito à informação, reconhecido

interesses dos proprietários. No último

que, independentemente da relação

ética e politicamente na Declaração

caso, a ética pode ser acolhida na justa

que genericamente se estabeleça entre

Universal dos Direitos do Humanos,

medida em que servir esses interesses,

fins empresariais e responsabilidades

designadamente no artigo 19º, e cons-

tratando-se, portanto, de uma estraté-

sociais, essa relação será sempre de

titucionalmente, no caso português, no

gia de gestão optimizadora de recur-

implicação no caso dos media, o que

artigo 37º. Esta vertente dos media é

sos. Na realidade, como é menciona-

justifica o enfoque numa ética da res-

essencial para que a finalidade polí-

do por Michela Marzano, o discurso

ponsabilidade.

tica possa concretizar-se, na medida

sobre responsabilidade social e ética

em que uma cidadania ativa pressupõe

dos negócios permite aos chefes das

Informação, emancipação e

cidadãos informados. Já os fins em-

empresas, por um lado, precaverem-se

cidadania: a importância do

presariais devem ser colocados como

relativamente a movimentos sociais e

“olhar” sobre o mundo

mediáticos com custos elevados, e, por

A pergunta pelos fins dos media

outro, como notámos antes, agradar

coloca-nos diante de várias respostas,

à opinião pública (Marzano, 2008,

que não são excludentes entre si, mas

5 Seguimos em parte, na identificação dos fins, o discurso de Enrique Perales, a propósito dos fins concernentes aos meios audiovisuais (Perales, 1999, p. 15).

33


condição de possibilidade dos fins po-

Immanuel Kant no ensaio “Resposta à

(Laporta, 1999, p. 79). Nessa medida,

líticos e jurídicos; caso contrário, uma

pergunta: Que é o Iluminismo?”:

a informação considerada de interesse

empresa de comunicação não revelaria

público remete para um conjunto de cri-

diferença substancial relativamente a

“O Iluminismo é a saída do ho-

térios, dos quais destacamos, pelo seu

qualquer outro negócio. Acontece, po-

mem da sua menoridade de que ele

valor absoluto, ser útil para esclarecer

rém, que a função emancipadora dos

próprio é culpado. A menoridade

os cidadãos das escolhas relativas às

media impossibilita uma conceção es-

é a incapacidade de se servir do

áreas política, social, económica, re-

tritamente comercial. Por isso, mesmo

entendimento sem a orientação de

ligiosa, etc.; favorecer a participação

saindo fora do âmbito estrito da infor-

outrem. (…) Sapere aude!” (Kant,

na vida democrática; e ser de natureza

mação, a responsabilidade dos meios

1784, A 431, trad. cit., p. 11)

emancipadora (Bernier, 2004, p. 141). Ao colocarmos a ideia de emanci-

de comunicação social relativamente à formação dos cidadãos não deve ser

A emancipação, enquanto saída da

pação como núcleo definidor da tarefa

descurada. Neste sentido, e acompa-

menoridade, ou seja, a capacidade de

dos media, interessa-nos aprofundá-

nhando Francisco Laporta (1999, p.

pensar por si mesmo, exige conheci-

-la nos seus pressupostos e respetivas

84) na afirmação de que os media não

mento. Não há autonomia sem saber. E

consequências. Para tal, convocamos, o

refletem a realidade de forma passiva,

aqui radica a responsabilidade social

conceito de “espectador emancipado”,

construindo, antes, a realidade social,

dos media: são eles que transmitem

proposto por Jacques Rancière a par-

decidindo como a sociedade se perce-

as informações necessárias para que

tir da reflexão acerca da relação entre

be a si mesma, atribuímos um sentido

qualquer cidadão possa tomar as suas

espetáculo teatral (expressão utilizada

forte à ideia de construção da reali-

decisões (Saavedra, 1999, p. 130), num

pelo autor em sentido lato – inclui ação

dade social, porquanto consideramos

contexto social como aquele em que vi-

dramática, dança, performance, etc.) e

que esta (a realidade social) é, pelo

vemos, no qual os cidadãos são chama-

política (Rancière, 2008, p. 8), e que

menos em parte, resultado daquilo que

dos a deliberar e decidir. É neste sentido

consideramos adequada para pensar

os media são e dos constructos que

que Laporta afirma: “quando falamos de

a condição de recetor de informação,

por via dos mesmos se vão realizando.

sociedade democrática, estamos a falar

seja como espectador, seja como leitor

Sendo a sociedade uma mera abstra-

necessariamente da maximização da in-

ou como ouvinte.

ção derivada dos indivíduos, esses sim

formação numa sociedade deliberante”

6

com existência real, somos reconduzidos à questão da formação e emancipação dos mesmos. Não é despiciendo recuperar neste contexto as palavras de

Rancière começa por evidenciar dois pressupostos subjacentes à con-

6 “ […] cuando hablamos de sociedad democrática estamos hablando necesariamente de la maximización de la información en una sociedad deliberante.”

sideração de que ser espectador é um mal: olhar é o contrário de agir; olhar é o contrário de conhecer. Na


desconstrução destes antagonismos,

das imagens, funciona selecionando os

obra de Platão, em particular, e de

o autor questiona a oposição radical

seres falantes e raciocinantes, capazes

maneira explícita, no Fedro, onde se

entre ativo e passivo, bem como, a

de “desencriptar” o fluxo de informação

discute a identidade e a diferença en-

partir dessa oposição, a associação

que diz respeito às multidões anóni-

tre informação e conhecimento, e como

do olhar e da escuta à passividade. A

mas” (Rancière, 2008, pp. 142-143).

a primeira pode conduzir ao último

emancipação “começa quando se põe

É assim que o significado da palavra

(Serra, 2003, p. 12). É esta relação

em questão a oposição entre olhar e

emancipação vai ser apresentado como:

de identidade ou de diferença, de im-

agir”, na medida em que “o espectador

“desmantelar a fronteira entre os que

plicação ou de obstáculo, ou mesmo a

também age (…). Observa, seleciona

agem e os que veem, entre indivíduos e

factualidade de uma não-relação, que

compara, interpreta” (Rancière, 2008,

membros de um corpo coletivo” (Ran-

nos importa aferir, pelas implicações

p. 22). Esta doação de sentido impli-

cière, 2008, p. 31).

daí decorrentes.

cada na receção é a consubstanciação

A expectativa está, pois, em que

Assumido antes o pressuposto da

do “poder do espectador”, que traduz

aquele que é o recetor da informação,

informação como condição necessária

à sua maneira aquilo que percebe

não só esteja capacitado para agir,

de uma cidadania ativa, devemos agora

(Rancière, 2008, p. 27); é a reposi-

como seja já agente na qualidade de

considerar a compreensão do conceito

ção da igualdade, na medida em que

recetor/espectador. Um olhar sobre a

de informação nele envolvido. Antes

as oposições entre olhar e saber, olhar

realidade mostra-nos a benevolência

de mais, facilmente se compreende-

e agir, atividade e passividade estabe-

de tal expectativa.

rá, a partir de tal considerando, que

lecem “uma distribuição a priori das

se acresça o pressuposto relativo à

posições e das capacidades e incapa-

Excesso de informação,

natureza necessária da informação

cidades ligadas a essas posições. São

pouca espessura: como

como condição para o conhecimento.

alegorias encarnadas da desigualdade”

saber coisas nos torna

Rejeitamos, portanto, que entre uma

(Rancière, 2008, p. 21). É seguindo

ignorantes

e outro não haja relação. Ao mesmo

este raciocínio que num outro contexto,

O conceito de “sociedade da infor-

tempo, rejeitamos que a informação

escrevendo sobre “a imagem intolerá-

mação”, os respetivos pressupostos e

configure um obstáculo para o conhe-

vel”, Rancière aponta aos críticos da

os expectáveis efeitos, são há muito

cimento, como é sugerido na tese de

proliferação televisiva das imagens a

objeto de uma ampla discussão que

que a confusão entre ambos dificul-

subjugação ao ensinamento de que não

reflete perspetivas céticas, otimistas

ta a obtenção de conhecimento, pela

está a alcance de qualquer um a ca-

e prudenciais. Acompanhamos Pau-

cristalização do processo na vertente

pacidade de ver e falar: “o sistema da

lo Serra na tese de que o âmago do

meramente aquisitiva da informação.

Informação não funciona pelo excesso

problema se encontra já colocado na

Identificamos, antes, uma relação de 35


implicação, que afirma por si mesma

de “sociedade de informação” e, em

do conhecimento”. No entanto, não é

a diferença dos termos. Dito de outro

simultâneo, a pertinência do princípio

o caso.

modo, a informação apresenta-se-nos

da responsabilidade, no seguimento

como condição necessária, mas não

da teorização de Hans Jonas.

Richard Foreman, autor, encenador e teórico estadunidense, numa entrevis-

suficiente, do conhecimento, e, por ex-

Ocorre, porém, que, como correla-

ta ao jornal Público (de 29/04/2006,

tensão, da ação. É neste ponto que de-

to da dita “sociedade de informação”,

assinada por Joana Gorjão Henriques)

vemos um olhar atento à factualidade,

nos deparamos com um “excesso de

refere que na atualidade possuímos

o qual nos permitirá perceber em que

informação”, cujos efeitos nos apartam

toda a informação, mas não há profun-

medida, não havendo oposição lógica

de uma “sociedade do conhecimen-

didade na estrutura da personalidade;

entre olhar e conhecer ou entre olhar

to”. A questão, ao contrário do que

sabemos muitas coisas, mas de forma

e agir, não podemos, ainda assim, de-

a expressão parece pressupor, não é

superficial; tornámo-nos, segundo a sua

duzir do “olhar” nem o conhecimento

apenas de ordem quantitativa; é tam-

expressão, “pessoas-panqueca”. A ima-

nem a ação. Entenda-se por “olhar”,

bém qualitativa, na medida em que

gem é rica em significação e facilmente

neste caso, a receção de informação

tais categorias são interdependentes.

compreensível: pessoas sem espessura,

que nos permite ter um olhar sobre o

Num mundo em que cada vez há

que opinam acerca de muita coisa, por-

mundo, conhecê-lo, e nele e sobre ele

mais informação a circular, e num

que têm informação sobre muita coisa,

agir, seja essa receção feita por via da

tempo cada vez mais curto, continua

mas que conhecem muito pouco, por-

imagem, por meio da palavra escrita

a caber aos profissionais dos media,

que estão diminuídas na capacidade

ou através da palavra escutada.

em concreto aos jornalistas, o pa-

de reflexão, de atribuição de sentido,

Que a dita “sociedade da informa-

pel de transmissores da informação.

de crítica. Pessoas-panqueca correla-

ção” não corresponde a uma “socieda-

Diríamos até que o seu papel está

to, aditamos nós, de uma informação

de de conhecimento” é uma evidência.

acrescido de sentido e de responsa-

sem espessura, apartada do princípio

Também é uma evidência, já antes

bilidade, precisamente em função do

da responsabilidade e distraída da sua

referida, que a quantidade de infor-

contexto de diversidade e velocidade

razão de ser.

mação acumulada e a facilidade de

informativas. Havendo cada vez mais

O “excesso de informação” origi-

aceder à mesma aumentaram exponen-

informação a chegar-nos por via de

nou uma “informação como excesso”,

cialmente graças às novas tecnologias

profissionais da comunicação, respon-

direcionada para o imediato, o choque,

e à apropriação que os media delas

sáveis por dar a conhecer a realidade,

a simplificação, o maniqueísmo (Ser-

têm feito. Esta dupla condição – quan-

tornando-a compreensível para quem

ra, 2003, p. 199), na senda da con-

tidade e facilidade de acesso – revela

recebe a informação, o resultado pre-

quista de público. A informação da

o carácter adequado da designação

visível seria o da referida “sociedade

instantaneidade e da doxa adquiriu


características próprias do entretenimento, aprofundando o fosso entre o deontologicamente estabelecido e a prática. “A lógica é, agora, não a de publicitar a informação, mas a de fazer com que a informação se publicite a si própria, sob pena de não atrair os potenciais ‘clientes’” (Serra, 2003, p. 200). Assim, apela-se à emoção, em detrimento da reflexão; promove-se o envolvimento, em vez da distanciação; fomenta-se a adesão, ao invés da crítica. Tais práticas estão suportadas pelo tipo de informação prestado e pelo modo como é veiculado, representando o fator concorrencial, neste caso, um elemento agravante, pois não só os media do mesmo tipo concorrem entre si, como os de tipo diferente procuram conquistar para si públicos de outros órgãos de comunicação. Partilhamos, por isso, a

“A lógica é, agora, não a de publicitar a informação, mas a de fazer com que a informação se publicite a si própria, sob pena de não atrair os potenciais ‘clientes’” (Serra, 2003, p. 200)

leitor, e escolhe-se fazê-lo através da espetacularização da informação. São vários os exemplos de diluição do género jornalístico no esquema do entretenimento, desde o lugar de destaque atribuído aos fait divers por contraponto à secundarização de acontecimentos relevantes; passando pelo império do futebol nos vários serviços informativos; a passagem de informação em rodapé, durante os telejornais, dispersiva da atenção do espectador; até à exploração do sensacionalismo e do novelesco na construção de peças jornalísticas. A incapacidade daqui resultante de hierarquizar a informação recebida relaciona-se com a incapacidade de atribuição de sentido, num registo de aquisição de informação idêntico ao de qualquer outro bem de consumo

perspetiva da jornalista Clara Ferreira

rápido. Diferentemente do “espec-

Alves de que “vivemos em “overdose”

tador emancipado” de Rancière, no

de informação desnecessária e invasi-

espectador hodierno não se dissipa a

va como um tumor maligno” (Expresso,

oposição entre olhar e agir, porquanto

28/07/2008). O essencial e o acessório

o seu olhar está privado de observar,

foram subvertidos, e as consequências

selecionar, comparar e interpretar. Ora,

daí resultantes são gravosas, tanto do

ser-se incapaz de hierarquizar porque

ponto de vista individual quanto em

se é incapaz de atribuir um sentido tem

termos sociais. Impõe-se captar a aten-

como consequência imediata a indife-

ção do espectador, do ouvinte ou do

renciação, e como resultado mediato 37


a indiferença e a letargia. Não é, por

da sua diluição, porquanto reforça a

auto-reguladora nunca é demais subli-

isso, de espantar que as sociedades

ideia do seu impacto na construção da

nhar, verificamos que a normatividade

democráticas, que são, por essência,

realidade social. Age de tal maneira

nela vertida aponta para a emancipação,

deliberativas e decisórias, sejam, na

que os efeitos do teu trabalho sejam

e não para o seu contrário.

realidade, política e civicamente abs-

promotores de uma cidadania ativa e

O rigor, a exatidão, a independên-

tencionistas. E as opções jornalísticas

esclarecida poderia ser a formulação

cia, a integridade, e os demais valo-

não estão à margem desta realidade.

do imperativo da responsabilidade

res eleitos pelos próprios profissionais

para os jornalistas.

como deveres, são dotados não só de

O imperativo da

valor intrínseco, mas também de valor

responsabilidade

Conclusão

instrumental: são meios colocados ao

Ao propor o imperativo da res-

Não se pode afirmar que há uma

serviço do direito à informação, que

ponsabilidade como cerne de uma

espécie de impossibilidade lógica de

assiste a todos os cidadãos, e que

nova ética, Hans Jonas privilegiou

derivar conhecimento a partir da in-

transforma o direito de informar no

as consequências da ação e ressaltou

formação. Do mesmo modo, não há in-

dever de bem informar. Assim, a res-

o horizonte temporal como dimensão

compatibilidade entre ser espectador

ponsabilidade social dos media, e

essencial da deliberação. Ora, são,

e ser ator. O que verificamos não ter

do jornalismo em particular, não se

precisamente, estes dois aspetos que

colhimento é a concretização da expec-

configura contingencial. Bem sabemos

urge reconsiderar nas atuais práticas

tativa de que a informação capacite,

que estes estão hoje inseridos numa

jornalísticas: ter em consideração as

por si só, para a ação. Na verdade, é o

lógica de mercado, onde impera a lei

consequências associadas à forma de

conteúdo e a forma da informação que

da oferta e da procura. Porém, a in-

transmitir informação e ao conteúdo

determinam a respetiva dimensão eman-

formação não é um bem como outro

do que se transmite, sabendo que as

cipatória, em relação com o modo como

qualquer. Negociar com a informação

consequências se estendem temporal-

se gere a quantidade. Como vimos, as

é negociar o futuro da humanidade,

mente, e reconsiderar a relação com

implicações do excesso de informação,

para o bem e para o mal, e também

o tempo, na forma imediatista como

e da instantaneidade da seu tratamento

por essa razão falhar na função eman-

se produzem notícias e como se apela

e do seu consumo, revelam-se na in-

cipadora é falhar em termos absolutos

ao seu consumo.

capacidade de atribuição de sentido,

no que concerne à responsabilidade

A assunção de tal imperativo ba-

inviabilizando a emancipação enquan-

dos jornalistas. O olhar que nos é dado

liza, por si só, as práticas a promover

to destruição da fronteira entre os que

sobre o mundo tanto pode mostrar-

e impõe o reconhecimento da impor-

agem e os que veem. Ora, se atentarmos

-no-lo como ocultar-no-lo, e é nesta

tância do jornalismo face às ameaças

à deontologia jornalística, cuja natureza

dicotomia que se joga a condição de


cidadão emancipado e das sociedades

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h3LCV9Fv


Paulo Jorge dos Santos Martins pmartins@iscsp.ulisboa.pt Recebido em: 15/01/2018 | Aceite em: 11/05/2018

Universidade de Lisboa https://orcid.org/000-0001-6445-8115

O rigor como eixo central da atividade jornalística Accuracy as the cornerstone of journalistic activity https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_3

Resumo

Abstract

Este artigo discute a questão do rigor em

This article discusses the question of

jornalismo, considerado nas suas dimen-

accuracy in journalism, both in its tech-

sões técnica e ética, na perspetiva de o

nical and ethical dimensions, seeking to

reabilitar enquanto eixo central da prática

restore it as the central axis of this profes-

profissional. Para o efeito, introduz um

sional practice. To this purpose, a set of

conjunto de questões, a partir da concep-

questions is introduced, starting with the

tualização daquele princípio em instru-

discussion of the concept of accuracy in

mentos deontológicos. A saber: a verdade

ethical instruments. For example, journa-

jornalística e os instrumentos necessários

listic truth and the necessary instruments

para a alcançar; o cruzamento de fontes,

to achieve it; cross-checking sources, an

exercício que não deve esgotar-se no cha-

exercise that should not be limited to con-

mado contraditório; a liberdade de expres-

tradiction; freedom of speech and hate

são e os discursos de ódio; os diversos

speech; the different types of fake news;

tipos de fake news; os efeitos perniciosos

the pernicious effects of clickbait and a

do clickbait e um fenómeno que o autor

phenomenon described by the author as

designa de fast food noticioso, prejudi-

fast food news, which damages the effec-

cial ao efetivo cumprimento da missão do

tive fulfillment of the journalistic mission

jornalismo em sociedades democráticas.

in democratic societies.

Palavras-chave: Ética; deontologia;

Keywords: Ethics, deontology, accuracy,

rigor; liberdade de expressão; fake news.

freedom of expression, fake news.

41


Uma reflexão acerca das atuais

o público, condição de credibilidade

honestidade na apreciação e combate a

práticas jornalísticas tem forçosamen-

e de manutenção da confiança dos

especulações. No mesmo sentido, diver-

te de extravasar fronteiras nacionais,

consumidores de informação. Ora,

sos instrumentos deontológicos – como

suscetíveis de se tornarem espartilhos.

o princípio do rigor está vertido na

o código da Federação das Associações

Para evitar paternalismos, aos quais

generalidade dos códigos deontológi-

de Jornalistas de Espanha ou a Declara-

a Ética e a Deontologia são tantas ve-

cos e de ética. Embora sob diversas

ção de Princípios Sobre a Conduta dos

zes vulneráveis, e superar contextos e

formulações, não é um conceito vago.

Jornalistas subscrita pela Federação In-

constrangimentos culturais, passíveis

ternacional de Jornalistas em 1954, que

de perturbar a análise, propõe-se que

Accuracy is not simply a matter

ficaria para a história como “Declaração

a reflexão se centre no essencial. Isto

of getting facts right; when ne-

de Bordéus”, inserem o conhecimento

é: no adquirido mínimo, presumivel-

cessary, we will weigh relevant

da origem da informação como exigên-

mente partilhado em sociedades de-

facts and information to get at

cia resultante do compromisso com a

mocráticas.

the truth. Our output, as appro-

procura da verdade.

O primeiro princípio a convocar

priate to its subject and nature,

Poucos acolhem, todavia, a exce-

para a discussão é o rigor – considera-

will be well sourced, based on

ção prevista na Declaração de Direitos

do nas suas dimensões técnica e ética,

sound evidence, thoroughly tes-

e Deveres dos Jornalistas, assinada em

que em Jornalismo só podem ser enca-

ted and presented in clear, preci-

1971 por organizações profissionais

radas como indissociáveis. Sob pena

se language. We will strive to be

dos países membros da então Comuni-

de a primeira se tornar um exercício

honest and open about what we

dade Económica Europeia. À luz deste

mecânico, condenando a segunda a

don’t know and avoid unfoun-

dispositivo, conhecido por “Carta de

uma condição instrumental – ou, pior,

ded speculation. (BBC, 2017)

Munique”, é legítimo divulgar infor-

a desaparecer.

mações de origem desconhecida, des-

A proposta pode parecer desajus-

O código do operador público bri-

de que sob reserva, devidamente indi-

tada. Porquê discutir o rigor, de cuja

tânico de radiodifusão não é o único a

cada. Por poder abrir um “alçapão”, a

incorporação no quotidiano profissio-

associar rigor e verdade, mas é segura-

norma é discutível. O mesmo se diga

nal talvez nem duvidemos? Porque é

mente dos que enuncia, de forma mais

da inscrita no Guia de Deontologia da

necessário reabilitá-lo como eixo cen-

explícita, um método para assegurar a

Federação Profissional de Jornalistas

tral da atividade jornalística. A norma

veracidade das informações difundi-

do Québec (Canadá):

deontológica, de natureza autorregu-

das: ponderação e escrutínio de factos,

“Une rumeur ne peut être publiée

latória, é, em primeira instância, um

fundamentação, recolha de indícios só-

sauf si elle émane d’une source

compromisso dos jornalistas perante

lidos, verificação exaustiva – além de

crédible, et si elle est significative


et utile pour comprendre un événement. Elle doit toujours être identifiée comme une rumeur. Dans le domaine judiciaire, la publication de rumeurs est à proscrire”.

A exclusão de informações imprecisas, enganosas ou distorcidas é comum. O código do regulador britânico da Imprensa (Independent Press Standards Organisation) sublinha que a sua análise comporta títulos, sempre que não suportados pelo texto. O do Conselho de Imprensa suíço enquadra a questão do rigor na atitude de lealdade – perante as fontes e o público

O jornalista que cede à pressão da difusão imediata deixa-se levar por dois equívocos: o “exclusivo” como valor em si; a relevância disso para o público

ou significado, não transmitir informações irrelevantes, não enganar o leitor, consciente ou inconscientemente. Neste plano, é ainda mais imperativo o Código de Ética do Fórum de Jornalismo Argentino: a distorção deliberada jamais pode ocorrer. Compete aos jornalistas, na perspetiva do Conselho de Deontologia Jornalística da Bélgica, difundir informações devidamente verificadas: “Ils en vérifient la véracité et les rapportent avec honnêteté. Les journalistes ne déforment aucune information et n’en éliminent aucune essentielle”. O Expresso não autoriza os seus profissionais a divulgarem material “impre-

–, princípio fundamental da ativida-

ciso ou pouco rigoroso”, por induzir os

de jornalística. Daí que condene a

leitores em erro ou distorcer os factos.

distorção de documentos, imagens e

“Jornalismo não é ficção, pelo que os

sons e, mesmo, da opinião de prota-

dois níveis não devem misturar-se em

gonistas de notícias e determine que

nenhuma circunstância e o jornalista

sejam assinaladas montagens, bem

não pode inventar personagens, situa-

como informações não confirmadas.

ções ou declarações”, alerta o Código

Trata-se de elementares diligên-

de Conduta do semanário português.

cias, que não podem ser secundari-

“We devote our resources and our

zadas, por corresponderem ao que o

skills to presenting the fullest version

instrumento de Padrões e Ética do

of the truth we can deliver, placing the

The Washington Post carateriza como

highest value on information we have

tratamento jornalístico correto: não

gathered and verified ourselves”, prome-

omitir factos de grande importância

te o Código de Ética da Rádio Pública 43


Nacional, dos Estados Unidos, muito

intitulado “Just the facts”, Randall

os jornalistas tomem o seu lugar num

pormenorizado em matéria de rigor. O

Lane, um responsável editorial, asse-

contexto de mistura nada saudável,

operador compromete-se a exercer vi-

gurava que na revista norte-americana

porque de fronteiras difusas, entre

gilância constante, para evitar o erro,

a apresentação de um ponto de vista

diversas formas de comunicação.

sobretudo pelas potenciais repercussões

nunca prejudicou a factualidade dos

Perdida a condição de únicos

nos atingidos – “any falsehoods in our

artigos. Revelando que é dos poucos

gatekeepers, os jornalistas têm de

news reports can cause harm. But errors

meios de comunicação que recorre a

afirmar-se pelo vínculo ético asso-

that may damage reputations or bring

verificadores de factos – cerca de 25

ciado à sua assinatura, respeitando,

about grief are especially dangerous,

profissionais, que tudo escrutinam an-

em primeira linha, o rigor, sob pena

and extra precautions should be taken

tes da publicação – sublinhou: “It’s

de as suas mensagens se diluírem e

to avoid them” (National Public Radio,

the accuracy of reporting that grants

perderem coerência e inteligibilidade,

2012). Como meio de prevenção, propõe

the ability to make a strong, informed

num terreno partilhado com diferentes

mesmo uma checklist, para verificar o

opinion”1. Na aparente simplicidade, o

protagonistas. Não apenas do campo

rigor de nomes, citações, números e

enunciado coloca a questão no devido

da comunicação – da publicidade, do

cálculos.

lugar: são as opiniões que se ancoram

marketing, da comunicação empresa-

O The New York Times, que depo-

nos factos e não o contrário. Se não

rial ou política, cuja prática deriva de

sita nos redatores a responsabilidade

forem transmitidos com rigor, retirarão

intuitos comerciais, políticos ou outros

pela verificação do rigor da produção

fundamento e substância às opiniões.

– mas também cidadãos habilitados

noticiosa, alerta que se um leitor vir o

Em tempos de relativização da ver-

a produzir e, graças aos prodigiosos

seu nome escrito de forma errada, cer-

dade e de construção de realidades

avanços tecnológicos, a distribuir in-

tamente desconfiará do que quer que o

convenientes aos olhos de quem as

formação sem quaisquer restrições. E

jornal divulgue. O rigor é considerado

perceciona, o rigor é o instrumento

fazê-lo sob a capa protetora da liber-

pela Associação Canadiana de Jorna-

mais poderoso ao dispor dos jorna-

dade de expressão, a que naturalmente

listas um imperativo moral, que nem

listas – ou não tivesse o Jornalismo

têm direito, mas dispensado do respeito

prazos impostos por ciclos noticiosos de

como obrigação primeira, como sa-

por métodos e princípios jornalísticos,

24 horas, hoje a regra, podem afastar.

lientam Kovach e Rosenstiel (2005),

a começar pelos ético-deontológicos.

Rigor e rapidez de

a busca da verdade. O rigor assume

Os jornalistas estão a ceder, com

importância, acima de tudo, para que

demasiada frequência, à tentação de ig-

transmissão Numa edição de setembro de 2018 da Forbes, em artigo apropriadamente

norar o rigor, em nome do impulso para 1 Randall Lane, “Just the facts”, Forbes, 30-92018. Disponível em https://www.pressreader. com/usa/forbes/20180930/281668255848639.

serem os mais rápidos a transmitir a informação. Em agosto de 2018, o jornal


britânico Daily Express fez acompanhar

da notícia, ignorando que se for cons-

de sucessivos estudos empíricos, ainda

uma notícia sobre o ataque violento a

truído com base em falsidades, meias

que persista na cultura profissional.

uma mulher, a partir da fotografia ex-

verdades ou omissões, desfere um duro

Como salienta Waisbord (2018, p.

traída de uma rede social, mas de uma

golpe no prestígio do jornalista, even-

1871):

outra mulher que, embora com o mesmo

tualmente fatal para a confiabilidade

Truth-telling is a complex, dy-

nome, nada tinha a ver com o caso. Não

que deve cultivar. O segundo equívoco

namic process; truth is elusive,

foi feita qualquer tentativa de contacto,

consiste em acreditar que para o pú-

endlessly debated. What is new is

suscetível de desfazer o equívoco2. A

blico, atualmente sobrecarregado de

raising awareness about the con-

opção é tecnicamente incorreta e eti-

informação, disponível em múltiplos

sequences of relativism for journa-

camente arriscada, porque, conforme

veículos, é decisivo tomar conhecimento

lism and public life. It shows the

assinalam códigos como o da Sociedade

de um facto meio minuto antes – um

endurance of subjectivity and the

de Jornalistas Profissionais norte-ame-

minuto que seja – da concorrência.

diversity of epistemological norms

ricana, nem a velocidade nem o formato

A ânsia de ser o primeiro, sem ava-

justificam a imprecisão. Não é, contudo,

liar o efeito das precipitações, abre

um caso inédito: após a detenção nos

espaço a notícias de mortos que afinal

Muñoz-Torres, que refuta a ideia

Estados Unidos, em 2011, de Domini-

não morreram, erro que o diário por-

de objetividade, nem por isso conside-

que Strauss-Kahn, então diretor-geral

tuguês Público cometeu em setembro

ra o relativismo capaz de oferecer um

do FMI, por suspeita de abuso sexual,

de 2018, ao noticiar a morte de um

quadro conceptual adequado. Sustenta

também foi difundida, em França, uma

historiador. “Não tomámos a devida

mesmo que a valorização do relativis-

foto retirada do Facebook de uma mu-

consciência que notícias sensíveis

mo tem contribuído para que muitos

lher que em comum com a envolvida no

como estas, que afetam gravemente

jornalistas adiram à ideia de que não

incidente tinha apenas o nome.

and values.

a intimidade e os direitos de pessoas

é possível fornecer relatos verdadeiros

Jornalista que desvaloriza o rigor,

concretas e das suas famílias, exigem

sobre o que se passa no mundo. Por

cedendo à pressão da difusão imedia-

cuidados redobrados”, reconheceria

isso preconiza “a major rethinking of

ta, deixa-se levar por dois equívocos.

(Público, 30 de setembro de 2018).

the conception of truth, understood

O primeiro radica na convicção de que

as correspondence between mind and

o “exclusivo” constitui um valor em si

Objetividade e verdade

reality, in which both experience and

mesmo, independentemente do conteúdo

Falar de rigor é falar de verdade

reason play jointly a key role” (Muñoz-

– não forçosamente de objetividade, 2 Cf. https://www.ipso.co.uk/rulings-and-resolution-statements/ruling/?id=05679-18.

