Favela,de,Heliópolis
Iden%ficação,e, RECOMENDAÇÕES,
Desenvolvimento,dos,Microsseguros*
Versão On‐Line – AGOSTO de 2010
“O futuro a Deus pertence, mas a responsabilidade no futuro a mim pertence; então eu preciso garantir que meus pais e meus filhos não irão passar nenhuma necessidade na minha falta”. JDM – Clienta de Producto Primera Proteçao de Bradesco – Favela de Heliópolis, São Paulo
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
2
SÃO PAULO Favela de Helióplois
METRÔ SACOMÃ
SÃO CAETANO DO SUL
HELIÓPOLIS
BASE EQUIPO IMR en HELIÓPOLIS
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
3
INDICE LIVRO 1 .................................................................................................................................................... 8 RELATÓRIO EXECUTIVO ....................................................................................................................................... 10 Apresentação ................................................................................................................................................. 11 Estrutura do Relatório .................................................................................................................................... 11 Conclusões ...................................................................................................................................................... 16 Recomendações ............................................................................................................................................. 19 Equipe IMR .......................................................................................................................................................... 23
LIVRO 2 .................................................................................................................................................. 24 Prefácio ............................................................................................................................................................... 25 Primeiro referêncial Metodológico: Unidade de Estruturas entre Rocinha e Heliópolis .............................. 26 Segundo referêncial Metodológico: ............................................................................................................... 27 O papel das representações na construção da ideia da favel ........................................................................ 27 HISTÓRIA e DEMOGRAFIA ................................................................................................................................... 48 Introduçao ...................................................................................................................................................... 49 O que é Favela? .............................................................................................................................................. 58 ECOLOGIA URBANA ............................................................................................................................................. 61 Centros Urbanos: Dinamizadores do Desenvolvimento Comercial Local ...................................................... 62 MICROCENTROS COMERCIAIS COMPOSTOS (MCC) / NODOS ............................................................................ 78 Introdução ...................................................................................................................................................... 79 ORÇAMENTO DOMÉSTICO .................................................................................................................................. 93
LIVRO 3 ................................................................................................................................................ 109 ENFOQUES PARA A COMERCIALIZAÇÃO ........................................................................................................... 110 Fundamentos Estruturais de Interrelação dos Canais Propostos ................................................................ 111 Venda de Microsseguros dentro da Agência do Bradesco – Heliópolis....................................................... 113 PROPOSTA ESTRUTURAL DE DISTRIBUIÇÃO ..................................................................................................... 119 Sistemas de Cobrança e Coleta de Prêmios de Microsseguros na Favela ................................................... 142 Considerações sobre Produtos de Microsseguros ....................................................................................... 145
LIVRO 4 ................................................................................................................................................ 153 Dados Estatísticos ............................................................................................................................................. 154 Metodologia ................................................................................................................................................. 155 ANEXOS ........................................................................................................................................................ 157
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
4
Diferenças Fundamentais entre Rocinha e Heliópolis. Durante o presente relatório, o leitor poderá constatar a existência de uma estrutura comum entre ambas as Favelas, tanto nos aspectos relativos a representações como à presença de dogmas na análise científica que já foi realizada por distintos trabalhos até agora. Somado a isso, a direção da pesquisa IMR‐Brasil decidiu propor uma Estrutura Única no Processo de Distribuição, atendendo à necessidade prática de propor um modelo útil e simples para reduzir o máximo toda a grande complexidade que a observação de perto de Heliópolis e da Rocinha produziu nestes três meses de trabalho de campo. O leitor também poderá encontrar neste relatório um marco de CONCLUSÕES únicas a ambas favelas, concordantes com a filosofia do International Microinsurance Research de gerar informação de uso prático para o cliente; isto é, de aplicação guiada e produtiva – o que se expressa em maior detalhe nas RECOMENDAÇÕES. Isto não significa a inexistência de diferenças marcantes entre as favelas. Pelo contrário, ambas são muito distintas e profundas em sua complexidade, mas decidimos nos concentrar em seus pontos comuns, a fim de facilitar a construção de uma Estrutura de Distribuição de alto desempenho. Algumas das diferenças entre o contexto Heliópolis e o contexto Rocinha devem ser tomadas com muita seriedade no momento de construir mensagens que façam sentido aos moradores de cada favela, dado que as identidades de uma e de outra possuem diferentes origens. Para conseguir processos bem sucedidos de distribuição de Microsseguros, as diferenças mais determinantes são as seguintes: 1. Devido às características geográficas da Rocinha, existem maiores dificuldades de acesso ao interior de seus Microcentros Comerciais Compostos. Esta situação não ocorre em Heliópolis, favela que é mais acessível e ordenada que sua contraparte carioca. Uma maior análise desta diferença realiza‐se nos Capítulos Ecologia Urbana e MCC/Nodos de cada relatório. Conclusão: Na Rocinha é possível encontrar zonas quase “inacessíveis” para carros, caminhões ou demais formas de acesso, produzindo‐se uma aberta correlação entre centralidade e marginalidade – sendo esta última, diretamente vinculada à pobreza ante à falta de alcance aos bens e serviços que permitam o desenvolvimento dessas áreas, como ocorre com Macega e Roupa Suja. No caso de Heliópolis, a distinção entre zonas mais pobres que outras não é tão clara como na Rocinha. Como indicação a este ponto, a pesquisa IMR recomenda à Bradesco Vida e Previdência utilizar a informação descrita nos mapas anexados a este relatório, além de se apoiar em moradores e/ou pessoas com amplo conhecimento das áreas “marginais” específicas da Rocinha, com o intuito de comercializar os Microsseguros ali. 2. Outra diferença que complementa o ponto anterior é que, ante as dificuldades de acessibilidade e saída, a relação comercial entre os MCCs e as Biroscas é muito mais intensa e dependente que no caso de Heliópolis. Nesta última favela, basta caminhar umas poucas ruas para chegar a um ponto de ônibus e, dentro de meia hora, estar no Centro de São Paulo, via Metrô Sacomã. Isso quer dizer que as relações comerciais que os moradores que vivem próximos aos MCCs tem com estes em Heliópolis costumam ser mais enfraquecidas que na Rocinha – favela onde sim, há um uso intensivo dos MCCs. Sendo assim, chega‐se à conclusão de que o potencial de venda concentrado nos Microcentros Comerciais é mais alto na Rocinha do que em Heliópolis. Como indicação, a pesquisa IMR recomenda desenvolver a comercialização de Microsseguros na Rocinha principalmente pela via de Angariadores individuais.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
5
3.
Uma terceira diferença fundamental se dá pela “natureza” urbana de cada favela – dentro do contexto das respectivas cidades nas quais estão inseridas. Heliópolis possui mais características de um espaço urbano, com ruas e vias acessíveis, quase um bairro – ainda mais porque tende a se misturar com bairros anexos, e tal fato contribui para uma maior independência de seus Nodos e Microcentros Comerciais. Se um morador de Heliópolis não gosta de um determinado produto ou de seu preço, ele pode, com mais facilidade, tomar a decisão de o adquirir fora da favela.
O mesmo já não acontece com os moradores da Rocinha. Se a pessoa não vive nas imediações da Via Ápia, ou em áreas mais consolidadas e desenvolvidas da favela, a possibilidade de “sair” de seu espaço será menor – especialmente se o local de moradia fica no interior da Rua 1. 4.
Outra diferença é a "sensação" de segurança, que é superior em Heliópolis. É muito raro encontrar nesta favela pessoas ostentando armas de alto calibre e lançadores de granadas, como na Rocinha. Apesar de que em ambas as favelas exista um acordo tácito entre o tráfico e a população, na figura de um código de conduta, não se observa em São Paulo o mesmo tipo de abordagem da força policial contra o tráfico que há no Rio de Janeiro. Da mesma forma, em São Paulo a disputa de território por parte dos traficantes também não frequenta as páginas dos jornais. Sendo assim, a sensação de segurança é maior em Heliópolis – como se ali, o tráfico fosse invisível; ao passo que na Rocinha os traficantes precisam ostentar seu poder como forma de intimidação e coerção.
Como indicação, a pesquisa IMR recomenda remarcar nas mensagens emitidas pelo Bradesco Vida e Previdência, esta característica de Heliópolis – muito presente inclusive na identidade atual dos moradores e como sinal de orgulho (quando se comparam com a Rocinha). 5.
Existem duas diferenças que estão mais no nível da hipótese, pois que, pelo curto tempo de pesquisa, não nos foi possível constatar com dados fidedignos: a alta especulação imobiliária que se está a produzir em ambas favelas. A verticalização, ou o crescimento vertical que hoje abriga não apenas as novas gerações dos moradores mais antigos, mas também a demanda de novos moradores – consequência da falta de politicas públicas que atendam o deficit de moradia. A diferença entre as favelas é que, enquanto em Heliópolis parece haver um forte controle por parte do Estado para evitar o crescimento desordenado e indiscriminado, na Rocinha isso ainda não acontece.
6.
Uma outra distinção é encontrada no caráter das Organizações Comunitárias Centrais de cada favela. Em ambas, as organizações se encontram politizadas e compartilham certos pontos “discursivos” em comum (“comunidade carente” – segundo análise realizada no prefácio de ambos os relatórios). Porém, a diferença está na maneira como elas encaram suas relações com o mundo “externo”; sendo o caso da Rocinha o mais particular, pois a alta concentração de visitas, interesse político, turismo, subvenções, atenção mediática, etc.; fez com que sua Associação Central de Moradores ficasse altamente condicionada e disposta a lucrar com isto. Situação que não ocorre com Heliópolis, uma favela mais invisível e menos “solicitada”, de certo ponto de vista.
Por fim, agradecemos a toda a equipe de pesquisadores do IMR que tornou possível esse trabalho e a enorme quantidade de moradores de ambas favelas que nos ajudaram, nos abrindo suas casas, nos convidando a ouvir suas histórias e compartindo conosco informações confidenciais de suas dinâmicas pessoais. Sem o apoio de nossos informantes, a qualidade da informação coletada e processada não teria sido a mesma; portanto, convidamos o leitor a mergulhar em ambos os relatórios, e a encontrar informação mais detalhada e aprofundada desta que acabamos de resumir.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
6
Já dizia o ditado que “falar é fácil, fazer é que é difícil”. Os canais de distribuição aqui propostos não foram feitos para não saírem do papel. Eles foram identificados e analisados à exaustão dentro do trabalho de inserção nas comunidades pesquisadas. Estão prontos para serem colocados em prática através de redes de relacionamento que a pesquisa IMR gerou ao fazer o trabalho que é objeto do presente relatório. Dessa forma, a teoria pode ser colocada em prática pela equipe do IMR dentro de uma proposta de implantação dos canais de distribuição propostos que irá trabalhar com contatos que se enquadram nos conceitos propostos e treiná‐ los para uma experiência‐piloto, dando continuidade ao trabalho à medida que o negócio se desenvolve.
Hernán Poblete Miranda Diretor IMR‐Brasil
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
7
LIVRO 1
LIVRO 1
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
8
LIVRO 1
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
9
LIVRO 1
RELATÓRIO EXECUTIVO
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
10
LIVRO 1
Apresentação Esse relatório é um sumário executivo da pesquisa IMR – International Microinsurance Research – para o desenvolvimento de Microsseguros, realizada na favela da Heliópolis, São Paulo, Brasil, durante os meses de Maio, Junho, Julho e Agosto de 2010. Encomendada pela companhia Bradesco Vida e Previdência, a pesquisa tem suas conclusões suscitadas apresentadas neste sumário executivo.
Estrutura do Relatório
O
presente relatório é composto de três partes, cada uma construída para cumprir com diferemtes objetivos de leitura, entendimento e desenvolvimento prático. O Capítulo I corresponde ao Relatório Executivo, o qual tem como objetivo emtregar, resumidamemte, os resultados concretos e diretos da pesquisa para uma leitura e compreemsão rápida do que foi estudado. O Capítulo II corresponde ao Relatório Teórico, e consiste de uma descrição detalhada de cada um dos aspectos, passos, observações e conclusões coletadas pela equipe durante os três meses de pesquisa de campo. O objetivo cemtral da segunda parte busca expor os dados técnicos e fundamemtações que toda pesquisa ciemtífica deve conter. Finalmemte, o Capítulo III corresponde aos Anexos Estadísticos, onde poderão ser emcontrados todos os dados estatísticos levantados durante a etapa quantitativa da pesquisa. Como se poderá observar durante a exposição da pesquisa, o estudo IMR é um processo misto, convergindo em seu interior uma análise simultânea de dados qualitativos e quantitativos – o que permite objetivar de maneira mais precisa os femômemns de padrões de consumo e constituição econômica dos habitantes da favela. No relatório teórico (Capítulo II), o leitor poderá encontrar os fundamemtos das conclusões que serão expostas a seguir, começando pela etapa Histórica, na qual foi realizado um levantamento sobre a história de Heliópolis através de bibliografias e de relatos de moradores antigos. Nessa etapa pudemos ver a presença do poder público – desde o surgimemto da favela, passando pelos momentos de ocupação intensificada, remoções e novas ocupações, até chegar nos estágios de expansão e de consolidação das habitações. Tal enfoque, como se observará no item das conclusões, é extremamente importante para se iniciar a imersão na compreensão dos elementos que constituem a identidade e “personalidade” de Heliópolis – dado que é a partir de seu desenvolvimento histórico que a favela extrai as noções primárias que hoje lhe dão sentido e que configuram o destinatário, o receptor da mensagem de marketing que se deve enviar através dos microsseguros. Sendo assim, entender a história do espaço é capital para qualquer área de marketing com a responsabilidade de comercializar os produtos de seguro. Heliópolis1 surgiu com a construção do hospital na década de 70. Muitos operários costumavam dormir no local, em um pequeno alojamento a família Álvares Penteado, donos do terreno, na época chamado residencial Vila Heliópolis. Com a desativação das favelas da Vila Prudente e Vergueiro, a prefeitura implantou alojamentos provisórios em Heliópolis para abrigar esses moradores. A instalação dos alojamentos fez surgir à grilagem. O crescimento desordenado da favela ocorreu mediante a apropriação ilícita das terras por pessoas que queriam um terreno para erguer suas casas.
1 Claudia Neves, Entrevista com D. Genesia (moradora e Líder Comunitária)
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
11
LIVRO 1 No inicio do governo Covas, em 1983, um plano apresentado pela supervisão regional de serviço social do Ipiranga pretendia irradiar a favela através de sua urbanização, construindo mais de 10 mil lotes urbanizados. O plano não foi totalmente concluído, mas foram apresentadas algumas propostas que visaram a urbanização da favela, mas que nunca foram colocadas em prática, até que a Cohab iniciou a construção de 6.420 apartamentos nos padrões da Cohab, mas somente 318 foram erguidas. Nessa época a principal reivindicação dos moradores, que já tinham uma estrutura organizada, era a implantação de água e luz. Hoje, a prefeitura luta para urbanizar a favela e retirar as vielas e becos estreitos que insiste em crescer, muitos moradores não concordam, por que pra onde irão quando acontecer à desativação? “A comunidade jamais para de lutar pelo crescimento e melhoria de seus moradores, assim a Cidade Nova Heliópolis ganhou um nome mais digno e os moradores endereço”.2 Passando da etapa Histórica para a da Ecologia Urbana de Heliópolis, o relatório teórico estuda e analisa a configuração urbana do espaço, mapeando suas vias principais, secundárias e terciárias; bem como o comércio local a fim de compreender a dinâmica comercial existente na Favela. Nessa etapa, são classificados os comércios de acordo com os conceitos utilizados por esta pesquisa: Nodos3 e Microcentros Comerciais Compostos. Ao passo que a análise da História nos permite compreender os elementos estruturais da idemnidade atual da favela; a análise do espaço urbano – desde o ponto de vista das interrelações funcionais4 – nos permite emtender como gerar estratégias e táticas de marketing em um espaço tão particular e complexo como Rocinha; ou seja, gerar estratégias que não irão ignorar o sentido, valor e simbolismo que o espaço urbano possui para seus habitantes. Dessa forma, qualquer ação de distribuição de produtos pode vir a ser realizada com um foco, evitando a típica dispersão geralmente observada na maioria das operações de venda da indústria seguradora. Assim, foram classificados como Nodos, ou seja, como grandes centros de interação comercial e fluxo de pessoas, o comércio existente na via principal de acceso a Heliópolis, Estrada Das Lágrimas e São João Clímaco. Já os comércios situados em vias secundárias e terciárias foram classificados como Microcentros Comerciais Compostos (MCCs). Esta categorização vai além da localização. Entretanto, esta é importante para compreender a dinâmica comercial existente no próprio Nodo e entre os Nodos e os MCCs. Como os Nodos estão localizados nas vias principais da favela, há aí uma grande circulação de pessoas que utilizam estas vias como locais de “passagem”. A grande circulação de pessoas e a transitoriedade das relações aí estabelecidas fazem com que predomine a impessoalidade nas relações comerciais, o que significa dizer que nesses centros comerciais é possível, inclusive, manter total anonimato (ver Figura 1). Um dos parâmetros que utilizamos para aferir a pessoalidade e a impessoalidade das relações comerciais foram as formas de pagamento oferecidas pelo comércio local. Assim, observamos que os Nodos oferecem formas de pagamento impessoais como o pagamento à vista em dinheiro, e o pagamento com cartões de crédito e de débito. Já nos Microcentros comerciais observamos que além do pagamento à vista em dinheiro, ocorria, em distintos graus, a prática do “fiado”. Esta prática supõe por si mesma uma pessoalidade nas relações comerciais, já que “só se vende fiado para os conhecidos”. 2 Ibid 3 Um Nodo – ou nó – representa cada ponto de interconexão com uma estrutura ou rede. 4 Entre as condições do ambiemte e as técnicas administrativas apropriadas para o alcance eficaz dos objetivos.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
12
LIVRO 1 A institucionalização desta prática não é decorrente apenas da ausência ou impossibilidade de implantação de outras formas de pagamento. Pois, foram verificadas situações em que havia a possibilidade de pagamento em cartão de crédito, mas ainda assim a prática do “fiado” persistia.
Figura 1 – Nodos e Microcentros Comerciais Compostos em Heliópolis Os Microcentros Comerciais Compostos (MCCs) mapeados estão situados, como já mencionado, em vias secundárias e terciárias – apresentando menor circulação de pessoas. As relações comerciais estabelecidas nesses MCCs são, maioritariamemte, pessoais; visto que se trata de relações observadas entre moradores locais e comerciantes, em geral, com domicílio também en Heliópolis. O estudo IMR entrega, junto com este relatório, um mapa físico contendo detalhes das informações nele expostas. Durante a etapa em questão, foi verificado que os conceitos de Nodos e de MCCs não poderiam ser utilizados como categorias estanques. Observados os diferentes graus de impessoalidade nos Nodos, adotou‐se uma classificação graduada de Nodos que transita do A ao B, passando pela fronteira Nodo/MCC, e chegando à classificação igualmente graduada dos MCCs. Dessa maneira, a classificação de Nodo A é atribuída aos centros comerciais mais impessoais, como o comércio situado na Estrada das Lágrimas. Já a classificação de Nodo B se estemde aos comércios que apresentam impessoalidade em menor grau – neste caso, o comércio distribuído ao longo da Estrada das Lágrimas.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
13
LIVRO 1 O mesmo se aplica em relação aos MCCs, onde foram observadas graduações de pessoalidade nas relações comerciais. Verificou‐se, inclusive, a ocorrência de relações pessoais e impessoais simultaneamente em uma mesma região comercial e, às vezes, em um mesmo comércio. Nestes casos, a classificação limítrofe Nodo/MCC foi a mais adequada. A observação de distintas graduações de pessoalidade nas relações comerciais observadas nos MCCs deu origem às classificações – de acordo com o menor até o maior grau de pessoalidade nas relações – de MCC A, B, C e Mini MCC; este último, mais popularmemte conhecido como “Birosca”5. Em seguida, foi estudada a relação existente entre os Nodos e os Microcentros Comerciais Compostos presentes em Heliópolis, assim como a correlação entre processos de urbanização e o desenvolvimento econômico local. Heliópolis está no que se pode considerar um “estado de transição” bairro‐favela: apresenta características tanto de bairros populares quanto de favela, não enquadrando‐se perfeitamente em nenhuma das duas categorias. Se, quanto às suas moradias, a região possui aspectos típicos de favelas como ocupação irregular, aspecto rústico do acabamento das casas e alta concentração de moradias, no tocante à infra‐estrutura urbana Heliópolis conta com sistemas de fornecimento de água, luz, rede de esgoto, telefonia e internet em quase toda a extensão percorrida pelos pesquisadores. Assim, pensar na distinção centro/periferia, entendo‐se a periferia como um local de carência e ausência em relação ao centro, é impraticável para Heliópolis. Finalmente, na abordagem da última etapa da pesquisa, ENFOQUES PARA A COMERCIALIZAÇÃO, são expostas, com base em dados de campo, propostas contextualizadas de Canais de Distribuição, de Produto e de Sistema de Cobrança de Prêmios – todos eles construídos a partir da experiência e conhecimemto específico dos profissionais do IMR acerca dessa trilogia de fatores, os quais são, em última instância, a proposta concreta que se realiza nesse estudo. No Capítulo Dados Estatísticos, são expostos puramemte os dados quantitativos coletados através da aplicação de questionário elaborado por nossos especialistas para abordar percepções do valor que tem os seguros, quantidade de seguros em poder dos moradores, distribuição de expectativas de compra de seguros, percepções sobre o futuro e outras distinções que são expostas ao longo deste trabalho – tais como renda média e cruzamento destes dados segundo idade, gênero e GSE (Grupo Socioeconômico). Sobre este último valor, o estudo IMR fez uma caracterização socioeconômica de seus habitantes – aporte substantivo que ajudará não somente a ter uma ideia mais clara do constituinte social dos habitantes da favela em questão, mas também a obter um marco de comparação com o restante da população geral do São Paulo e do país. A fim de estimar o Nível Socioeconômico da Heliópolis, foi usada a metodologia CCEB (Critério de Classificação Econômica Brasil), validada e utilizada pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. O sistema pretende ser uma forma única de avaliar o poder aquisitivo dos grupos de consumidores, sendo que não classifica a população em termos de "classes sociais", mas em um mercado que se divide unicamente em classes econômicas. Tal classificação é feita com base na posse de bems e não com base na renda familiar. Para cada bem possuído há uma pontuação e cada classe é definida pela soma dessa pontuação. As classes definidas pelo CCEB são A1, A2, B1, B2, C, D e E. Esse critério foi construído para definir grandes classes que atendam às necessidades de segmentação (por poder aquisitivo) da grande maioria das empresas (Figura 2).
5 Bi.ros.ca: [sf] Pequeno armazém onde se vemdem gêneros de primeira necessidade e bebidas alcoólicas.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
14
LIVRO 1 Há que ressaltar que não se tinha, para o presente estudo, informação prévia sobre a distribuição socioeconômica de Heliópolis e que, evidentememte, tal distribuição não é a mesma da cidade do São Paulo. Foi precisamemte por esta razão que se utilizou o sistema CCEB. Os resultados obtidos são uma representação válida de como está distribuído o Nível Socioeconômico na Favela de Heliópolis, e pode ser utilizado como base para qualquer outro estudo ou análise. Figura 2 – Distribución Gse Heliópolis
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
15
LIVRO 1
Conclusões As seguintes são, em detalhe, as principais conclusões desse estudo:
A mulher cumpre um papel fundamental e preeminente na administração do orçamemto familiar como tomadora de decisões para o bem‐estar da família. O papel da mulher como administradora é tácito. Não existe um “mandato” explícito, mas é ela quem vai administrar e gerir o orçamemto destinado a cobrir as necessidades da família. Se, por um lado, a sociedade em geral da favela apresenta traços de comportamentos tradicionais, nos quais a mulher costuma desempenhar um papel secundário e ser marginalizada em determinados espaços; as decisões familiares são, geralmente, tomadas em comum com o cônjuge masculino. O ponto anterior indica que nesse âmbito, qualquer mensagem deve dirigir‐se a ambos. Os rendimemtos médios indicados em diversos estudos estatísticos, incluindo o realizado por IMR para a favela em questão, não representam a quantia verdadeira dos mesmos. Isso se deve ao fato das rendas familiares serem compostas, sendo o número mais condizente com a realidade, em geral, de 30% a 40% maior do que o informado pelas pessoas. Isso é o que chamamos RFC, Rendimentos Familiares Compostos. Mesmo tendo rendimentos que geralmente estão muito acima da média declarada em pesquisas e estudos, a mulher não chega a dispor, diretamemte, do total de dinheiro que ingressa no lar. A renda familiar é, portanto, composta; mas apenas uma parte é de acesso coletivo – uma porcentagem menor fica à discrição de quem a obtém. A mulher possui uma influência “moral” sobre a renda familiar composta. Distinguem‐se 2 formas de enfremtar as “emergências”: através das redes familiares em primeira instância, e – em menor grau – das redes sociais; além de um sistema informal de se fazer economias. Os centros urbanos, denominados “Nodos” são chaves para o desenvolvimento comercial da Favela, e foram identificados 3 Nodos en Heliópolis (Silva Bueno, São João Clímaco, e Estrada das Lágrimas). O Nodo nasce, se desemvolve, estabelece e configura a partir de uma história evolutiva da área urbana na qual está inserido. Ele é o produto de anos de evolução de um espaço urbano que faz com que os habitantes de tal espaço se identifiquem com sua história e progresso. O dinamismo social e econômico que se concentra e encontra nos grandes Nodos está relacionado à região do entorno, denominada de Microcentros Comerciais Compostos (MCC), onde existem comércios medianos e pequenos – estes últimos denominados “biroscas”. Inexistem dentro da favela grandes Centros Comerciais do tipo de um shopping mall ou grandes redes de super ou hipermercados (como Extra) e que tenham sido introduzidas na favela de forma artificial, gerando a presemça de Nodos espontâneos; embora esteja em curso um processo de intervenção urbana/estatal na figura do PAC, sendo que o mesmo não busca se introduzir na favela de forma
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
16
LIVRO 1 comercial, e sim criar condições para que, através da organização do espaço urbano, os grandes centros comerciais possam vir a existir. A partir dos Nodos, os rendimentos familiares são redistribuídos até outras redes ou microcentros, sendo estes compostos por pequenos comércios – principalmente mercadinhos. O Microcentro Comercial Composto, é, portanto, uma “parada”, uma estação no processo vivido pela favela de transição da informalidade para a formalidade, e que é diariamente ativado pelas famílias. A medida que nos afastamos do Nodo e que nos introduzimos na favela com profundidade, aumenta a informalidade; e, portanto, também a vulnerabilidade social e incerteza econômica. A razão do ponto anterior está em aspectos de acesso, em zonas da favela da Rocinha que são mais pobres e marginais pela falta de vias de acesso que permitam aos moradores levar materiais de construção até suas casas. O anterior também nos permite afirmar que as fachadas e estados das casas e ruas não podem ser utilizados para atribuir pobreza aos moradores, dado que a falta de cuidado ou manutenção das casas e fachadas obedece a um mercado imoviliario muito activo e dinámico. Os Microcentros Comerciais Compostos descrevem relações simbólicas de confraternidade e familiaridade entre vizinhos e comerciantes. A dinâmica socioeconômica formada pelos mercados, mercadinhos, biroscas, identifica e destaca a riqueza das redes sociais que se deslocam desde os lugares aos microcentros, e se expressam nos graus de uma eficaz empatia entre cliente e comerciante. Mercados, mercadinhos e biroscas localizados em qualquer tipo de Microcentro Comercial Composto, são os espaços mais adequados para explicar e comercializar microsseguros. Devido ao processo de desenvolvimento “urbano” que existe na favela e a acessibilidade desenvolvida à sistemas de informação, existem muitas possibilidades de encontrar mercados e mercadinhos que utilizem tecnologias de informática, seja a Internet ou sistemas de pagamento online; o que permitiria uma fluidez na comunicação e maior facilidade de economia de custos ao se estabelecer uma relação de Correspondente Bancário para distribuição/cobrança de microsseguros. Os Mercadinhos são um dos espaços com maior potencial para a venda de microsseguros, mas ainda muito carentes de infraestrutura apropriada. Os produtos mais recomendados para distribuir en Rocinha, de acordo com as dinâmicas urbanas e econômicas por esse estudo observadas, bem como as expectativas descritas, são os produtos de proteção familiar, vida, acidentes pessoais, prestamista e, de forma complementar, seguros para proteção da casa.
A destinação de economias para imprevistos inclui o reconhecimento por parte dos moradores da favela do conceito, da ideia de perda – perda do emprego, adoecimento repentino, acidente e morte prematura – o que é um gancho muito oportuno para se usar na venda da ideia do seguro de vida e demais ramos.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
17
LIVRO 1 Os fatores percebidos da mesma forma por homems e mulheres como importantes para a família são, em ordem de importância:
O bem‐estar da família, que está associado à conservação das fontes de renda coletiva e à saúde. A moradia, subordinada à permanente construção e acabamento – sem falar na irregularidade fundiária. O bem‐estar dos filhos
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
18
LIVRO 1
Recomendações Com base, portanto, nos dados de campo recolhidos pelos pesquisadores e nas diversas análises expostas em detalhe no Capítulo 2 desta pesquisa, o IMR está em condições de fazer as seguintes recomendações ao Bradesco Vida e Previdência:
Considerar a mulher como tomadora de decisões no âmbito do bem‐estar familiar, pois, em geral, é ela quem vai decidir o que é o mais favorável para o coletivo e se é convemiente destinar parte do orçamento para a solução que se propõe. O homem também atua com um papel importante e não deve ser deixado à margem dos processos. Identificar a mulher como a receptora das mensagems de comunicação acerca dos produtos de microsseguros no âmbito do bem‐estar familiar e dos filhos Identificar o homem como o receptor das mensagems de comunicação acerca dos produtos de microsseguros no âmbito concreto das definições futuras sobre otimismo, esforço de superação e proteção global da família pela qual é o responsável. Destacar tanto na comercialização, como na publicidade dos produtos de microsseguros, as mensagems que a esses receptores lhe guardam sentido6, dentro do “saber cultural”, da significação7 do público‐alvo detalhado nesse estudo. É muito importante destacar e transmitir os benefícios para o coletivo familiar, assim como aludir a aspectos positivos, sem falar diretamente o processo de sinistralidade. Em sendo as mulheres as que administram o orçamento e as que tomam as decisões práticas com respeito ao bem‐estar da família, as memsagems sobre os produtos de microsseguros devem contemplá‐las como principais destinatárias, tomando o cuidado de não atribuir essa função a elas de maneira explícita a fim de não provocar nos homens uma sensação ou um sentimemto de serem sobrepujados. Se as mulheres serão as receptoras das mensagems sobre os produtos de microsseguros, a forma pela qual a comunicação se apresenta para elas deve fazer “sentido familiar”. Na comercialização dos produtos se deve destacar o aspecto do bem mais importante: para o meio estudado: o bem do “coletivo familiar”. Os microsseguros devem ser delineados como “soluções” que sejam percebidas como um reforço (no sentido de complememto, não substituição) das mesmas funções que aqueles “ativos sociais” (solidaridade familiar e social) suprem na manutenção do bem‐estar familiar.
