Microsseguros na favela da Rocinha
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A pesquisa para este livro e sua publicação foram feitas com o apoio de Bradesco Seguros
Agosto 2014
Edição: Denise de Goes Tradução: Fabiana Dias da Cunha Design Gráfico: Maurício Hoyuelos
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Agradecimentos
Este livro é dedicado a todos aqueles que o tornaram possível: Fabiana, Carlitos, Lucy, Hernán, Gabriela, Damiler, Martín, Magaly, Janet, Silvana, Thales, Fernanda, Paola, Bolivar, e Eugenio.
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Floresta de Tijuca
Rocinha
Lagoa
Copacabana
Ipanema
São Conrado
Océano Atlãntico
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Entre 2010 e 2013 a Bradesco Seguros desenvolveu uma série de iniciativas para conhecer em profundidade os principais destinatários de Microsseguros no Brasil. Uma destas iniciativas resultou em uma série de pesquisas apresentadas neste livro e que foram feitas pela consultoria internacional IMR, quem realizou a primeira imersão socioantropológica em favelas e bairros de classe média baixa para a indústria seguradora. Nosso entendimento da complexidade da população de baixa renda era claro desde o início. Não se podia fazer generalizações nem utilizar indicadores socioeconômicos padrão para conhecer a nova classe C. A população rural do Brasil não pensa e nem se comporta em relação aos riscos e à administração do orçamento familiar da mesma forma que a população dos grandes centros urbanos, muito mais desenvolvida e interconectada, o faz. Assim sendo, nosso objetivo foi conhecer as distintas e diversas pessoas de um novo mercado para seguros, juntamente com suas necessidades e aspirações, além de precisar as verdadeiras necessidades de seguros dos indivíduos da nova classe média brasileira. A partir de então, um amplo horizonte de oportunidades se abriu para a indústria seguradora, permitindo não só definir as características da nova classe C, mas também implantar novas ferramentas de comunicação que hoje nos ajudam a ilustrar de forma muito mais simples e direta os conceitos complexos de nossa indústria. É com grande satisfação que nós da Bradesco Seguros difundimos um conhecimento de raízes em ciências sociais como a Sociologia e a Antropologia – um tipo de conhecimento que esperamos que revele grandes oportunidades no âmbito do desenvolvimento social e econômico nas populações de baixa renda. Estamos certos que conceitos como o de Microcentros Comerciais Compostos, aqui apresentado pela primeira vez, poderão ser utilizados para o desenvolvimento e aplicação de políticas públicas e privadas em todo o mundo. Eugenio Velasques Diretor Bradesco Seguros
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Contenido Introdução............................................................................................................................................8 Microcentros Comerciais Compostos..................................................................................... 10 Rocinha e Heliópolis...................................................................................................................... 14 Dados Quantitativos...................................................................................................................... 17 1. As representações da Rocinha no imaginário coletivo...................................................19 Representação social .................................................................................................................... 20 Favela e Pobreza.............................................................................................................................. 23 Entre o asfalto e o morro.............................................................................................................. 25 Identidade cultural e representação........................................................................................ 28 Origem do Termo Favela ............................................................................................................. 31 Mudança de foco............................................................................................................................ 44 A Rocinha não é uma Comunidade ........................................................................................ 45 Por que Localidade?...................................................................................................................... 48 As microáreas .................................................................................................................................. 51 2. Rocinha, uma favela em transformação............................................................................53 Urbanização, desenvolvimento econômico e correlação................................................ 60 3. Por dentro da Rocinha ..........................................................................................................69 Vias Principais.................................................................................................................................. 69 Vias Secundárias............................................................................................................................. 71 Vias terciárias e condições de infraestrutura........................................................................ 73
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4. Conceitos espaciais para entender as trocas em espaços informais............................75 Tipos de Nodos Comerciais e MCC........................................................................................... 77 Os tipos ideais.................................................................................................................................. 78 Nodos.................................................................................................................................................. 80 Nodo A................................................................................................................................................ 81 Os dois NODOS B............................................................................................................................ 83 Microcentros Comerciais Compostos..................................................................................... 87 5. MCC, muito além de trocas econômicas............................................................................91 Lugares de trocas comerciais e pessoais................................................................................ 93 Biroscas, Mini-Microcentos Comerciais Compostos.......................................................... 98 A relação Nodo-MCC...................................................................................................................100 6. A dinâmica comercial na Rocinha.....................................................................................102 Números que impressionam....................................................................................................103 Contradições estatísticas...........................................................................................................105 7. As dinâmicas familiares na Rocinha.................................................................................112 Núcleos de residência.................................................................................................................115 8. Composição do orçamento familiar.................................................................................120 Gasto versus orçamento familiar......................................................................122 Evolução da renda e distribuição do gasto.........................................................................126 Administração da renda familiar.............................................................................................129 Gastos x Poupança.......................................................................................................................130 Bem-estar familiar........................................................................................................................132 9. O contexto dos Microsseguros..........................................................................................135 Valor Irrenunciável & Gasto Moral..........................................................................................137 Decisão Moral................................................................................................................................140 Considerações sobre Produtos de Microsseguros............................................................141 Atributos Do Produto..................................................................................................................143 10. Conclusão............................................................................................................................151 As principais conclusões da pesquisa:..................................................................................154 Referências bibliográficas..........................................................................................................158
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Introdução O conceito de pobreza é principalmente econômico, afetando também outros sistemas, como o social e o cultural. A pobreza é resultado de operações sistêmicas complexas e estruturadas ao longo do tempo, o que torna difícil sua compreensão sob um olhar superficial. No método descrito neste livro, a pobreza é associada a um efeito de risco social de caráter urbano – dadas as implicações de ordem psicológica e espacial que a mobilidade descendente produz sobre a pessoa exposta à deterioração de sua situação econômica. É preciso ainda levar em consideração que a influência das representações sociais delimita a existência de outras formas de entender o Brasil contemporâneo e determina enfoques científicos especiais que exigem uma revisão do material acadêmico e bibliográfico produzido desde o momento de sua aparição como fenômeno, em meados do século XIX, até os dias atuais. Por isso, para entender a dinâmica da favela como fenômeno urbano de mobilidade social se faz necessário não só considerar as representações sociais construídas pela sociedade brasileira ao longo da história, mas também explorar as percepções dos moradores da favela a partir de sua própria ótica. É dentro de tal contexto de compreensão de risco social e das representações sociais daquilo que é “favela e favelado” que se encontram os resultados da pesquisa feita pela IMR para a Bradesco Seguros na Rocinha, zona sul do Rio de Janeiro. Este livro vem compartilhar o conhecimento gerado pelo estudo que é fruto do trabalho de uma equipe de antropólogos e sociólogos do Brasil e de países como Chile e Peru. Os pesquisadores adentraram um mundo desconhecido de grande parte da sociedade brasileira, acostumada a ver as chamadas favelas apenas desde fora, e trouxeram à luz a vivência de como foi morar nesse universo e nele se aprofundar para entender e intervir nas estruturas que o afetam o risco social.
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Entre janeiro e julho de 2010 a equipe de pesquisadores conviveu com os residentes da Rocinha para detectar e descrever os fatores culturais determinantes dos comportamentos econômicos. A pesquisa é um processo misto de análise qualitativa com ilustrações quantitativas – o que permitiu observar de maneira mais precisa os fenômenos de padrões de consumo e constituição econômica dos habitantes da Rocinha. O eixo de análise tem como base conceitual os Microcentros Comerciais Compostos – no texto frequentemente citado através da sigla MCC. Tal conceito é proposto como mecanismo metodológico e opracional para levar politicas e ações de desenvolvimento até espaços urbanos segregados; lugares onde as representações e preconceitos arraigados na sociedade conspiram contra a implantação de ações concretas que resultem de forma esperada na luta contra a pobreza. Será possível ver ao longo do livro como o MCC demonstrou ser uma metodologia muito efetiva no momento de desenhar e fundamentar estratégias comerciais, políticas e comunicacionais por parte de uma companhia do porte da Bradesco Seguros. O caso dos Microsseguros e o interesse por se aprofundar em seu conhecimento desde uma perspectiva mais pragmática vem a ser um exemplo concreto de como esta metodologia pode ser utilizada não apenas para identificar padrões de trocas econômicas em ambientes de risco social, como também para desenhar ações, implantar e medir. Os Microsseguros não são necessariamente um negócio lucrativo, mas sim uma estrutura que pode ser usada por qualquer governo ou instituição para incrementar o desenvolvimento econômico de amplas áreas de população em risco social. Isso porque através e por trás da distribuição e comunicação de produtos de seguros se está educando a um grande contingente populacional sobre instrumentos econômicos como poupança, investimento, contribuição para a previdência, entre outros.
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Pode-se refletir em um outro momento sobre o caráter inclusivo que a educação financeira possui no desenvolvimento econômico de regiões com população em risco social, mas não cabe dúvida que uma grande parte da população brasileira utiliza de forma equivocada os recursos financeiros recebidos ou gerados. A educação é essencial e chave. Em tal sentido, a visão estratégica da Bradesco Seguros em apoiar o desenvolvimento deste trabalho vem a ser um exemplo a ser seguido, pois reconhece a utilização de novos métodos de pesquisa para enriquecer suas operações. Não é comum ver projetos tão ambiciosos no âmbito das ciências sociais e econômicas quando se trata de utilizar a pesquisa cientifica para ajustar estratégias comerciais e comunicacionais de caráter privado, pois se propõe a romper paradigmas tradicionais desde o mundo da iniciativa privada para apoiar uma ação que resulta em um aporte sem precedentes na esfera do desenvolvimento social. Através desta pesquisa a Bradesco Seguros apresenta sua visão de desenvolvimento desde uma perspectiva acadêmica e desde sua própria estratégia organizacional, colocando à disposição do mundo privado e público uma nova proposta de como se deveria intervir e atuar para chegar ao entendimento inicial da decisão econômica.
Microcentros Comerciais Compostos A história da observação, descrição e estudo dos Microcentros Comerciais Compostos é bastante recente. As primeiras descrições foram feitos pela IMR em 2009, durante estudo realizado em bairros do norte de Lima, no Peru. Desde então, novas pesquisas realizadas pela IMR em diversos países e cidades brasileiras, encontraram a presença e a importante dinâmica socioeconômica e cultural dos MCC’s em todas as zonas urbanas pesquisadas.
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Os MCC’s são estruturas dinâmicas em geral ocultas, ou à margem, dos grandes centros urbanos. São Microcentros por se tratar de espaços de intercâmbio econômico formados em torno de um bairro, espaços reduzidos se comparados aos supermercados e shoppings; Comerciais por envolver oferta e demanda de produtos e Compostos devido à multiplicidade de atores que contribuem para o fluxo de sua economia.
Microcentro Comercial Composto
Nodo
ESQUEMA 1 – Estrutura Geral de um Microcentro Comercial Composto (MCC)
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Cabelo
Epidermis
Capilar Dermis
Nervo
Arterias
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O funcionamento de um Microcentro Comercial Composto pode ser entendido por meio do conceito de microcapilaridade e seu papel como estrutura de distribuição de informação. A microcapilaridade permite visualizar a fragmentação das relações entre diferentes atores ou grupos em níveis cada vez menores: quanto mais capilaridade, maior a possibilidade de chegar à raiz ou causa dos fenômenos “visíveis”. O conceito de microcapilaridade vem associar a capilaridade dos sistemas biológicos aos sistemas sociais como método de estudo mais aprofundado dos fenômenos sociais e suas redes de interconexão. Em um sistema biológico, a capilaridade parte de uma estrutura macro para estruturas menores e mais simples formadas por vasos sanguíneos e capilares que conduzem os nutrientes, ou a informação, de todo o sistema. Tal fluxo vai nutrindo com informações genéticas e proteínas as células mais afastadas da estrutura central predominante. Essa ideia pode ser adaptada aos espaços urbanos. Nas cidades, há centros urbanos em que se concentram os Nodos ou centros comerciais. Dali partem artérias que chegam até regiões periféricas, cada vez menores e que constituem os microcentros – marginais ou periféricos ao centro. São nos Microcentros Comerciais Compostos que se produzem as trocas econômicas mais importantes e relevantes em espaços urbanos com distintos tons de informalidade – não exclusivamente favelas. O território da Rocinha foi minuciosamente estudado e mapeado – ainda que em uma época anterior à UPP, quando a Rocinha estava sob o comando do tráfico de drogas. Todo o comércio foi mapeado e classificado segundo os conceitos Nodos Comerciais e Microcentros Comerciais Compostos.
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Um dos objetivos principais foi observar e descrever como as relações comerciais muitas vezes se mesclam com as pessoais a partir dos microcentros comerciais. Para isso, o estudo estabeleceu a correlação entre os processos de urbanização e o desenvolvimento econômico local. Na Rocinha, a falta de infraestrutura urbanística determina o grau de desenvolvimento econômico de cada pedacinho da favela.
Rocinha e Heliópolis Além da Rocinha, no Rio de Janeiro, a pesquisa IMR para a Bradesco Seguros estudou a favela de Heliópolis, em São Paulo. Encravada na metrópole paulistana, Heliópolis passou pela mesma análise metodológica da Rocinha. Ambos os estudos obedeceram a uma estrutura comum de trabalho e foram realizados no mesmo período de tempo. Isso não significa, contudo, a inexistência de diferenças marcantes entre os dois universos. Diferenças que começam pelo fator das características geográficas. Na Rocinha o acesso ao interior dos Microcentros Comerciais Compostos é muito mais difícil, pela declividade de seu terreno, do que em Heliópolis que está sobre um terreno plano. Na Rocinha é possível encontrar zonas inacessíveis a carros e caminhões, produzindo-se uma aberta correlação entre centralidade e marginalidade – sendo esta última, diretamente vinculada à pobreza ante a falta de alcance aos bens e serviços que permitam o seu desenvolvimento. No caso de Heliópolis, a distinção entre zonas mais pobres não é tão clara. Outra diferença que complementa o ponto anterior é que, ante as dificuldades de acessibilidade e saída, a relação comercial entre os MCC’s e as chamadas biroscas na Rocinha é muito mais intensa e dependente que no caso de Heliópolis – onde basta caminhar umas poucas ruas para
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chegar a um ponto de ônibus e, dentro de meia hora, estar no centro de São Paulo. Isso significa que em Heliópolis as relações comerciais dos moradores que vivem próximos aos MCC’s costumam ser mais enfraquecidas que na Rocinha. Uma terceira diferença fundamental se dá pela “natureza” urbana de cada comunidade – dentro do contexto das respectivas cidades nas quais estão inseridas. Heliópolis tem características de um espaço urbano, com ruas e vias acessíveis, quase um bairro – ainda mais porque tende a se misturar com bairros anexos, sendo que tal fato contribui para uma maior independência de seus Nodos e Microcentros Comerciais. Se um morador de Heliópolis não gostar de um determinado produto ou de seu preço, ele pode, com mais facilidade, tomar a decisão de comprar nos bairros vizinhos que oferecem preços compatíveis com a renda dos residentes da comunidade. O mesmo já não acontece com os habitantes da Rocinha. Se a pessoa não vive nas imediações da Via Ápia, ou em áreas mais consolidadas e desenvolvidas, a possibilidade de “sair” de seu espaço será menor. E na hipótese de não encontrar o que precisa dentro da Rocinha, os bairros vizinhos, de alto poder aquisitivo, não são uma opção viável. Por fim, existe a distinção encontrada no caráter das Organizações Comunitárias Centrais de cada comunidade. Em ambas, as organizações se encontram politizadas e compartilham certos pontos “discursivos” em comum (“comunidade carente”). Porém, a diferença está na maneira como elas encaram suas relações com o mundo “externo”; sendo o caso da Rocinha o mais particular, pois a alta concentração de visitas, interesse político, turismo, subvenções e atenção midiática fez com que sua Associação Central de Moradores ficasse altamente condicionada e disposta a lucrar com isto. Situação que não ocorre com Heliópolis, uma comunidade menos “solicitada”, sem o mesmo apelo mediático da Rocinha.
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O presente livro foi organizado de forma que o leitor primeiro tome contato com as múltiplas realidades simbólicas que as representações da favela ativam no imaginário coletivo – tanto da representação que o favelado realiza de si mesmo, quanto daquela contida na opinião da população não-favelada. Por isso que alguns conceitos centrais utilizados largamente são desprezados sob uma postura crítica a tais representações – como o conceito de “comunidade”, tão usado pelos meios de comunicação, pelas classes políticas e por outras instituições vinculadas ao desenvolvimento social – todos sem possuir a consciência do quão distante uma favela está de ser uma comunidade – e dos erros metodológicos que isso provoca nos processos de intervenção (públicos e privados). Em uma segunda parte se aborda a perspectiva do território estudado a fim de entender a configuração urbana do espaço, mapeada através das vias principais, secundárias e terciárias de cada comunidade; e depois possa compreender a dinâmica comercial existente e suas particularidades: como se distribuem os Nodos e os Microcentros Comerciais Compostos e como se constroem as relações pessoais e impessoais entre os moradores. Uma terceira vertente do livro busca entender como os moradores de Rocinha e Heliópolis compõem e administram o orçamento familiar. Para isso, os pesquisadores moraram com algumas famílias para compreender as formas de obtenção de renda e de gestão de finanças pessoais que são, em grande parte, informais. Nesse aspecto, é preciso ressaltar que grande parte do conteúdo do livro se constitui em hipóteses, dado que a pesquisa não pôde dispor do tempo necessário para chegar a conclusões científicas e definitivas sobre a economia familiar nas duas comunidades.