-Torres, 2012, p. 580).

paradigma clássico cuja validade pare-

Assumindo-se que a atividade jor-

ce ter deixado de resistir às investidas

nalística materializa uma construção 45


da realidade, resulta evidente que tal

discussão crítica e livre. (Campo-

operação se baseia na subjetividade. Os

nez, 2018, p. 22)

factos noticiosos são, portanto, avalia-

Falar de rigor é também falar de verdade – também de cruzamento de fontes, como meio mais fiável para a

dos em função de critérios insuscetí-

Esta arguta observação não isenta

atingir. A diligência, que extravasa o

veis de uniformização. Se não existem

os profissionais das suas responsabi-

plano meramente técnico, não deve ser

factos “quimicamente puros”, porque

lidades; inscreve-as, isso sim, no ter-

confundida com o chamado “contradi-

o conhecimento factual e a perceção

reno ajustado: o da democracia, onde

tório”, mecanismo essencial à eficácia

subjetiva se associam, é a honestida-

desempenham uma insubstituível

da Justiça num Estado de Direito. Nos

de do jornalista na sua interpretação

função.

tribunais, o cotejo de versões entre

que se justifica promover – melhor:

“Audience members do not always

acusadores e acusados destina-se a

que deve ocupar o seu legítimo lugar.

see fact checking as good journalism,

apurar a verdade material dos factos.

Não por acaso, o Código Deontológico

as evidenced by backfire effects in

Aos jornalistas, porém, pode não ser

português estabelece a exigência de

which a fact check strengthens mis-

isso – ou pelo menos só isso – que

“relatar os factos com rigor e exatidão

perceptions or increases support for

se pede.

e interpretá-los com honestidade”. Não

a politician caught in a lie” (Pingree

O enunciado do Código Deontoló-

por acaso, o da Associated Press exorta

et al., 2018, p. 3). Porém, o risco de

gico português é, a este respeito, parti-

os profissionais a colocarem no mesmo

ser mal compreendido não deve levar

cularmente feliz, porque esclarecedor,

plano rapidez, precisão e honestidade,

o jornalista a desistir. Por mais difí-

ao apontar como dever a audição das

bases da confiança na informação pro-

cil que seja alcançar a verdade, seria

partes “com interesses atendíveis no

duzida pela agência.

destrutivo para o Jornalismo deixar de

caso”. Ou seja: não forçosamente ape-

a tomar como meta.

nas quem está investido do poder de

De forma reforçada pela natureza própria da sua temporalidade e

The rejection of the possibility of

acusar e quem é objeto de uma acu-

das suas condições de produção,

truth means the denial of the uni-

sação ou está enredado numa suspeita

a objetividade e a verdade em jor-

ty and commonality necessary to

suficientemente grave para justificar a

nalismo são conceitos e realidades

determine whether ideas or news

sua conversão em notícia. Pode ser ne-

dialógicos, no sentido iluminista

are true or false. This is why truth

cessário, com efeito, consultar outras

e liberal em que a verdade e o erro

is forever unstable, disputed, chal-

fontes, para atingir a verdade – pelo

são realidades inextrincáveis de

lenged. Journalism’s ambition to

menos, a melhor versão da verdade

uma mesma narrativa, não poden-

be the arbiter of truth clashes with

disponível no momento, como defende

do ser dirimíveis pelo fogo e pela

the open-ended character of truth-

Carl Bernstein, um dos jornalistas do

espada, mas só alcançáveis pela

-telling. (Waisbord, 2018, p. 1872)

“caso Watergate”.


Para o efeito, importa, em certas circunstâncias, ir mais longe. Encetar diligências com vista a obter “provas”. Provas com as devidas aspas, já que em Jornalismo, mais corretamente, devem chamar-se indícios. O jornalista não dispõe – e é assim que deve ser – dos meios ao alcance da investigação policial. Não está habilitado a fazer

O microfone estendido acriticamente, cria campo fértil a manipulações

anteriormente – e no exame da autenticidade das fotos. Idêntica é a formulação constante das Diretivas para Jornalistas do Conselho Finlandês de Comunicação Social (Julkisen Sanan Neuvosto), enquanto a Associated Press estabelece um critério tão simples quanto eficaz: escolha de fontes em função do rigor da informação que prestam.

escutas telefónicas, vigilâncias, inter-

A multiplicação de fontes, desde

rogatórios ou perícias. Se se considera

que ofereçam fiabilidade, surge em

em condições de difundir uma peça

diversos códigos como condição de

de denúncia de condutas ilícitas, pre-

pluralismo. Para tornarem as histórias

figurando suspeitas sérias, é porque,

mais rigorosas, a Rádio Pública Nacio-

em boa fé, formou a convicção de que

nal norte-americana incentiva os seus

reuniu indícios suficientes. O princípio

jornalistas a procurarem outras perspe-

ético da boa fé guia a prática profis-

tivas: “We tell stronger, better-informed

sional, atento ao direito do jornalista a

stories when we sample a variety of

agir de acordo com a sua consciência,

perspectives on what we’re covering”

com a correlativa responsabilização.

(National Public Radio, 2012). Enquanto a Declaração de Deve-

As fontes nos códigos

res e Direitos do e da Jornalista do

Regressemos à problemática das

Presserat, Conselho de Imprensa suí-

fontes, com vista a analisar de que for-

ço, recusa a conversão em notícia de

ma os códigos éticos as enquadram na

acusações “anónimas e gratuitas”, o

atividade jornalística. A recomendação

jornal português Público admite regis-

do Conselho de Imprensa sueco consiste

tar acusações de terceiros. Contudo,

na adoção de uma atitude crítica, con-

determina que seja garantida aos acu-

substanciada na verificação cuidada de

sados a exposição de pontos de vista

factos, à luz das circunstâncias – mes-

em pé de igualdade e só as publica

mo que tenham sido tornados públicos

quando obtém provas ou “quaisquer 47


outros elementos” que consolidem a convicção de veracidade. O exercício de contrastar fontes, que os códigos português e espanhol contemplam expressamente, é tomado no Código de Ética da Sociedade Americana de Editores de Jornais como garantia de que todos os lados são apresentados de forma justa, o que

O fenómeno do mimetismo promove visões acríticas da realidade

uma questão de método – dir-se-ia de processo –, apesar de o método não ser de todo negligenciável, em Jornalismo. É bem mais do que isso, é a responsabilização do jornalista pelas notícias e reportagens cuja autoria assume. Nem todas as versões são verdadeiras e, caso constate que se revelam contraditórias entre si, impõe-se que faça o que está

implica tanto a remoção de quaisquer

ao seu alcance para excluir as falsas.

preconceitos, como a disponibilidade

Limitar-se a reproduzir versões opos-

para conceder ao acusado a oportuni-

tas, sem cuidar de apurar da sua vera-

dade de se defender. Porém, a diversi-

cidade, significa violar o compromisso

ficação de fontes não pode aprisionar

com o público. É arriscado afirmar que

o jornalista. Conceder aos cidadãos

alguém mente? Será, se o jornalista não

tempo para se pronunciarem sobre in-

estiver seguro disso. Mais arriscado é

formações negativas é uma obrigação

deixar-se instrumentalizar ou servir,

que o jornalista não deve menosprezar.

ainda que involuntariamente, de câ-

Fazer depender de uma resposta a di-

mara de eco de mentiras.

vulgação dos factos é uma armadilha em que não pode cair.

Não é necessário sobrepor a ética individual à profissional para reconhe-

Sendo certo que, no tratamento de

cer como ilegítima a equiparação de

factos e acontecimentos, o microfone

discursos racistas ou de ódio aos que

estendido, acriticamente, cria campo

promovem direitos humanos. É preci-

fértil a manipulações, também deve

samente esta problemática, também

salientar-se que reduzir o cruzamento

merecedora de ampla reflexão, que

de fontes a uma dimensão ritualizada

White introduz no mais recente arti-

é um fator de distorção do modelo de

go publicado pela Rede de Jornalismo

funcionamento que o jornalista é ins-

Ético. Pertinentemente, interroga-se:

tado a respeitar para cumprir a sua

“How do we stem the flow of hate-

missão. Não se trata exclusivamente de

-speech, propaganda and malicious


lies without endangering free spee-

até, erros na apreciação de factos. Nestas

comunicacional de acentuada concor-

ch?” (White, 2018, p. 5).

circunstâncias, é de imediato sacrificado

rência, grande parte dos órgãos de co-

Faz sentido inserir esta proble-

o rigor, porque qualquer forma de dis-

municação social apresenta a mesma

mática no domínio da liberdade de

criminação o compromete. Não faltam

leitura de factos e acontecimentos. Se-

expressão, visto que é um direito e,

exemplos, como a conversão de “bairros

guir a tendência dominante, na seleção

simultaneamente, um compromisso

problemáticos” em notícia, só por serem

como no tratamento noticioso, é mais

deontológico dos jornalistas. No en-

portadores dessa classificação estigma-

confortável. Contrariá-la cria receios

tanto, não há resposta cabal para a

tizante, ou a revelação da nacionalidade

de isolamento e obriga a justificar as

pergunta de White – tanto mais que,

de delinquentes, sem justificação válida.

opções. Se a isto se juntarem preocu-

sem veículo de difusão, a liberdade de

A journalist may be overly com-

pações de natureza comercial – ale-

expressão não se consuma. Atrevemo-

mitted to a predetermined con-

gadamente, o público-alvo, medido ou

-nos, contudo, a sustentar que a receita

clusion such that even contrary

imaginado, privilegia interpretações

será encontrada no domínio da ética,

evidence does not sway the final

consensuais e reage mal às disruptivas

ou não será encontrada. Desde logo,

news report and focus. This over-

– maior é a tendência para a imitação.

cumprindo o que se exige de um jorna-

commitment potentially leads to

lista: que atue como mediador. Mas, ao

distortion or inaccuracy (Chris-

O mimetismo é aquela febre que se

mesmo tempo, que adote uma atitude

tian, 2013, p. 163).

apodera dos media (sem distinguir

de transparência e de prestação de

suportes) e que os empurra, com a

contas ao público – reconhecendo er-

Alguns estudos demonstram que

urgência mais absoluta, para co-

ros, expondo fragilidades, dando conta

o risco identificado por este autor é

brir um acontecimento (qualquer

de pressões, externas ou internas.

real – e tanto mais agravado quanto

que ele seja), com o pretexto de

Como assinalam Fiske e Taylor,

maior for a relutância (e até indisponi-

que outros media – e especialmente

“categories describe our expectations

bilidade) dos jornalistas em testarem

os media de referência – lhes dão

about, for example, people, entities, or

hipóteses suscetíveis de pôr em causa

uma grande importância. Esta

social groups… Categories represent

as suas perceções.

imitação delirante, levada ao ex-

knowledge about a concept; sometimes

tremo, provoca um efeito de bola de

termed a schema” (Fiske & Taylor, cita-

Os riscos do mimetismo

neve e funciona como uma espécie

do em Christian, 2013, p. 162). Rotinas

Neste plano, o fenómeno do mi-

de autointoxicação: quanto mais

profissionais cristalizadas podem intro-

metismo não pode ser ignorado, pela

os media falam de determinado

duzir perniciosas categorizações, aptas

reprodução de visões acríticas da rea-

assunto, tanto mais eles se con-

a acolher preconceitos, estereótipos e,

lidade que propicia. Num ambiente

vencem, coletivamente, de que esse

49


assunto é indispensável, central,

Alinhar com a maioria pode ser

Democratically engaged journa-

capital, e que é necessário dar-lhe

pernicioso noutro plano. Na cober-

lists have a dual commitment.

ainda mais cobertura, dedicando-

tura de crimes hediondos, a ética

They are committed to impartial

-lhe mais tempo, mais meios, mais

impõe aos jornalistas que não contri­

methods as a means to their par-

jornalistas. (Ramonet, 1999, 20)

buam para propagar pulsões popu-

tial commitment to egalitarian

lares de vingança, climas justicei-

democracy. They commit them-

O facto de o diagnóstico de Ramo-

ros que se alimentam de emoções

selves to holistic objectivity – to

net ter sido feito há duas décadas de-

ou julgamentos na praça pública.

rational and objective methods for

monstra que o mimetismo não é uma

O respeito pelo princípio da presun-

deciding what to publish and how

nuvem passageira. Pode até afirmar-

ção da inocência, comum aos ins-

to persuade. They are motivated

-se que se transformou em método,

trumentos deontológicos, não deve

to rational passions. (Ward, 2019,

com novos contornos. Atualmente, em

depender da natureza do crime ou

p. 42)

grande parte dos meios de comuni-

do estatuto do suspeito.

cação já não são afetados mais meios

Os jornalistas estão vinculados à

É, portanto, suposto que defen-

materiais e humanos à cobertura de

imparcialidade e à isenção, mas não à

dam o território da sua intervenção.

temas considerados incontornáveis

neutralidade, muito menos à passivida-

Cumpre-lhes travar o passo a quem

porque elevados a esse estatuto pelo

de. Constitui uma violação ética equi-

deliberadamente quer fazer entrar a

conjunto dos media. Ocorre, apenas,

parar o conhecimento científico conso-

propaganda, travestida de manifesta-

uma reprodução, tão instantânea

lidado a opiniões não fundamentadas,

ção de opinião, pela porta do Jorna-

quanto possível. Sem cuidados de ve-

por exemplo no domínio das alterações

lismo. Cumpre-lhes resistir a quem

rificação e confirmação – e, frequen-

climáticas, em nome da audição de po-

os quer converter em transmissores

temente, sem identificação do concor-

sições opostas. Sem ignorarem que essa

de mensagens discriminatórias de

rente que transmitiu a notícia. Como

realidade existe, os jornalistas devem

qualquer natureza, ou a quem aposta

se a simples multiplicação de versões

inibir-se de contribuir para a difusão de

no uso dos media para instigar à des-

iguais confirmasse a sua veracidade,

propostas a favor da pena de morte ou da

truição das bases das democracias.

sendo uma forma de legitimação. Não

expulsão de estrangeiros do território.

Cabe-lhes emprestar sentido ao real

é e tem um efeito evidente: sonega aos

Sem desvalorizarem a pressão migra-

e ajudar leitores, espetadores ou ou-

cidadãos a oportunidade de acederem

tória, devem denunciar as falácias em

vintes a separar o trigo de joio. Uma

a diferentes perspetivas. Vale lembrar

torno da suposta “invasão da Europa”

conduta profissional que reclama a

que o pluralismo também é, no campo

por migrantes ou do “roubo” de postos

ousadia de denunciarem as “verdades

jornalístico, um valor deontológico.

de trabalho aos europeus.

alternativas” como mentiras.


Mainstream journalism needs to be

proporcionando-lhes uma escala muito

homicídio do cronista social Carlos

defended not only against claims

maior. As redes sociais servem-lhe de

Castro, uma tela de conversas dele

that it is equivalent to fake news,

instrumento, mas o problema é mais

com o autor do crime, no Facebook

but also against claims that it is

vasto. Quem quer propagar fake news

(Sol, 14 de janeiro de 2011).

equivalent to partisan news. This

percebe que os meios de comunica-

Tudo isto é fast food noticioso; nada

does not require arguing that

ção tradicionais – ou as plataformas

disto é Jornalismo, embora queira fa-

unintentional bias never occurs

online a eles vinculadas – são muito

zer parecer que é, como resulta de tex-

or that mistakes are never made.

mais eficazes.

tos promocionais de marcas ou empre-

It simply requires insisting that the

As fake news encontram no que

sas, disfarçados de reportagens. Este

press is trying to be the impartial

pode designar-se como fast food noti-

é um terreno deliberadamente híbrido

referee of political facts that de-

cioso o ambiente propício à sua repro-

– tão híbrido que Ikonen, Luoma-aho

mocracy needs it to be. (Pingree

dução sem limites. Notícias difundidas

e Bowen (2017) já admitem que só um

et al., 2018, p. 12)

online que pouco mais são do que tí-

código deontológico com contributos

tulos, vazias de conteúdo jornalístico

das diversas profissões da comunica-

Embora formulada a partir de uma

– ou, pior, elaboradas em tom de slo-

ção pode assegurar transparência ao

análise ao atual clima político-mediá-

gan, mais ou menos sensacionalista.

“conteúdo patrocinado”. É que mesmo

tico nos Estados Unidos, decorrente da

Fotografias ou vídeos produzidos por

com identificação clara nem sempre

eleição do presidente Donald Trump,

cidadãos que entram no circuito digi-

os consumidores conseguem distinguir

a proposta destes autores afigura-se

tal sem a mínima verificação, sequer,

conteúdo editorial de publicitário (van

válida noutras latitudes. O que está

de autenticidade, especialmente em

Reijmersdal et al, 2005).

em causa, efetivamente, é defender o

situações de calamidade natural e

Todas as formas de minar a con-

Jornalismo, na exata medida em que

terrorismo – em 2013, espalharam-se

fiança nos jornalistas minam a con-

o seu papel primordial consiste em

pelas redes sociais suspeitas infunda-

fiança na democracia. O pior é quando

satisfazer o direito dos cidadãos à

das sobre os bombistas da maratona

eles próprios a hipotecam, ao dispu-

informação.

de Boston, rapidamente absorvidas por

tarem, nas redes sociais, uma compe-

órgãos de comunicação tradicionais

tição que não tem de ser sua. A tão

Ambiente propício

(BBC News, 19 april 2013). Informa-

sedutora difusão viral esconde perigos

a fake news

ção – quantas vezes privada e até ín-

de que nem sempre terão consciên-

Não sendo um fenómeno novo, as

tima – extraída de redes sociais, como

cia. As partilhas rápidas, que tanto

fake news adquiriram dimensão graças

sucedeu em 2011, quando o semaná-

entusiasmo despertam, empurram

a tecnologias que aceleram a difusão,

rio português Sol reproduziu, após o

um desmentido para uma corrida, 51


sem perspetivas de sucesso, atrás da

assegurar receitas financeiras, mas, a

processo, em curso, de colonização do

mentira ou da difamação. A hipótese

prazo, tende a afastar o público.

Jornalismo pela publicidade, aprovei-

de a informação original ser corrigida

Porque aposta na emoção e, até, no

tando a janela de oportunidade aberta

junto de todos os destinatários é nula.

suspense, o clickbait não é compatível

pelos problemas de sustentabilidade

Se mal há, está feito. Não é possível

com os valores éticos do Jornalismo.

económica das empresas de média.

reparar os danos causados, por exem-

Remetendo, objetivamente, para o

plo na esfera da reputação de pessoas

entretenimento, privilegia artifícios

ou instituições.

comunicacionais característicos da

Conclusões

O fast food noticioso desenvolve-

publicidade e usa factos noticiosos

O Jornalismo não se esgota no

-se neste sistema avesso a filtros e a

apenas como instrumento de estraté-

exercício de tornar público o que não

moderações. Quem busca informação

gias comerciais. Não se pense que só

é conhecido, nem consiste em revelar

por esta via, dispensa-se de a anali-

os formatos sensacionalistas recorrem

o que está em segredo simplesmente

sar criticamente. A “recompensa” não

ao clickbait. Por moda ou ausência de

porque está em segredo. “Disciplina

consiste em ficar mais informado sobre

alternativa, já se estendeu a órgãos de

de verificação”, como anotam Kova-

determinado assunto, mas em fazer

comunicação que se apresentam como

ch e Rosenstiel (2005), pressupõe a

funcionar um circuito que se autoali-

sendo de referência.

aplicação de critérios de seleção his-

menta. Como, aqui, o importante é o

“O caça-clique não é jornalismo.

toricamente consolidados, de forma a

“recebi-passei”, a informação jorna-

Ele não formaliza um hibridismo

excluir o que não preenche os requi-

lística não tem valor autonomamen-

de linguagem, como já vivencia-

sitos de interesse público. E implica

te, porque não logra distinguir-se da

mos em outros momentos, inclusive

uma avaliação suplementar, com dois

restante.

na apresentação de conteúdos, ele

objetivos: perceber o que de relevante

Sobre o clickbait e os seus per-

é um produto da publicidade. Não

possa existir no que é interessante; e

niciosos efeitos, começa a surgir re-

está preocupado em informar, mas,

tornar interessante o que é conside-

flexão, porque já se travam acesos

exclusivamente, em atrair (vender)”,

rado relevante para os cidadãos, por

debates. Produzir informação tendo

sustentam Bueno e Reino (2018, p.

influenciar a sua vida ou fundamentar

o número de cliques em mente é um

701). Para estes autores, o único ob-

a tomada de decisões conscientes.

passo para o sensacionalismo, quer

jetivo é atender aos interesses do mer-

na escolha dos assuntos a abordar,

cado, ainda que “preterindo ou mesmo

Both reports are interpretations,

quer no seu tratamento. Alicerçar pla-

desacreditando alicerces da redação

not simply recitations of “ just the

nos de negócio com base no número

jornalística”. O clickbait emerge, as-

facts” The journalists select the

de visualizações pode, no imediato,

sim, como fator de consolidação do

facts they deem most important;


they choose the story angle, they

à difusão. Rigor e velocidade de di-

Referências bibliográficas

choose which sources and which

vulgação sempre foram valores funda-

Allmänhetens Pressombudsman-Pressens

quotes to include, and they decide

mentais ao bom exercício profissional.

Opinionsnämnd (2006). Code of

that certain claims are questiona-

Mas a pressa de tornar públicos factos

Ethics for Press, Radio and Television

ble. They interpret the event accor-

noticiosos – se remover a verificação –

in Sweden. Retirado em dezembro

ding to the point of their practice,

e o mimetismo – ao eliminar o sentido

de 2018 de https://po.se/about-the-

the journalist styles and protocols

crítico – não são compatíveis com a

-press-ombudsman-and-press-cou-

that shape their work and writing,

função social do Jornalismo.

ncil/code-of-ethics-for-press-radio-

and their interpretation of what is significant. (Ward, 2019, p. 43)

Procurámos, ao mesmo tempo,

-and-television-in-sweden/.

avaliar em que medida o tratamen-

American Society of Newspaper Editors

to jornalístico técnica e eticamente

(2002). Code of Ethics. Retirado em

Consciente de que em Jornalismo

adequado está a ser posto em causa,

dezembro de 2018 de https://www.

a especulação não pode ter lugar,

por efeito de fenómenos como a desin-

asne.org/.

Ward insiste em princípios básicos

formação. Sendo o rigor e a verdade

Associated Press (2005). Statement of

da atividade: enquadramento, contex-

indissociáveis, o cruzamento de fontes

News Values and Principles. Reti-

tualização, explicação, interpretação.

apresenta-se como instrumento incon-

rado de https://www.ap.org/about/

Ingredientes que não se compadecem

tornável para os assegurar. Contudo,

news-values-and-principles/ em

com dois parágrafos de texto e uma

o compromisso com a democracia não

dezembro de 2018.

imagem, com a intenção de corres-

reclama dos jornalistas neutralidade,

BBC (2017). Code of Conduct. Retirado

ponder ao presumível – e nunca pro-

nem na liberdade de expressão cabem

de https://www.bbc.co.uk/about-

vado – interesse dos consumidores de

a distorção da realidade, a manipula-

thebbc/insidethebbc/howwework/

informação por notícias cada vez mais

ção ou discursos de ódio.

policiesandguidelines/codeofcon-

pequenas (tão pequenas que chegam a caber num tweet).

duct.html em dezembro de 2018. BBC News (19 april 2013). Boston bom-

Neste artigo, encetámos a análi-

bing: How internet detectives got

se de códigos deontológicos e de éti-

it very wrong. Retirado de https://

ca com o objetivo de perceber quão

w w w. bb c.c om /new s /te ch nolo -

importante é o rigor em Jornalismo.

gy-2221451 em abril de 2019.

Apesar da diversidade de leituras,

Bueno, T. C. & Reino, L. S. A. (2018).

tais dispositivos atribuem-lhe centra-

Entre a tabloidização e o teaser pu-

lidade, em especial no que concerne

blicitário: uma análise dos títulos

53


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Público (30 de setembro de 2018). “PÚ-

mixtures of advertising and editorial

BLICO noticiou erradamente a

content in magazines. Journal of

55



Suzana Cavaco scavaco@scavaco.com

Recebido em: 16/01/2018 | Aceite em: 01/05/2018

Universidade do Porto https://orcid.org/0000-0001-8129-8555

Confidencialidade da fonte em jornalismo: perspetivas morais Source confidentiality in journalism: moral perspectives https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_4

Resumo

Abstract

O segredo profissional é um dos princípios

Professional secrecy is one of the most

mais evocados nos códigos de conduta dos

evoked principles in journalistic codes

jornalistas. Porém, a proteção das fonte

of conduct. However, source protec-

é uma questão relativamente controver-

tion is a relatively controversial issue.

sa. Uma das perspetivas defende que o

One perspective argues that it is the

dever do jornalista é não delatar a fonte

journalist’s duty to never disclose a con-

confidencial mesmo em face de exigências

fidential source even when facing legal

legais.

requirements. This article proposes to

Este artigo propõe-se analisar o princípio

analyze the principle of professional se-

do sigilo profissional enquadrando-o na

crecy from the perspective of Laurence

teoria de desenvolvimento moral de Lau-

Kohlberg’s moral development theory.

rence Kohlberg. Identifica perspetivas

Resorting to content analysis, the ar-

acerca da confidencialidade das fontes

ticle identifies current perspectives on

em códigos deontológicos nacionais e su-

source confidentiality in national and

pranacionais dos jornalistas, recorrendo à

supranational codes of conduct for jour-

análise de conteúdo. Tem em consideração

nalists, including considerations on the

apreciações sobre o tema feitas noutros

topic by different mechanisms of media

mecanismos de media accountability em

accountability in Portugal: news ombu-

Portugal: provedores do leitor e Conselho

dsmen and the Ethics Council of the

Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

Journalists’ Union.

Palavras-chave: Jornalismo; fontes

Keywords: Journalism; confidential

confidenciais; segredo profissional; de-

sources; professional secrecy; moral de-

senvolvimento moral.

velopment.

57


A relação fonte/jornalista envolve um jogo de persuasão permanente (Santos, 1997). A organização e a capacitação discursiva das fontes interessadas, que por meio dos media agem no mundo e interferem na atualidade, evoluíram nas últimas décadas, constituindo não só uma “revolução”, como também “uma riqueza democrá-

A credibilidade e a fiabilidade são essenciais ao valor de uso do jornalismo

confidencialidade a seu favor, como explica Vasco Ribeiro que reconhece que a crescente sofisticação das fontes institucionais tem acarretado riscos acrescidos à atividade jornalística (2015). Um artigo político de 1340 palavras publicado no Liberation contendo 11 fontes anónimas, mereceu a seguinte crítica de Alice Antheaume

tica e um direito de cidadania” (Cha-

(2016): “É impossível saber, de fac-

parro, 2001, pp. 29-30). Mas, o jor-

to, se são 11 fontes ou apenas uma

nalismo investigativo que se proponha

pessoa. Por exemplo, “o Governo”,

desocultar as “zonas-sombra da socie-

“alguém próximo do presidente”, “um

dade ou das instituições” e “transfor-

assessor” podem ser a mesma pessoa.”

mar em notícia aquilo que poderosos

Valer-se com demasiada frequên-

interesses pretendem manter secreto”

cia de um instrumento que deveria

“não conta com a benevolência nem

ser excecional indicia um jornalismo

com a colaboração das fontes oficiais”

preguiçoso e promíscuo, potenciando

(Mesquita, 1994, p. 388).

os riscos de desresponsabilização da

Para cumprir o seu duplo papel em

fonte. A ingenuidade e displicência

democracia de porta-vozes da opinião

estão na origem de muitos erros evitá-

pública e de vigilantes do poder polí-

veis. O jornalista não é um estenógrafo

tico (Traquina, 2002), os jornalistas

(Okrent, 2005), nem marioneta/fanto-

têm recorrido a fontes confidenciais.

che ao serviço de interesses alheios.

Todavia, como afirma Byron Calame

A luta por ser o primeiro (em vez de

(2005, s/p), “fontes confidenciais po-

ser o melhor) para vencer a concor-

dem ser tanto uma benção quanto uma

rência é má conselheira, deixando o

maldição para o jornalismo – e para

jornalista mais vulnerável a manipu-

os leitores.”

lações várias. “Muitas vezes, os que

Por um lado, faz parte da ativida-

manipulam fazem-no tanto melhor

de de spin doctoring usar os graus de

quanto mais manipulados são e quanto


mais inconscientes estão desse facto”

New York Times que, na sequência

2017 da UNESCO, a instituição da

(Bourdieu, 1997, p. 8).

de uma série de irregularidades co-

confidencialidade da fonte enfren-

Por outro lado, a fraude jornalís-

metidas por Jayson Blair, reviu um

ta riscos crescentes de erosão com

tica é uma ameaça que nem jornais

conjunto de procedimentos internos

o aprofundamento da era digital e

de referência como o The Washington

e nomeou um Provedor dos Leitores,

que podem constituir uma ameaça

Post, em 1980 (caso Janet Cooke ), ou

Daniel Okrent. Este exortou para o

à sustentabilidade do jornalismo in-

o Der Spiegel mais recentemente, em

uso singular da fonte anónima nos

vestigativo (Posetti, 2017).

2018 (caso Claas Relotius2) estão imu-

seguintes termos:

1

nes, envolvendo jornalistas premiados a invocar fontes fictícias.

Este artigo propõe-se analisar o princípio do sigilo profissional, enqua-

(...) eu sou a favor de uma cultura

drando-o na teoria de desenvolvimen-

O arrivismo profissional desafia

da redação que possa ser simboli-

to moral de Laurence Kohlberg. Para

os editores a serem mais vigilantes.

zada por uma nova decoração de

tal, identifica perspetivas acerca da

Em 2005, o diário português Público

parede. Imagine uma pequena cai-

confidencialidade da fonte em códi-

na revisão de 2005 dos “Princípios

xa com uma porta de vidro; atrás

gos deontológicos nacionais e supra-

e normas de conduta profissional”,

do vidro, um certificado com as

nacionais dos jornalistas, recorrendo

que integram o seu Livro de Estilo,

palavras “autorização para usar

à análise de conteúdo.

estipulou entre outros que os editores

fonte anónima”. Um pequeno mar-

O corpus de análise é constituído

deste jornal “podem solicitar aos jor-

telo estaria pendurado na caixa

por 21 códigos: 16 da Europa Oci-

nalistas que lhes revelem a identidade

e um letreiro a avisar: “Quebrar

dental, dois da América do Norte; e

das fontes anónimas que utilizam nos

o vidro em caso de emergência”

três supracinacionais (Quadro 1). Rei-

seus textos”. Fê-lo inspirado no The

– uma emergência não para os

no Unido e Irlanda seguem o mesmo

jornalistas ou editores, mas para

código: o da NUJ (National Union of

os leitores. (Okrent, 2005)

Journalists). Os códigos supranacio-

1 Janet Cooke, do Washington Post, foi obrigada a devolver o Prémio Pulitzer depois de se descobrir que o protagonista da sua reportagem – uma criança de oito anos viciada em heroína – não passava de uma invenção da jornalista. 2 Em 2018, descobriu-se que Claas Relotius – detentor de vários prémios, de entre os quais o título de repórter do ano quatro vezes – inventara factos, lugares, citações e personagens em quase dezena e meia de reportagens publicadas na revista Der Spiegel.

nais que integram o corpus são: DeA credibilidade e a fiabilidade

claração da UNESCO (International

são essenciais ao valor de uso do

Principles of Professional Ethics in

jornalismo. O recurso adequado/

Journalism), Declaração de Munique

justo ao segredo profissional de-

(Declaration of the Rights and Duties

veria ser palavra de ordem neste

of Journalists) e Código de Bordéus

tempo complexo que vivemos, em

(IFJ Declaration of Principles on the

que, como alerta um relatório de

Conduct of Journalists). 59


Quadro 1. Códigos de conduta dos jornalistas: Corpus da análise**

* versão em inglês disponibilizada pelo EthicNet; ** consultado em outubro de 2018


A escolha dos códigos segue a

com Espanha, França, Itália, Grécia.

da confidencialidade da fonte nos

classificação dos sistemas de media

Ao Modelo Liberal pertencem: Reino

códigos de conduta, auscultamos al-

de Hallin e Mancini (2004) que con-

Unido, Irlanda, Canadá e EUA. Ao

gumas posições assumidas sobre o

finam o estudo a 18 países da Europa

Modelo Corporativista Democrático:

tema noutros mecanismos de media

Ocidental e da América do Norte, di-

Noruega, Suécia, Finlândia, Holanda,

accountability em Portugal, como o

vididos por caraterísticas comuns em

Suíça, Bélgica, Dinamarca, Áustria e

Conselho Deontológico do Sindicato

três modelos:

Alemanha. Apesar da diferenciação

dos Jornalistas e o provedor do leitor,

estar a diminuir, graças à globalização

atendendo a que o primeiro tem um

• Modelo Liberal (ML): caraterizado

e à comercialização dos media (Hallin

alcance sobretudo interno, enquanto

por um domínio relativo dos me-

& Mancini, 2004); e apesar de não

o segundo medeia jornalistas e seus

canismos de mercado e dos media

serem capazes de explicar alguns dos

leitores.

comerciais e por pouca intervenção

resultados mais impressionantes do

estatal no setor dos media;

estudo da MediaAcT – Media Accoun-

Desenvolvimento Moral na

• Modelo Corporativista Democrá-

tability and Transparency in Europe,

perspetiva de Kohlberg

tico (MCD): caraterizado por uma

uma recente investigação comparada

coexistência histórica de media

sobre media accountability na Europa

O desenvolvimento moral tem sido

comerciais e media vinculados a

contemporânea (Fengler et al., 2014;

alvo de abordagens teóricas distintas.

grupos sociais e políticos organiza-

Eberwein et al., 2017), os modelos de

Optamos pela perspetiva cognitivo-

dos, e por um papel relativamente

sistema de media e culturas do jorna-

-desenvolvimentista (ou estrutural-

ativo mas legalmente limitado do

lismo de Hallin e Manici mantêm-se

-construtivista) por ser “a que propõe

Estado;

como uma ferramenta útil de análise.

critérios mais racionais de moralidade;

• Modelo Pluralista Polarizado

Todavia, tal como em Hallin e Man-

a que mais assume a ideia de desenvol-

(MPP): caraterizado pela inte-

cini (2004), o nosso estudo incide so-

vimento da pessoa; e a que está mais

gração dos media em partidos

bre um número reduzido de países e

comprometida com a transformação

políticos, por um desenvolvimen-

apenas considera um dos códigos de

das instituições em sociedades justas

to histórico mais fraco dos media

cada país, o que limita o alcance das

e boas” (Lourenço, 2002, p. 38).

comerciais, e por um forte papel

conclusões.