6 O sentido, tal como nos é comunicado no discurso, depende das relações da palavra com as outras palavras do contexto, e tais relações são determinadas pela estrutura do sistema lingüístico. O sentido, ou antes, os sentidos de uma palavra, são definidos pelo conjunto dessas relações. 7 A significação é uma entidade psíquica. Relaciona‐se ao como cada um de nós interpreta o signo lingüístico, num dado momento da nossa existência.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
19
LIVRO 1 As mensagens sobre os produtos de microsseguros devem ser dirigidas a satisfazer as necessidades do coletivo; evitando, em uma primeira etapa, direcioná‐las a necessidades individuais. A “moralidade do gasto8” da mulher administradora de orçamentos familiares frequentememte é muito elevada – o que faz com que a apelação a uma necessidade individual possa ser percebida como um “gosto pessoal”; e isso não encontra espaço em suas considerações identitárias. Os produtos de microsseguros a serem distribuídos devem se estruturar nos pilares Vida – Acidentes – Casa; todos, ancorados na ideia da “proteção familiar”. Para um proceso estratégico de desenvolvimento de Microsseguros, o Nodo deve se configurar como a fonte do sinal de comunicação emitido dentro do espaço – o melhor lugar para gerar promoções e publicidade; e também se configurar como o centro de operações a partir do qual estabelecer a distribuição fora da agência (Bradesco Expresso). Na hipótese de se decidir estabelecer relações de correspondente bancário com Mercados/Mercadinhos, Farmácias, etc. para a distribuição de Microsseguros; o centro de distribuição e assistência deve ser estabelecido no Nodo. Isso promove uma aproximação não do Banco Bradesco, cuja agência localizada na Estrada das Lágrimas não possui mobilidade para explorar o labirinto da favela; mas sim da marca Bradesco enquanto SEGURADORA, levando‐a aos recantos da Heliópolis. Para distribuir Microsseguros é necessário formentar relações comerciais diretas e interativas devido ao fato de que o morador da favela busca participar de relações reivindicativas oriundas de uma história comum – daí o grande aporte que significa para essa distribuição contar com o aval de uma Associação Comunitária. Mercados, Mercadinhos e Biroscas, são os “lugares9” dentro dos Microcentros Comerciais Compostos; e é precisamente neles que se deve estabelecer a comercialização – dentro do contexto (de grande relevância para o meio) do contato social, a nível pessoal – dos Microsseguros. Ao se ativarem esses “lugares”, se produz um crescimento mais rápido e exponencial das redes de consumidores em potencial. Durante o processo de comercialização, sempre se deve orientar os vendedores e/ou angariadores a desenvolverem suas atividades indentificando primeiro os “lugares”, dado que estes tem o potencial para a expedição de Microsseguros. Nesses espaços existe uma relação previamente formada entre os comerciantes e os clientes, através da qual se estabelecem confianças e familiaridades. Devem‐se estabelecer canais de distribuição ligados aos Microcentros Comerciais, pois em geral a maior quantidade de “lugares” são, ali, emcontrados.
8 O conceito de “gasto moral” observado pelo IMR se refere ao destino que o administrador do orçamemto econômico nos núcleos familiares e/ou micro‐empresariais dá ao gasto, sendo esta despesa legitimada se o pemsamento coletivo ao qual o orçamento está representado considera que pagar um prêmio de seguro de vida todos os meses é ou não justo e a coisa certa a se fazer. Desse modo, para efeitos de comunicação e marketing, ao não conhecerem os seguros e respectivo funcionamemto e benefícios, esses consumidores em potemcial ficam incertos do que fazer – o que implica na “imoralidade” da despesa com o seguro. O gasto se torna, assim, “errado” para o orçamemto do grupo. 9 Segundo conceito do antropólogo francês Marc Auge: o lugar enraíza e identifica, fortalecendo a dimensão do viver, do existir em grupo. O lugar fortalece os sentimentos de pertencimento a algo que lhe é exterior e anterior, a cultura, as tradições, a nação – espaço da memória enraizada.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
20
LIVRO 1 Deve‐se construir uma estratégia de acesso ao comércio local (de acordo com o mapeamento feito por esta pesquisa) segundo os pontos comerciais frequentados majoritariamente por mulheres e os frequentados, em sua maioria, por homens. As mulheres que são administradoras ou proprietárias de comércios são mais propensas a se abrirem para uma relação comercial com uma Companhia de Seguros se esta, por sua vez, é capaz de oferecer alternativas de desenvolvimento para o negócio, principalmente na infra‐estrutura do local. Qualquer campanha de Microsseguros que venha a compensar e/ou motivar as donas de comércio do sexo feminino com opções de melhorias de fachada, pintura, instalação de sistemas de tecnologia, publicidade – emtre outros – terá uma grande acolhida. Para a constituição do tipo principal de distribuição fora da agência, e portanto, móvel, dinâmico; deve‐se começar com a construção da figura do Angariador – tanto individual, quanto institucional. an.ga.ri.ar (lat angariare): Agenciar, obter, procurar, arranjar. Dessa forma, e sobretudo enquanto inexiste um marco regulatório para a atividade de Microsseguros que venha a criar a figura de um corretor específico para a mesma; as pessoas que circulam pela favela e os “lugares” que são frequentados pelos moradores da favela passam a ser angariadores, passam a obter, procurar, arranjar consumidores de tais produtos. Processos de distribuição muito semelhantes já existem de forma consolidada dentro da favela através do Marketing de Redes. Aproveita‐se, assim, a base desse modelo, e sobretudo, a força de vendas/recrutamento por meio destes já consolidada, a fim de gerar vendas massivas de produtos e renda adicional para os distribuidores. A agência do Bradesco é, também, um importante espaço para a comercialização; contudo, seu potencial acaba sendo reduzido pela concorrência de corretores de produtos tradicionais – que acabam desviando a venda a produtos geradores de comissão. A agência do Bradesco deve ser transformada em um espaço mais próximo ao conceito de um “Lugar”. Apesar da natureza da dinâmica inerente à agência, com suas transações diárias massivas, não permitir que ela venha a se tornar um “lugar”, pode‐se incentivar a aproximação à comunidade com informação visual que se comunique com a favela e sua história, que contenha sua fotografia. Com isso, não apenas se marca a “presença” contextualizada da marca Bradesco, mas também, e no processo, cria‐se uma empatia que irá incentivar os clientes a buscarem os produtos de Microsseguros. A forma de se fazer isso é através de videos e documentários que tenham apelo, que ressoem no contexto da “comunidade”, no contexto da imagem identitária que se quer resgatar dentro da Favela. Para isso, é recomendável usar o espaço da agência para colocar televisores – principalmente – nos locais onde os clientes aguardam atendimento, de forma a ocupar o tempo ocioso da “audiência” que ali se forma diariamente em todos os horários. As mensagems sobre os produtos devem se centrar em questões positivas, que permitam visualizar o avance da família em direção a suas metas, e sem aludir diretamente ao processo de sinistralidade.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
21
LIVRO 1 A incoporação da estrutura do Bradesco Expresso é a base do sistema de cobrança de prêmios dos microsseguros fora da agência, podendo ser usada inclusive como um meio de distribuição fora da agência e sem a vinculação do cliente de microsseguros ao cliente bancário. Os pesquisadores do IMR conseguiram vislumbrar a chegada de redes de internet até mesmo às zonas mais internas e “inacessíveis” da favela o que demostra que mesmo os pequenos e médios comerciantes possuem acesso e são capazes de incorporar em seus negócios sistemas informatizados de pagamentos; ainda que pese a informalidade dos negócios. Os sistemas de pagamento com cartão de crédito e de débito não são estranhos à favela. Como assinalado em diversos pontos desse relatório, desde o ano 2000 que diferemtes pesquisadores tem destacado tal fato; hoje, bastante consolidado – inclusive em algumas lojas dos Microcentros. Trabalhar com o imaginário da perda (“Imprevistos”) dentro do contexto dos moradores da favela pode vir a ter um grande apelo no desenvolvimento de uma estratégia de marketing de seguro de vida.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
22
Equipe IMR Como parte de suas atividades profissionais, o IMR ajuda a compreender, planificar e implementar as iniciativas de marketing e planejamento estratégico que propõe para o desenvolvimento e distribuição de Microsseguros. Através de estudos e pesquisas patenteadas, realizadas segundo as necessidades de cada cliente, o IMR tem explorado uma série de sociedades e grupos humanos em diversos países da América Latina, a fim de expandir seu emtendimento acerca do desenvolvimento de mercados e produtos. Portanto, através de seus Estudos de Marketing Estratégico Mistos (Quantitativos e Qualitativos), o IMR ajuda a descobrir pontos competitivos de grande robustez e vigor, idemtificando o sentido prático das diversas atividades comerciais as quais as companhias de serviços financeiros se propõem a executar.
IMR‐Q MR‐Q, é um área do Programa IMR enfocado em estudos estatísticos para pesquisas sobre Serviços Financeiros
Aliança com a LIMRA Em seus esforços de expansão internacional, o IMR formou uma aliança com a LIMRA com o intuito de ser validado como uma ferramenta de elevada confiança e qualidade, segundo os padrões que esta organização internacional exige, e também para ajudar a LIMRA a fornecer um serviço técnico maior a seus associados da região no tema dos Microsseguros – reconhecidamente, uma especialidade do IMR.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 23
LIVRO 2
LIVRO 2
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 24
LIVRO 2
Prefácio
“Se deixamos de pensar nos pobres como vítimas ou como um peso e começamos a reconhecê‐los como empresários criativos e com capacidade de recuperação, e também como consumidores com real sentido de valor, um mundo de novas oportunidades se abre” – C.K. Prahalad
O conceito de pobreza é, principalmente, econômico. Porém, por seus impactos políticos e psicológicos, à luz das Ciências Sociais se prefere falar de “Risco Social”, dadas as implicações de mobilidade descemdete (baixar de classe social) que recaem sobre a pessoa exposta à deterioração de uma situação econômica – o que amplia o conceito e o delimita ao âmbito do risco, visto que é esta condição de deterioração da situação econômica, e não outra, a que aumenta ou diminui quando se carece de recursos e se é excluído do acesso aos “bems” sociais. A pobreza é resultado de processos complexos e propagados ao longo do tempo, que são difíceis de apreciar sob um olhar superficial por exigirem pesquisas e estudos contínuos a fim de alcançar sua compreensão antes que se possa planejar qualquer tipo de tentativa de erradicá‐la. E é dentro desse contexto da compreensão da pobreza que se encontram os resultados da pesquisa que esse relatório expõe – como parte do esforço sustentado por uma equipe de pesquisadores de caráter internacional que teve como missão morar na favela por dois meses, a fim de se aprofundar na compreensão das estruturas que possibilitam “o risco social” e, por fim, propor soluções‐chave. O Internacional Microinsurance Research (IMR) nasce com essa ótica de fazer um esforço para nivelar definições e preparar ações concretas desde o âmbito da indústria de seguros – ações estas que permitam operar as condições que possibilitam o risco social. Do ponto de vista da indústria de seguros, o conceito de "risco" refere‐se à possibilidade de um dano em potencial afetar pessoas e bens. O risco é um evento gerador de danos prováveis. Alterando o valor do interesse segurável ou incerteza da perda, o risco se constitui em elemento essemcial do contrato. Se o risco inexiste, também o seguro inexistirá. Todavia, quando se discute o tema de Microsseguros, o conceito é frequentemente confundido com seguros de massa ou ainda se refere a categorias e distinções culturais que não surgem a partir do âmbito do risco social (ou o mundo dos "pobres"), sendo que o conceito de “risco” para pessoas em situação de “risco social" não tem o mesmo sentido e significado que o tem para as classes média e alta da sociedade. Se para esses dois últimos segmentos socioeconômicos – tradicionalmente, objetos da oferta de seguros – falar em "previsão" significa falar acerca de prevemção em saúde e proteção de bems materiais, podemos supor que para pessoas em "risco social" o significado seja o mesmo? O que significa para tais pessoas o conceito de "previdência" ou “previsão”? A perspectiva do Microsseguro é a de criar produtos e estratégias de marketing que cheguem a um cliente acerca do qual pouco ou quase nada se sabe – em particular, sobre a maneira que ele distingue sua realidade econômica e as formas pelas quais ele se constitui como consumidor. Executivos e especialistas em seguros – todos –
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 25
LIVRO 2 desconhecemos em profundidade os valores e as motivações que esse cliente em potencial pode ter frente ao conceito de "risco". O anterior não é menos certo quando se trata das favelas – estando estas imersas em uma construção de representações sociais, cuja transcendência ao longo do século XX delimita a existência de duas formas de entender o Brasil, e determina enfoques científicos especiais que exigem uma revisão que inclua o material acadêmico/bibliográfico produzido desde o momento de sua aparição como fenômeno, ao final do século XIX, até os dias atuais. E, do mesmo modo que entrar no fenômeno das favelas exige profundas revisões metodológicas, também desde um ponto de vista prático, quando nos remetemos à razão principal de nosso atuar científico como facilitadores do acesso comercial às favelas a partir do marketing de Microsseguros, se fazem necessárias também novas estratégias de mercado que comecem por descrever as condutas e percepções econômicas das “pessoas em risco social” desde sua própria ótica – e NÃO desde as representações com respeito às favelas que a sociedade brasileira dominante foi construindo ao longo de mais de cem anos de história. O FENÔMENO DAS REPRESENTAÇÕES NOS AFASTA DE UMA COMPREENSÃO verdadeira do mundo da FAVELA, e o problema é ainda mais grave e complexo quando nos situamos sob o “olhar” da indústria seguradora: como executivos, profissionais e produtores da indústria seguradora, formamos parte de uma comunidade fechada, auto‐referencial e especializada dentro da sociedade. Muitas vezes, nossos conceitos e terminologias são compreendidos apenas por um círculo profissional especializado. Da mesma forma, nossa relação e convívio com as pessoas em risco social é praticamente nula. Na maioria das vezes, nós os percebemos ou tomamos consciência de sua realidade através dos meios de comunicação ou por acaso, quando passamos por eles na rua. A situação se complica ainda mais quando a informação que recebemos sobre eles é limitada e/ou parcial. Em outras palavras, nossa indústria e os indivíduos em risco social são dois mundos que mal se comunicam e se entendem.
Primeiro referêncial Metodológico: Unidade de Estruturas entre Rocinha e Heliópolis O international Microinsurance Research foi convocado para introduzir‐se nas favelas da Rocinha, no Rio de Janeiro, e de Heliópolis, em São Paulo, a título de conhecer os fatores culturais que subjazem por trás dos comportamentos econômicos de seus moradores. Foi considerado necessário, para os efeitos da metodologia de análise dessa pesquisa, fazer uma generalização dos aspectos e fatores predominantes na construção das representações históricas das favelas. Desse modo, para o IMR, a constituição histórica das favelas terá, primordialmente, uma fonte de informação que se nutrirá em especial dos casos específicos do Rio de Janeiro. A razão dessa definição metodológica e/ou teórica se origina na predominância de pesquisas e de informação bibliográfica que possui a constituição de favelas no Rio de Janeiro. Apenas como dado ilustrativo, segundo dados do Instituto Pereira Passos do ano de 2002; em um universo de 752 favelas, apenas 19 delas atraíam verdadeiramente a atenção dos pesquisadores, reunindo 416 publicações; ou seja, 43% do total. O particular aqui é que a Rocinha encabeça o ranking com 82 publicações, seguida pelo Complexo da Maré (que reúne várias favelas) com 75 publicações e o restante com uma média de 10 publicações.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 26
LIVRO 2 O caso de Heliópolis é ainda mais grave, pois em toda sua história, não deve haver mais do que 3 o 4 estudos de caráter acadêmico – nenhum deles publicado. Isso significa que a pesquisa IMR vai supor que muitos aspectos observados na história política, econômica e social que explicam a construção das favelas do Rio de Janeiro também existem na favela de Heliópolis, São Paulo. Razões para essa definição se encontram na escassa quantidade de produção científica e pesquisas nessa área do país. Outro elemento interessante e relevante que levou a tal opção é o da história cultural que ainda hoje continua representando o Rio de Janeiro, já que, segundo assinala Zuluar “a despeito de seu enfraquecimento econômico e da maior variedade de centros políticos e culturais importantes, o Rio de Janeiro representa, metonimicamente, o Brasil justamente porque mantém essa tensão entre o pessoal e o impessoal, entre o moderno e o antigo, entre a ordem e a desordem – tensão para a qual a presença da favela tem oferecido modelos, desafios e contestações. Aqui ainda são buscados os símbolos (positivos e negativos) da nacionalidade a partir dessa tensão e para expressá‐la”.10
Segundo referêncial Metodológico: O papel das representações na construção da ideia da favela “Estudar uma favela carioca, hoje, é sobretudo combater certo senso comum que já possui longa história e um pensamento acadêmico que apenas reproduz parte das imagens, idéias e práticas correntes que lhe dizem respeito e, até certo ponto, mapeiam as etapas de elaboração de uma mitologia urbana. É também tentar mostrar, por exemplo, que a favela não é o mundo da desordem, que a idéia de carência (“comunidades carentes”), de falta, é insuficiente para entendê‐la. É, por fim, mostrar que a favela não é periferia nem está à margem: Acari, por exemplo, é o centro ou Nodo de uma série de práticas e estratégias de grupos bem específicos: a burocracia municipal, estadual e federal, políticos e/ou candidatos, jornalistas, policiais, membros de entidades civis, laicas e religiosas, associações de moradores, comerciantes, traficantes, moradores em geral e, last but not least, pesquisadores atuando de forma perene ou ocasional e influindo no c otidiano da favela.” 11
ORIGEM DO TERMO FAVELA E DE SUA REPRESENTAÇÃO Escritos do início do século levam a associar o Morro da Providência, no Rio de Janeiro, ao povoado de Canudos, no sertão baiano. Combatentes da guerra de Canudos vieram a se estabelecer no Morro da Providência, passando a chamá‐lo, posteriormente de Morro da Favella. “A maior parte dos comentaristas apresenta duas razões para essa mudança de nome: 1ª) a planta favella, que dera seu nome ao Morro Favella – situado no município de Monte Santo no Estado da Bahia – ser também encontrada na vegetação que cobria o Morro da Providência; e 2ª) a feroz resistência dos combatentes entrincheirados nesse morro baiano da Favella, durante a guerra de Canudos, ter retardado a vitória final do exército da República e a tomada dessa posição, representando uma virada decisiva da batalha.”12
10 Zaluar e Altivo: UM SÉCULO DE FAVELA, FGV Editora, Rio de Janeiro, 2006, p. 12 11 Ibid. 12 Valladares, Licia do Prado; “A Invenção da Favela, Do Mito de origem a Favela.Com”; FGV Editora; Rio de Janeiro, 2008.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 27
LIVRO 2 Segundo Dias Da Cruz (1941), o termo favela era o local do sertão baiano onde se encontravam os seguidores do beato Antônio Conselheiro, tendo se difundido no Rio onde, perto do Ministério da Guerra, estava o Morro da Providência, habitado por soldados que voltavam da Campanha de Canudos. Concluída a luta na Bahia, e derrotado Conselheiro, regressavam as tropas e... “Muitos soldados vieram acompanhados de suas ‘cabrochas’. Eles tiveram que arranjar moradas. (...) As cabrochas eram naturais de uma serra chamada favela no município de Monte Santo, naquele estado. Falavam muito, sempre da sua Bahia, do seu morro. E ficou a favela nos morros cariocas. Primeiro, na aba da Providência, morro em que já morava uma numerosa população; depois foi subindo, virou para o outro lado, para o Livramento. Nascera a Favela, 1897”13. Contudo, foi o livro “Os Sertões”, publicado posteriormente, em 1902, pelo jornalista Euclides da Cunha o que deu início ao processo das representações, cuja relevância para esta análise será aqui abordada. O acontecimento em que o Morro da Providência foi rebatizado como Morro da Favella teria passado despercebido e essa palavra não teria alcançado a posteridade que conheceu “sem as imagens fortes O acontecimento em que o Morro e marcantes transmitidas através de Os Sertões. Imagens capazes de permitir aos intelectuais brasileiros da época compreender e da Providência foi rebatizado interpretar a favela emergente.”14 como Morro da Favella teria Em sua análise, Valladares demonstra a profunda influência do livro passado despercebido e essa de Euclides da Cunha sobre os primeiros observadores da favela. Ela palavra não teria alcançado a chama de elementos do Mito Fundador da Favela carioca, e que posteridade que conheceu “sem podemos generalizar na fundação da grande maioria das favelas brasileiras, ainda presentes hoje na memória coletiva, constituído as imagens fortes e marcantes através dessa transposição que faz Da Cunha. transmitidas através do Livro “Os Esses elementos são15: Sertões”. A. especificidades de um processo de crescimento urbano (ainda que fosse um povoado em área rural) rápido, desordenado e precário. B. topografia de uma região de morros que faz dela um verdadeiro bastião, de acesso muito difícil. C. ausência de propriedade privada do solo, substituída pela propriedade coletiva da terra. D. ausência do domínio do Estado e das instituições públicas (leis, polícia, municipalidades, etc.) nesse território rebelado contra a República. E. ordem política específica, marcada pelo domínio do chefe (Antônio Conselheiro, líder carismático que desviou o povo de suas obrigações) ... pregando abertamente a insurreição contra as leis. F. espaço capaz de condicionar o comportamento dos indivíduos, integrando os recém‐chegados à identidade coletiva, homogênea e uniforme do grupo ... ideia de comunidades, tão presente no campo analisado por Euclides da Cunha, acabou por ser igualmente associada à favela carioca, servindo de modelo... G. comportamento moral revoltante para o observador, marcado pelo deboche, pela promiscuidade e ausência de trabalho, uma economia fundamentada no roubo e nas pilhagens. H. um perigo para a ordem social de toda a região, inclusive de todo o sertão, um considerável risco de contágio. “No começo dessa analogia, as respectivas representações aparecem fortemente estruturadas pelas preocupações políticas relativas à consolidação da jovem República, saúde da sociedade e entrada na modernidade.
13 Zaluar e Alvito, 65 14 Valladares, 30 15 Ibid, 36
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 28
LIVRO 2 A favela pertence ao mundo antigo, bárbaro, do qual é preciso distanciar‐se para alcançar a civilização. (...) A imagem matriz da favela já estava, portanto, construída e dada a partir do olhar arguto e curioso do jornalista/observador. ‘Um outro mundo’, muito mais próximo da roça, do sertão, ‘longe da cidade’. (...) Universo exótico, em meio a uma pobreza originalmente concentrada no Centro da Cidade, em cortiços e outras modalidades de habitações coletivas, prolongavam‐se agora, morro acima, ameaçando o restante da cidade. (...) Estava descoberta a favela e lançadas as bases necessárias para sua transformação em problema”. 16 Os elementos do “mito fundador da favela” nos introduz em uma história das representações da favela como “problema”, sendo suas principais etapas17: 1∫ anos 30 – início dos processos de favelização do Rio de Janeiro e reconhecimento da existência da favela pelo Código de Obras de 1937; 2∫ anos 40 – a primeira proposta de intervenção pública corresponde à criação dos parques proletários durante o período Vargas; 3∫ anos 50 e início dos anos 60 – expansão descontrolada das favelas sob a égide do populismo; 4∫ meados dos anos 60 até o final dos anos 70 – eliminação das favelas e sua remoção dentro da política habitacional feita pelo BNH (Banco Nacional de habitação) durante o regime militar; 5∫ anos 80 – início de um processo de transição (da política pública habitacional) de remoção para urbanização das favelas, fim do BNH (em 1986); período de redemocratização do país 6∫ anos 90 – consolidação da ideia de urbanização das favelas, como a política municipal da cidade do Rio de Janeiro, na figura do Programa Favela‐Bairro; período que marca o início do programa brasileiro de estabilização econômica com o Plano Real (em 1994). 7∫ 27.07.2010 – a Prefeitura do Rio lança o Programa “Morar Carioca”18, dentro do chamado Plano Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais. 16 Ibid 17 Ibid, 36 18 Prevê a urbanização de todas as comunidades do Rio de Janeiro até 2020, com o objetivo de promover a integração e implantar um sistema de controle e ordenamento da ocupação e uso do solo urbano. O programa é um compromisso internacional da cidade, pois faz parte do Plano de Legado Urbano das Olimpíadas de 2016, e o investimento será feito com recursos da Prefeitura do Rio, do Governo Federal e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O Morar Carioca deverá beneficiar 260 mil domicílios até 2020. A nova metodologia de cadastramento e mapeamento das favelas usada pelo projeto, que diminuiu de 1.020 para 625 o número total de favelas na cidade, foi assim explicada pelo secretário de Desenvolvimento do Município, Felipe Góes: ‐ Integração é a palavra chave deste plano. Ele vai integrar definitivamente todos os assentamentos precários, as comunidades carentes, à chamada cidade formal. O Instituto Pereira Passos (IPP) tradicionalmente acompanha o número e o tamanho das comunidades do Rio de Janeiro. Pela contagem tradicional, se divulgava o número de 1.020 favelas no Rio, com aproximadamente 380 mil domicílios. Para definirmos as políticas públicas adequadas para esse programa, tivemos que reconhecer a existência dos complexos, ou seja, favelas que se encontram em áreas contínuas e formam um tecido urbano único. Portanto, temos hoje 539 "favelas agrupadas", formando 144 complexos de favelas, e mais 481 "favelas isoladas", totalizando 625. É com esse número que vamos trabalhar a partir de agora – explicou Felipe. A abrangência do programa, segundo o secretário municipal de Habitação, Pierre Batista, é digna de destaque. Para ele, o Morar Carioca vai executar ações em comunidades em todas as regiões do Rio e, por isso, vai beneficiar a cidade como um todo, não apenas os moradores das áreas onde vão ocorrer as intervenções. Ficará sob a responsabilidade da Prefeitura do Rio a implantação dos serviços básicos de conservação da infraestrutura e dos equipamentos sociais, como iluminação, pavimentação, drenagem, limpeza; implantação de um sistema de controle do surgimento e do crescimento irregular de favelas, sob fiscalização da Secretaria Especial da Ordem Pública (Seop); o mapeamento anual das favelas, através de fotos aéreas e satélites (antes era atualizado de quatro em quatro anos); ampliação da Legislação Urbanística, através do aumento do número de Postos de Orientação Urbanística e Social (POUSO) de 30 para 130; e reassentamento das famílias em áreas de risco. Fonte: Secretaria Municipal de Habitação – Prefeitura do Rio, Julho 2010.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 29
LIVRO 2 8∫
De acordo com o prefeito Eduardo Paes, o grande diferencial do programa é que “por ser um projeto de urbanização que engloba a definição de parâmetros urbanísticos, controle de expansão e uma conservação permanente do Município, o Morar Carioca vai nos permitir começar a criar a cultura de que comunidade urbanizada faz parte da cidade.”19
A década de 50 é fundamental para o desenvolvimento das favelas. Em primeiro lugar, pela explosão demográfica que se produz em toda a América Latina. A evolução demográfica do Brasil observada no período de 1950 a 1980 foi espetacular, na medida em que a população do país passou, em 30 anos, do predomínio rural (pelo recenseamento de 1950, 64% da população ainda morava no campo) ao predomínio urbano (pelo recenseamento de 1980, 68% da população já morava nas cidades). O crescimento urbano, daí resultante, foi explosivo – a população das cidades multiplicou‐se por 4,2 entre esses dois marcos de tempo – principalmente através do crescimento das favelas, dos loteamentos periféricos sem qualquer infra‐estrutura e da expansão dos cortiços, conferindo ao fenômeno da pobreza urbana uma amplitude sem precedentes.20 No âmbito político, os anos 40 e 50 foram, igualmente, determinantes. Durante o Estado Novo, nos anos 40, Estado e Igreja unem‐se diante do medo da ameaça comunista que pairava sobre as favelas cariocas. Assim, em 1946, é criada a Fundação Leão XIII e em 1955 a Cruzada São Sebastião pela Igreja Católica. Esta última, liderada por Dom Helder Câmara, lançou as sementes para um projeto de urbanização de favelas. Por outro lado, o Estado institui o SERFHA – Serviço Especial de Recuperação de Habitações Anti‐Higiênicas – primeiro órgão oficial voltado para a urbanização das favelas, atuando como mediador na relação do Estado com os moradores de favelas. Apesar de que futuramente, nos anos 60, esta última instituição viria a passar por um período mais democrático, a ideia em sua criação era a de controle da população e cooptação das lideranças das favelas. Ainda na década de 60, com o esvaziamento do SERFHA, foi criada, na gestão Kubitschek, a Companhia de Habitação Popular (COHAB) com a missão de realizar uma nova política habitacional, baseada na construção de unidades para famílias de baixa renda. “Com Negrão De Lima21 no governo, a tendência era retomar a trilha deixada pelo SERFHA, criado durante sua passagem pela prefeitura, em 1956, fazendo supor que a via urbanizadora das favelas voltaria a ser privilegiada e que, no lugar do controle duro e direito, tentar‐se‐ia estabelecer a estratégia de cooptação. De fato, a princípio a COHAB foi deixada de lado, atribuindo‐se maior ênfase ao trabalho da Fundação Leão XIII junto às associações de moradores. No entanto, distante da pedagogia cristã dos anos 50, baseada na percepção de habitantes de favelas como ‘irmãos cristãos’, agora a Leão XIII pautaria sua ação por uma leitura que via a favela como o lugar do vício e da promiscuidade, ‘refúgio de criminosos’. Diante dessa reelaboração da identidade do favelado, nem mesmo a lógica de negociação baseada na cooptação de lideranças, experimentada no início dos anos 60 pelo SERFHA, poderia ser implantada; afinal, ela fora desenvolvida tendo em vista uma outra identidade do favelado, aquela que vinha sendo politicamente construída e que, inclusive, dera lugar a uma identidade federativa, a FAFEG22. A polarização entre o mundo da ordem e o lugar da desordem devolve a representação da favela aos termos da década de 40, da favela como o habitat de indivíduos pré‐civilizados; e, por isso, não cabendo mais o diálogo com suas identidades políticas: a discussão sobre o que fazer com as favelas torna‐se impermeável à participação de seus moradores.23
19 http://www.rio.rj.gov.br/web/smh/exibeconteudo?article‐id=988601 20 Ibid 21 Governador do Estado da Guanabara no período de 1965 a 1970. 22 Em face da política (da época) direcionada às favelas, de caráter puramente assistencialista e que não tinha como referência os direitos de cidadania da população favelada, esse segmento da população passa a se organizar, congregando o conjunto das associações de moradores de favelas já existentes, através da Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (FAFEG), criada em 1963. 23 Zuluar e Alvito, 34
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 30
LIVRO 2 Porém, o plano de erradicação de favelas enfrentaria uma forte reação de seus moradores nas cidades – reação esta já esboçada nas primeiras experiências (ainda no governo Lacerda), cujo custo político ficara bem registrado no resultado das eleições de 1965. Organizados politicamente e representados por uma FAFEG que congregava cerca de 100 associações de moradores, os habitantes das favelas lutariam de forma desesperada para não serem removidos, entrincheirados na identidade politicamente construída de favelado. A história dessas remoções, ocorridas sobretudo entre 1968 e 1975, representa um dos capítulos mais violentos da longa história de repressão e exclusão do estado brasileiro.24 Foi na causa da explosão demográfica experimentada pelas cidades brasileiras naqueles anos, que os geógrafos sublinharam o desequilíbrio causado pelo crescimento anárquico das grandes metrópoles nacionais dentro das redes urbanas de cada pais, “e as conseqüências dessa macrocefalia (urban primace) sobre o espaço das grandes cidades. Os economistas insistiam no descompasso entre os setores modernos e os tradicionais da economia, especialmente na economia urbana, incapaz de fazer frente à oferta, sempre crescente, de uma mão‐de‐obra pouco A evolução demográfica do Brasil qualificada. (Ibid, 129)
DA FAVELA‐PROBLEMA À FAVELA‐SOLUÇÃO
observada no período de 1950 a 1980 foi espetacular, na medida em que a população do país passou, em 30 anos, do predomínio rural (pelo recenseamento de 1950, 64% da população ainda morava no campo) ao predomínio urbano (pelo recenseamento de 1980, 68% da população já morava nas cidades).