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Dados Quantitativos O estudo estatístico da Rocinha foi elaborado a partir de uma amostragem aleatória para que cada morador tivesse a mesma oportunidade de ser entrevistado. Para essas entrevistas foram selecionadas as localidades de Dionéia, Vila Verde, Fundação, Rua 3, Via Ápia, 199 e Rua 2 e o trabalho de campo foi realizado durante os dias 3 e 4 de julho de 2010. Tomou-se uma amostra de 250 entrevistas, com margem de erro de 5%, o que é usual para esse tipo de estudo. A margem de erro refere-se à variação natural entre amostras da mesma população, ou seja, se pesquisada uma amostra adicional de 100 pessoas, 95% dos resultados seriam os mesmos. A amostra é composta por 40% de homens e 60% de mulheres. Para estimar o Nível Socioeconômico da Rocinha, foi usada a metodologia CCEB (Critério de Classificação Econômica Brasil), validada e utilizada pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. O sistema pretende ser uma forma única de avaliar o poder aquisitivo dos grupos de consumidores e não classifica a população em termos de “classes sociais”, mas em um mercado que se divide unicamente em classes econômicas. Tal classificação é feita com base na posse de bens e não na renda familiar. Para cada bem há uma pontuação e cada classe é definida pela soma dessa pontuação. As classes definidas pelo CCEB são A1, A2, B1, B2, C, D e E. Esse critério foi construído para definir grandes classes que atendam às necessidades de segmentação (por poder aquisitivo) da grande maioria das empresas. Há que ressaltar que não se tinha, para o presente estudo, informação prévia sobre a distribuição socioeconômica da Rocinha e que, evidentemente, tal distribuição não é a mesma da cidade do Rio de Janeiro. Foi precisamente por esta razão que se utilizou o sistema CCEB como uma forma
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de introduzir um critério de representação válido sobre a configuração de nível socioeconômico na Rocinha para, posteriormente, ser utilizado como base comparativa na análise dos orçamentos familiares compostos que ativam os MCCs. Boa leitura! Hernán Poblete Miranda Diretor IMR
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1. As representações da Rocinha no imaginário coletivo O estudo IMR revelou a existência de uma certa “cultura da pobreza”, que passaria de uma geração a outra da Rocinha junto com a incorporação de valores que colocam em xeque o conceito de pobre, visto sob a ótica de aspectos econômicos e sociais. A pobreza é resultado de processos complexos e propagados ao longo do tempo, que são difíceis de apreciar sob um olhar superficial, por exigirem pesquisas e estudos contínuos, a fim de alcançar sua compreensão, antes que se possa planejar qualquer tipo de tentativa de erradicá-la. Na Rocinha, a cultura da pobreza vem sendo mantida como um círculo vicioso capaz de garantir aos pobres condições de sobrevida na sociedade moderna1, um modo de vida que terminaria por gerar uma “síndrome” específica das populações de baixa renda, em que tanto se manifesta “um espírito de resignação e de fatalismo frente ao futuro, quanto uma certa ‘alegria de viver’ e uma forte dose de calor humano, tornando as dificuldades cotidianas mais suportáveis”.2 Por trás dessa cultura da pobreza, há, na verdade, um jogo de interesses políticos. Por um lado, ao reforçar a situação de pobreza na Rocinha, o Estado mantém sua influência política e econômica sobre a favela. Por outro, também interessa aos moradores manter os benefícios sociais. Entretanto, já é possível observar na Rocinha elementos mais comuns em outros círculos econômicos, apontando a inserção da favela em valores de outras camadas sociais. A possibilidade de acesso a uma assinatura mensal de TV paga é um exemplo. A TV Roc, instituída em 1996, por meio de um contrato com a operadora Net, possibilitou a criação de uma operadora de televisão por assinatura 1 Segundo assinala Oscar Lewis, antropólogo norte-americano, cujo trabalho de campo nos grandes cortiços das zonas centrais do México serviu de base ao seu best-seller Five Families (Lewis, 1959) 2 VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da Favela. Do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.
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e de um canal comunitário. Em 2010, custava entre R$ 30 e R$ 35, com R$ 60 pela adesão, e dava acesso a mais de 40 canais, entre a TV aberta, paga e comunitária. Exclusiva para os habitantes da Rocinha, em 2003, o número de assinaturas já era de cerca de 28 mil. A pesquisadora Lícia Valladares mostrou que, naquele ano, além do canal de TV exclusivo, já havia outros elementos que permitiam constatar o grau de inserção da localidade no espaço urbano. “Quando adentramos a Rocinha, ficamos espantados ao encontrar, ao mesmo tempo, uma sorveteria franqueada da cadeia McDonald’s, aberta dia e noite (que em abril de 2000 teve a maior venda de sorvetes do Rio), três sucursais da loja de material fotográfico DePlá, três pontos de venda – formais – de telefones celulares, videoclubes em profusão, agências bancárias, assim como uma agência dos Correios.”3 Ao longo da pesquisa foram constatadas as mudanças ocorridas em dez anos, ou seja, entre 2000 e 2010. Contudo, a diferença entre a representação social da Rocinha e a sua realidade se mantém evidente.
Representação social Em primeiro lugar é preciso entender o conceito de representação social – ideia que se situa nas fronteiras entre a sociologia e a psicologia – para compreender como essa diferença se mantém ao longo do tempo. O conceito de representação coletiva foi elaborado pelo sociólogo francês Emile Durkheim (1858-1917), para a construção de uma teoria da religião e da magia. Segundo o pensador, esses fenômenos coletivos eram diferentes dos fenômenos individuais. Para ele, a individualidade humana se constituiria a partir da sociedade, pois o conhecimento do grupo teria origem na vida social. A religião, por exemplo, seria produto de uma comunidade, ou de um povo. Assim, Durkheim fazia uma clara distinção entre as representações individuais, que comandariam a vida de cada pessoa, e as representações coletivas, que regeriam a vida coletiva. Ao pensador interessava estudar a sociedade. Caberia à Psicologia o estudo das representações individuais. 3 Ibid., 146
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As representações coletivas, como foram definidas pelo sociólogo francês, seriam fenômenos estáticos e imutáveis com a função de transmitir a herança coletiva dos antepassados. Assim, significaria a lei, a moral, os costumes, as instituições políticas, as práticas pedagógicas, ou seja a “consciência coletiva”. A principal crítica a esse pensamento é a de que ele não daria conta da complexidade da sociedade moderna. Novos elementos foram introduzidos pelo romeno Serge Moscovici, em 1961, que, ao resgatar o conceito de representação coletiva de Durkheim, criou o conceito de representações sociais. O psicólogo romeno acredita que o indivíduo tem papel ativo no processo de construção da sociedade e fala em representações sociais, como “conjunto de conceitos, frases e explicações originadas na vida diária durante o curso das comunicações interpessoais”. 4 O antropólogo e linguista francês Dan Sperber fez uma analogia com a medicina para diferenciar a representação coletiva da social. Segundo ele, a mente humana é suscetível a representações culturais, do mesmo modo que o corpo humano é susceptível a doenças5: Coletivas: representações duradouras, tradicionais, amplamente distribuídas, ligadas à cultura, transmitidas lentamente por gerações; comparadas à endemia. Sociais: típicas de culturas modernas, espalham-se rapidamente por toda a população, têm curto período de vida, semelhante aos “modismos”; comparadas à epidemia.
4 MOSCOVICI,S. On social representation. In FORGAS, J.P. (ed).Social cogbution. London: Academic Press, 1981,p.191) 5 Sperber (citado por Alexandre, Op. Cit.)
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De acordo com Marcos Alexandre 6, as representações sociais são uma modalidade particular porque não é todo‘conhecimento’que pode ser considerado representação social, mas somente aquele que faz parte da vida cotidiana das pessoas, pelo senso comum, que é elaborado socialmente e funciona no sentido de interpretar, pensar e agir sobre a realidade. É um conhecimento prático, que se opõe ao pensamento científico, porém se parece com ele, assim como aos mitos, no que diz respeito à elaboração desses conhecimentos a partir de um conteúdo simbólico e prático.7 Segundo, ainda, Marcos Alexandre, a teoria da representação social permitiria acompanhar o cotidiano dos indivíduos, considerando seus valores e identidades culturais, buscando suas verdadeiras raízes e origens, proporcionando o descobrimento de aspectos antigos e novos de sua identidade. Um ponto importante que destaca em seu artigo é que as representações do mundo social são sempre determinadas pelos interesses de grupos. Além disso, “as lutas de representações têm tanta importância quanto as lutas econômicas, para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os seus valores, o seu domínio”. 8 Essa ideia está muito presente ao analisar as representações sociais que se formaram em torno da favela. E aqui, especificamente, no caso da Rocinha.
6 ALEXANDRE, Marcos. Representação Social: uma genealogia do conceito. Revista Comum. Rio de Janeiro - v.10 - nº 23 - p. 122 a 138 - julho / dezembro 2004 7 Ibid 8 ibid
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Favela e Pobreza Desde o século XIX, tem havido uma evolução na sociedade brasileira com respeito as representações sociais da favela9. Nos últimos trinta anos, a literatura voltada para o tema, especialmente das favelas cariocas, vem registrando algumas características básicas, de caráter social. Lícia Valladares, em seu livro A invenção da favela, por exemplo, faz uma análise crítica do que chama de “dogmas”, indicando que eles apenas tentam reduzir a diversidade da favela por meio de olhares limitados que buscam homogeneizar. Entre os dogmas assinalados pela autora estão a especificidade da favela, que sublinha a maneira peculiar como ela ocupa o espaço urbano, fora das regularidades e das normas urbanas, sem ruas bem traçadas, com poucos ou ausentes serviços e equipamentos coletivos. Isto é, a favela como um espaço urbano específico e singular. Segundo Lícia Valladares, todos os organismos oficiais _ arquitetos, juristas, pesquisadores _ ou justificam suas abordagens lembrando que a favela é irregular e ilegal ou a valorizam pela estética única etc. Outra característica ou dogma é a favela vista como locus da pobreza, o território urbano dos pobres. A teoria da marginalidade também é usada para promover essa visão. Por fim, a favela como unidade: ainda que todos reconheçam tratar-se de uma realidade múltipla, todos se deixam levar pelo hábito de reduzir um universo plural a uma categoria única.
9 VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da Favela. Do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.
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41% 32% 18% 9%
B2
C1
C2
D
Figura 1 – Distribuição GSE na Rocinha (IMR, 2010)
“A trajetória certamente atípica desses indivíduos apresenta uma nova questão às Ciências Sociais brasileiras: a necessidade de desenvolver uma sociologia da mobilidade social, até hoje pouco presente na pesquisa. O desenvolvimento dessa área temática permitiria justamente abandonar a limitação da categoria construída pelos dogmas, fazendo aparecer claramente o complexo processo de diferenciação social que está ocorrendo na sociedade brasileira, inclusive nas favelas. É possível ser pobre e não residir em uma favela, ou morar na favela acreditando na possibilidade de uma ascensão social. Se deixarmos de confundir os processos sociais observados na favela com os processos sociais causados pela favela, será possível compreender fenômenos que, apesar de se manifestarem, de fato, nas favelas, também se manifestam em outros lugares. Nossa proposta é que as favelas deixem de ser o campo sistematicamente utilizado para estudar as mais variadas questões ligadas à pobreza. Só assim deixaremos de confundir favela e pobreza. 10
10 Ibid, 163
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Entre o asfalto e o morro A favela é um espaço urbano não reconhecido como tal. Ao longo de sua história, sempre foi vista como algo distante e indesejável. Uma espécie de chaga urbana, uma ferida no morro. Os dogmas que a permeiam seriam fruto disso. Poucos moradores do ‘asfalto’, como dizem os habitantes da favela, conhecem realmente o interior de uma delas; poucos se aventuraram a subir os morros. Então, é natural que o imaginário urbano reforce a representação negativa da favela, sempre ligada à violência e à pobreza. Se por um lado os moradores da favela frequentam o espaço urbano “normal”, “formal”, “legal”, “urbanizado”, local de trabalho, de consumo e de lazer, interagindo com os demais habitantes da cidade, o mesmo nem sempre acontece com os moradores do “asfalto”. Aqueles que vem “de fora” (acadêmicos, políticos, religiosos) tendem a enxergar a favela a partir de representações sociais criadas sob valores impostos socialmente. Os turistas estão ainda mais predispostos a acreditar em uma realidade “inventada”, com estereótipos em suas representações estéticas, pelas quais chegam a pagar dentro de um conceito de turismo “de aventura”. Se o Brasil é uma selva, a favela é o seu safari! Há um abismo entre os dois espaços – favela e cidade – , mantido por interesses sociais e reforçado por um discurso de dominação. Nessa relação, os habitantes da favela têm a vantagem de conhecer os dois mundos e, em ambos, poder transitar, não obstante a polarização morro/asfalto: “(...) apesar do retorno ao regime democrático, o afastamento entre ricos e pobres não deixou de aumentar, o esforço dos ricos para preservar seus privilégios passou a ser cada vez mais vigoroso e o abandono social pelo Estado mais manifesto. As categorias populares, abandonadas à sua sorte e excluídas de qualquer projeto de transformação social, assistiram ao espaço urbano ser privatizado e à segregação atingir uma intensidade até então desconhecida. (...) As favelas adquirem uma nova dinâmica social, caracterizada em particular pelo papel crescente do tráfico de drogas, inclusive no financiamento dos serviços locais, no domínio das associações
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de moradores e na vida local. Nesta representação, as favelas passam a ser consideradas como o lugar, por excelência, da exclusão moderna. Às tradicionais imagens depreciativas, inspiradas pela favela e sua população no tempo da teoria da marginalidade, acrescenta-se agora um novo estigma – ligado às conseqüências sociais e políticas negativas da globalização.”11 Desde o seu surgimento, se produz uma distinção muito clara entre a favela e a cidade. A história brasileira moderna está marcada por essa dualidade: quem mora na favela, não mora na cidade, e vice-versa. A música é um bom exemplo, ou mesmo um reflexo disso. sendo os elementos definidores traçados a partir da e com referência à cidade. Jane Souto de Oliveira e Maria Hortense Marcier destacam que “quando isso ocorre, o que chama a atenção, num primeiro plano, é a rígida demarcação que se estabelece entre ambas, fazendo com que a cidade seja vista como uma coisa e a favela como outra. Inúmeras são as referências musicais que tratam a favela como algo alheio, algo que não faz parte, algo, enfim, que é distinto da cidade – não importa a situação, os personagens ou os sentimentos que ai estejam envolvidos. (...) Essa demarcação se mostra, desde o início, nas composições (...) que estabelecem o confronto entre o samba do “morro” e o do “asfalto”. Ela permeia também o tratamento de um tema explorado principalmente nas letras musicais dos anos 1930 e 1950: a trajetória de indivíduos que deixam a favela e buscam se afirmar na cidade. Tais tentativas, como que fadadas ao insucesso, se revestem quase sempre de um caráter dramático: o afastamento de suas raízes, de seu local de criação e de seu grupo de referência levaria o indivíduo a se ‘perder’ na cidade. Em oposição ao senso comum, que faz da favela o local do perigo, é a cidade que, significativamente, passa aqui a exercer esse papel. A ênfase, contudo, se centra na inviabilidade do deslocamento favela-cidade, como se muralhas intransponíveis estivessem a separar uma da outra.12 11 VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da Favela. Do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008. p. 143. 12 Souto de Oliveira e Marcier, em Zaluar, 90
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Foi num samba/ De gente bamba/ Que eu te conheci, faceira/ Fazendo visagem / Passando rasteira / E desceste lá do morro/ Pra viver aqui na cidade/ Deixando os companheiros / Tristes, loucos de saudade/ Linda criança, tenho fé, tenho esperança/ Que um dia hás de voltar/ Direitinho ao teu lugar. Faceira (1931) Ary Barroso A distinção entre morro e asfalto também se manifesta no futebol. No Rio de Janeiro, o torcedor do Flamengo é estigmatizado como sendo “um favelado”. As torcidas dos demais times (e nas quais pode haver muitos moradores de favelas) costumam gritar para a torcida rubro-negra, quando ela se cala diante de uma situação adversa para seu time: “ela, ela, ela: silêncio na favela”. Um reconhecimento do estereótipo de que todo torcedor do Flamengo é pobre e, portanto, favelado. Cria-se assim uma situação interessante, pois torcedores de outros times, como Botafogo, Vasco, ou mesmo do Fluminense, time cuja imagem está ligada à elite carioca, também moradores das favelas, não se reconhecem como tal ao usar o “grito de guerra” pejorativo, com a intenção de ofender e depreciar a torcida flamenguista. A imagem do favelado, deturpada e repleta de preconceito, se mantém como representação social por meio da opinião pública. A mídia – olhos, boca e ouvidos da opinião pública – potencializa as representações cada vez que a polícia sobe o morro atrás de traficante; no desaparecimento de um morador ou quando algum integrante da indústria do entretenimento americana resolve gravar algo dentro das favelas. Se negativo ou positivo o fato, o que fica, no final, é a perpetuação do pensar a “favela” e representá-la como, historicamente, sempre foi pensada e representada: em oposições entre um mundo ordenado – o asfalto urbano, “nosso mundo”; o político, “o Estado”; o social, “o ser” – e um mundo anárquico, desordenado, exótico, sem regras – o morro não urbano, “o mundo deles”; o político, “o Poder paralelo”; o social, “a improvisação do estar”. Atraídos pela curiosidade por saber como vive o favelado, os turistas, parecem reconhecer a favela como espaço urbano, um espaço exótico, cheio
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de particularidades estranhas a eles, mas, ainda sim, um local a ser conhecido e desbravado. O turista muitas vezes surpreende o próprio morador. A equipe de pesquisadores do IMR viu uma moradora da Rocinha reagir indignada ao ver turistas estrangeiros no local: “Como pode sair lá do estrangeiro para visitar isso aqui?” Isso aqui: a favela! A descoberta da favela pelo turismo profissional parece ter sido um sinal da integração dos espaços à modernidade e à economia de mercado. “O Jeep Tour, criado em 1992, pega o turista nos hotéis e oferece, pela quantia de 30 dólares, um passeio de três horas, acompanhado de um guia em inglês, francês ou espanhol. Para o turista ter acesso a creches, escolas ou à associação de moradores, são necessárias doações feitas diretamente aos locais visitados”.13 Contudo, ao olhar o favela de cima de seu carro, o turista reproduz o estranhamento que o distancia do morador do morro. Por isso, o tratar a visita à favela como turismo de aventura, um safari na selva urbana. A classe de turismo “de aventura” é uma classe de risco, mas apenas aparente, pois se levanta ao seu redor um alto sistema de controle das possibilidades de risco. Desse modo, a reflexão de qualquer estudo inicial sobre a favela deve refletir acerca do binômio forma e conteúdo. No fundo, a forma que a favela toma é o que mais influencia na maneira como, quem está de fora, tende a pensar e perceber seu conteúdo. A imagem tem um poder até maior que o da palavra. A simples imagem da favela leva a pensar em pobreza.