Para Lawrence Kohlberg (1985; 1982;1992; Kohlberg et al., 1997; Lou-

interventor do Estado. Começamos por centrar a nossa

renço, 2002), o desenvolvimento moral

Portugal enquadra-se no Mode-

atenção na teoria de desenvolvimento

é um processo fundamentalmente ra-

lo Pluralista Polarizado, juntamente

moral. Depois da análise comparada

cional. Ele preconiza uma moralidade 61


ideal, cuja essência reside na obriga-

a forma ou estrutura da resposta (as

em transformar a sociedade. Diferen-

ção de obedecer a princípios universais

razões cognitivas que estão por de trás

cia o seu eu das regras e expectati-

de Justiça que se consubstanciam na

de ações ou transgressões) do que o

vas dos outros e define seus valores

igualdade de direitos e respeito pela

conteúdo (o que faz ou diz que faz).

de acordo com os princípios por ele

dignidade dos seres humanos enquanto

Kohlberg adverte que o que está em

escolhidos. Reconhece as obrigações

pessoas individuais.

jogo é um julgamento sobre os modos

sociais e legais estabelecidas; mas se

de pensar e não uma graduação do

entrarem em conflito com as obriga-

valor moral do indivíduo.

ções morais, estas últimas tendem a

A teoria de Kohlberg assenta em vários pressupostos metaéticos, como o pressuposto da não neutralidade,

Kohlberg identifica três níveis de

ganhar prioridade; pois entende que

que implica a hierarquização racional

desenvolvimento moral, cada um dos

as exigências da lei e da sociedade

de valores (rejeita o relativismo ético);

quais subdividido em dois estádios:

derivam dos direitos morais univer-

e o do prescritivismo que consiste na

nível 1 – pré-convencional (estádios

sais, e não o contrário.

obrigação de obedecer a princípios

1 e 2); nível 2 – convencional (está-

No estádio 1 (E1), a razão para

éticos (justificação para as regras),

dios 3 e 4); e nível 3 pós-convencional

o indivíduo obedecer à lei é evitar o

não a normas (regras para a ação).

(estádios 5 e 6).

castigo. Ele não relaciona perspetivas.

As normas sociais ou mesmo morais

As regras e expectativas conven-

O seu ponto de vista é egocêntrico. As

podem ser violadas pelo “sujeito moral

cionais ou sociais são algo externo ao

regras morais são aplicadas de uma

racional” se não estiverem ao serviço

indivíduo pré-convencional. Ele não

maneira literal e absoluta. Exceções

da Justiça. A ação moral é encarada

as entende.

(a haver) só para pessoas importantes

como do domínio do dever e do desejável.

O indivíduo convencional identi-

(isto é, com autoridade). Não atende

fica-se com as regras e expectativas

às intenções, confundindo castigo com moralidade.

Para ele, a moral desenvolve-se

dos outros ou interioriza-as. Tem uma

em cada indivíduo numa sequência

perspetiva de membro da sociedade.

No estádio 2 (E2), a orientação

de estádios. Fatores do meio podem

Preocupando-se com a aprovação

moral do indivíduo é pragmática, cal-

acelerar, atrasar ou parar o desenvol-

social e com a lealdade a pessoas,

culista e individualista. Condena o

vimento, mas não mudar a sequên-

grupos e autoridades. Subordina as

desvio à norma se este trouxer conse-

cia. Cada estádio é qualitativamente

necessidades do indivíduo ao ponto

quências negativas para o transgressor.

diferente e mais avançado do que o

de vista e às necessidades do grupo

Mas, trata-se mais de uma questão de

precedente. A identificação do está-

ou do relacionamento comum.

prejuízo do que de castigo. Reconhece

dio moral baseia-se exclusivamente no

Uma pessoa de moralidade pós-

que as outras pessoas têm seus próprios

raciocínio moral, valorizando-se mais

-convencional está mais interessada

pontos de vista. Adota uma orientação


moral de troca, em que, ao zelar pelos

interesse tenham maior probabilidade

universais e assume um compromisso

seus interesses, tem em conta a reação

de ser justas.

pessoal com eles. A obrigação é defini-

negativa ou positiva do outro.

O estádio 5 (E5) refere-se à pers-

da em função dos princípios universais

No estádio 3 (E3), o indivíduo re-

petiva de alguém que se coloca antes

de Justiça. Leis e acordos sociais são

gula a sua ação moral por normas,

da sociedade. O sistema social é en-

válidos quando se baseiam em tais

convenções e expetativas socialmente

tendido como um contrato livremente

princípios; quando colidem, o indiví-

partilhadas e aceites. Vive identifica-

celebrado por cada indivíduo, de forma

duo atua de acordo com o princípio. A

do com um grupo e procura cumprir

a proteger e maximizar os direitos e o

pessoa é sempre vista como um fim em

bem o próprio papel. Está orientado

bem-estar de todos. Orienta-se para

si mesma, nunca como um meio para

para a aprovação social e a confiança

o maior bem do maior número. Mas

alcançar outros valores.

interpessoal.

preocupa-se com as minorias e tem

Muitos adultos são moralmente

A perspetiva adotada no E3 é a de

em consideração os pontos de vista de

imaturos, afirma Kohlberg (1982, p.

quem participa num relacionamento ou

cada indivíduo envolvido numa situa-

46). Os adolescentes e maioria dos

num grupo comum; no estádio 4 (E4),

ção social. Reflete uma filosofia utili-

adultos situam-se no nível convencio-

é a de membro de um sistema social,

tarista de regras, na qual instituições,

nal. Só uma minoria alcança os está-

legal ou religioso que foi codificado em

regras ou leis sociais são avaliadas

dios superiores de desenvolvimento.

leis e práticas institucionalizadas. O

por referência às suas consequências a

indivíduo está orientado para a manu-

longo prazo para o bem-estar de cada

Compromisso de

tenção do sistema. Norma e lei (desde

pessoa ou grupo na sociedade. Valores

confidencialidade e

que não impostas autocraticamente)

e direitos fundamentais, como vida e

desenvolvimento moral

são critérios últimos de justiça e de

liberdade, são entendidos como ge-

A teoria de Kohlberg não é unâni-

moralidade, pelo que a prossecução

neralizáveis em qualquer sociedade,

me (Modgil & Modgil, 1985; Lourenço

de interesses individuais só é legítima

mas defendidos independentemente da

2002). Na verdade, o saber científico é

se estiver de acordo com a lei. Peran-

maioria. No E5, verifica-se o começo

por natureza um conhecimento conje-

te a violação de uma regra, a reação

da subordinação das normas à univer-

tural, suscetível de ser revisto (Popper,

típica é: “o que aconteceria se todos

salidade dos princípios (relativismo da

1992). Como o próprio Kohlberg re-

fizessem o mesmo?” Preocupa-se com

Lei). A perspetiva é a de society-crea-

conhece, o “domínio moral é amplo e

a imparcialidade e com a justiça pro-

ting em vez de society-maintaining

variado, e nenhuma abordagem à sua

cessual, entendendo que determinados

(Kohlberg et al., 1997, p. 496)

conceitualização e medição explica-

procedimentos devem ser acautelados

No estádio 6 (E6), o indivíduo acre-

rá ou esgotará a variação existente”

para que as soluções dos conflitos de

dita na validade dos princípios morais

(1985, p. 500). Contudo, a sua teoria 63


permite-nos refletir como se promove

• Deve senão vou parar à prisão (E1)

• Deve porque o código deontológico

a deontologia do jornalista.

• Pode porque é um jornalista de-

prevê essa possibilidade quando

Se atendermos a que o ensino do jornalismo desempenha um papel crucial no jornalismo responsável (Fengler et al., 2014), o modo como se promove a deontologia do jornalismo assume especial relevância. Face ao “desafio constante à consciência individual” do jornalista e às suas responsabilidades perante as pessoas e

cano (E1) • Não deve porque pode perder prestígio (E2) • Não deve para ficar bem visto pela

a fonte o engana desonestamente (E4) • Não deve porque a deontologia o impede (E4)

classe (E2) • Não deve porque os chefes podem-se zangar com ele (E2) • Deve para não ter problemas com os tribunais (E2)

Resposta de nível pós-convencional: • Não deve porque as leis existem precisamente para assegurar os di-

a sociedade (Fidalgo, 2000, p. 336),

• Não deve porque não convém per-

reitos fundamentais das pessoas,

partilhamos a opinião de Goree (2000)

der a relação com uma fonte útil

tais como o direito a ser informado

de que a integração do desenvolvimen-

ao jornalista (E2)

(E5)

to moral na sala de aula de jornalismo oferece muitos benefícios potenciais. Seguindo a teoria de desenvolvi-

• Não deve porque o segredo proRespostas de nível convencional:

fissional pressupõe confiança e

Não deve porque é isso que

porque o indivíduo deve ser con-

mento moral de Kohlberg, propomo-

se espera de um bom jornalista (E3)

fiável se quiser fazer um contrato

-nos classificar potenciais respostas

• Deve porque é o que se espera de

na sociedade (E5)

à seguinte questão que é relativa ao

um cidadão responsável e cumpri-

tema em estudo: Pode/deve um jor-

dor da lei (E3)

nalista revelar, em público ou em tribunal, a identidade de uma fonte confidencial sem o seu consentimento? Um raciocínio pré-convencional

• Não deve porque estabeleceu com a fonte uma relação afetiva (E3) • Não deve porque é um homem com honra (E4)

poderia dar respostas do tipo:

• Deve porque cumprir a lei é uma

• Não deve para não ser despedido

• Deve porque se não o fizer é a

obrigação de todos (E4) (E1) • Não deve porque o chefe não autoriza, e chefe manda (E1)

anarquia e o caos (E4) • Não deve porque não se viola um contrato (E4)

• Não deve porque manter a confidencialidade traz benefício para a sociedade (E5) • Pode porque traz benefício para a sociedade (E5) • Deve porque está em causa a segurança nacional (E5) • Deve porque disso depende a descoberta da verdade e esta é relevante para a sociedade (E5) • Deve porque é a única maneira de evitar um dano sério às pessoas (E5)


• Não deve porque isso não só des-

Esta abordagem de desenvolvi-

Questão 1(Q1). Em que condições

respeitaria a fonte que nele con-

mento moral, sem prejuízo de outas

e em que circunstâncias se aceita atri-

fiou, como também colocá-la-ia em

abordagens, pode ser explorada em

buir confidencialidade a uma fonte?

risco; pelo que o jornalista está

sala de aula, por se tratar de um es-

Questão 2 (Q.2). O segredo pro-

disposto a ser preso para defen-

paço privilegiado para promover pen-

fissional admite limites? Em que cir-

der a integridade dessa fonte e da

samento crítico (e autocrítico), nos

cunstâncias a confidencialidade pode

liberdade de imprensa que é um

moldes propostos por Karl Popper

não ser vinculativa?

direito fundamental (E6)

(1992) para uma ética das profissões intelectuais.

Através da discussão/debate ra-

Dos nove países do MCD, dois são omissos no respeitante à fonte confidencial (Suécia e Dinamarca); qua-

cional de dilemas, pode-se estimu-

Confidencialidade da fonte

tro qualificam o sigilo profissional de

lar nos estudantes (futuros profissio-

em códigos nacionais e

dever do jornalista (Holanda, Suíça,

nais) de jornalismo um “raciocínio

supranacionais

Bélgica e Áustria); um como direito

moral” avançado – ou maturidade

Os códigos de conduta profissional

(Finlândia); e um como direito e dever

moral – que lhes permita melhor

são, em Portugal, o segundo instru-

equacionar e ponderar os conflitos

mento de media accountability com

Quanto à Q1, Holanda e Alemanha

morais que se confrontem no exer-

maior impacte no comportamento dos

referem que a informação deverá ter

cício da profissão:

jornalistas, a seguir às diretrizes edi-

suficiente/bastante valor-notícia ou

toriais do órgão de comunicação social

forte interesse público. Para a Norue-

Os dilemas morais ’servem’ para

e à frente da formação em jornalis-

ga, a proteção das fontes confidenciais

promover o desenvolvimento moral

mo e das leis reguladoras dos meios

é entendida como pré-requisito para a

porque criam nas pessoas não só

de comunicação que surgem em 3º e

imprensa cumprir seus deveres para

conflitos cognitivos mas também

4º lugares, respetivamente. Esta é a

com a sociedade e assegurar o acesso

desequilíbrios afetivos. Quando

perceção dos jornalistas portugueses

à informação essencial. Mas, exige a

uma pessoa se confronta com um

manifestada num inquérito realizado

avaliação crítica da fonte confiden-

conflito moral que não pode resol-

no âmbito do projeto MediaAcT (Mou-

cial e a “especial precaução” com a

ver com facilidade mas que a preo-

tinho et al., 2017).

informação dela proveniente3. No caso

cupa profundamente, é provável

Como os códigos de cada modelo

que se sinta muito motivada para

de sistema de media encaram o sigilo

realizar possíveis novas soluções.

profissional (direito e/ou dever)? Como

(Kohlberg et al., 1997, p. 73).

respondem às seguintes questões?

(Alemanha).

da Holanda, a informação dessa fonte 3 A avaliação crítica das fontes em geral é referida noutros códigos do MDC, como é por exemplo o caso da Finlândia e da Suécia.

65


só será divulgada se tal não constituir

Tanto os EUA como o Canadá re-

dos jornalistas; mas também um dever

um risco desproporcional para as pes-

servam a confidencialidade à fonte que

profissional se a confidencialidade for

soas. “Ações e planos descritos como

corra perigo de segurança, de castigo

requerida pela fonte. Para os outros

secretos podem ser relatados se, após

ou outro dano, bem como à fonte que

países do sul da Europa, é um dever.

uma análise cuidadosa, for determina-

possua informação que não pode ser

No caso da Itália é mesmo uma obri-

do que a necessidade de informação do

obtida de outra forma. Para o Canadá,

gação: “Um jornalista tem que res-

público supera as razões apresentadas

a proteção da fonte exige razões claras

peitar o sigilo profissional, nos casos

para o sigilo”, lê-se no código alemão.

e imperiosas, mas também que a infor-

em que as fontes requerem sigilo e

No que respeita à Q2, um terço dos

mação tenha “forte interesse público”.

tem de ser capaz de informar o leitor

países do MDC preveem a possibilida-

O código americano apela a avaliação

de tais circunstâncias.” A Grécia não

de de se revelar a identidade da fonte

crítica da fonte antes de fazer promes-

responde às Q1 e Q2; apenas afirma:

confidencial; mas dois deles (Noruega

sas: “Seja cuidadoso quando fizer pro-

“O jornalista tem a competência e a

e Bélgica) exigem que tal só poderá

messas, mas mantenha as promessas

obrigação (...) para assumir a discrição

acontecer se a fonte der consentimento

que fizer”. No caso do Canadá, não se

profissional quanto à fonte de infor-

explícito. A Alemanha, além do con-

permitem “golpes baixos a indivíduos

mação obtida em confidência.”

sentimento da fonte, prevê mais duas

ou organizações por parte de fonte

Os países do sul da Europa são

situações em que a confidencialidade

confidencial”, devendo o jornalista,

praticamente omissos à Q1, à exceção

possa não ser vinculativa: a) no caso

antes de fazer promessas, clarificar

de Portugal que estabelece: “As opi-

de a informação estar relacionada com

até onde está disposto a ir para man-

niões devem ser sempre atribuídas”.

um crime e haver o dever de informar

ter as suas promessas: “Quando não

Quanto à quebra do segredo profis-

a polícia; b) se, ao ponderar cuidado-

está disposto a ir para a cadeia para

sional, tanto Portugal como Espanha

samente os interesses, predominarem

proteger uma fonte, exprime isto antes

preveem essa possibilidade no caso de

importantes razões de Estado, particu-

de fazer a promessa. E deixa claro que

a fonte usar o jornalista para canalizar

larmente se a ordem constitucional for

o acordo é quebrado no caso da fonte

informação falsa. Também a título ex-

afetada ou ameaçada. Na prática, no

o enganar ou mentir.” O Canadá é o

cecional, a Espanha acrescenta mais

MDC, só a Alemanha prevê a quebra

único que responde à Q2. O código

um cenário: quando a revelação da

do sigilo profissional.

partilhado por britânicos e irlandeses

fonte é a única forma de prevenir um

não responde às Q1 e Q2.

dano sério e iminentes às pessoas.

Todos os quatro países do ML consideram ser dever do jornalista atri-

No MPP, a França encara o se-

“O jornalista não deve revelar,

buir confidencialidade a uma fonte

gredo profissional como um direito.

mesmo em juízo, as suas fontes con-

quando esta a solicita.

Para a Espanha, trata-se de um direito

fidenciais de informação”, estipula o


Quadro 2. Segredo profissional: direito e/ ou dever

Quadro 3. Em que condições e em que circunstâncias se aceita atribuir confidencialidade a uma fonte?

código português; o que faz deste um

para atribuição da confidencialidade,

Declaração de Munique e pela De-

dos códigos mais exigentes de todos

i.é investem na prevenção (a montan-

claração de Bordéus (FIJ). Esta

os 24 em estudo. Está em sintonia com

te). No ML, o sigilo profissional é

última afirma: “O jornalista digno

o francês que afirma: “Em matéria

considerado um dever, não se conje-

desse nome (...) Dentro da lei geral

de deontologia e honra profissional, o

turando eventuais quebras. No MPP,

de cada país, reconhecerá, em ques-

jornalista aceita apenas a jurisdição

ao contrário do ML, quase não se res-

tões profissionais, exclusivamente a

de seus pares; responde em tribunal

ponde à Q1 (quadros 3 e 4).

jurisdição de seus colegas e recu-

às infrações previstas na lei”.

Quanto aos códigos supranacio-

sará qualquer tipo de interferência

Portanto, os países do MCD, à ex-

nais, o segredo profissional é enten-

do governo ou outras.” Semelhante

ceção da Alemanha, ou são omissos

dido como um direito pelo código

se pode ler nos códigos de França

ou focam-se sobretudo nos requisitos

da UNESCO e como um dever pela

e Suíça. 67


Quadro 4. O segredo profissional admite limites? Em que circunstâncias a confidencialidade pode não ser vinculativa?

Usando o teste qui-quadrado, ve-

Quanto à Q2, preveem-se even-

Cavaco, 2013). Já em Democracia, o

rificamos a existência de uma relação

tuais quebras do contrato de sigilo,

código deontológico dos jornalistas,

estatisticamente significativa (p=0,024)

em caso, por exemplo da fonte ter

aprovado em sede de autorregulação

entre modelos de sistema de media (de

desonestamente induzido o jornalista

em 1976, imputava como dever do jor-

Hallin e Mancini) e a norma “Reservado

em erro; em caso de crime em que se

nalista “guardar o segredo profissional

para fontes que possuem informação que

imponha o dever de informar a po-

e não divulgar as suas fontes de infor-

não pode ser obtida de outra forma”.

lícia; quando prevaleçam razões de

mação”. A revisão de 1993 especificou

Apenas países do ML indicam esta

Estado preponderantes; e em caso de

este dever e admitiu limites ao com-

regra. Não foram identificadas outras

evitar “um dano grave e iminente às

promisso de sigilo: “O jornalista não

associações significativas entre normas

pessoas”. Sublinhe-se o plural desta

deve revelar, mesmo em juízo, as suas

específicas relativas ao segredo profis-

última norma: “às pessoas”. Todas es-

fontes confidenciais de informação,

sional e os modelos de sistema de media.

tas cláusulas de exceção são, na opi-

nem desrespeitar os compromissos

nião de Fidalgo, “de tal modo vagas

assumidos, exceto se o tentarem usar

Quanto à Q1, sublinhe-se a regra

e dependentes da interpretacão sub-

para canalizar informações falsas”.

referida unicamente por Portugal de

jetiva do jornalista (...) que, no limite,

Esta norma (que se manteve na revi-

que as opiniões devem ser sempre atri-

nenhuma fonte confidencial se pode

são de 2017) significa um potencial

buídas. Isto é, não se publica a opinião

considerar completamente protegida”

conflito entre Deontologia e Direito.

de uma fonte confidencial. Para o jorna-

(2000, p. 332).

Quanto à cláusula de exceção, esta

lista Manuel Carvalho, tal publicação é

não é pacífica entre os jornalistas; o

um contrassenso numa sociedade livre,

que levou o Conselho Deontológico

pois “uma opinião vincula de alguma

Confidencialidade da fonte

do Sindicato dos jornalistas (1999) a

forma uma visão subjetiva da realidade

em Portugal

esclarecer que tal pressupõe “que não

e só pode fazer sentido se ela for ex-

Em Portugal, no fim do regime

haja a mais pequena dúvida de que

pressa de uma forma completamente

autoritário e censório autodenomina-

a informação prestada foi premedita-

livre na qual cada um de nós dá a cara

do Estado Novo, a entidade patronal

damente falsa, sabendo a fonte que,

pelas opiniões que tem” .

tinha o seguinte dever, de acordo com

com a publicação, decorre um prejuízo

o Contrato Coletivo de 1971: “Não

irreparável ou um perigo real para o

exigir dos jornalistas que revelem as

jornalista que nele confiou”.

4

4 Manuel Carvalho, na RTP, a 7 de set. de 2019, a propósito do artigo de opinião “I Am Part of the Resistance Inside the Trump Administration”, de autoria anónima publicado no The New York Times, 5 de set. de 2018.

fontes das suas informações quando

Obrigar os jornalistas a trair o

essa revelação possa envolver prejuízo

compromisso assumido com a fonte

para os seus informadores” (citado em

confidencial pode significar a perda


a prazo de informação vital para os

além de nos ter sido prestada uma

veicular informações falsas. Todavia,

cidadãos. Este é o entendimento do

informação falsa, houve intenção

por exigência legal, só poderão divul-

Conselho Deontológico (2001) que

suja de prestar essa informação

gar a fonte se os jornalistas envolvidos

“desaconselha vivamente” a delação

falsa, abre-se um longo e mui-

derem autorização por escrito (cf. art.

de fontes confidenciais “mesmo quan-

to doloroso período de reflexão,

11 do Estatuto do Jornalista).

do estas se manifestam traiçoeiras e

consulta aos amigos e ao traves-

Adverte o Conselho Deontológi-

manipuladoras”, por descredibilizar

seiro, para saber se iremos usar,

co (1999) que “ao aceitar uma fonte

futuros contratos de confidenciali-

pela primeira vez, da prerrogati-

confidencial, o jornalista tem de sa-

dade e por ser muito difícil, noutras

va que o Código Deontológico nos

ber que se inverte o ónus da prova,

instâncias, fazer a prova do que se

concedeu! E o mais certo é que o

quer perante o público, quer perante

afirma quando se denuncia essa fonte

jornalista se silencie e assuma as

os tribunais”. Por outras palavras,

confidencial (“palavra de um contra

consequências desse seu heroísmo:

“quando o jornalista não identifica

palavra de outro”).

se mais ninguém sabe que o jorna-

a fonte de determinada informação é

Mascarenhas, no 3º Congresso dos

lista é um herói, pelo menos sabe-o

ele próprio que se ‘atravessa’ e dá o

Jornalistas Portugueses em 1998, cri-

ele – e é quanto basta!. (Mascare-

nome pela veracidade da dita infor-

ticou aqueles que raciocinam “com a

nhas, 1998, p. 54)

mação”, escreve Jorge Wemans, primeiro provedor do leitor do Público

formalidade jurídica, assumindo-se como titulares de um direito de de-

Para o Conselho Deontológico

(1999, pp. 30-1). Joaquim Fidalgo,

núncia outorgado pelo Código Deonto-

(1999), um código de ética profissional

que lhe sucedeu em 1999, prefere

lógico dos Jornalistas ou muito pior do

é um compromisso individual, mas so-

“aceitar o mal menor de alguma po-

que isso como se o Código impusesse

bretudo coletivo: “Nenhum jornalista

tencial desresponsabilização de fon-

o dever de denúncia de fonte confiden-

pode permitir-se ser julgador único de

tes menos escrupulosas, a sacrificar

cial desacreditada!” Afirma:

uma situação que, a desembocar na

o bem maior que é garantir, em to-

denúncia de uma fonte confidencial,

das as circunstâncias, que uma fonte

Lido académica ou juridicamen-

atinge todo o coletivo dos jornalistas

confidencial não será traída na sua

te, quer dizer que sempre que uma

e a credibilidade da profissão”. Aliás,

confiança pelo jornalista” (2000, p.

fonte anónima dá uma informação

há órgãos de comunicação social –

334). Afirma, sublinhando a respon-

falsa, o jornalista pode identificá-

como Público e a SIC – em que cabe

sabilidade do jornalista:

-la. É o podes! – grita-nos a ética

à Direção e/ou Conselho de Redação a

de cá de dentro. Mesmo depois de

análise dos casos em que fontes con-

Se é verdadeiramente o responsável

(...) estarmos convictos de que,

fidenciais usem os jornalistas para

pela informação que difunde (...)

69


é, naturalmente, responsável pelos

• a fonte correr um efetivo risco (pes-

pelos jornalistas “contra todas as

riscos que decide correr ao “ficar

soal, profissional ou familiar) se

eventualidades”, e que tal é “essencial

nas mãos” de uma só fonte, para

for identificada;

para uma informação livre ao serviço

mais confidencial (...). Se decide, apesar de tudo, confiar e publicar,

• a fonte suscitar ao jornalista uma “confiança indestrutível”;

da cidadania”. No discurso de ambos os media accountability portugueses

então deve estar preparado para

• fornecer ao jornalista os meios

aqui auscultados, não se prevê um

assumir todas as consequências – e

factuais de prova do que vai ser

interesse público superior ao dever

nunca transferi-las para os ombros

publicado.

de proteção da fonte de informação,

de terceiros (as fontes) (Fidalgo,

Estrela Serrano (2006, p. 116),

diferente do previsto no código ale-

provedora dos leitores do Diário de

mão. Entende-se que a quebra desse

Notícias entre 2001 e 2004, adverte

compromisso ameaçaria severamente

2000, p. 333).

Para Fidalgo (2000), o jornalista

que “é preciso distinguir entre a ver-

o próprio interesse público, na medida

deve saber conviver com o risco de ser

dadeira investigação jornalística e a

em que inibiria contratos futuros com

enganado, mas sobretudo prevenir-se.

pseudo-investigação que se limita a

as fontes, resultando num jornalismo

Fernando Martins (2006, p. 146), que

citar conversas, ou documentos, sem

menos capaz de satisfazer o direito à

inaugurou a provedoria no Jornal de

uma análise crítica da sua autentici-

informação que constitui um princípio

Notícias, em 2000, defende que as

dade e do seu valor.”

sagrado em democracia.

fontes anónimas só se justificam se

Ou seja, é consensual a proteção,

estiver em causa “o raro e particular

Conclusão

mesmo em tribunal, de uma fonte que

interesse público” e se não houver outro

Apesar do código deontológico

tenha respeitado o jornalista; não o é

processo de obter essa informação; pois

português prever a quebra do com-

se a fonte lhe mentiu deliberadamente.

entende que as “fontes anónimas são,

promisso de confidencialidade no

Entende-se que a não proteção da fon-

normalmente, ultrapassadas com traba-

caso de a fonte ter usado o jornalista

te pode apresentar-se danosa não só

lho, com investigação jornalística. Que

para canalizar informação falsa, a de-

para a fonte, como também para o jor-

até tem a virtude de evitar os erros.”

núncia de fonte confidencial “jamais

nalista, para a classe e o jornalismo,

Para o Conselho Deontológico

obterá consenso entre os jornalistas”,

e para a sociedade como um todo, na

(1999), o problema da necessidade

como afirma o Conselho Deontológico

medida em que o bom funcionamento

da sua denúncia, em princípio, não

(2001). Este órgão do Sindicato dos

da democracia passa pelo acesso dos

se coloca, se forem cumpridas, com

Jornalistas mostra-se em sintonia com

cidadãos à informação essencial.

rigor, as regras de aceitação de uma

os provedores de leitores ao afirmar

O jornalismo é uma profissão

fonte confidencial:

que as fontes devem ser protegidas

complexa e exigente que requer


maturidade moral. Pode mesmo, nos

Em Portugal, ainda que o Conselho

casos de proteção da fonte, exigir ao

Deontológico recomende algumas re-

ficheiros/20140130-revista_2.pdf.

jornalista o estádio mais alto de desen-

gras de aceitação de uma fonte con-

Chaparro, M. C. (2001). Linguagem dos

volvimento moral (E6) a que só uma

fidencial, seria útil que o Código as

Conflitos. Coimbra: MinervaCoim-

pequena minoria dos humanos atinge.