Os estudos do IMR estão verificando a incerteza da existência dentro das favelas de uma certa “cultura da pobreza” que passaria de uma geração à outra, mantendo assim um círculo vicioso capaz de garantir aos pobres condições de sobrevida na sociedade moderna25, um modo de vida que terminaria por gerar uma “síndrome” específica das populações pobres, “em que tanto se manifestava um espírito de resignação e de fatalismo frente ao futuro, quanto uma certa ‘alegria de viver’ e uma forte dose de calor humano, tornando as dificuldades cotidianas mais suportáveis”.26 Uma ideia contraria a essa visão de marginalidade aparece já na década de 1960 na ideia de que esses bairros populares, vistos como emclaves, estavam fortemente integrados à vida urbana através de sua inserção em diversos mercados: o mercado de trabalho, o mercado politico e o mercado da cultura (em particular do Carnaval).27 Agreguemos ao anterior, o contexto econômico descrito ao longo do trabalho realizado pelo IMR nas favelas da Rocinha e Heliópolis; particularmente, nos aspectos contidos nos Microcentros Comerciais Compostos (MCC), enquanto espaço de intercâmbios de consumo. Atualmente, uma assinatura mensal da TV Roc28 custa entre R$30 e R$35 com R$60,00 pela adesão, dando acesso a mais de 40 canais entre a TV aberta, paga e comunitária. Exclusiva para os habitantes da Rocinha, em 2003 o número de assinaturas já era de cerca de 28 mil, com a renda mensal por família (de assinantes) variando entre R$800 e R$1.000. Vale ressaltar que o salário mínimo atual no Brasil é de R$510,00. 24 Ibid 25 Segundo assinala Oscar Lewis, antropólogo norte‐americano, cujo trabalho de campo nos grandes cortiços das zonas centrais do México, serviu de base ao seu best‐seller, Five Families (Lewis, 1959) 26 Ibid 27 Leeds, Anthony (em Valladares, Op. Cit.) 28 Instituída em 1996 através de um contrato com a operadora Net, que possibilitou a criação de uma operadora de televisão por assinatura e de um canal comunitário.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 31
LIVRO 2 A pesquisa do IMR aponta as mudanças ocorridas em sete anos, mas a diferença entre a representação e a realidade segue sendo marcante:
Figura 1 – Nível de Rendimentos
Assinala Valladares em 2003: “Além do canal de TV exclusivo, outros elementos permitem apreciar o grau de inserção desse imenso espaço construído nos circuitos econômicos e comerciais da cidade, do país e do mundo. Quando adentramos a Rocinha, ficamos espantados ao encontrar, ao mesmo tempo, uma sorveteria franqueada da cadeia McDonalds, aberta dia e noite (que em Abril de 2000 teve a maior venda de sorvetes do Rio), três sucursais da loja de material fotográfico DePlá, três pontos de venda – formais – de telefones celulares (Nokia, entre outros), videoclubes em profusão, agências bancárias, assim como uma agência dos Correios.”29 Igualmente desenvolvida, a atividade empresarial individual é muito forte. “Já no ano 2000, o perfil típico do empresário (de favela) foi estudado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micros e Pequenas Empresas: ele tem entre 30 e 40 anos, nível de instrução secundária, montou seu negócio com recursos próprios (605 dos casos), ou com apoio de parentes (10%). A Associação Comercial e Industrial do Bairro é criada para coordenar os interesses comerciais locais. Os cartões de crédito – Visa, Credicard, American Express – aceitos em vários comércios, atestam o poder de compra da população local e sua participação no mercado brasileiro e internacional de consumo”.30 Favelas como a Rocinha estão em processo de evolução (ou de transformação) para verdadeiros bairros, atendo para o fato de que, por bairro, o entendimento do IMR é o de um conjunto social, dono de seus próprios terrenos. Como isso ainda não acontece na Rocinha, tãopouco em Heliópolis; não podemos falar de bairro – e, ao contrário da ânsia de seus habitantes, para a definição desse estudo, Rocinha e Heliópolis continuam sendo consideradas favelas. Contudo, favelas com serviços médicos privados, clínicas particulares (entre as quais um centro médico de exames, tais como ecografia, ultra‐sonografia, prevenção pré‐operatória); laboratórios de análises clínicas, dentistas, médicos especializados, ginecologistas, entre outros – todos, instalados para receber os pacientes da favela. Encontramos também pelo menos um veterinário. Escritórios de advocacia especializados em direito penal e o trabalho estão, também, implantados na Rocinha. As oito agências imobiliárias da favela (a maior delas gerenciando 1.500 contratos) negociam a locação de locais de uso residencial ou comercial. O problema crucial dos transportes é resolvido através de uma linha de ônibus privada (120 ônibus), assim como de moto‐táxis (cerca de 200) que servem a Rocinha a partir de sete pontos diferentes. Uma empresa (formal) de táxis tem, ali, a sua central 29 Ibid., 146 30 Ibid
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 32
LIVRO 2 com telefone, atendendo a todos os bairros da Zona Sul do Rio de Janeiro. Um empresário local também teve a ideia de propor um ônibus escolar às famílias que desejam garantir a segurança dos filhos no trajeto até a escola pública, visto que é comum ver crianças transitando na garupa dos moto‐táxis, espremidas entre os adultos – no caso, o motorista e o pai ou a mãe. O trajeto a pé é igualmente perigoso, sendo disputado com os veículos a motor e demais pedestres nas vias principais, onde rua e calçada tem um limite não muito bem estabelecido.
TERRENOS SEM PROPRIETÁRIOS Segundo o ponto anterior, para efeitos do estudo IMR, Rocinha e Heliópolis ainda não são bairros – apesar de se encontrar, em ambas as favelas, tal menção; em particular, Heliópolis – que através de sua Associação de Moradores (UNAS) vem construindo um discurso político nos últimos anos de ser “O Bairro Educador”. A definição de bairro para esse estudo será determinada pela propriedade individual ou coletiva das terras nas quais estão erguidas as moradias – situação que não se observa até hoje, e que apesar de muitos serem os processos, projetos e promessas de regularização fundiária, em curso ou ainda no papel; e ainda, apesar das respectivas prefeituras terem criado instâncias “formais” para acolher a “informalidade”, a regularização fundiária ainda não se produz de fato. José Martins de Oliveira, 62 anos, morador da Rocinha desde 1967, primeiro administrador regional da favela (cargo ligado à prefeitura), fundador e primeiro presidente da AMABB – Associação de Moradores do Bairro Barcelos, uma das principais áreas da comunidade – e hoje diretor da ASPA (Ação Social Padre Anchieta) tem uma percepção interessante acerca da diferença entre ‘bairro’ e ‘favela’: “Não faz diferença para mim se a Rocinha hoje é bairro ou é favela. A diferença para mim seria em relação à infra‐estrutura. A diferença se dá quando você tem acesso aos serviços básicos de um bairro. Desde saneamento à saúde. É brincadeira chamar a Rocinha de bairro com várias valas a céu aberto, sem pavimentação nas ruas! Então, não justifica ser bairro – o título, por si só, não interessa. Não sei se alguém acha interessante ser bairro. Como disse, mais vale a infra‐estrutura do que o título.”31 O Bairro Barcelos, por sinal, conta, nas palavras de José Martins, uma história do que poderia ter sido a Rocinha. “O Bairro Barcelos é diferente porque conseguiu se estruturar. Embora a Rocinha fosse um loteamento, o Bairro Barcelos, que era da Companhia Cristo Redentor, foi vendido em frações ideias de terreno – e não de loteamento. Preferiram fazer uma coisa menor, em frações de 40m², possibilitando a moradores da própria Rocinha comprar terrenos aqui. As pessoas foram comprando e construindo suas casas já com os esgotos. Ao contrário do que se pensa, muita gente tem título de posse aqui, eu mesmo tenho.”32 Devemos recordar que a origem das favelas se produz pela ocupação ilegal de terras. Foi sobre um terreno cuja propriedade não lhes pertencia que muitos moradores não só conseguiram construir a própria moradia, como também uma segunda, terceira, e até uma quarta – já com fins de locação ou venda. “Aliás, é possível vender apenas a laje superior de sua própria casa, como se fosse um terreno criado. Assim, transações imobiliárias se desenvolvem em um mercado paralelo àquele gerido pelos tabeliães da cidade.”33 Sendo assim, é dentro dessa complexidade que se atua quando, desde diversas instâncias (estatais, acadêmicas e sociales), se tenta solucionar o problema do déficit das moradias pela via de erradicação das favelas.
31 Contribuição de Edu Casaes (entrevista) e Nando Dias (foto) do Viva Favela 32 Idem 33 Ibid
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 33
LIVRO 2 A análise de duas áreas distintas dentro da Rocinha feita pela Universidade Federal Fluminense34 se deu de forma a verificar como as diferenças históricas de ocupação e a situação geográfica condicionam as representações dos moradores sobre o conceito de propriedade. As áreas estudadas, o Bairro Barcelos e o Laboriaux, confirmaram que as condições de ocupação interferem claramente na percepção do conceito de propriedade. Enquanto no Bairro Barcelos os moradores se disseram proprietários por terem comprado o seu imóvel, no Laboriaux os moradores se declararam proprietários por exercerem a posse de sua habitação, ainda que grande parte tenha a Cessão de Uso pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O estudo percebeu uma diferença marcante no discurso das pessoas. Quando perguntadas pelo histórico de posse das edificações, os moradores do Bairro Barcelos, em sua maioria, deram respostas curtas e objetivas: “Comprei faz um ano”. Já John Turner, os moradores do Laboriaux se prolongaram mais na descrição do histórico de posse, contando como foram em visita ao Rio, em 1968. morar ali, como foi a remoção do valão, as conquistas das prestações de serviços como água e energia elétrica. Com isso, pode‐se perceber que, diferente do direito oficial brasileiro, os conceitos de posse e propriedade se confundem. Todo aquele que possui posse sobre os imóveis considera‐se proprietário. A consideração das condições de ocupação e o sítio também revelam distinções nas áreas. Enquanto o Bairro Barcelos apresenta uma delimitação muito precisa dos lotes – embora seja facilmente percebível a existência de lotes com mais de uma edificação, os limites do lote sempre são visíveis – no Laboriaux isso não acontece devido ao terreno em aclive. Os limites da edificação são tidos como os limites dos lotes e as lajes passam a ser “solo criado”. Sendo assim, as lajes tem um importante papel no adensamento do setor. Nesse contexto, acontecem os acordos de compra e venda das lajes, gerando situações diversificadas da que cada morador intitula como seu. Tais situações levou o estudo da UFF a considerar que o morador representa a propriedade como sendo a edificação em si, não possuindo, portanto, a representação quanto ao pertencimento do solo – que é, de fato, o que os programas de regularização fundiária se propõem a tornar legal. No Bairro Barcelos também é percebida essa noção de que a propriedade vem a ser somente o invólucro da construção, porém essa representação tem uma origem distinta. A alta valorização da terra no Bairro Barcelos gerou a verticalização da área e o mercado imobiliário interno passou a transformar a área com tipologias de prédios de apartamento e quitinetes. Sendo assim, o estudo da UFF observou que, neste setor, houve uma mudança na unidade morfológica básica da situação fundiária: quando a Cia. Cristo Redentor fracionou a área, todos compravam e eram donos de terrenos. Nos dias atuais, ninguém mais compra um lote, e sim um apartamento ou um quitinete. Nesse sentido, parte dos meios internacionais dentro da arquitetura desenvolveram uma crítica da distância entre o projeto formal (“a maquete”) e a realidade – distância esta concretizada pela formação das escolas de arquitetura que privilegiava o desenho, a pesquisa formal e as teorias de urbanismo sem considerar a realidade urbana e a vida nos bairros. Autores que valorizavam a rua e a vizinhança, como lugar dos laços sociais e práticas
“Apresentaram‐me favelas como um problema, e me pareceu uma solução. Apresentaram‐me conjuntos habitacionais como solução, e me pareceu um problema.”
34 A questão fundiária da Rocinha na visão dos moradores: aspectos e representações – Huguenin, Ferreira
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 34
LIVRO 2 importantes para a vida urbana (...) estiveram na origem de uma importante corrente oposta ao urbanismo dos grandes projetos que negavam a cidade – o urbanismo da Carta de Atenas de Le Corbusier35, entre outros.36 Na segunda metade dos anos 60, o urbanista John Turner fez uma campanha no Journal of the American Institute of Planners contra a visão tradicional que procurava resolver a questão da moradia entre os pobres através de sua transferência para novas moradias construídas industrialmente. Turner sugere considerar os residentes como atores e responsáveis pela própria habitação. O raciocínio de Turner embasava‐se em dois pontos: a) esses bairros, ditos “marginais”, contrariamente ao que se supunha, não reproduziam nas cidades o modelo de vida das comunidades rurais, nem permitiam evidenciar o nascimento de uma nova cultura correspondente a uma forma de ruralidade urbana; b) esses bairros constituíam uma resposta popular e eficaz para a questão do déficit de moradias nas grandes metrópoles em fase de urbanização acelerada – além do que, contribuíam para a economia nacional, graças aos investimentos realizados pelos residentes em suas habitações, pelos pequenos negócios que ali se estabeleciam e pelo papel de reserva de mão‐de‐obra barata; e, por fim, permitiam às famílias de baixa renda sobreviverem, em um primeiro momento, e em seguida experimentar uma certa mobilidade social – ainda que de pequena amplitude. Essa valorização permite‐nos reunir dois tipos de argumentos: a) argumentos quanto as vantagens urbanas objetivas da favela para seus residentes (acesso à moradia, flexibilidade do investimento para a autoconstrução adaptadas às flutuações dos recursos, proximidades do lugar de trabalho e dos serviços públicos), apesar da qualidade das construções ser inferior às normas técnicas, e a infra‐estrutura deficiente b) argumentos sobre a capacidade de participação e da ação coletiva dos favelados, contribuindo para a melhoria técnica e social das soluções.37
MUDANÇA DO FOCO: DA PARTICIPAÇÃO POPULAR À VIOLÊNCIA Ao lado desse mercado imobiliário bastante ativo – tanto para venda, quanto para locação – desenvolveu‐se também, em plena modernização, um enorme mercado de serviços para responder às demandas cada mais diversificadas de uma população consumidora de produtos ligados direta ou indiretamente à globalização. Entre os produtos de consumo “modernos”, a droga é o produto que mais chama a atenção, sobretudo pelas práticas violentas a que estão associados. Mas o mercado da droga está voltando principalmente para o exterior das 35 Os Congressos Internacionais da Arquitetura Moderna (do francês Congrès Internationaux d'Architecture Moderne) ou simplesmente CIAM constituíram uma organização e uma série de eventos organizados pelos principais nomes da arquitetura moderna internacional, a fim de discutir os rumos a seguir nos vários domínios da arquitetura. Fundados em 1928 na Suíça, os CIAM foram responsáveis pela definição daquilo que costuma ser chamado international style: introduziram e ajudaram a difundir uma arquitetura considerada limpa, sintética, funcional e racional. Os CIAM consideravam a arquitetura e urbanismo como um potencial instrumento político e econômico, o qual deveria ser usado pelo poder público como forma de promover o progresso social. Talvez o produto mais influente dos CIAM tenha sido a Carta de Atenas, escrita por Le Corbusier, baseada nas discussões ocorridas na quarta conferência da organização em 1933. A Carta praticamente veio a definir o que é o urbanismo moderno, traçando diretrizes e fórmulas que, segundo seus autores, são aplicáveis internacionalmente. A Carta considerava a cidade como um organismo a ser planejado de modo funcional e centralmente planejada, na qual as necessidades do homem devem estar claramente colocadas e resolvidas. A cidade de Brasília, cujo plano piloto é de autoria do arquiteto e urbanista Lúcio Costa é considerada como o mais avançado experimento urbano no mundo que tenha aplicado integralmente todos os princípios da Carta. 36 Ibid, 131 37 Ibid
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 35
LIVRO 2 favelas, e não se poderia reduzir a economia das favelas à economia das drogas. Inúmeras outras atividades econômicas que nelas se desenvolvem, talvez menos “espetaculares” para os meios de comunicação, são os motores e signos de importantes transformações em suas estruturas socioeconômicas.38 A participação popular foi prioritária na agenda dos pesquisadores durante os anos 70 e 80 no Brasil, mas a violência urbana passou ao primeiro plano nos anos 90. “Essa representação, que se intensificou a partir dos anos 90, permitiu imaginar que estaria ocorrendo um aumento da violência, capaz de criar uma situação incontrolável para os poderes públicos. Acontecimentos como o massacre da Candelária e de Vigário Geral levaram à denúncia da polícia por corrupção, tanto pelas ONGs nacionais, quanto por organismos internacionais atuando a favor dos direitos humanos. Mais recentemente, a imprensa e outros meios de comunicação começaram a publicar informações sobre o envolvimento de policiais com a corrupção, os sequestros e o tráfico de drogas”.39 A violência produzida pelos braços armados do tráfico tem forçado um debate mais amplo acerca do modelo de cidade que se quer para o Rio de Janeiro. Nessa hora, faz‐se necessário redefinir o problema favela. O repertório produzido ao longo da história – a favela como um problema de saúde pública, como um quilombo cultural ou como um cancro moral; representações correntes nos anos 40 e 50 – parece não fazer mais sentido. Em 1992, o Prefeito Marcelo Alencar consolida a ideia de um programa global de integração das favelas à cidade. Foi o chamado Plano Diretor da Cidade, sancionado aquele ano. O PD define o problema favela como uma questão municipal, fundamental para o futuro da cidade. É pelo ângulo da política de segurança que o problema favela volta à cena – política. As representações são um conjunto A representação da favela inscrita no PD e os princípios democráticos nele consagrados é que iriam nortear a política de conceitos, frases e explicações habitacional proposta pelo Grupo Executivo De Assentamentos originadas na vida diária durante o Populares – GEAP – criado pelo Prefeito Cesar Maia em 1993. O GEAP propôs 6 programas habitacionais, e o Favela‐Bairro foi um curso das comunicações deles. Segundo a definição proposta pelo GEAP, o Favela‐Bairro interpessoais. É um conhecimento teria por objetivo: “construir ou complementar a estrutura urbana prático que se opõe ao pensamento principal (saneamento e democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade’. científico, porém se parece com ele, Seus pressupostos deveriam ser ‘o aproveitamento do esforço assim como aos mitos, no que diz coletivo já desprendido’ (prevendo, portanto, um reassentamento mínimo); a ‘adesão dos moradores’; e a ‘introdução de valores respeito à elaboração destes urbanísticos da cidade formal como signo da sua identificação conhecimentos a partir de um como bairro’. Portanto, nota‐se que o Favela‐Bairro tem por conteúdo simbólico e prático. princípio intervir o mínimo possível nos domicílios, definindo‐se como um programa eminentemente voltado para a recuperação das áreas e equipamentos públicos.40 A atual atuação do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na Rocinha é herdeira dessa política.
AS REPRESENTAÇÕES A seguir, será apresentado um breve ensaio do conceito de “representação”, com o intuito de contextualizar o sentido teórico das conclusões que se obtenham nesse estudo. O conceito de representação coletiva nasceu na sociologia e foi empregado na elaboração de uma teoria da religião, da magia e do pensamento mítico. Argumentou‐se que esses fenômenos coletivos não podem ser 38 Ibid 39 Ibid, 142 40 Baumann, 47
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 36
LIVRO 2 explicados em termos de indivíduo, pois ele não pode inventar uma língua ou uma religião. Esses fenômenos são produto de uma comunidade, ou de um povo. Ao propor tal divisão, procurava‐se dar conta de um todo, mas se fundamentava em uma concepção de que as regras que comandam a vida individual (representações individuais) não são as mesmas que regem a vida coletiva (representações coletivas).41 Também se faz uma analogia com a medicina, indicando‐se que a mente humana é susceptível de representações culturais, do mesmo modo que o corpo humano é susceptível a doenças. Apresenta‐se, assim, a seguinte classificação42: Coletivas: representações duradouras, tradicionais, amplamente distribuídas, ligadas à cultura, transmitidas lentamente por gerações; comparadas à endemia. Sociais: típicas de culturas modernas, espalham‐se rapidamente por toda a população, possuem curto período de vida, semelhante aos “modismos”; comparadas à epidemia. As representações são um conjunto de conceitos, frases e explicações originadas na vida diária durante o curso das comunicações interpessoais. E são uma modalidade particular porque “não é todo ‘conhecimento’ que pode ser considerado representação social, mas somente aquele que faz parte da vida cotidiana das pessoas, através do senso comum, que é elaborado socialmente e que funciona no sentido de interpretar, pensar e agir sobre a realidade. É um conhecimento prático que se opõe ao pensamento científico, porém se parece com ele, assim como aos mitos, no que diz respeito à elaboração destes conhecimentos a partir de um conteúdo simbólico e prático”.43 Por intermédio do aporte teórico da representação social, torna‐se possível penetrar no cotidiano dos indivíduos, considerando seus valores e identidades culturais, buscando suas verdadeiras raízes e origens, proporcionando o descobrimento de aspectos antigos e novos de sua identidade. As representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. As lutas de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os seus valores, o seu domínio. “Não é apenas uma herança coletiva dos antepassados que é transmitida de maneira determinista e estática. O indivíduo tem papel ativo e autônomo no processo de construção da sociedade, da mesma forma que é criado por ela. Ele também tem participação na sua construção. A verdadeira dimensão dos seres humanos seria a de pensadores autônomos e produtores constantes de suas representações, para quem as ciências e as ideologias não são mais que alimentos para o pensamento’”.44
DOGMAS CONSTRUÍDOS À PARTIR DAS REPRESENTAÇÕES Tem havido uma evolução na sociedade brasileira com respeito as representações que esta faz da favela45, existindo uma série de etapas que começam no século XIX e terminam com um corpo de características básicas atribuídas às favelas cariocas pela literatura específica – especialmente de caráter social que dela se acercou nos últimos trinta anos. Valladares, fonte bibliográfica principal desse estudo, em sua obra aqui anteriormente citada – A Invenção da Favela – denomina estas características “dogmas”, e faz uma análise crítica delas, indicando que os “dogmas” apenas tentam reduzir a diversidade da favela através de olhares limitados que buscam homogeneizar. 41 Alexandre. Marcos: Representação Social: Uma Genealogia do Conceito 42 Sperber (citado por Alexandre, Op. Cit.) 43 Ibid 44 Ibid 45 Valladares, Ibid
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 37
LIVRO 2 Esses dogmas, segundo Valladares, são: A. A especificidade da favela, que sublinha a maneira peculiar como ela ocupa o espaço urbano, fora das regularidades e das normas urbanas, sem ruas bem traçadas, com poucos ou ausentes serviços e equipamentos coletivos. Isto é, a favela como um espaço urbano específico e singular. E todos os organismos oficiais – arquitetos, juristas, pesquisadores – justificam suas abordagens lembrando que a favela é irregular e ilegal ou bem se valoriza por sua estética única, etc. B. A favela como locus da pobreza, o território urbano dos pobres. Inclusive a teoria da marginalidade é usada para promover esta visão. C. A favela como unidade: ainda que todos reconheçam tratar‐se de uma realidade múltipla, todos se deixam levar pelo hábito de reduzir um universo plural a uma categoria única. “A trajetória certamente atípica desses indivíduos apresenta uma nova questão às ciências sociais brasileiras: a necessidade de desenvolver uma sociologia da mobilidade social, até hoje pouco presente na pesquisa. O desenvolvimento dessa área temática permitiria justamente abandonar a limitação da categoria construída pelos dogmas, fazendo aparecer claramente o complexo processo de diferenciação social que está ocorrendo na sociedade brasileira, inclusive nas favelas. É possível ser pobre e não residir em uma favela, ou morar na favela acreditando na possibilidade de uma ascensão social. Se deixarmos de confundir os processos sociais observados na favela com os processos sociais causados pela favela, será possível compreender fenômenos que, apesar de se manifestarem de fato nas favelas, também se manifestam em outros lugares. Nossa proposta é que as favelas deixem de ser o campo sistematicamente utilizado para estudar as mais variadas questões ligadas à pobreza. Só assim deixaremos de confundir favela e pobreza”.46
DISTINÇÃO FAVELA/CIDADE No entender do IMR, a favela é um espaço urbano não reconhecido como tal. Ao longo de sua história, a favela não parece ser representada como um espaço urbano reconhecido, mas sim como algo inoportuno, distante, indesejável, alienígena. Uma espécie de chaga urbana, uma ferida no morro. Os dogmas que a permeiam seriam fruto disso. O habitante comum – do asfalto, como dizem os habitantes do morro – por exemplo, raramente, ou mesmo jamais entrou em uma favela. Então, é natural que seu imaginário sofra influência dos dogmas que ditam o discurso sobre o espaço da favela. Justo porque, com base na visão estereotipada que o imaginário “do asfalto” possui, ele sequer reconhece a favela como espaço urbano, e sim como uma chaga urbana, uma ferida no morro. Enquanto as pessoas da favela frequentam o espaço urbano "normal", "formal", "legal", "urbanizado"; utilizando‐o para trabalhar, para consumir, para se divertir, para se deslocar, com isso interagindo e existindo dentro do mesmo; a recíproca não parece ser verdadeira. Sendo assim, é comum observar como os interventores (acadêmicos, políticos, sociais, religiosos) chegam com a carga de suas representações; ou mesmo os turistas, ainda mais predispostos a enxergar uma realidade “inventada” com esteriótipos em suas representações estéticas, pelas quais chegam a pagar dentro de um conceito de turismo “de aventura”. Se o Brasil é uma selva, a favela é o seu safari! Existe um abismo entre os dois espaços (favela e cidade), um abismo que o discurso estigmatizado talvez tenha criado e que é mantido como forma de dominação. Nessa relação, os habitantes da favela possuem a grande vantagem (talvez por eles despercebida) de conhecer os dois mundos e, em ambos, morro e asfalto, poder transitar.
46 Ibid, 163
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 38
LIVRO 2 Não obstante, a polarização Morro/Asfalto, se mantém e se consolida: “(...) apesar do retorno ao regime democrático, o afastamento entre ricos e pobres não deixou de aumentar, o esforço dos ricos para preservar seus privilégios passou a ser cada vez mais vigoroso e o abandono social pelo Estado mais manifesto. As categorias populares, abandonadas à sua sorte e excluídas de qualquer projeto de transformação social, assistiram ao espaço urbano ser privatizado e à segregação atingir uma intensidade até então desconhecida (...) As favelas adquirem uma nova dinâmica social, caracterizada em particular pelo papel crescente do tráfico de drogas, inclusive no financiamento dos serviços locais, no domínio das associações de moradores e na vida local. Nesta representação, as favelas passam a ser consideradas como o lugar, por excelência, da exclusão moderna. Às tradicionais imagens depreciativas, inspiradas pela favela e sua população no tempo da teoria da marginalidade, acrescenta‐se agora um novo estigma – ligado às conseqüências sociais e políticas negativas da globalização.47 Desde o começo da favela, se produz dentro e fora dela uma distinção entre a favela, por um lado, e a cidade por outro. De alguma maneira, a história brasileira moderna está marcada por essa dualidade: quem mora na favela, não mora na cidade, e vice‐versa. Existem muitas expressões que dão conta desse fenômeno observado na sociedade brasileira. A música é um bom exemplo – ou mesmo um reflexo – dessa dualidade, sendo os elementos definidores traçados a partir da, e com referência à cidade. “Quando isso ocorre, o que chama a atenção, num primeiro plano, é a rígida demarcação que se estabelece entre ambas, fazendo com que a cidade seja vista como uma coisa e a favela como outra. Inúmeras são as referências musicais que tratam a favela como algo alheio, algo que não faz parte, algo, enfim, que é distinto da cidade – não importa a situação, os personagens ou os sentimentos que ai estejam envolvidos. (...) Essa demarcação se mostra, desde o início, nas composições (...) que estabelecem o confronto entre o samba do “morro” e o do “asfalto”. Ela permeia também o tratamento de um tema explorado principalmente nas letras musicais dos anos 30 e 50: a trajetória de indivíduos que deixam a favela e buscam se afirmar na cidade. Tais tentativas, como que fadadas ao insucesso, se revestem quase sempre de um caráter dramático: o afastamento de suas raízes, de seu local de criação e de seu grupo de referência levaria o indivíduo a se ‘perder’ na cidade. Em oposição ao senso comum que faz da favela o local do perigo, é a cidade que, significativamente, passa aqui a exercer esse papel. A ênfase, contudo, se centra na inviabilidade do deslocamento favela‐cidade, como se muralhas intransponíveis estivessem a separar uma da outra.”48 Foi num samba/ De gente bamba/ Que eu te conheci, faceira/ Fazendo visagem / Passando rasteira / E desceste lá do morro/ Pra viver aqui na cidade/ Deixando os companheiros / Tristes, loucos de saudade/ Linda criança, tenho fé, tenho esperança/ Que um dia hás de voltar/ Direitinho ao teu lugar. Faceira (1931) Ary Barroso49 Não é preciso ir à cidade/ Lá no morro temos/ Tudo que o homem quer/ Tem cabrochas bonitas/ Tem cassino e cabaré. O Morro É Completo (1976) Antenor Gargalhada 50 A distinção se manifesta também no futebol, a alegria do povo! As torcidas dos demais times do Rio (e nas quais podem haver muitos favelados) grita para a torcida do Flamengo quando esta se cala diante de um gol sofrido ou de uma derrota: "ela, ela, ela: silêncio na favela". Como se de certa forma imperara o estereótipo de que todo torcedor do Flamengo é pobre e, por isso, favelado. Resulta, portanto, interessante imaginar o torcedor do Botafogo, do Vasco (ou mesmo do Fluminense, cuja torcida tem a imagem de ser a da elite carioca) que mora em uma favela e entoa o grito que tem a intenção de ofender, de depreciar. A imprensa esportiva, ainda no primeiro semestre do corrente ano, registrava o jogador Adriano, então no Flamengo, em suas incursões na favela onde nasceu e foi criado, investigando suas amizades suspeitas com conterrâneos que seguiram outros caminhos, nada lícitos. À parte do julgamento sobre os assuntos que o levavam à favela onde nasceu, aos olhos da opinião pública do asfalto, o jogador Adriano não tinha o direito de frequentá‐la. 47 Ibid, 143 48 Souto de Oliveira e Marcier, em Zaluar, 90 49 Op. Cit, 91 50 Ibid, 93
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 39
LIVRO 2 Ele havia saído da favela e para ela não podia voltar, pois agora ele fazia parte do mundo que não reconhece a favela como espaço urbano. É interessante notar a força do abismo entre os dois espaços urbanos na figura de um jogador de futebol que, independente da moralidade/legalidade de suas ações, tentava apenas transitar pelos dois espaços. Porém, se a celebridade for internacional, como atores de cinema ou mesmo a pop star Madonna, o governador do estado até acompanha na visita, dando status à favela de atração turística. Isso explica também que as representações sobre a favela seguem vivas na opinião pública. A mídia ‐ olhos, boca e ouvido da opinião pública – potencializa as representações cada vez que a polícia sobe ● ● ● o morro atrás do traficante da vez ou que algum integrante da indústria do entretenimento americana resolve gravar algo dentro das favelas. Se negativo ou positivo o fato, o que fica, no final, é a perpetuação do pensar a “favela” e representá‐la como, historicamente, ela sempre foi pensada e representada: em oposições, entre um mundo ordenado (o asfalto urbano, “nosso mundo”; o politico, “o Estado”; o social, “o ser”) e um mundo anárquico, desordenado, exótico, sem regras (o morro não‐urbano, “o mundo deles”; o político, “o Poder paralelo”; o social, “a improvisação do estar”). Também no turismo se observa a produção das representações. ● ● ● Ainda que mais predispostos aos esteriótipos, e talvez por isso mesmo atraídos até o território da favela, os turistas parecem pelo menos, na aventura de seu safari urbano, reconhecerem a favela como espaço, urbano; enquanto que os cidadãos que convivem com a favela em suas cidades, não. Talvez, nem mesmo o favelado. A equipe de pesquisadores do IMR ouviu de uma moradora da Rocinha em ocasião na qual o Jeep com turistas estrangeiros passava por eles: “Como pode sair lá do estrangeiro para visitar isso aqui?” Isso aqui: a favela! A descoberta da favela pelo turismo profissional parece ter sido um sinal da integração dos espaços à modernidade e à economia de mercado: a Rocinha é visitada por cerca de 2 a 3 mil turistas por mês. “O Jeep Tour, criado em 1992, pega o turista nos hotéis, e oferece, pela quantia de 30 dólares, um passeio de três horas acompanhado de um guia em inglês, francês ou espanhol. Para o turista ter acesso a creches, escolas ou à associação de moradores, são necessárias doações feitas diretamente aos locais visitados”.51 Mas, acreditamos que esses estrangeiros não estão livres do discurso estigmatizado, o seguem representando‐o, e é precisamente a razão do porquê estão aí. A classe de turismo “de aventura” é uma classe de risco, mas apenas aparente, pois se levanta ao seu redor um alto sistema de controle das possibilidades de risco. No filme “Jurassik Park”, John Hammond, o milionário dono do parque, havia levantado todo um equipamento de proteção para cuidar dos turistas “de aventura” que iam ver toda a sua vitrine de algumas espécies de Dinossauros; mas, sabotado por um de seus empregados, o sistema é quebrado. No entanto, é um equipamento tecnológico o que transmite (como no zoológico de San Diego, onde os turistas vão, em um Jeep, interagir com os leões) a segurança a esse turista “pseudo‐radical”, que quer se sentir um Steve Irwin (caçador de crocodilos) por uns minutos, sentindo a adrenalina ao trocar do posto de um mero observador de programas de televisão em sua sala, a um protagonista “real” do Animal Planet. Desse modo, a reflexão de qualquer estudo inicial sobre a favela deve refletir acerca do binômio Forma e Conteúdo. No fundo, a forma que a favela toma é o que mais influencia na maneira como, quem está de fora, tende a pensar e perceber seu conteúdo. A imagem tem um poder até maior que o da palavra. A simples imagem da favela leva a pensar em pobreza.