Identidade cultural e representação. A Rocinha tem uma forte identidade com a cultura nordestina, mas também sofre grande influência da cultura local. Nas ‘quebradas’ do morro, o forró e o funk se misturam ao samba. No comércio, há uma variedade imensa de produtos nordestinos, além da tradicional feira, aos domingos, no Largo do Boiadeiro. Na 13 Valladares, 156
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favela, os bailes funk reúnem centenas de pessoas, além de atrair jovens dos bairros vizinhos, que procuram ali uma alternativa de diversão. Aqui mais uma vez, a busca pelo exótico, o diferente é que leva jovens da classe média carioca a procurar o morro. Contudo, esse é um morro civilizado, é o pé do morro, pois as festas mais procuradas por essa população estão na entrada da favela. Poucos se aventuram no interior da favela. Na localidade, por sua vez, são os filhos e netos daqueles nordestinos, que migraram para o Rio de Janeiro há décadas, que hoje lotam os espaços dedicados ao funk. Além do “funk”, o samba também tem seu lugar. A escola de samba Acadêmicos da Rocinha tem se destacado nos últimos anos. Entretanto, a identificação com o samba não se limita apenas à escola. Existem diversos blocos que desfilam pela favela e nos bairros do entorno, durante o carnaval. Um deles é o Ai que vergonha, único bloco da Rocinha a ter autorização da empresa de turismo do Rio, a Riotur, para desfilar oficialmente no carnaval carioca pelas ruas do bairro de São Conrado. O bloco, em geral, apresenta um tema político e de maneira sarcástica denuncia situações que envergonham a população. Esse misto de nordestino e carioca transformou a Rocinha em um dos locais com maior diversidade do Rio de Janeiro. Talvez seja esse o motivo pelo qual a favela continue recebendo novos moradores, além de consumidores culturais, tendo em vista que ela ainda oferece uma série de eventos que são realizados com a presença de celebridades. Por isso, a Rocinha atrai turistas de diversas partes do Brasil e do mundo, além, é claro, de um fiel mercado consumidor de produtos nordestinos e locais. Em meio a ideias pré-concebidas, é preciso visualizar a favela a partir de uma outra perspectiva, que questione os dogmas e as representações construídas para retratar de forma uniforme e homogênea o espaço da comunidade. Diversos atores de políticas públicas, desde políticos até mesmo as associações de moradores, se encarregaram de sustentar e perpetuar essa visão equivocada – que, para o propósito de um trabalho de intervenção em desenvolvimento,
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impede a realização de uma ação clara e concreta, que permita chegar aos núcleos originadores do fenômeno. Para o IMR, a favela não é um todo homogêneo, constituído de gente pobre; uma “comunidade carente”, mas sim um crisol de heterogeneidade, na qual convivem as mais diversas expressões, experiências, sonhos, mercados e expectativas. Todos os dados coletados durante a pesquisa questionam a visão excessivamente homogeneizadora das favelas. Estudos realizados por Lícia Valladares, a partir de dados de 1991, “permitiram demonstrar que, ao contrário da visão dominante, as favelas apresentam sinais evidentes de heterogeneidade em sua realidade física, espacial e social _ a tal ponto que se torna impossível alinhá-las em uma categoria única e distinta”. 14 Apesar da existência de diferenças entre as favelas e dentro delas – dado que os poderes públicos não ignoram – é sempre mais eficaz prever um alvo homogêneo, ao qual corresponderão exatamente programas especiais, capazes de resolver problemas sociais bem identificados, não contestados pela base, nem pelos políticos. Daí o interesse pelo postulado do caráter uniforme do espaço das favelas, do qual é possível deduzir rapidamente, e sem qualquer dificuldade, a homogeneidade de seus habitantes, privilegiando suas características dominantes. A permanência da expressão “população de baixa renda” empregada desde a época do BNH, criado em 1964, e mantido no Programa Favela-Bairro, testemunha essa tendência. Apesar de os habitantes das favelas estarem inseridos de maneira diferenciada no mercado de trabalho (assalariados, autônomos, trabalhadores informais), recebendo rendimentos regulares, ocasionais ou sazonais; baixos ou médios; pagando aluguel ou sendo “proprietários”; analfabetos ou diplomados em nível superior, estarão sempre incluídos num grupo único: “os pobres”. “Pelos anos 60 já é possível observar práticas de organização mais sofisticadas entre os favelados, mas estas eram muito dependentes de políticos demagogos 14 Valladares, 157
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e de seus cabos eleitorais. Se os favelados já eram capazes de se organizar coletivamente, permaneciam dependentes de mediadores ligados às agências públicas e à Igreja. É nessa década que processos de intervenção, como um acordo entre as associações de moradores das favelas e a Coordenação dos Serviços Sociais do Estado da Guanabara, geram um novo laço de dependência administrativa que reforçou as diferenças sociais internas já existentes nas favelas, onde era preciso reconhecer a presença de uma “burguesia favelada”, que assegurava o seu poder por meio do controle dos recursos locais (como as redes de água e eletricidade, mesmo precárias) e muitas vezes também pelo controle das associações de moradores”. 15
Origem do Termo Favela “Estudar uma favela carioca, hoje, é sobretudo combater certo senso comum que já possui longa história e um pensamento acadêmico que apenas reproduz parte das imagens, ideias e práticas correntes que lhe dizem respeito e, até certo ponto, mapeiam as etapas de elaboração de uma mitologia urbana. É também tentar mostrar, por exemplo, que a favela não é o mundo da desordem, que a ideia de carência (“comunidades carentes”), de falta, é insuficiente para entendê-la. É, por fim, mostrar que a favela não é periferia nem está à margem: Acari, por exemplo, é o centro ou Nodo de uma série de práticas e estratégias de grupos bem específicos: a burocracia municipal, estadual e federal, políticos e/ou candidatos, jornalistas, policiais, membros de entidades civis, laicas e religiosas, associações de moradores, comerciantes, traficantes, moradores em geral e, last but not least, pesquisadores atuando de forma perene ou ocasional e influindo no cotidiano da favela.”16 Alba zaluar Favela – Conjunto de habitações populares, geralmente construídas sem planejamento, no qual residem pessoas de baixa renda; morro (Dicionário Houaiss) 15 Ibid, 116 16 Zaluar e Altivo: UM SÉCULO DE FAVELA, FGV Editora, Rio de Janeiro, 2006, p. 12
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Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), esse tipo de habitação é um: “aglomerado subnormal (favelas e similares) é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais, ocupando ou tendo ocupado até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou não), dispostas de forma desordenada e densa, carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais”. A favela, tal como é conhecida hoje, começou a fazer parte da paisagem urbana do Rio de Janeiro no início do século XX. E, desde essa época, já era considerada um problema social. Relatos de jornalistas, cronistas, médicos, entre outros, levam a associar a ocupação do Morro da Providência, localizado na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, atrás da Central do Brasil, ao povoado de Canudos, na Bahia. Ex-combatentes da Guerra de Canudos (1896-97) teriam ali se estabelecido após a campanha contra o beato Antônio Conselheiro, no sertão baiano, passando a chamá-lo, de Morro da Favella. Assim, o termo favela foi popularizado pelos veteranos da Guerra. “Muitos soldados vieram acompanhados de suas ‘cabrochas’. Eles tiveram que arranjar moradas. (...) As cabrochas eram naturais de uma serra chamada favela no município de Monte Santo, naquele estado. Falavam muito, sempre da sua Bahia, do seu morro. E ficou a favela nos morros cariocas. Primeiro, na aba da Providência, morro em que já morava uma numerosa população; depois foi subindo, virou para o outro lado, para o Livramento. Nascera a Favela, 1897”17. Segundo Lícia Valladares, “a maior parte dos comentaristas apresenta duas razões para essa mudança de nome: 1ª) a planta favella, que dera seu nome ao Morro Favella – situado no município de Monte Santo no Estado da Bahia – ser também encontrada na vegetação que cobria o Morro da Providência; e 2ª) a feroz resistência dos combatentes entrincheirados nesse morro baiano da Favella, durante a guerra de Canudos, ter retardado a vitória final do Exército da República e a tomada dessa posição, representando uma virada decisiva da batalha.”18 17 Zaluar e Alvito, 65 18 Valladares, Licia do Prado; “A Invenção da Favela, Do Mito de origem a Favela.Com”; FGV Editora; Rio de Janeiro, 2008.
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Contudo, foi o livro Os sertões, publicado, em 1902, pelo jornalista Euclides da Cunha que deu início ao processo das representações, cuja relevância para esta análise será aqui abordada. O acontecimento em que o Morro da Providência foi rebatizado como Morro da Favella teria passado despercebido e essa palavra não teria alcançado a posteridade que conheceu “sem as imagens fortes e marcantes transmitidas por meio de Os sertões. Imagens capazes de permitir aos intelectuais brasileiros da época compreender e interpretar a favela emergente.”19 Em seu livro Euclides da Cunha descreve a região do sertão baiano em que havia se estabelecido a comunidade de fiéis do beato Conselheiro. Na descrição, o jornalista fala de uma “elítica curva fechada ao sul por um morro, o da Favela, em torno de larga planura ondeante onde se erigia o arraial de Canudos…”. O nome do morro estaria ligado a uma planta comum por ali, as favellas, cujo nome científico era Jatropha phyllacantha, também conhecida como faveleira e mandioca-brava. Em sua análise, Valladares demonstra a profunda influência do livro de Euclides da Cunha sobre os primeiros observadores da favela. Ela aponta alguns elementos que constituem o que chama de mito fundador da favela carioca. Esses elementos também seriam fundamentais para entender a fundação da grande maioria das favelas brasileiras, ainda presentes na memória coletiva. Esses elementos são20: (Valladares, 36) • Especificidades de um processo de crescimento urbano (ainda que fosse um povoado em área rural) rápido, desordenado e precário; • Topografia de uma região de morros que faz dela um verdadeiro bastião, de acesso muito difícil; • Ausência de propriedade privada do solo, substituída pela propriedade coletiva da terra; 19 Valladares, 30 20 Ibid, 36
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• Ausência do domínio do Estado e das instituições públicas (leis, polícia, municipalidades etc.) nesse território rebelado contra a República; • Ordem política específica, marcada pelo domínio do chefe (Antônio Conselheiro, líder carismático que desviou o povo de suas obrigações) (...) pregando abertamente a insurreição contra as leis; • Espaço capaz de condicionar o comportamento dos indivíduos, integrando os recém-chegados à identidade coletiva, homogênea e uniforme do grupo (...) ideia de comunidades, tão presente no campo analisado por Euclides da Cunha, acabou por ser igualmente associada à favela carioca, servindo de modelo; • Comportamento moral revoltante para o observador, marcado pelo deboche, pela promiscuidade e ausência de trabalho, uma economia fundamentada no roubo e nas pilhagens; • Um perigo para a ordem social de toda a região, inclusive de todo o sertão, um considerável risco de contágio. E Valladres explica: “No começo dessa analogia, as respectivas representações aparecem fortemente estruturadas pelas preocupações políticas relativas à consolidação da jovem República, saúde da sociedade e entrada na modernidade. A favela pertence ao mundo antigo, bárbaro, do qual é preciso distanciar-se para alcançar a civilização. (...) A imagem matriz da favela já estava, portanto, construída e dada a partir do olhar arguto e curioso do jornalista/observador. ‘Um outro mundo’, muito mais próximo da roça, do sertão, ‘longe da cidade’. (...) Universo exótico, em meio a uma pobreza originalmente concentrada no centro da cidade, em cortiços e outras modalidades de habitações coletivas, prolongavam-se agora, morro acima, ameaçando o restante da cidade. (...) Estava descoberta a favela e lançadas as bases necessárias para sua transformação em problema”. 21 21 Ibid
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Os elementos do mito fundador da favela trazem em si a gênese da história das representações da favela como “problema”22. (Valladares)
Anos 1930 Início dos processos de favelização do Rio de Janeiro e reconhecimento da existência da favela pelo Código de Obras de 1937 Como lembra a pesquisadora, a constituição das favelas no início do século XX também esteve ligada, no Rio de Janeiro, a uma política de retirada dos cortiços, considerados como ‘antros’ de pobreza em que moravam trabalhadores, mas boa parte de vadios e malandros. A cidade enfrentava problemas por causa da falta de moradia e não parava de crescer. Entre 1902 e 1906, o prefeito Francisco Pereira Passos (1836-1913) promoveu uma intensa reforma urbana, com o objetivo de sanear a cidade e promover ações de higienização. Primeiro, foram proibidas as instalações de novos cortiços, depois muitos foram destruídos para ampliação de vias e construção de “prédios modernos”, muitos deles de inspiração parisiense. O mais famoso cortiço da cidade, o Cabeça de Porco, foi desocupado e muitos dos seus moradores não tiveram outra alternativa do que ocupar os morros, entre eles o da Providência, ou da Favella. De acordo com Valladares, só depois da campanha contra o cortiço é que ocupação dos morros passou a ser vista como novo espaço geográfico e social relacionado à pobreza. Pois, assim como os antigos cortiços, as favelas eram consideradas um problema de saúde pública e segurança. Na imprensa, a favela era representada como sinônimo de marginalidade. Um exemplo disso é que em julho de 1909, o Correio da Manhã afirmava: “A Favela (...) é a aldeia do mal. Enfim, e por isso, por lhe parecer que essa gente não tem deveres nem direitos em face da lei, a polícia não cogita de vigilância sobre ela”. Segundo a antropóloga Alba Zaluar, na virada do século XX já existiam barracos parecidos com os da Favella em outros morros do Rio de Janeiro e aos poucos o termo virou sinônimo de comunidade carente. “As pessoas olhavam, viam as casas 22 Ibid, 36
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de zinco parecidas com as do morro do centro e também chamavam de favela. Resultado: favela virou substantivo”, diz a organizadora, junto com o historiador Marcos Alvito, do livro Um século de favela. A partir da década de 1910, as favelas cresceram mais intensamente, inclusive na zona sul e o seu crescimento foi acompanhado, nessa mesma década, pela repressão. Em 1927, chega ao Rio o urbanista francês Alfrede Agache, convidado pelo prefeito Antônio Prado Júnior (1880-1959) para remodelar a cidade. Em 1930, o plano do urbanista francês denuncia o perigo representado pela permanência da favela, justificando a sua destruição como uma questão de saúde pública e também de estética. Em 1937, o Código de Obras proibiu a criação de novas favelas ao mesmo tempo em que, pela primeira vez, reconheceu a sua existência, propondo-se a controlar o seu crescimento. Foi o primeiro texto jurídico a empregar o termo favela e a oficializar a ligação entre favelas e ilegalidade, aprofundando a dualidade com a cidade. Como não existiam oficialmente, esses espaços públicos careciam de investimentos.
Anos 1940 A primeira proposta de intervenção pública corresponde à criação dos parques proletários durante o período Vargas No Estado Novo, nos anos 1940, surgiram no Rio de Janeiro os parques proletários para abrigar moradores de favelas. O sociólogo Marcelo Bauman Burgos explica que os parques foram a primeira política habitacional para a população de baixa renda na cidade. Entre os anos 1942 e 1943, três parques receberam oito mil pessoas das favelas da Gávea, Cafu e Leblon. Os moradores tiveram a promessa de que a moradia no parque seria provisória e que voltariam às áreas de origem após a urbanização, o que não aconteceu. Segundo Burgos, o objetivo do governo do prefeito Henrique Dodsworth, nomeado para o cargo por Getúlio Vargas, seria controlar a parcela da população que vivia nos morros. Por isso, talvez, a exigência de atestado de bons antecedentes dos moradores.
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Os moradores do Parque Proletário da Gávea só seriam removidos, e fixados na Cidade de Deus, na década de 1970. Durante os anos 1940, a população das favelas passou a representar um novo perigo: o possível envolvimento com o comunismo. Diante da “ameaça comunista”, Estado e Igreja católica se uniram e criaram, em 1946, a Fundação Leão XIII, entidade assistencialista para subir os morros e evitar a influência do Partido Comunista Brasileiro. Foi a partir de 1945 que as favelas passaram a servir como instrumento e campo de atuação de políticos e negociação de votos. A favela passou a ter visibilidade no cenário político e cultural da época. Segundo Valladares (1978,p.26), “as favelas constituíram um campo fértil para a demagogia política. (...) os políticos tornaram-se verdadeiros intermediários entre a população local e o ‘mundo de fora’, de onde provinham os recursos e os serviços”.
Anos 1950 e início dos anos 60
Expansão descontrolada das favelas sob a égide do populismo
A década de 1950 foi fundamental para o desenvolvimento das favelas. Em primeiro lugar, pela explosão demográfica que se produziu em toda a América Latina. A evolução demográfica do Brasil observada no período de 1950 a 1980 foi espetacular; a população do país passou, em 30 anos, do predomínio rural (pelo recenseamento de 1950, 64% da população ainda morava no campo) ao predomínio urbano (pelo recenseamento de 1980, 68% da população já morava nas cidades). O crescimento urbano, daí resultante, foi explosivo – a população das cidades se multiplicou por 4,2 entre esses dois marcos de tempo – principalmente por meio do crescimento das favelas, dos loteamentos periféricos sem qualquer infraestrutura e da expansão dos cortiços, conferindo ao fenômeno da pobreza urbana uma amplitude sem precedentes. Em 1955, novamente a Igreja
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católica tentou atuar nas favelas por meio da Cruzada São Sebastião, liderada por dom Helder Câmara, em um projeto de urbanização. Procurou, portanto, assumir o papel de intermediária entre as favelas e o poder público. Por outro lado, o Estado instituiu o Serviço Especial de Recuperação de Habitações Anti-Higiênicas (SERFHA), primeiro órgão oficial voltado para a urbanização das favelas, atuando como mediador na relação do Estado com os moradores de favelas. Assim como no período do Estado Novo, por trás do papel de mediador, estava a ideia de controle da população e cooptação das lideranças das favelas. Ainda na década de 1960, com o esvaziamento do SERFHA, foi criada, na gestão do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961), a Companhia de Habitação Popular (COHAB) com a missão de desenvolver uma nova política habitacional, baseada na construção de unidades para famílias de baixa renda.
Meados dos anos 1960 até o final dos anos 70 Eliminação das favelas e sua remoção dentro da política habitacional feita pelo BNH (Banco Nacional de habitação) durante o regime militar O período de 1960 a 1980 foi de muitas incertezas para os moradores das favelas na cidade do Rio de Janeiro. Em 1963, a população favelada se organizou na Federação das Associações de Favelas do Estado da Guanabara (Fafeg). Com o golpe militar em 1964, porém, houve uma mudança na política habitacional adotada pelo governo federal que investiu em um programa maciço de construções habitacionais. Em agosto de 1964 foi criado o Banco Nacional de Habitação, órgão financiador e responsável por programas habitacionais. O banco ganhou força quando passou a ser financiado por recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), a partir de 1967. Entretanto, em vez de sanar a questão de falta de moradias, a nova política habitacional resultou em um aumento da favelização..
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Com Negrão De Lima (governador da Guanabara entre 1965 e 1970) no “governo, a tendência era retomar a trilha deixada pelo SERFHA, criado durante sua passagem pela prefeitura, em 1956, fazendo supor que a via urbanizadora das favelas voltaria a ser privilegiada e que, no lugar do controle duro e direto, tentar-se-ia estabelecer a estratégia de cooptação. De fato, a princípio, a COHAB foi deixada de lado, atribuindose maior ênfase ao trabalho da Fundação Leão XIII junto às associações de moradores. No entanto, distante da pedagogia cristã dos anos 50, baseada na percepção de habitantes de favelas como ‘irmãos cristãos’, agora, a Leão XIII pautaria sua ação por uma leitura que via a favela como o lugar do vício e da promiscuidade, ‘refúgio de criminosos’. Diante dessa reelaboração da identidade do favelado, nem mesmo a lógica de negociação baseada na cooptação de lideranças, experimentada no início dos anos 1960 pelo SERFHA, poderia ser implantada; afinal, ela fora desenvolvida tendo em vista uma outra identidade do favelado, aquela que vinha sendo politicamente construída e que, inclusive, dera lugar a uma identidade federativa, a Fafeg. A polarização entre o mundo da ordem e o lugar da desordem devolve a representação da favela aos termos da década de 1940, da favela como o habitat de indivíduos pré-civilizados; e, por isso, não cabendo mais o diálogo com suas “identidades políticas: a discussão sobre o que fazer com as favelas torna-se impermeável à participação de seus moradores.”23 Uma das metas da política habitacional desse período era a erradicação das favelas e a transferência dos moradores para a periferia, longe do local de trabalho e carente de infraestrutura. Porém, esse plano enfrentaria uma forte reação de seus moradores na cidade. Organizados politicamente e representados por uma Fafeg que congregava cerca de 100 associações de moradores, os habitantes das favelas lutariam de forma desesperada para não serem removidos, entrincheirados na identidade politicamente construída de favelado. A história dessas remoções, ocorridas sobretudo entre 1968 e 1975, representa um dos capítulos mais violentos da longa história de repressão e exclusão do estado brasileiro.24 (Zaluar e Alvito). 23 Zuluar e Alvito, 34 24 Ibid
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De 1968 até 1975, pelo menos 50 mil famílias carentes foram obrigadas a deixar suas casas. O governo militar justificava a retirada das favelas, principalmente as localizadas na zonal sul da cidade, com razões estéticas, mas, na verdade, o objetivo evidente era a liberação de lotes para usos mais lucrativos, como edifícios de luxo.