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político? European Journalism Ob-

nos códigos deontológicos dos jor-

profissionais, de forma a desenvolver

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-fontes-anonimas-devem-banidas-

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Recebido em: 17/01/2018 | Aceite em: 06/06/2018

A imparcialidade nas notícias do governo federal brasileiro:

Lorena Maria Caliman Fontes lorecaliman@gmail.com. Universidade Federal da Bahia https://orcid.org/0000-0001-9566-2397

avaliando o jornalismo no espaço da política Impartiality in the news from Brazil’s federal government: evaluating journalism within the political sphere https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_5

Resumo

Abstract

O artigo enfoca o jornalismo praticado no

This article focuses on the practice of

âmbito da comunicação governamental no

journalism within government commu-

Brasil, especificamente o programa de rádio

nication in Brazil, specifically the radio

Voz do Brasil – Notícias do Poder Executivo.

program Voz do Brasil - News from the

A partir da compreensão de McQuail (2012)

Executive Branch. Based on McQuail’s

a respeito dos parâmetros de atuação da mí-

(2012) understanding of the parameters

dia de massa, o trabalho avalia o critério da

of mass media performance, this work

imparcialidade em 79 unidades noticiosas

analyzes the impartiality criterion in 79

radiofônicas, utilizando técnicas da análise

radio news providers by means of content

de conteúdo. No trabalho, a imparcialidade

analysis techniques. Impartiality relates

é compreendida a partir dos componentes de

to the components of balance and neutra-

equilíbrio e neutralidade, avaliados através

lity evaluated via the access of sources

do acesso de fontes ao radiojornal e da clas-

to the news report and the rating of eva-

sificação de asserções avaliativas. Apesar

luative assertions. Although its official

de ter como missão oficial levar informações

mission is bringing public interest in-

de interesse público do governo federal aos

formation from the federal government

cidadãos, o programa de rádio analisado

to citizens, the radio program analyzed

atua reforçando uma imagem positiva para

reinforces a positive image of the gover-

o governo e os governantes, reiterando vozes

nment and its leaders, reiterating official

oficiais e colocando o cidadão como mero

voices and relegating the citizen to a mere

beneficiário dos serviços públicos. A prática

beneficiary of public services. The pro-

profissional do jornalismo no contexto do

fessional practice of journalism in the

veículo é problematizada a partir de suas

context of the vehicle is problematized in

relações com a empresa pública de comu-

its relationship with the Brazilian public

nicação brasileira (EBC) e a Secretaria

communication company (EBC) and the

Especial de Comunicação da Presidência

General Secretariat for the Communica-

da República (Secom).

tion of the Presidency (Secom).

Palavras-chave: Jornalismo; comuni-

Keywords: Journalism; public communi-

cação pública; Voz do Brasil; imparciali-

cation; Voz do Brasil; impartiality; media

dade; regulação da mídia.

regulation.

1

73

Lorena Caliman é jornalista e especialista em Comunicação Estratégica e Gestão de Marcas pela Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente, é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas na mesma universidade (Póscom/UFBA), em Salvador, Bahia. Seu mestrado foi financiado pela CAPES. É membro do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos em Jornalismo (NJOR), sob coordenação da Profª. Dra. Lia Seixas, sua orientadora.


Introdução

“produto” da Secretaria Especial de

interesse dos cidadãos 3 sobre o go-

Programa de rádio mais antigo do

Comunicação da Presidência da Re-

verno.

país, o noticiário Voz do Brasil infor-

pública, a Secom.

Embora parta de discussão mais

ma, de segunda a sexta-feira, sobre

Apesar de vinculadas à comuni-

ampla, elaborada ao longo da Disser-

os principais assuntos e atividades

cação pública, que tem, dentre seus

tação de Mestrado desta autora (Cali-

do governo federal (Poder Executivo)

valores, as noções de promoção da for-

man Fontes, 2019), a investigação aqui

e dos Poderes Legislativo e Judiciá-

mação cidadã, defesa da democracia,

apresentada busca avaliar, a partir da

rio, às 19h. A parcela do programa

mobilização social e interesse público

análise das notícias, a adequação do

dedicada às notícias do Poder Exe-

(Caliman Fontes, 2019), as Notícias do

jornalismo praticado na Voz do Brasil

cutivo tem duração de 25 minutos e

Poder Executivo são produzidas por

a valores de atuação da mídia de mas-

é seguida pelas notícias dos demais

uma diretoria específica da EBC, cha-

sa. Como base, utiliza-se a discussão

Poderes , totalizando uma hora de

mada de Serviços e Negócios. Neste

de McQuail (2012), que compreende

duração. As notícias do Poder Exe-

contexto, a empresa pública atua como

a comunicação pública como “com-

cutivo, foco de nosso trabalho, têm

prestadora de serviços para o gover-

plexa rede de transações informais,

sua produção sob responsabilidade

no federal (Borges & Weber, 2013;

expressivas e solidárias que ocorrem

da Empresa Brasil de Comunicação

Moura, 2017). Nessa conformação,

na ‘esfera pública’ ou no espaço públi-

(EBC) , porém, são formalmente um

jornalistas, editores e demais cola-

co em qualquer sociedade” (McQuail

boradores de produtos como a TV Nbr

2012, p. 17). Este espaço, atualmente,

– televisão governamental – e a Voz do

seria formado por “canais e redes de

Brasil – atuam em projetos editoriais

comunicação de massa e ao tempo e

particulares, voltados especificamente

espaço reservado na mídia para dar

1

2

1 As notícias dos Poderes Judiciário e Legislativo são de responsabilidade das próprias Casas, não tendo sua produção ligada à Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável apenas, no caso da Voz do Brasil, pelas Notícias do Poder Executivo. 2 A EBC é uma empresa pública que foi criada em 2008 após discussões ocorridas em 2007 durante o Fórum Nacional de TVs públicas. A intenção formal com sua criação foi a de regulamentar a complementaridade, prevista na Constituição Brasileira de 1988 (artigo 223), entre os sistemas privado, estatal e público de radiodifusão. A lei 11.652/2008, que criou a EBC, foi responsável por instituir o sistema público de radiodifusão brasileiro e criar uma Rede Nacional de Radiodifusão Pública. Apesar disso, a discussão sobre o caráter público

para disseminação de informações de

da EBC é atual. Para Bucci (2012; 2016), a EBC não pode ser caracterizada formalmente como pública, mas estatal, devido a sua vinculação jurídica com o governo federal. Sobre a criação da EBC e suas implicações no cenário das políticas de comunicação brasileiras, ver Miola (2012).

3 Conforme o site da Secom, na aba Canais/ Voz do Brasil: “O programa de rádio A Voz do Brasil está no ar há mais de 70 anos. O objetivo é levar informação aos cidadãos dos mais distantes pontos do País. O programa tem uma hora de duração. Os primeiros 25 minutos são produzidos pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC) e levam aos cidadãos as notícias, de seu interesse, sobre o Poder Executivo federal” (grifos nossos). Disponível em: http://www.secom.gov.br/ atuacao/canais/voz-do-brasil. Acesso em 03 de novembro de 2018.


atenção a assuntos de interesse geral,

objetividade que se encontra o ponto

Contudo, de acordo com informações

cuja comunicação aberta e livre seja

chave para a avaliação proposta.

obtidas via Lei de Acesso à Informa-

relevante e válida”.

ção (Gerente Executivo de Serviços da Voz do Brasil, interesse

EBC, 2018) a equipe da Voz do Brasil

assumidos pelo autor como norteado-

público e projeto editorial

atende a projeto editorial próprio e se

res da comunicação de interesse pú-

A noção de interesse público é

diferencia da EBC, na medida em que

blico, destacam-se três: a liberdade,

entendida aqui a partir de contribui-

a ordem/solidariedade e a justiça/

ções como a de Gomes (2009), para

igualdade. Esses, entendidos como

quem as informações de interesse

rege os veículos do sistema pú-

pertencentes à sociedade ocidental

público são as que auxiliam o cida-

blico de comunicação, composto

contemporânea , emanariam em ou-

dão na tomada de decisões e atitudes

pela Agência Brasil, TV Brasil e

tros: a liberdade seria composta por

em relação à esfera política. De ma-

rádios Nacional e MEC. A Voz do

independência, acesso, diversidade e

neira complementar, empregamos a

Brasil é um programa cujo plano

objetividade; a igualdade, pelo aces-

visão de McQuail (2012), que sugere

editorial é definido pela Secreta-

so, diversidade, objetividade e soli-

o uso da expressão como na noção

ria Especial de Comunicação So-

dariedade; e a ordem pelos valores

de “interesse comum” ou “pragmá-

cial da Presidência da República

de solidariedade, controle social e

tico” (Downs, 1962), onde interesses

(Secom), para a qual a EBC, (sic)

cultura simbólica. Para os propósitos

conjuntos derivam de discussões e

presta serviços de comunicação

desta pesquisa, é dentro da noção de

deliberações políticas traduzidas a

(Gerente Executivo de Serviços

partir dos valores comunicacionais

da EBC, 2018, s/p).

Dentre os parâmetros de atuação

4

4 Entendemos que, enquanto proposta abrangente para atuação da mídia, a ideia de três grandes valores para a sociedade ocidental contemporânea pode parecer redutora. Apesar de reconhecermos as possíveis limitações ao acolhermos tal visão em nosso trabalho, destacamos o trabalho detalhista e enciclopédico de McQuail (2012) ao avaliar diversas legislações e regulamentações da comunicação em âmbito internacional. Ao comparar e comentar diversas regulamentações internacionalmente, o autor sugere os valores da liberdade, ordem e igualdade como capazes de traduzir, em âmbito internacional, as principais preocupações relacionadas à comunicação de interesse público.

o seu Manual de Jornalismo

citados acima. No manual de jornalismo da EBC,

Apesar de serem parte do quadro

empresa pública de radiodifusão res-

da EBC, os repórteres, editores e pau-

ponsável pela produção da Voz do Bra-

teiros que ali trabalham seguem pa-

sil, o interesse público surge enquanto

râmetros estabelecidos pelo “cliente”

princípio norteador: «O jornalista da

– no caso, a Secom. Também conforme

EBC colhe informação tendo o interes-

informação vertida na Lei de Acesso

se público como motivo e em nenhuma

à Informação (LAI), os jornalistas da

hipótese pode ser contaminado por

Voz do Brasil devem “contextualizar

ambições de outra natureza» (Empresa

os fatos em notas explicativas que tro-

Brasil de Comunicação, 2013, p. 71).

quem em miúdos a informação para 75


que o ouvinte possa incorporá-la a seu

é melhor que dizer “remuneração”.

redação. Parece-nos que, ao negar a

vocabulário ativo e para que ele possa

Ser cuidadoso com expressões abs-

vinculação dos quadros da Voz do Bra-

agir a partir do que ficou sabendo”

tratas e pensar em soluções com

sil ao Manual de Jornalismo da EBC, e

(Gerente Executiva de Serviços da

substantivos concretos;

ao oferecer como alternativa um “pro-

EBC, 2019). Os cinco pontos baliza-

4 – O tom dialogado é melhor que o

jeto editorial” com breves pontos bali-

dores das notícias da Voz do Brasil

texto lido. Este recurso tem maior

zadores para a produção noticiosa, há

foram elencados da seguinte maneira:

capacidade de aproximar o ouvinte

uma falta de definição sobre princípios

dos produtores da notícia. O tom

profissionais mais amplos, abrindo-se

de uma reportagem, para ser bem

espaço para o questionamento sobre

1 – O protagonista não é a autoridade,

entendida, precisa assumir um tom

até que ponto existe uma reflexão mais

mas o cidadão. No texto da notícia,

próximo do diálogo, no limite de

apurada sobre a prática profissional.

uma conversa informal;

Pesquisas anteriores, inclusive, discu-

logo no lead, quem pratica a ação deve ser o cidadão. A reportagem

5 – Por fim, cuidado com números.

tem a diferenciação entre o jornalismo

na Voz do Brasil precisa inver-

Pesquisas apontam que a maioria

tradicional e o jornalismo praticado no

ter o paradigma tradicional da co-

do público de rádio não apreende

âmbito dos três Poderes (Sant’Anna,

municação de governo e enfocar

as estatísticas com base exclusiva-

2005; Weber & Coelho, 2011). As no-

o assunto e o seu impacto para o

mente em porcentagens. É preciso

ções de jornalismo institucional e de

cidadão;

sempre ter muito cuidado com nú-

mídia das fontes problematizam aspec-

2 – Deve-se indagar a notícia. O que o

meros para que eles sejam capazes

tos da rotina dos jornalistas que tra-

tema tem a ver com cada brasilei-

de representar a mensagem prin-

balham entre o campo do jornalismo

ro? Por isso, mais importante que

cipal. É bom usar comparações.

e da política, ou de empresas, além de

listar a velha fórmula do “o quê,

(Gerente Executiva de Serviços

aspectos inerentes ao resultado mate-

quando, onde, como e por que”, é

da EBC, 2019, p. s/p, negrito no

rial dessas atividades. Weber e Coelho

explicar o quê isso vai mudar na

original, grifos nossos)

(2011) defendem, por exemplo, que o

vida do cidadão. Se não for mudar,

jornalismo nos Poderes é estratégico: o

ou se for mudar só daqui a dez

O foco das chamadas diretrizes

contraditório é ausente; a objetividade

meses, repense a importância da

editoriais do programa radiofônico

é discursiva, na forma de construção

notícia;

recai sobre o modo de produção da

narrativa, mas não se vê implicada em

3 – Ser didático e traduzir os jargões

notícia, mas não se detém sobre os

questões como pluralidade e presença

em palavras que façam sentido

princípios deontológicos que regem

de críticas ao poder.

para o ouvinte. Falar em “salário”

a atividade dos jornalistas de sua


Figura 1. Aspectos avaliativos da objetividade: a imparcialidade Fonte: McQuail (2012)

Diante das especificidades e da

O princípio da imparcialidade

(2012), nos propomos a avaliar a im-

falta de parâmetros deontológicos

não foi desde o começo um ideal,

parcialidade no jornalismo na esfe-

claros para essa produção noticiosa,

mas sim claramente um meio para

ra da comunicação governamental

propomo-nos a analisar em que medida

um fim. Além disso, o conceito

a partir das pistas provocadas pelo

os aspectos avaliativos da objetividade

de imparcialidade comprova ser

diagrama apresentado abaixo.

(McQuail, 2012), traduzidos como im-

essencialmente mais concreto

parcialidade, são trazidos à tona nas

e conduz menos a equívocos do

Importa destacar que a proposta

notícias da Voz do Brasil. Neste tra-

que o de objetividade. As exigên-

de McQuail (2012) também não con-

balho, a imparcialidade é vista como

cias de ambos princípios também

sidera a imparcialidade como única

composta pelos valores de equilíbrio

podem ser compreendidas de ma-

formadora da objetividade jornalística

e a neutralidade, conforme se ilustra

neira mais concreta e visível como

– esta, para o autor, inclui as noções

na figura 1. A visão apresentada por

dimensões da imparcialidade do

de veracidade, relevância e informa-

McQuail (2012) deriva do trabalho de

que no quadro que a problemática

tividade numa dimensão cognitiva. A

Westerstahl (1983), que debate a obje-

da objetividade tem oferecido até

junção entre as dimensões cognitiva

tividade a partir de critérios regulató-

agora. Por causa disso, aqui deve

e avaliativa formaria, para McQuail,

rios do Swedish Broadcasting Corpora-

ser feita a proposta de – no inte-

a visão mais ampla da objetividade.

tion e outras regulações internacionais.

resse de um esclarecimento dessa

Neste trabalho, entendemos que a

O foco do autor não é uma discussão

norma profissional do jornalismo,

imparcialidade é critério desafia-

filosófica, mas pautada no que chama

como também da sua visibilidade

dor para a comunicação jornalística

de padrões e exigências sociais.

e sua praticabilidade – substituir

produzida próxima às estruturas de

Outros autores, como Sponholz

o conceito de objetividade de uma

Poder governamental. Como veremos

(2003) já questionaram as relações en-

perspectiva da teoria do conheci-

adiante, o equilíbrio e a neutralidade

tre objetividade e imparcialidade. Para

mento (que conduz a erros) pela

são critérios que, quando expostos à

aquela autora, a imparcialidade não ga-

imparcialidade. (Schönhagen,

avaliação, podem ensejar inferências

rante a objetividade, vista como busca

1998, p. 261 apud Sponholz,

interessantes sobre o jornalismo re-

por uma aproximação com a realidade

2003, p. 117)

lacionado à comunicação de governo.

objetiva. Contudo, a própria estudiosa Metodologia

cita estudo que considera a imparcia-

Sem o ensejo de esgotar a discus-

lidade como maneira mais viável para

são sobre as relações entre imparcia-

A partir da compreensão breve-

analisar a objetividade jornalística:

lidade e objetividade, mas ancorados,

mente apresentada, analisamos os

neste estudo, na proposta de McQuail

chamados critérios avaliativos da 77


objetividade na Voz do Brasil em dois períodos distintos. Foram analisadas 20 edições do programa radiofônico, sendo quatro semanas construídas (Herscovitz, 2007) a partir de momentos distintos de produção do radiojornal: o governo de Dilma Rousseff (PT) – em edições de janeiro/fevereiro de 2015 e abril/maio de 2016, antes do impeachment da presidente -; e o governo de Michel Temer (MDB) – após início do governo definitivo em setembro de 2016 e no final dele, em novembro/dezembro de 2018, totalizando um número de 79 unidades

Na Voz do Brasil existe uma prelideção em produzir avaliações favoráveis aos assuntos do governo e com nenhum tipo de crítica

por circunstância. A avaliação de neutralidade fez-se a partir da técnica de análise de asserção avaliativa ou análise de avaliação (Bardin, 2016), sugerida inclusive por McQuail (2012) para o tipo de análise pretendida. No que diz respeito à categorização de fontes, Guerra indica as seguintes classificações: A) Quanto à Natureza 1) Oficial: autoridade governamental ou de qualquer órgão público. Subdivide-se em: 1.1 Oficial por representação, quando exerce cargo político ou de dire-

noticiosas. Foram avaliadas as matérias de destaque das edições em sua

ção/coordenacão;

integralidade, incluindo também as

1.2 Oficial de carreira: quando exerce

chamadas dos apresentadores. As edi-

funcão típica de estado, mediante

ções constam de segunda a sexta-feira,

concurso ou por mérito.

dias em que o programa é veiculado

2) Representativa: exerce funções de

através da Rede Nacional de Rádio e

representação em empresas ou

pela internet.

organizações da sociedade civil.

As avaliações foram feitas a partir

3) Associativa: quando integrante

de ferramentas da análise de conteú-

de grupo, organizado ou não, que

5

do (Bardin, 2016; Herscovitz, 2007). O equilíbrio, entendido a partir da noção de “acesso igual ou proporcional”, foi analisado a partir da análise e categorização de fontes (Guerra, 2007), classificadas por natureza e

5 No relatório original de Guerra (2007), há um pequeno erro na numeração das fontes, de forma que a lista salta de 2 (representativa) para 4 (associativa), sem haver um número 3. Aqui, a numeração aparece diferente uma vez que a contagem foi corrigida para corresponder à correta.


fala como membro do grupo mas

5) Testemunhal: fala apenas para ilus-

análise de unidades significativas

sem a autoridade de representação

trar, contar ou explicar algum as-

de contexto, posições favoráveis,

seja porque não exerce funções de

pecto relacionado ao fato, sem que

desfavoráveis ou neutras aos cha-

direção seja porque o grupo não é

tenha envolvimento direto algum.

mados objetos de atitude identifi-

organizado. 4) Técnica: tem domínio técnico cien-

cados. Os objetos de atitude geral6) Classificação Exclusiva para fonte

mente se ligam a conectores verbais

tífico sobre o assunto objeto da ma-

Documental:

e ao material avaliativo em questão.

téria, e esse saber constitui a razão

6.1 (E) Estatística;

É importante destacar que o material

principal pela qual foi chamada

6.2 (L) Princípios, normas e leis;

avaliativo nem sempre será constituí-

a falar.

6.3 (P) Política (Guerra, 2007, p. 79-

do de adjetivos ou advérbios, como

5) Pessoal: quando a fonte fala apenas

80).

por si mesmo.

pode também estar implícito em formações verbais ou outras expressões

6) Documental: fonte escrita/digital

Optamos por analisar as fontes

que forneça informações para a

com citação direta (sonoras, para

Categorizamos as avaliações

matéria e que seja reconhecidamen-

o radiojornalismo). A presença das

como aqueles conjuntos de asser-

te autêntica (o que não significa,

vozes das próprias fontes, em nos-

ções que continham juízo de valor,

necessariamente, que seja legal).

so entendimento, reforça e refina a

seja quanto ao “conjunto de qualida-

avaliação do acesso dessas fontes ao

des” (Bardin, 2016, p. 212) – aquilo

radiojornal.

que o objeto é, os seus atributos ou

B) Quanto à Circunstância

significativas.

No que diz respeito à análise de

qualificações; ou quanto ao “con-

neutralidade, a análise de asserção

junto de performance”, “o que o

2) Provocada: quando sofre as conse-

avaliativa, utilizada para tal, tem

objeto faz, ou seja, as suas ações”.

qüências diretas da ação geradora

diversas aplicações, cujo intuito é

Não foram consideradas avaliativas

do fato.

identificar a carga avaliativa de uma

as asserções que continham juízos

3) Implicada: terceiros que se vêem de

mensagem ou as atitudes do locu-

seguidos de dados, os justificando.

alguma forma envolvidos no fato,

tor com relação aos objetos de que

Por exemplo, se o texto do repórter

sem serem os promotores nem os

fala. A técnica tradicional consiste

se dirige a uma variação no grau de

provocados diretos.

em avaliar intensidade e direção da

desemprego no país como “positiva”,

4) Autorizada: quando o fato pertence

avaliação. Utilizamos uma versão

seguida de números que comprovem

à esfera de competência da qual a

simplificada para avaliar a direção

a qualificação, essa afirmação não é

fonte é a responsável.

da avaliação, medindo, através da

levada em consideração na análise.

1) Promotora: quando age diretamente para a ocorrência do fato.

79


Fontes Quanto à Natureza

Fontes Quanto à Circunstância

Oficial

47

71%

Promotora

24

37%

Pessoal

11

17%

Implicada

13

20%

Representativa

5

7,5%

Autorizada

12

18%

Quadro 1. Fontes no período de governo

Técnica

2

3%

Testemunhal/provocada

6

9%

Dilma Rousseff (2015-2016)

Associativa

1

1,5%

Testemunhal

6

9%

Documental

0

0%

Provocada

5

7%

Total:

66

100%

Total:

66

100%

Fonte: Elaboração própria

Fontes Quanto à Natureza

Quadro 2. Fontes no período de governo Michel Temer (2016 a 2018)

Fonte: Elaboração própria

Resultados Análise de vozes: o equilíbrio na Voz do Brasil

Fontes Quanto à Circunstância

Oficial

51

64%

Autorizada

31

39%

Pessoal

20

25%

Promotora

28

35%

Técnica

6

7,5%

Testemunhal

11

14%

Representativa

3

3,5%

Testemunhal/provocada

7

9%

Associativa

0

0%

Implicada

2

2%

Documental

0

0%

Provocada

1

1%

Total:

80

100%

Total:

80

100%

O destaque das vozes pessoais em segundo lugar em ambos os períodos

incluir o cidadão como debatedor dos assuntos tratados.

é digno de nota, na medida em que

Verificamos, portanto, que o ci-

suscita a questão sobre se tal repre-

dadão enquanto fonte pessoal não foi

sentação é uma abertura ao debate

incluído como parte do debate públi-

Foram contabilizadas 66 fontes

público defendido nos estudos sobre

co. Nas poucas vezes em que houve

com citação direta no período de go-

comunicação pública e jornalismo.

debate, ele entrou na voz de fontes

verno de Dilma e 80 no período do

Contudo, a presença das fontes pes-

representativas ou associativas, in-

governo de Temer. Do ponto de vista

soais esteve quase sempre ligada, do

clusive no momento de análise que

da natureza, os principais resultados

ponto de vista da circunstância, às

englobou o mês anterior ao afasta-

foram similares, com destaque para as

fontes testemunhais ou testemunhais/

mento da presidente Dilma Rousseff.

fontes oficiais (71% e 64%, respecti-

provocadas , o que demonstra uma li-

É importante observar que a presença

vamente) seguidas das fontes pessoais

mitação do programa radiofônico em

das fontes representativas e associa-

6

(17% e 25%). A análise dos períodos

tivas apareceram, em sua totalidade,

reforça a percepção de que as fontes oficiais ganham grande destaque no acesso ao radiojornal estatal, o que confirma a dependência do produto em relação a essas fontes.

defendendo um único ponto de vista 6 Houve apenas duas ocorrências de fontes pessoais como implicadas, no segundo momento do governo Michel Temer. A reportagem abordava moradores argentinos que teriam sua rotina modificada por conta da realização da cúpula do G-20 em Buenos Aires.

– a versão oficial. A própria presença maior de fontes representativas no primeiro período está relacionada à construção de discursos voltados à


Fontes Quanto à Natureza

Fontes Quanto à Circunstância

Oficial

98

67%

Promotora

52

36%

Pessoal

31

21%

Autorizada

43

29%

Técnica

8

5,5%

Testemunhal

17

12%

Quadro 3. Resumo do período total de

Representativa

8

5,5%

Implicada

15

10%

análise das fontes (equilíbrio)

Associativa

1

1% (aprox..)

Testemunhal/provocada

13

9%

Documental

0

0%

Provocada

6

4%

Total:

146

100%

Total:

146

100%

Fonte: Elaboração própria

defesa da figura governamental da

correlação dessas com as fontes ofi-

diferenciarmos os dois tipos de classi-

época.

ciais: 51% e 55% das fontes oficiais

ficação – por natureza e por circuns-

No que tange às fontes técnicas,

foram também promotoras, respecti-

tância – e como elas se complemen-

que aumentaram de quantidade no se-

vamente, no primeiro e no segundo

tam para uma análise do equilíbrio.

gundo período de análise, fica patente

período analisados.

Percebe-se, ao visualizar os dados dos

uma tímida tentativa de incluir fontes

O número mais alto de fontes im-

dois períodos, a forte predominância

não ligadas diretamente às atividades

plicadas no primeiro período de aná-

das fontes oficiais, que estiveram quase

do governo federal no noticiário nesse

lise teve relação com as reportagens e

sempre relacionadas com as circuns-

período analisado.

notas que discutiam o impedimento da

tâncias de promotoras e autorizadas.

Na comparação entre as fontes

presidente Dilma Rousseff. O aumento

Os achados coadunam com o que

classificadas por circunstância, ob-

no número desse tipo de fonte não sig-

Wahl-Jorgensen et al. (2017) lembram

servemos que apesar de terem apa-

nifica, contudo, que houve um maior

ao citar estudos de fontes no noticiá-

recido em ordens diferentes nos dois

equilíbrio quanto ao acesso das fon-

rio. Citando Gans (1979), os autores

períodos, as fontes promotoras tiveram

tes, mas justamente o reforço de uma

ressaltam a comum predominância

uma porcentagem similar nos dois ca-

característica criticada nos estudos

das fontes “conhecidas” em relação

sos (37% e 35%). As fontes autori-

sobre comunicação governamental:

às fontes “desconhecidas”.

zadas ganharam maior destaque no

a de sustentar a imagem pública do

segundo período, em pautas ligadas

governante. Dentre as fontes implica-

Because journalists overwhel-

a regulamentações, políticas públicas

das encontradas no período, tiveram

mingly rely on the voices of elites

e cidadania. Esse resultado também

destaque vozes oficiais que apoiavam

(e.g. Manning, 2001), they have

pode ser interpretado como reflexo da

e defendiam o mandato da presidente

a disproportionate influence on

mudança do formato do radiojornal,

– deputados e governadores do mesmo

the media agenda (Reese, 1990),

ocorrido em outubro de 2016. Confor-

partido, ministros do governo – en-

acting as the ‘primary definers’

me divulgação da Agência Brasil , o

quanto não foram trazidas vozes com

who set the framework of inter-

programa passaria a ser mais “intera-

opinião contrária, que representassem

pretation against which all subse-

tivo e próximo do cidadão” (Brandão,

a oposição no plano político.

quent voices are forced to insert

7

2016). Os achados relativos às fontes

É interessante observar, no quadro

themselves (Hall et al., 1978).

promotoras revelam também a estreita

acima, como a distribuição dos tipos

By contrast, ordinary people who

de fonte é mais igualitária quando

appear in the news are construc-

considerada a circunstância. Natural-

ted primarily as passive consu-

mente, isso demonstra a importância de

mers, reacting to the agendas

7 Agência pública de notícias, que faz parte da EBC.

81


Quadro 4. Quantificação de avaliações por categoria de objeto de atitude (período Dilma)

Fonte: Elaboração própria

Categorias

Avaliações Favorável

Neutra

Desfavorável

PG – programas governamentais

8

0

0

SC – serviços do governo ao cidadão

7

1

0

GF – governo federal

6

0

0

RE – previsões e expectativas

4

3

0

BR – Brasil para relações exteriores

3

0

0

CA – campanhas

1

0

0

PP – resultados de políticas e projetos

1

0

0

SE – serviços não ligados ao governo

2

0

0

PA – parcerias do governo

3

2

0

CG – características do governo

0

0

0

CR – crises, impeachment

1

0

10

OP – opositores políticos

0

0

5

AP – apoiadores dos governantes

1

0

0

GV – pessoas do governo

3

0

0

PF – pessoas de fora do governo

0

0

0

EC – questões econômicas

1

0

0

PE – performance do Estado

3

1

0

EX – relações exteriores (sem Brasil)

1

0

0

NE – números e dados não governamentais

0

0

0

PO – órgãos de outros Poderes

0

0

0

Total por avaliação

45

7

15

Total

67 expressões avaliativas

set by these elites (Lewis et al.,

Análises avaliativas: a

espaço, a tabela com a categorização

2005). This means that journa-

neutralidade na Voz do Brasil

dos objetos de atitude foi suprimida

lism reproduces the power struc-

Os diversos objetos de atitude

neste artigo, mas as categorias são

ture of the society (e.g. Berkowitz,

encontrados ao longo da análise fo-

apresentadas resumidamente, ao lado

2009: 109; Carlson and Franklin,

ram classificados em 20 categorias,

das siglas, à medida que aparecem nas

2011: 1). (Wahl-Jorgensen et al.,

geradas a partir do próprio conteúdo

tabelas apresentadas a seguir com os

2017, p. 5-6)

analisado. Por conta da limitação de

resultados das análises avaliativas.


Categorias

Avaliações Favorável

Neutra

Desfavorável

PG – programas governamentais

10

4

0

RE – previsões e expectativas

9

2

0

PA – parcerias do governo

7

0

0

GF – governo federal

6

1

0

BR – Brasil em relações exteriores

6

0

0

SC – serviços do governo ao cidadão

6

0

0

PE – performance do Estado

5

1

0

NE – números e dados não governamentais

3

0

1

PP – resultados de políticas e projetos

2

1

0

CG – características do governo

2

0

0

CA – campanhas

1

0

0

SE – serviços não ligados ao governo

1

1

0

AP – apoiadores dos governantes

1

0

0

GV – pessoas do governo

0

1

0

PF – pessoas de fora do governo

1

0

0

CR – crises, impeachment

0

0

1

PO – órgãos de outros Poderes

1

0

0

OP – opositores políticos

0

0

0

EC – questões econômicas

0

0

0

EX – relações exteriores (sem Brasil)

0

0

0

Total por avaliação

61

11

2

Total

74 expressões avaliativas

Quadro 5. – Quantificação de avaliações por categoria de objeto de atitude (período Temer)

Fonte: Elaboração própria

O primeiro período de análise

de programas governamentais (18%),

como destaque os assuntos ligados à

somou 67 expressões avaliativas,

serviços do governo aos cidadãos

esfera política do governo federal. Por

45 (67%) delas favoráveis, 7 (10%)

(15,5%), o próprio governo federal

sua vez, as avaliações desfavoráveis

neutras e 15 (22%) favoráveis. As

(13,5%) e previsões e expectativas

recaíram sobre as categorias de cri-

categorias com maior destaque nas

de realizações relacionadas à esfera

ses/impeachment (66,5%) e às vozes

avaliações favoráveis estiveram liga-

governamental. Da mesma forma, as

de oposição política (33,5%). Esses

das ao governo, como as categorias

avaliações neutras também tiveram

resultados demonstram, portanto, uma 83


predileção do radiojornal em produzir avaliações favoráveis aos objetos governamentais e nenhum tipo de crítica a ele. As críticas ficam reservadas exclusivamente a assuntos que se opõem, criticam ou ameaçam a boa imagem do governo e de seus representantes. Abaixo, reproduzimos o quadro de resultados referente ao período de governo Michel Temer.