“Como pode sair lá do estrangeiro para visitar isso aqui?” Isso aqui: a favela!
51 Valladares, 156
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 40
LIVRO 2 CONCLUSÃO O exposto em capítulo anterior expressa a ideia da necessidade de visualizar o fenômeno das favelas desde uma outra perspectiva, questionadora dos dogmas e particularmente das representações, entendendo estas como construções. Como expusemos ao longo desse prefácio, os “construtores” da história da favela a retrataram de forma uniforme, homogênea, sempre considerada como um Todo unitário. Diversos atores de políticas públicas, desde políticos até mesmo as associações de moradores, se encarregaram de sustentar e perpetuar essa visão equivocada – que, para o propósito de um trabalho de intervenção em Figura 2 – Distribución GSE – Heliópolis desenvolvimento, impede a realização de uma ação clara e concreta que permita chegar aos núcleos originadores do fenômeno. Para o IMR, a favela tãopouco é um todo homogêneo, constituído de gente pobre, uma “comunidade carente”, mas sim um crisol de heterogeneidade, onde convivem as mais diversas expressões, experiências, sonhos, mercados e expectativas. Todos os dados coletados e que serão expostos ao longo dos Capítulos seguintes questionam a visão excessivamente homogeneizadora das favelas. Nossos resultados acerca das favelas estudadas são evidentes: nem homogeneidade, nem especificidade. Estudos realizados por Valladares a partir de dados de recenseamento de 1991 “permitiram demonstrar que, ao contrário da visão dominante, as favelas apresentam sinais evidentes de heterogeneidade em sua realidade física, espacial e social – a tal ponto que se torna impossível alinhá‐las em uma categoria única e distinta. (157) Na pesquisa do ano de 2010 encomendada pelo Bradesco Vida e Previdência ao IMR, essa idea de heterogeneidade segue se reforçando, e pode ser apreciada na figura seguinte que mostra as diferenças sociais dentro de Heliópolis. Apesar da existência de diferenças entre as favelas e dentro delas – dado que os poderes públicos não ignoram – é sempre mais eficaz prever um alvo homogêneo, ao qual corresponderão exatamente programas especiais, ad hoc, capazes de resolver problemas sociais bem identificados, não contestados pela base, nem pelos políticos. Daí o interesse pelo postulado do caráter uniforme do espaço das favelas, do qual é possível deduzir rapidamente, e sem qualquer dificuldade, a homogeneidade de seus habitantes, privilegiando suas características dominantes. A permanência da expressão ‘população de baixa renda’ empregada desde a época do BNH, criado em 1964, até o atual Programa Favela‐Bairro, testemunha essa tendência. Apesar dos habitantes das favelas estarem inseridos de maneira diferenciada no mercado de trabalho (assalariados, autônomos, trabalhadores informais), recebendo rendimentos regulares, ocasionais ou sazonais; baixos ou médios; pagando aluguel ou sendo “proprietários”; analfabetos ou diplomados em nível superior – estarão sempre assimilados a um grupo único: ‘os pobres’. Mas será que os objetivos políticos e operacionais justificam a sua construção como um grupo único, como uma totalidade? Valladares prossegue: “Pelos anos 60 já é possível observar práticas de organização mais sofisticadas entre os favelados, mas estas eram muito dependentes de políticos demagogos e de seus cabos eleitorais.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 41
LIVRO 2 Se os favelados já eram capazes de se organizar coletivamente, eles permaneciam dependentes de mediadores ligados às agências públicas e à igreja. É nessa década que processos de intervenção, como um acordo entre as associações de moradores das favelas e a Coordenação dos Serviços Sociais do Estado da Guanabara, geram um novo laço de dependência administrativa que reforçou as diferenças sociais internas já existentes nas favelas, onde era preciso reconhecer a presença de uma “burguesia favelada” que assegurava o seu poder através do controle dos recursos locais (como as redes de água e eletricidade, mesmo precárias) e muitas vezes também pelo controle das associações de moradores”. (Valladares, 116)52
COMUNIDADE – POR QUE NÃO? Para situar‐nos no anterior, e poder definir um marco de observação e análises, temos definido um questionamento ao conceito de Comunidades, em prol de outro conceito que está mais perto à linha analítica do IMR: a distinção comunidade/localidade. Valladares também prefere o modelo do freerider, para explicar a presença das relações hierárquicas na favela, na qual salienta os interesses pessoais e as vantagens que podem ser obtidas de uma situação determinada – o que contradiz uma ideia de comunidade, tão arraigada nas representações que se faz do “mundo da pobreza”. Segundo ela, “a prática do ‘jeitinho brasileiro’” também contribuiu para o desenvolvimento de mecanismos e meios formais e informais para obter benefícios. Se a participação dos favelados foi ativa e criativa, ela também se reconhece mais individual do que coletiva, cada um tentando captar vantagens particulares, sugerindo ser a ideologia utilitária e a ética individualista mais fortes do que a orientação para agir coletivamente.53 Por sua parte, as associações de moradores tem aprendido a utilizar o termo de comunidade para obter vantagens setoriais ou mesmo pessoais, como aconteceu com os pesquisadores do IMR quando lhes foi solicitada uma propina para poder fazer imagens da “comunidade carente” da Rocinha, por um Vice‐presidente da Associação de Moradores. Portanto, eles também usam o mesmo argumento da especificidade. “O uso deste termo também legitima o seu próprio estatuto como representante investido pela comunidade, mas também oculta todas as diferenças e conflitos existentes entre os diversos espaços ou entre os próprios habitantes. A noção de comunidade supõe uma ideia de união – que nem sempre tem sido característica dessas associações e de seus territórios. E assim mascara a diversidade das situações sociais e a multiplicidade dos interesses presentes em uma estrutura frequentemente mais atomizada do que comunitária”.54 “As associações de moradores, em seu papel de mediação, quando reafirmam a especificidade dos espaços por elas representados, querem sublinhar o estado precário de seus habitantes quanto ao estatuto jurídico da ocupação do solo, e do equipamento urbano, além da cidadania. Para garantir o auxílio de que, evidentemente, necessitam, as associações retomam, incessantemente, a imagem da “comunidade carente”. As favelas sempre necessitam tudo, na medida em que são espaços inacabados, fragmentados, dependentes da ajuda dos outros e das agências públicas às quais precisam necessariamente recorrer. Aliás, podemos nos questionar se essa insistência dos líderes associativos sobre a carência, que faz parte do jogo da defesa de seus interesses, não vem a ser reforçada pelas práticas dos próprios moradores. Prova disto é que estes investem por último na melhoria do aspecto exterior de suas moradias, prolongando a percepção dos espaços precários, ainda que o conforto do interior das casas tenha progredido de maneira considerável”.55 Outros atores relevantes, como as “ONGs também fazem parte desse elenco de atores sociais que oferecem ao imaginário coletivo essa representação da favela, participando ativamente em sua permanência.
52 Ibid, 116 53 Ibid, 136 54 Ibid 55 Ibid, 160
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 42
LIVRO 2 Mais próximas aos “pobres” do que muitas outras instituições, na medida em que suas sedes ou filiais funcionam na própria favela, elas retomam o discurso das associações de moradores, continuando a insistir sobre a noção de “comunidade” e suas conotações de união, solidariedade e coesão. Muitas vezes, essas organizações têm clientelas bem específicas – mulheres, crianças, jovens, negros, etc. – e domínios de ação particulares, mais sempre ressaltam uma visão mais global que insiste sobre os excluídos, as vítimas da violência, as mulheres chefes de família, etc., como segmentos da pobreza. Um discurso globalizante que, opondo os “pobres” a todo o resto, só pode continuar produzindo a uniformidade.56
POR QUE LOCALIDADE? Leeds definiu a questão das relações entre o poder local (na favela) e as instituições supralocais como importante elemento de sua problemática. “Criticando o uso difundido da noção de comunidade, propôs substituir esta noção pela de ‘localidade’. Segundo ele, “o uso do termo ‘localidade’ não nos obriga a postular uma noção mínima ou máxima de organização como a ‘comunidade’ (...) nem a discutir seu status ontológico (...). Não nos obriga a supor que a localidades em que vivemos seja também uma comunidade. Geralmente ela não o é (...). As localidades como pontos nodais de interação, caracterizam‐se por uma rede altamente complexa de diversos tipos de relações. Os laços de parentesco da família nuclear, e, frequentemente, aqueles com parentes próximos, serão amplamente encontrados nas localidades, especialmente nas Pequenas. As amizades mais próximas também tendem a existir na localidade. Os vizinhos existem, por definição, na localidade. O que contribui para caracterizar uma localidade é o fato dela permitir apenas a identificação do local de moradia dos indivíduos; o fato de residir em uma localidade não significa necessariamente seu pertencimento a uma comunidade local (...). Essa concepção é apoiada por uma visão da sociedade urbana como sistema complexo, não sendo possível compreender um elemento isoladamente sem considerar suas relações com os demais.” 57 O relevante desse conceito é que ele se liga com a noção de NODO/MCC que tradicionalmente o IMR vem utilizando para suas análises das comunidades nos Microsseguros: “A característica fundamental das localidades seria o fato de constituírem ‘pontos nodais de inteiração, onde há uma rede altamente complexa de diversos tipos de relações’. Estas seriam, sobretudo, laços de parentesco bastante próximos, amizades mais significativas, parentesco ritual e vizinhança. Em suma... localidades “são, na verdade, segmentos altamente organizados da população total”.58 Essa visão é a que possibilita ao IMR poder também gerar uma operacionalização do conceito de Microcentro Comercial Composto (MCC), pois situa sua atividade dentro do que é precisamente uma localidade. Portanto, desde um ponto de vista econômico, uma localidade também pode caracterizar‐se pela presença dos MCCs. Da mesma forma que para o IMR os MCCs se localizam em “lugares” ou espaços de interação pessoal, onde o relacionamento é pessoal; a localidade será uma classe de “lugar”, “um espaço caracterizado por coisas tais como um agregado de pessoas mais ou menos permanente ou um agregado de casas, geralmente incluindo e cercadas por espaços relativamente vazios, embora não necessariamente sem utilização”.59 O que agrega valor a essa definição é a contribuição do antropólogo francês Marc Auge, com a sua definição dos espaços de interação do tipo Lugar/Não Lugar – sendo o Lugar um espaço similar à Localidade de Leeds, mas com o elemento de reconhecimento pessoal, com a identificação da singularidade do outro. Por sua vez, o NODO, que seria o oposto espacial do MCC, estaria mais próximo ao conceito de Não Lugar de Augé, e portanto às Estruturas Supralocais de Leeds. No Nodo, os relacionamentos são transitórios, impessoais e altamente funcionais. Auge exemplifica no Metrô de Paris o epítome do Não Lugar, onde milhões vão de lá pra cá, sem um reconhecimento à sua condição individual. 56 Ibid 57 Ibid, 183 58 Ibid 59 Ibid
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 43
LIVRO 2 Tanto nos Nodos como nos Não‐Lugares não existe “circulação” além da obrigatória. E isso seria constatável tanto em Heliópolis (Estrada das Lágrimas), como na Rocinha (Estrada da Gávea). “O que eu entendo por circulação, naturalmente, exclui trajetos obrigatórios, como a ida ao trabalho, ao mercado ou à escola. Notei que eu encontrava sempre as mesmas pessoas nos mesmos locais. Depois de um certo tempo, eu já conhecia alguns grupos de mulheres, sempre a conversar, sempre próximas às suas casas, às vezes sentadas nas soleiras das portas. Quanto aos homems, cada Birosca tem um bom número de frequentadores “fixos”, a imensa maioria deles, vizinhos muito próximos. Na maior parte do tempo, nada consomem: a “barraca”, como eles chamam, é apenas um ponto de encontro.”60 As estruturas Supralocais, contrapostas às localidades, são, na verdade, estruturas – no sentido estrito do termo, e não necessariamente “espaços”. São estruturas supralocais “os partidos políticos, o sistema bancário, o mercado de preços, os sindicatos, as associações profissionais e, sobretudo, a mais antiga e mais importante delas, o Estado, operando através de uma série de instituições supralocais, como o Judiciário, burocracias administrativas, organismos monetários, partes do sistema eleitoral, etc.”61 Em outras palavras, embora no âmbito supralocal haja componentes locais, a organização da qual dependem, ultrapassa o nível local...
A PARTÍCULA DE ANÁLISE DO IMR: O MICRO, OS PEDACINHOS DA FAVELA D e certa forma, quando falamos de Microsseguros, estamos aludindo à partícula, que como pesquisadores nos encontramos dispostos a estudar. São “Os Pedacinhos da Favela”, conceito operacionalizável nas microáreas, cujo caráter serve como suporte para representações acerca das diferenças existentes no interior de uma única favela. “No Coroado, a Barreira e o Madureira, área de maior concentração de forrós, são vistas como pedaços “nordestinos”; a Piracambu é vista como a região mais “rica” [da favela], às vezes chamada ironicamente de Zona Sul da favela, é também, na opinião de um líder comunitário, onde há a menor presença de negros; há microáreas vistas como mais pobres... onde ainda predominam barracos de madeira improvisados. Uma divisão básica pode ser feita entre microáreas “mais pra fora”e “mais pra dentro”da favela. As regiões interiores, mais longe “do asfalto”, são menos valorizadas”... 62 “Os laços identitários e de solidariedade espraiam‐se em círculos concêntricos cada vez mais amplos, mas vão perdendo forca à medida que englobam unidades maiores. (Assim), cada um desses “pedacinhos”, na verdade, encerra em si uma rede de relações firmemente entrelaçadas, cujo ponto de partida é a vizinhança. Vizinhança num sentido bastante restrito: pois cada microárea compõe‐se de algumas dezenas de casas e famílias... Em suma, a microárea é aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade.”63 É nos pedacinhos onde ocorre a vida do dia a dia na vizinhança imediata, dos intercâmbios e relacionamentos pessoais e onde o espaço serve de contexto. É aí onde os laços de amizade e vizinhança, já enormemente ativos, são reforçados por laços de parentesco, incluído também o parentesco ritual estabelecido pela existência de “comadres” e “compadres”, muitos dos quais utilizam o futebol para se relacionar... “Quanto da organização de campeonatos de futebol, por exemplo, não se formam times de uma localidade contra outra, e sim times de determinadas microáreas: um time do Larguinho, um time de Couro Grosso, um time de Barreira, um time de Bolo Doido. 60 Ibid, 193 61 Ibid 62 Zuluar & Alvito, 187 63 Ibid, 193
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 44
LIVRO 2 (Os moradores) referem‐se a um time da favela do Coroado como uma “seleção”do Coroado, isto é, uma formação composta por jogadores originários de diversos times (e microáreas) diferentes”. 64 E apesar da favela ser um espaço heterogêneo, diverso em expressões econômicas e diferenças de classes, a microárea da vizinhança parece, no entanto, exigir um comportamento igualitário entre eles, onde a generosidade excessiva quanto à avareza são vistas como deslocadas num ambiente marcado pela horizontalidade das relações sociais... “O título para aqueles que sabem estabelecer esse relacionamento de forma equilibrada é parceiro, entre os homems, e comadre, entre as mulheres; mesmo que não haja entre elas parentesco ritual propriamente dito”. E onde também o limite no relacionamento entre gêneros é bastante restrita e definida por limites, existindo uma diferença entre os gêneros muito significativa. “Principalmente no caso das mulheres casadas, a rede de reciprocidade que lhes é permitido construir é bem mais restrita e normalmente assenta‐se na própria organização familiar: cunhadas e sobrinhas, preferentemente sob a supervisão vigilante da sogra. No máximo, pode incorporar‐ se a esse círculo uma vizinha muito próxima, da casa ao lado ou em frente. O locus de tais relações femininas de reciprocidade é o espaço doméstico ou a fronteira do mesmo (“as portas”). A exceção fica por conta de atividades externas justificadas pela dinâmica da “casa” e da família, como fazer compras no supermercado, levar as crianças à escola ou então ir a igreja (normalmente, em grupos compostos de outras mulheres ou acompanhadas dos filhos). Os homems, ao contrário, raramente visitam‐se".65 Trata‐se, então, de espaços “vedados” aos homems, como os que também existem para as mulheres... Assinala Alvito: “Obviamente, os locais onde os homems reúnem‐se são vedados às mulheres. Ao fim de um ano de trabalho de campo, tomei consciência, espantado, de que, a despeito de ter travado e firmado relações bastante amistosas com muitos homems casados, jamais os vira na presença de suas mulheres, nem mesmo as conhecia, de nome ou de vista... Em um espaço tão exíguo e densamente habitado, essa “invisibilidade” das mulheres casadas é algo impressionante.” (Alvito, 195) Em fim, entrar na favela é adentrar um mundo de uma diversidade esmagadora, saturada de marcas que a maioria de seus habitantes foi guardando e acumulando ao longo de muitos anos. “No espaço geométrico do ‘mundo do asfalto’, as únicas marcas são as administrativas (placas de ruas, de numeração) e as de delimitação de propriedade (muros, cercas, grades). Há também, é claro, semáforos, placas de trânsito e pinturas (no asfalto da rua, por exemplo, ou indicando ‘garagem – não estacione’) para regular a circulação dos veículos. Tais coisas inexistem na favela: ali, ao contrário do ‘asfalto’, as ruas são para o trânsito de pessoas, eventualmente, para carros. O espaço da favela, na verdade, tem inúmeras outras marcas. Embora seja verdade que todo espaço habitado pelo homem é um produto socialmente construído, no caso da favela isso assume uma dimensão radical... Construída pelos mesmos homems que lá habitam: com suas próprias mãos, lentamente, durante anos. Uma casa de dois pavimentos pode ser a síntese de 30, 40 anos de trabalho, enquanto o apartamento onde moro é, para mim, apenas uma escolha de acordo com minhas preferências e possibilidades.66 Talvez, essas marcas possam ser mais visíveis em favelas como a Rocinha, que trazem consigo uma história de mais de 80 anos; mas Heliópolis, apesar de ter sido fundada em meados dos anos 70, posui também seus próprios espaços com traços que foram sendo definidos, e os quais seus habitantes sabem valorizar – porque é graças a eles que, em parte, os habitantes constroem sua identidade. São marcas que a maioria foi guardando como se guarda um pequeno tesouro, que com o tempo ganha cada vez mais valor. Atividades como a “Caminhada pela Paz” em memória de Leonarda, a menina assassinada por seu namorado na saída da escola Salles, em 1998, é parte dessa mescla de ações que incluem, também – e por que não dizê‐lo – desde a utilização política do evento, os interesses 64 Ibid 65 Ibid, 194 66 Ibid, 199
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 45
LIVRO 2 particulares da Associação de Moradores; até os traços particulares que cada uma das microáreas que são parte desse “todo” heterogêneo chamado Heliópolis, tenta construir em seu pedaço conquistado de história... Por isso as microáreas são o locus de uma memória que tanto pode ser alegre, como trágica: “bem nesse lugar aqui ela foi assassinada por seu namorado67”, mas também pode ser alegre, “e referir‐se às travessuras conjuntas, às inúmeras brigas entre eles, das quais se riem muito hoje, ao tempo em que todos iam assistir televisão na única casa que ostentava uma. É um espaço com as marcas das relações familiares, dos entes queridos – hoje ausentes68”. O manifesto da Caminhada pela Paz do ano desta pesquisa, 2010, é um exemplo concreto do que aquí vem sendo analisado.
M A N I F E S T O D A 1 2 ª C A M I N H A D A P E L A PA Z – H E L I Ó P O L I S , B A I R R O E D U C A D O R C O N S T R U I N D O A PA Z Muitos materiais Constroem uma comunidade Sonhos, lutas, esperanças Ou só a necessidade
Consciência, liderança Busca da felicidade Mas o que dá liga a tudo É a solidariedade Ela existe nos meus olhos Quando te vejo como eu E no bairro educador Foi o que aconteceu Uma mulher então se viu Nos que não tinham confiança Educou‐os a lutar E ensinou‐lhes a esperança Um homem também se viu Nos que queriam solução para as carências dessa vida: Casa, comida e lazer Nos que queriam mudanças E acesso ao saber
67 Ibid, 199 68 Ibid, 199
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 46
LIVRO 2 Esse homem ensinou A força da integração Da corrente que se forma Corpo a corpo, mão a mão Pra se construir a base De uma nova educação Depois veio uma menina E mesmo sem saber Ensinou‐nos com sua morte A alegria de viver Eu me verei em você Sua voz será meu grito Só assim construiremos Um mundo justo e mais bonito Depois das dez, o silêncio Para podermos descansar No espaço que é de todos Todos vão se respeitar Tudo será sagrado Nada será profano Não haverá rico ou pobre Jovem ou idoso Hétero ou gay Negro ou branco Haverá ser‐humano Sua alegria é o meu sorriso Sua tristeza é a minha dor Isto é solidariedade Isto é bairro educador Que nos ensina tão bem, Que...
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 47
LIVRO 2
HISTÓRIA e DEMOGRAFIA
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 48
LIVRO 2
Introdução
HISTÓRIA DE HELIÓPOLIS: JOÃO PREFEITO, UM DOS PRIMEIROS MORADORES A CHEGAR EM HELIÓPOLIS Por Claudia Neves Jornalista – Ex Directora de Radio Heliópolis FM José Isaias Filho, nascido em 1956 na Paraíba, os pais são cearense. Foram para a Paraíba a trabalho, o pai como pedreiro e a mãe doméstica. A situação ficou ruim na Paraíba e foram para Feira de Santana na Bahia. “Éramos em 12 irmãos, falecido dois. O recurso no interior era pouco, o irmão Juraci faleceu com 12 anos na Bahia com problemas no estomago, recentemente meu irmão de 42 anos morreu de câncer no pâncreas em São Paulo no bairro de Sapopemba”, relata João Prefeito. Já o pai faleceu em 1971 em Feira de Santana em um acidente de trabalho, caiu de cima de uma casa, mas Isaias já morava em SP. Sua mãe ficou com 11 filhos, joão é o mais velho. Sua infância, estudava, sempre quis ter independência, fazia vendas, vedia coisas nas ruas, frutas, verduras. Ouvia o pessoal falar de São Paulo, e teve ilusão de vir, fugiu de casa para vir pra cidade grande SP. Tinha um rádio velho e vendeu o rádio por 80 cruzeiros (na época) na feira do rolo em Feira de Santana. Pegou uma carona com caminhoneiro e veio para São Paulo. Planejou já fazendo amizade com os caminhoneiros, veio para a cidade de São Caetano do Sul, não tinha lugar pra ficar, com mala nas costas, fez amizade com algumas pessoas, então, arrumaram um lugar para ele ficar na casa de um paraibano, no dia seguinte arrumou serviço de auxiliar de metalúrgico, isso com 16 anos, lavava banheiro e lavava a fábrica. O dono lhe deu oportunidade pra morar na fabrica. Estudando, fez Senai. Escreveu para sua família, já que não tinha noticias de sua família. Sua mãe ficou muito alegre quando entrou em contato. Todo mês ele mandava um dinheiro pra sua família. Depois de dois anos, João voltou para Feira de Santana, visitou a família e trouxe um irmão com ele, no próximo ano volto para casa e ao retornar em SP trouxe mais dois irmãos, um dos irmãos João trazia, logo seu pai falesceu. Trouxe então sua mãe.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 49
LIVRO 2 Jão trabalhava em São Caetano, ainda mecânico industrial, morava no escritório. Quando trouxe a mãe pra SP alugou uma casa no Bairro Vila Livierio, para todos da família. Fez um teste na fabrica de Prenssas Gutiman na Av. Paes de Barros, lá trabalhou 6 anos. Os irmãs engraxavam sapatos e a mãe começou a trabalhar na Empresa Anchieta (Vouf) fabrica de talheres.
IMR - 2010
O proprietario da casa do Bairro do Livierio, pediu a casa, por que era provisório, até ele casar, e não achavam casa para alugar. Foi então que João foi morar na favela do Livieiro na rua São Pedro, foi aí que começou a se interessar pelos beneficios da comunidade, se integrou para canalização da água, convocando moradores de cada viela com o dinheiro da própria comunidade, isso aos fins de semana, por que na semana trabalhava na firma ainda. Depois de concluir o curso no Senai, parou com a escola por que já não tinha mais tempo. Conheceu uma garota no bairro Livieiro com 20 anos, e ela tinha 14 anos (Maria Helena), se juntaram, mas sua família continuou morando com ele. Foi aí que pensou em comprar uma casa para ele. Pegava sempre o ônibus Penha e via a favela de Heliopolis, e resolveu passar pra dar uma olhada, mudaram‐se para a rua Coronel Silva Castro. Já sua mãe ficou no Livieiro com os irmãos. Já que estavam estabilizados dentro de casa. A casa foi comprada como “trocou o barraco por uma vitrola”. Um quarto apenas, era dividido com cortinas, logo veio o primeiro filho, André Luiz da Silva, depois vieram: Alan, Aline, Diego, Alex, Michael e Verônica. “Passamos dificuldade no começo, já que a minha esposa não trabalhava”, mas João era metalúrgico na maquinas Gutimam. Todos os filhos na escola, morando em Heliópolis, no começo sentia medo, por conta dos grileiros, já que João jogava o povo contra eles, sofreu ameaças. A esposa brigava com João, “por que ele cuidava mais das pessoas de fora, do que a própria família”, contou João. A mãe do João vendeu a casa no Livieiro e comprou um barraco no Heliópolis. Assim cresceu a favela Heliópolis. Começou assim as lutas, João brigava com as pessoas que explorava água e luz, João correu atrás para conseguir água e luz individual. Em 1986 foi quando chegou a água e luz individual e taxas mínimas. Brigava também pela posse da terra, achavam que se colocasse água e luz, eles achavam que iam ganhar o direito pela terra. Continuou trabalhando, mas em 1986 foi mandado embora por que participava de movimentos populares. Aí montou um comercio no Heliopolis, vendia cabrito, porco, tirava fotos, fazia turismo, fretava ônibus etc. Fez um curso para o Goverdo do Estado, passou (governo Quércia), foi trabalhar de vigia. Mas continuou trabalhando com o movimento. Não se acostumou mais preso dentro de uma empresa, tinha que sempre estar com o povo, fazendo movimento.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 50
LIVRO 2 As reuniões começaram com os moradores, reuniões de moradia, aos fins de semana, veio se a idéia de criar uma associação, implataram um terro uma placa, “os grileiros vieram com tudo e tiraram a placa, colocamos de novo...”.
1. CONFORMAÇÃO MIGRATÓRIA DE HELIÓPOLIS Segundo levantamento realizado em 1986 pela Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação), publicado na dissertação de Ariovaldo Malaquias, 83% dos chefes de família em Heliópolis são migrantes, sendo apenas 9% oriundos de cidades do interior de São Paulo e outros 8% da própria Região Metropolitana da cidade de São Paulo. Segundo Alessi, muitos seriam provenientes dos estados de Pernambuco, Piauí, Paraíba, Bahia e dos municípios paulistanos de Osasco, São Bernardo do Campo e Diadema; os informantes contatados durante a primeira semana são provenientes do estado da Paraíba (Dona Creusa, João “Prefeito” e Dona Genésia) e do Pernambuco (Dona Fátima). De acordo com a tese de José Franco de Lima69, uma pesquisa realizada em 1987 aponta para a seguinte distribuição da origem dos moradores: ORIGEM DOS MORADORES DE HELIÓPOLIS ESTADO DE ORIGEM Quantidade % Estados do Nordeste
145
72,5
São Paulo
42
21
Minas Gerais
7
3,5
Paraná
5
2,5
Mato Grosso
1
0,5
Total
200
10
2. TIPOS DE OCUPAÇÕES DO TERRENO Segundo Malaquias (1994), a ocupação de Heliópolis não se deu coletivamente e de uma única vez, e sim gradualmente e de forma mais individualizada. O autor elenca cinco tipos de ocupação da área: O morador compra lotes de grileiros; O morador é removido para o local pela ação de órgão público ou associação local; O morador vem depois que algum parente já estabelecido na área lhe assegura um lugar para viver; O morador ocupa ou invade um local; O morador adquire (por compra ou aluguel) uma habitação já construída; Independente do tipo de ocupação pela qual uma família se estabelece em Heliópolis, todas elas, à exceção da remoção por parte de órgãos públicos, são irregulares, ou seja, não são feitas legalmente. A ocupação é desordenada, feita sem planejamento: os novos moradores vão chegando e instalando‐se onde há espaço.
69 Fonte: Lima, Carlos Franco. A religião popular: uma pesquisa ação sobre sobre aspectos da religião dos trabalhadores de Heliópolis. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Dpto. Ciências Sociais ‐ PUC‐SP, 1994, p. 19.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 51
LIVRO 2 A favela vai crescendo com a construção de barracos de madeira e casas de alvenaria, com o surgimento de becos, vielas e ruas sem saída, “sem asfalto, sem esgoto, sem traçado, a não ser o fornecido pelos grileiros” (MALAQUIAS, 1994: 17). Os campos de futebol que existiam em Heliópolis foram construídos pela ausência destes espaços nos bairros vizinhos, e donos de clubes da região se apropriaram destas construções, sendo esta propriedade lhes garantida pela Prefeitura. Estes terrenos passaram a ser ocupados pelos moradores gradualmente a partir da década de 1980; o último a ser ocupado foi o Copa Rio. Segundo João Prefeito, entrevistado pela equipe, havia 18 campos de futebol em Heliópolis no início da década de 1980, quando ele chegou ao local. O único campo remanescente, o Copa‐Rio, foi ocupado em 1998.