Anos 1980
Início de um processo de transição (da política pública habitacional) de remoção para urbanização das favelas, fim do BNH (em 1986); período de redemocratização do país
Anos 1990
No Rio de Janeiro, consolidação da ideia de urbanização das favelas, como o Programa Favela-Bairro; período que marca o início do programa brasileiro de estabilização econômica com o Plano Real (em 1994).
Nos anos 1980, ocorreu uma nova onda de expansão de ocupação urbana informais. Com o início da redemocratização, durante os anos de 1980, o Rio de Janeiro observou a implementação de políticas sociais clientelistas e uma negação a prática de remoções. A prática clientelista foi adotada pelo governo de Leonel Brizola, em especial no primeiro mandato de 1983 a 1987, e representou também uma nova forma de se lidar com as favelas. A proposta de Brizola era transformar as favelas em bairros populares. Ele desenvolveu então projetos que visavam a implantação de infraestrutura (rede de água, saneamento e coleta de lixo). Além disso, o programa mais importante do governo Brizola era denominado “Cada Família um lote”, que visava à regularização fundiária das moradias nas favelas (BURGOS, 2004, p. 42). No decorrer do governo Brizola os investimentos feitos pelo moradores das favelas em suas casas fez com que muitas deixassem de ser simples barracões de madeira e passaram a ser de alvenaria. A regularização dos imóveis das favelas da zona sul pôs fim ao fantasma da remoção.
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Contudo, novas ações do poder público ganhariam expressão na década de 1990. Em 1992, o então prefeito Marcelo Alencar consolidou a ideia de um programa global de integração das favelas à cidade. Foi o chamado Plano Diretor da Cidade, sancionado aquele ano. O PD definiu o problema favela como uma questão municipal, fundamental para o futuro da cidade. Foi pelo ângulo da política de segurança que o problema favela voltou à cena A ideia era que a instituição de um planejamento permanente a partir dos Planos Diretores de Bairro, invertesse o fluxo hierárquico frequentemente estruturado para funcionar de cima para baixo, criando mais dinamismo no sistema de gestão, além de maior garantia do controle social sobre a aplicabilidade do plano. O universo particular de cada bairro foi discutido e debatido nas assembleias criadas para a elaboração do plano . Com isso, foi possível pensar um sistema de planejamento e gestão acoplado ao orçamento participativo, cujas demandas traçadas não só a curto prazo, fariam parte de uma agenda maior de investimentos. O plano previa que a problemática de um bairro não se esgotasse nele mesmo, mas fosse constantemente confrontada com as de outros bairros, na perspectiva da construção coletiva da cidade para todos. A definição dos Planos Diretores de Bairro, no entanto, não poderia se resumir em mais uma simples forma eficaz e democrática de gestão. Deveria ser um instrumento propício ao desenvolvimento de iniciativas que partiriam da sociedade civil para fortalecer processos de real implementação do Plano Diretor, garantindo que fosse um espaço de construção participativa, controle social e monitoramento constante da sua aplicação. A representação da favela inscrita no PD e os princípios democráticos nele consagrados iriam nortear a política habitacional proposta pelo Grupo Executivo De Assentamentos Populares – GEAP – criado pelo prefeito Cesar Maia, em 1993. O GEAP propôs seis programas habitacionais e um deles foi o Favela-Bairro, projeto de urbanização das favelas com alto investimento público e internacional, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).. Segundo
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a definição proposta pelo GEAP, o Favela-Bairro teria por objetivo: “construir ou complementar a estrutura urbana principal (saneamento e democratização de acessos) e oferecer as condições ambientais de leitura da favela como bairro da cidade”. Seus pressupostos deveriam ser o” aproveitamento do esforço coletivo já desprendido” (prevendo, portanto, um reassentamento mínimo); a “adesão dos moradores”; e a “introdução de valores urbanísticos da cidade formal como signo da sua identificação como bairro”. O programa visava a implementação de melhorias na infraestrutura urbana promovendo a integração com o meio social, transformando a favela em bairro. Portanto, nota-se que o Favela-Bairro teve por princípio intervir o mínimo possível nos domicílios, definindo-se como um programa eminentemente voltado para a recuperação das áreas e equipamentos públicos.[10] Até o ano 2000, o GEAP beneficiou 54 favelas e oito loteamentos irregulares, segundo dados do Instituto Pereira Passos. Anos mais tarde, em 2007, os recursos e os objetivos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na Rocinha, proposto pelo governo federal, foram herdeiros dessa política.
2010 A Prefeitura do Rio lança o Programa “Morar Carioca”25, dentro do chamado Plano Municipal de Integração de Assentamentos Precários Informais. O programa Morar Carioca prevê a urbanização das favelas do Rio de Janeiro até 2020, promovendo o controle da ocupação do solo urbano. De acordo com a prefeitura, o Morar Carioca é um compromisso internacional que faz parte do Plano de Legado Urbano da Olímpiada de 2016 e deverá beneficiar 260 mil moradias. 25 Fonte: Secretaria Municipal de Habitação – Prefeitura do Rio, Julho 2010.
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Para o prefeito Eduardo Paes (PMDB), durante o primeiro mandato, entre 2008 a 2012, o grande diferencial do programa era que “por ser um projeto de urbanização que engloba a definição de parâmetros urbanísticos, controle de expansão e uma conservação permanente do Município, o Morar Carioca vai nos permitir começar a criar a cultura de que comunidade urbanizada faz parte da cidade.”26 A nova metodologia de cadastramento e mapeamento das favelas usada pelo projeto foi explicada pelo então secretário de Desenvolvimento do Município e diretor do Instituto Pereira Passos (IPP), Felipe Góes: “Integração é a palavra chave deste plano. Ele vai integrar definitivamente todos os assentamentos precários, as comunidades carentes, à chamada cidade formal. Para definirmos as políticas públicas adequadas para esse programa, tivemos que reconhecer a existência dos complexos, ou seja, favelas que se encontram em áreas contínuas e formam um tecido urbano único”. A abrangência do programa, segundo a prefeitura, era digna de destaque, pois iria executar ações em comunidades em todas as regiões do Rio e, por isso, beneficiaria a cidade como um todo, não apenas os moradores das áreas em que iriam ocorrer as intervenções. O programa previa deixar sob a responsabilidade da prefeitura do Rio a implantação dos serviços básicos de conservação da infraestrutura e dos equipamentos sociais, como iluminação, pavimentação, drenagem, limpeza; implantação de um sistema de controle do surgimento e do crescimento irregular de favelas, sob fiscalização da Secretaria Especial da Ordem Pública (Seop); o mapeamento anual das favelas, por meio de fotos aéreas e satélites (antes a atualização era feita de quatro em quatro anos); ampliação da Legislação Urbanística, pelo aumento do número de Postos de Orientação Urbanística e Social (Pouso) de 30 para 130; e reassentamento das famílias em áreas de risco. 26 http://www.rio.rj.gov.br/web/smh/exibeconteudo?article-id=988601
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Mudança de foco Paralelamente a todas as propostas urbanísticas para as favelas no Rio de Janeiro, a partir dos anos 1980 houve uma mudança de foco na representação das favelas. Ao lado de um mercado imobiliário bastante ativo – tanto para venda, quanto para locação – desenvolveu-se também, em plena modernização, um enorme mercado de serviços para responder às demandas cada vez mais diversificadas de uma população consumidora de produtos ligados direta ou indiretamente à globalização. Entre os produtos de consumo “modernos”, a droga é o que mais chama a atenção, sobretudo pelas práticas violentas associadas a ela. Mas o mercado da droga está voltando principalmente para o exterior das favelas, e não se poderia reduzir a economia das favelas à economia das drogas. Inúmeras outras atividades econômicas que nelas se desenvolvem, talvez menos “espetaculares” para os meios de comunicação, são os motores e signos de importantes transformações em suas estruturas socioeconômicas.27 A participação popular foi prioritária na agenda dos pesquisadores durante os anos 1970 e 1980 no Brasil, mas a violência urbana passou ao primeiro plano nos anos 1990. “Essa representação, que se intensificou a partir dos anos 1990, permitiu imaginar que estaria ocorrendo um aumento da violência, capaz de criar uma situação incontrolável para os poderes públicos. Acontecimentos como o massacre da Candelária, ocorrido na madrugada de 23 de julho de 1993, perto da igreja de mesmo nome no centro do Rio, em que oito pessoas, entre elas seis menores, foram mortos por policiais militares e da favela de Vigário Geral, em agosto do mesmo ano, quando 21 moradores foram mortos por um grupo de extermínio, levaram à denúncia da polícia por corrupção, tanto pelas ONGs nacionais, quanto por organismos internacionais atuando a favor dos direitos humanos. Mais recentemente, a imprensa e outros meios de comunicação começaram a publicar informações sobre o envolvimento de policiais com a corrupção, os sequestros e o tráfico de drogas”.28 27 BURGOS, MARCELO BAUMANN (1998) – Dos parques proletários ao Favela-Bairro – as políticas públicas nas favelas do Rio de Janeiro In ZALUAR, ALBA e ALVITO, MARCOS Um século de favela, Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, p 25 - 60 28 Zuluar e Alvito, 142
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A violência produzida pelos braços armados do tráfico tem forçado um debate mais amplo acerca do modelo de cidade que se quer para o Rio de Janeiro. É necessário redefinir o problema favela. O repertório produzido ao longo da história – a favela como um problema de saúde pública; como um quilombo cultural ou como um cancro moral; representações correntes nos anos 1940 e 50 – parece não fazer mais sentido.
A Rocinha não é uma Comunidade Pelas vielas, becos e travessas se espalham barracos, pequenas edificações, o comércio da Rocinha e seus milhares de moradores que, com o passar dos anos, viram a condição de “favelados” assumir um caráter depreciativo, associado a drogas, tráfico, sujeira. A favela como representação da pobreza é uma visão perpetuada pelas ações de agentes políticos e sociais. Assim, com o tempo, o termo comunidade passou a ser usado como uma maneira de amenizar esse estigma. A Rocinha é uma comunidade e não uma favela, faz questão de frisar o morador. A palavra comunidade vem do latim e está associada à ideia de comunhão, compartilhamento. Por isso mesmo, foi largamente utilizada no sentido religioso pela cultura cristã. Mais recentemente, movimentos socialistas, sobretudo os utópicos, utilizaram o termo para difundir ideais comunitários. Para a antropóloga Patrícia Birman, “a noção de comunidade, baseada em valores católicos, não precisa ser explicitamente religiosa, como, aliás, frequentemente não é: as referências à comunidade como lugar de realização da hierarquia e da complementaridade entre os diferentes se encontra ancorada num catolicismo difuso que se confunde, em algumas circunstâncias, com o que seria próprio do patrimônio nacional. Ela ganhou, para certas agências governamentais e não governamentais, um valor emblemático como lugar de realização de valores “tradicionais”. A imagem que resulta dessa concepção identitária é positiva e fartamente acionada – tanto por moradores de favelas, quanto pela sociedade mais ampla – em momentos em que se quer valorizar os elos dos primeiros com a segunda.”29 29 BIRMAN, P. Favela é comunidade? In: Machado da Silva, L. A. (org), p.108
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A questão é saber se o termo comunidade é utilizado como forma de mudar a representação do favelado ou é apenas uma outra maneira de reforçar esse estigma ou dele obter algum tipo de vantagem. Em um dado momento desta pesquisa, um dirigente da associação de moradores chegou a pedir dinheiro para permitir filmar e fotografar a Rocinha – por ele mesmo denominada “comunidade carente”. A socióloga Lícia Valladares explica que: “o uso deste termo também legitima o seu próprio estatuto como representante investido pela comunidade, mas também oculta todas as diferenças e conflitos existentes entre os diversos espaços ou entre os próprios habitantes. A noção de comunidade supõe uma ideia de união – que nem sempre tem sido característica dessas associações e de seus territórios. E assim mascara a diversidade das situações sociais e a multiplicidade dos interesses presentes em uma estrutura frequentemente mais atomizada do que comunitária”.30 Segundo a socióloga, as associações de moradores retomam a imagem de comunidade carente para garantir ajuda do poder público para os moradores. Para ela, as associações de moradores têm papel de mediação, “quando reafirmam a especificidade dos espaços por elas representados, querem sublinhar o estado precário de seus habitantes quanto ao estatuto jurídico da ocupação do solo, e do equipamento urbano, além da cidadania”31. Valladares sublinha que, muitas vezes, os próprios moradores reforçam as práticas dos líderes comunitários na hora de defender seus interesses. “Prova disto é que estes investem por último na melhoria do aspecto exterior de suas moradias, prolongando a percepção dos espaços precários, ainda que o conforto do interior das casas tenha progredido de maneira considerável”.32
30 VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da Favela. Do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008. 31 Ibid,160 32 Ibid,
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Além do poder público, as organizações não governamentais (ONGs) que atuam nas favelas mantém no imaginário coletivo a representação de comunidade carente. Mais próximas aos “pobres” do que muitas outras instituições, pois suas sedes ou filiais funcionam na própria favela, elas reafirmam o discurso das associações de moradores quanto à noção de “comunidade” e suas conotações de união, solidariedade e coesão. “Muitas vezes, essas organizações têm clientelas bem específicas – mulheres, crianças, jovens, negros etc. – e domínios de ação particulares, mais sempre ressaltam uma visão mais global que insiste sobre os excluídos, as vítimas da violência, as mulheres chefes de família etc., como segmentos da pobreza. Um discurso globalizante que, opondo os “pobres” a todo o resto, só pode continuar produzindo a uniformidade”, explica Valladares.33 De acordo com a pesquisadora brasileira, o modelo do freerider pode ser utilizado para analisar a presença das relações hierárquicas na favela, pois salienta os interesses pessoais e as vantagens que podem ser obtidas de uma situação determinada – o que contradiz uma ideia de comunidade, tão arraigada nas representações que se fazem do “mundo da pobreza”. O conceito de freerider foi utilizado pelo economista e cientista social norte-americano Mancur Olson em seu livro A lógica da ação coletiva para explicar o comportamento de indivíduos que: “[...] não têm nenhum interesse comum no que toca a pagar o custo desse benefício coletivo. Cada membro preferiria que os outros pagassem todo o custo sozinhos, e por via de regra desfrutariam de qualquer vantagem provida quer tivessem ou não arcado com uma parte do custo .34” 33 VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da Favela. Do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008. 34 Olson, Mancur. 1999. A Lógica da Ação Coletiva: os benefícios públicos e uma teoria dos grupos sociais. São Paulo: EDUSP
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Segundo Olson, o freerider é aquele que desfruta do bem coletivo sem ter pago nenhum custo para a sua obtenção e com isso impede que o grupo atinja seus objetivos. Valladares acredita que “a prática do jeitinho brasileiro” também contribuiu para o desenvolvimento de mecanismos e meios formais e informais de obter benefícios. E, numa transposição para o modelo brasileiro do conceito de freerider, a socióloga avalia ainda que: “se a participação dos favelados foi ativa e criativa, ela também se reconhece mais individual do que coletiva, cada um tentando captar vantagens particulares, sugerindo ser a ideologia utilitária e a ética individualista mais fortes do que a orientação para agir coletivamente.”35 Como foi dito anteriormente, a presente pesquisa IMR não considera a favela um todo homogêneo, constituído de gente pobre, uma “comunidade carente”, mas sim um local de convivência e confluência das mais diversas expressões, experiências, sonhos, mercados e expectativas. Por isso, para evitar o conceito de comunidade e sua representação ainda ligada a estereótipos, a presente pesquisa feita por IMR adotou uma outra linha analítica: a distinção comunidade/localidade.
Por que Localidade? O antropólogo norte-americano Anthony Leeds (1925-1989) definiu a questão das relações entre o poder local (na favela) e as instituições supralocais como importante elemento de sua problemática. Leeds veio ao Brasil duas vezes. A primeira, na década de 50, para estudar a economia cacaueira na Bahia e, mais tarde, no fim dos anos 60, acompanhando um grupo da Organização dos Estados Americanos (OEA) para pesquisar as favelas cariocas. Nesse período, o antropólogo analisou as remoções dos moradores feitas pelos programas habitacionais e suas conclusões diferiram da maior parte do pensamento antropológico da época, para o qual o morar na favela estava relacionado com impossibilidade de ocupar outros 35 VALLADARES, Lícia do Prado. A invenção da Favela. Do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2008.