O debate público e a mobilização social não são valores encontrados no programa Voz do Brasil

delas dizendo respeito a um contexto de crise e a outra, dizendo respeito a números não governamentais. A alteração no porcentual de avaliações desfavoráveis numa comparação entre dois momentos de governo demonstra a ligação profunda do programa radiojornalísticos com o governo federal: no momento de crise, há críticas e avaliações desfavoráveis a objetos de atitude que representam

O segundo período de análise

oposição; no momento mais ameno,

trouxe um número maior de avalia-

não se vê o mesmo comportamento.

ções, 74, com aumento considerável no

Porém, a continuidade na manutenção

percentual de avaliações favoráveis:

da produção de avaliações favoráveis

61 (82,3%). As avaliações neutras

se vê nos dois momentos, com 67%

tiveram um aumento de 10%, no pe-

e 82,3% de avaliações favoráveis,

ríodo Dilma, para 15% no período

como vimos, a objetos de atitude

Temer (11 expressões avaliativas). Já

ligados ao governo. Assim como no

as avaliações desfavoráveis caíram

período Dilma, no governo de Temer

para apenas 2,7% (2 avaliações). O

as avaliações favoráveis também es-

contexto político diverso teve grande

tiveram ligadas principalmente a

impacto nesse número: enquanto, no

objetos de atitude como programas

período de governo Dilma havia um

governamentais (16,3%), previsões e

forte ambiente de crise entre governo

expectativas governamentais (14,7%),

federal e Congresso (Poder Legislati-

parcerias do governo (11,4%), governo

vo), o período de governo de Michel

federal, Brasil e serviços do governo

Temer foi marcado por uma boa rela-

(10% cada), para citar os destaques.

ção entre esses Poderes. De forma que

O padrão quanto às avaliações neutras

apenas duas expressões avaliativas

permaneceu entre os dois períodos,

desfavoráveis foram encontradas; uma

também trazendo em primeiro plano


avaliações voltadas a programas, pre-

de chamadas de apresentadores, e

O programa de rádio Voz do Brasil

visões, serviços, performance, políti-

avaliou o material a partir da catego-

é o mais antigo em emissão no país,

cas e pessoas do governo federal. Con-

rização de fontes com citações diretas

existente desde 1935. Com o passar

tudo, observou-se um crescimento na

e da análise de asserção avaliativa.

dos anos, a percepção pública de que

utilização de atos verbais conjeturais

Os resultados demonstraram foco do

o programa trazia apenas notícias “fa-

(Seixas, 2000) para as avaliações nes-

programa na manutenção do destaque

voráveis” ao governo tornou-se senso

se segundo período, o que fez com que

dado às vozes oficiais, primordialmen-

comum. Nosso trabalho verificou que

houvesse crescimento na porcentagem

te enquanto promotoras dos próprios

essa tendência permanece presente no

de avaliações consideradas neutras.

assuntos abordados; e também como

discurso jornalístico do programa,

A soma das avaliações nos dois

autorizadas, principalmente no se-

que, apesar de ser focado em fatos

períodos totalizou 141 expressões ava-

gundo período de análise. A tenta-

e notícias sobre o governo (conforme

liativas. Tomando os resultados em sua

tiva de trazer as fontes oficiais como

projeto editorial), emite avaliações,

totalidade, foram 76% de expressões

autorizadas, no momento mais recente,

sobretudo favoráveis (76%), voltadas

favoráveis, 12% de avaliações neutras

demonstra a busca do produto por um

principalmente a assuntos que dizem

e 12% de avaliações desfavoráveis no

discurso mais técnico; tal resultado

respeito ao próprio governo. O jorna-

total, reforçando a tendência do pro-

é reforçado pelo aumento na quan-

lismo prevê a separação entre fatos e

duto analisado em reforçar avaliações

tidade de fontes técnicas e de fontes

opiniões, porém, num produto voltado

favoráveis no material produzido, com

pessoais no segundo período de aná-

apenas a fatos e sem colunas de opi-

foco em avaliações voltadas aos pró-

lise (governo Michel Temer). Apesar

nião, foram encontradas 141 expres-

prios temas do governo que é o grande

de ser trazido como fonte ao longo

sões avaliativas. Dessas, 12% foram

ator em foco no noticiário.

das notas e reportagens analisadas,

neutras em todo o período, e outros

o cidadão não é visto como parte do

12% foram de avaliações desfavorá-

Conclusões

debate público, mas como mera teste-

veis a objetos de atitude que, por sua

Este artigo trouxe um resumo dos

munha dos fatos e acontecimentos. O

vez, não diziam respeito ao governo e

resultados de uma avaliação de im-

debate público e a mobilização social

seus representantes.

parcialidade na Voz do Brasil – No-

são, no entendimento deste trabalho,

É importante salientar que os jul-

tícias do Poder Executivo, conforme

cruciais para o jornalismo e para a

gamentos encontrados nas análises

proposta teórica de McQuail (2012).

comunicação pública. Contudo, não

avaliativas foram, em 41% das vezes,

Com ferramentas da análise de con-

são valores encontrados no discurso

feitos diretamente pelos repórteres,

teúdo, a pesquisa analisou 79 uni-

do programa Voz do Brasil – Notícias

sem recorrer ao uso “judicioso” das

dades noticiosas radiofônicas, além

do Poder Executivo.

aspas (Tuchman, 2016). Contudo, 85


outros 59% das avaliações decorreram

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Voz do Brasil estreia hoje em novo

from https://esic.cgu.gov.br/sis-

das fontes ao radiojornal. Fontes pes-

formato. Agência Brasil. Retirado

t e m a / Pe d id o / D e t a l h e Pe d id o .

soais não surgem como protagonistas,

em 12 de junho de 2019 em http://

apesar do previsto no projeto editorial.

agenciabrasil.ebc.com.br/geral/no-

Gerente Executiva de Serviços da

Por outro lado, o conteúdo também

ticia/2016-10/voz-do-brasil-estreia-

EBC (2019). Consulta de Pedi-

não é esvaziado de julgamentos, ou

-hoje-em-novo-formato

do. Retrieved March 14, 2019,

aspx?id=qQ8R1WH6vJU=

ao menos próximo da neutralidade em

Caliman Fontes, L. M. (2019). Imparcia-

from https://esic.cgu.gov.br/sis-

suas avaliações. Por fim, assinalamos

lidade na Comunicação Governa-

t e m a / Pe d id o / D e t a l h e Pe d id o .

a atual importância de discutir a ati-

mental: avaliação das notícias do

aspx?id=2VYoiHXFZ90=

vidade jornalística na conjunção com

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87



Rogério Christofoletti

Recebido em: 20/01/2018 | Aceite em: 18/06/2018

rogerio.christofoletti@uol.com.br

Accountability e transparência na mídia:

Universidade Federal de Santa Catarina https://orcid.org/0000-0003-1065-4764

Juan Carlos Suárez Villegas

diálogo da experiência espanhola com os países lusófonos

1

Accountability and transparency in the media: dialogue between the Spanish experience and the Portuguese-speaking countries

jcsuarez@us.es Universidade de Sevilha https://orcid.org/0000-0002-2199-7028

Xavier Ramon Vegas xavier.ramon@upf.edu Universidade Pompeu Fabra https://orcid.org/0000-0002-4478-5626

https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_6

Resumo

Abstract

Alguns dos desafios mais emergentes para a

Some of the emerging challenges in jour-

ética jornalística estão relacionados à capaci-

nalistic ethics are related to the ability of

dade de profissionais e meios de comunica-

professionals and the media to adopt good

ção adotarem boas práticas de prestação de

practices of accountability and transpa-

contas e de transparência de seus métodos

rency in their methods and procedures.

e procedimentos. Para além da criação de

Besides the creation of instruments to fa-

instrumentos que facilitem uma maior apro-

cilitate a closer rapprochement between

ximação entre os produtores da informação

information producers and their audien-

e seus públicos, é necessário ainda desafiar

ces, a defiance of local professional cul-

culturas profissionais locais. Na comunida-

tures is still necessary. Within the entire

de global em língua portuguesa, os países

Portuguese language community, the most

mais avançados em termos de transparência

advanced countries in journalistic trans-

e accountability jornalística são Portugal e

parency and accountability are Portugal

Brasil, mas essa condição não os exime de

and Brazil, but this condition does not

aperfeiçoar seus sistemas e desenvolver so-

exempt them from improving their systems

luções mais efetivas que fortaleçam a ética

and developing more effective solutions

nos meios. Neste artigo, apresentamos resul-

to strengthen ethics in the media. In this

tados parciais da pesquisa “Accountability y

paper, we present partial results of the

culturas periodísticas en España. Impacto y

research «Accountability and journalistic

propuesta de buenas prácticas en los medios

cultures in Spain: impact and proposal

de comunicación españoles”, a partir de gru-

of good practices in the Spanish media»

pos focais com especialistas em deontologia

based on focal groups with experts in

e ética da comunicação. Percebemos que a

communication ethics. We realize that

realidade espanhola – embora complexa, di-

the Spanish reality - complex, dynamic,

nâmica e específica – não se distancia tanto

and specific - is not very different from the

do que já conhecemos nos países lusófonos,

reality of Portuguese-speaking countries

e as considerações dos especialistas consul-

and the considerations of experts offer

tados oferecem contribuições potencialmente

potentially implementable contributions

implementáveis em nosso contexto.

to our context.

Palavras-chave: Transparência; respon-

Keywords: Transparency; responsibility

sabilidade na mídia; jornalismo espanhol.

in the media; spanish journalism.

1

89

Este artigo é resultado do projeto “MediaACES. Accountability y Culturas Periodísticas en España: Impacto y propuesta de buenas prácticas en los medios de comunicación españoles” (CSO2015-66404-P), financiado pelo Ministério da Economia e Competitividade do Governo da Espanha. Este texto é uma versão ligeiramente modificada do que foi apresentado no V Congresso Internacional de Comunicação - Ética e Deontologia do Jornalismo no Espaço Lusófono, em Coimbra, em novembro de 2018.


Introdução

dessa ordem – não se pode furtar a

é vocalizada como um poderoso remé-

As preocupações com o aperfei-

discuti-lo também. Seja porque este-

dio social, capaz de aplacar a corrup-

çoamento do jornalismo e sua confir-

ja em pauta o interesse público (Mc-

ção endêmica, inibir maus feitos e

mação como importante aglutinador

Quail, 2011) ou porque os sistemas

fortalecer o sistema imunológico das

da experiência social contemporânea

de accountability da mídia possam

democracias. Em diversos contextos

estimulam a busca por padrões de

funcionar como parte de nosso arsenal

ocidentais, a transparência é uma es-

qualidade e o desenvolvimento de

para a democracia (Bertrand, 2002).

pécie de panacéia pós-moderna.

instrumentos que a efetivem. Entre-

Para Chul-Han (2012), não há

Para Kristin Lord (2006), ela é

tanto, a discussão sobre qualidade fica

tema que domine mais o debate pú-

útil, socialmente importante, mas está

um tanto incompleta se o debate não

blico atual que a transparência, pois

longe de ser sinônimo de verdade. Se-

contemplar aspectos da deontologia

ela parece cumprir uma dupla função:

gundo a autora, as informações difun-

profissional. Para além da imposição

possibilita controle social e contribui

didas não são politicamente neutras, e

de deveres e da padronização das con-

para a satisfação do direito de ser-

isso não as impede de ser incorretas,

dutas, a deontologia provoca reflexões

mos informados sobre o que se passa

incompletas, enviesadas. A oferta de

individuais e corporativas que podem

em nossas comunidades. O valor do

dados per se não produz verdade, fal-

ocasionar a alteração de comportamen-

direito à informação nas sociedades

tando-lhes contexto, sentido e direção.

tos, a assunção de novas práticas e a

é evidente, mas a transparência não

Lord descarta que o aumento da trans-

mudança da cultura profissional. Os

deve ser entendida como um bem

parência seja um antídoto total para os

questionamentos deontológicos não se

supremo, sustenta Schudson (2015),

problemas do mundo porque, no bojo

restringem, portanto, à abstração, mas

que menciona razões importantes para

da transparência, estão riscos como o

têm sobretudo repercussões na práti-

mantermos uma certa opacidade. A

enfraquecimento da privacidade, por

ca cotidiana que afeta não apenas os

proteção de populações vulneráveis,

exemplo. O olhar crítico de Kristin

membros da redação, mas também os

a manutenção da civilidade na intera-

Lord não impede que ela reconheça na

públicos e demais grupos interessados

ção social e a garantia do voto secreto

transparência uma aliada para tornar

(stakeholders).

seriam alguns desses motivos.

o mundo mais pacífico, cooperativo,

Atualmente, um dos temas sociais

É preciso reconhecer um clamor

tolerante e democrático. Mas a autora

mais pulsantes é o da transparência

popular pela transparência na atuali-

frisa: transparência ajuda, mas outros

e da possibilidade de prestação de

dade (Bowles, Hamilton e Levy, 2014;

esforços são necessários para garantir

contas por parte de governos e em-

Christofoletti, 2016). Para Chul-Han

essas condições.

presas. O jornalismo profissional – em-

(2012), ela funcion como um imperativo

É um raciocínio comum vincu-

bora seja refratário a questionamentos

social. Algumas vezes, a transparência

lar a extensão da transparência à


efetividade de um ambiente demo-

o direito à informação e à expressão,

notar também, perifericamente, outras

crático aberto, que limite poderes e

seguindo princípios profissionais res-

instâncias promovidas pela sociedade

onde papéis e regras sejam claros. A

ponsáveis. A ética profissional deve

civil, como associações de telespec-

transparência não é a mesma coisa

estar ancorada a critérios de desem-

tadores, usuários de comunicação ou

que a accountability, mas seu elemen-

penho que permitam discernir o grau

associações de grupos vulneráveis,

to constituinte. Governos mais demo-

de cumprimento correto de práticas

que cultivam uma sensibilidade es-

cráticos se submetem à lei, seguem

laborais. Essas diretrizes estão incluí-

pecial sobre o conteúdo difundido pe-

a vontade popular e prestam contas.

das em códigos deontológicos e são

los meios. Somado a esse mosaico de

Empresas mais abertas perseguem

observadas por órgãos de autocontrole.

instrumentos de accountability estão

caminhos assemelhados, e no que

Mais recentemente, esses dispositivos

sites e blogs que abordam questões de

se refere aos negócios da mídia, com

também se materializam nas redes so-

ética da comunicação, elaborados por

algumas condições de reforço: seus

ciais, que aceleram a interação entre

jornalistas ou cidadãos com atenção

produtos e serviços ajudam a compor

mídia e cidadãos e contribuem para a

dirigida, e que monitoram conteúdos

o imaginário coletivo, em algumas

tarefa de exigir responsabilidade dos

que podem violar os direitos das pes-

situações, dependem de autorização

jornalistas. No entanto, as redes so-

soas. Blogs em defesa da igualdade de

do Estado para operar, e são abso-

ciais são canais mais difusos e é difícil

gênero, que discutem a imigração ou o

lutamente dependentes da escolha

ponderar e processar as reclamações

meio ambiente ilustram essa modali-

das audiências. Isto é, empresas que

por elas recebidas (Suárez-Villegas e

dade. Esses instrumentos comungam

se dedicam à comunicação de massa

Cruz-Alvarez, 2016).

da ideia de que a mídia é decisiva na construção social do imaginário

também deveriam prestar contas aos

A responsabilidade do profissional

seus públicos e aos grupos com os

também pode ser exercida coletiva-

quais mantêm relações.

mente, por meio de associações de im-

Prestação de contas é um con-

prensa ou associações profissionais, e

ceito que se refere à disposição da

Mídia, democracia e

na Espanha, por meio da Comissão de

mídia em responder à sociedade por

prestação de contas

Arbitragem, Reclamações e Deonto-

sua atividade (Alsius, Mauri-Ríos,

Atores fundamentais na configura-

logia (FAPE) ou de instâncias locais,

Rodríguez-Martínez, 2011). Accoun-

ção da agenda e da opinião pública, os

como o Conselho de Informações da

tability é frequentemente associada

meios de comunicação têm grande res-

Catalunha, por exemplo. No campo

a “aceitar certas responsabilidades,

ponsabilidade na transmissão de va-

dos meios audiovisuais, este trabalho

tarefas ou objetivos” (Christians et

lores para a sociedade (Hardy, 2008).

cabe aos conselhos audiovisuais das

al, 2009: 132), e isso resulta na von-

Além disso, têm como função garantir

comunidades autônomas. É importante

tade jornalística para desenvolver a

coletivo.

91


auto-regulação profissional, transpa-

na definição dos critérios éticos para

jornalismo, aprofundar conhecimentos

rência da informação e participação

a ação da mídia. Nas palavras de

sobre media accountability é estraté-

pública. Na medida em que a mídia

Bertrand (2003), são sistemas de res-

gico, urgente e necessário.

incentiva estes valores profissionais

ponsabilização da mídia e funcionam

Os países lusófonos apresentam

pode-se dizer que há uma disposição

como indicadores para medir o plura-

distintos graus de presença e atua-

para a prestação de contas ao público

lismo e a transparência do cenário da

ção de instrumentos de accounta-

(Puppis, 2009; Diaz-Campo e Segado-

mídia em qualquer Estado democráti-

bility em seus sistemas mediáticos.

-Boj, 2014).

co. Sua função essencial é supervisio-

Os cenários mais desenvolvidos são

Num contexto jornalístico em

nar, monitorar, criticar e examinar a

os de Portugal e Brasil, dados seus

profunda transformação, os sistemas

evolução e a qualidade da informação

acúmulos históricos no que tange à

de prestação de contas passaram por

jornalística, e mais ainda num con-

profissionalização do jornalismo,

uma nítida evolução nos últimos anos,

texto de crise setorial e concentração

à consolidação de mercados de con-

aproveitando o potencial da internet e

midiática (Eberwein, 2010). Conhecer

sumo de informação e aos esforços

da web 2.0 (Fengler et al, 2014). En-

o verdadeiro impacto desses instru-

para robustecimento de seus regimes

quanto os instrumentos de prestação

mentos e sua capacidade de substituir

democráticos. Embora haja iniciati-

de contas tradicionais (ombudsman

os mecanismos de intervenção política

vas difusas em Angola, Timor-Leste

offline, códigos de ética, cartas ao

e regulatória é essencial para avaliar

e Moçambique, pode-se afirmar com

editor) têm um impacto limitado na

até que ponto são úteis para preservar

alguma certeza que as disposições

prática profissional e pouco uso pelos

o pluralismo nos meios de comunica-

mais numerosas e amadurecidas de

cidadãos (Alsius e Salgado, 2010), o

ção. No momento em que se cria uma

prestação de contas e transparência

ambiente digital incentiva a criação

Rede Lusófona pela Qualidade da In-

midiática estejam entre brasileiros

de novas formas de transparência e

formação (RLQI) , dedicada a reunir

e portugueses. Ora estimuladas por

controle da qualidade da informação

esforços e experiências dos países de

órgãos de controle, como a Entidade

e permite que os cidadãos participem

língua portuguesa para aprimorar seu

Reguladora da Comunicação Social

1

e expressem sua opinião sobre os conteúdos da mídia. É essencial conhecer os sistemas que a mídia usa para dar conta de sua atividade. Esses sistemas são uma amostra de responsabilidade profissional e valorizam o papel dos cidadãos

(ERC) em Portugal, ora observáveis 1 A RLQI foi formalmente constituída em novembro de 2018 na Universidade de Coimbra (Portugal), e reúne órgãos classistas, pesquisadores acadêmicos, e entidades da comunicação dos nove territórios da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) para desenvolver estudos, promover eventos e incentivar o aprimoramento do jornalismo nessas localidades.

por empreendimentos mais pulverizados como observatórios de mídia, ombudsmans e ouvidores, e projetos de aperfeiçoamento empresarial ou corporativo, como o Programa de Auto-Regulação da brasileira


Associação Nacional dos Jornais

tradicionais e os criados com a expan-

Pompeu Fabra (Barcelona) trabalhou

(ANJ).

são da internet .

com diferentes grupos de pesquisa

2

Isso não quer dizer que tais rea-

Na sequência, para aprofundar

europeus. Em resposta ao incipiente

lidades tenham culturas estabeleci-

questões locais, os pesquisadores

desenvolvimento de sistemas inova-

das nas empresas e redações ou que

espanhóis iniciaram o projeto “Me-

dores, referências têm aparecido re-

haja consenso e naturalidade para

diaACES. Accountability y Culturas

centemente na Europa e nos Estados

expor as vísceras do sistema midiáti-

Periodísticas en España: Impacto y

Unidos, enaltecendo a internet como

co. Ainda há muito a se desenvolver

propuesta de buenas prácticas en los

ambiente importante para responsa-

nessa direção se o entendimento for

medios de comunicación españoles”.

bilizar os jornalistas (Domingo e Hei-

de que a transparência contribui para

A investigação se apoia na hipótese de

nonen, 2008; Eberwein, 2010; Fengler

o aumento não apenas da qualidade

que a cultura jornalística espanhola

et al, 2014). Na Espanha, são ainda

dos produtos e serviços, mas também

não responde a um único modelo de

escassas as contribuições sobre esta

na melhora da relação entre mídia e

sistema de meios – como apontavam

questão para além das abordagens de

público.

Hallin e Mancini (2004) –, daí a ne-

Herrera-Damas (2013) e do Grupo de

Para lançar um olhar rigoroso so-

cessidade de matizar tal classificação.

Pesquisa de Jornalismo da Universitat

bre as realidades múltiplas dos paí-

Foram investigados os instrumen-

Pompeu Fabra, por meio das pesquisas

ses lusófonos e contributivo para um

tos de prestação de contas tradicionais

de Mauri-Rios e Ramon-Vegas (2015)

diálogo, recorremos à experiência da

e os novos, desenvolvidos fora das

e Ramon-Vegas, Mauri-Ríos e Alcalá

Espanha, que apresenta duas condi-

redações, com foco no cumprimento

(2016).

ções oportunas: dispõe de um mercado

das funções próprias da mídia numa

Entretanto, é preciso reconhecer

mediático que dialoga principalmente

sociedade democrática (Rodríguez-

que já há uma relevante produção cien-

com o contexto português e acumula

-Martínez et al., 2013), como os con-

tífica dos dois projetos3, o que fertiliza

diversas pesquisas sobre accountabi-

selhos de informação (Suárez-Villegas,

lity. Entre 2010 e 2014, a Espanha

2015b) ou os blogs de crítica de mídia

fez parte do consórcio de 14 países

(Ramón-Vegas, Mauri-Ríos e Alcala,

para o projeto “MediaAct-Media Ac-

2016). No projeto, o Grupo de Pes-

countability Systems in Europe and

quisa em Jornalismo da Universitat

Beyond”, que, a partir da classificação dos modelos jornalísticos de Hallin e Mancini (2004), observou o impacto dos sistemas de prestação de contas

2 Dois importantes resultados do projeto podem ser conferidos em Eberwein, Fengler, Lauk e Leppik-Bork (2011) e em Eberwein, Fengler e Karmasin (2017).

3 São referências importantes os trabalhos de Alsius, Mauri-Ríos e Rodríguez-Martínez (2011); Rodríguez-Martínez, Figueras, Mauri-Ríos e Alsius (2013); Suárez-Villegas (2015); Mauri-Ríos e Ramón-Vegas (2015); Mauri-Ríos, Rodríguez-Martínez, Figueras-Maz e Fedele (2018); Ramón-Vegas, Mauri-Ríos e Alcalá (2016); Suárez-Villegas e Cruz Álvarez (2016); Suárez-Villegas, Rodríguez-Martínez, Mauri-Ríos e López-Meri (2017); Suárez-Villegas e Rodríguez-Martínez (2018).

93


Produzidos no âmbito das empresas ou grupos de mídia Auto-regulação: ombudsmans ou defensores dos leitores, livros de estilo, códigos internos, documentos que sinalizam as linhas editoriais, comitês profissionais, seções de recebimento de reclamações. Transparência: informações sobre dados corporativos. Participação: cartas ao diretor/editor, chamadas telefônicas, SMS. Quadro 1. Instrumentos tradicionais de

Produzidos fora das empresas ou grupos de mídia

prestação de contas

Auto-regulação: códigos de ética externos, conselhos de imprensa, treinamento.

Fonte: Elaboração própria a partir dos

Transparência: estudos de opinião e de mercado, crítica de mídia, publicações especializadas, academia.

resultados da pesquisa TRIP.

Participação: associações de espectadores.

nossa imaginação para identificar o

Catalunha, Galiza, Madrid, País Bas-

momento é identificar as experiências

que se pode avançar nos ecossiste-

co e Comunidade Valenciana).

múltiplas da Espanha no tocante à ac-

mas jornalísticos lusófonos a partir

A comparação dessas realida-

countability da mídia e percebermos

do que vimos na Espanha. Ainda que

des permite verificar se a realidade

como meios de comunicação, cidadãos

contemple uma realidade complexa,

comunicativa espanhola responde a

e jornalistas dos países lusófonos po-

dinâmica e distinta dos países falantes

uma única cultura midiática ou se

dem se valer de alguns dos conheci-

do português, o exemplo espanhol tem

apresenta nuances mais complexas.

mentos gerados.

aspectos oportunos a serem observa-

A pesquisa em andamento propõe a

Os instrumentos de responsabili-

dos e, em alguma medida, absorvíveis

elaboração de mapas que permitam

zação têm um impacto relativo entre

e adaptáveis. Até mesmo as falhas,

verificar a presença desses sistemas

os profissionais, mas uma influência

insuficiências e inconsistências já de-

de responsabilização em diferentes

muito considerável entre os cidadãos,

tectadas podem contribuir para ajustes

partes da Espanha, a análise de sua

o que poderia tornar seu propósito sem

nos instrumentos de accountability da

utilidade por profissionais e cidadãos,

efeito se eles não fossem acompanha-

mídia em língua portuguesa.

e o desenvolvimento de modelos que

dos de uma adequada literacia mediá-

permitam avaliar seu impacto e gerar

tica. Seria útil detectar, por exemplo,

Media Accountability na

boas práticas entre os profissionais de

se os cidadãos estão cientes desses

Espanha

comunicação.

mecanismos e se são suficientemente

Os dados a seguir são parciais

Como já sinalizamos, esta pesqui-

compreensíveis e amigáveis para se-

porque a pesquisa está em fase de

sa é baseada na hipótese de que a

rem usados e manejados. Esses ins-

desenvolvimento e porque nos concen-

cultura jornalística na Espanha não

trumentos são fundamentais para o

tramos em apresentar aqui apenas al-

responde a um único modelo de siste-

pluralismo e a transparência da mídia.

guns aspectos mais amplos do estudo.

ma de mídia. Segundo a classificação

A este respeito, será útil saber como

Ressaltamos que além dos esforços

de Hallin e Mancini (2004), a Espa-

o pluralismo e a transparência podem

realizados pelo Grupo de Pesquisa

nha faz parte do modelo mediterrâneo

ser fundamentados como dois critérios

em Jornalismo (GRP) da Universitat

ou pluralista polarizado. No entanto, a

básicos de responsabilização. Um dos

Pompeu Fabra, estão somados também

diversidade de culturas profissionais

objetivos do projeto que originou este

os resultados colhidos por outras uni-

existentes em diferentes territórios

artigo é justamente sugerir modelos

versidades espanholas para contrastar

pode matizar essa classificação. Não

de responsabilidade social da mídia,

a presença de novos instrumentos de

é propósito deste artigo enveredar por

elaborados de acordo com as diretrizes

accountability no país (na Andaluzia,

esta discussão embora ela seja seminal

que garantam e promovam os valores

para o projeto. Mais importante neste

da accountability.


No âmbito das empresas ou grupos de mídia · · · · · · ·

Blogs das redações. Blogs de jornalistas hospedados no site dos veículos. Ombudsmans online, chats e encontros digitais com os leitores. Contribuições dos usuários na criação de conteúdo. Botões de notificação de erro. Redes sociais e comentários. Instrumentos de transparência corporativa.

Fora das empresas ou grupos de mídia · · · · · ·

Observatórios e publicações eletrônicas de crítica de mídia. Sites de instituições e associações profissionais. Iniciativas particulares, como blogs de jornalistas ou comunicadores. Blogs de cidadãos ou acadêmicos. Redes sociais. Outros instrumentos conduzidos pelos cidadãos.

Quadro 2 - Instrumentos on line de prestação de contas

Fonte: Elaboração própria a partir dos resultados da pesquisa TRIP.

Para observar os instrumentos de

Com relação ao domínio da inter-

mídia; descrição das especificações e

transparência e prestação de contas

net, tomando como ponto de partida

uso do instrumento; formas de partici-

dos meios na Espanha, recorremos a

a divisão em quatro níveis dos blogs

pação pública; e avaliação dos meca-

bases de pesquisas anteriores, como

de mídia feita por Domingo e Heino-

nismos de responsabilização.

a do projeto “Transparencia y Rendi-

nen (2008), foram seguidos quatro

Foram, então, identificados os ins-

miento de Cuentas en la Información

critérios para a seleção de blogs (os

trumentos de prestação de contas em

Periodística (TRIP)”, de 2013-2015.

três primeiros obrigatórios, o último,

diferentes comunidades autônomas es-

Embora existam inúmeras clas-

opcional se os três anteriores forem

panholas levando-se em consideração

sificações de instrumentos de res-

cumpridos). Assim, para fazer parte

sua condição (tradicional ou online)

ponsabilização, esta pesquisa se

dos instrumentos identificados, o tema

e seu ponto de origem (a partir das

concentra nos instrumentos de res-

principal do blog deveria ser ética jor-

redações e externamente a elas).

ponsabilização externos à mídia. A

nalística e/ou a supervisão do traba-

fim de elaborar a classificação uti-

lho de jornalistas e meios; a autoria

Queremos enfatizar as três dimen-

lizada neste trabalho, levamos em

do blog deveria estar relacionada à

sões com as quais trabalhamos para

conta, entre outros, a proposta de

profissão (blogs assinados por jorna-

identificar e classificar os instrumen-

Russ-Mohl (2003) e Fengler (2008),

listas, professores e/ou pesquisado-

tos de prestação de contas: Auto-regu-

que dividem instrumentos atuais de

res) ou instituições especializadas em

lação, Transparência e Participação.

accountability entre tradicionais

accountability (clubes de jornalistas,

Auto-regulação está relacionado às

(defensores do leitor, conselhos de

associações profissionais, sindicatos

normas ou diretrizes de conduta que

imprensa...) e inovadores (blogs de

de jornalistas); o blog deveria estar

a mídia e os jornalistas impõem como

editores, atividades de mídia em re-

ativo e as postagens serem publicadas

compromisso com o público, para

des sociais, etc.). Atenção também foi

com certa regularidade; o blog deveria

realizar uma comunicação rigorosa,

dada à classificação de Shoemaker

ter número significativo de assinantes

responsável e ética. Essas normas são

e Reese (1996), que distribuem os

e/ou seguidores nas redes sociais. Para

traduzidas e materializadas em instru-

instrumentos de acordo com níveis

a seleção e análise dos blogs, também

mentos criados pela mídia, por jorna-

de influência no jornalismo: indivi-

se levou em consideração o documento

listas ou por instituições jornalísticas

dual (blogs de jornalistas), prática

Best Practice Guidebook do MediaAct

para prestar contas ao público e à so-

profissional (conselhos de imprensa),

(Bichler et al., 2012), adaptado por

ciedade. A Transparência inclui a ne-

organizacionais (códigos de ética, de-

Mauri e Ramon (2015), no qual foi

cessidade dos meios de comunicação

fensores do leitor) e externos à mídia

feita uma codificação em categorias:

fornecerem informações empresariais

(redes sociais, blogs de cidadãos).

produção interna ou externa para a

sobre seus grupos, permitindo que o 95


Tabela 1. Principais instrumentos de prestação de contas frente aos cidadãos

Fonte: Elaboração própria a partir dos resultados colhidos pela equipe.