3. OCUPAÇÕES IRREGULARES DE TERRENOS E CONFLITOS COM O ESTADO O fortalecimento das organizações populares em São Paulo entre o final da década de 1970 e o início da década de 1980 está estreitamente relacionado à atuação da Igreja Católica (em especial as Comunidades Eclesiais de Base e a Pastoral da Igreja Católica) junto aos movimentos, que, no caso dos moradores de favelas, se configuram em torno de reivindicações por melhores condições de moradia que não são suficientemente atendidas pelo poder público. Segundo Malaquias (1994), a gestão do prefeito Jânio Quadros na década de 1980 tinha como diretriz a “desfavelização” , ou seja, “ remoção dos moradores das áreas mais valorizadas para outras distantes e utilização dessas áreas para construção de prédios sofisticados”. (MALAQUIAS,1994: 53). Em reação à esta política, que pôs fim a Favela Cidade Jardim (onde foi construído um parque), os moradores realizaram uma série de manifestações no Escritório Piloto da Cohab. A presença da polícia na favela era constante, e os moradores chegaram a invadir o Escritório Piloto para legalizar os mutirões e definir o tamanho dos lotes. Ainda no início da década de 1980, a organização dos moradores era grande, havendo reuniões e assembléias freqüentes (a maior das assembléias, segundo relato de um morador, contou com 10 mil pessoas). Foram realizadas manifestações na região, e os moradores em certa ocasião impediram a circulação da Estrada das Lágrimas em protesto pela continuidade de um projeto habitacional para Heliópolis. Em 1993, durante a gestão de Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo, a polícia e os moradores entraram em um confronto direto, televisionado pela TV Cultura, na tentativa de remover os moradores de áreas de risco. João Prefeito relata que, algum tempo depois, com a construção do conjunto habitacional Cingapura, a questão da remoção de famílias para as novas habitações construídas pela prefeitura foi discutida em assembléia e, apesar de opiniões divergentes, a mudança das famílias de suas antigas casas para esses novos prédios foi aprovada pelos próprios moradores.
4. HISTÓRIA EVOLUTIVA QUE DÁ ORIGEM A CONFORMAÇÃO URBANA ATUAL Os primeiros cômodos de madeira de Heliópolis (alojamentos) foram construídos pela Prefeitura da Cidade de São Paulo em 1971 para abrigar cerca de 200 famílias que haviam sido removidos das favelas de Vila Prudente e Vergueiro. Os alojamentos, localizados em área próxima ao centro comercial do Sacomã, eram supostamente provisórios, e os moradores eram acompanhados por assistentes sociais da Prefeitura com a garantia de mudança para casas de alvenaria.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 52
LIVRO 2 Segundo Malaquias (1994), os assistentes sociais impunham aos moradores horários para banho e lavagem de roupas, bem como o agendamento de festas, controlando de perto a disciplina dos que ali residiam. Sobre a chegada na favela, o Centro de Documentação Popular de Heliópolis (CDPH) avalia em pesquisa de 1992 que 70% dos primeiros moradores da região se estabeleceram ali depois de terem vivido em outro bairro da cidade pagando aluguel; o restante, que representa a maior parte, veio diretamente para a favela, sendo que em 1992 eram poucos os que haviam nascido em Heliópolis. Os moradores que se estabeleceram em Heliópolis para deixar de pagar aluguel consideram, segundo Malaquias, que melhorar de vida é deixar de ter esta despesa para gastar com a construção da própria casa ou barraco e consumir gêneros de primeira necessidade. O autor também aborda a questão dos grileiros, assim como todos os nossos entrevistados e informantes. Antigos moradores do bairro se auto‐declaravam donos das terras, demarcando e vendendo lotes aos recém‐chegados. Estes antigos moradores, os grileiros, organizavam‐se e ameaçavam os moradores caso não pagassem; segundo Malaquias (1994), a atividade grileira intensifica‐se na área em 1977. Os moradores dividiam‐se entre aqueles que acreditavam que os grileiros fossem donos da terra e os que não acreditavam, mas eram ameaçados caso oferecessem resistência. A ação dos grileiros nos primeiros anos era facilitada pelo fato de os moradores procurarem casas e terrenos individualmente. É nesse contexto que se formam as primeiras associações de moradores da região, com o apoio de entidades de fora do bairro, que segundo o autor, seriam “padres e seminaristas da Igreja Católica progressista, e advogados do CEATS – Centro de Estudos e Atividades Sociais da PUC e do COR – Centro Oscar Romeiro de Direitos Humanos” (MALAQUIAS, 1994: 16). A tabela70 a seguir indica o tempo de moradia dos habitantes da favela de Heliópolis em 1987. Dos duzentos entrevistados, mais de 34% residem há mais de 10 anos na favela, época do início da ocupação, e a mesma quantidade possui entre 5 e 10 anos de moradia no local. TEMPO DE MORADIA EM HELIÓPOLIS TEMPO DE MORADIA Quantidade % De 0 a 1 ano
11
5,5
De 1 a 5 anos
52
26
De 5 a 10 anos
68
34
Mais de 10 anos
69
34,5
Total
200
100
5. DADOS DEMOGRÁFICOS Apresentamos a seguir uma série de dados que ajudam a caracterizar a favela de Heliópolis em termos gerais. Segundo a Secretaria de Habitação do Estado de São Paulo, a favela de Heliópolis está localizada entre a Estrada das Lágrimas e a Rua Almirante Delamare (no distrito de Sacomã) ocupa uma área de 708.632,44 m² e reúne uma população de 125 mil habitantes cuja renda média é de R$ 478,83. A ocupação de Heliópolis iniciou‐se em janeiro de 1972 e hoje a favela reúne, segunda a mesma fonte, mais de dezoito mil domicílios. Detalhes sobre o histórico da ocupação do terreno serão abordados mais adiante. Quanto à infra‐estrutura urbana, os dados da Secretaria de Habitação do Município de São Paulo nos proporcionam um quadro mais preciso. Em Heliópolis 83% dos domicílios possuem abastecimento de água, 62% 70 Fonte: Lima, Carlos Franco. A religião popular: uma pesquisa ação sobre sobre aspectos da religião dos trabalhadores de Heliópolis. Dissertação de Mestrado, São Paulo, Dpto. Ciências Sociais ‐ PUC‐SP, 1994, p. 19.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 53
LIVRO 2 possuem esgotamento sanitário, 94% possuem rede elétrica domiciliar, 57% das ruas possuem iluminação pública, a drenagem pluvial é considerada parcial, 97% das vias são pavimentadas, e a coleta de lixo atende toda a favela. Além disso, seu processo de regularização fundiária da área está em andamento.
6. ORIGEM DOS NÚCLEOS E PEQUENO COMÉRCIO A extensa área correspondente à favela de Heliópolis é dividida em 14 glebas, uma divisão do território elaborada pela Prefeitura de São Paulo. Os moradores, por sua vez, não mobilizam essa categoria em seu discurso, adotando o termo Núcleo, que nada tem a ver com essa divisão administrativa institucional. Durante observação inicial, não obtivemos dados precisos acerca da origem e lógica de formação de cada um desses núcleos, estes somam mais de dez. Informações preliminares, entretanto, nos permitem afirmar que o surgimento dos primeiros núcleos em Heliópolis está diretamente relacionado à dinâmica de ocupação dos terrenos ociosos da região, bem como à construção de moradias. Nas áreas correspondentes aos campos de futebol foram realizados os primeiros mutirões para construção de casas, e estas áreas receberam nomes por parte dos próprios moradores; esses nomes guardavam uma relação estreita com o cotidiano dos habitantes. Por exemplo, o antigo campo de futebol Portuguesa tornou‐se posteriormente o Núcleo Portuguesa/Portuguesinha. Os nomes das ruas também surgiram pela necessidade dos moradores de terem um endereço, um pré‐requisito para muitos contratos formais, como emprego, conta bancária, documentos e outros. Ou seja, um elemento fundamental de inclusão social. Os nomes das ruas foram escolhidos pelos moradores; o governo, que considerava o local irregular, não tomou tal iniciativa. Sobre o processo de nomeação das ruas, Malaquias (1994) relata: “(...) eram feitas reuniões onde os próprios moradores votavam o nome das ruas e vielas. Assim nasceram as ruas: da Alegria, Pernambuco, Ceará, da Mina, praça D. Pedro, João Miranda, Miguel Borges Leal, Lili, etc. [...] Após a deliberação do nome, alguém pintava uma placa à mão e colocava no logradouro; a rua estava batizada.” (MALAQUIAS, 19994: 85). Há pouco mais de um ano, Heliópolis foi reconhecida pelo Estado no que diz respeito à nomeação das ruas: algumas delas foram renomeadas pelo governo, e todas receberam placas oficiais. A divisão de Heliópolis em núcleos foi proposta pela UNAS (União de Núcleos, Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco) e outras entidades, com a finalidade de organizar a região. Mapa da divisão da favela de Heliópolis em 14 glebas. Segundo as informações construídas em campo, Fonte: www.favelization.com Heliópolis é dividida em 10 núcleos: Mina, Flamengo, Lagoa, Viracopos, São Francisco, Portuguesinha, Imperador, Heliópolis, Sacomã e PAM. O comércio em áreas de favela é informal, na medida em que o estabelecimento, por estar localizado em região não regularizada, não é reconhecido e portanto não paga impostos. Assim, Malaquias (1994) relata que houve grande expansão do pequeno comércio em Heliópolis no início da década de 1990, com a diminuição da oferta de trabalho formal na cidade de São Paulo.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 54
LIVRO 2 Segundo o autor, este tipo de atividade que começava como alternativa para gerar renda familiar, estabelecendo‐ se precariamente "em uma portinha", em um barraco ou mesmo com a oferta de produtos de porta em porta; este tipo de comércio pode crescer o suficiente para que o dono aumente seu estabelecimento e vá enriquecendo dentro da favela, somando posses e arrumando sua casa. A variedade do tipo de comércio é notada ‐ existem "bares e mercearias, sapatarias, empórios, açougues, pastelaria, farmácia e uma infinidade de estabelecimentos comerciais." (MALAQUIAS, 1994: 93). Malaquias também afirma que há uma hipervalorização das mercadorias comercializadas na favela, sendo os produtos vendidos a preços muito mais altos que os encontrados no mercado ‐ dessa forma, além do baixo custo para manutenção do estabelecimento (isento de impostos), há também um sobrelucro devido à esse tipo de especulação. Assim, o autor aponta para uma transição do comércio enquanto meio de sobrevivência para um negócio lucrativo, bem como para o acirramento da disputa pelo mercado interno. Por fim, Malaquias indica a formação de uma associação de comerciantes de Heliópolis, cuja existência será verificada nas próximas semanas.
7 E 8. EVOLUÇÃO DO ASSENTAMENTO (OCUPAÇÃO, DEFESA, LOTEAMENTO, CONSTRUÇÃO, PROPRIEDADE) E COMO SE PRODUZIU A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA. A questão da regularização fundiária é desde o início uma pauta cara ao movimento de moradores em Heliópolis, durante a década de 1970, eles estão reunidos sob o nome de Comissão de Moradores. A urgência da questão se faz sentir à partir da década de 1980, mais especificamente em 1983, quando o IAPAS (Instituto de Administração da Previdência e Assistência Social) consegue a reintegração de posse da área. Neste momento, a Comissão de Moradores passa a reivindicar que a gleba A (onde se concentravam as famílias até então) fosse doada pelo governo federal para a Prefeitura de São Paulo, regularizando a situação das famílias. Foto no alto: Novembro de 1981, primeira sede da Associação de Moradores. Abaixo: moradores de Heliópolis. Fonte: www.favelization.com
Em 1984, a área de Heliópolis foi transferida do IAPAS para o BNH (Banco Nacional de Habitação), o que legalmente significava que a Cohab poderia iniciar obras de urbanização no local. As reuniões de moradores organizadas pelas associações locais reuniam naquele momento moradores dos 10 núcleos de Heliópolis, e a organização dos moradores, durante quatorze anos, mostrou‐se crucial para as conquistas do bairro em termos de regularização da posse do solo e infra‐estrutura urbana. Quando a negociação com a Cohab começou, em reuniões conjuntas entre moradores e representantes deste orgão ainda em 1984, as principais reivindicações eram a possibilidade de as famílias poderem construir suas moradias, a liberação de água e luz para as casas e principalmente a posse da terra através de escritura.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 55
LIVRO 2 As negociações não correram bem, levando a Cohab a construir uma cerca de arame farpado ao redor da área de Heliópolis a fim de impedir o estabelecimento de novas famílias e ocupações ‐ cerca que foi logo removida pela Sabesp (empresa responsável pelo fornecimento de água, coleta e tratamento de esgotos do Estado de São Paulo) e pelos moradores. A política de moradia implementada pela prefeitura em 1986 associava as construções da Cohab às empreiteiras, não deixando espaço para os mutirões populares, largamente praticados em Heliópolis. O primeiro desses mutirões para casas populares foi autorizado em 1987 pelo governo federal, ele seria financiado pela Secretaria Especial de Ação Comunitária (SEAC) com o dinheiro repassado e administrado pela Sociedade Comunitária Habitacional Pró‐Favelas, “entidade particular fundada em 1987 e contratada pela Cohab” (MALAQUIAS, 1999: 33). O projeto construiria duzentas casas nas áreas dos campos de futebol de várzea de Portuguesa e Flamengo, bem como em Lagoa e Dom Pedro. Segundo depoimento de uma moradora do bairro concedido ao autor, o mutirão de casas populares foi uma iniciativa que veio “de cima pra baixo”, do governo para a população sem a reivindicação por esta forma de construção, os moradores aceitaram porque não tinham muitas opções para construção de suas moradias. “(...) [os moradores] reivindicavam que fosse concedido um lote em uma área fora de risco para que pudessem construir sozinhos. Em resposta à reivindicação, o governo federal e a Prefeitura impuseram o mutirão como forma de propaganda política” (MALAQUIAS, 1999: 35). Os moradores que participaram desses mutirões tiveram uma série de problemas com os órgãos públicos responsáveis pelo auxílio às construções (Cohab, SEAC e Pró‐Favelas) perdendo muito material e assessoria técnica. Com a troca da gestão da prefeitura, houve uma mudança na forma como o mutirão da Lagoa ocorreu, sendo realizado mutirão não só de casas como também de rua, implementando esgoto e pavimentando as ruas. Nesse mutirão foram construídos vinte e sete sobrados de quatro cômodos. Na mesma época ocorreu o mutirão no Núcleo Heliópolis, o primeiro a ser ocupado pelos moradores provisórios, onde o mutirão construiu também vinte e sete casas. O mutirão da Mina, em 1992, contou com a participação de sessenta moradores para a implementação do esgoto e a pavimentação da rua. Apesar das conquistas, a falta da regulamentação da posse da área representa uma ameaça latente para os moradores; em 1993, a prefeitura entrou com uma ordem de desepejo para os moradores da quadra (não seria gleba?) H de Heliópolis, resultando em um confronto entre os moradores e a tropa de choque. Os moradores não foram expulsos, no entanto, a regularização fundiária de Heliópolis está ainda hoje em processo.
9. VENDAS E TRANSFERÊNCIAS DE TERRENOS. MAIS VALIA DO TERRENO OU PROPRIEDADE. Os moradores de Heliópolis eram na sua totalidade, em 1992, pessoas com baixo poder aquisitivo; no entanto, os moradores mais antigos já conseguem transformar seu barraco em alvenaria. “Há dez anos atrás era fácil escolher um lugar para construir. Hoje [1992] quem chega não acha espaço, a menos que tenha dinheiro para comprar uma casa, muito valorizada em relação a alguns anos atrás. As únicas áreas que ainda restam para serem ocupadas são terrenos da COHAB, com estruturas iniciais de prédios para classe média construídas no governo Jânio Quadros.” (MALAQUIAS, 1999: 17). A especulação imobiliária também chega à região: “casa, terrenos e barracos são vendidos pelo preço ditado pelo mercado externo. [...] Hoje, dificilmente um migrante recém‐chegado teria possibilidades financeiras para adquirir um espaço em Heliópolis” (MALAQUIAS, 1999:18‐19). O autor afirma que à época (em 1992), os compradores de terrenos e casas em Heliópolis eram moradores de outros bairros de São Paulo que possuíam alguma reserva de dinheiro e já não consideravam que havia risco de remoção das famílias dessa área, apesar da área ainda não ser regularizada. “Imobiliárias comercializam casas particulares e comerciais; o valor se mede pela localização próxima às vias asfaltadas e da infra‐estrutura apresentada.” (MALAQUIAS, 1999: 25). Alguns moradores mais antigos imaginam que com a especulação imobiliária existe a possibilidade de venda de sua habitação para retornar com dinheiro à sua terra de origem.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 56
LIVRO 2
10. MITO FUNDACIONAL
Segundo Malaquias, o mutirão é uma ação coletiva que constitui a identidade dos moradores de Heliópolis, na medida em que rompe com o individualismo típico das relações travadas na metrópole, pois é através deste trabalho em comunidade gerador de solidariedade e confiança entre os moradores que se cria a possibilidade de permanência no local: construindo a própria moradia. São também as relações que se formam a partir dos mutirões que propiciam por vezes um entendimento político dos moradores, fortalecendo as associações do bairro. Malaquias e alguns de seus entrevistados, moradores de Heliópolis, apontam para a diferença em termos de participação na comunidade entre os moradores que ajudaram nos mutirões e os que compraram barracos ou casas já prontos na favela: os laços entre vizinhos são fortalecidos com estas ações conjuntas, gerando mais facilmente o associativismo. Segundo o autor “(...) o morar na favela exige maior percepção da ação coletiva. Em bairros formalmente organizados os moradores parecem reservar certa distância entre si, pois nesses locais a propriedade é reconhecidamente privada.” (MALAQUIAS, 1999: 20). No caso dos mutirões é interessante observar que o benefício próprio está associado ao benefício coletivo. A união entre moradores também remonta muitas vezes à memória da terra de origem, uma vez que são comuns os casos de famílias vindas aos poucos do Norte e Nordeste do país, estabelecendo‐se próximas umas às outras de acordo com relações criadas em sua terra natal.
11. INTENSIFICAÇÃO DO USO DO ESPAÇO À partir de nossa observação etnográfica pudemos constatar uma intensificação do uso dos espaços disponíveis para construção de moradias na favela. Relatos de moradores apontam que Heliópolis não possui mais terrenos ociosos disponíveis para a construção de casas. Os últimos terrenos remanescentes, como as antigas quadras de futebol, há muito tempo foram ocupadas por moradores, e dada a necessidade de construção de novas casas, muitos deles constroem cômodos acima de suas casas térreas, dando origem ao que comumente ficou conhecido como "puxadinho". A explosão de Heliópolis, ou seja, a expansão da sua área quadrada, não ocorre mais por conta dessa escassez de terrenos disponíveis, dando lugar à uma "implosão" da favela, ou mais precisamente, ao seu crescimento vertical, casas de mais de um andar construídas pelas próprias famílias. Essas construções verticais geralmente são ocupadas por integrantes da família nuclear (pais e filhos), ou extensa (outros parentes) e, em outros casos, são alugadas ou vendidas a outras pessoas. Diferentes espaços são aproveitados para a construção de novos cômodos no alto das casas, gerando construções bem próximas umas às outras, muito próximas ao meio‐fio, e algumas delas com fachadas bem estreitas.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 57
LIVRO 2
O que é Favela? Há controvérsias no entendimento que os próprios moradores fazem sobre o que seja a favela. Para muitos, deixar de morar em barracos de madeira é sair da condição de favelado, apesar de não sair da área de favela: “... locais onde existem poucos barracos de madeira já não são mais considerados favela, embora a falta de infra‐estrutura continue. (...) O sair da favela não necessariamente está ligado ao sair da área da favela, mas sim em promover essa área a bairro, deixar de tratá‐la como favela. Isso significa mudar o seu status, sair da condição de morador de favela, ou, como é usado pelo restante da sociedade, deixar de ser ‘favelado’, e com isso de carregar o estigma de marginal.” (p. 22/23) Por outro lado, há um esforço por parte das lideranças locais em definir que a distinção entre a favela e um bairro comum não está apenas no tipo de habitação (barraco de madeira X casas de alvenaria), mas também no acesso à infra‐estrutura urbana (água, luz, esgoto, pavimentação, acesso à transporte público, escolas, postos de saúde), na regularização do terreno e na extinção das áreas de risco. Apesar da carência de vários elementos da infra‐ estrutura urbana e da regulamentação da área, Heliópolis “... vai deixando de ser estigmatizada como favela, seja por interesses comerciais, seja pelo sentimento dos moradores...”. (p. 24) Segundo a Secretaria de Habitação do Município de São Paulo, a cidade possui 1565 favelas, 1152 loteamentos irregulares e 1885 cortiços. Ainda segundo o Habi SP da Prefeitura do Estado de São Paulo, a definição dos conceitos “favela”, “núcleo urbanizado” e “loteamento irregular” é a seguinte:
FAVELA Núcleos habitacionais precários, com moradias autoconstruídas, formadas a partir da ocupação de terrenos públicos ou particulares. Estão associados a problemas da posse da terra, a elevados índices de precariedade ou à ausência de infraestrutura urbana e serviços públicos e população com baixos índices de renda, socialmente vulneráveis71 .
NÚCLEO URBANIZADO É um conceito relacionado a uma favela que já recebeu infraestrutura , mas que ainda não está regularizada juridicamente.
LOTEAMENTO IRREGULAR Lotes que não podem ser regularizados por não atender às legislações de parcelamento e uso do solo. Apesar de o morador ser adquirente, não tem garantida a posse do imóvel. Soma‐se a essa irregularidade a moradia autoconstruída e os baixos níveis de renda das famílias.
71 Vulnerabilidade Social – IPVS (Índice Paulista de Vulnerabilidade Social): ‐ Anos médios de estudo do responsável pelo domicílio; ‐ % de responsáveis pelo domicílio com ensino ‐ Fundamental completo; ‐ % de responsáveis com renda até 3 salários mínimos; ‐ % de responsáveis pelo domicílio alfabetizados; ‐ % de responsáveis com idade até 29 anos; ‐ % de pessoas com até 4 anos no total de residentes. ‐ Rendimento nominal médio do responsável pelo ‐ Domicílio; idade média do responsável pelo domicílio.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 58
LIVRO 2 FAVELA EM 1992 “Parte das ruas estão pavimentadas, com luz e água, embora as redes sejam precárias. O esgoto aos poucos vem chegando, seja através de empreiteiras ou de mutirões de moradores. Ruas e casas próximas à Estrada das Lágrimas, limite da área, são mais valorizadas, já não há grandes diferenças entre as casas de um lado e do outro da avenida, a não ser no aspecto legal. Boa parte da favela de Heliópolis vai se transformando em bairro com característica operária.” Ou seja, a área vai aos poucos perdendo a caracterização de favela. No entanto, embora a posse do terreno seja de um órgão público (Cohab), as casas ali construídas são clandestinas. “... como argumento para não legalizar os lotes, o poder público aponta irregularidades nas medidas dos terrenos e a falta de planta de construção das casas.” (p. 85)
DADOS SÓCIO‐DEMOGRÁFICOS BÁSICOS Nome Principal: Ano do Início da Ocupação: Total de Domicílios: Propriedade do Terreno: Conselho Gestor: Infra‐estrutura urbana (%)Abastecimento de água: Esgotamento Sanitario: Rede Elétrica domiciliar: Iluminação pública: Drenagem Pluvial: Vias Pavimentadas: Coleta de lixo: Índice de Infra‐Estrutura Urbana:
Heliópolis 1/1/72 18.080,00 Particular/Municipal sim 83 62 94 57 Parcial 97 Total 0,75
Regularização Fundiária: Em Processo
Figura 1 – Distribución Etarea de HELIÓPOLIS (IMR Brasil 2010)
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 59
LIVRO 2
Figura 2 – Nível de Instrução (IMR Brasil 2010)
Figura 3 – Viela perto Rua da Alegria –Vista desde Casa/Habitação Equipe
IMR Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
60
LIVRO 2
ECOLOGIA URBANA
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 61
LIVRO 2
Centros Urbanos: Dinamizadores do Desenvolvimento Comercial Local A favela de Heliópolis encontra‐se localizada no distrito de Sacomã, que por sua vez, faz parte do bairro do Ipiranga, dois bairros tradicionalmente ligados à indùstria e ao comércio. Hoje, Heliópolis concentra uma gama bastante diversa e densa de lojas diretamente relacionadas a regioes fora da favela e a outros bairros de São Paulo. Essas relagoes dizem respeito tanto ao fluxo de mercadorias quanto ao fluxo de pessoas, que buscam nesses locais as melhores opgoes de compra, prego e praticidade. O bairro do Ipiranga se constituiu historicamente em um importante lugar de passagem e circulação de bens. Desde meados do século XVII, quando São Paulo ainda era uma simples província, aqueles que se dirigiam à Baixada Santista utilizavam essa região como rota de viagem, e desde já a região demonstrava seu caráter aglutinador de importantes fluxos para a economia da cidade. Com a chegada da ferrovia nas imediações, quase ao fim do século XIX, muitas indústrias enxergaram na região uma boa oportunidade de escoamento de suas produções, e deu‐se início à conformação do bairro como um bairro industrial. O crescimento da região do ABC Paulista, região reconhecida historicamente por sua ocupação operária, também contribuiu para o fortalecimento dessa caracteristica da região sul de São Paulo, da qual o Ipiranga faz parte. Com a crise econômica da década de 1970, muitas indústrias abandonaram a região à procura de cidades que cobrassem impostos mais baixos, e diversos terrenos da região foram ocupados por comércios, serviços, e – mais recentemente – importantes empreendimentos imobiliários. É essa conformação econômica atual que dá o tom do cenário que analisamos hoje e no qual Heliópolis certamente se encontra. Durante nosso trabalho de campo e em entrevistas com moradores de Heliópolis, algumas ruas dessa região – tradicionalmente dedicada ao comércio – e localizadas no centro nervoso do bairro do Ipiranga, foram apontadas como centros de comércio importantes para aqueles que buscavam mercadorias dificilmente encontradas no interior de Heliópolis, ou em outros casos, quando buscavam realizar compras parceladas utilizando cartões bancários. Um bom exemplo é a Rua Silva Bueno (foto ao lado), uma importante referência de comércio para todo o distrito do Sacomã. O caráter dinâmico da região, não se resume, entretanto, apenas ao fluxo de comércio, mas abrange também o fluxo de pessoas, tendo em vista a importante expansão do sistema de transporte público na região nos últimos anos. O bairro do Ipiranga e, mais precisamente, o distrito do Sacomã, representam um ponto nevrálgico da circulação de pessoas de diferentes regiões da cidade: a Rodovia Anchieta, que dá acesso ao Litoral; as duas novas estações da Linha 2 (verde) do metrô, Alto do Ipiranga e Sacomã; bem como o novo terminal de ônibus Sacomã, que recebe passageiros de todas as regiões da cidade, são um exemplo desse caráter aglutinador e dinâmico da região como citado anteriormente. Os locais de importante fluxo de comércio e pessoas serão aqui definidos como NODOS, caracterizados, sobretudo, pelo seu caráter dinamizador, tanto em relação a outros NODOS, maiores ou menores, quanto aos Microcentros Comerciais Compostos (que a partir de agora serão indicados sob a sigla MCC) – outro
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 62
LIVRO 2 importante tipo de aglomerado comercial, porém de menores dimensões quando comparado aos NODOS e que mantém uma significativa relação de dependência em relação aos NODOS, seja para obtenção de suas mercadorias, seja para a captação do fluxo de pessoas que provém dessas regiões, economicamente, centrais. Heliópolis está rodeada de importantes NODOS fora da região que compreende a favela, e a presença de MCC no interior da favela contribui para a formação de uma dinâmica de comércio bem diversificada e baseada em relações de proximidade e vizinhança e também em outros critérios de racionalidade de compras. De todo modo, a relação entre eles se mantém, assegurando assim, um fluxo de mercadorias e pessoas de dentro para fora e de fora para dentro; ou seja, mantendo a dinâmica econômica do lugar em constante movimento. Esses MCC, por sua vez, não são todos iguais; eles apresentam características diferentes que os separam em categorias distintas quanto a sua densidade comercial, diversidade de serviços, fluxo de pessoas e mercadorias.
OS NODOS E OS MCC Na região de Heliópolis, NODOS e MCC podem ser inicialmente separados em duas categorias: aqueles que se encontram no interior da favela e aqueles que se encontram fora da favela. Essa divisão inicial é certamente muito simples, mas nos permite uma aproximação inicial dos NODOS e MCC; mais adiante, apresentaremos outras divisões atribuídas a essas categorias. Determinamos as delimitações dos MCC e sua nomeação a partir de observações do trabalho de campo e baseadas em informações precisas de moradores da região. O nome de cada MCC se refere a uma rua importante que ele contém, e não significa que se limita apenas a esta rua – por exemplo, o MCC Mina faz referência à Rua da Mina como um ponto importante de fluxo de mercadorias e pessoas nesse MCC, mas nesse mesmo MCC também estão contidas as ruas Social, da Uniao e das Gertrudes.