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espaços urbanos. Para Leeds, as favelas tinham uma forma de organização complexa, mas ele discordava da existência de uma ‘cultura da favela’. Leeds criticou o conceito de comunidade como sinônimo de favela, que para ele era apenas um local de moradia e sem a conotação de estigma social, defendendo assim a heterogeneidade das favelas. O historiador e antropólogo carioca Marcos Alvito em Um século de favela expõe o pensamento de Leeds. Segundo Alvito, para Leeds os chamados estudos de comunidade utilizavam os mesmos métodos dos estudos de tribos, de outras realidades distintas. “Criticando o uso difundido da noção de comunidade, propôs substituir esta noção pela de ‘localidade’. Segundo ele, “o uso do termo ‘localidade’ não nos obriga a postular uma noção mínima ou máxima de organização como a ‘comunidade’ (...) nem a discutir seu status ontológico (...). Não nos obriga a supor que a localidade em que vivemos seja também uma comunidade. Geralmente ela não o é (...). As localidades como pontos nodais de interação, caracterizam-se por uma rede altamente complexa de diversos tipos de relações. Os laços de parentesco da família nuclear e, frequentemente, aqueles com parentes próximos, serão amplamente encontrados nas localidades, especialmente nas pequenas. As amizades mais próximas também tendem a existir na localidade. Os vizinhos existem, por definição, na localidade. O que contribui para caracterizar uma localidade é o fato de ela permitir apenas a identificação do local de moradia dos indivíduos; o fato de residir em uma localidade não significa necessariamente seu pertencimento a uma comunidade local (...). Essa concepção é apoiada por uma visão da sociedade urbana como sistema complexo, não sendo possível compreender um elemento isoladamente sem considerar suas relações com os demais.” 36 O relevante desse conceito é que ele se liga à noção de Nodo e Microcentro Comercial Composto (MCC) – conceito desenvolvido por IMR em suas análises das dinâmicas socioeconômicas em espaços urbanos onde há informalidade, como será visto mais à frente: “A característica fundamental das localidades seria o fato de constituírem ‘pontos nodais de inteiração (ou interação?), onde há uma rede altamente 36 Zaluar, Alba e Alvito, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV Editora. 2006
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complexa de diversos tipos de relações’. Estas seriam, sobretudo, laços de parentesco bastante próximos, amizades mais significativas, parentesco ritual e vizinhança. Em suma... localidades são, na verdade, segmentos altamente organizados da população total”.37 Ao conceito de localidade pode-se somar a contribuição do antropólogo francês Marc Auge com a sua definição dos espaços de interação do tipo lugar/não lugar – sendo o lugar um espaço similar à localidade de Leeds, mas com o elemento de reconhecimento pessoal, com a identificação da singularidade do outro e o não-lugar, o oposto, ou seja, os espaços públicos de rápida circulação, como aeroportos, estações de trem e metrô. O conceito de MCC das pesquisas IMR localiza esses espaços em sua maioria informais de atividade econômica em “lugares”, ou espaços de interação nos quais o relacionamento é pessoal; a localidade será uma classe de “lugar”, “um espaço caracterizado por coisas tais como um agregado de pessoas mais ou menos permanente ou um agregado de casas, geralmente incluindo e cercadas por espaços relativamente vazios, embora não necessariamente sem utilização”.38 Por sua vez, um Nodo Comercial está mais próximo ao conceito de não-lugar de Augé. Nele os relacionamentos são transitórios, impessoais e altamente funcionais. Augé dá como exemplo de não-lugar o metrô de Paris, pelo qual milhões de pessoas circulam, sem um reconhecimento à sua condição individual. Tanto nos Nodos Comerciais, quanto nos não-lugares; não existe a “circulação” além da obrigatória. E isso pode ser constatado na Rocinha, mais especificamente na Estrada da Gávea. Marcos Alvito, ao estudar a favela de Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, notou processo semelhante. “O que eu entendo por circulação, naturalmente, exclui trajetos obrigatórios, como a ida ao trabalho, ao mercado ou à escola. Notei que eu encontrava sempre as mesmas pessoas nos mesmos locais. Depois de um certo tempo, eu já conhecia alguns grupos de mulheres, sempre a conversar, sempre próximas às suas casas, às vezes sentadas nas soleiras das portas. Quanto aos homens, 37 Ibid 38 Ibid
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cada birosca tem um bom número de frequentadores “fixos”, a imensa maioria deles, vizinhos muito próximos. Na maior parte do tempo, nada consomem: a “barraca”, como eles chamam, é apenas um ponto de encontro.”39
As microáreas Para efeito do estudo realizado com o propósito de entender um espaço historicamente marginalizado da cidade formal – e que foi em sua grande maioria autoconstruído – é possível recorrer ao conceito de microárea, exposto pelo antropólogo Marcos Alvito em sua já referida análise sobre a favela de Acari no livro Um século de favela. Segundo Alvito, as microáreas seriam pedacinhos da favela e serviriam como suporte para representações acerca das diferenças existentes no interior de uma única favela. O antropólogo descreve as várias microáreas de Acari: “há microáreas vistas como mais pobres... onde ainda predominam barracos de madeira improvisados. Uma divisão básica pode ser feita entre microáreas “mais pra fora” e “mais pra dentro” da favela. As regiões interiores, mais longe “do asfalto”, são menos valorizadas”.40 Para o pesquisador, cada pedacinho de favela forma uma rede de relações que tem como ponto de partida a vizinhança. “A microárea é aquele espaço intermediário entre o privado (casa) e o público, em que se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade.”41 Assim, seria nos pedacinhos da favela que se desenvolveriam o dia a dia da vizinhança imediata, os intercâmbios e relacionamentos pessoais. Nas microáreas, os laços de amizade e vizinhança, já enormemente ativos, seriam reforçados por laços de parentesco, incluído o parentesco ritual estabelecido pela existência de “comadres” e “compadres”. Apesar da favela ser um espaço heterogêneo, no qual convivem diferentes 39 Ibid, 193 40 Ibid, 187 41 Ibid
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agentes econômicos, cada microárea parece, no entanto, exigir dos seus moradores um comportamento igualitário, em que a generosidade excessiva, bem como a avareza, estariam deslocadas num ambiente marcado pela horizontalidade das relações sociais. “O título para aqueles que sabem estabelecer esse relacionamento de forma equilibrada é parceiro, entre os homens, e comadre, entre as mulheres; mesmo que não haja entre elas parentesco ritual propriamente dito”.42 Outra característica desses pedacinhos de favela é que o limite no relacionamento entre gêneros é bastante restrito e definido. “Principalmente no caso das mulheres casadas, a rede de reciprocidade que lhes é permitido construir é bem mais restrita e normalmente assenta-se na própria organização familiar: cunhadas e sobrinhas, preferentemente sob a supervisão vigilante da sogra. No máximo, pode incorporar-se a esse círculo uma vizinha muito próxima, da casa ao lado ou em frente. O locus de tais relações femininas de reciprocidade é o espaço doméstico ou a fronteira do mesmo (“as portas”). A exceção fica por conta de atividades externas justificadas pela dinâmica da “casa” e da família, como fazer compras no supermercado, levar as crianças à escola ou então ir à igreja (normalmente, em grupos compostos de outras mulheres ou acompanhadas dos filhos).43 Alvito assinala que os homens, ao contrário, raramente se visitam, mas por outro lado, os espaços em que se reúnem são vedados às mulheres. Conhecer uma favela é, portanto, entrar em um mundo de diversidade esmagadora; cada pedacinho trazendo as marcas que a maioria dos moradores foi guardando e acumulando ao longo de muitos anos. As microáreas são o locus de uma memória que tanto pode ser trágica (“bem nesse lugar aqui ela foi assassinada por seu namorado”), quanto alegre, “e referir-se às travessuras conjuntas, às inúmeras brigas entre eles, das quais se riem muito hoje. É um espaço com as marcas das relações familiares, dos entes queridos – hoje ausentes”. 42 Ibid 43 Ibid, 194
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2. Rocinha, uma favela em transformação Na madrugada de 13 de novembro de 2011, equipes de policiais deram início à ocupação da favela da Rocinha para a instalação de uma “Unidade de Polícia Pacificadora” (UPP), projeto da Secretaria Estadual de Segurança Pública da cidade do Rio de Janeiro para instituir formalmente a presença do Estado em áreas antes dominadas e controladas pelo narcotráfico. O projeto de pacificação das favelas cariocas foi inspirado na experiência da cidade de Medelín na Colômbia. A primeira UPP foi instalada em 2008 no Morro Santa Marta, localizado no bairro de Botafogo, zona sul da cidade. Um total de trinta e quatro unidades foram implantadas desde então, incluindo a unidade da Rocinha. Cada UPP tem sede própria e uma força policial ligada a um Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Os moradores acompanharam toda a ação policial que reuniu cerca de três mil homens, seis veículos blindados da Polícia Militar, além de blindados da Marinha do Brasil e helicópteros. A chamada “Operação Choque da Paz” havia sido planejada há meses pelas forças de segurança do Estado. Os traficantes que controlavam a Rocinha tentaram impedir a ação policial fazendo barricadas com lixo e entulhos, além de espalhar óleo na pista. Porém, nada impediu a chegada das tropas ao alto do morro e a retomada do território que transcorreu de forma mais tranquila do que os moradores imaginavam. Nenhum tiro foi disparado durante toda a operação. Considerada a maior favela do Brasil, a Rocinha se encontra assentada na encosta do morro Dois Irmãos que separa os bairros São Conrado e Gávea, ambos localizados na zona sul do Rio de Janeiro, área com a população de maior poder aquisitivo da cidade. Em 1985 foi criada a XXVII Região Administrativa municipal para tratar especificamente de tal favela devido à sua expressiva densidade demográfica e complexidade territorial. O Decreto nº 6.011 de 1986 concedeu o status de “bairro” à região – status que seria posteriormente confirmado pela Lei nº 1.995 de
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1993, a qual definiu os limite físicos da Rocinha. Apesar das iniciativas oficiais de promover a urbanização e formalização de um espaço historicamente marginalizado e excluído de qualquer projeto urbanístico, a população da cidade formal – chamada de “asfalto” pelos moradores dos morros cariocas – e muitos dos próprios moradores da Rocinha ainda a reconhecem como uma favela perigosa. A transição de favela a “bairro” é um processo que sofre com a falta de integração e ordem entre as estâncias dos poderes municipais, estaduais e federais. Decorridos vinte anos da lei municipal que transformou a favela em bairro, muitas das ações previstas pelo legislativo não saíram do papel – principalmente no que diz respeito à regularização fundiária e urbanística. Retratar a Rocinha se torna, assim, uma questão complexa. Diversos estudos com variadas metodologias e conceitos realizados por distintos órgãos de âmbitos municipais, estaduais e federais encontram uma dimensão diferente para a favela-bairro. De acordo com o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Rocinha tem 69,3 mil moradores em uma área de 864.052 metros quadrados. Dados do Censo Domiciliar, da Secretaria de Estado da Casa Civil, realizado entre os anos de 2008 e 2009 com o objetivo de instituir na Rocinha ações do Programa federal de Aceleração do Crescimento (PAC), estimou a população em 98.319 pessoas. Tal estimativa utilizou como base um número de entrevistados de 73.410 indivíduos distribuídos em 38.140 imóveis identificados com média de 2,9 moradores por domicílio. Contudo, há ainda quem calcule em mais de 100 mil pessoas a população residente da Rocinha. Parte das discrepâncias quanto ao tamanho da Rocinha é oriunda do crescimento desordenado dos grandes centros urbanos e do atraso em mapeá-lo. O IBGE, por exemplo, passou a denominar as favelas de “aglomerados subnormais” a partir do Censo de 1991, repetindo a terminologia nos dois censos subsequentes, de 2000 e 2010. A partir deste último, e devido a avanços tecnológicos (como o uso de imagens de satélite e GPS) e inovações em sua metodologia de pesquisa, o IBGE passou a definir com mais nitidez o conceito e as características dos
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“aglomerados subnormais”. É possível e provável que algumas áreas da Rocinha que já foram urbanizadas e formalizadas não entrem na análise daquilo que o IBGE classifica como “aglomerado subnormal”, ou seja, “todo conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais (casas, barracos, palafitas, etc.) carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais (abastecimento de água, disponibilidade de energia elétrica, destino do lixo e esgotamento sanitário) ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa”. Os próprios pesquisadores do IBGE afirmaram, na ocasião da divulgação dos dados censitários, que os números de moradores de favelas divulgados por Estados ou municípios podiam ser destoantes daqueles do Censo. A falta de um critério bem definido de análise dificulta a captura do retrato preciso de um espaço que se torna cada vez mais heterogêneo e complexo. Com a instalação da Unidade de Polícia Pacificadora, o governo estadual pôde retomar as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O chamado PAC 1 concentrou os recursos em alguns pontos da Rocinha como na urbanização da chamada Rua 4. Já a nova fase de investimentos, o PAC 2, anunciada em 2013, tem como objetivo resolver alguns gargalos de infraestrutura do espaço. A expectativa com tais ações do Estado é a de que a mudança gradual de favela a bairro vire, enfim, uma realidade. Não é possível entender o que hoje é a Rocinha sem antes compreender como ela surgiu e se desenvolveu através do tempo. A área pela qual atualmente se espalham milhares de casas e edificações já foi um dia uma densa floresta remanescente da Mata Atlântica, encravada no morro Dois Irmãos e cortada pela Estrada da Gávea, um acesso precário às terras de propriedade do comendador e engenheiro Conrado Niemeyer. Em 1916, Niemeyer mandou erguer no local uma pequena igreja em devoção a São Conrado, dando origem ao bairro de mesmo nome. A ocupação do território que corresponde à Rocinha data do final da década de 1920. As terras pertenciam à fazenda Quebra-Cangalha, posterior-
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mente dividida em chácaras44. De propriedade da Companhia Portuguesa Castro Guidão, as terras começaram a ser por esta vendidas entre 1927 e 1930 em lotes de 200 metros quadrados. A companhia que pertencia à família do visconde Castro Guidão chegou a traçar a planta do local, demarcando as ruas 1, 2, 3 e 4 que existem até os dias atuais. As obras da casa número 1 da Estrada da Gávea teriam sido embargadas pelo prefeito Pedro Ernesto em 1932 e os moradores acusados de apropriação ilegal do terreno. Em 1935, iniciou-se a instalação de eletricidade na Estrada da Gávea, o que facilitou ainda mais a venda dos terrenos. Dois anos depois, o loteamento sofreu novo embargo da prefeitura municipal por não cumprir as exigências legais de parcelamento do solo. Com apenas 80 lotes vendidos, os negócios foram interrompidos. Não dispondo de recursos financeiros para a legalização dos terrenos, a Companhia abriu falência. Os moradores, por sua vez, permaneceram no local mesmo sem a escritura definitiva dos lotes que já haviam comprado. O asfaltamento e a iluminação da Estrada da Gávea, em 1938, acelerou a ocupação dos demais lotes do terreno. Consideradas sem dono ou do governo, as terras foram rapidamente tomadas, surgindo assim os primeiros barracos de madeira na região. Os primeiros habitantes dessa área foram pequenos comerciantes portugueses e operários de fábricas situadas no Jardim Botânico e na Gávea, bairros vizinhos nos quais estavam situadas diversas fábricas de tecido. Um dos mitos da Rocinha está relacionado à origem de seu nome. Contam os antigos moradores que os primeiros ocupantes da área plantavam legumes e verduras em seus terrenos e os vendiam nas feiras da zona sul. Quando os fregueses perguntavam de onde traziam os produtos, os comerciantes respondiam que era da “rocinha” 45. Outros relatos indicam que “esse nome se deve ao fato de uma espanhola, ali residente, que tinha uma plantação de legumes e verduras, costumava mostrá-la aos seus visitantes, convidando-os para ver a sua “rocinha”. Uma outra versão 44 Revista AM, 4ª edição de março de 2010. 45 A palavra Rocinha remete a um pequeno vilarejo rural, também chamado de “roça”.
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encontrada num blog da própria comunidade, recolhida de relatos populares, “atribui o nome a uma moradora de pele muito alva e cabelos claros chamada de russinha”. Muito conhecida na região, ela teria servido de referência para as pessoas que passaram a conhecer o local como “lugar em que morava a Russinha”46 Os relatos de moradores são contraditórios quando tratam do início da ocupação. Gerônimo Leitão (2009)47 cita passagens do livro “Varal de lembranças”, organizado pela Associação Pró-Melhoramentos da Rocinha (APMR), em que fica evidente a contradição. Alguns relatam que o início da ocupação teria ocorrido da parte mais alta da estrada da Gávea para baixo, outros dizem o contrário. A hipótese mais provável é a de que a ocupação deu-se gradualmente do sopé do morro para cima. Em muitas outras favelas, a ocupação costuma se dar de cima para baixo, já que na parte de cima as invasões ficam menos evidentes. Contudo, a hipótese da ocupação ter começado na base no morro é reforçada pelo histórico do loteamento que demonstra que os primeiros terrenos ocupados estavam situados na parte baixa do morro. Os demais acompanharam a subida da Estrada da Gávea. Há, inclusive, uma área da comunidade conhecida como “Faz Depressa”, situada em uma parte relativamente elevada da Estrada da Gávea, e que recebeu este nome por causa da perseguição sofrida pelos novos ocupantes da área. Nesse período, a fiscalização era intensa e os novos barracos eram frequentemente derrubados. O depoimento é de Ismael Elias, morador desde 1959, e relatado no livro “Varal de Lembranças48”: “A parte da Rocinha que tinha o maior número de ocupação era chamada Campo da Esperança, Largo do Boiadeiro. Essa periferia tinha pouca gente morando.... o largo da Rua 1, Faz Depressa, tem esse nome porque naquele tempo o morador que fazia o barraco era muito perseguido pela polícia. Naquele faz, 46 SOARES, Priscila, OLIVEIRA, Fábio Bruno de, SAMPAIO, Milena. Rocinha, uma breve história no tempo – análise dos processos de formação e transformação do bairro. XIII Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Florianópolis, 2009. 47 LEITÃO, Gerônimo. Dos Barracos de Madeira aos prédios de quitinetes. Rio de Janeiro: EdUFF. 2009. 48 Este livro foi publicado em 1983, a partir de uma iniciativa da Associação Pró-Melhoramentos da Rocinha e não teve reedições. Por esta razão, são poucos os exemplares existentes.
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não faz, pode, não pode, de uma hora para outra surgia um barraco, e daí o nome Faz Depressa. Depois chegava a polícia e pronto, já estava morando no barraco”. Na década de 1940, boa parte dos novos moradores vinha de outros estados ou de áreas mais afastadas da cidade. A crise da cafeicultura no Estado de São Paulo gerou um fluxo intenso de migrantes para o estado vizinho do Rio de Janeiro e, concomitantemente, a seca na região Nordeste do país levou a um movimento ainda maior de migração. Tal processo de êxodo rural intensificou-se no Brasil no decorrer das décadas de 1950 e 1960 e atingiu principalmente as áreas urbanas da região Sudeste. O desenvolvimento industrial impulsado ainda no governo de Getúlio Vargas (1951-1954) e que marcou a gestão de Juscelino Kubitschek (1956-1961) atraiu brasileiros das zonas rurais em busca de emprego e melhor qualidade de vida nas cidades. Contudo, muitos chegavam sem qualificação profissional para disputar uma colocação na indústria e a infraestrutura precária das áreas urbanas não conseguiu absorver o grande contingente de migrantes desempregados. O resultado foi o crescimento desordenado e o aumento das favelas. Muitos migrantes no Rio de Janeiro se instalaram na periferia da cidade ou na Baixada Fluminense. A distância dos locais de trabalho interferia na qualidade de vida dessa população. A Rocinha, localizada em plena zona sul, área próxima ao centro da cidade e de residência de uma população de alto poder aquisitivo e que demandava mão-de-obra era uma alternativa das mais convenientes. As famílias nordestinas eram numerosas, compostas por quatro a dez filhos, em faixas etárias que variavam de 7 a 10 anos de idade. Muitas crianças de tais famílias já trabalhavam originalmente na lavoura, ajudando na formação da renda familiar nas roças de subsistência. A precariedade da vida nos centros urbanos vinha a ser uma alternativa melhor do que a permanência nas áreas rurais sendo afetadas pela seca.
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O processo de ocupação da Rocinha está intimamente associado ao intenso êxodo rural ocorrido no Brasil na segunda metade do século XX. Nesse período, a favela recebeu cearenses, pernambucanos, alagoanos, gente de todas as partes do Nordeste. Aos poucos, a origem comum dos moradores ajudou a criar laços de identidade. Eles encontravam na Rocinha um “porto seguro”, uma rede de solidariedade que ia desde orientações sobre a vida na cidade até a inserção no mercado de trabalho. Um novo surto expansionista foi registrado na Rocinha na década de 1970, quando a população passou de pouco mais de quatro para quase mil habitantes (Segala, 1991:110)49. Também fruto de um processo de desenvolvimento sem planejamento público, o crescimento verificado nesse período foi motivado, principalmente, pela abertura dos túneis Rebouças, inaugurado em 1967, e Dois Irmãos (hoje chamado de Túnel Zuzu Angel), em 1971. Eles facilitaram o acesso da mão de obra instalada na Rocinha às obras que, na época, atendiam principalmente ao “boom” imobiliário dos bairros de Ipanema, Leblon, Gávea e Jardim Botânico na zona sul da cidade. Atraídos pelas oportunidades na construção civil, milhares de nordestinos se fixaram na favela da Rocinha. O crescimento populacional da favela nesse período agravou os problemas de infraestrutura do local. Faltavam água, luz, saneamento básico e limpeza urbana. Além disso, o preconceito em relação aos moradores do morro ficou mais evidente e o habitante da Rocinha ganhou o estigma de marginal. Ser favelado passou a ser sinônimo de delinquente. A história da Rocinha mostra também algumas remoções e momentos de grande resistência dos moradores. Há registro de três remoções parciais e uma realocação por ocasião de um programa de reurbanização. A primeira remoção se deu por ocasião da construção da autoestrada Lagoa-Barra; a segunda, em 1971, transferiu moradores do Laboriaux, um dos pontos mais altos da favela, para um conjunto habitacional situado no subúrbio da cidade. A iniciativa não deu certo e 49 Segala, Lygia. O riscado do balão japonês. Trabalho comunitário na Rocinha 1977-1982, Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado do PPGAF/UFRJ. 1991.