Auto-regulação

Internos

Externos

# Ombudsmans # Livros de estilo # Códigos de ética internos # Estatutos de redação (documentos de linha editorial) # Comitês Profissionais

# Clubes de jornalistas # Códigos de ética externos # Conselhos de imprensa # Conselhos audiovisuais # Associações profissionais # Sindicatos profissionais

# Seções de reclamações Com intervenção profissional Transparência

Participação (interação com os cidadãos)

Transparência

Sem intervenção profissional Participação (interação com os cidadãos)

# Informações sobre dados corporativos do meio # Seção/área dedicada a relatórios sobre mídia # Site ou blog da direção da empresa

# Grupos de pesquisa acadêmica # Observatórios de mídia # Publicações especializadas # Estudos de mercado # Estudos de opinião # Redes de instituições, associações profissionais, escolas, sindicatos …

# Blogs de jornalistas hospedados no site do meio # Perfis oficiais do meio nas redes sociais

# Blogs externos de jornalistas

# Cartas ao diretor/editor # Chamadas telefônicas e SMS # Chats com leitores/audiência # Botões de notificação de erro

# Associações de espectadores # Associações de consumidores e usuários

# Seção de conteúdo elaborado por usuários # Blogs de cidadãos incluídos no site do meio

# Blogs externos de cidadãos # Críticas de usuários em redes sociais


público entenda princípios e processos

Cabo Verde, e São Tomé e Príncipe.

desafios, essas lacunas não interferem

editoriais, estrutura organizacional e

Desta forma, o mosaico multifacetado

tanto na leitura do quanto se pode ain-

situação financeira. A Participação en-

do mundo falado em língua portugue-

da evoluir. A apresentação dos resul-

globa as atividades que incentivam o

sa é, de origem, plural, dinâmico e

tados espanhóis serve, sobretudo, para

contato direto entre meios, profissio-

desigual. Comungar a mesma língua

um diálogo e para eventuais adaptações

nais e público, o que ajuda a facilitar

permite trocas simbólicas importantes

e apropriações pelos territórios lusófo-

uma participação ativa nos processos

e forte intercâmbio cultural, mas tal

nos. Muitas das práticas hispânicas são

de criação jornalística.

facilidade não faz desaparecer idios-

já observadas no Brasil e em Portugal,

sincrasias, passivos históricos, capa-

por exemplo, em diferentes graus de

cidades e potenciais próprios.

maturação. O que distingue a Espanha

Combinadas ou isoladas, essas categorias permitem não apenas ajudar a caracterizar os dispositivos de

A multiplicidade dos dispositivos

é um respeitável acumulado de pesqui-

accountability, mas também sinalizam

de accountability da mídia no contex-

sas e estudos sobre media accountabi-

vetores para seu aprofundamento e

to espanhol sinaliza a variedade das

lity, condição que os lusófonos muito

disseminação. Para o desenvolvimen-

possibilidades de abertura dos meios

bem poderiam reproduzir, ainda mais

to das paisagens e dos ecossistemas

de comunicação para a participação

com o surgimento da Rede Lusófona

mediáticos dos países lusófonos, tais

popular e o incentivo ao fortalecimento

pela Qualidade da Informação.

planos são úteis e bem-vindos.

e o florescimento da cidadania. Mostra

A Espanha é assimétrica, contradi-

também o quanto empresas de comu-

tória politicamente, e ainda persegue

Para concluir: desafios para

nicação e jornalistas podem horizon-

os ideais para consolidar sua jovem

os lusófonos

talizar suas relações com o que antes

democracia – com pouco mais de qua-

As assimetrias e as insuficiências

chamávamos de audiências e que se

tro décadas – e para se firmar entre as

são esperadas em contextos com alta

satisfaziam em meramente receber

mais prósperas economias europeias.

diversidade. É o que se percebe na

conteúdos.

No que tange às aspirações políticas,

Espanha, mas sobretudo no espaço

Os dados apresentados não permi-

coincide com os países lusófonos que

lusófono. Enquanto o Brasil tem um

tiram analisar os detalhes de consoli-

anseiam por mais democracia desde os

mercado consumidor de bens simbó-

dação dessas práticas nas culturas lo-

extertores do colonialismo do século

licos de 209 milhões de pessoas, a

cais espanholas, o que poderia indicar

XX. Essa coincidência pode sinali-

Guiné-Bissau não chega a ter 1% dis-

avanços, estagnações ou retrocessos em

zar caminhos mais bem pavimentados

so; as paisagens mediáticas de Portu-

termos de transparência e prestação de

para os territórios que ainda estão no

gal, Angola, Macau e Timor Leste são

contas. Como os países lusófonos, eles

início de suas jornadas de estabilidade

igualmente distintas de Moçambique,

mesmos, têm seus próprios (e muitos)

política. 97


A Espanha busca também modernizar seus pólos de produção jornalística e se inserir nos novos negócios da mídia. Os gestores das empresas de comunicação e os jornalistas são cobrados pelas camadas organizadas do público para que se abram à participação, à interatividade e à transparência. Em Portugal e Brasil, alguns atores se rendem a esses apelos, mas isso não é uma cultura consolidada e uniforme, uma regra de mercado ou uma prática corrente. Pesquisas como a MediaACT e a MediaACES são importantes para conhecer as realidades

A cultura jornalistica espanhola não responde a um único modelo de sistemas de meios – como apontaram Hallin e Mancini

mera existência de instrumentos não garante que haja um ambiente espontaneamente transparente, pró-ativo na prestação de contas e determinado à abertura ao público. Não existe um paraíso espanhol. Há resistências culturais e corporativas também, além de vácuos na participação. Os instrumentos são importantes, mas eles funcionam a partir de outros motores, como incentivos internos nas empresas, disposição e entusiasmo naturais ou assimilados, e esforços para o desenvolvimento e cultivo de uma atmosfera efetiva de accountability. Uma conjun-

locais e conceber e planejar políticas.

ção de forças facilita essa emergência,

No âmbito da lusofonia, poderiam ser

e elas são de caráter jurídico, político

propostas e desenvolvidas investiga-

e econômico. Assim, marcos regula-

ções amplas e cooperativas. Imaginar

tórios que encorajem a transparência

que os lusófonos africanos possam fa-

(e eventualmente punam a opacidade

zer comparativos com seus vizinhos

das empresas), agentes econômicos que

continentais, ou o mesmo com Macau e

invistam na abertura das corporações,

Timor Leste na Ásia, é entusiasmante.

e movimentos organizados que ajudem

A recém-lançada Rede Lusófona pela

a consolidar regimes de estabilidade

Qualidade da Informação (RLQI) po-

política e cultura democrática são

deria auxiliar em esforços deste tipo.

necessários para que a prestação de

A variedade do cenário espanhol

contas e a transparência convertam-se

demonstra riqueza de oportunidades

em práticas correntes e duradouras.

no aprofundamento do relacionamento

Uma agenda para o espaço lusó-

entre meios, profissionais e sociedade.

fono para aperfeiçoar e aprofundar a

Mas é necessário frisar sempre que a

transparência e a prestação de contas


da mídia passa inevitavelmente por

Bertrand, C.-J. (2002). O Arsenal da

In T. Eberwein, & D. Müller, (Eds),

consolidar mercados produtores e

Democracia:Sistemas de responsa-

Journalismus und Öffentlichkeit.

consumidores de informação em cada

bilização da mídia. Bauru: EdUSC.

Wiesbaden: Verlag.

país, por fortalecer os regimes de es-

Bowles, N., Hamilton, J.T. & Levy, D.A.L.

Eberwein, T., Fengler, S. Karmasin, M.

tabilidade política, com alternância

(Eds.) (2014). Transparency in Poli-

(2017). The European Handbook of

de poder e direção democrática, e por

tics and the Media. Accountability

Media Accountability. London: Sage.

enaltecer as demandas dos públicos e

and open government. London: I.B.

Eberwein, T.; Fengler, S., Lauk, E. & Lep-

das cidadanias. Alguns lusófonos pre-

Tauris

pik-Bork, T. (Eds.) (2011). Mapping

cisam também desenvolver condições

Christians, C. G., Glasser, T. L., Nordens-

Media Accountability – in Europe

de base para alguns instrumentos de

treng, K. & White, R.A. (2009).

and Beyond. Colônia: Herbert Von

accountability mais simples, fortalecer

Normative Theories of the Media.

Halem Verlag.

os já existentes e desenvolver sistemas

Urbana: University of Illinois Press.

Fengler, S. (2008). Media journalism and

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Lucas Henrique Nigri Veloso lucasnveloso@gmail.com Universidade Federal de Minas Gerais

Abundância Comunicativa, Ângela Cristina Salgueiro Marques Escassez da Política? https://orcid.org/0000-0002-9688-7819

angelasalgueiro@gmail.com

Desafios À Democracia na Era do Monitoramento1 Communicative Abundance, Political Scarcity? Challenges To Democracy in The Monitoring Era

Universidade Federal de Minas Gerais https://orcid.org/0000-0002-2253-0374

Ricardo Fabrino Mendonça ricardofabrino@hotmail.com Universidade Federal de Minas Gerais https://orcid.org/0000-0002-7754-3359

https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_7

Resumo

Abstract

O artigo apresenta uma reflexão teórico-

This article presents a theoretical-

-analítica acerca de relações estabeleci-

-analytical ref lection on the rela-

das entre democracias ocidentais, era de

tionships between Western democracies,

abundância comunicativa e contempo-

the era of communicative abundance,

râneos modos de sociabilidade política.

and contemporary modes of political

Se por um lado processos globais de

sociability. While, on the one hand,

democratização da informação e pro-

the global processes of democratization

liferação de instituições e mecanismos

of information and the proliferation of

de monitoramento político nos permi-

institutions and mechanisms of poli-

tem afirmar sobre um “empoderamento”

tical monitoring allow us to assert an

do demos e consequente vitalidade das

«empowerment» of the demos and the

democracias ocidentais, por outro ates-

consequent vitality of Western democra-

tamos que uma possível hipertrofia ou

cies, on the other hand we attest that a

monopólio da prática política monitória

possible hypertrophy or the monopoly of

também pode produzir efeitos adversos

monitorial political practices can produ-

às próprias democracias, como retorno

ce adverse effects on democracies, such

de populismos totalitários. A partir do

as the return of totalitarian populism.

desenvolvimento de tal panorama, apre-

In view of this scenario, we present an

sentamos por fim uma reflexão ética que,

ethical reflection that, besides emphasi-

com especial ênfase aos campos da co-

zing the fields of social communication

municação social e jornalismo, nos con-

and journalism, calls attention to the

voca ao cultivo de significantes, práticas

cultivation of signifiers, practices, and

e potências políticas outras para além do

political powers beyond monitoring, es-

monitoramento; sobretudo aquelas que

pecially those aiming at the production

visam a produção de “comuns” outros

of a «common» other, more egalitarian,

mais igualitários, mais democráticos.

more democratic.

Palavras-chave: Crise da democracia;

Keywords: Crisis of democracy; commu-

comunicação; populismo; John Keane;

nication; populism; John Keane; Pierre

Pierre Rosanvallon.

Rosanvallon.

1

A realização da pesquisa da qual se origina este artigo recebeu apoio do CNPq e da FAPEMIG.

101


Introdução

digital nos despertem grande otimismo

em vista sua contribuição positiva para

De acordo com dados produzidos

no que diz respeito suas contribui-

com processos globais de democrati-

pela plataforma Internet World Stats,

ções para com os processos globais de

zação da informação e conhecimento,

no ano de 2018 pelo menos 55,1%

democratização da informação e co-

deve ser qualificada como de suma

da população mundial possuiu al-

nhecimento. Mas seria seguro afirmar

importância ao enfrentamento de largo

gum tipo de acesso à rede mundial de

que tal abundância comunicativa tam-

espectro de desigualdades econômi-

computadores (Internet World Stats,

bém está promovendo democracias de

cas e sociais (Delanty, 2001; Keane,

2019). Mesmo quando consideramos

maior qualidade e vitalidade política?

2013; Piketty, 2014). Por outro lado,

contextos marcados por múltiplas e

O exame das democracias ociden-

as formas de sociabilidade contempo-

intensas desigualdades, a supracitada

tais a partir de uma reflexão sobre

rânea, alimentadas e alimentadoras

pesquisa afirma que 67,2% e 36,1%

a contemporânea era de abundância

desta era de abundância comunicativa,

das populações da América Latina e

comunicativa, haja vista a abrangên-

parecem também se relacionar, de for-

África possuíram algum tipo de co-

cia e complexidade do tema, é uma

ma perversa, para com dinâmicas de

nexão às mídias digitais e internet

tarefa que poderia se iniciar por vá-

desencanto e desconfiança para com

no ano de 2018; estatística que nos

rias vias de entrada. Por efeito, tais

a política, políticos e as próprias de-

afirma sobre a existência de uma maior

percursos de análise poderiam nos

mocracias; muitas das vezes, também

probabilidade de grande parte destas

fornecer proposições e panoramas

relacionadas para com a emergência

populações acessarem redes digitais

menos ou mais promissores acerca das

de novos populismos de características

do que água, esgoto e serviços de aten-

qualidades das políticas produzidas

totalitárias e/ou xenofóbicas (Dean,

ção médica básica (Kreutzer, 2009).

tanto em territórios específicos como

2009; Rancière, 1995; Rosanvallon,

Tendo em vista este breve panorama,

aqueles cuja escala atravessa nossa

2008).

não nos espantam pesquisas que

cosmopolis global. Talvez por esse mo-

Tendo em vista a problemática

atestam que a produção de dados via

tivo, a partir de revisão bibliográfica,

construída e brevemente apresenta-

internet já alcança um volume de 2,5

identificamos um aparente dissenso

da, o artigo analisa relações de apa-

quintilhões de bytes diários no mundo,

entre pesquisadores dedicados à aná-

rente complementaridade e oposição

sendo a tendência deste volume dobrar

lise da questão supracitada que nos

que modos de sociabilidade política

a cada dois anos (Cukier & Mayer-

desperta a atenção e ímpeto reflexivo.

vigentes em democracias ociden-

-Schoenberger, 2013). Nesse sentido,

Por um lado, parece irrefutável que a

tais têm estabelecido com a era de

é justificável que a inédita escala de

proliferação de usuários, mediadores

abundância comunicativa. A partir

acesso, uso e produção de artefatos,

e mediações articulados à sistemas

deste movimento almejamos, para

mídias e conteúdos de comunicação

digitais integrados via internet, tendo

além de mapear possíveis vetores de


contribuição e ameaça às democracias

maior capacidade de vigiar, constran-

política democrática que é exercida

ocidentais, realizar uma reflexão ética

ger e denunciar atores, instituições

por seus cidadãos. Ao conjunto destas

de cunho propositivo que se reporta ao

e representantes eleitos em ilegítimo

experiências e práticas de perpétuo

passo analítico anterior. Para atingir

exercício de poder. A análise destas

criticismo, reatividade e baixo grau

tal objetivo, nossa análise é operacio-

e outras proposições, procurando ga-

propositivo, o autor as agrega sob o

nalizada a partir de um diálogo com

rantir especial ênfase aos campos de

conceito de “contra políticas”, sendo

dissidências entre dois pesquisado-

atuação da comunicação social e jor-

estas potencialmente instauradoras

res que possuem expressiva pesquisa

nalismo, nos fornecerá insumos tanto

de fenômenos ou mesmo culturas de

acerca do objeto de nossa investigação:

para compreender em que sentidos

“contra democracias”. Ainda, a baixa

o cientista político John Keane e o

John Keane sustenta uma perspectiva

responsividade dos governantes peran-

historiador da política Pierre Rosan-

otimista para com as relações que

te aos clamores dos “cidadãos monito-

vallon,

se estabelecem entre abundância co-

res”, situação que é muitas das vezes

Primeiramente, ao mobilizar o

municativa e “democracia monitória”

efeito da própria abundância e impro-

pensamento do cientista político John

quanto para identificar e ponderar

cessável volume de ações “contra po-

Keane (2013), definimos o conceito

sobre ameaças e desafios que também

líticas”, ao gerar maior frustração, de-

de abundância comunicativa e o rela-

são efeito desta relação.

sencanto e desconfiança para e entre

cionamos para com o processo global,

Na segunda parte do artigo, convo-

os primeiros, não apenas acabaria por

ainda que diferenciado, de democra-

camos o historiador da política Pierre

esgotar possibilidades e modos outros

tização da informação. A partir de

Rosanvallon (2008) ao debate a fim

de se agir coletivamente com vistas

tal movimento, procuramos verificar

de nos fornecer perspectivas outras

a produção de “comuns” outros mais

como o autor sustenta a afirmativa de

sobre relações estabelecidas entre

democráticos, mas também criaria

que a multiplicação e cristalização

abundância comunicativa, democra-

condições de possibilidade para uma

de atores, instituições e práticas so-

cias ocidentais e práticas políticas

trágica (re)emergência de populismos

ciais de monitoramento político via

de monitoramento. Do ponto de vista

totalitários e/ou xenofóbicos. Neste

mídias digitais criou condições de

de Rosanvallon, o cultivo intensivo

sentido, a abundância comunicativa

possibilidade para que as democra-

ou mesmo monocultura de atores e

e a “democracia monitória”, do ponto

cias ocidentais sejam melhor qualifi-

práticas políticas de monitoramento

de vista de Rosanvallon, também po-

cadas enquanto “democracias moni-

nas democracias ocidentais pode pro-

deriam ser avaliados sobre o prisma

tórias”; qualificadas sobretudo pelo

duzir efeitos perversos e indesejados

das crises das democracias ocidentais

maior “empoderamento” de cidadãos

às próprias democracias ao limitar o

que testemunhamos em nosso contem-

e grupos minoritários haja vista sua

espectro de significações e práticas da

porâneo. 103


A construção do diálogo dissidente

também almeja inspirar futuros diálo-

multinterativos com custos espaciais,

que acima introduzimos e que desen-

gos e/ou recortes e imersões empíricas

temporais e econômicos progressiva-

volvemos ao longo deste artigo possui

acerca das questões abordadas.

mente menores (Keane, 2013, p.18).

como custo a impossibilidade de se

Por fim, o artigo convida a refletir,

De acordo com o Keane, um dos

considerar de forma detida toda uma

seja enquanto cidadãos, seja enquanto

efeitos mais expressivos da era de

extensa e importante bibliografia que

atores dos campos acadêmicos e/ou

abundância comunicativa poderia

se dedica ao exame das crises contem-

jornalísticos, sobre a urgente necessi-

ser verificado na flexibilização ou até

porâneas das democracias ocidentais

dade de se resgatar e atualizar signifi-

mesmo inversão da estrutura comuni-

e suas interfaces para com atores, ins-

cantes outros da política democrática

cacional vigente na famigerada era dos

tituições e tecnologias da informação

para além da legítima capacidade mo-

“media de massa”. Se até pelo menos

e comunicação (Brennan, 2016; Cha-

nitória; estes que nos permitam propor

as últimas décadas do século XX o

dwick, 2013; Dahlgren, 2013; Dean,

e produzir éticas, mídias e “comuns”

fluxo de informações instaurados pelos

2009; Dobson, 2014; Green, 2010;

outros mais igualiatários, mais demo-

“medias de massa” necessariamente

Runciman, 2018; Levitsky, s. & Ziblat,

cráticos.

partiam de um ponto para que assim

d., 2018); também aquelas que se de-

fossem distribuídos para milhões de

dicam especialmente à análises que

Abundância comunicativa

outros, ou seja, de um ponto emis-

relacionam a questão anterior com o

democratização

sor para n receptores (one-to-many),

campo e prática do jornalismo contem-

da informação

vigora hoje a possibilidade de que

porâneo (Engesser et al., 2017; Ferrei-

e democracia monitória

quaisquer pontos outrora classificados

ra, 2018; McDevitt & Ferrucci, 2018;

A era de abundância comunicativa é

como receptores tornem-se emissores

Silverman, 2016; White, 2017). Sem

definida pelo cientista político John Kea-

de dados e informações para os de-

embargo, acreditamos que o alcance,

ne como um período revolucionário em

mais (many-to-many). Por efeito, po-

abrangência e urgência da discussão

que sistemas mundiais de media devices

deríamos afirmar que um dos traços

proposta, aliada a qualidade e hetero-

(computadores, smartphones, tablets) in-

definidos da era de abundância comu-

geneidade das pesquisas, dados, argu-

tegrados via internet possibilitam que

nicativa é um exponencial aumento

mentos e proposições produzidos por

pessoas e populações distribuídas por

da capacidade de escolha individual

Keane e Rosanvallon, garante potente

todo planeta, ainda que atravessadas

sobre a forma (como, quando e onde),

rendimento da questão de trabalho pro-

por assimétricas desigualdades sociais,

conteúdo (o quê) e sentido (de quem,

posta e possibilidade de construção de

acessem e armazenem, produzam e re-

para quem) do ato de se comunicar e

pontes para com outras pesquisas e

produzam um volume inédito e quase

informar. Mas que relações esta revo-

pesquisadores. Nesse sentido, o artigo

ilimitado de dados multissensoriais e

lução informacional e comunicacional


tem estabelecido para com as democracias ocidentais e o que seus efeitos derivados nos revelam? A era da abundância comunicativa, fomentada e fomentadora de múltiplos modos de sociabilidade entre indivíduos, grupos e instituições que

O monitoramento digital é também uma modalidade de poder

produção, por consequência da vigente e ampla possibilidade dos antigos consumidores “passivos” se tornarem “ativos” produtores de informações e, assim, retroalimentarem o fluxo comunicacional many-to-many. O atestado de um processo global

derivam das relações que estes estabe-

de proliferação de acesso, consumo

lecem a partir de seus media devices,

e produção de dados e informações

têm criado condições de possibilidade

multissensoriais, temáticas e intera-

para uma intensificação do processo

tivas via mediações digitais talvez nos

histórico e globalmente diferenciado

permitiria afirmar que as sociedades

de democratização da informação.

abundantes em media devices nun-

Essa proposição é defendida por Kea-

ca foram tão democráticas. Tal pro-

ne a partir da identificação de pelo

posição poderia ser justificada pela

menos três estruturas de privilégio ou

inegável possibilidade de controle e

“tiranias” comunicacionais que têm

contestação política que cidadãos hoje

sido processualmente atenuadas ou

experimentam e/ou exercem perante à

desmanteladas em contextos ociden-

representantes eleitos, grandes corpo-

tais (Keane, 2013, p.25-26): a) “tira-

rações ou outros grupos da sociedade

nia” da distância, uma vez que bancos

civil em posição assimétrica de poder

de dados e fluxos comunicacionais têm

a partir dos media de comunicação

sido principalmente produzidos e re-

digital e suas potências de monitora-

produzidos, como no caso de acervos

mento, denúncia e luta política. Não

de museus, bibliotecas e universida-

seriam estas possibilidades de contro-

des, em dimensões digitais; b) “tira-

le e contestação do poder princípios

nia” do uso, tendo em vista a ampla

fundantes e compromissos da demo-

redução dos custos para se acessar e/

cracia representativa para com o povo

ou possuir um media device e assim se

ou demos? Por outro lado, se todos

conectar a seus recursos e conteúdos,

somos demos e temos a possibilidade

sobretudo via internet; c) “tirania” da

de nos fazer lidos, vistos e/ou ouvidos 105


politicamente pelo Estado, justiça e/

menos ou mais intencional, algum tipo

regimes de percepção e valoração que

ou sociedade civil generalizada, ain-

de feedback para o self: visualização,

é vigente num dado território. Acre-

da que por mediações digitais, o que

leitura, resposta, identificação entre

ditamos não ser necessário recorrer a

justificaria hierarquias e assimetrias

alguns e/ou demarcação de diferenças

literatura específica que associa pro-

na capacidade de alguns cidadãos

para com outros. Ainda, com o clique

cessos de reconhecimento intersub-

serem de fato reconhecidos ou ne-

de uma câmera, aquilo que em outros

jetivo tanto como pilares materiais,

gligenciados, protegidos ou deixados

períodos históricos fora considerado

afetivos e simbólicos necesssários a

para morrer? Tentaremos abordar tal

como impublicável ou restrito a esfera

auto-realização e auto-determinação

questão, ainda que de forma parcial

do privado pode vir instantaneamente

cidadã de um dado self, como também

e incompleta, nos delimitando aqui

a tornar-se público e, assim, disputar

às lutas coletivas e movimentos sociais

a análise de alguns dos ganhos, pro-

visualizações, comentários, likes, pa-

que almejam justiça social (Honneth,

messas e limitações que o processo de

trocínios, dentre outras modalidades

2013; Honneth & Anderson, 2011).

democratização da informação oferece

de reconhecimento intersubjetivo.

Assim sendo, nos parece seguro afir-

às próprias democracias ocidentais .

Ainda, da forma como a arquitetura

mar que a era de abundância comu-

A partir de interações media-

de grande parte dos sites, aplicativos

nicativa possui potência política pre-

das digitalmente, indivíduos e grupos

e redes sociais encontra-se estrutu-

ciosa no que tange a busca pela plena

diversos, como por exemplo aqueles

rada, tal feedback interacional possui

realização das democracias ocidentais

atuantes nas redes sociais, podem pro-

amplo potencial de ganhos de capital

e da condição cidadã de suas popula-

duzir narrativas de si mesmos para

social, simbólico, afetivo, econômico e

ções. Entretanto, também é certo que

audiências potencialmente ilimitadas

político de forma quase instantânea.

processos, lutas ou mesmo gestos que

e transnacionais, expressando assim

As promessas e potências do cir-

almejam reconhecimento intersubjeti-

valores, identidades, interesses, ex-

cuito de reconhecimento intersubjetivo

vo também são atravessadas por cer-

pectativas, capacidades e/ou opres-

brevemente exposto acima é motivo

tos paradoxos e efeitos adversos que

sões experienciadas em seu cotidiano

para que racionalidades, corpos e mo-

podem aprofundar às próprias vulne-

a partir das mais distintas modali-

dos de existência marginais e margina-

rabilidades simbólicas, corpóreas e

dades e gêneros textuais, sonoros e

lizados também disputem, ainda que

existenciais que justamente motivam

imagéticos (Keane, 2013, p.34-35).

assimetricamente, a oportunidade de

tais ações (Butler, 2004, 2009; Cole,

Sob a ótica do psicólogo social Geor-

tornarem-se reconhecidos pelo ecos-

2016; Mackenzie, 2014). Por estes e

ge H. Mead (1972), por exemplo, tal

sistema digital; quem sabe até escapar

outros motivos, há de se considerar

exposição de si, inevitavelmente di-

e até mesmo transformar uma desigual

importantes riscos que esta ampla po-

recionada a alguém, busca, de forma

e muitas das vezes violenta partilha de

tência de reconhecibilidade oferece


aos próprios cidadãos de democracias

privacidades que se encontram atual-

(registros de navegação, cookies ocul-

ocidentais.

mente ameaçadas por poderosos atores,

tos, backdoors e blackboxes). O moni-

Toda a estrutura ou circuito intera-

instiuições, dispositivos, softwares e al-

toramento digital, portanto, não pode

tivo-comunicacional de reconhecimento

gorítimos digitais que se aproveitam de

ser entendido em certos contextos ou

intersubjetivo que acima apresentamos

vulnerabilidades alheias.

situações simplesmente como uma ca-

como vigente na era de abundância

Nos termos da era do “Big Data”, é

pacidade tecnológica, mas como uma

comunicativa depende, dentre outras

explícita a assimetria de capacidades

modalidade de poder que é assimetri-

coisas, que indivíduos e/ou instituições

que se manifesta entre indivíduos e ins-

camente colocada em prática.

conectados via media devices monitorem

tituições no que tange a “mineração”

Muitos dos dispositivos tecnoló-

uns aos outros de forma instantânea,

e/ou coleta, armazenamento e proces-

gicos e dinâmicas de sociabilidade

extensiva e praticamente ininterrupta.

samento de notícias, denúncias, rela-

que operam na era de abundância

Por efeito, em alguma medida, todos

tórios, pesquisas, indicadores, mensa-

comunicativa têm criado urgências

temos nos tornado cidadãos monitores

gens ou mesmo cookies, menos ou mais

e condições de possibilidade para a

e monitorados; ainda que com capa-

explícitos, dispersos e/ou ocultados no

emergência de complexas disputas

cidades de monitoramento cada vez

complexo, híbrido e abundante banco

pelo limitar e exercer de poder monitor

mais assimetricamente distribuídas e

de dados digital que forma a internet

entre cidadãos, grupos e/ou institui-

exercidas. De acordo com Keane (2013,

(Cukier & Mayer-Schoenberger, 2013).