Figura 1 – Esquema de distribución espacial de Nodos y MCCs
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 63
LIVRO 2 Esquematicamente temos a seguinte distribuição inicial: Fora de Heliópolis
Dentro de Heliópolis
NODOS Silva Bueno São Joao Climaco
Estrada das Lágrimas
MCC Mina Florestal Alegria Hospital Heliópolis Conego Xavier Taylor
A partir dos dados construidos em campo, observa‐se que Heliópolis possui tres NODOS, dois deles fora dos limites da favela e um dentro dessa área, e seis MCC no interior de Heliópolis. Esses NODOS e esses MCC, entretanto nao São iguais entre si, apresentando deste modo características peculiares que os dividem em diferentes grupos. São eles: NODOS A e B, e MCC Primários, Secundários e Terciários. A partir dos dados construídos em campo, observa‐se que Heliópolis possui três NODOS, dois deles fora dos limites da favela e um dentro dessa área; e seis MCC no interior da favela. Esses NODOS e MCC, entretanto, não são iguais entre si; apresentando, deste modo, características peculiares que os dividem em diferentes grupos. São eles: NODOS A e B; e MCC Primários, Secundários e Terciários. Na tabela 1 pode‐se observar que os NODOS foram divididos em duas categorias, e os MCC em três. Os NODOS se dividem em NODOS do tipo A, mais centrais e localizados no interior da favela, e do tipo B, também importantes, porém de segunda ordem em relação ao tipo A, seja por sua localização fora da região em questão, seja pela frequentação diária de moradores. A B Primàrio Secundário Terciário Fora de Silva Bueno São ‐ ‐ ‐ ‐ Heliópolis Joao Clímaco Hosp. ‐ ‐ Conego Xavier Mina Heliópolis Dentro de Estrada das ‐ Florestal Alegria Taylor Heliópolis Lágrimas Tabla 1 – Classificação de Nodos e MCCs
Os MCC, por sua vez, são divididos em três subgrupos: os MCC Primários são os mais importantes quanto ao seu papel dinamizador do comércio local, proximidade em relação aos NODOS, forte densidade comercial e uma importante diversidade dos serviços oferecidos; os MCC Secundários apresentam uma densidade comercial relativamente menor, alguns deles são mais distantes dos NODOS – sendo que a diversidade de comércio oferecido permanece, bem como uma distribuição homogênea dos estabelecimentos comerciais pelas ruas por eles abrangidas; os MCC Terciários possuem um grande potencial de desenvolvimento, porém são assim classificados em função da concentração do comércio em apenas uma rua e pela menor diversidade dos estabelecimentos. A seguir, apresentaremos em detalhe o perfil de cada um dos NODOS e MCC. Posteriormente, serão apresentados dados de todos os MCC e NODOS em uma perspectiva comparada.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 64
LIVRO 2 NODOS do tipo A: ESTRADA DAS LÁGRIMAS O trecho etnografado compreende toda a extensão da estrada contígua a Heliópolis, desde o terminal de ônibus Sacomã até o encontro com o Largo São João Clímaco. A Estrada das Lágrimas é uma das fronteiras que define a região da favela de Heliópolis, constituindo um importante ponto de fluxo de pessoas, dado a presença de diversas linhas de ônibus que se dirigem (majoritariamente Quantidade de alguns estabelecimentos comerciais no NODO Estrada das Lágrimas Serv Tec. eletrodomésticos
11
Autopeças
11
Bancos e Lotéricas Bares
1 13
Bijuteria Costura
1 2
Docerias Farmácias Lan House Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Supermercados Mercado Quitanda Mecánica Roupas
5 6 5 8 1 9 2 13 4 10 13
Saloes de Cabeleireiro
23
A Estrada das Lágrimas é um NODO distinto dos demais, por mesclar características do comércio predominante nos MCC e nos NODOS do tipo B. Em outras palavras, ele reúne agência bancária, postos de gasolina, lojas de móveis (mais comumente encontrados nos NODOS), e grande quantidade de bares, cabeleireiros e lan‐houses – abundantes nos MCC.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 65
LIVRO 2 NODOS do tipo B SILVA BUENO O NODO Silva Bueno tem como via principal a própria Rua Silva Bueno e o trecho etnografado que compreende os cinco quarteirões que vão desde a Rua Clementine Pereira até a Rua Lorde Cockrane. Trata‐se de uma região densamente urbanizada, bem próxima ao terminal e a estação de metrô Sacomã, e centralizadora de uma importante rede de comércio e serviços. Ela foi citada diversas vezes por moradores de Heliópolis como uma referência importante de comércio e compras a crédito. Quantidade de alguns estabelecimentos comerciais no NODO Silva bueno Assist. técnica eletrodomésticos
0
Autopeças Bancos e Lotéricas Bares Bijuteria Costura Docerias Farmácias Lan‐house Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Supermercados Mercado Quitanda Mecánica Roupas
1 10 2 8 0 3 6 0 10 1 0 0 8 1 2 19
Saloes de Cabeleireiro
3
Esse NODO apresenta a mais importante concentração de agências bancárias nas imediações de Heliópolis; além disso, oferece certos tipos de comércio mais raros em Heliópolis, como lojas de sapatos, lojas de roupas exclusivamente femininas ou masculinas, lojas de móveis e farmácias.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 66
LIVRO 2 SÃO JOÃO CLÍMACO O NODO São João Clímaco compreende a Estrada São João Clímaco e as Ruas São Silvestre e Tamatuá, região no extremo oposto do terminal Sacomã. Esse NODO, assim como os demais, é o único lugar nas redondezas que oferece o serviço de agências bancárias, uma das características que compõem o NODO enquanto centro econômico de produção e distribuição de bens, insumo e capital. Além disso, possui duas lotéricas (pontos importantes para o pagamento de contas), óticas e um despachante. Esse é o NODO mais procurado pelos moradores da gleba K quando estes têm a necessidade de adquirir bens que o comércio dos MCC e da Estrada das Lágrimas não oferece. Quantidade de alguns estabelecimentos comerciais no NODO São Joao Clímaco. NODO S. Joao Clímaco Assist. técnica eletrodomésticos
1 0
Autopeças Bancos e Lotéricas
5 3
Bares Bijuteria Costura Docerias Farmácias Lan House Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Supermercados Mercado Quitanda Mecánica Roupas
1 0 2 7 1 7 0 1 3 7 1 7 2 5
Saloes de Cabeleireiro
5
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 67
LIVRO 2 MCC Primários CÔNEGO XAVIER O MCC Cônego Xavier é delimitado pelas ruas Cônego Xavier, o trecho da rua Cel. Silva Castro (desde o seu começo até o início do terreno do Hospital Heliópolis) e por três quadras da Av. Alm. Delamare. Esse MCC representa a maior concentração de comércio no interior de Heliópolis, e de maneira homogênea – o que não se observa, por exemplo, nos MCC terciários. O comércio e os serviços deste MCC são os mais diversificados em Heliópolis, e a região se destaca por essa sua oferta de serviços: entre mecânicas, salões de cabeleireiro, assistência técnica e eletrodomésticos encontram‐se 24 estabelecimentos. Outro diferencial deste MCC são as farmácias – ainda que não sejam de grande porte, são mais raras à medida que se adentra o bairro. A localização deste MCC é duplamente privilegiada: por um lado, é uma das regiões de Heliópolis mais próximas às vias de acesso ao centro em termos de transporte público; por outro, está próxima aos conjuntos habitacionais da parte norte do bairro, o que assegura aos comerciantes um fluxo constante de consumidores. MCC Cònego Xavier Armarinho Assist. técnicaeletrodomésticos Autopeças Bares Bijuteria Costura Docerias Farmácias Lan House Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Mercado
2 6 11 16 2 2 1 4 1 6 7 1 20
Quitanda Mecánica Roupas
3 9 6
Salao de Cabeleireiro
17
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 68
LIVRO 2 MCC Secundários HOSPITAL DE HELIÓPOLIS O MCC Hospital de Heliópolis recebe esse nome devido à sua proximidade com o hospital, e, embora o terreno da instituição não faça parte da favela de Heliópolis, optamos por incluí‐lo nos limites do MCC por acreditarmos que grande parte do comércio ali presente atende aqueles que recorrem aos serviços médicos, bem como os moradores do entorno. Este MCC apresenta o mesmo padrão de comércio da região; ou seja, bares, Salões de cabeleireiros, restaurantes, lanchonetes e mercadinhos. MCC Hosp Heliópolis Armarinho Assist. técnica eletrodomésticos
1 0 0
Autopeças
0
Bares Bijuteria Costura Docerias Farmácias Lan House Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Mercado Quitanda Mecánica Roupas Salao de Cabeleireiro
10 0 0 0 1 1 5 0 2 6 2 1 3 5
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 69
LIVRO 2 FLORESTAL O MCC Florestal é delimitado pelas ruas Itamarati, Padre Segundo e a própria Rua Florestal. É um MCC bem próximo à Estrada das Lágrimas, fator esse que dinamiza sua economia. Além disso, representa uma importante referência para os moradores e para os corretores imobiliários da favela de Heliópolis. A centralidade da Florestal está relacionada ao fluxo de pessoas mais do que à quantidade de estabelecimentos ali encontrados. Trata‐se de uma região mais residencial que comercial, onde se encontram padarias, pizzarias e uma academia de ginástica. Armarinho Assi. Técnica etrodomésticos Autopeças
0 3 0
Bares Bijuteria Costura
10 2 1
Docerias
3
Farmácias Lan House Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Mercado Quitanda Mecánica Roupas Salao de Cabeleireiro
0 0 8 2 2 14 5 1 5 12
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 70
LIVRO 2 MCC Terciários Foram classificadas algumas regiões dentro de Heliópolis como MCC terciários por duas razões: em primeiro lugar, por sua baixa densidade comercial em termos gerais e, em segundo, pelo seu potencial de desenvolvimento. Este potencial é identificado a partir da existência de determinados fatores capazes de impulsionar a atividade econômica nestas regiões, a saber: as reformas urbanas nas glebas de Heliópolis localizadas na Avenida Comandante Taylor, e a presença de ruas com comércio denso nos casos dos MCC Mina e Alegria, que poderia proporcionar o fortalecimento da atividade econômica nas ruas adjacentes. MINA O MCC Mina é delimitado pelas ruas Paraíba, Social, Rua da União e Rua da Mina. Embora o MCC Mina seja terciário, a Rua da Mina possui, individualmente, características de um MCC primário, que não são encontradas nas ruas ao seu redor. Essa rua, além de possuir uma importante quantidade de estabelecimentos comerciais de variados tipos, é o centro da organização política e social de Heliópolis, pois aí se encontra a sede da UNAS, a única Biblioteca da comunidade, uma escola de Robótica, além da quadra Poliesportiva, onde diversos projetos sócio‐educativos são desenvolvidos. Considerou‐se, desse modo, a Rua da Mina uma irradiadora de desenvolvimento econômico e social de Heliópolis. É também a rua que concentra a maior quantidade de bares em toda a amostra, totalizando 29 unidades, bem como salões de cabeleireiros (18 unidades) e mercadinhos (20 unidades). Quantidade de alguns estabelecimentos comerciais no MCC Mina Armarinho Assist. Técnica eletrodomésticos Autopeças Bares Bijuteria
1 4 1 29 3
Costura Docerias Farmácias
2 3 0
Lan House Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Mercado Quitanda Mecánica Roupas
4 6 6 2 20 5 0 9
Salao de Cabeleireiro
18
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 71
LIVRO 2 ALEGRIA O MCC Alegria é definido pelas ruas da Alegria, Três de Maio e Primavera. Este MCC é contíguo ao MCC Mina, constituindo‐se quase como um desdobramento deste, embrenhando‐ se mais profundamente por Heliópolis. Assim, tal qual acontece na Mina, observa‐se que a atividade comercial deste MCC orbita em torno de uma única rua – neste caso, a da Alegria. Nas ruas adjacentes, raramente encontra‐se algum estabelecimento, razão pela qual não é cabível considerá‐lo um MCC primário ou secundário – a despeito da quantidade de comércio que ali se encontra. Todos os estabelecimentos se concentram na primeira metade desta rua, que vai do seu encontro com a Rua da Mina até pouco depois de seu cruzamento com a Rua Três de Maio. A principal atividade econômica da Rua da Alegria é realizada por bares, que totalizam 19 apenas no pequeno trecho inicial já citado. Além disso, na rua também se concentra o maior índice de lan‐houses em comparação aos outros MCC. Assim, apesar de não constituir uma referência em termos de comércio para os moradores de outros pontos de Heliópolis, a Alegria é certamente um importante centro comercial da região, pelo qual circulam, em especial, jovens e homens, dadas as características dos estabelecimentos ali situados. Quantidade de alguns estabelecimentos comerciais no MCC Alegria Armarinho Assist. técnica eletrodomésticos Autopeças Bares Bijuteria Costura Docerias Farmácias Lan House Lanchonete Manicure e Pedicure Material de construção Mercado Quitanda
0 2 0 20 0 3 1 0 4 5 2 2 13 3
Mecánica Roupas
1 13
Salao de Cabeleireiro
8
TAYLOR O trecho etnografado da Avenida Com. Taylor corresponde aos seus cinco primeiros quarteirões, que desembocam no viaduto que dá acesso ao terminal Sacomã. Nesta região estão localizadas algumas glebas de Heliópolis que, nesse momento, estão sob processo de reforma urbana, razão pela qual muitos terrenos estão em reforma, ou vazios – diminuindo drasticamente a densidade comercial da região. Condomínios de prédios, conjuntos habitacionais e uma delegacia de polícia também compõem o cenário desse MCC; e embora ele possua hoje características de um MCC Terciário, acreditamos que há potencial para uma futura evolução desse MCC para um do tipo secundário, imaginando um crescimento da demanda de serviços com o fim das obras e a chegada de novos moradores. Este MCC não apresenta uma quantidade considerável de dados para serem apresentados isoladamente como os demais. uma quantidade considerável de dados para serem apresentados isoladamente como os demais.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 72
LIVRO 2
FLUXOS DE BENS, INSUMOS E SERVIÇOS: DESCRIÇÃO, ORIGEM E DESTINO Para compreender a dinâmica comercial de Heliópolis, é preciso ter em vista três tipos de fluxo: Fluxo de insumo, que se refere ao abastecimento de mercadorias de todo o tipo comercializadas na região; Fluxo de bens, que se refere ao consumo de mercadorias pela população do bairro; e Fluxo de serviços, ou seja, a presença de infra‐estrutura básica que possibilita a existência de comércio na região (fornecimento de água, luz, esgoto e internet). A presença do fluxo de serviços é notória em Heliópolis, visto que, por toda a extensão percorrida pela equipe, foi identificada a existência de abastecimento de água, rede de esgoto, fornecimento de energia elétrica e internet – sobretudo por meio dos serviços de lan‐house. Desse modo, não levaremos esse fator em consideração para caracterizar os diferentes tipos de via, visto que ele é uma variável comum a todas elas, não constituindo, assim, um diferencial na construção dessas categorias. O fluxo de insumos chega à região do Sacomã por três direções: pelo centro da cidade, onde há oferta de gêneros manufaturados; pela Marginal Pinheiros, onde há o maior entreposto de alimentos perecíveis da cidade; por meio de diversos estabelecimentos atacadistas localizados em pontos de grande circulação por toda a cidade. O fluxo de bens, por sua vez, conforme nossas observações iniciais, não apresenta uma relação direta de distribuição entre NODOS (tido como fornecedores) e MCC (tidos como seus compradores) identificados nesta pesquisa – como se acreditou a princípio. Dito de outro modo, a maior parte dos comerciantes presentes nos três tipos de MCC pesquisados, realiza suas compras em NODOS situados fora do bairro do Ipiranga (com exceção para a presença de um importante distribuidor atacadista de produtos majoritariamente não perecíveis no NODO Silva Bueno). Em conversas com comerciantes da região, constatamos que a aquisição de eletrônicos, bijuterias e roupas para serem vendidos em Heliópolis exige um deslocamento dos comerciantes para bairros do centro da cidade tradicionalmente ligados a esses tipos de mercadoria, sendo eles, respectivamente, Santa Ifigênia, Sé, Brás e Bom Retiro. De forma a garantir uma boa margem de lucro e a comercialização de alimentos perecíveis (frutas, legumes e verduras principalmente), os vendedores deste gênero de mercadoria deslocam‐se até o CEAGESP (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), localizado no bairro da Vila Leopoldina, cujo acesso se dá por grandes vias expressas – como a Tancredo Neves e a Marginal Pinheiros. Por fim, para a venda de produtos não perecíveis de enorme variedade, o comerciante de Heliópolis, como o de quase toda a região de São Paulo, obtém um preço competitivo nas redes atacadistas como Makro, Assai, Roldão e Sam's Club, entre outros – ou diretamente com os fabricantes. Existe uma filial do Atacadista Roldão no NODO Silva Bueno, na Rua Manifesto, que representa um ponto de distribuição deste tipo de mercadoria para Heliópolis. E, assim, as mercadorias dessa forma adquiridas se dirigem aos NODOS e MCC identificados na pesquisa. O fluxo de mercadorias se dá por três tipos de vias: as do tipo principal, secundária e terciária.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 73
LIVRO 2 As vias principais se caracterizam por uma forte ocorrência dos fluxos listados acima – possibilitada, sobretudo, por suas estruturas viárias que comportam um tráfego intenso de mercadorias e pessoas. Identificamos como vias principais as seguintes ruas e avenidas: Estrada das Lágrimas, Silva Bueno, Guido Alberti, Tancredo Neves e Marginal Tietê. A Estrada das Lágrimas possibilita a circulação de mercadorias dos centros de distribuição para os MCC, constituindo‐se em um importante NODO na região. Além disso, essa via apresenta um significativo fluxo de bens, visto possuir uma intensa circulação de consumidores diariamente. A Silva Bueno é uma importante via da região que articula Heliópolis ao restante do bairro do Ipiranga; também ali se encontra um importante ponto de distribuição de mercadorias por atacado, como citado anteriormente. As Avenidas Guido Alberti e Tancredo Neves são vias de acesso, respectivamente, para a Avenida do Estado, situada na região central da cidade, e à Marginal Pinheiros que, por sua vez, dá acesso ao CEAGESP. As vias secundárias apresentam fluxos de insumos e bens que dão suporte ao escoamento de mercadorias vindas das vias principais, sem, no entanto, equiparar‐se às primeiras no tocante ao volume desses fluxos. Estas vias cumprem uma função de dinamizadoras do comércio local e circulação de moradores no interior da favela de Heliópolis, sendo, portanto, ruas onde se encontra uma concentração significativa de estabelecimentos comerciais. São elas: Rua Coronel Silva Castro, Rua Cônego Xavier, Rua da Mina, Rua da Alegria, Estrada de São João Clímaco, Rua Social e Rua Florestal. As vias terciárias apresentam um menor fluxo de insumos e bens, sendo basicamente ruas de caráter residencial e de circulação de pessoas. A maior parte das ruas de Heliópolis apresenta esse padrão. Alguns exemplos são: Rua da União, Rua das Gertrudes, Rua CopaRio (antiga Viracopos) e Rua Primavera.
GÊNERO E COMÉRCIO EM HELIÓPOLIS Dentre os tipos de estabelecimento comercial criados para o mapeamento dessa atividade em Heliópolis, identificamos três categorias de comércio associadas ao gênero dos consumidores: comércios voltados majoritariamente ao público feminino, aqueles voltados majoritariamente ao público masculino e os de caráter misto. De acordo com essas categorias, identificamos quinze tipos de comércios voltados para o público feminino: armarinhos, artigos de festa, avícolas, bijuterias, brechós, costureira, lojas de cortina e tapeçaria, manicure e pedicure, lojas de material de limpeza, mercadinhos, padarias, petshops, quitandas, lojas de roupas infantis, femininas e mistas, salões de cabeleireiros femininos. Os tipos de comércio predominantemente masculino são dez: assistência técnica, bares, distribuidores de bebida e gás, lava‐ rápido, loja de Autopeças, loja de material de construção, mecânico, posto de gasolina, loja de roupa masculina e salão de cabeleireiro masculino. Os estabelecimentos considerados mistos são: açougue, loja de artigos religiosos, agências bancárias, loja de calçados, casas com produtos do Norte, chaveiro, farmácia, lan‐house, lanchonete, locadora, loja de móveis, ótica, papelaria, pizzaria, ponto de venda de passagem de ônibus, restaurante e supermercado. A primeira observação que pode ser feita em relação ao consumo e busca de serviços por parte de homens e mulheres é acerca de sua finalidade. Observa‐se que a atividade que reúne a população masculina é constituída principalmente do comércio automobilístico; enquanto no caso feminino, os produtos tipicamente voltados para a estética (roupas, acessórios, cabeleireiro e manicure). Ainda assim, há uma quantidade considerável de salões de cabeleireiro, ou barbearias, frequentadas apenas por homens. Estes locais não são frequentados por homens e mulheres concomitantemente, e sim por um ou outro, tendo geralmente um público‐alvo muito específico – o que é explicitado no aspecto físico do estabelecimento: sóbrio, no caso dos salões voltados para homens; e com muitos cartazes publicitários e decoração convidativa (e muitas vezes bem coloridas) no caso dos salões voltados ao público feminino.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 74
LIVRO 2 Distribuição dos tipos de estabelecimentos comerciais segundo o genero dos consumidores nos MCC
MCC
MCC
MCC Hosp
MCC
Conego
Florestal
Heliópolis
Alegria
MCC Taylor
MCC Mina
Total
Feminino
Armarinho
2
0
1
0
0
1
4
Bijuteria
2
2
0
0
0
3
7
Costura
2
1
0
3
0
2
8
Mercado
95
23
19
8
16
4
25
Roupa fem., inf.
Mista
6
5
3
13
0
8
35
Saloes de
Cabeleireiro
10
8
4
5
1
12
40
Subtotal:
45
35
16
37
5
51
189
Masculino
Assist. técnica
eletrodomésticos
6
3
0
2
0
4
15
Bares
87
16
10
10
20
2
29
Material de
construgao
1
2
2
2
0
2
9
Mecanica
9
1
1
1
0
0
12
Roupa Masculina
0
0
0
0
0
1
1
Saloes de
Cabeleireiro
7
4
1
3
1
6
22
Subtotal
39
20
14
28
3
42
146
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 75
LIVRO 2 Distribuiçao dos tipos de estabelecimentos comerciais segundo o gènero dos consumidores nos NODOS
NO Estrada
NO Sáo Joáo
NO Silva
das Lágrimas
Clímaco
Bueno
Total
Feminino
Armarinho
0
0
1
1
Bijuteria
1
1
8
10
Costura
2
2
0
4
Mercado
19
11
9
39
Roupa inf. fem. mista
12
23
15
50
Salao de Cabeleireiro
16
3
3
22
Subtotal:
50
40
36
126
Masculino
Assist. técnica
eletrodomésticos
11
1
0
12
Bares
13
3
2
18
Material de construçao
9
1
0
10
Mecánica
10
7
2
19
Roupa Masculina
1
2
4
7
Salao de Cabeleireiro
7
2
0
9
Subtotal
51
16
8
75
FORMALIDADE X INFORM ALIDADE – UMA BREVE INTRODUÇÃO Ao se analisar os estabelecimentos observados nos MCC e NODOS identificados na região de Heliópolis, é possível estabelecer um padrão em relação ao tipo de comércio e serviços oferecidos nestas diferentes configurações econômicas. Algumas atividades econômicas são predominantes nos MCC, e outras – que são ali ausentes – aparecem com frequência nos NODOS. Nos MCC existem majoritariamente bares, mercadinhos, quitandas, salões de cabeleireiro, venda de material de limpeza, serviços de costura, manicure e igrejas evangélicas. Por outro lado, nos NODOS encontram‐se tipos distintos de comércio, mais raramente encontrados dentro de Heliópolis, entre eles: hipermercados, floriculturas, óticas, agências bancárias, lotéricas, postos de gasolina, farmácias, lojas de móveis, lojas especializadas em sapatos, roupas femininas ou roupas masculinas, serviços de despachante, assistência de informática e dentistas. Propondo uma reflexão sobre o caráter dessas atividades, o mesmo pode ser associado a uma linha que separa o comércio formal do informal.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 76
LIVRO 2 Muitos dos comércios presentes nos NODOS próximos à Heliópolis não podem ser estabelecidos sem a devida certificação e/ou estrutura física do estabelecimento, diferentemente das atividades encontradas em qualquer dos MCC dentro de Heliópolis – muitas delas, realizadas artesanalmente (como no caso da costura), ou improvisadas em pequenas portas em frente às casas. Traçar um panorama que mostre o desenvolvimento do comércio formal e informal dentro e fora de Heliópolis, bem como sua articulação, será tarefa do próximo capítulo, quando o trabalho de campo trará informações mais contundentes para uma melhor elaboraçao destes apontamentos. Figura 2 ‐ Neste mapa ilustramos nossa hipótese através dos círculos aí sinalizados, onde o grau de pessoalidade e de importância é ressaltado pela cor vermelha.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 77
LIVRO 2
MICROCENTROS COMERCIAIS COMPOSTOS (MCC) / NODOS
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 78
LIVRO 2
Introdução Para o presente capítulo do relatório foram elaboramos os seguintes documentos: o texto que desenvolve os dezenove tópicos da metodologia do IMR, um mapa com a marcação dos 508 estabelecimentos comerciais pesquisados nos MCC de Heliópolis e uma tabulação dos mesmos dados, o que nos permite analisar a distribuição dos níveis de formalidade e informalidade em cada MCC (ou mesmo em cada rua, quando preciso) e sua relação com os tipos de estabelecimentos (alimentação, vestuário, construção, serviços, acesso à internet). A consulta simultânea desses três documentos permite uma visão completa sobre os tópicos que tratam da formalidade e informalidade dos comércios, as possíveis influências ou não dos NODOS sobre os MCC, e as principais vias de circulação e concentração de comércio na favela de Heliópolis. Os demais tópicos, como a relação entre vizinhança e comerciantes, bem como a prática do fiado e outras espécies de sociabilidade estarão descritas e analisadas no corpo do texto. *** Primeiramente, é preciso observar que Heliópolis é uma favela em processo de urbanização, transitando na fronteira favela‐bairro. No discurso da associação de moradores, Heliópolis é um bairro, um “bairro educador”. Apesar de hoje apresentar uma considerável infra‐estrutura urbana, casas de alvenaria com um melhor padrão de construção, acesso a bens e serviços e muitas vias carroçáveis; a marca da favela ainda se faz presente com a ocupação irregular, as construções aglomeradas e de má qualidade e até mesmo barracos. Por transitar entre um mundo e outro, é impraticável pensar na distinção centro/periferia para Heliópolis – entendendo‐se a periferia como um local de carência e ausência em relação ao centro. Tal situação, considerada atípica quando se pensa no quadro geral de favelas e periferia, engendra igualmente um contexto específico para a construção dos conceitos de formalidade e informalidade, que serão aqui tratados de acordo com este contexto peculiar.
MCC E SUAS PRESENÇAS: UMA SUGESTÃO DE OUTRO OLHAR Partindo da discussão proposta na introdução acima, ou seja, de que a distinção centro/periferia não se aplica à análise de Heliópolis em relação às áreas centrais da cidade de São Paulo; acreditamos que, igualmente, esta distinção não se aplica à relação que se estabelece entre os NODOS e os MCC de Heliópolis – tendo em vista, mais uma vez, que estes conceitos estão ligados à noções de carência, ausências de diversos tipos, desorganização política e econômica (características, além de tudo, que contribuem para uma interpretação negativa e estigmatizada da realidade social das camadas populares). Desse modo, propõe‐se uma caracterização de NODOS e MCC que incorpore as observações etnográficas construídas durante o trabalho de campo e que tenha como base não a relação de ausência (periferia) e presença (centro), e sim, presenças, no plural, de diferentes traços que caracterizam um grupo e outro. A seguir serão apresentados os traços constitutivos dos NODOS e MCC, ou seja, as presenças que definem estes aglomerados comerciais.
NODOS
Venda de produtos com maior valor agregado, tais como: artigos eletrônicos, móveis, óticas, produtos especializados, entre outros; Presença de melhor estrutura física, que muda toda a configuração do comércio, permitindo que este possa vir a ser um centro distribuidor de produtos; Presença de agências bancárias e casas lotéricas, locais de saque de dinheiro e realização de pagamentos de contas; Região com maior fluxo de pessoas e que interliga áreas distintas da cidade.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 79
LIVRO 2
MCC
Venda de produtos simples, que também são encontrados nos NODOS – como roupas e alimentos perecíveis e não‐perecíveis; porém, com um maior preço em relação aos preços praticados nos NODOS (ver tabela 1), ainda que estes sejam adquiridos em grandes centros de distribuição na zona central da cidade, ou diretamente com os fornecedores dos produtos – segundo depoimento de comerciantes entrevistados pelos pesquisadores; Presença de estruturas físicas mais precárias ou marcadas pela improvisação do espaço de comércio (como pequenas garagens de carros transformadas em espaço de comércio); Ausência de instituições de pagamentos como agências bancárias e lotéricas (nesse sentido, a única ausência observada); Maior presença de comércios combinados, ou seja, a venda simultânea de produtos/serviços não tipicamente associados em comércios de regiões centrais da cidade, tais como bares que também vendem roupas femininas, salões de cabeleireiro que também vendem roupas e bijuterias.
Essa foi uma alternativa encontrada para refinar o par conceitual centro‐periferia proposto inicialmente; visto que, não acreditamos que ele se apresente como uma ferramenta de interpretação adequada à realidade de Heliópolis.
FORMALIDADE X INFORM ALIDADE Heliópolis é uma área que ainda se encontra em processo de regularização fundiária. A obtenção de documentos que formalizam os estabelecimentos comerciais depende de escrituras que comprovem a posse regular dos terrenos; deste modo, o acesso, por exemplo, ao CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) é muito raro em Heliópolis. Sendo assim, cunhamos uma categoria que desse conta da realidade encontrada na região estudada. Partimos de dois critérios para a observância da formalidade de um estabelecimento: sua conformação estrutural e jurídica. Assim, as categorias que indicam formalidade total seriam a posse dos documentos referentes à regularização do estabelecimento comercial e a estrutura física que pode ser inferida a partir da boa aparência do comércio (iluminação, fachada, acabamento e sinalização), bem como pela presença de meios eletrônicos de pagamento (cartões de crédito e débito) e sistemas de recarga de telefonia e transporte (Bilhete Único). Estes últimos elementos seriam indicadores de um reconhecimento da formalidade do estabelecimento por parte das empresas que disponibilizam estes serviços. Durante o trabalho de campo, os pesquisadores conheceram V. e H., dois representantes de importantes empresas de alimentação que distribuem seus produtos em Heliópolis (eles não serão identificados, bem como as empresas, por questões de sigilo da pesquisa). Eles esclareceram algumas importantes questões referentes ao fornecimento de produtos para os comércios de Heliópolis, bem como a in/formalidade destes. Ao longo de uma entrevista com os dois comerciantes, H. Caminhou com os pesquisadores por Heliópolis e os apresentou a diversos outros comerciantes da favela que foram seus clientes durante muito tempo. A experiência permitiu aos pesquisadores perceber o tipo de dinâmica que se estabelece entre fornecedores e comerciantes em Heliópolis. Boa parte dessa dinâmica é marcada pela circulação porta a porta. Os representantes (ou distribuidores) conhecem os clientes pessoalmente e desenvolvem com eles uma relação de proximidade e sociabilidade não muito recorrente em bairros onde atuam.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 80
LIVRO 2 A sociabilidade seria, segundo eles, “uma característica de Heliópolis”. É a circulação desses representantes por ruas e vielas de Heliópolis que marca a distribuição de seus produtos na comunidade. V. trabalha há dois anos na região e atende cerca de 80 mercadinhos de Heliópolis, para os quais fornece produtos de uma empresa de alimentos não‐perecíveis. Ele explicou que não é necessário nenhum tipo de documentação para que o estabelecimento receba os produtos direto do fornecedor; é feito apenas um cadastro da pessoa física responsável pelo estabelecimento, que pode ser desde um fundo de garagem até um imóvel destinado ao comércio. Ele afirma que a empresa para a qual trabalha já atua na área há oito anos, e que as empresas tem muito interesse em fazer este tipo de negócio – afinal, existem potencialmente mais de 125 mil consumidores em Heliópolis. Por isso, segundo ele, “as empresas facilitam as condições para compra de seus produtos”. V. estima que a entrada de empresas em Heliópolis deu‐se por volta do ano 2000; atualmente, os próprios representantes, como ele, buscam estabelecimentos que estejam interessados em revender seus produtos. V. também relata que as transações entre comerciantes locais e a empresa se dão através de boletos bancários (eles não utilizam dinheiro por questões de segurança, embora admitam que a favela seja um lugar seguro), que devem ser pagos mensalmente, e há uma quantidade mínima de produtos que deve ser adquirida (no caso de sua empresa, o equivalente a R$150,00 em mercadorias). Ele afirma nunca ter tido casos de inadimplência, apenas de atraso no pagamento do boleto no caso de insuficiência de vendas e, portanto, falta de recursos para quitar o pagamento; no entanto, reitera que as dívidas sempre são pagas, ainda que “com um mês ou dois de atraso”. H. está hoje desempregado, mas trabalhou em Heliópolis durante mais de 20 anos e conhece muitos comércios na região, sendo muito popular entre os comerciantes que durante anos realizaram encomendas de mercadorias com ele. Segundo H., apesar de algumas empresas firmarem este tipo de acordo com os comerciantes de Heliópolis, dificilmente estes conseguem comprar os produtos por um preço abaixo daquele de mercado. No caso de redes de supermercado, por exemplo, quanto maior a quantidade de mercadorias adquiridas, menor o preço praticado pelos fornecedores, deste modo os grandes compradores obtém as mesmas mercadorias que os pequenos comerciantes, porém a preços mais baixos; isto não acontece nos mercadinhos de Heliópolis, que não escoam quantidade suficiente de produtos para adquiri‐los nesta proporção. Assim, os preços dos mercadinhos são maiores que os encontrados em redes de supermercado presentes nos NODOS. É preciso fazer uma ressalva em relação aos preços encontrados no MCC Alegria, onde foram identificados os menores preços, tanto em relação aos outros MCC quanto em relação aos NODOS mais próximos de Heliópolis. Isto não refuta nossa proposição, uma vez que dois dos três mercados visitados no MCC Alegria fazem parte de uma rede, a Rede Apoio. Sendo assim, estes obtém os produtos com os mesmos preços que uma rede maior de supermercados, possibilitando a competitividade de seus preços. Quanto à obtenção do CNPJ, os pesquisadores souberam, por meio de seus dois citados informantes, que ela é de fato muito difícil para os comerciantes de Heliópolis. Um dono de mercadinho que os pesquisadores conheceram possui CNPJ; entretanto, para que ele conseguisse esta regulamentação, foi necessário que um contador “desse um jeitinho” com a papelada para que ele pudesse abrir a firma. Apesar de haver uma vantagem em comprar mercadorias no mercado atacadista a fim de obter preços mais baratos, ela não é sempre necessária para o lucro do comércio, muito menos viável – assim, são poucos os comércios de Heliópolis que possuem documentação – e, no caso de possuírem, esta não é exatamente regular.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 81
LIVRO 2 DINÂMICA DO COMÉRCIO LOCAL Foram contabilizados 508 estabelecimentos comerciais em Heliópolis, distribuídos em 6 MCC. Cerca de um terço dos estabelecimentos (34%) é considerado intermediário, ou seja, se situam entre a informalidade e a formalidade; o restante dos estabelecimentos (64%) é considerado informal pela equipe, pelas características descritas acima. É interessante observar que a distribuição dos tipos de comércio varia em cada MCC: no Hospital Heliópolis e na Florestal, há um equilíbrio entre estabelecimentos informais e intermediários; na Comandante Taylor, há predominância do comércio intermediário, enquanto nos MCC Mina, Alegria e Cônego (mais densos) há predominância do comércio informal. Apesar de os MCC mais próximos ao NODO Estrada das Lágrimas serem Cônego, Mina e Florestal, não há indícios de que haja uma irradiação da formalidade do comércio associada ao NODO; o MCC Mina, onde se localiza a única agência bancária da região e a UNAS, apresenta 98 estabelecimentos informais contra apenas 32 intermediários. Elaborou‐se uma breve descrição de cada MCC a partir do trabalho de campo, em função de suas especificidades em termos de comércio, localização e moradia.