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as famílias acabaram voltando para a Rocinha. A terceira remoção ocorreu em 1975. Quarenta famílias foram removidas também do Laboriaux. Na década de 1980, a Rocinha passou por um programa de reurbanização de favelas que removeu casas construídas na área chamada de valão. Já na década de 1990 a Rocinha ganhou status de bairro sem, contudo, ter sanado os velhos problemas. Frente à ameaça de remoções, os moradores usavam crianças e até famílias inteiras como uma espécie de “escudo humano” para evitar a ação. Em caso de falta de água, improvisavam bicas de nascentes. Na falta de energia elétrica, puxavam um “biquinho” de luz da Estrada da Gávea, o conhecido ‘gato’, e emprestavam a quem não tinha. Na memória recente dos moradores estão os mutirões para a limpeza de valas, a fundação de associações em defesa dos interesses dos moradores, os abaixo-assinados, as reivindicações ao governo e até mesmo os mutirões para cimentar os becos. Tudo isso dentro das normas políticas vigentes. Os moradores da Rocinha lutaram para se tornar parte do espaço integrado da cidade e hoje se orgulham de não somente ter resistido aos processos de remoção, mas também crescido a ponto de poder dizer: “Somos a maior cidade cearense depois de Fortaleza”. É para esta “cidade” que muitos conterrâneos ainda migram todos os anos.
Urbanização, desenvolvimento econômico e correlação As mudanças que vêm ocorrendo na Rocinha nos últimos anos são importantes para entender a relação entre os processos de urbanização promovidos pelo Estado e o desenvolvimento econômico local. Historicamente, as intervenções urbanas chegavam na região como resultado de trocas eleitorais ou por meio de barganhas com chefes do tráfico de drogas. O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é uma parceria entre os governos federal e estadual que tem investido na urbanização da Rocinha. Faz parte de uma ação de Estado em localidades como a Rocinha, antes marginalizadas e que foram autoconstruídas e governadas até tempos recentes. Obras de pa-
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vimentação, saneamento, drenagens de valões e – sobretudo – de regularização fundiária dos assentamentos informais fazem parte desse projeto de integração social da Rocinha à cidade formal. Tanto o PAC 1, que teve início em 2008, como o PAC 2, que deveria ter começado em 2013, estão incluídos em um plano diretor elaborado por arquitetos, engenheiros e técnicos da Secretaria de Obras do estado do Rio de Janeiro. Para entender o que realmente mudou na dinâmica das relações sociais dentro da Rocinha e entre seus moradores e o poder público é preciso lembrar que ela, assim como grande parte das favelas do Rio de Janeiro, vivia até pouco tempo atrás sob o comando do tráfico de drogas instalado e consolidado no local há muitas décadas. Era para os chefes do tráfico que moradores e comerciantes se reportavam ao reivindicar melhorias para a Rocinha. Relatos obtidos durante o período da pesquisa davam conta de que os moradores se mobilizavam e reivindicavam junto ao tráfico de drogas melhorias para as microáreas – geralmente, regiões em que o Estado estava ausente. Assim, o tráfico não seria um “concorrente” do Estado nas melhorias da Rocinha, mas atuava preenchendo as lacunas deixadas por este. A entrada do poder público por meio das ações do PAC começou a mudar o cenário da Rocinha. A instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em 2011 e a tentativa de prender e intimidar a rede do tráfico ali presente fazem parte desse novo contexto. Contudo, durante o período de realização da pesquisa IMR (entre janeiro e junho de 2010), as obras do PAC eram feitas ainda sob o poder paralelo e vigente do tráfico de drogas. Contrastando com esse cenário, observou-se no interior da Rocinha a tradicional forma de organização de moradores em espaços informais: os mutirões. Um exemplo de mutirão foi a mobilização para enfeitar as ruas para a Copa do Mundo FIFA de 2010, organizada pelos moradores da Rua 3. As contribuições dos moradores foram recolhidas e um grupo de homens, adolescentes e crianças se responsabilizou pelo trabalho artístico de pintar e enfeitar a rua. Ainda que se
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trate de uma mobilização para um evento específico, a hipótese traçada é a de que existiria uma vida associativa “latente”, a qual poderia ser ativada a partir de um mecanismo de motivação comunitária. Vários moradores estavam envolvidos no mutirão da Rua 3. Segundo eles, tratava-se de um concurso promovido pela Associação de Moradores que premiaria a rua mais bem enfeitada com vinte e cinco caixas de cerveja e carnes para churrasco. A participação e o entusiasmo dos moradores da Rua 3 não foi seguida por seus comerciantes que tiveram que ser cobrados pelos organizadores. A implementação da primeira fase do Programa de Aceleração do Crescimento, o chamado PAC 1, intensificou a urbanização em locais de forte trânsito de pessoas, áreas de muito potencial comercial. Contudo, novas vias de acesso também foram construídas, não somente em pontos com comércio desenvolvido, mas em estratégicos locais de passagem. Em seu planejamento técnico, as obras do PAC podem não guardar correlação direta com os Nodos e Microcentros Comerciais Compostos; porém, o fato delas ampliarem vias de acesso existentes e abrirem novas fará com que dentro de pouco tempo se possa analisar como as intervenções urbanísticas em um espaço construído sem qualquer projeto de tal natureza irá transformar tais espaços de trocas socioeconômicas dentro da Rocinha, em seu lento trajeto de transição de favela a bairro. O processo de urbanização da Rocinha, portanto, não está vinculado apenas ao Estado, com o PAC, mas a muitos outros sistemas, como o econômico, religioso, ou mesmo o simbólico. Existe também um processo de urbanização espontâneo, produzido por fatores ecológicos, isto é, de adaptação ao meio, que surge como consequência do desenvolvimento da favela como espaço de moradia fragmentado nos morros – o que exige a adaptação vertical. Tudo isso se observa na busca individual e coletiva de acesso a bens sociais, próprios do urbano, como
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melhor moradia, acesso ao saneamento básico, água potável, ou inclusive bens secundários, como TV a cabo ou internet, pois quanto mais distante do centro, mais longe se fica do acesso a esses bens. Uma das consequências diretas da urbanização é o desenvolvimento econômico local, especialmente nas áreas sob ação direta do programa do Estado. Com o progresso das obras isso se refletirá na composição dos Nodos e nos Microcentros Comerciais Compostos presentes na Rocinha. Por enquanto, o que se constata é o alto custo de entrega das mercadorias para o comércio dos MCC’s devido à precariedade das vias de acesso. Muitos desses MCC’s estão situados em locais acessíveis apenas por meio de escadarias ou subidas muito íngremes, o que dificultava a distribuição das mercadorias. As características geográficas do terreno estabeleceria, assim, níveis de desigualdade socioeconômica na localidade. O “rico da Rocinha” ocuparia uma área de fácil acesso, plenamente abastecida de bens e serviços e beneficiada por programas de urbanização do governo. Já o “pobre da Rocinha” seria encontrado em regiões de difícil acesso, expostas ao risco de desastres ambientais, onde os bens e serviços são escassos e as iniciativas públicas de melhorias urbanísticas igualmente difíceis de serem implantadas. Como consequência, há uma clara diferença no custo de vida nos limites da Rocinha. O valor de bens e serviços seria menor em áreas beneficiadas por processos de urbanização, áreas pavimentadas e de fácil acesso, nas quais até mesmo as políticas públicas conseguem chegar com mais facilidade por meio de serviços de saúde, transporte e crédito. Já nos pontos de difícil acesso, o cenário é outro: nenhum tipo de melhoria urbana ou infraestrutura básica, gerando um custo de vida maior. Observa-se a inversão dessa lógica na questão da moradia: quanto maior o grau de urbanização, maior o valor da habitação. Da mesma forma, quanto mais afastado do “asfalto”, menor o preço da moradia.
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As zonas marginais ou mais afastadas da Rocinha são as regiões da Roupa Suja, do Morro do Capado e do Macega. Essas áreas estão situadas justamente no limite geográfico da localidade. São consideradas marginais, não pela distância dos pontos centrais, mas pela falta de acesso às informações e oportunidades encontradas nos centros comerciais, os Nodos, e pela falta de vias de acesso carroçáveis. Muitas vezes é difícil chegar a esses locais até mesmo a pé. No Morro do Capado há um grande déficit de infraestrutura, além de habitações de menor padrão construtivo, casas sem telhas ou sem janelas. Essa região não fica tão distante de um dos Nodos identificados, mas está situada próxima ao limite geográfico da localidade, assim como o sub-bairro Macega, declaradamente o mais pobre da Rocinha, em que há muito lixo, casas de madeira e áreas de difícil acesso. Em ambos os casos é provável que a condição econômica seja determinante para a falta de acesso ao centro comercial. Por outro lado, um morador há quinze anos da Rocinha não considera a população dessas áreas marginalizada. Ele é proprietário de um prédio de quitinetes para aluguel e diz que na Rocinha “só não consegue serviço quem não quer” e ao menos um membro de cada residência possui trabalho. A oferta de serviços e “bicos” na Rocinha é muito grande, gerando trocas econômicas informais difíceis de serem mensuradas. O morador conta que a presença de barracos de madeira nas áreas citadas se deve ao alto custo do transporte do material de construção para pontos de difícil acesso. Ele construiu seu imóvel na área conhecida como Paula Brito, não muito distante de uma via carroçável, e disse ter pago a quantia de R$ 50 (cinquenta Reais) – aproximadamente vinte dólares americanos em valores atualizados até o fechamento desta edição, em janeiro de 2014 – para cada metro de areia transportada. Em locais de mais difícil acesso esse preço chega a dobrar, avalia o morador. Outras duas mulheres, também residentes na mesma área da Rocinha, dizem que o preço do metro de areia pode chegar a R$ 80 (oitenta Reais) – ou trinta e cinco dólares.
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O tamanho da Rocinha impressiona e surpreende a cada momento. Em reunião de mulheres da área do Roupa Suja para o anúncio da instalação de uma Clínica da Família, da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do governo estadual dentro de um programa de prevenção de doenças, os agentes de saúde informaram que fariam o cadastro de todas as famílias e visitariam todas as residências da Rocinha. Diante dessa informação, uma das participantes da reunião disse: “Mas esse cadastramento não chegou aqui, não. Aqui é sempre assim, tudo primeiro é lá (referindo-se a área central da Rocinha), aqui só chega quando acaba lá. Isso quando chega”. A fala dessa moradora foi imediatamente apoiada pelas demais participantes da reunião, que reclamaram também do atendimento da UPA. Em uma visita à Clínica da Família, os pesquisadores foram informados de que ela somente atendia aos moradores de uma determinada área e que toda a Rocinha é setorizada para esse tipo de serviço público. A Clínica em questão era responsável pelos moradores de áreas centrais como Vila União, Dionéia e Vila Verde. A região do Roupa Suja era atendida fora da Rocinha – no Centro Municipal de Cidadania Rinaldo de Lamare, localizado no bairro de São Conrado, e que também prestava serviço para os sub-bairros Trampolim, Barcellos, Boiadeiro, Campo Esperança, Canal (valão), Raiz e Morro da Alegria. Já o morro do Capado e a Macega ainda não eram atendidos por nenhuma das clínicas do governo estadual. A complexidade do terreno da Rocinha se revela ainda em um outro depoimento de uma moradora relatando o não recebimento em sua casa – no setor Roupa Suja – de cartas e contas a pagar. Devido a isso, ela usava o endereço de um amigo que morava “lá embaixo”, ou seja, na parte da Rocinha mais próxima à cidade formal, para a entrega de suas correspondências. Outra opção, segundo a moradora, era pagar R$5 (cinco Reais) – aproximadamente dois dólares – ao “carteiro amigo” (um agente alternativo que entrega cartas em locais aonde os correios não chegam). Porém, segundo ela, tal opção não era muito segura, pois muitas vezes os tais agentes atrasavam a entrega da correspondência e, no caso das contas a pagar, isso ocasionava prejuízos.
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Tais relatos reiteram a complexidade da Rocinha e expõem desde suas entranhas a marginalidade das subáreas situadas nos limites geográficos ou de expansão do que ainda se pode chamar de favela, com precárias vias de acesso aos MCC’s mais formais. Na Rocinha, os moradores mais pobres estão nas regiões de difícil acesso – o que mostra como as vias de acesso são fatores cruciais e explicativos para a estrutura social da mesma. As obras do PAC, atualmente em andamento, apesar de visarem melhorias substanciais na mobilidade dentro e no acesso à Rocinha não preveem o atendimento a todas as áreas com dificuldade de acesso dentro da favela. Com isso, a tendência é a de que a desigualdade pode vir a aumentar com as obras de infraestrutura em suas regiões centrais. Foi com base no levantamento de Nodos e Microcentros Comerciais Compostos na Rocinha que se constatou a importância das vias de ligação existentes entre esses centros comerciais e as subáreas do entorno, bem como em relação à conexão entre as áreas periféricas e as áreas centrais. De acordo com as observações de campo, os conceitos de MCC e Nodo, na Rocinha, não são estanques, permitindo certa gradação dentre eles, até um ponto em que se cruza uma linha imaginária fronteiriça. O fenômeno aqui descrito pode ser comparado aquele da propagação do som, no qual a amplitude da onda sonora diminui progressivamente com o distanciamento da fonte que a gerou. Assim acontece na Rocinha, em que o Nodo principal irradia sua influência a uma certa distância até ir se enfraquecendo e encontrar um outro Nodo (ou estação retransmissora) que, da mesma maneira, propaga sua influência a uma certa distância e pelo mesmo meio – a Estrada da Gávea – até chegar no último Nodo, no final da Rocinha A Estrada da Gávea serve como um meio de transmissão para os três Nodos nela contidos. Pela extensão territorial da Rocinha e pela dificuldade de acesso a
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algumas de suas regiões, observam-se ainda concentrações comerciais mistas, em que é possível encontrar produtos de mercearia e bar em um mesmo estabelecimento. É possível perceber também que quanto melhor se apresenta uma via de acesso; quanto mais central e pavimentada, maior é a presença de estabelecimentos comerciais. Essa correlação pode ser atribuída ao maior fluxo de pessoas em áreas que apresentam tais características. No caso da Rocinha, a presença de estabelecimentos comerciais depende da existência ou inexistência de via carroçável. Em áreas com vias carroçáveis pavimentadas, e não muito íngremes, há maior intensidade comercial. Um exemplo disso é a própria Rua 2, em que a via de acesso é carroçável e a circulação das pessoas é mais intensa. Nessa área o comércio é também mais concentrado. Na Rua 2, situada exatamente no meio da Rocinha observa-se o fluxo de muitos moradores da Rua 1, que a tem como uma de suas principais vias de ligação, e recebe ainda a principal saída da Rua 3. Tais características fazem da Rua 2 uma importante via de interligação entre centro e periferia da favela, cada vez mais com características centrais, de convergência de fluxo de pessoas e de comércio. Na observação da Rua 2 constatou-se a intensa movimentação de pessoas e moto-táxis desde as áreas consideradas centrais, Largo do Boiadeiro e Estrada da Gávea, em direção aos becos da Rua 2, Rua 1 e até da Rua 3. Do início da Rua 2 até um pequeno largo ali existente, há obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que visavam um alargamento da rua e ainda a construção de um novo acesso. Inicialmente considerada uma zona de MCC do tipo A (aquele que apresenta algumas características de um núcleo comercial, como a impessoalidade nas relações e/ou a diversidade das formas de pagamento), a Rua 2
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teve sua classificação modificada a partir de novas observações feitas em um dia de intensa movimentação, um feriado. Em tal ocasião foi possível notar a impessoalidade nos relacionamentos comerciais, em especial nas casas de materiais de construção, característica de áreas centrais, também identificadas como locais de passagem. Entretanto, foi observado, em menor intensidade, o tratamento pessoal entre clientes e comerciantes. Assim, passou-se a conceituar essa área como uma área mista, ou seja, como uma área comercial que manifesta características de um centro comercial, como a impessoalidade, concomitantes com a pessoalidade peculiar aos microcentros comerciais. Este é o caso de muitos comércios situados ao longo da Rua 2. Também na região conhecida como Setor do 199 as relações de pessoalidade e impessoalidade tornam o local uma zona mista no tratamento entre clientes e comerciantes. Pode-se, contudo, conceituar essa área comercial como um MCC por causa das relações pessoais. Em observação feita em um domingo, percebeu-se um alto grau de intimidade entre clientes e comerciantes, além da prática recorrente do fiado. Marcos Alvito50 defende a diferenciação entre fluxo e circulação de pessoas. Para este autor, o fluxo de pessoas consiste num movimento que tem um fim muito específico, como ir ao trabalho, à escola etc. Já a circulação diz respeito a um movimento com um diagrama de relações, ou seja, é um movimento voltado para os relacionamentos locais. Nesse sentido, o fluxo da população é constante e nas vias adequadas. Entretanto, a circulação de pessoas, não. A escassa circulação pode resultar no fenômeno da criação das zonas “marginais”, com difícil acesso, e que recebem menor influência dos Nodos ou MCC’s, por onde é possível supor que circulem as informações e oportunidades mais relevantes para o sistema. 50 Zaluar, Alba e Alvito, Marcos. Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV Editora. 2006
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3. Por dentro da Rocinha Localizada em uma das áreas de maior poder aquisitivo do Rio de Janeiro, a Rocinha ocupa 847.629 metros quadrados entre os bairros de São Conrado e Gávea, duas áreas residenciais da elite carioca, em plena zona sul da cidade. Como escreve Gerônimo Leitão51, a Rocinha fica num terreno em forma de concha e “é constituída de uma parte plana, que representa o núcleo central, junto do túnel Dois Irmãos (hoje Zuzu Angel), desenvolvendo-se, em seguida, por terrenos de grande declividade até o topo do morro.” A favela está separada de São Conrado pela autoestrada Lagoa-Barra (RJ-071); delimitada na parte de cima do morro pela mata do Parque Nacional da Tijuca e à nordeste pela Estrada da Gávea que a separa do bairro da Gávea. O terreno ocupado pela Rocinha tem algumas áreas com grande risco de erosão e está sujeito a deslizamentos de terra, especialmente na região do Parque Nacional da Tijuca. Grande parte de suas ruas e de suas travessas foram delimitadas a partir da construção de barracos que foram se justapondo, desenhando assim uma forma sinuosa na favela e becos sem saída.