ções. Tais processos políticos têm pro-

p.38), grupos e até mesmo instituições

Foi-se o tempo em que somente os fa-

duzido grandes impactos e alterações

qualificadas como “arautos da privaci-

migerados hackers eram enquadrados

nos campos de força que atravessam

dade” têm adotado uma postura bastante

enquanto aproveitadores de vulnerabi-

e compõem as democracias represen-

crítica com relação a estas assimétricas

lidades dos usuários das redes digitais.

tativas, haja vista que a produção de

capacidades de monitoramento. Para

Cada vez mais corporações e Estados

fatos, narrativas e enquadramentos

estes críticos, as tecnologias de comu-

encontram-se envolvidos em contro-

de acontecimentos cotidianos como

nicação digital integradas via internet

vérsias e escândalos sobre usos inde-

politizáveis ou de relevância política

devem ser consideradas como “espadas

vidos ou mesmo ilegais de dados que

possuem, ainda que reativamente, a

de dupla lâmina”: se podemos atestar

os próprios usuários das redes digitais

potência de influenciar à conduta e

grandes potências e ganhos no comba-

produzem sobre si mesmos a partir de

tomada de decisões não apenas de

te de desigualdades sociais e políticas

suas interações via media devices, seja

representantes eleitos, mas também

graças a abundância de acesso e uso

de forma mais explícita e/ou deliberada

de instituições e/ou atores que com-

de media devices integrados, também

(redes sociais, comentários em páginas

põem a própria sociedade civil (Kea-

devemos estar alertas para as diversas

de notícias, formulários digitais) ou não

ne, 2013, p.46). Assim, compreender 107


as dinâmicas e traçar os diagramas dos vetores de poder monitório nos exige um complexo mapeamento de de atores e instituições que também competem entre si enquanto legítimos monitores do Estado e sociedade civil; situação esta que, cabe ressaltar, tem produzido intensas transformações nas estruturas normativas e práticas do fazer jornalístico. No que tange o campo de produção jornalística, Keane nos indica metamorfoses ou mesmo cristalizações de progressivas transformações que são efeito da adequação institucio-

Para se pensar outras possíveis democracias é necessário abundância de racionalidades, signos e materialidades

e compartihamentos e outras métricas de aferir valor de publicidade digital. Esta situação pode ser verificada, por exemplo, nas coberturas jornalísticas do cotidiano, espaço público e/ou política: ao almejarem a produção ininterrupta de histórias news-breaking ou do gênero “flagrante”, como no caso de acidentes, crimes, escândalos de corrupção e crise política, o trabalho e investimento de recursos necessários para garantir um mínimo de atendimento aos compromissos de apuração de fatos e objetividade jornalística não são, muitas das vezes, sequer consi-

nal e produtiva aos arranjos sócio-

derados por ser entendidos apenas

-políticos que se apresentam nesta

como custos, não compromissos ou

era de abundância comunicativa. A

investimentos (Keane, 2013, p.48;66).

partir das relações estabelecidas entre

De outro modo, os modelos de jor-

jornalismo e os global media conglo-

nalismo que têm se cristalizado na era

merates, por exemplo, é identificado

de abundância comunicativa também

pelo autor como tendência generali-

possuem importantes potências de

zada a priorização da produção e re-

contribuição positiva às democracias

produção de notícias e publicações em

ocidentais no que diz respeito às suas

meio de circulação digital que alme-

amplas capacidades de disseminar e

jam a maximização de rentabilidade

fazer reverberar globalmente denún-

com publicidade. Por consequência,

cias de desigualdades, opressões e

quedas na diversidade, qualidade e

violências sociais localizadas. Inves-

mesmo confiança dos produtos jor-

tigações e matérias acerca de práti-

nalísticos são justificados como em

cas de injustiça para com minorias

favor de mais cliques, visualizações

oprimidas por relações de poder num


dado contexto ou território, quando

e contestação de poder ilegítimo ou

grandes conglomerados midiáticos e

realizadas por grandes conglomerados

injusto (Keane, 2013, p.71-75).

jornalísticos, devem ser considerados

jornalísticos, por exemplo, possuem

Os recursos, conexões e até mes-

como cada vez mais importantes ato-

grande possibilidade de reverberação

mo a expertise de monitoramento que

res políticos nas redes, configurações,

global e, assim, produzir movimen-

caracteriza instituições como a de

jogos de poder e influência que for-

tos de comoção e contestação política

produção jornalística tendem a con-

mam o complexo rizoma político do

transnacional. Por efeito, tal potência

tribuir para que seus atores ocupem

contemporâneo.

política do jornalismo contemporâneo,

importantes posições de poder nas

A era de abundância comunicati-

que é efeito de sua articulação para

dinâmicas políticas das democracias

va e sua vinculação para com os pro-

com as redes globais de comunica-

ocidentais. Por exemplo, estratégias

cessos globais de democratização da

ção digital, se relacionam para com a

de captura e posterior vazamento de

informação, ainda que o mapeamento

emergência dos importantes “públicos

dados e informações preciosas de

e análise dos efeitos derivados desta

transnacionais”1: agregados políticos

indivíduos e instituições em posição

relação não tenham sido esgotados tan-

que, empáticos à causas para além de

assimétrica de poder - prática conhe-

to por nós como por Keane, garantem

seus territórios, podem vir a ser forma-

cida no jornalismo como muckraking

insumos para que o autor nos afirme

dos e/ou acionados a fim de contribuir

- cria condições de possibilidade para

que testemunhamos uma importante

para com uma dada situação social

que atores do campo do jornalismo,

metamorfose ou transição de fases nas

de injustiça a partir do fornecimento

em graus variados, se tornem temi-

democracias ocidentais (Keane, 2013,

de recursos, circulação e comparti-

dos vetores políticos. Seja por parte de

p.75-86). A tese de que nos encon-

lhamento de notícias ou até mesmo

governantes eleitos, seja por parte de

tramos em “democracias monitórias”

inspirando estratégias de resistência

grandes CEOs empresariais, a ativi-

nos exige alargar conceituações que

1 Ao verificarmos outros exemplos de “públicos transnacionais”, como as instituições BirdLife International and the World Glacier Monitoring Service que se dedicam ao escrutínio da ação humana sobre à biosfera terrestre, é de se destacar sua grande heterogeneidade no que tange a seus modos de estruturação, causas e escalas de atuação; situação que nos impede de aprofundar sobre estes importantes agentes políticos do contemporâneo neste ocasião. (KEANE, 2013, p.82)

dade contemporânea de muckraking é

insistem em reiterar que democracias

composta tanto por práticas que visam

são sistemas políticos cuja distribui-

o controle democrático dos poderosos

ção de poder político se dá sobretu-

como de outras que visam ganhos de

do a partir de eleições livres e justas

capital (econômico, político, simbóli-

de representantes pelo voto popular;

co) oriundo daqueles que se encontram

ainda que não sejam ou devam ser

ameaçados de indesejada exposição

entendidas como menos que isso. Em

pública. Por este motivo, Keane afirma

escala global, agentes e instituições

que agentes e mecanismos de moni-

“monitores do poder”, tal como abor-

toramento, com especial destaque aos

damos brevemente neste artigo, têm 109


se tornado cada vez mais poderosos

por exemplo (como vimos), na am-

naturalizadas que ocultam intenções e

atores políticos graças às suas capaci-

pliação das distâncias de poder

fins políticos opostos a ideais e códigos

dades de influenciar eleições, agendas

entre os ricos e os pobres em ter-

democráticos. Não obstante, este mes-

e/ou tomadas de decisões de partidos

mos de media, estes vistos como

mo processo de intensificação de sus-

e representantes eleitos. Não que tais

quase desnecessários comunica-

peita que hoje vigora em “democracias

dinâmicas sejam inéditas nos regi-

dores ou consumidores de produ-

monitórias” também não produziria,

mes políticos ocidentais; inéditas são

tos de midiáticos, simplesmente

como duplo efeito, uma generalizada

a escala, volume e complexidade de

porque não têm poder de compra

instituição de desconfiança e desen-

agenciamentos e atuações de agentes

de mercado. (…) No entanto, o

canto por parte dos cidadãos perante

interessados no exercício contemporâ-

ponto fundamental permanece:

a própria política democrática? Uma

neo do poder monitor. Ainda, a proli-

quando visto do ponto de vista

possível hipertrofia e/ou monocultura

feração de monitores e mecanismos de

da democracia monitora e seu

de práticas políticas de monitoramento

monitoramento também introduz consi-

futuro, o advento da abundância

poderiam representar algum tipo de

derável diferença nos arranjos e jogos

comunicativa deve ser considerado

ameaça as próprias democracias?

políticos de uma democracia graças a

como um desenvolvimento muito

capacidade de exposição pública de re-

bem-vindo (KEANE, 2013, p.102,

Institucionalização

lações institucionais e/ou corporativas

nossa tradução).

da desconfiança, contra-democracia

injustas, ilícitas e/ou cuja publicidade

e escassez da política

era indesejada e que, muitas das vezes,

Entre ganhos e esperanças, con-

operam por baixo, entre e para além de

tradições e desapontamentos que atra-

Quando verificamos resultados

territórios e Estados nacionais. Com a

vessam a expectativa de futuro para

de pesquisas como a Digital News

multiplicação de pesos e contrapesos

as “democracias monitórias”, Keane

Report 2017, promovida pelo Reuters

informacionais, Keane espera que se

(2013, p.106-107) aposta que, no longo

Institute, atestamos que nos EUA e no

promova democracias de maior quali-

prazo, a grande diversidade de produ-

Brasil respectivamente 51% e 66%

dade no que tange ao “empoderamento”

tores, produções e produtos midiáticos

dos entrevistados utilizam redes so-

do grande monitor: o demos. Fomen-

que caracteriza a era de abundância

ciais e/ou aplicativos relacionados

tando tais esperanças, o autor conclui

comunicativa contribuirá positivamente

para o consumo de notícias; situação

que a era de abundância comunicativa,

para com as democracias ocidentais

que aponta para um deslocamento da

tanto por fomentar culturas cívicas plu-

posição dos “medias tradicionais” en-

(...) na verdade, produz muitas

ralistas quanto por alimentar o senso

quanto principais “caixas de resso-

contradições e desapontamentos,

de suspeita cidadão perante “verdades”

nância” de temas políticos perante a


sociedade civil (Newman et al., 2017,

os fatos são importantes para a

arquiteturas e/ou algorítimos de uma

pp. 10-11). A ampliação da produção,

democracia e que as pessoas que-

página ou rede social em questão, a

disponibilidade e meios de acesso de

rem estar bem informadas quando

cultura política que vêm se cristali-

informações políticas por parte dos ci-

convocadas para tomar decisões

zando nas democracias ocidentais é o

dadãos nos indicam uma certa “saúde”

com potencial de mudar suas vidas

de exclusivo consumo e compartilha-

da democracia, principalmente no que

(White, 2017, p. 14)

mento de notícias que já sustentam po-

se refere aos processos de democrati-

sições políticas prévias dos cidadãos.

zação de informação. Entrementes, a

Como nos coloca Ferreira (2018),

Para Ferreira, a relação entre o cresci-

multiplicação de atores e instituições

é certo que mesmo os “media tra-

mento das fake news e a formação de

midiáticas das mais diversas, princi-

dicionais” nunca foram plenamente

“bolhas” ideológicas nas redes sociais

palmente movidas pela tendência de

considerados como “fiéis arautos” da

“sugere que os usuários estariam me-

maximização de rentabilidade publici-

“verdade”, haja vista a difícil ou im-

nos propensos a receber informações

tária e minimização de investimentos

provável separabilidade de interesses

verdadeiras que possam condenar um

relacionados ao atendimento de prin-

políticos e econômicos da prática jor-

artigo ideologicamente alinhado (...)”

cípios normativos do jornalismo, como

nalística. Todavia, para além de uma

(Ferreira, 2018, , p.140;145).

a apuração de notícias, cria condições

possível culpabilização do jornalismo

Ainda que não seja o escopo des-

para uma grave onda global de produ-

e outras instituições midiáticas pelo

te artigo discorrer sobre a complexa

ção e consumo das famigeradas fake

fenômeno das fake news, a novidade

questão das fake news e suas relações

news: notícias que têm como objetivo

que o contexto contemporâneo nos

para com a formação de “bolhas” po-

deliberado falsear uma realidade. Tal

apresenta é a de que cada vez mais

lítico-ideológicas entres usuários das

situação é especialmente preocupante

audiências se importam menos com o

redes digitais, o que temos verificado

para a democracia pois a

grau de veracidade e objetividade das

em diferentes pesquisas e publicações

informações consumidas. Tal situa-

é o atestado de uma infeliz confluên-

(...) livre circulação de mentiras

ção lamentável ainda se intensifica,

cia: a era de abundância comunica-

maliciosas, a ineficácia da veri-

como nos indica Ferreira, quando ve-

tiva, atravessada por uma generali-

ficação de factos, a resiliência

rificamos resultados de pesquisa que

zada indiferença e/ou negligência e/

da propaganda populista, o ra-

atestam sobre expressiva segregação

ou incapacidade cidadã de diferenciar

cismo, o sexismo e o surgimento

ideológica ou formação de “bolhas”

opiniões de fatos, liberdade de expres-

da chamada era da ‘pós-verdade’

informacionais entre usuários de re-

são de discurso de ódio, não apenas

parecem desafiar um pilar funda-

des sociais. Seja por motivos de in-

têm criado condições de possibilida-

mental do jornalismo ético — que

tenção deliberada ou por efeito das

de para radicalização de ideologias 111


políticas mas intensificação de polari-

haviam investido seu pensamento no

A proliferação de práticas moni-

zações aparentemente irreconciliáveis

exame de relações e efeitos proble-

toras ou de “contra poder”, repertório

entre cidadãos (Engesser et al., 2017;

máticos às democracias que derivam

de ação política cada vez mais cris-

Ferreira, 2018; McDevitt & Ferrucci,

de uma certa hipertrofia da cultura

talizado em contextos de abundância

2018; Silverman, 2016; White, 2017).

e prática política de monitoramento;

comunicativa e “democracia monitó-

Por efeito, em um cenário onde a des-

práticas essas que, em muitos dos

ria”, poderia nos dizer de uma certa

confiança, oposição irrefletida ou sim-

casos, tornaram-se exclusivos signos

vitalidade das democracias pelo me-

plesmente indiferença perante o outro

de participação política cidadã. Para

nos no que se refere ao direito e a

torna-se a norma, situação que tam-

o pensador francês, em primeiro mo-

necessidade de que a mesma opere sob

bém retroalimenta desejos e clamores

mento de acordo com o ponto de vista

escrutínio popular. Entrementes, Ro-

por mais políticas de monitoramento

de John Keane, os modos de exercício

savallon nos afirma que se por um lado

civil e estatal, signos políticos outros,

de soberania política do demos ou povo

atividades políticas de “contra poder”

que apostam em ações coletivas de

perante o Estado têm cada vez mais

se multiplicam com a desconfiança e

ampla escala voltadas de forma pro-

extrapolado a distribuição de papéis

desencanto civil para com a política e

positiva a produzir “comuns”, possi-

e funções que alocaria cidadãos no

políticos, por outro lado o Estado e ou-

velmente mais justos e igualitários,

exclusivo papel de eleitores em con-

tras instituições interpeladas por tais

parecem se esvaziar das democracias.

textos de democracias representativas.

demandas e clamores tendem a não

Nesse sentido, seria possível afirmar

Como argumenta Rosanvallon, a pre-

alcançar os níveis de responsividade

que a abundância comunicativa e a

dicação do povo como eleitorado foi

almejados pelos cidadãos e grupos

democratização da informação, ainda

progressivamente sendo suplementada

monitores. Por efeito, tal negativa de

que tenham contribuído inegavelmen-

no ocidente por outra figuras meta-

reconhecimento político retroalimenta

te para o “empoderamento” da popu-

fóricas: povo como watchdogs, “por-

sensações, experiências e discursos

lação, sobretudo com relação às suas

tadores de veto” e/ou “juízes”. Não

de desconfiança e desencanto dos ci-

capacidades de monitoramento de ato-

obstante, Rosanvallon afirma que

dadãos monitores para com políticas,

res em situação assimétrica de poder,

estas predicações suplementares da

políticos e as próprias democracias, de

tenha, como duplo efeito, produzido

soberania popular podem ser qualifi-

forma que estes venham a se tornar su-

vetores de oposição ou de ameaça à

cados como predominantemente indi-

jeitos “contra políticos” (Rosanvallon,

própria democracia?

retas (monitoramento), reativas (veto) e

2008, p.16-17).

Pesquisadores como o historia-

pouco propositivas (acusação), sendo

Para Rosanvallon, podem ser

dor da política Pierre Rosanvallon

por isso englobadas pelo francês sob

elencados pelo menos os seguin-

(2008), ainda na década passada,

uma única categoria: “contra poderes”.

tes efeitos sócio-políticos de larga


escala, derivados e retroalimenta-

resistência, dificuldade e/ou impos-

uma democracia de desconfiança

dores de um aparente monopólio da

sibilidade para grande parcela dos

duradoura, que complementa a

“contra política” em democracias

cidadãos de narrar e representar

episódica democracia do usual

ocidentais e que, do nosso ponto de

problemas sociais heterogêneos sob

sistema eleitoral-representativo.

vista, se relacionam diretamente

signos comuns e, assim, articular e

Assim, a contra-democracia é

para com a era de abundância co-

projetar ações coletivas propositivas

parte de um sistema maior que

municativa: a) maior fragmentação,

além monitoramento (Rosanvallon,

também inclui instituições de-

insulamento e confronto tanto de ci-

2008, p.22-23).

mocráticas legais. Ela procura

dadãos perante à atores do Estado,

Diante do cenário acima exposto,

complementar essas instituições

como de grupos de cidadãos ideo-

que certamente também é intensifi-

e ampliar sua influência, para

logicamente polarizados entre si; b)

cado pela abundância contemporâ-

apoiá-las (Rosanvallon, 2018,

aumento da incerteza e desencanto

nea de desinformação e fake news

p.8, nossa tradução e grifo).

generalizado para com a política

nas redes digitais, Rosanvallon vai

e os políticos e, assim, intensifi-

além, entendendo que a instituciona-

O conceito de “contra democracia”

cação do já abundante desejo por

lização do desencanto, desconfiança e

nos convoca a refletir em que sentidos

mais transparência, monitoramen-

“contra-política” têm criado condições

a proliferação, pulverização e mono-

to e accountability; c) resistência,

não apenas para a emergência de uma

cultura de instituições e formas de

dificuldade e/ou impossibilidade

“democracia monitória”, como poste-

ativismo “contra político” têm cria-

para grande parcela dos cidadãos

riormente propôs Keane, mas uma

do condições para que nos tornemos

de desenvolver uma compreensão

“contra democracia” que:

cada vez mais “apolíticos” ou “não-

abrangente sobre problemas com-

-políticos” com relação a outros pos-

plexos que atravessam suas vidas

(…) reforça a democracia eleitoral

sibilidades signícas e práticas que o

societária tendo em vista a quase

usual como uma espécie de su-

conceito de política poderia assumir

improcessável disputa política por

porte, uma democracia de poderes

para além da desconfiança, desen-

informações, fatos e enquadramen-

indiretos disseminados por toda

canto e monitoramento. Ciente dos

tos que, na maioria dos casos, são

a sociedade, em outras palavras,

perigos que as democracias ociden-

divergentes, contraditórias ou mesmo deliberadamente falseados 2 ; d) 2 Ainda que não seja possível explorar a problemática com o devido compromisso analítico que o assunto exige, as crises

tais enfrentam em cenários como o sueconômicas, fiscais e tributárias que atravessam a maior parte dos Estados nacionais ocidentais e que fundamentam os discursos por austeridade e enxugamento dos mesmos, assim como analisado por Schäfer e Streeck (2013), por exemplo.

pracitado, Rosavallon novamente nos ajuda a elencar uma série de efeitos perversos ou índices de “patologias” que são decorrentes do processo de 113


“desintegração democrática” que é

predominando assim políticas

descentralizados de monitoramento

promovido por “contra democracias”

públicas e estratégias de “evasão,

e “governança” por formas outras de

(2008, p.254-259):

evitação e diluição”; situação esta

governo que não a democracia. Um

a) desconfiança generalizada desti-

que retroalimentaria o desencanto

exemplo elencado por Rosanvallon

dos cidadãos;

para a proposição anterior seria a pos-

nada à processos eleitorais, assim deslegitimando ou enfraquecendo

e) judicialização da política e ideologia

sibilidade de um retorno, ainda que

os próprios poderes e instituições

da “transparência” substituindo

com diferenças, às formas de governo

as quais são endereçadas as de-

os exercícios de responsabilida-

que derivaram da emergência de po-

mandas por maior transparência

de, interesse e “bem comum” no

pulismos nacionalistas e totalitários

e accountability;

que tange a definição do fim da

que marcaram a virada do século XX.

b) isenção de responsabilidade políti-

política. Tudo se passa como se a

Diante de uma proposição tão alar-

ca e social por parte dos cidadãos a

qualidade ou prática de “transpa-

mante, cabe analisarmos com maior

partir de um tácito encastelamento

rência”, entendida como a potência

atenção de que maneira Rosanvallon

destes sobre a identidade ou ró-

capaz de eliminar todo tipo de ten-

sustenta tal argumentação para que

tulo de passivos “consumidores

são e dificuldade da cada vez mais

assim tenhamos maior capacidade de

políticos”;

incerta e controversa vida social

compreender os desafios políticos que

c) ações políticas “radicais” tornam-se

ocidental, estivesse legitimada

se apresentam em nosso horizonte .

englobadas pelos signos de perpé-

aprioristicamente a eliminar tudo

A institucionalização processual

tuo criticismo ou ativismo moral

que se encontre em seu caminho

da “contra democracia”, que varia sua

não propositivo, principalmente

– quem sabe até mesmo o próprio

relação em graus de intensidade para

eclipsando projetos de concreta

Estado e democracia.

com a abundância de atores e mecanis-

transformação de estruturas de

mos de monitoramento desconfiados e

opressão e desigualdade social

A reflexão crítica de Rosanvallon

desencantados promove, para Rosan-

violentas, opressoras ou mesmo

(2008, p.259-266) sobre a “desinte-

vallon (2008, p.266), uma espécie de

injustificáveis ;

gração da política” e o desenvolvi-

“legitimação destrutiva” dos próprios

d) representantes e, por consequên-

mento do “apolítico” ou “não político”

atores e organismos representantes de

cia, governos mais relutantes

nos alerta sobre a possibilidade de

um Estado. Tal atestado é justificado

para apresentar projetos e ações

enfrentarmos, num futuro que pare-

pelo autor tendo em vista que atores e

que implicam em mudanças es-

ce se atualizar com maior intensida-

instituições monitoras não procuram

truturais de larga escala e im-

de em nosso presente, a substituição

substituir ou apresentar projetos de

pacto social ou mesmo reformas,

dos vigente processos e mecanismos

coletivos ou mesmo sociedades outras,


Reflexões finais

mas limitar e até mesmo drenar os

em narrativas ou mitos de uma pureza

poderes e capacidades do Estado de

que se perdeu no passado e que, caso

A construção argumentativa rea-

forma com que este seja incapaz de

recuperada, produziria a almejada

lizada neste artigo procurou mapear

instituir o coletivo, o social. Entre-

“utopia da transparência”. Eis porque

e analisar relações de complemen-

tanto, neste processo de drenagem, o

(re)emergências de populismos essen-

taridade e oposição entre as eras de

que teria se tornado escasso? Quem,

cialistas em pleno século XXI pode-

abundância comunicativa, modos de

de que forma e com o que será preen-

riam ser entendidas, do ponto de vista

sociabilidade política contemporânea

chido o signo que nos agrega enquanto

de Rosanvallon, como possíveis efeitos

e democracias ocidentais. A operacio-

membros de uma sociedade, a saber,

de uma hipertrofia e monocultura de

nalização de nossa investigação se deu

o povo ou demos?

“contra poderes”, “contra políticas” e

principalmente a partir da produção de

“contra democracias”.

um diálogo dissidente entre dois pes-

Como nos coloca o filósofo Jacques Rancière (1995), a quem Rosanvallon

Se a preocupação de John Keane

quisadores que, por possuírem expres-

mobiliza explicitamente em seu debate,

para com a “democracia monitória”

siva trajetória no que tange o exame de

parece que a paixão por formas trans-

seria resolvida a partir de maior

nosso objeto de reflexão, nos auxiliaram

parentes e puras da democracia teria

distribuição de recursos comunica-

na complexificação e multiplicação de

nos feito esquecer ou até mesmo odiar

tivos para que assim mais monito-

perspectivas da análise por nós rea-

aqueles que tentam disputar seu con-

res emerjam à cena pública digital

lizada. Movidos por este debate, que

teúdo a fim de promover projetos de

e possam – quem sabe - ser ouvidos

também contou com a aliança de outros

sociedade outros que não a manuten-

e considerados como relevantes nos

teóricos e pesquisadores da ciência po-

ção e limpeza dos modelos e estrutu-

processos de tomada de decisão de

lítica e comunicação social, caminha-

ras vigentes. Desencantados sobre um

representantes eleitos, o preocupante,

mos agora para uma reflexão final que

futuro além “democracia monitória”,

para Rosanvallon, é que a abundância

também almeja ser considerada como

nos encontramos sem consenso sobre

de instituições monitoras ou “contra

possível proposição ética.

a própria existência do demos que de-

políticas” capturem e/ou desintegrem

Nos parece ponto pacífico que a era

veria ser princípio e fim da política

significantes e práticas cidadãs outras

de abundância comunicativa, fomenta-

democrática. Para Rosanvallon (2008,

da democracia, fomentando assim es-

da e fomentadora de uma exponencial

p.266-267) tal cenário cria condições

cassez de política em favor de “contra

expansão dos processos globalmente

para que “políticos profissionais” pro-

política”; escassez de demos em favor

diferenciados de democratização da

ponham, em nome do escasso ou ine-

de pureza e transparência; escassez de

informação, criou condições de pos-

xistente demos, versões essencialistas e

democracia em favor de, quem sabe,

sibilidade para que cada vez mais

unitárias de “povo” que são ancoradas

populismos totalitários e xenofóbicos.

cidadãos experimentem e exerçam 115


importantes direitos e capacidades

No que tange os campos e práticas

finais, destacamos que a hipertrofia ou

da política democrática em seus coti-

do jornalismo e comunicação social no

mesmo monocultura de práticas de mo-

dianos com potencial de reverberação

cenário supracitado, refletimos sobre

nitoramento, sobretudo quando estas

transnacional. Tal atestado nos diz de

a tendência de que estes estruturem

são relacionadas pelos cidadãos como

um “empoderamento” do demos no que

seus esforços produtivos no sentido

únicos sinônimos de participação polí-

tange uma ampliação de sua potên-

de retroalimentar o desejo cidadão

tica democrática, podem produzir como

cia de influência e/ou poder monitó-

por monitoramento, transparência e

efeito uma proliferação generalizada

rio perante representantes eleitos ou

accountability. Tal situação parece,

de culturas cívicas “contra políticas”

mesmo grupos poderosos da sociedade

por um lado, contribuir para com a

ou mesmo “contra democráticas”. Tal

civil que, ameaçados por denúncias,

“democracia monitória” no sentido

situação, fomentada e fomentadora de

escândalos ou mesmo erosão de suas

da produção de abundante volume

fragmentação, desconfiança e desen-

imagens por efeito da ação de atores

de notícias de cunho “flagrante” e,

canto do próprio demos para consigo

e instituições monitoras, devem pon-

assim, de certa maneira, introduzir

e para com a própria democracia, é

derar com maior cautela sobre custos,

temores e custos nos processos de to-

um possível indicador da escassez de

pesos e contrapesos de tomadas de

mada de decisão política de atores e

significações e práticas políticas outras

decisão política. Por outro lado, ain-

grupos poderosos. Ao mesmo tempo,

que não aquelas indiretas, reativas e

da que possamos afirmar sobre uma

a disputa pela produção ininterrupta

de baixo grau propositivo. Entrementes,

singular vitalidade das “democracias

de fatos, acontecimentos, enquadra-

tal alerta, que também nos interpela

monitórias” no que tange as caracte-

mentos ou mesmo postagens sobre

sobre a probabilidade de (re)emergên-

rísticas supracitadas, também pode-

complexas e urgentes temáticas de

cia de regimes políticos totalitários e

mos ponderar que, em certa medida,

interesse coletivo podem acabar por

de características xenofóbicas em con-

o aprofundamento de vulnerabilidades

criar impecílhos e dificuldades para

textos de escassez de significantes e

cidadãs perante a agentes e institui-

os próprios cidadãos, haja vista que

práticas democráticas de instituição de

ções monitoras de grande poder, como

produções que visam apenas ganhos

“comuns”, tal como argumentamos na

aquelas que deliberadamente captu-

com visualizações, publicidades e pa-

segunda parte do artigo, não implica

ram, processam e mobilizam dados

trocínios tendem, muitas das vezes,

que devemos abrir mão dos ganhos

digitais supostamente privados para

a desconsiderar a complexidade dos

sócio-políticos que a era de abundância

fins corporativos e/ou políticos, nos

problemas sociais que se propõem a

comunicativa e mesmo a “democracia

dizem ainda de importantes desafios

denunciar ou abordar.

monitória” nos têm garantido.

tecno-políticos em nossos horizontes democráticos.

Para além dos riscos ou perigos que

Almejar que haja cada vez

brevemente abordamos nestas reflexões

mais abundância comunicativa,


monitoramento e mecanismos de ve-

síntese dialética: esta que encapsula

Cukier, K., & Mayer-Schoenberger, V.

rificação do princípio de igualdade

e oblitera diferença(s) e que pode

(2013). The rise of big data: How

que é a priori metodológico da de-

produzir, por exemplo, modelos de

it’s changing the way we think about

mocracia, como nos sugere Rancière, é

demos purificados, homogêneos e em

the world. Foreign Aff., 92(3).

certamente algo que devemos defender

oposição a todos aqueles que não são

Dahlgren, P. (2013). The Political Web:

enquanto cientistas sociais, comunicó-

espelhos de si mesmos. Em contextos

Media, participation and alterna-

logos, jornalistas e cidadãos. Porém,

de escassez de finalidades da políti-

tive democracy. Basingstoke, En-

não podemos abrir mão da possibilida-

ca democrática, seria mais “realista”

gland: Palgrave Macmillan.

de de significar política e democracia

investirmos ainda mais capacidades

Dean, J. (2009). Democracy and other

como uma experiência ativa, proposi-

e potências no monitoramento das

neoliberal fantasies: Communica-

tiva, criativa e com vistas a produção

democracias ocidentais até que pos-

tive capitalism and left politics.

de “comuns” outros mais igualitários,

samos prever seus fins?

mais democráticos.

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necessária abundância de racio-

but some are more vulnerable than

nalidades, signos e materialidades

others: the political ambiguity of

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que tenham a capacidade de hos-

vulnerability studies, an ambivalent

ras: a propagação de fake news na

pedar heterogêneos sem que, com

critique. Critical Horizons, 17(2),

pré-campanha presidencial brasi-

tal movimento, se produza a temida

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This analysis shows how fake elec-

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Diogo Pires Aurélio diogoaurelio@hotmail.com Universidade Nova de Lisboa Recebido em: 15/01/2018 | Aceite em: 17/07/2018

https://orcid.org/0000-0002-2752-0407

As redes e o espaço público Networks and the Public Sphere https://doi.org/10.14195/2183-6019_9_8

Resumo

Abstract

Em finais do último século, o aparecimento

At the end of the last century, many so-

das chamadas redes sociais foi saudado por

ciologists and communication theorists

muitos sociólogos e teóricos da comunica-

welcomed the arrival of social networks

ção como um passo decisivo para o que en-

as a decisive step toward what was consi-

tão se imaginava ser uma revolução na de-

dered to be a revolution in representative

mocracia representativa. Vinte anos depois,

democracy. Twenty years later, the signs of

multiplicam-se os sinais de apreensão, não

apprehension multiply not only because of

apenas pela degradação do espaço públi-

the decline of the public sphere induced

co induzida pelo fenómeno, mas também

by that phenomenon, but also because of

pela forma intrusiva como certos Estados

the intrusive way some states are using it

o instrumentalizam na luta pela hegemonia

in the struggle for international hegemony.

internacional. Independentemente da for-

Regardless of how it has been considered,

ma como foram sendo olhadas, a verdade

there is no doubt that networks represent

é que as redes constituem uma mudança

a historical change in the configuration

histórica na configuração do espaço público

of the public sphere and, therefore, in the

e, consequentemente, na relação entre a

relationship between society and political

sociedade e o poder político. O objectivo

power. This presentation aims to analyze

desta apresentação é analisar até que ponto

how this change departed from the (until

essa mudança rompeu com o paradigma até

recently, hegemonic) paradigm in which

há pouco hegemónico, onde os media tra-

traditional media used to control the re-

dicionais monopolizavam a representação

presentation of public opinion concerning

da opinião pública face ao sistema político.

the political system.

Palavras-chave: Media; redes; povo;

Keywords:

representação; hegemonia.

representation; hegemony.

Media; internet; people;

119


Eu ainda sou do tempo em que

porém, que é da maior importância:

populistas, algoritmos intrusivos e

as redes sociais iam fortalecer a

enquanto nessa altura a mudança se

manipulações à distância, tudo pro-

democracia com uma participa-

traduziu pela passagem dos media

cessos mais ou menos clandestinos de

ção pública mais vasta, melhorar

tradicionais a protagonistas do espa-

intervenção política, que distorcem o

a informação e transparência com

ço público, o que atualmente se está

sentido do voto de milhões de elei-

o jornalismo-cidadão e contribuir

a passar é o desaparecimento desse

tores e pervertem aquilo que é um

para mais tolerância. Seja como

papel charneira que durante mais

procedimento essencial da democracia

for, foi um sonho bonito

de cem anos eles desempenharam

representativa.