MCC TAYLOR Esta região, distante do NODO Estrada das Lágrimas e não muito próxima do NODO Silva Bueno, se caracteriza atualmente pela presença de diversas intervenções urbanísticas estatais, como a construção de um grande conjunto habitacional, e o congelamento de algumas glebas para intervenção futura (as glebas – foto ao lado – sob a denominação “congeladas” não podem ter suas casas alteradas, reformadas ou expandidas por seus proprietários sem a autorização prévia da Prefeitura). Essas muitas áreas são acompanhadas por uma baixa densidade de estabelecimentos comerciais, apenas vinte e quatro no trecho que vai da Rua Resende Costa até Rua Pilões. Ainda que pouco densa em termos comerciais, essa área apresenta um número considerável de comércios intermediários (15 dos 24 existentes), uma parte deles são restaurantes de tipo intermediário. Mesmo sendo uma área de circulação viária intensa e distante dos NODOS mais próximos, trata‐se de uma região com uma concentração de comércio do tipo intermediário maior do que a de tipo informal. Esse MCC terciário, ao contrário do que se poderia esperar, não apresenta perfil de predominância informal.
MCC CÔNEGO XAVIER Esta é uma região bem próxima ao NODO Estrada das Lágrimas, porém com uma grande concentração de comércios do tipo informal. O primeiro quarteirão da Rua Cônego Xavier – aquele que sai da Estrada das Lágrimas e segue em direção à Avenida Comandante Delamare – concentra 16 dos 42 comércios intermediários desse MCC e 26 dos 71 comércios informais. A quadra seguinte, apresenta 18 comércios intermediários (do total de 42) e 22 dos informais; essas duas quadras apresentam um perfil parecido e próximo do que se espera de uma região próxima a um NODO, dada a importante concentração de comércios intermediários (34 dos 42 existentes) ainda que haja muito mais do tipo informal, que é, de modo geral, majoritário em toda Heliópolis. A rua Mosenhor Pizzaro, mais distante da Estrada das Lágrimas, apresenta o padrão de uma área distante dos centros comerciais mais importantes concentrando apenas 04 dos 42 estabelecimentos intermediários existentes neste MCC.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 82
LIVRO 2
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
NODO ESTRADA DAS LAGRIMAS
6
1,95
NODO SÃO JOAO CLIMACO
5
2,00
MCC MINA
4
1,99
MCC ALEGRIA
3
2,15
MCC HOSPITAL
2
1,75
MCC FLORESTAL
1
1,92
2,15
2,25
5,26
5,50
1,96
1,99
2,15
2,50
5,60
2,00
1,94 4,90 5,29 .
3,60
2,29
.
2,50
4,69
2,20
2,06 6,50 6,05 2,70
3,59
2,50
.
2,45
4,99
1,95 1,91 6,00 5,24 2,80
3,49
2,30
3,75
2,22
3,42
2,56
3,59
.
7,60
5,04
7,99
3,62 .
6,90
.
8,90
4,23 .
8,00
3,25
8,00
3,42 .
6,00
3,60
2,64
5,98
1,90
2,69
.
5,75
1,89
1,99
3,50
5,90
1,99
1,89 4,75 4,73 2,55 2,34 3,49
7,50
4,75
1,69
2,49
3,29
.
4,99
2,00
2,45
4,65
3,42 .
4,65
2,00
1,99 4,90 5,03 2,49 2,48 3,60
4,79
2,00
2,50
3,50
3,91
4,89
1,99
2,35
3,85
5,40
2,10
2,03 6,00 5,63 2,49 2,47 3,90 3,80
5,90
2,00
3,65
2,59
5,00
2,00
MCC CONEGO XAVIER
MEDIA E COMPARACAO DE PRECOS DE CINCO PRODUTOS ENTRE SEIS AGLOMERADOS COMERCIALES DE HELIOPOLIS Regioes Mercados Leite (1 litro) ‐ Salé, Italac, ou Bom Gosto Media no MCC/NODO (R$) Café Pilao (500 grs.) Media no MCC/NODO (R$) Oleo de Soja (900 ml.) ‐ Soya ou Liza Media no MCC/NODO (R$) Papel Higiénico (8 rolos) ‐ Personal ou Sublime Media no MCC/NODO (R$)
9,99
7,49
8,00
7,90
20,90
6,99
8,00
20,97
.
6,75
22,90
6,5
9,99
20,00
7,99
7,49
22,37
7,5
7,33
20,90
Media no MCC/NODO (R$)
21,30
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line
Total no MCC/NODO (R$)
Havaianas (modelo tradicional ‐ preto e branco)
83
LIVRO 2
MCC HOSPITAL HELIÓPOLIS O MCC Hospital Heliópolis é o único MCC no qual o número de estabelecimentos informais e intermediários é praticamente igual. Acredita‐se tal fato à proximidade do Hospital Heliópolis – é nesse MCC que se localiza a única farmácia do interior de Heliópolis – e ao trânsito de sistemas de transporte que garante um fluxo de mediano à intenso na região. De todo modo, a densidade comercial é baixa: a pesquisa catalogou apenas 37 estabelecimentos em um trecho extenso. Quanto à essa baixa densidade comercial, é preciso lembrar que nesse trecho da Rua Coronel da Silva Castro, apenas uma das calçadas é ocupada por casas e comércios, visto que a outra pertence ao Hospital.
MCC FLORESTAL O MCC Florestal – localizado no meio da favela de Heliópolis – apresenta uma distribuição bem equilibrada dos dois tipos de comércio, ainda que metade desse MCC esteja bem próxima do NODO Estrada das Lágrimas (o que deveria significar uma maior presença de comércios mais próximos da formalidade). A região da Florestal é reconhecida pelos informantes V. e H. como um importante ponto comercial de Heliópolis; no entanto, essa região não apresenta grandes diferenças em relação às áreas mais distantes do NODO Estrada das Lágrimas. Sua importância é exatamente representar uma referência quando se pensa em comércio dentro de Heliópolis, ainda que não se trate de número ou formalidade; uma análise mais aprofundada, no entanto, mostrará que há muita diversidade no comércio deste MCC, razão que talvez explique a posição que ocupa no imaginário tanto de moradores quanto de comerciantes. Esse MCC revela que não parece haver, nesse caso, uma influência do NODO sobre o MCC no sentido de sua dinamização ou maior formalização.
MCC ALEGRIA Esse MCC, bem distante do NODO Estrada das Lágrimas, apresenta bastante estabelecimentos comerciais considerados informais (17,5% do total observado), mas sua distribuição não é equilibrada entre as ruas que compõem esse MCC. As ruas Primavera e Três de Maio, por sua vez, concentram bastante comércio e a divisão entre informais e intermediários é equilibrada. A Rua da Alegria concentra metade dos comércios intermediários existentes no MCC e, é ao fim dessa rua, nas proximidades da Avenida Delamare e do PAM (Posto de Atendimento Médico), que dez desses estabelecimentos se concentram. Tal configuração pode ser explicada talvez pela proximidade à essa instituição médica e à essa grande via urbanizada (embora não seja uma área com grande concentração de pedestres). O final da Rua da Alegria é também um dos acessos à favela e permanece uma área majoritariamente residencial.
MCC MINA O MCC Mina é sem dúvida o mais próximo aos NODOS Estrada das Lágrimas e Estrada São João Clímaco; entretanto, é a zona que mais apresenta incidência de comércio do tipo informal, concentrando 30% de todo o comércio desse tipo das áreas analisadas de Heliópolis. Ainda que se apresente como uma zona densamente comercial e o centro político e irradiador de desenvolvimento social de Heliópolis, isso não se reflete, de modo algum, no aumento do índice de formalidade de seus estabelecimentos. Este MCC concentra apenas 17,5% do comércio intermediário de Heliópolis, índice mais baixo do que aqueles dos MCC Cônego Xavier e Florestal, ambos com 23% do total da região. A concentração dos comércios informais se dá justamente em regiões próximas às instituições políticas da favela (incluindo uma agência de pequeno porte da Nossa Caixa) e regiões de trânsito intenso de moradores, como a primeira quadra da Rua da Mina saindo da Estrada das Lágrimas – onde se localiza a sede da UNAS, a quadra poliesportiva,
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 84
LIVRO 2 a Escola de Robótica, a Biblioteca. Há, nesse trecho específico, 21 estabelecimentos informais e 03 intermediários. No encontro das ruas da Mina, Paraíba, Copa Rio e início da Rua da Alegria, temos 15 estabelecimentos informais e 05 intermediários. Esse MCC terciário com uma rua de caráter primário também não valida o pressuposto de que áreas centrais e próximas aos NODOS apresentariam maior incidência de comércio intermediário (ou formal). Não é possível, como fica demonstrado, inferir que existam relações de dinamização, fornecimento e irradiação (sejam elas radial, evolutiva ou epicêntrica) de desenvolvimento sempre no sentido NODO‐ MCC, o que caracterizaria a relação centro‐periferia. Primeiramente, conforme descrito no capítulo anterior, o fornecimento de muitos dos gêneros de produtos comercializados nos MCC não provém dos NODOS, e sim, de entrepostos de distribuição da cidade de São Paulo, ou ainda de fornecedores que visitam os comerciantes em Heliópolis e realizam a entrega no próprio local. Áreas próximas aos NODOS – como, por exemplo, o MCC Mina, podem apresentar uma alta concentração de estabelecimentos informais. No caso da Rua da Mina, mesmo sendo considerada uma rua com características de MCC primário (dada sua elevada concentração de comércio, sua proximidade do NODO Estrada das Lágrimas e centro político de Heliópolis) sua 'centralidade' política e comercial não garante um maior nível de formalidade. Por outro lado, regiões distantes dos NODOS e com baixa densidade comercial, como a Rua Comandante Taylor ou o final da Rua da Alegria, apresentam uma Vista de São Caetano desde Heliópolis importante concentração de comércios formais (ou intermediários); o que, a princípio, contraria a relação de dinamização esperada entre áreas de MCC distantes dos NODOS. De qualquer maneira, é possível identificar, em alguns locais, o padrão esperado da dinamização NODO‐MCC: áreas próximas aos NODOS – como as Ruas 28 de março, Rua Castelo dos Sonhos e Rua Coronel Silva Castro – apresentam mais comércios formais, e áreas distantes, mais informais – como por exemplo as Ruas da Alegria e Barão do Rio da Prata. Considerando a relação entre comerciantes e consumidores como um traço que distingue NODOS e MCC, não observamos que o tipo de relação comercial entre atores realizado em NODOS (mais impessoal e formal) se observe nos MCC de forma gradual conforme a proximidade do MCC ao NODO – ou seja, a proximidade ao NODO não implica no estabelecimento de relações mais distanciadas entre comerciantes e consumidores, a partir da análise realizada nos MCC Mina, Florestal e Cônego. A análise do Mapa 1 da distribuição dos estabelecmentos intermediários/informais permite uma visão mais precisa dessa configuração tão particular em Heliópolis, visto que, a elaboração de tabelas, ainda que úteis, anulam as diferenças encontradas no decorrer de cada rua. Por exemplo, o MCC Alegria, quando identificado de modo geral, apresenta uma concentração de comércios informais elevada (72 estabelecimentos informais x 32 estabelecimentos intermediários); entretanto, o final da Rua da Alegria apresenta uma considerável concentração de comécios intermediários – a categoria observada mais próxima possível do comércio formal: 20 informais e 11 intermediários, ainda que sejam minoritários, são quase metade dos informais ali encontrados. Desse modo, é preciso não perder de vista as especificidades dessa distribuição quando analisarmos os dados mais gerais que serão aqui expostos.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 85
LIVRO 2
P R O C E S S O S D E U R B A N I Z A Ç Ã O E Á R E A S D I S TA N T E S D O S M C C Praticamente todas as ruas de Heliópolis apresentam algum tipo de comércio; as ruas adjacentes aos MCC não são diferentes. Deste modo, apesar de em menor quantidade, é possível encontrar estabelecimentos como bares, mercadinhos e salões de cabeleireiro em toda a região, bem como outros serviços tais como manicure e pedicure, costura e serralheria. Elegemos seis áreas em Heliópolis (Alegria, Cônego, Florestal, Hospital, Mina e Taylor) que concentram a atividade comercial da região como um todo; no entanto, a identificação e análise destes seis MCC não significam que nas ruas e vielas fora destes não exista comércio; isto apenas indica que os estabelecimentos destes locais que ficam ao redor dos MCC, possuem menor relevância em termos de circulação e porte em relação aos comércios dos MCC centrais. Existem comércios estabelecidos nas vielas de Heliópolis – vielas que estão diminuindo paulatinamente devido às desapropriações realizadas pela prefeitura, ou fechadas com cada vez mais freqüência pelos próprios moradores por questões de segurança, o que não as torna um local de trânsito. Porém, sua importância é relativamente marginal, se comparada aos comércios dos MCC, localizados em ruas mais largas, que, na maior parte das vezes, comportam o trânsito de veículos. Percorremos as áreas mais próximas ao terminal Sacomã, entre as glebas A e N. A região é conhecida como "Paquistão", onde a atuação do narcotráfico é forte. Além dos conjuntos habitacionais, há casas mais e menos rústicas, apesar de muitas ruas serem próximas à Estrada das Lágrimas e mesmo ao terminal Sacomã. Em termos de comércio, "Paquistão" não difere muito do observado na parte sul da favela (Sabesp). A outra região distante dos MCC percorrida é a que fica próxima ao limite sul da favela, área contígua ao terreno da Sabesp. Ali encontram‐se habitações um tanto precárias em algumas vias (havendo, no entanto, apenas um ou dois barracos de madeira); em vielas muito próximas, como a travessa Dois, encontram‐se casas maiores e com belas fachadas, além de haverem bons carros nas garagens (às vezes, mais de um carro por casa). Estas vielas, tanto com boas habitações quanto as precárias, estão localizadas nos arredores do MCC Mina. Tanto o Paquistão quanto a região acima descrita apresentam ruas pavimentadas e abastecimento de água e de luz, bem como esgoto. O tipo de comércio presente em ambas as áreas é predominantemente informal, sendo composto basicamente por bares, mercadinhos, salões de cabeleireiros e quitandas (havendo, eventualmente, outros tipos de comércio, como o de roupas). As duas zonas descritas são marginais em termos de concentração de comércio quando comparadas aos MCC; algumas das vielas também se conectam apenas a vias de acesso mais interiores da favela. No entanto, ambas as áreas são relativamente próximas ao NODO (no caso do Paquistão) e ao MCC Mina (no caso do terreno próximo à Sabesp); mas não é possível estabelecer um padrão para estes locais em termos de moradia. O observado é que, nestas zonas fora dos NODOS e MCC, há uma menor variedade de tipo de comércio, bem como a quase totalidade de estabelecimentos informais. Da mesma forma como não é observada a relação entre proximidade ao NODO e formalidade, não é possível estabelecer que há zonas marginalizadas – mais precárias – dentro de Heliópolis pela distância do NODO ou dos MCC. O MCC Mina é o que concentra mais estabelecimentos informais; entretanto, a presença de instituições que demonstram a intervenção de um projeto de urbanização de Heliópolis – como o Pólo Cultural, a Escola de Tecnologia (ETEC) e o Instituto Bacarelli – na região contígua (ao redor do extremo sul de Heliópolis), pode ter relação com as melhores condições de moradia encontradas em travessas próximas à R. União. Assim, antes de considerar uma relação direta entre MCC, formalidade e urbanização, é preciso levar em conta que há manifestações difusas destes aspectos pelas subáreas de Heliópolis, que não necessariamente estabelecem este tipo de relação direta.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 86
LIVRO 2 Assim, se por um lado os MCC com maior quantidade de comércio intermediário (em termos absolutos) são Taylor e Hospital – locais onde se observam, respectivamente, projetos de urbanização do PAC e a instituição hospitalar – por outro, o MCC Mina, apesar de cercado de evidências da penetração urbana em Heliópolis, apresenta altos índices de informalidade no comércio. As questões que referem‐se às vias de acesso pavimentadas não cabem para o caso de Heliópolis, visto que todas as ruas percorridas estavam pavimentadas. A distribuição do comércio não pode ser diretamente associada à condição física da rua, mas talvez seja possível associar a concentração comercial dos MCC às vias centrais que unem o bairro a NODOS (como a Estrada das Lágrimas) e ao acesso a serviços de transporte (como Cônego e Hospital). No entanto, as vias de trânsito rápido – como a Avenida Delamare e a Rua Comandante Taylor – não apresentam grandes concentrações de comércio apesar das condições físicas favoráveis (largura, pavimentação, iluminação, etc). Nossa hipótese é a de que a concentração de comércio dentro de Heliópolis localiza‐se em ruas que comportam o trânsito de veículos, associadas a um maior fluxo de pessoas, mas que no entanto são de trânsito mais lento, ou seja, não são vias de circulação intensa de automóveis e ônibus. Observa‐se, assim, que a característica comum entre as concentrações de comércio dentro de Heliópolis é o fato de estarem localizadas em ruas largas, e não em vielas. Em Heliópolis, todas as vias de acesso são adequadas: não há grandes escadarias ou declives que dificultam o trânsito de pessoas. Além disso, as ruas são pavimentadas e todo o esgoto é canalizado. Assim, o fluxo de moradores não é influenciado de forma negativa por aspectos físicos da região. A única diferença observada entre as vias de passagem da Heliópolis é a largura destas, que possibilita ou não o trânsito de carros e ônibus, com maior ou menor intensidade. No caso das vielas, o trânsito de veículos (exceto motos) é impraticável; estas, entretanto, não representam áreas de fluxo de comércio, sendo áreas majoritariamente residenciais. A partir desta constatação é possível associar as vias de fluxo mais intenso de pessoas e serviços, facilitados pelas grandes vias, com uma concentração da atividade comercial – atentando para o fato de esta afirmação não excluir a atividade comercial que acontece nas vielas. Neste sentido, pode‐se pensar em uma relação mais direta entre urbanização (em termos de pavimentação de ruas e acesso) e atividade comercial; para além disso, as afirmações que apontam para o mesmo sentido já são mais escorregadias, tendo em vista o que já foi exposto: nunca é demais reafirmar que Heliópolis está atualmente passando por grandes transformações urbanas, com as intervenções dos governos municipal e federal. O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) do governo está em fase de implementação, com construções de conjuntos habitacionais já em andamento. É preciso compreender os elementos que compõem um quadro de “urbanização” em Heliópolis de forma menos generalizada, pois aqui não se trata de estabelecer paralelos diretos entre a urbanização e a formalização do comércio, e sim, de entender de que forma diferentes processos e intervenções de urbanização (observando inclusive de que forma estes se dão, se através de programas estatais, reivindicações dos moradores ou iniciativa privada) se relacionam com a dinâmica do comércio local. Este tipo de apreensão da realidade social exige, certamente, uma inserção mais duradoura no campo, que permita acompanhar o desenvolvimento destes projetos e seus desdobramentos, acentuando o caráter preliminar da análise. Por exemplo, a intervenção estatal para construção de moradias, que é acompanhada pela desapropriação de casas, mudou significativamente a questão imobiliária em Heliópolis. O governo remove famílias de suas antigas casas e passa a pagar‐lhes o aluguel para uma nova moradia até que os conjuntos habitacionais estejam prontos; de partida, é disponibilizado às famílias o equivalente a seis meses de aluguel adiantados junto ao cadastro realizado quando dada a remoção das famílias, sendo assegurada a entrega de um apartamento por família (ainda que em muitos casos haja mais de uma família morando na mesma casa). Como desdobramento dessa política pública, os proprietários de imóveis na região se aproveitaram do fato de a prefeitura entregar um cheque de seis meses adiantados de aluguel e elevaram exponencialmente os preços dos aluguéis, além de muitos terem se recusado a alugar para aqueles que não fossem os beneficiários da prefeitura, a fim de garantirem os seis meses de aluguel.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 87
LIVRO 2 Algumas famílias também se aproveitaram das condições oferecidas pelo governo para as famílias removidas e ocuparam as casas nas áreas de desapropriação após a saída dos moradores, alegando posteriormente sempre terem morado ali para conseguir o cheque referente ao aluguel e um apartamento nos conjuntos habitacionais. Para evitar esto, a prefeitura demoliu as casas de onde as famílias foram removidas e abandonou o entulho no próprio local a fim de inibir a construção de casas e o estabelecimento de novas famílias – o que gera outras contrapartidas que interferem diretamente no cotidiano das famílias e estabelecimentos remanescentes, pela concentração de lixo e esgoto. Este exemplo apenas serve para ilustrar o fato de que quando se pensa em “urbanização”, deve‐se pensar que estamos falando de um processo, e por isso, de um fator contínuo, que gera constante transformação no tempo, e de “resultados” mais dificilmente apreendidos, bem como para o fato de que não é possível reduzir a “urbanização” a seus indícios concretos (como pavimentação de ruas, fornecimento de água e luz, acesso à rede de esgoto e internet, etc). É preciso identificar o quanto a existência de alguns comércios considerados por NODOs como intermediários (que apresentam características de formalidade) está associada a este processo de urbanização, bem como sua relação com um aumento de poder aquisitivo de parte da população aqui residente.
DINÂMICA FAMÍLIAR Em Heliópolis, o ponto central de encontro dos pesquisadores com os moradores foi a Rádio Comunitária, ambiente frequentado majoritariamente por homens, o que tornou mais lento o contato da pesquisa com mulheres. Mulheres casadas costumam circular em ambientes privados e de trabalho, não estando, deste modo, acessíveis por muitas horas do dia como os homens, tampouco fazendo parte dos circuitos públicos masculinos. O consumo nos MCC não é muito intenso – muitos dos nossos informantes consomem fora de Heliópolis, sobretudo itens de mercados – alimentação. O aspecto forte da economia dos MCC parece ser a rede de serviços: salões de cabeleireiro, manicure, padaria, serralheria, e outros. Para obtermos informações sobre a circulação do dinheiro famíliar entabulamos conversações iniciais com alguns moradores da região. Alguns desses moradores foram escolhidos como nossos informantes regulares a partir dessa etapa, e outros, como ponto de partida para escolhermos outros moradores.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 88
LIVRO 2
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 89
LIVRO 2 O morador Z. nos relata que realiza compras sempre que possível na Estrada das Lágrimas, devido ao preço mais competitivo e às ofertas ali existentes, especialmente de periodicidade semanal e mensal, como a compra de alimentos. Sua compra de alimentos obedece três lógicas: a do preço mais baixo e da comodidade (compras acima de cinquenta reais são entregues em casa); a da praticidade (quando não está disposto a se deslocar até a Estrada das Lágrimas, ele realiza a compra de itens individuais em pequenos mercados no interior de Heliópolis); e a da disponibilidade de dinheiro (quando não possui dinheiro disponível, Z. "pendura" suas compras em mercados próximos à sua casa, ou seja, faz uso da prática do fiado). Na Silva Bueno, ele costuma buscar artigos de vestuário, que ele afirma serem ali muito mais baratos que no interior de Heliópolis. A informante F. vive com seu marido e quatro filhos – três moças e um menino, mais novo. Atualmente, nem ela nem o marido trabalham; assim, a renda da casa depende das três filhas mais velhas, que trabalham para sustentar a casa. Segundo F., as compras maiores (de supermercado, roupas e móveis eventualmente) são realizadas no NODO São João Clímaco, próximo de sua residência na gleba K, entre os MCC Mina e Alegria. Algumas compras cotidianas (bolachas, doces, etc) são realizadas na Estrada das Lágrimas, pelas filhas, em seu caminho de volta do trabalho, em lugares como o “Shopping do Real” (estabelecimento onde há uma imensa variedade de mercadorias vendidas por R$1,00). Há dois tipos de compras menores que F. realiza periodicamente: vai à feira de rua semanalmente (onde são vendidos legumes, frutas e verduras frescos) em uma travessa da Estrada das Lágrimas no lado oposto à Heliópolis; e frequenta a padaria diariamente, onde compra pão e cigarros. Ela relata que inicialmente comprava pães em uma padaria na rua de sua casa; no entanto, o pão desta padaria ficou “menos saboroso”, e ela passou a freqüentar a padaria da esquina, a “do Arnaldo”, como ela chama, por onde passa diariamente a caminho da rádio na qual realiza trabalho voluntário. Nota‐se que os moradores, quando perguntados sobre o comércio, referem‐se geralmente a locais de fora de Heliópolis, ainda que existam estabelecimentos ali dentro em abundância, e dos mais variados tipos. Ainda que haja uma justificativa para não consumir ali dentro (conforme relato de Z.), a existência e permanência de aproximadamente 150 mercadinhos demonstram que acontecem vendas suficientes para mantê‐los abertos. Segundo nosso informantes V., (representante de uma marca de alimentos), as pessoas preferem consumir ali dentro. Como explicar a discrepância entre os relatos dos informantes? No mapeamento desta pesquisa foram encontrados 75 mercadinhos abertos, concentrados nos MCC, que representam cerca de metade do número total de mercadinhos da região. Ainda que contemos com um total de 150 estabelecimentos deste tipo, que comercializam desde alimentos até itens de limpeza, farmácia e vestuário, estes estabelecimentos não dariam conta de atender à população total de Heliópolis, estimada atualmente em 180 mil habitantes (o último censo, de 2005, aponta para 125 mil habitantes, conforme relatório). Assim, é possível presumir que a “compra do mês” (ou seja, os itens básicos para o abastecimento da casa durante um mês) seja realizada fora de Heliópolis, restando ao mercadinho a função de complementar estas compras quando algum dos itens acaba antes do tempo, e/ou são comprados itens extras ao longo do mês. Além do número insuficiente de mercadinhos, estes também não possuem estrutura física ou estoque para abastecer toda a população de Heliópolis caso os moradores realizassem as “compras do mês” ali, além do fato de seus preços serem pouco competitivos em relação aos praticados por supermercados maiores, encontrados nos NODOS mais próximos (como a Estrada das Lágrimas, São João Clímaco ou Silva Bueno, dependendo da gleba). Além disso, as conversas realizadas com os informantes até o momento revelam que eles não consideram este tipo de compra corriqueira – quando se tratam de pequenas quantias de dinheiro, como é o caso da compra de pão, leite, sabão, etc – como um gasto propriamente dito. Ou seja, quando questionados sobre seus hábitos de consumo, raramente são consideradas em suas respostas este tipo de compra, que foi observado por NODOS posteriormente.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 90
LIVRO 2 Um possível indicador do aumento do poder aquisitivo dos moradores de Heliópolis é a instalação da rede de cartões de crédito/débito em estabelecimentos comerciais de MCC. Também é possível verificar a hipótese do aumento do poder aquisitivo pela quantidade de estabelecimentos comerciais de gêneros secundários (roupas, acessórios e brinquedos) nos MCC, bem como junto aos informantes. Uma hipótese que pode ser averiguada cruzando os anos de moradia em Heliópolis e os gastos com compras secundárias é a de que os moradores já estabelecidos há mais tempo possuem um maior poder de compra; isto porque já se estabeleceram no local e conseguiram construir suas casas de forma razoavelmente satisfatória. Os gastos com a construção e reformas na casa, como relata a informante F., são primordiais nos primeiros anos após a chegada ao local. Ela mesma relata que trabalhava para pagar as prestações da casa, e posteriormente, para a construção dos andares de cima, onde foram instalados mais quartos e a área de serviço. J. abriu recentemente (há apenas cinco meses) sua doceria no MCC Alegria. Assim, ainda não estabeleceu relações próximas com os vizinhos; apesar de sempre ter morado em Heliópolis, sua residência fica no MCC Florestal, e ela afirma "não gostar de andar pela favela, aí pra cima", referindo‐se às ruas próximas às da Alegria e Mina. Segundo ela, seu percurso aqui sempre foi de casa para escola, e depois de casa para o trabalho. Sua mãe, dona G., possui uma lanchonete no MCC Florestal há 6 anos. Dona G. afirma possuir uma clientela fiel, que no entanto não é constituída pelos vizinhos residentes na Florestal. Afirma que muita gente vem de outros lugares de dentro e fora de Heliópolis – desde pessoas da rua da Alegria até da Vila Carioca – que se deslocam de suas casas para ir consumir ali. Segundo dona G., dificilmente os clientes são transeuntes que estão passando ali por acaso (até porque, a lanchonete fica numa rua estreita, fora do circuito principal da Florestal, composto por vias de acesso mais largas). Boa parte de seus clientes faz pedidos de doces e salgados por encomenda – o que configura uma relação mais distanciada entre clientes e comerciantes. Muitos estabelecimentos comerciais dentro de Heliópolis (tanto dos MCC, quanto ao redor deles) tem uma clientela regular, ou melhor, são comumente freqüentados pelos mesmos clientes. Além do relato de dona G., isso foi observado em dois outros pontos – no restaurante de dona N. e na padaria do “seu Arnaldo”, no cruzamento das ruas Paraíba, Mina e Alegria. No caso do restaurante, a clientela se forma pela proximidade do estabelecimento ao local de trabalho e/ou casa e pela predileção da comida. Além disso, o restaurante de dona N. é um dos poucos que fica aberto de dia até a noite. No caso da padaria, esta fica em um importante local de passagem. Muitos dos frequentadores passam lá, ao longo de todo o dia, para tomar, entre suas atividades cotidianas, um café ou mesmo para tomar café da manhã. Ao contrário do que acontece no restaurante, na padaria há clientes que são tratados pelos funcionários pelo nome, e outros que não são conhecidos – no restaurante, foi mais raro ver pessoas que estavam ali pela primeira vez. Os pesquisadores estabeleceram um contato com a dona de um restaurante/bar da região, situado na própria rua da Alegria, o qual frequentaram assiduamente. Pela observação realizada no local, foi possível notar que boa parte dos clientes retira as refeições para comer em outros locais, não permanecendo no restaurante: muitos fazem o pedido pelo telefone e passam pelo restaurante para retirar a comida; em outros casos, o marido de dona N. leva o marmitex para o cliente em sua residência ou estabelecimento comercial. Dona N. conhece boa parte de seus cliente pelo nome, sabendo de sua família e trabalho. A relação se constitui a partir da frequência do cliente no restaurante, ainda que esta seja mediada pelo pedido de entrega à domicílio ou retirada, sem fazer uso do restaurante para o consumo da refeição. É importante aqui observar que o restaurante constitui um local de passagem mais que de parada para este tipo de consumidor; há um outro público, que frequenta o restaurante para beber e jogar bilhar. Dona N. constrói uma relação bastante próxima com seus clientes mais frequentes. Ela relata que ajudou durante quase um ano um rapaz que estava desempregado e não tinha nem o que comer, dando‐lhe comida de graça. Hoje, com emprego, o rapaz a considera como uma parente próxima, conhececendo a família toda de dona N. e frequentando sempre que pode o restaurante.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 91
LIVRO 2 Dona N. relata que já levou muito "calote" por parte de seus clientes. Ela, como a maioria dos comerciantes de Heliópolis, não se dispõe a princípio a vender fiado. No entanto, essa prática acaba ocorrendo, a partir da relação de famíliaridade e confiança que se estabelece entre comerciante e cliente, dada pela freqüência assídua ao estabelecimento. Alguns dos calotes que dona N. levou foram por parte de vizinhos seus, que sempre frequentavam seu restaurante e, depois de certo tempo, passaram a pedir para "pagar depois"; passado mais algum tempo, simplesmente não apareciam mais ou falavam que não podiam pagar. Assim, o prejuízo fica para o comerciante, que, segundo ela, não tem como evitar isso – "a gente nunca sabe quem vai deixar de pagar", diz ela. Já no estabelecimento de J., uma doceria, encontra‐se uma placa bem grande dizendo "não vendemos fiado". Este tipo de placa (por vezes colocada com alguma brincadeira ou trocadilho, como "fiado só amanhã" ou "seja bem‐vindo, mas não peça fiado") é muito recorrente nos comércios observados, especialmente em bares e mercadinhos. Esta sinalização tem a finalidade de intimidar o cliente, ainda que este tenha uma boa relação com o comerciante, a pedir fiado. No entanto, como vimos, este tipo de prática existe, apesar de não institucionalizada. As relações entre comerciantes e moradores, bem como a dinâmica famíliar em relação ao comércio em Heliópolis, serão analisadas com mais profundidade a partir dos dados obtidos na próxima etapa da pesquisa, cujo trabalho de campo envolverá um contato ainda mais próximo dos pesquisadores com os informantes.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 92
LIVRO 2
ORÇAMENTO DOMÉSTICO
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 93
LIVRO 2 GRAU DE ESCOLARIDADE Durante o processo de observação de campo, notou‐se que, em relação ao Grau de Escolaridade dos informantes e de suas respectivas famílias; em primeira instância, as mulheres em Heliópolis apresentam um nível de formação maior em relação aos homens, e em segunda instância, os jovens também apresentam um grau de escolaridade maior. (Não há dados suficientes para corroborar tais observações). CASA DE N. (Moradores: N., filha, três netos): N. possui o ensino médio completo, assim como sua filha (que, além disso, possui um curso técnico de cabeleireiro), os netos frequentam a escola. CASA DE Z. (Moradores: Z, marido, dois filhos, nora, três netos, sobrinha): A família possui o ensino completo. CASA DE R. (Moradores: R., pai, irmã, cunhado, cinco sobrinhos): R possui ensino secundário completo, a irmã, o marido e o pai possuem o ensino básico incompleto. CASA DE M. (Moradores: M., filho) M possui o ensino básico incompleto, seu filho possui o ensino superior incompleto. Como demonstra o gráfico abaixo, o grau de escolaridade em Heliópolis se concentra principalmente entre o ensino básico e o médio, com apenas 8% da população com formação ou cursando o ensino superior.