Vias Principais A Estrada da Gávea, além de interligar os bairros de São Conrado e Gávea, é a principal via da Rocinha. Funciona como uma “espinha dorsal” do território, pois é uma importante via de circulação de bens, pessoas e serviços. A estrada passou por apropriações simbólicas e ressignificações históricas de alguns de seus trajetos. A localidade conhecida como Rua 1 deve seu nome ao fato de ter sido a primeira rua da favela, quando considerado o trajeto no sentido Gávea-São Conrado. Na realidade, tanto a Rua 1, quanto a Rua 2, faziam parte do primeiro loteamento da Rocinha. A nomeação dessas duas ruas se estende ao seu entorno imediato que é a Estrada da Gávea. 51 LEITÁO, Gerônimo. Dos Barracos de Madeira aos prédios de quitinetes. Rio de Janeiro: EdUFF. 2009.
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Um dos fatores que diferenciam a Rocinha de outras favelas é justamente a Estrada da Gávea, que corta toda a sua extensão territorial e facilita o acesso de bens, serviços e pessoas. Além disso, é a única via carroçável da favela que tem mão-dupla. Da Estrada da Gávea saem mais duas vias principais e muito importantes para a Rocinha: o Largo do Boiadeiro e a Via Ápia. Elas estão situadas às margens da autoestrada Lagoa-Barra, por onde circulam numerosas linhas de ônibus com destinos a diversos pontos da cidade. Essas áreas concentram intensa atividade comercial e de prestação de serviços. Pela localização estratégica, as vias comportam trânsito intenso de pedestres que são em sua maioria moradores de diversos pontos da Rocinha. As principais vias são asfaltadas, mas com os mesmos problemas encontrados em diversos pontos da cidade formal. Assim sendo, a presença de buracos não é uma característica exclusiva da favela. O lixo se acumula pelas ruas principais sendo encontrado em praticamente todos os espaços não utilizados por imóveis. Não há caçambas para armazenamento apropriado dos dejetos, que ficam expostos, ocasionando a proliferação de insetos e de doenças – além, é claro, de odor desagradável. É possível situar alguns pontos de acúmulo de lixo na Estrada da Gávea e no Largo do Boiadeiro. Ao longo da Via Ápia e do Largo do Boiadeiro existem ruas (conhecidas como travessas) que interligam as duas áreas, mas não possibilitam o trânsito de veículos. Apenas pedestres e moto-táxis conseguem trafegar por elas. As vias principais têm edificações com gabaritos bastante elevados, de cinco a seis pavimentos. São servidas de água encanada, de acesso à energia elétrica, bem como de serviços de telefonia e de internet. Entretanto, apresentam com certa frequência vazamentos de água e até mesmo de esgoto. Não há calçadas para os pedestres nessas duas vias. E quando há calçada,
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a mesma é ocupada por mercadorias das lojas ou por veículos estacionados. Os pedestres disputam espaço com os veículos devido à grande circulação e correm riscos permanentes.
Vias Secundárias Consideram-se vias secundárias as ruas 1, 2, 3 e 4; bem como a Vila Verde, pois atendem áreas densamente povoadas, possibilitando o acesso e a grande circulação de pessoas e fluxo de bens de consumo aos locais próximos dos centros, e se conectam à Estrada da Gávea. Nas vias secundárias são encontrados pequenos e médios estabelecimentos comerciais, suprindo as necessidades básicas da população local. Essas ruas têm importância histórica, pois são os vetores de crescimento da Rocinha na ocupação do Morro Dois Irmãos. Vale observar a grande diversidade dessas vias, tanto do ponto de vista da infraestrutura, quanto do comércio. Entretanto, elas têm em comum a importante funcionalidade de atender a um grande porcentual da população local, possibilitando o acesso às vias principais. A primeira distinção que deve ser feita entre as vias principais e as secundárias é que as últimas são reconhecidas como ruas, enquanto vias de circulação, mas originam também denominações de localidades situadas no entorno imediato delas. Esse entorno recebe o nome da via e passa a ser representado como um sub-bairro. As chamadas Ruas 1, 2, 3 e 4, por exemplo, têm grande importância histórica dentro da Rocinha, com dito acima. Não é estranho, porém, alguém falar que mora na Rua 1, quando na verdade reside em algum ponto da Estrada da Gávea, próximo a ela. Algumas vias que ligam a Estrada da Gávea à parte mais plana da favela têm nomes de ruas, mas não podem ser tratadas literalmente como tal por representarem subáreas. A exceção é a Rua 2 que apresenta uma diferenciação em relação às outras. Está localizada em área entre morros e rochas, sem in-
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fraestrutura e com valas a céu aberto. Situada em uma das curvas acentuadas da Estrada da Gávea, a entrada da Rua 2 tem largura suficiente para ser uma via carroçável. Entretanto, ela se estreita em determinado ponto de sua extensão, concentrando grande quantidade de vielas. Apesar de via secundária, é uma das ruas mais valorizadas da Rocinha, importante por ter comércio variado e ser transitável com passagem para carros, caminhões e motos. Atualmente recebe intervenções do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); porém, ainda se assemelha mais a um “beco” do que a uma rua em sua maior parte. Já as ruas 1, 3 e 4 são, na realidade, becos e escadarias que permitem apenas a passagem de pedestres. A Rua 1 possibilita o trânsito de uma parte elevada do território até a sua parte plana. No entanto, apresenta diversos vazamentos de água e esgoto e algumas lajes das casas que têm segundo pavimento avançam pelo beco, impossibilitando a incidência direta do sol. É uma rua crucial, pois atravessa as regiões mais pobres da Rocinha, como a Roupa Suja, na qual se observam alguns barracos de madeira. As Ruas 3 e 4 também passam por intervenção direta do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal. A Rua 4 era o local da favela com o maior registro de tuberculose e o maior número de doentes devido à falta de ventilação. Tal número vem caindo significativamente com a urbanização e o alargamento da área – antes uma viela de 60 centímetros, atualmente apresenta até 12 metros de largura, estando mais clara e arejada. A Rua 3, a menor via secundária em extensão, começa na Estrada da Gávea e termina na Rua 2. Tem as mesmas características das outras vias secundárias: estreita, com pouca ventilação e pavimentação irregular. Contudo, apresenta grande movimentação e concentração de pequenos comércios. Já a rua que circunda a região conhecida como Vila Verde, talvez pela proximidade com a Estrada da Gávea, não apresenta os problemas das demais vias, pois sua largura permite a entrada de veículos, pelo menos em um sentido.
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Além disso, tem infraestrutura semelhante à da Estrada da Gávea e está atrás de uma grande escola e do único hospital público da Rocinha, o que aumenta consideravelmente seu trânsito.
Vias terciárias e condições de infraestrutura As vias internas destinadas a atender quase que exclusivamente a população das imediações foram aquelas consideradas como terciárias. A diferença entre as vias secundárias e as terciárias é que estas últimas servem a uma porcentagem menor da população, enquanto as primeiras atendem áreas relativamente grandes desse território, tendo também maior importância do ponto de vista do fluxo de bens e serviços. Entre as vias terciárias encontramse duas que são carroçáveis – a Rua Dionéia e a subida da Cachopa – e as demais que não são carroçáveis, pois as condições de tráfego são prejudicadas pela própria declividade do terreno. Como exemplo de via terciária não carroçável estão os becos, como o Faz Depressa, situado em uma parte relativamente elevada da Estrada da Gávea. O Faz Depressa, além de íngreme, é tortuoso, sendo composto de escadas com irregularidades e ladeiras. Ao longo de toda a sua pequena extensão, tem estabelecimentos comerciais dispersos, que acumulam funções diversas como as de bar e mercearia. Essa via interliga o interior da localidade 199 à Estrada da Gávea. Existem muitas outras vias terciárias que apresentam essas características, em geral, becos e vielas tortuosos, espremidos entre as casas, com precárias condições de ventilação. Além disso, assim como as demais vias, não têm identificação. São verdadeiros labirintos que ninguém sabe onde vai dar. Esses becos podem estar interligados às vias primárias, secundárias e até terciárias. O beco conhecido como Travessa Gomes era realmente uma travessa, com maior largura e extensão, mas com o passar dos anos, as construções foram estreitando a travessa de tal forma que hoje ela é considerada um beco.
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A história da formação da maioria das vias da Rocinha nos introduz dentro de um território conhecido apenas por seus moradores. Alguns becos, em vez de conduzirem a outras vias de circulação, conduzem às residências. A maior parte das vias da Rocinha é desse tipo e pode ser melhor visualizada através de uma foto aérea. Tais vias têm em comum a característica principal de serem vias estreitas, o que muitas vezes inviabiliza ou dificulta o fluxo de bens e serviços, como a entrega de cartas e de mercadorias.
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4. Conceitos espaciais para entender as trocas em espaços informais Para conhecer a Rocinha é preciso explorar cada pedaço de sua extensa e complexa geografia. Gigantesca, ela é cheia de nuances e particularidades. Além disso, cada microárea tem uma dinâmica que precisa ser observada e compreendida. Dois conceitos desenvolvidos pela pesquisa IMR foram fundamentais para entender o funcionamento econômico da Rocinha: Nodo e Microcentro Comercial Composto (MCC). O centro comercial, ou Nodo, caracteriza-se pela grande concentração comercial e pela significativa circulação de pessoas, o que possibilita também o anonimato e o desenvolvimento de relações impessoais no comércio. São, por excelência, lugares de trânsito, nos quais as interações ocorrem apenas comercialmente– o que na maioria das vezes gera maior formalização nos atendimentos e nas formas de pagamento. Os Nodos têm papel fundamental na dinâmica comercial de uma área formal urbana, pois funcionam como dispositivos centrais de desenvolvimento econômico e de circulação de capital. Os Nodos são os locais da transitoriedade e podem também ser definidos pelo conceito de “não-lugar”, do antropólogo francês Marc Augé. Este conceito se contrapõe ao conceito de “lugar” que compreende os locais com os quais os moradores têm fortes vínculos pessoais. Em contraposição ao Nodo, os Microcentros Comerciais Compostos (MCC) se caracterizam como núcleos comerciais relativamente pequenos que atendem a um número reduzido de pessoas, o que facilita o desenvolvimento de relações pessoais, especialmente entre os comerciantes e seus fregueses. Não são locais de trânsito, ou seja, não se caracterizam como não-lugar e sim como lugar, no qual é possível não apenas passar, mas também interagir numa rede de sociabilidade mais intensa.
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No MCC é possível encontrar características do lugar antropológico que é como a segunda natureza do morador, pois ali ele não apenas reside, mas também compartilha uma história familiar e relações pessoais consolidadas. Disso decorre a formação de vínculos marcados por intimidade relacional. Os Nodos e os MCC’s são categorias relacionadas com o fluxo de mercadoria e de bens. Daí a importância das vias que os interligam. Foram classificados como Nodos grandes centros de interação comercial e fluxo de pessoas existentes nas vias principais da Rocinha: Via Ápia, Largo do Boiadeiro e a Estrada da Gávea. Já os comércios situados em vias secundárias e terciárias foram classificados como Microcentros Comerciais Compostos (MCC). Essa categorização vai além da localização espacial. Entretanto, o local é importante para compreender a dinâmica comercial existente no próprio Nodo e entre os Nodos e os MCC’s. Como os Nodos estão localizados nas vias principais da favela, há ali uma grande circulação de pessoas que utilizam essas vias como pontos de “passagem”, predominando assim a impessoalidade nas relações comerciais, o que significa dizer que nesses centros comerciais é possível, inclusive, manter total anonimato. Um dos parâmetros utilizados para aferir a pessoalidade e a impessoalidade das relações comerciais foram as formas de pagamento oferecidas pelo comércio local. Observou-se que os Nodos oferecem formas de pagamento impessoais, como o pagamento em dinheiro e o pagamento com cartões de crédito e de débito. Já nos MCC’s, além do pagamento à vista, ocorria, em distintos graus, a prática do fiado, o que supõe uma relação mais pessoal, pois “só se vende fiado para os conhecidos”. A institucionalização dessa prática não é decorrente apenas da ausência ou impossibilidade de implantação de outras formas de pagamento, mas revela a manutenção de laços pessoais que resistem à formalização das relações comerciais.
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No caso da Rocinha, esses dois conceitos foram utilizados apenas como instrumentos de análise. Isso porque, na realidade, a polaridade Nodo/MCC é fugidia: podem-se encontrar características de um ou de outro em maior ou menor grau de intensidade em uma mesma microárea. Os conceitos de Nodo e de MCC não poderiam ser utilizados como categorias estanques. Devido aos diversos graus de impessoalidade verificados nos Nodos da Rocinha, adotou-se uma classificação graduada que varia entre A e B, passando pela fronteira Nodo/MCC e chegando à classificação igualmente graduada dos MCC’s. Dessa maneira, a classificação de Nodo A é atribuída aos centros comerciais mais impessoais, como o comércio situado na Via Ápia. Já a classificação de Nodo B se estende aos comércios que apresentam impessoalidade em menor grau. O mesmo se aplica em relação aos MCC’s nos quais foram observadas distintos graus de pessoalidade nas relações comerciais. Verificou-se, inclusive, a ocorrência de relações pessoais e impessoais, simultaneamente, em uma mesma região comercial e, às vezes, em um mesmo comércio. Nesses casos, a classificação limítrofe Nodo/MCC foi a mais adequada. As graduações nas relações comerciais nos MCC’s deram origem às classificações – do menor ao maior grau de pessoalidade – de MCC A, B, C e Mini-MCC, este popularmente conhecido como birosca52.
Tipos de Nodos Comerciais e MCC O aspecto da presença e intensidade de relações interpessoais durante as trocas econômicas foi o que serviu para determinar e definir as diferenças entre as categorias tanto de Nodo, quanto de MCC. São estas que, em última análise, traçam o perfil da Rocinha. Nodo A – Apresenta características de um grande centro comercial, com alto grau de impessoalidade nas relações comerciais; grande trânsito de pessoas; diversidade de empreendimentos comerciais, com a presença, inclusive, de distribuidores de produtos. Funciona como um grande polo comercial capaz de atender a todos os mo52 bi.ros.ca: [sf] Pequeno armazém onde se vendem gêneros de primeira necessidade e bebidas alcoólicas.
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radores locais e ainda a consumidores do entorno da favela. Nele se observa uma diversidade de formas de pagamento, porém, todas as suas práticas têm alto nível de formalidade. Nodo B – Apresenta muitas das características do Nodo A. Entretanto, registra menor grau de atração de consumidores externos, funcionando como um grande polo comercial para os moradores de seu entorno mais próximo. Nodo/MCC – Apresenta características de um centro comercial, ou Nodo e, ao mesmo tempo, características de um MCC. Isso significa que tem um nível de impessoalidade menor e trânsito de pessoas mais reduzido. Há pessoas com menor grau de anonimato. Os estabelecimentos comerciais podem apresentar, ainda que de modo incipiente e esporádico, a prática do “fiado” nas transações comerciais.
Os tipos ideais Max Weber (1864-1920), principal representante da sociologia alemã, foi um dos principais críticos do positivismo nas lei sociais. Para ele a ciência social não poderia reduzir a realidade empírica a leis. Isso porque, ao estudar um tema, o pesquisador se vale de diversos aspectos ligados à realidade, inclusive seus próprios valores, para dar sentido a uma realidade particular. A partir daí, Weber deu forma aos tipos ideais, esquemas criados para analisar a sociedade. Na obra A objetividade do conhecimento nas Ciências Sociais, ele assim define o tipo ideal: “Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse
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quadro, na sua pureza conceitual, pois se trata de uma utopia. A atividade historiográfica defronta-se com a tarefa de determinar, em cada caso particular, a proximidade ou afastamento entre a realidade e o quadro ideal (...) Ora, desde que cuidadosamente aplicado, esse conceito cumpre as funções específicas que dele se esperam, em benefício da investigação e da representação”.53 Portanto, para dar conta das particularidades dos Nodos e Microcentros Comerciais Compostos, foi usado o conceito de “tipos ideais” para estudar as microáreas da Rocinha. A construção de “tipos ideais” segue a lógica clássica weberiana. O sociólogo alemão coloca um dilema para o cientista da cultura, que é o fato de os ‘valores’, além de não terem validade universal, serem de difícil fundamentação científica. No caso dos valores, mesmo contando com certa evidência empírica, não se pode proceder como na análise de seres inanimados (chuva, frio, etc.), os quais não são dotados de “sentido”. Ao contrário das ciências naturais, há nas ciências da cultura muito de emotivo, de passional – em síntese, de irracional. Daí a dificuldade de se fazer uma análise da totalidade dos fatos nessas ciências. Nelas não há certezas absolutas, mas aproximações e eternas hipóteses, realizadas por meio da tentativa de identificação dos sentidos das ações humanas, assentadas nas subjetividades. A ciência empírica não deve dizer ao homem o que fazer. Ela não pode ser avaliativa, mas analisar nas ações sociais – recortadas por valores culturais e pessoais – o processo de tomada de decisões. O meio metodológico dos tipos ideais possibilita a criação de uma ponte que permite unir o componente subjetivo (que não pode ser encontrado na realidade) e o conhecimento empírico para estabelecer o significado cultural dos fenômenos e formular proposições empíricas sobre eles. Os tipos ideais se fundamentam no conhecimento já existente, por meio dos quais se tenta abordar a realidade empírica. Considerando a complexidade da Rocinha, verificou-se a necessidade de elaborar “tipos ideais” de Microcentros Comerciais Compostos. Foram 53 WEBER, Max. A “Objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política. In: Metodologia das ciências sociais. Parte I. São Paulo: Cortez, 1992, p. 136.
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utilizadas algumas microáreas da Rocinha como expressão maior da existência desses tipos ideais de MCC’s, mas isso não significa que tais fenômenos não se repitam em outros pontos da favela. À princípio, foi estabelecido como ponto de diferenciação entre eles a institucionalização ou não da prática do fiado e os diversos graus em que ele pode aparecer, como exposto na classificação gradativa.
Nodos Como já foi dito, os Nodos identificados na Rocinha se encontram justamente nas vias principais, que foram também vetores do crescimento e da ocupação desse território. São, portanto, as áreas mais consolidadas da localidade, tanto em termos de infraestrutura, como de meios de comunicação. As regiões que têm maior atividade comercial são vias de grande circulação de pessoas, e, portanto, não-lugares, ou lugares de passagem e trânsito, que possibilitam o anonimato dos clientes. Na Rocinha, o maior Nodo está localizado na parte plana do território: no Largo do Boiadeiro e na Via Ápia. Por ali transitam moradores, visitantes ou clientes, com acesso facilitado pela estrada Lagoa-Barra. Pela intensidade comercial, essa área foi classificada como Nodo A. Em toda a extensão da Estrada da Gávea se reconhece outro tipo de Nodo, identificado como de tipo B, pois apresenta grande atividade comercial, mas atende principalmente moradores de seu entorno e, em menor grau, a população “do asfalto”. Esse Nodo seria caracterizado por uma horizontalidade, ou seja, seria dedicado aos moradores das regiões situadas imediatamente à direita e à esquerda da área. O Nodo A concentra moradores de toda a localidade. E, portanto, marcado por uma verticalidade que serve desde os moradores da parte superior do morro até a parte plana da Rocinha.