(Paulo Ferreira, Twitter, 21 de

na vida social e política, sem que,

Uma amostra dessa mudança a que

outubro de 2018)

por ora, se veja claramente como se

me refiro pode encontrar-se naquilo

reorganizará, de futuro, esse mesmo

que se passou no Brasil, em 28 de

espaço.

outubro passado, com a eleição do

Ao longo das duas últimas décadas, verificou-se uma mudança es-

Trata-se, com efeito, de uma mu-

atual Presidente da República. Bol-

trutural naquilo a que chamamos o

dança cuja dimensão, em boa parte,

sonaro não possuía, tanto quanto pode

espaço público. Dizer que houve uma

ainda nos escapa, de tal maneira ela

avaliar-se pelo que se diz e publica a

mudança, é com certeza um lugar-

aconteceu de forma acelerada, se-

seu respeito, nenhum carisma, muito

-comum, sobretudo entre pessoas que

não mesmo abrupta. A maioria das

menos curriculum, que o apontassem

trabalham nesta área. Que ela tenha

vezes, ainda se pensa como se fosse

como previsível ocupante, por sufrágio

sido estrutural, já é menos evidente,

unicamente uma continuação da crise

universal, de um lugar como a chefia

e está longe de suscitar consenso.

iniciada no século passado, quando,

do Estado. Não possuía, além disso, o

Tentarei, no entanto, demonstrar que

afinal, já tudo à nossa frente se pro-

apoio de uma estrutura partidária con-

é precisamente essa a natureza do

cessa e propaga num outro compri-

sistente, nem a simpatia da maior par-

que está a passar-se no mundo dos

mento de onda. Há vinte anos atrás,

te dos media tradicionais, condições

media. Antes, porém, recordarei que

ou até há menos, era comum ouvir-

que até aqui se julgavam importantes,

não é esta a primeira vez que ocorre

-se, por exemplo, que os novos meios

senão decisivas, para uma vitória elei-

uma ruptura profunda no modo de

de comunicação iriam possibilitar a

toral. Apesar disso, e contra tudo isso,

funcionamento do espaço público e,

monitorização efetiva do Estado pelos

ele sagrou-se vencedor. É certo que já

por consequência, na relação entre o

cidadãos, assegurando mais transpa-

tinha acontecido algo semelhante nos

poder e o povo. Em meados do século

rência e mais democracia nas decisões

EUA, com a eleição de Trump. Mas

XIX, já tinha havido uma revolução

de interesse coletivo. Hoje em dia, já

não foi exatamente a mesma coisa.

semelhante. Com uma diferença,

não se fala senão em fake news, sites

Trump, sem ter a gravidade de um


estadista, muito menos a desenvol-

entre a massa de eleitores e as estru-

sustentados por grupos políticos.

tura intelectual de um Obama, era

turas do poder?

Como escreveu Tocqueville (1986a,

milionário e já possuía visibilidade

Uma explicação fácil, e mesmo

p. 274), “as duas grandes armas que

mediática; tinha além disso a apoiá-lo,

tentadora, consistiria em olhar para

usam os partidos para triunfar são os

pelo menos na fase final, um grande

o que está a acontecer como se fosse

jornais e as associações”. A partir daí,

partido político; e a par da popula-

um mero epifenómeno, um percalço à

eles vão depender principalmente das

ridade, adquirida em programas de

superfície do espaço público, que em

vendas e dos anúncios publicitários.

televisão de grande audiência, tinha

breve se irá recompor, com mais ou

E a verdade é que a sua impressão em

também do seu lado canais como a

menos ajustamentos. Contudo, o que

larga escala, secundada pela rápida

Fox News e sites de enorme eficácia

aconteceu, a meu ver, não foi tanto um

difusão por caminho de ferro, ia ao en-

e difusão, como o famoso Breitbart,

acidente ocasional, de consequências

contro das exigências, por um lado, do

de Steve Bannon. Bolsonaro não pos-

inesperadas e profundas, mas um ver-

capitalismo industrial, por outro, das

suía nada disso: nem curriculum, nem

dadeiro sismo, que abalou e reconfi-

multidões que haviam sido levadas,

partido, nem media. Dizia-se, é certo,

gurou os alicerces em que assentava

desde a instalação das primeiras uni-

que ele era apoiado pelas bancadas

o espaço público. Para se perceber

dades fabris, a emigrar do campo para

parlamentares BBB – dos evangéli-

inteiramente o que de facto ocorreu,

a cidade. É certo que já existia aquilo

cos (Bíblia), dos fazendeiros (Boi) e

convém primeiro recordar, ainda que

a que chamamos o espaço público.

dos vendedores de armas (Bala). Mas

rapidamente, como se originaram e

Tanto as gazetas, como outros tipos

além de não se lhes conhecer relevân-

funcionaram na modernidade as ins-

mais ou menos clandestinos de comu-

cia no plano político, pelo menos à

tituições de que estamos a falar.

nicação e crítica do poder, faziam parte da vida social da aristocracia culta

data, esses agrupamentos pareciam demasiado inorgânicos para garantir

1. Penny Press vs. gazetas

e da burguesia setecentistas. Eram, no

a angariação dos milhões de votos ne-

A chamada comunicação de mas-

entanto, um fenómeno circunscrito a

cessários. No entanto, apesar de ser

sas surgiu nos EUA, durante a pri-

uma elite, por muito que esta fosse

alguém sem reputação, sem apoio nos

meira metade do século XIX, fruto da

culturalmente relevante. Nada que

media tradicionais, sem família po-

generalização do «papel de jornal»,

se comparasse com a revolução que a

lítica reconhecida, os brasileiros, à

muito mais barato, e de uma conce-

penny press viria a produzir, primeiro,

primeira volta, elegeram-no. Como é

ção do produto, decisivamente virada

nos EUA, depois, na Europa de finais

que se explica semelhante terramoto

para o mercado: a classe média e a

do século XIX, ao colocar no merca-

nas instituições que ao longo de toda a

população em geral. Até então, os

do jornais acessíveis a largos estratos

modernidade tinham feito a mediação

jornais tinham sido maioritariamente

populacionais, quer pelo baixo preço, 121


quer pelos conteúdos, pelos proces-

frequentemente agita os meios urba-

estatuto de árbitros, que os projeta so-

sos narrativos e pelo próprio grafismo

nos. Por outro, tornam-se um instru-

bre a diversidade das classes sociais,

utilizado. Nessa altura, como Tocque-

mento privilegiado da coesão social e

vão por sua vez incorporar os ideais

ville (1986) se apercebeu e explica

da legitimação do poder, numa socie-

da objetividade, da neutralidade e do

ao pormenor em dois capítulos de A

dade que deixou maioritariamente de

respeito pelos factos, em sintonia, de

Democracia na América (vol. I, II, cap.

prezar as crenças e valores em que o

resto, com o positivismo que se impõe

3; vol. II, II, cap. 6), a sociedade no

exercício da autoridade assentara du-

no mundo da ciência, com a utopia do

seu conjunto mudara decisivamente,

rante séculos. É a opinião expressa nos

progresso tecnológico e civilizacional

em particular nas zonas industriali-

jornais que fomenta greves e motins.

e, naturalmente, com a difusão dos

zadas, onde agora se concentravam

Mas é também a mesma opinião que

valores igualitários. Quantos mais os

enormes aglomerados humanos e a

dinamiza a formação de associações,

estratos da população a que se alar-

agitação política germinava.

cujos membros partilham ideias, in-

ga o direito de voto, maior vai sendo

Foi, de facto, a massificação da

teresses e valores. Acima de tudo, é

a sua importância, a tal ponto que a

informação que alterou em profundi-

a opinião pública que transmite às

mediação entre os diversos grupos de

dade a natureza do espaço público,

multiudões aglomeradas nas diversas

interesses e as instituições do Estado

fazendo-o, por assim dizer, abandonar

cidades a convicção de partilharem

se torna, a partir de então, impossí-

os salões e cafés, onde até aí se reunia

uma mesma comunidade, por maiores

vel à margem desse novo operador de

uma elite recetiva às idéias liberais, e

que sejam as suas divisões internas. A

consensos, mas também de dissensos,

transferir-se, literalmemente, para o

par das mudanças na demografia e no

que são os jornais. O poder precisa

meio da rua. Reservados inicialmente

modo de produção, é, por conseguinte,

deles para explicar a sua ação, isto

à minoria endinheirada, que já não

toda a organização política, social e

é, para dar a conhecer e emprestar às

aceita passivamente o absolutismo

cultural que vai assentar em novos

suas decisões o carácter de medidas

monárquico, os jornais irão ser cha-

moldes, por força do novo regime de

justificadas e justas. A sociedade, por

mados, pela progressiva democratiza-

produção e circulação de informação.

seu turno, precisa deles para que o

ção das sociedades, a desempenhar

Do ponto de vista ideológico, é

espaço público não seja totalmente

um papel de primeira importância,

também por essa altura que se instala

ocupado pela propaganda do poder e

transformando-se no centro à volta do

a convicção de que o poder se legitima

haja lugar para a resistência, o des-

qual circula toda a vida política. A sua

não apenas nas urnas, mas também na

contentamento e a oposição que tais

função será dupla e, à primeira vista,

transparência que só os jornais estão

medidas geram sempre, em maior ou

paradoxal. Por um lado, vão funcionar

em condições de assegurar. Estes,

menor grau. Sem os media, em suma,

como acelerador da turbulência que

por sua vez, ao serem catapultados ao

não seria possível ao sistema político


realizar a agregação de opiniões e von-

é exigida, compreende-se a razão de

que a vigilância e a divulgação da

tades que é necessária para o normal

ser de uma ruptura tão radical como

atividade dos diversos poderes pelos

funcionamento de uma sociedade com

a que entretanto se operou no espaço

meios de informação elevasse o nível

as características da que que vimos

público: em pouco tempo, os jornais

da cidadania e obstasse à corrupção.

descrevendo.

tinham abandonado a função de sim-

Era suposto, enfim, que as decisões de

Acresce ainda que a legitimação

ples veículos de curiosidades e opi-

interesse comum passassem a ter na

do poder, à medida que se enraiza a

niões mais ou menos conflituais, para

sua base processos deliberativos cada

idéia da soberania popular, inerente à

se transformarem num instrumento

vez mais amplos e mais informados,

democracia, passará a exigir mecanis-

indispensável ao regular processo

indo ao encontro das reais necessida-

mos de vigilância e de transparência

de legitimação do poder. A partir de

des dos interessados. Todavia, aqui-

que, uma vez mais, só a nova ordem

então, o espaço público, na prática,

lo que realmente se passou foi muito

mediática pode assegurar. Contraria-

passaria a confundir-se com eles. E foi

diferente. Em lugar da multiplicação

mente ao que pretendia o velho mito,

mais ou menos assim que a socieda-

de eleitores por via do aumento da

segundo o qual o poder não funciona

de industrial pôde funcionar durante

informação disponível, os níveis de

senão na discrição dos gabinetes, à

mais de um século.

abstenção mantiveram-se elevados,

distância das multidões, a institui-

um pouco por toda a parte. Em vez de

ção secular do “segredo de Estado”

2. Redes vs. penny press

reduzir a corrupção, a sua divulgação

começou a perder boa parte do seu

Acontece que este modelo, por

pelos media não parece retraí-la, como

prestígio e da sua aceitação, ao mesmo

razões que não temos agora tempo

seria de esperar, e, pior do que isso,

tempo que os meios de comunicação

de analisar em pormenor, entrou em

ocasiona um grau nunca antes visto de

eram empossados numa autoridade

crise no final do século XX, longe

desconfiança no sistema político, cor-

que até aí jamais se lhe havia reco-

de atingir os resultados que dele se

roendo a sua legitimidade. Em resumo,

nhecido. Se a isto somarmos o peso

esperava ainda há não muitos anos.

a comunicação de massas não parece

que a propaganda assumiu durante a

Na verdade, de acordo com o ideário

ter reforçado significativamente a ci-

I Grande Guerra, como instrumento

iluminista e a sua versão positivista,

dadania. Pelo contrário, é voz corrente

estratégico destinado a desacreditar

era suposto que o alargamento da in-

que os cidadãos, em número cada vez

o inimigo e a reforçar os sentimentos

fluência dos media, secundado pela

maior, parecem agir, não como eleito-

patrióticos dos soldados que iam sendo

democratização da escola, iria tornar

res, mas sobretudo como consumido-

enviados para a frente de combate,

o espaço público crescentemente mais

res. A prova disso é que se fala cada

para já não falar da moral dos cida-

dinâmico e participativo, ou seja, mais

vez menos em representação, e cada

dãos e da sobrecarga fiscal que lhes

democrático. Era suposto, além disso,

vez mais em crise da representação. 123


O declínio da democracia representativa é comummente atribuído a duas ordens de fatores: ora são os agentes políticos que alegadamente ignoram, por incompetência ou

A internet não é uma ampliação do espaço público

as novas tecnologias da comunicação representam uma alteração estrutural da sociedade em que hoje em dia trabalhamos e vivemos. Não adianta, por isso, encará-las como se nada, ou

corrupção, a vida concreta das po-

muito pouco, de substantivo tivesse

pulações, as suas exigências e difi-

mudado. É aí, de resto, que reside

culdades; ora são os meios de comu-

o principal equívoco dos neo-ilumi-

nicação que alegadamente perderam

nistas de finais do século XX, que

credibilidade, ao transformarem-se

acreditaram, até muito recentemente,

em empresas de entertainment, sa-

que a democracia se estava a renovar

crificando às leis do mercado o seu

positivamente e que os novos disposi-

antigo prestígio, o qual, recorde-se,

tivos comunicacionais iriam obrigar as

assentava sobretudo na independência

instituições políticas a tornar-se mais

e no rigor da informação que produ-

transparentes, perante uma sociedade

ziam. Haverá, provavelmente, muito

onde passou a haver informação em

de verdade neste tipo de explicações.

abundância e que, por isso mesmo, se

Contudo, ele enferma, a meu ver, de

tornaria decerto mais vigilante, mais

um erro de perspetiva, o qual se deve

mobilizável e mais participativa. Mais

ao facto de considerar uma situação

democrática, em suma.

que é inteiramente nova da mesma maneira que considerava a situação

3. A euforia da e.democracy

anterior. Com efeito, aquilo que con-

Poderia dar inúmeros exemplos,

tinuamos a designar por espaço pú-

mas limitar-me-ei a dois autores que

blico já não é o que era há um século

espelham bem o sentimento otimista

atrás, porquanto mudou novamente de

que foi dominante nas últimas déca-

configuração e deu lugar a uma outra

das. O primeiro é o sociólogo Pierre

realidade, com novos instrumentos e

Rosanvallon, teorizador daquilo a que

novos protagonistas. Longe de corres-

chama a «contra-democracia». No en-

ponderem a um simples alargamento

tender de Rosanvallon, a democracia

do raio de ação dos media tradicionais,

representativa estaria atualmente a


evoluir, não para uma situação anti-

civil ter-se-ia renovado, compensan-

dos cidadãos com os diversos pode-

-democrática, mas para uma situação

do com o seu dinamismo a tão falada

res, incluindo o próprio poder dos

que já não é a dos últimos dois sécu-

crise da representação e o afastamento

media tradicionais: “o jornalismo

los e que se caracteriza por toda uma

do poder relativamente às carências e

noticioso profissional – diz Keane -

série de novas formas de ação social,

expectativas do cidadão comum.

é agora apenas um entre os muitos

organizadas em moldes diferentes e à

Um outro exemplo de otimismo

tipos diferentes de instituição com

margem das instituições democráticas.

em relação ao pretenso novo fôlego

poderes de escrutínio”. Na verdade,

Estas novas formas de cidadania, es-

insuflado pelos novos media no espaço

acrescenta o autor:

clarece ainda o autor, “destinam-se

público é o do australiano John Kea-

a compensar a erosão da confiança

ne, o qual identifica explicitamente o

(...) em todas as democracias, há

com uma organização da descon-

espaço virtual como o pivot de uma

muitas centenas e milhares de ins-

fiança” (Rosanvallon, 2006, p. 11),

alegada reconfiguração da democra-

tituições de monitorização a tra-

através de meios tão diversos como

cia. Sobrevalorizando as virtualidades

balhar habilmente na agitação de

a vigilância da atividade política, a

da “galáxia internet”, Keane considera

questões de poder, frequentemente

denúncia da corrupção, as manifes-

que os novos meios de comunicação

com efeitos políticos. Relatórios de

tações de indignação e protesto, a

não só trouxeram um acréscimo de efi-

direitos humanos, blogs, tribunais,

resistência a projetos impopulares e

cácia às iniciativas dos cidadãos para

redes de organizações profissionais

a sobrevalorização do papel dos juízes,

vigiar o poder, como também intro-

e iniciativas cívicas são apenas

em contraste com o papel dos repre-

duziram uma modificação estrutural

alguns exemplos de mecanismos

sentantes eleitos. Sem se substituir

na própria sociedade, na política em

de watchdog, guide-dog e barking-

propriamente à atividade dos órgãos

geral e na democracia em particular.

-dog, que estão a alterar profunda-

tradicionais de representação, as di-

Resumindo, teríamos passado a viver,

mente o espírito e a dinâmica da

versas formas de “organização da des-

à escala do planeta, numa “idade de

democracia. (Keane, 2013, p. 47).

confiança” estariam, assim, a alterar

abundância comunicacional”, que

profundamente o ambiente político das

“é estruturada por um novo sistema

Não quer dizer, prossegue Kea-

nossas sociedades, reforçando a demo-

mundial de dispositivos mediáticos

ne, que o jornalismo profissional e

cracia e obrigando os governantes a

sobrepostos e interligados” (Keane,

o chamado jornalismo cidadão, uma

abandonarem a tradicional distância,

2013, p. 1).

vez por outra, não se intersetem um

para se desdobrarem agora em mani-

Semelhante “abundância comu-

ao outro. As revelações do Wikileaks

festações de proximidade junto dos

nicacional”, como seria de esperar,

e de Edward Snowden, por exemplo,

eleitores. Numa palavra, a sociedade

alterou em profundidade a relação

foram publicadas por alguma da mais 125


conceituada imprensa internacional.

A sociedade da “abundância

Apesar das enormes diferenças

No conjunto, porém, os novos media

comunicacional”, por conseguinte,

que os distinguem, tanto John Keane

estão a retirar aos media tradicionais,

não seria uma sociedade onde a re-

como o citado Pierre Rosanvallon dão

assim como aos agentes políticos elei-

presentação estivesse em vias de ser

por assente, primeiro, que a transpa-

tos, o monopólio da representação da

afastada. Não estamos numa pós-

rência sem limite é um objetivo já

vontade e do interesse dos vários gru-

-democracia, garante Keane, con-

inscrito no cerne da modernidade e

pos. Cada vez mais, há cidadãos que,

trariamente ao que havia anunciado,

do iluminismo, sendo aquilo a que

isolados ou em associação, apresen-

há pouco mais de uma década, Colin

estamos a assistir uma continuida-

tam reivindicações, fazem denúncias

Crouch (2000). O que acontece é que

de, não uma ruptura; segundo, que é

e falam seja em nome de um grupo

a representação começou a abando-

possível integrar, com vantagem, esse

específico, seja em defesa da justiça

nar a rigidez do modelo em que havia

objetivo no quadro de uma democracia

ou da moral universal. Keane cha-

funcionado nos últimos dois séculos,

representativa, a qual, desse modo, se

ma-lhes, num livro publicado já em

para assumir uma plasticidade que a

tornaria mais participativa e menos

2013, “representantes não eleitos”,

torna mais democrática e, simulta-

elitista. Em abono desta sua visão oti-

acrescentando, com notório e mani-

neamente, mais conforme à comple-

mista, ambos os autores apontam os

festo otimismo:

xidade do nosso tempo. Em vez de se

efeitos indiscutivelmente positivos dos

mobilizarem exclusivamente através

novos media: democratização do aces-

o número e a variedade de institui-

dos sindicatos e partidos tradicionais,

so à informação; divulgação de factos

ções de monitorização cresceram

que supostamente se fariam eco da

que os media tradicionais omitem;

de tal maneira que indiciam já

sua voz, os cidadãos teriam passado

monitorização do poder à escala local,

um mundo em que a velha regra

a multiplicar o tipo de organizações

nacional e internacional. Não faltam,

“uma pessoa, um voto, um repre-

através das quais se fazem represen-

de resto, exemplos de mobilização ci-

sentante” – ponto central na luta

tar, não apenas no Parlamento e de

dadã pela internet, sempre invocados

pela democracia representativa – é

tantos em tantos anos, mas diretamen-

pelos defensores da e.democracy, para

substituído pelo novo princípio da

te no espaço público, agora aberto em

provar que todo este aprofundamento

democracia monitorizada: “uma

permanência. Tudo se encaminharia,

democrático estaria de facto a acon-

pessoa, muitos interesses, muitas

portanto, na narrativa de Keane, para

tecer : Primavera Árabe; 11 de Março

vozes, muitos votos, múltiplos re-

uma sociedade da transparência e da

em Madrid, 2004; Occupy Wall Street

presentantes”. (Keane, 2013, pp.

interação instantânea entre o poder e

em Nova Iorque, 2011; manifestações

85-86).

o povo, graças às inesperadas virtua-

em São Paulo, 2013. Tudo somado,

lidades da tecnologia digital.

a conclusão dir-se-ia irrefutável: as


redes sociais vieram possibilitar a

A nova ortodoxia imagina a Web

histórica desta última remonta, de res-

transparência, a monitorização do

como uma espécie de Robin Hood,

to, às comunidades hyppies dos anos

poder e a aproximação entre repre-

que rouba audiência e influência

70, em São Francisco, onde mais tarde

sentantes e representados. Longe de

aos grandes para a dar aos pe-

viria a surgir Silicon Valley. Contudo,

pôr em causa a democracia, elas cons-

quenos. (...) Os seus defensores

a igualdade democrática não significa

tituem, pelo contrário, um antídoto à

falam de abertura, transparência

uma espécie de indiferença negativa a

pós-democracia diagnosticada por

e participação, termos estes que

tudo quanto se diz no espaço público.

Crouch, ou seja, a uma sociedade em

definem presentemente os nossos

Conforme escreve Paul Mathias,

que as elites económicas e políticas se

mais elevados ideais, a nossa con-

têm crescentemente apoderado do Es-

cepção do que é bom e desejável

se é verdade que a internet permite,

tado em benefício próprio, na maioria

para o futuro dos media na idade

muitas vezes, dar voz a indivíduos

dos casos com total desconhecimento

da internet. Mas esses ideais não

e a grupos a quem outrora ela era

dos cidadãos.

são suficientes, se nós queremos

retirada, também é verdade que

construir uma cultura digital mais

nem tudo é igualmente discutível e

5. People vs. tech

democrática e mais desejável. A

que, nas redes, a fronteira entre a

Esta visão algo utópica, que foi

abertura, em particular, não é for-

argumentação e o ruído é por vezes

dominante ainda nos primeiros anos

çosamente progressista. Enquanto

impercetível. (Mathias, 2012, 186)

do sec. XXI, esbarrava, no entanto,

a internet cria espaço para muitas

já nessa altura, com algum ceticismo.

vozes, a abertura da rede reflete e

Não se trata de uma questão de

Antes de mais, suspeitava-se do irrea-

até amplifica as desigualdades do

mais ou menos expertise, embora em

lismo de muitas das potencialidades

mundo real. (Taylor, 2014, p. 10)

sociedades complexas, de economia

que se atribuíam à “galáxia internet”.

baseada essencialmente no conheci-

E não eram apenas os reacionários e

Mais radicalmente ainda, houve

mento, este aspeto também deva ser

nostálgicos dos bons velhos tempos

autores que sublinharam a confusão

tido em conta. Mas trata-se, principal-

da esfera pública que apontavam o

gerada pela cyber-cultura entre a voz

mente, de uma questão de mediações e

dedo àquilo que chamavam de “cyber-

do povo, e o ruído da multidão, en-

procedimentos. Em democracia, houve

-utopismo”. Astra Taylor, por exemplo,

tre o demos e aquilo que em grego se

sempre normas a determinar o espaço

uma assumida militante de esquerda

chamava o ochlos. Tanto a democra-

em que se processa a discussão, as

e ativista do Occupy Wall Street, pôs,

cia como a internet são, efetivamente,

condições para o uso da palavra, a

desde logo, o dedo na ferida:

animadas pelos valores da liberdade

ordem das intervenções, o momento

e da igualdade ou isonomia. A origem

e a forma da decisão, os requisitos a 127


que tem de obedecer a autoridade e a

com uma sociedade dirigida

lei. Ora, a crença ingénua na sabedo-

pela conectividade, os networks,

ria das multidões (the wisdom of the

as plataformas e bases de dados.

B. O espaço público não se alargou,

crowds) e na presunção de que o cole-

Em democracia (e, evidentemente,

modificou-se. Primeiro, atenuou-se

tivo estaria por natureza mais próximo

no mundo) as coisas não se pas-

a fronteira nítida que separava o

da verdade, veiculada a toda a hora

sam assim. A democracia é lenta,

público e o privado, para passar a

pela net, leva a uma recusa instinti-

deliberativa e baseada no físico. A

haver apenas uma distinção entre

va de todos esses modos de funciona-

democracia é mais analógica do

o muito e o pouco visível. Segundo,

mento, considerados ‘burocráticos’ e,

que digital. E uma visão do futuro

tornou-se irrelevante a função do

por conseguinte, desnecessários, e a

que vai ao arrepio da realidade da

gatekeper, até há pouco desempe-

imaginar que a democracia pode ago-

vida e dos desejos das pessoas só

nhada pelos jornais, que decidiam

ra realizar-se de forma instantânea e

pode acabar em desastre. (Bartlett,

quem e o quê tinha acesso ao es-

mais eficazmente, sem qualquer me-

2018, p. 9).

paço público, passando a haver

diação, visto a tecnologia permitir a

bairros degradados estão para o centro das grandes cidades.

um espaço virtualmente aberto a

toda gente expressar-se livremente, a

Embora não partilhando por intei-

tudo e a todos. Terceiro, à distin-

qualquer hora e sem obedecer a ne-

ro do pessimismo de Bartlett, gostaria,

ção entre a verdade e a mentira

nhuma norma. Não admira, por isso,

no entanto, de sublinhar brevemente

sobrepôe-se progressivamente a

que o jornalista Jamie Barlett, num

os traços mais marcantes com que a

distinção entre enunciados com

livro publicado em 2018, se insurja

tecnologia digital reconfigurou, não só

maior e enunciados com menor

enfaticamente contra estes “crentes da

a vida individual de cada um de nós,

divulgação. Por último, a autori-

tecno-utopia”, dotados de uma desme-

mas também a nossa inter-comunica-

dade e a reputação, tradicional-

surada “fé no poder emancipatório da

ção e a própria vida em comunidade :

mente associadas ao conteúdo das

tecnologia digital”:

A. A Internet não é uma ampliação

mensagens, associam-se cada vez

do espaço público. Se a olharmos

mais ao número de vezes que estas

Esta fé torna-os potencialmente

dessa perspetiva, veremos apenas

são citadas.

mais perigosos. Tal como no sec.

o lado narcisista e exibicionista

C. A «população» do espaço público

XVIII os revolucionários france-

das redes, deplorando-as como lixo

modificou-se quantitativa e qua-

ses, que acreditavam ir construir

e encarando-as, eventualmente,

litativamente. Por um lado, o nú-

um mundo baseado em princípios

como se elas estivessem para a

mero de pessoas que povoam esse

abstractos como a igualdade, estes

esfera pública como as favelas e

espaço corresponderá, muito em

utópicos de útlima hora sonham

breve, a metade da população do


universo; por outro, passou a ser maioritariamente constituída por gente jovem e do povo, gente que faz e desfaz comunidades, sempre nómadas, sempre em transformação. D. Em consequência, esbate-se também a linha divisória entre leitor e jornalista: quem quiser põe a circular opiniões, imagens, informação. Os próprios jornais já não se inibem de recorrer às redes sociais e de as citar como fonte noticiosa, numa crescente indefinição de fronteiras e de géneros. E. Contudo, nas redes não se produz informação, faz-se comunicação, conversa-se e fazem-se comunidades ocasionais. É o chamado tribalismo virtual: conversas privadas, mas que são tidas em pú-

O apogeu das

se diria concorrerem com os meios tradicionais, estavam equivocadas

multidões não parece estar no

quanto à sua verdadeira natureza. F. Graças a esta Babel que se instalou onde outrora os media procediam à agregação e confronto de opiniões,

horizonte.

o ritmo e o estilo das conversas privadas contaminou quer os media

O que tem vindo a

tradicionais, quer a linguagem e a atuação dos agentes políticos: se a

surgir são núcleos

divulgação de reportagens intimistas e selfies de família se tornou

clandestinos

banal, a produção e gestão contínua de novos factos, através de

de produção,

novas mensagens, tornou-se-lhes um imperativo de sobrevivência.

manipulação e

Conclusão

distribuição de informação

Independentemente da avaliação que se possa fazer destas mudanças, parece inegável que elas representam

blico; conversas triviais, mas que

uma transformação radical do espaço

têm por tema o que vulgarmente se

público, só comparável aquela que a

considera assunto público. Tanto

produção de papel de baixo custo per-

ou mais do que a net, os biliões de

mitiu há um século e meio. Nessa altura,

SMS que confluem a cada instante

também se alterou o produto e a escala a

no espaço público convertem-no

que era produzido e consumido. Porém,

em ruído sistemático. Manifesta-

a distância que separava a elite que os

mente, as análises que a princípio

controlava e a multidão que passou a

confundiram este novo espaço com

lê-los continuou igual à que antes sepa-

meia dúzia de blogs de elite, que

rava a burguesia letrada do proletariado 129


analfabeto. Sob esse aspeto, nem a rá-

Decisivo neste percurso é o efeito

Referências bibliográficas

dio, nem a televisão, viriam a alterar

da Internet. A hegemonia intelec-

Tocqueville, A. (1986). De la Démocratie

grande coisa. Tanto uma como outra

tual da esquerda dependia do seu

en Amérique, 2 vols. Paris: Galli-

continuavam a estar nas mãos de uma

controlo sobre instituições, univer-

mard, Folio.

minoria – donos de jornais e jornalistas

sidades, escolas, instituições cul-

– que determinava aquilo que devia

turais - sobre órgãos da Igreja,

entrar no espaço público. Só no século

redações de jornais e diretórios

Keane, J. (2013). Democracy and Media

XXI, com a massificação dos artefac-

estudantis. E havia, como é ób-

Decadence, Cambridge University

tos digitais, este viria a transformar-se

vio, a sua influência brutalmente

Press.

num espaço maioritariamente ocupado

maior na ação partidária. (...) A

pelo cidadão comum e onde as elites

Internet fez explodir este mundo

tradicionais perderam, aparentemente,

relativamente fechado. O poder

Taylor, A. (2014). The People Platform.

a batalha pela hegemonia. Significará

da palavra diluiu-se, ou melhor,

Taking Back Power and Culture

isto o verdadeiro «triunfo das massas»?

disseminou-se pelo tecido social.

in the Digital Age. London: Fourth

Terá a democracia entrado numa fase

Foi a via de expressão de uma con-

State.

em que, havendo ou não representa-

tra-hegemonia. (Schüler, 2017)

ção política, a maioria da população vai controlar efetivamente as decisões de interesse geral?

Pierre Rosanvallon (2006). La Contre-Démocratie. Paris: Seuil, p. 11.

Crouch, C. (2000). Post-Democracy. Cambridge: Polity Press

Mathias, P. (2012). Métamorphoses de la démocratie. In Yves Charles Zarka

O problema é que, por mais nítida que seja a perda de influência

(dir.), Démocratie, État Critique. Paris: Armand Colin

Sem querer fazer futurologia,

das elites tradicionais, o apogeu das

registe-se apenas que todos os sinais

multidões também não parece es-

que vamos tendo parecem apontar

tar no horizonte. Pelo contrário, o

Schüler, F. (2017). Existe mesmo uma

num sentido bem diferente. É verdade

que tem vindo a surgir são núcleos

onda conservadora? Retirado em 15

que a elite que até há pouco detinha

clandestinos de produção, manipu-

de junho de 2019 de http://fernan-

a hegemonia se encontra ameaçada.

lação e distribuição de informação

doschuler.com/fernando-schuler/

Contudo, não se sabe ainda como

– verdadeira ou falsa, tanto faz –

entrevistas/politica/existe-mesmo-

será aquela que a irá render. Por ora,

que operam à escala planetária e

-uma-onda-conservadora/

percebe-se apenas que há uma contra-

estão rapidamente a transformar-se

-hegemonia em curso. Como escreveu

numa arma estratégica para alguns

o investigador Fernando Schüler, a

Estados e numa ameaça para todas

propósito da eleição de Jair Bolsonaro:

as democracias.

Bartlett, J. (2018). The People vs Tech. London: Ebury Press, Penguin.



Apoios

UID/HIS/00460/2013


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