Figura 1 ‐ Grau de Escolaridad dos Informantes
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 94
LIVRO 2 RENDA MÉDIA DECLARADA E NÃO DECLARADA A composição de renda nas casas de todos os informantes se deu na forma de um renda familiar composta de fontes diversas e múltiplas. Apesar da base desses rendimentos ser oriunda de empregos “formais” (Assistente Administrativo, Vendedores, Micro‐empresários, etc); observa‐se também a presença de atividades “informais” (vendas diretas de porta em porta, vendas de ambulantes) e esporádicas (projetos, construções). N., por exemplo, indica que o lucro de sua filha no seu salão de cabeleireiros varia de R$800 a R$1.500. Ela, que trabalha com vendas de marketing direto, possui ganhos médios de R$500. A sua filha ainda possui uma pensão de seu ex‐marido no valor de R$200. Salão: R$800 – 1.500 Vendas Marketing Direto: R$300 – 700 Pensão Alimentícia: R$200 – 200 Projetos: R$500 – 600
Figura 2 ‐ Rendimientos de N, incluye ventas y projetos Do mesmo modo, Z. , quando perguntada diretamente sobre sua renda familiar, informou ser de R$1.300 oriundos da aposentadoria de seu marido. Porém, após o desenvolvimento do relacionamento de campo, surgiram rendas complementares. A renda “formal”, a aposentadoria, parece ser aquela que vem primeiro a mente. As demais fontes que compõem a renda familiar parecem ser imperceptíveis como tais para quem administra o orçamento. A sobrinha mora em um espaço do terreno de sua casa, pelo qual lhe paga R$ 200; enquanto que um primo mora em um espaço da associação por ela presidida e pelo qual lhe paga mais R$ 200; ela e seu marido vendem batatas fritas em sua garagem e no mês de Maio de 2010 contabilizaram um lucro de R$ 1.500 – sendo esta a média de lucros com tal atividade. Por fim, a renda é complementada com a venda de planos de saúde. No mês de Maio de 2010 foi contabilizado um lucro de R$ 1.500 – sendo que Z. afirma não ter uma média de lucro em tal atividade pelo fato da mesma ser de vendas e ter mês que não se consegue vender nada, mas como parâmetro, disse que o mês de Maio foi um mês excelente.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 95
LIVRO 2 Aposentadoria: Venda de Batatas‐fritas: Planos de Saúde: Aluguel:
1300 ‐ 1300 1000 ‐ 1500 1500 ‐ 1500 200 ‐ 400
Figura 3 ‐ Rendimientos de Z, incluye vendas e batatas fritas y aluguel Outro informante que cooperou com este estudo foi M., que trabalha como empregada doméstica quatro vezes por semana. Sua renda de aproximadamente R$800 é a única fonte de rendimentos atualmente, visto que seu filho (que mora com ela) se encontra desempregado. R., trabalha fazendo eventos de festas infantis, sua irmã trabalha como auxiliar de limpeza em uma escola, enquanto seu cunhado realiza biscates como trabalhador em obras; e, por fim, seu pai é motorista de uma transportadora, sendo que ele não faz aportes permanentes para o orçamento familiar. A renda familiar total varia em torno de R$900 – 1.000 por mês, aumentando apenas quando o cunhado tem serviço. Nesse caso, a renda familiar seria de aproximadamente R$1.400 – 1.500 por mês.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 96
LIVRO 2 Apesar da baixa renda familiar, os integrantes da família declaram não buscar outras fontes de renda esporádicas por "falta de tempo". A composição da renda familiar se dá da seguinte maneira: • R.: 500 • Irmã: 400 • Pai e Cunhado (rendas esporádicas, incertas): 800 900 800 700 600 500 400 300 200 100 0
Minimo Maximo
R
Irmã
Pai
Cunhado
QUEM ADMINISTRA O ORÇAMENTO FAMILIAR Nesse ponto, as opiniões divergem entre os informantes. Dessa maneira, a interpretação é a de que a função de administrador do orçamento familiar dentro do lar está deveras dispersa. A presença da mulher como a principal administradora do orçamento familiar (embora não seja ela a única tomadora de decisão) tem sido o denominador comum entre os informantes e seus vizinhos – apesar de haver comentários por parte de ambos de modo a conceber a figura do HOMEM como tal, ainda que ele não coloque a totalidade de seus rendimentos dentro da renda familiar. N., por exemplo, fez uma distinção muito interessante aqui. De acordo com ela, sua filha é a "chefe" da família, pois coloca a maior parte da renda dentro de casa, mas N. é quem administra o orçamento. Há, portanto, uma distinção entre “chefe de família” e “administrador do orçamento familiar”. N. segue relatando que os gastos são feitos de comum acordo – sobretudo aqueles de maior valor (como ocorreu na decisão de comprar um carro a prestação). A filha, que aporta a maior parte da renda, mas N. administra o dinheiro para evitar que a filha, que já foi usuária de drogas, tome decisões que irão prejudicar a família. Já no caso de Z., ela afirma ser o marido o administrador de todo o orçamento e quem faz as compras. Porém, ao contar sobre sua vida, em diversos momentos ela informou ter tomado decisões importantes, como compra e venda de imóveis e recebimento de aluguéis. A compra da propriedade (a qual ela afirma ter deixado nas mãos de Deus) foi previamente aprovada pelo marido. O recebimento do aluguel cobrado da sobrinha ela afirma ser ela quem administra, mas o valor foi determinado também pelo marido.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 97
LIVRO 2 Em conversa com N. direcionada a averiguar as práticas correntes em seu meio‐ambiente (seus vizinhos, sua comunidade), ela afirma que são as mulheres quem costumam administrar o dinheiro do lar; o homem apenas gera renda. A decisão dos gastos são tomadas em conjunto.
QUEM ADMINISTRA O ORÇAMENTO FAMILIAR QUANDO AMBOS HOMEM E MULHER TRABALHAM
N.: Argumenta que em grande parte do seu bairro são as mulheres que gerenciam o orçamento. Mesmo quando a mulher trabalha. Z.: Argumenta que em sua comunidade é a mulher, na grande maioria dos caos, quem administra o orçamento. Em desacordo curto de quem gere o orçamento familiar, são alguns dos homens que administram o orçamento familiar, para outros, que o homem não pode dar todo o dinheiro deixando as mulheres para si, certa quantidade de dinheiro gasto em “Bagunça”. Outros indicam que é na família constituída de casamentos antigos, onde há a situação que o homem ea mulher que trabalha como hostess. Embora sejam casais jovens casais onde a mulher sai de casa para trabalhar e ajudar no orçamento. Em ambos os casos, é o homem que distribuiu o orçamento, fornecendo as mulheres apenas o suficiente para atender às necessidades da família. Embora as opiniões e relatos sejam divergentes, observou‐se que a administração do orçamento é feita por aquele que possui um envolvimento maior com as tarefas de gestão dos assuntos domésticos. Sendo Heliópolis um espaço onde as relações de gênero são mais assimétricas e onde o papel das mulheres, mesmo quando ela trabalha, é atribuído à sua responsabilidade para com o lar; fica claro para esse estudo que é ela quem tem o papel principal da gestão do orçamento familiar. Em casa, você vive R. é considerado o mais inteligente, mas eles não podem ser considerados fundamentos para a gestão do orçamento familiar designársele, mas que na elaboração do orçamento ajuda o pai, a irmã, seu irmão e, em menor grau (todos vivem em mesma família com cinco filhos). O papel de administrador designado do orçamento familiar – seja por razões diversas, como de gênero, funcionalidade, mérito ou tradição – sempre colocam a mulher como a principal tomadora de decisões nas despesas do grupo familiar. A direção, o sentido e ordem que os gastos do coletivo possuem serão determinados, em grande parte, senão toda, pelo critério feminino, não sendo comum ouvir que as decisões sobre gastos e necessidades cotidianas ou específicas do lar sejam sempre analisados em conjunto (homem/mulher). O conceito de "em conjunto" alude mais aos gastos de maior envergadura, que envolvam o coletivo sob a ideia do "bem‐estar da família." Por outro lado, na decisão de que tipos de alimentos comprar, quanto destinar a poupar de maneira informal; observa‐se que esta é uma decisão que fica mais no plano individual.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 98
LIVRO 2 O QUE É CONSIDERADO BEM‐ESTAR FAMILIAR Em vários momentos os informantes da pesquisa ressaltaram o fator da alimentação como sendo prioritário para o bem‐estar da família, mas a distinção é muito mais ampla e também está relacionada à idéia de privações pelas quais passaram as gerações mais antigas que chegaram à favela oriundas de regiões mais pobres do país e atraídas pela promessa de uma vida melhor. Para os mais jovens, porém, bem‐estar é "que meus filhos possam sair de Heliópolis", aludindo ao fato de que diversas gerações dividem um mesmo terreno e o espaço se torna, a cada uma delas, mais estreito. O fenômeno da verticalização observado na Rocinha começa a se manifestar em Heliópolis, apesar das políticas públicas direcionadas à transição da favela para um bairro integrado à cidade formal. N., em diversas ocasiões cita que seu maior sonho é a compra de uma casa fora de Heliópolis, “uma casa grande – de preferência”. Fica claro que a localização e o tamanho de sua moradia é o que bem‐estar verdadeiramente significa para ela – inclusive sendo a poupança destinada a atingir tal meta: "O bem‐ estar de hoje é a construção do amanhã." Vale ressaltar que outra informante, por sua vez, relatou não desejar sair de Heliópolis de forma alguma. Apesar de ter nascido no interior da Paraíba, afirma que Heliópolis é a sua terra. De certa maneira, deixar de morar em Heliópolis, ou na Rocinha, pode significar, no imaginário de algumas pessoas, uma forma de ascensão social que nem todos compartilham. A garantia de bem‐estar familiar também passa pela segurança que a propriedade da moradia dentro de Heliópolis traria.
COMPOSIÇÃO DA FAMÍLIA. A família é composta, principalmente, de forma nuclear. Apenas 23% das pessoas vivem com cinco ou mais pessoas no mesmo lar. Esse dado é relevante, pois por "Lar" as pessoas tendem a perceber seu espaço imediato, sua casa, sendo que nos pisos superiores (ou inferiores) das edificações aglomeradas (especialmente no caso da Rocinha), observa‐se a tendência de viverem mais familiares, aumentando a concentração nesse sentido.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 99
LIVRO 2 Tal é o caso de Z. que vive em sua casa com seu marido e seu filho de 20 anos de idade com necessidades especiais. No piso térreo da casa reside sua filha de 33 anos de idade. No mesmo terreno, mas em edificação distinta residem seu outro filho com a nora e três netos; além de sua sobrinha. A aglomeração toma uma forma mais dramática no caso de R.; que, em um mesmo piso, possui dois quartos: no maior, dorme o pai; no outro, dormem ela, três filhos, dois sobrinhos, a irmã e o cunhado.
CONSTITUIÇÃO DO ORÇAMENTO FAMILIAR. No caso de N., o orçamento familiar é disposto da seguinte maneira: a filha possui um salão de cabeleireiros no térreo da casa que gera a maior parte da renda familiar. N. trabalha com vendas de marketing direto, vendendo alimentos e cosméticos. A dinâmica da circulação do orçamento familiar é bastante complexa. Não há um valor fixo de aplicabilidade do orçamento na casa. Os gastos com as necessidades básicas da casa caminham de acordo com a necessidade, mas N. informa ganhar menos do que a filha, então sempre que precisa de dinheiro para alguma coisa, sua filha provê. Dessa forma, a renda da família se distribui através das necessidades de dois lares em um, visto que a filha mora no espaço que foi construído na laje da mãe. Uma única renda com dois contribuintes se distribui através de pequenos gastos individuas básicos por lar e em um gasto único para ambos. Fontes • Cabeleireiro • Venda de produtos lácteos • Venda de roupas de porta em porta e no salão da filha (novo negócio, embora esporádico, segundo N.) • Projetos
Por sua vez, Z. relata que a renda entre os 4 lares que habitam seu terreno são divididas, cada casa com sua renda. No papel de a grande mãe de todos, e seu marido, o grande pai, ela promove aos domingos uma refeição para todos e os ajuda sempre que precisam. Vale citar que seu filho casado tem uma renda de R$800 e a esposa dele não trabalha.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 100
LIVRO 2 Não há a constituição de um orçamento único familiar. Z. é mantenedora parcial de seus netos. O CONTEXTO FAMILIAR é visto como uma UNIDADE. Fontes Aposentadoria do marido Venda de Batatas‐ fritas Venda de Planos de Saúde Aluguel (sobrinhos e primos). Em outras palavras, o que se observa aqui é uma composição de 4 lares, cada um com seu orçamento independente e que recorre a Z. quando precisa fechar as contas do mês. Paga‐se uma única conta de luz. A refeição para toda a família dos fins de semana é vista por Z. como um ato de solidariedade a seus filhos. Para as famílias mais carentes, como a de R., o orçamento é único e a renda vem, principalmente, das duas irmãs; esporadicamente, do cunhado e do pai. O orçamento é, da mesma forma, composto. Fontes • Trabalho fixo de R. em eventos infantis. • Trabalho fixo da irmã de R. Como auxiliar de limpeza em uma escola • Trabalho esporádico do cunhado de R. em obras. Na mesma faixa de rendimentos do caso anterior, embora com um número significativamente menor de componentes, mãe e filho vivem com um orçamento de R$800 oriundo do trabalho da mãe como empregada doméstica. O filho, desempregado na ocasião dessa pesquisa, quando empregado, ajuda a compor a renda familiar. Salário de empregada doméstica (mãe) Trabalho esporádico do filho
A INFORMALIDADE NA CONSTRUÇÃO DO ORÇAMENTO Aqui cabe precisar bem os conceitos de formal e informal com os quais se irá trabalhar. Usando N. como exemplo, sua filha tem um salão de cabeleireiros que não possui CNPJ. Isso é informalidade: atividades comerciais, conduzidas na porta de casa; invisíveis para o sistema, não geram impostos. N., por sua vez, faz venda de marketing direto de porta em porta, revendendo produtos de empresas formais. As compras do dia a dia para as atividades do lar e que passam de R$60 são feitas através da prática do fiado e acertadas a cada quinze dias. Isso é informalidade na administração do orçamento. No contexto da renda, a informalidade na obtenção da mesma significa estar ou não visível ao sistema para a geração e pagamento de impostos e contribuição previdenciária social. Trabalhos esporádicos, feitos sem vínculo empregatício não são necessariamente informais, mas no contexto do meio socioeconômico que se estuda, isso acaba ocorrendo pelo fato da renda ser muito baixa e as necessidades básicas da família terem, compreensivelmente, prioridade em detrimento de impostos e INSS.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 101
LIVRO 2 No caso de N., outra atividade comercial que compõe a renda familiar é a venda de lingerie que ela realiza em conjunto com sua filha. A primeira de porta em porta, e a segunda em seu salão. No segundo caso, as vendas são maiores. Por sua vez, R. declara não poder realizar trabalhos adicionais avulsos (como diarista, por exemplo) para aumentar a renda da família por falta de tempo, principalmente – tanto dela, quanto de sua irmã.
GASTAR X POUPAR Na relação de gastos de N. há a prestação de um carro no valor de R$430; uma dívida de R$5.000 sendo paga; a alimentação de toda a família (4 pessoas) e gastos com os netos. N. apresenta um esquema muito completo sobre a relação entre os gastos e a poupança, apontando as prioridades de gastos da seguinte forma: em primeiro lugar, e mais importante, é pagar as dívidas; em seguida, fazer investimentos (na forma de dívidas: o carro é um investimento) para só depois fazer poupança “referente a esses investimentos”. GASTOS – A prioridade no momento é o pagamento das prestações do carro, que julga ser muito importante para toda a família por servir às necessidades de locomoção dos netos à escola/creche e para fazer o atendimento à domicílio da venda de produtos e serviços de cabeleireiro da filha. A dívida de R$ 5.000 é oriunda da quebra de contrato de um salão de cabeleireiros formal que a filha possuiu com o ex‐ marido em Sacomã, no entorno da favela. Foi depois do divórcio que a filha foi morar com a mãe na favela e abriu o salão informal na porta de casa. N. diz que paga as parcelas do empréstimo sempre “que dá”, que o dinheiro alcança. A prestação do carro tem prioridade sobre a prestação da dívida. Quando indagada sobre o que vem a ser um investimento, N. não sabe dizer exatamente, embora diga que o faz. Por sua vez, Z. paga a prestação de R$630 de um carro zero km que foi roubado antes de ser segurado. Sua conta de luz já variou entre R$300 e R$900 – visto que só há um relógio para medir o consumo das 4 sub‐famílias que ocupam o terreno. A conta de água tem o valor de R$200 e as compras de supermercado ela afirma não saber com exatidão por serem feitas pelo marido, mas ela acredita que ficam em torno de R$1.500. POUPANÇA – N. possui duas formas de poupança em dois bancos diferentes: um título de capitalização no Itaú‐Unibanco (que ela segue chamando de Unibanco) que poderá ser resgatado dentro de três anos, cujo obetivo é “comprar uma casa fora de Heliópolis”; e uma poupança da Caixa Econômica “para eventuais emergências”. A poupança da Caixa é movimentada “sempre que possível’, colocando valores acima de R$50, e também sacando caso tenha necessidade. Não há um valor fixo de movimentação nesta poupança. Ela é feita de acordo com os gastos do mês, indicando uma relação direta de complementariedade entre os gastos e a poupança. Já para Z., “as mulheres são muito cuidadosas, estão sempre pensando no futuro." Garante que muitas das mulheres de sua comunidade possuem economias, e outras vêem como “um sonho importante” poder abrir uma conta poupança para a "prevenção contra infortúnios". Mesmo aquelas que possuem renda menores estão pensando em poupar. Apesar de seu orçamento apertado, R. tem uma conta poupança na Caixa Econômica, com a meta de poder comprar uma casa fora de Heliópolis. Indagada acerca de investir na melhoria da casa onde atualmente vive, ela afirma: "Há
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 102
LIVRO 2 alguns anos atrás, meu pai fez um bom negócio e ganhou muito dinheiro, mas não o investiu aqui. Ao invés, comprou uma casa em Pernambuco, onde vive sua mãe, minha avó. E se ele não faz nenhuma melhoria aqui nessa casa de Heliópolis, que é dele, eu não tenho porque fazê‐lo. O sonho de R. é se mudar da casa do pai, junto com sua irmã e seus filhos. Se compararmos estes comportamentos, veremos que existem mecanismos de poupança, ainda que não sejam constantes. E, ainda, que essa prática é mais observada entre as mulheres.
DISTINÇÕES DE GASTOS: O QUE É MUITO, O QUE É POUCO Segundo Z. relata, seu marido gosta de “comer bem” e que, em sendo ele o administrador do orçamento, acaba comprando produtos de boa qualidade. Ela não tem objeções, desde que “não se gaste muito em cervejas e licores”. Z. também considera que comprar roupa quando não se tem necessidade – apenas por impulso ou moda – é um gasto absolutamente desnecessário. Por sua vez, em sua casa N. não permite que se compre bebidas alcoólicas a fim de preservar sua filha e netos. Suas despesas com alimentação procuram aproveitar as ofertas dos supermercados, sendo que ela concentra suas compras em um grande hipermercado da região. Já R. concentra suas compras em um supermercado na Estrada das Lágrimas por fatores como proximidade, economia de transporte, preços mais baixos do que nos bairros do entorno da favela e pela opção de entrega à domicílio a um custo de “apenas 5 reais”.
GASTO X ORÇAMENTO MENSAL Como especificado e detalhado anteriormente, famílias como as de Z. tem ganhos de até R$3.000 e gastos de até R$2.500 – dependendo do valor de suas contas de consumo. Outra faixa de renda observada em Heliópolis, de famílias com comércios informais, de pouca infra‐estrutura (como no caso de N.) é a de ganhos que variam entre R$1.500 e R$2.000 por mês e gastos de até R$1.000 – detalhados mais adiante. N. afirma que o excedente que pode vir a conseguir (além daquele que se destina à poupança) é direcionado a necessidades de vestuário da família (especialmente dos netos), cuidados médicos/odontológicos e aumento do consumo de alimentos (compra de produtos que não fazem parte da lista básica de compras). N. cita cuidados odontológicos porque uma de suas netas precisa colocar aparelho nos dentes. O custo do tratamento é de R$1.500 pagos em cotas de R$300 por mês. Depois de todas as cotas pagas, o tratamento será iniciado. No caso de R., a despesa principal é gerada com as necessidades básicas das cinco crianças que a família possui (vestuário, alimentos, leite, brinquedos); seguidas pelos gastos com alimentação para a família e contas de consumo – eletricidade, água e gás.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 103
LIVRO 2 QUADROS E GRÁFICOS COMPARATIVOS: RECEITAS X DESPESAS A seguir, forneceremos, através de quadros e gráficos comparativos os detalhes acerca das receitas e despesas, familiares e pessoais, dos informantes, segundo por eles relatados aos pesquisadores de campo. INFORMANTE N
N. N.
RECEITAS Salão de Cabeleireiro Venda Direta Pensão Alimentícia TOTAL DESPESAS Prestação do Carro Eletricidade Água Gás Alimentação Dentista Telefone SUBTOTAL
FAIXAS DE VALORES (Mínimo/Máximo) R$ 800,00 R$ 1.500,0 R$ 450,00 R$ 900,00 R$ 200,00 R$ 200,00 R$ 1.450,00 R$ 2.600,00 VALOR R$ 600,00 R$ 105,00 R$ 50,00 R$ 80,00 R$ 500,00 R$ 300,00 R$ 29,00 R$1.664,00
INFORMANTE Z
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 104
LIVRO 2 Z.
RECEITAS Aposentadoria Venda de Batatas‐Fritas Aluguel TOTAL
FAIXAS DE VALORES (Mínimo/Máximo) R$ 1.300,00 R$ 1.300,00 R$ 1.000,00 R$ 1.500,00 R$ 200,00 R$ 400,00 R$ 2.500,00 R$ 3.200,00
Z.
DESPESAS Prestação do Carro Eletricidade Água Alimentação TOTAL
VALOR R$ 630,00 R$ 300,00 R$ 200,00 R$ 1.500,00 R$ 2.630,00
INFORMANTE R R. R.
RECEITAS Renda R. Renda Irmã Renda Cunhado Renda Pai TOTAL
FAIXAS DE VALORES (Mínimo/Máximo) R$ 500,0 R$ 500,0 R$ 400,0 R$ 400,0 R$ 0,0 R$ 400,0 R$ 0,0 R$ 800,0 R$ 900,00 R$ 2.100,0
DESPESAS Alimentação Eletricidade Água Gás TOTAL
VALOR R$ 350,00 R$ 200,00 R$ 50,00 R$ 80,00 R$980,00
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 105
LIVRO 2 INFORMANTE M
M.
RECEITAS Renda M. Renda do filho TOTAL
FAIXAS DE VALORES (Mínimo/Máximo) R$ 800,0 R$ 800,0 R$ 0,0 R$ 800,0 R$ 800,00 R$ 1.600,0
M.
DESPESAS Alimentação Eletricidade Água Gás Aluguel TOTAL
VALOR R$ 300,00 R$ 100,00 R$ 70,00 R$ 80,00 R$ 200,00 R$ 750,00
Em adição, as histórias familiares por trás do orçamento de cada família coloca o tema dentro de seu devido contexto. A história de N., por N., aponta dois momentos muito difíceis em sua vida. Primeiramente, casou‐se aos 17 anos e aos 25 teve que recomeçar sua vida “do zero” após se separar do marido por uma questão de violência doméstica. Inclusive, foi quando N. foi morar em Heliópolis. Outro evento que a obrigou a passar por mudanças profundas foi quando sua filha, então com 30 anos, se envolveu com drogas junto com o então marido e N. fez um grande esforço para conseguir sair de Heliópolis e ir morar no interior de São Paulo. Em ambos os momentos de vida, optou por vender todos os seus bens. Por isso, ela afirma, a grande lição que tirou desses momentos foi a necessidade de planejamento financeiro para a prevenção de futuras perdas. A história de Z também contém momentos de dificuldade, de ruptura. Ela relata que durante a crise dos anos 70, seu marido perdeu o emprego. As dificuldades foram ainda maiores porque coincidiu com sua primeira gravidez.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 106
LIVRO 2 Porém, depois que ela começou a trabalhar para compor a renda familiar, que então consistia de alguns biscates de seu marido, a situação passou a melhorar. Z. conseguiu comprar sua casa em Heliópolis depois que o marido voltou a ter um emprego formal. Hoje ele tem uma boa aposentadoria e complementa a renda vendendo batata‐frita na garagem de casa. Z. comenta ainda que apenas seu marido á aposentado, pois ela deve seguir trabalhando.
COMO AS FAMÍLIAS ECONOMIZAM / O QUE SE ENTENDE POR POUPANÇA Em ambos os casos de N. e Z., a renda (embora variável todos os meses) chega a ser maior que as despesas, sendo que N. ainda relata possuir dois canais de poupança para diferentes objetivos – dependendo do excedente entre entrada/saída de recursos. Há uma consciência observada nas mulheres no sentido de fazer poupança para o futuro, seja para se mudar da favela, seja para cobrir emergências inesperadas. N., com um tom de satisfação e até orgulho em sua voz, diz que poupa por ter seus objetivos muito claros: sair de Heliópolis para comprar uma casa e evitar que seus netos cresçam em um ambiente por ela considerado "nocivo". A poupança também se destina para um fundo de emergências – principalmente de ordem médica em relação a ela, que já sofreu dois enfartos. Para N., Heliópolis é uma fonte de deliquência: os mais jovens caem nas drogas e no crime facilmente. Por isso, "quero tirar meus netos e minha filha daqui. Quero dar um futuro melhor para as crianças”. Esse futuro, para N., está em uma casa grande e cômoda, longe de Heliópolis. Para R., igualmente, um futuro melhor está fora de Heliópolis, próximo de “lugares de trabalho”, em “bairros com casas grandes e confortáveis”. Sua economia é orientada para este sonho.
GRAUS DE AGLOMERAÇÃO – DISTRIBUIÇÃO HABITACIONAL DA FAMÍLIA
A organização das casas segue uma tendência observada nas duas favelas estudadas. As moradias possuem diversos pavimentos diferentes que abrigam membros de uma mesma família de forma independente. Na casa de N., há o salão de cabeleireiros da filha no piso térreo; no segundo piso, está sua casa e, no terceiro, a casa de sua filha. São lares distintos, um cima do outro, mas com um único orçamento. Na casa de Z., há 4 pavimentos diferentes pertencentes ao mesmo terreno. Em uma casa moram ela, seu marido e um filho com necessidades especiais no segundo piso e sua filha no piso térreo. Na outra casa moram seu filho com a nora e dois netos e ainda uma sobrinha que lhe paga aluguel. Em ambos os casos foi observado que não há superlotação nas casas, já que elas se dividem em pavimentos diferenciados. N. afirmou que optou por morar dessa maneira para que se criasse uma rede de solidariedade entre ela e a filha. Esta, que pagava aluguel, residindo fora de Heliópolis, percebeu que, morando de forma verticalizada com a mãe, lhes permitiria pagar as dívidas e economizar, além de poderem se ajudar mutuamente.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 107
LIVRO 2 N., refletindo sobre o espaço em que vive, acredita que as moradias verticais se devem, em grande parte, a uma questão de falta de espaço. Sem ter como crescer para os lados, é natural que a favela passe a crescer pra cima. E isso se deve não só à chegada de novas pessoas, como também ao crescimento da própria família. Cada geração corresponde a um andar da casa. De acordo com os informantes, muitas famílias vivem em condições aglomeradas – seja em um mesmo ambiente ou ambientes diferentes. Muitas mulheres que se casam e se separam ainda muito jovens, voltam para a casa dos pais, em geral com filhos, para viverem de forma aglomerada. Na opinião de Z., as condições em que seus filhos vivem é temporária. Ela considera um ato solidário os receber em sua casa/propriedade para que eles não precisem pagar aluguel e possam poupar para, com o tempo, comprarem suas próprias casas – fora de Heliópolis. Por sinal, N. considera que o fim da aglomeração em seu espaço envolveria a mudança, com sua filha e netos “para uma casa grande e confortável” – também fora de Heliópolis.
DISTINÇÕES RISCO / PERIGO Durante a aplicação do questionário da pesquisa, uma pergunta em especial nos permitiu obter a percepção de risco e de perigo da população: Qual das seguintes afirmações parece mais apropriada para descrever a seguinte situação: Em uma noite escura e chuvosa, uma pessoa sai de casa dirigindo em alta velocidade e acaba sofrendo um acidente, ficando gravemente ferido.
As respostas são indicativas de atribuições de responsabilidades individuais diante da situação. Para 79% dos entrevistados, a responsabilidade do acidente foi da própria pessoa, por dirigir em alta velocidade em condições de maior risco. Apenas 21% dos entrevistados atribuiu o acidente à condições externas (perigo). O dado anterior é chave para compreender onde se situam as noções de risco e o quão madura é uma população para entender o aporte que os seguros podem realizar em suas vidas. Heliópolis é uma comunidade que demonstra estar apta a fazer a distinção risco/perigo.
Estudo IMR para Bradesco Vida e Previdência – Versão On‐Line 108