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Este fluxo comercial só é possível devido às vias de ligação existentes. A arquiteta Danielle Klintowits54, em sua tese de mestrado, A (re) invenção da praça; a experiência da Rocinha e suas fronteiras, critica essa concentração comercial no Largo do Boiadeiro e na Via Ápia. Entretanto, a distribuição do comércio, como a própria arquiteta sugere, só seria possível com a melhoria das vias de ligação existentes e com a criação de mais vias de circulação.
Nodo A O centro comercial que engloba o Largo do Boiadeiro, a Via Ápia, a Via Leste e a Estrada da Gávea, a partir do número 523, foi classificado como Nodo A. Essa área é informalmente reconhecida por moradores locais e dos bairros do entorno como um grande centro comercial por seu dinamismo e pela grande diversidade de produtos e de serviços que oferece. A diversidade comercial nesse núcleo é maior no Largo do Boiadeiro. Entretanto, as vias Ápia e Leste, assim como a área da Estrada da Gávea, a partir do número 523, também concentram expressiva atividade comercial. A presença de grandes empresas e bancos atesta o dinamismo do comércio no qual é possível encontrar produtos com preços comparáveis aos do centro da cidade. O movimento é intenso nessa área; caminhões de entrega de redes de atacadistas são constantemente vistos nessas vias, congestionando o já intenso trânsito de pedestres e veículos. O dinamismo da região é destacado pelo depoimento dos moradores da Rocinha. Para eles, a importância desse núcleo comercial está expressa na frase “aqui na Rocinha tem de um tudo”.
54 Danielle Cavalcanti Klintowitz – Tese de Mestrado em Urbanismo: “A (re) invenção da praça; a experiência da Rocinha e suas fronteiras”, PUC Campinas, 2008
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A tabela seguinte contém a lista de tipos de estabelecimentos comerciais ali presentes: Tipo de estabelecimento e/ou serviço Advogado Restaurante Lanchonete Bar Loja de reciclagem Distribuidora de bebidas Distribuidora de água Distribuidora alimentos Roupas femininas Roupas masculinas Roupas infantis Roupas masculina, feminina & infantil Sapataria Salão Masculino Salão unissex Sacolão Med. especialidades Assist. eletrodoméstico. Assist. computação Artigos para festa Igrejas evangélicas Igreja católica Lojas de telefonia Loja de CDs Dentistas Bazar Farmácia (grande) Farmácia (pequena) Lan House Mercado (grande) Mercados (pequenos) Padaria (grande) Padaria (pequena) Açougue (médio) Açougue (grande) Perfumaria Granja Casa do norte Banco Papelaria Loja de doces Chaveiro Relojoaria Loja de plásticos Peixaria Loja de Móveis Vidraçaria Autopeças Loja de material de construção (grande) Creche Outros
Via Leste 03 07 06 01 01 01 01 01 01 01 01 01 03 01 01 01 01 02 01
Camelôs
Largo do Boiadeiro
Via Ápia
Est. da Gávea a partir do nº 523
01 03 01 15
02 06 03
02 06
02 03
05 02 03
01 02 01 03 01 01 01
01 01 01 02 01
01 02 02 04 01 01 01 03 03 01 01 04 03 09 03 03 01 03 02 03 02 02 02 01 02 01 01 01 04 01 04 01 01 Caixa Bradesco, camelôs e tabacaria
02
02 01
02
03 03 02 01 01
01
02
01
01
01 03
03 05 01 01 ótica, 01 pensão, 02 lojas de art. fotos
01 garagem, Ag. Automóveis, Light, Rádio comunitária, carteiro amigo, 02 lojas de gesso, 01 ótica, Emoções (feira de roupas), IURD
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Um morador da Rua 1 afirma que antes se deslocava até um supermercado no bairro vizinho de São Conrado para abastecer sua casa e que passou a fazer as compras “de mês” no Largo do Boiadeiro, pois as mercadorias “custam o mesmo preço do supermercado situado fora da Rocinha”. Além do fator preço, outro motivo pelo qual os moradores muitas vezes preferem comprar nesse núcleo comercial é a proximidade da residência. Comprar em mercados dos bairros vizinhos equivale a ter um custo adicional com o transporte. Para quem não tem automóvel, isso pode sair muito mais caro. É certo que a extensão desse núcleo comercial não se aplica somente aos clientes diretos. É possível perceber que sua influência se estende aos Microcentros Comerciais Compostos por meio dos fornecedores e distribuidores de bebidas e alimentos que abastecem os pequenos comércios dessas microáreas. A abrangência deste Nodo é muito grande. Por sua posição estratégica, tem atraído consumidores de bairros do entorno e pode-se dizer, inclusive, que tem funcionado como uma espécie de “centro da cidade” para muitos dos moradores de favelas vizinhas, como o morro do Vidigal e Parque da Cidade.
Os dois NODOS B Uma vez identificado o Nodo principal, localizado na parte inicial da Rocinha, surgiram dúvidas sobre a existência de outros centros comerciais semelhantes na Rocinha. Isso porque se percebeu que as ruas 1, 2, 3 e 4 ligavam, de uma forma ou de outra, algum ponto da Estrada da Gávea até o Nodo principal. A conclusão foi a de que o Nodo principal, em toda a sua variedade de oferta de produtos e serviços, e ainda por seu tamanho; seria capaz de atender toda a localidade, mas a complexidade tipográfica da Rocinha e a distância de outros pontos superpopulosos da localidade fez surgir outros dois Nodos. Geograficamente falando, eles são cruciais para atender a demanda de toda a população. Um destes Nodos está localizado bem no meio da Estrada da Gávea e outro ao final.
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Em suma, a Rocinha possui três grandes nodos comerciais que abastecem toda a sua população, sendo responsáveis, ainda e na maioria das vezes, pelo abastecimento dos Microcentros Comerciais Compostos. A verificação da existência de mais dois Nodos Comerciais mostra a importância das vias secundárias no fluxo de pessoas na Rocinha. O Nodo identificado no meio da Estrada da Gávea, um dos reconhecidos como Nodo B, está localizado exatamente na entrada das ruas 3 e 4, uma bem próxima da outra. Já o outro Nodo B, no fim da mesma via principal, pode ser identificado na entrada da Rua 1. A Rua 2, apesar de não estar relacionada a um Nodo, tem dois Microcentros Comerciais Compostos de suma importância para a população local que ficam próximos à Rua 1, com ligação direta para a Rua 3. A Rua 2, portanto, serviria como um elo entre os dois Nodos B. É importante ressaltar esses pormenores, pois eles dão ideia da distribuição dos centros comerciais, tornando-os fundamentais para a dinâmica da população em seu dia a dia e uma opção para os que não querem descer até o Nodo principal, quase “lá no asfalto”. Para melhor identificar os dois Nodos B, chamaremos de Nodo 2 aquele localizado no meio da via principal e de Nodo 3 aquele que está no fim da mesma via. O Nodo 2 atende a um ponto de convergência entre várias regiões importantes da Rocinha. Além das ruas 3 e 4, também abastece de forma direta sub-bairros como Dionéia, Paula, Brito, Cachopa e Fundação. Possui algumas características interessantes de serem verificadas. O ponto em que o centro comercial está situado é o de maior fluxo de carros, caminhões e motos de toda a localidade, gerando muitos engarrafamentos e dificultando o deslocamento de caminhões e a descarga de produtos.
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Um comerciante de um pequeno bar localizado na rua Dioneia explica como funciona a atividade comercial desse Nodo e a relação dele com esses sub-bairros: Essa ruas são enladeiradas. Ninguém que está passando lá na Estrada da Gávea sobe aqui pra comprar, mas quem mora aqui é obrigado a descer, então passa lá por baixo; por isso que lá tem até Bob’s. As lojas daqui vendem só pra quem mora aqui mesmo... Bob’s é uma rede brasileira de fast food que compete com o McDonald’s e sua presença é emblemática na caracterização dos Nodos Comerciais. Uma rede de fast food não vai se caracterizar pela pessoalidade na relação com seus clientes e sim por um atendimento cada vez mais rápido; em outras palavras, cada vez menos pessoal. Uma franquia desse tipo de comércio na Rocinha ainda permite, mesmo que a grosso modo, apontar um reconhecimento por parte do empresariado do potencial de compra e consumo dos moradores da Rocinha. O preço de um lanche completo no Bob’s varia de R$15 a R$25, o que poderia ser incompatível com a realidade socioeconômica de um “morador da favela”. Para se ter uma ideia da importância desse Nodo, nele estão estabelecidos, além da rede de fast food, uma igreja católica e outra protestante, um clube, uma grande academia de ginástica, cursos de computação. O Nodo 2 ainda “alimenta” vários MCC’s, de tipos e tamanhos diferentes, dos sub-bairros adjacentes. O poder público se faz presente por meio do grande investimento e de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para melhorar o acesso ao local. O Nodo 3, por sua vez, localiza-se na parte final da Estrada da Gávea, em um ponto de convergência de sub-bairros e de grande movimentação e oferta de produtos e serviços. A área abriga também sedes da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) do Rio de Janeiro e da Região Administrativa da Prefeitura.
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Pelo menos três Microcentros Comerciais Compostos estão instalados no entorno do Nodo 3, todos eles importantes para a dinâmica comercial e social daquela região. Um deles é o MCC do setor conhecido como 199, um microcentro muito ativo e com movimento significativo. É a porta de entrada da Rocinha para quem vem da Gávea. É a partir dele que se começa a ter dimensão do tamanho desta localidade. A grande variedade de comércio e a boa estrutura desses MCC’s também contribuem fortemente para o caos que é o trânsito naquela região. Com base na observação, e na entrevista informal de alguns comerciantes, esse Nodo também pode ser classificado como misto, pois comporta características de um Nodo (relações mais impessoais), com as de um MCC (informalidade, principalmente nas formas de pagamento). Alguns pequenos comércios ainda têm como prática a venda através do ‘fiado’. Além de ser uma das portas de entrada da Rocinha, o Nodo 3, assim como o Nodo 2, é um ponto de convergência de alguns sub-bairros bem populosos: Rua 1, Laboriaux, Portão Vermelho, Vila Cruzado, 199 e, de certa forma, também a Rua 2. É interessante perceber que por toda a extensão da Estrada da Gávea há uma grande concentração comercial, mas esses espaços nos quais estão os Nodos são realmente distintos. Nota-se um impessoalidade mais forte – as lojas têm uma identidade mais definida, muitas delas são filiais de grandes magazines, as formas de pagamento são diferenciadas e visam atrair mais consumidores, não só da Rocinha, mas das favelas e até mesmo dos bairros próximos.
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Microcentros Comerciais Compostos Em relação aos MCC’s, também se aplica uma classificação gradativa: MCC A – Apresenta algumas características de um núcleo comercial, como a impessoalidade nas relações e a diversidade das formas de pagamento. Mesmo em pequena escala, observa-se a prática do fiado concomitantemente a um pequeno grau de pessoalidade nas relações comerciais. Exemplo: MCC da Vila Verde. MCC B – Apresenta menor grau de impessoalidade nas relações comerciais. As formas de pagamento tornam-se menos diversificadas, podendo apresentar a prática do fiado em maior extensão do que no MCC A. Exemplo: MCC da Vila Cruzado. MCC C – Apresenta expressivo grau de pessoalidade nas relações comerciais, com a prática frequente do fiado. Exemplo: MCC da Rua Dionéia. Mini-MCC – Apresenta o maior grau de pessoalidade nas relações comerciais, tendo a prática do fiado totalmente institucionalizada. Exemplo: “biroscas”. São pequenos núcleos de comércio (em geral, informais) que desenham uma rede de microcapilares – sempre em conexão com um Nodo Comercial – em bairros e favelas onde existe informalidade. Possuem um aspecto estratégico de distribuição de produtos e serviços que requerem uma venda com aspecto mais interpessoal, pois neles se observam elevadas relações de vizinhança em pequenos núcleos. Um MCC é, como dito anteriormente, um lugar, ou seja, um espaço de pequenos núcleos comerciais que descentralizam a atividade econômica e a propagam para as áreas periféricas ao nodo, irrigando a favela ou o bairro com trocas econômicas que transcendem tal objetivo e promovem o convívio social e o reconhecimento individual, onde o cliente é conhecido pelo nome.
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Ao longo da Rocinha os MCC’s apresentam diferentes gradações de pessoalidade, tornando-se cada vez mais informais e importantes para os moradores, conforme a distância dos centros. Dessa forma, os Microcentros Comerciais Compostos assumem papel importantíssimo no desenvolvimento da região. As compras têm um caráter mais informal nesses pequenos centros comerciais. A confiança é a base da relação entre quem vende e quem compra. Não é difícil observar o contato mais estreito entre comerciantes e clientes, muitas vezes fazendo do local uma extensão da casa ou do barraco. As pessoas frequentam os microcentros não só para consumir, mas também para ter um convívio social e reforçar os laços de vizinhança e de solidariedade. É preciso, no entanto, diferenciar os vários tipos de Microcentros existentes no interior da Rocinha. Os pequeninos mercados encontrados nas ruas mais estreitas funcionam sozinhos como mini-microcentros comerciais, já que atendem às necessidades básicas e urgentes dos moradores de seu entorno e ainda funcionam como ponto central de um determinado eixo das ruas onde se localizam. Esses pequeninos mercados têm uma importância vital para o atendimento das regiões mais pobres e distantes do centro da Rocinha. Um outro tipo de microcentro verificável na Rocinha é o oposto do primeiro. A relação pessoal e o atendimento a um público específico permite que sejam assim classificados, mas a variedade dos tipos de comércio e o tamanho podem confundi-los com os Nodos Comerciais. São Microcentros com fortes características de Nodo. Entre eles se destacam dois. O primeiro é o da Rua 2, que está em um ponto próximo à Rua 3. Esse microcentro está exatamente no meio da comunidade, atendendo a grande demanda. Uma característica desse MCC é a presença de seis lojas de material de construção, sendo uma de grande porte. A concentração desse tipo de loja demonstra que tal MCC talvez seja o mais importante de toda a Rocinha, pois atende a um grande número de pessoas que buscam uma relação de confiança para a compra desse tipo de material, o que é muito comum. Provavelmente, esse MCC esteja em processo de transição a um
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Nodo Comercial. Algumas grandes obras públicas visando alargar a Rua 2 e torná-la mais acessível, com possibilidade de receber novos comércios, faz desse ponto um potencial Nodo. As obras de contenção de água, pavimentação e melhoria das condições de salubridade da região partem exatamente desse microcentro. Um outro MCC crucial é o do setor 199 que suporta a demanda da população do próprio sub-bairro e ainda de outro, conhecido como Vila Cruzado. Pode-se até dizer que ele é uma extensão do Nodo da Rua 1. Tal fenômeno é muito interessante de ser analisado, pois se tratam de concentrações comerciais mistas, com características de MCC’s, mas que também se assemelham bastante aos Nodos. Dessa maneira, os Microcentros Comerciais existentes são, de certa forma, pilares de escoamento dos principais Nodos, atendendo a um tipo de demanda distinta na qual o cliente, distante dos Nodos, busca produtos de consumo mais frequente e, com isso, comodidade. Os pequenos MCC’s atuam para atender às demandas básicas, evitando que os moradores precisem ir sempre à Estrada da Gávea, o que, em certos casos, pode ser uma longa caminhada ou subidas e descidas intermináveis. Os mapas comerciais ilustram e conseguem mostrar com clareza as atividades comerciais na Rocinha. Apesar de não falarem por si só, são grandes ferramentas de análise para ajudar na compreensão de variados fenômenos da economia da região.
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5. MCC, muito além de trocas econômicas Para entender a atividade econômica do comércio dentro da Rocinha é preciso um mergulho de grande profundidade em seus Microcentros Comerciais Compostos – conceito explicitado no capítulo 4 – e na complexidade que estes apresentam através da coexistência de informalidade e formalidade. As relações interpessoais são, por excelência, a própria dinâmica entre clientes e comerciantes nos MCC’s. A presença de certos aspectos indicativos de uma transição à formalização (como os meios de pagamento através de cartão de débito e crédito) em um local em que a informalidade predomina confere grande complexidade aos MCC’s, ganhando contornos criativos na rede de relações estabelecidas. O aviso estampado em uma loja de artigos domésticos, televisões usadas, sofás e poltronas novas – uma espécie de Casas Bahia informal localizada no MCC da Rua 2 – dizia: “Não permitimos mais a retirada de produtos na loja. Entregamos no endereço indicado”. E ainda: “Se você não pagar em dia, o cobrador da loja irá no seu endereço”. A loja em questão realiza venda à prazo por meio de carnês sem a necessidade de comprovação de renda. A única condição é a de que o cliente apresente um comprovante de endereço para que, em caso de inadimplência, o cobrador da loja possa fazer a cobrança no endereço onde a mercadoria foi entregue. Observa-se neste caso a venda formal, por meio dos carnês, com um sistema de cobrança informal.
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Nos Microcentros Comerciais Compostos é prática comum os pequenos comerciantes comprarem suas mercadorias dos fornecedores como pessoa física, usando RG e CPF – um indicador de informalidade. É o caso da dona de um bar conhecida por todos os moradores da região onde está localizada. Ela conta que o procedimento padrão é a compra ser feita como pessoa física, com o seu CPF. (Empresas formais compram e atuam como pessoa jurídica, por meio de um CNPJ.) Já o dono de uma mercearia no MCC da região conhecida como Roupa Suja – considerada uma das mais pobres da Rocinha – é outro comerciante que compra mercadorias como pessoa física. Ele ainda enfrenta outro problema. O fornecedor não entrega diretamente em sua loja, e sim “lá em baixo” devido ao seu comércio estar distante de vias carroçáveis. Por isso, “é preciso pagar alguém para trazê-las até o meu estabelecimento”. A informalidade deste caso impede o comerciante de colocar máquina para pagamento por meio de cartão de crédito ou débito a fim de“acabar com o fiado”. Por mais que ele queira, esbarra em questões legais, optando por permanecer na informalidade. Os relatos de funcionários de agências bancárias presentes na Rocinha apontam tal questão de forma clara. A presença de instituições bancárias tem servido como um agente de informação, conscientização e educação no sentido de promover a formalização. Alguns comerciantes, após serem instruídos sobre as diferenças entre as linhas de crédito para pessoas físicas e jurídicas, foram estimulados a legalizar o negócio a fim de obter acesso às mesmas. Há casos em que nem a legalização de um estabelecimento comercial afasta as práticas mais informais. Na Vila Verde, um sub-bairro muito próximo ao principal Nodo da Rocinha, um comerciante tem seu estabelecimento legalizado perante o Estado, com CNPJ e toda a documentação legal. Ele tem máquinas de cartões de crédito e débito e compra diretamente de fornecedores. Porém, a prática mais comum ainda é comprar “fiado”. O comerciante acha difícil “mudar o costume”, afinal, sua clientela “é toda conhecida”. Apesar da proximidade com o Nodo ter estimulado a formalização do negócio, a informalidade prevalece nas trocas econômicas com os moradores.
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Independente da coexistência de informalidade e formalidade, o que caracteriza os pontos comerciais dos Microcentros Comerciais Compostos são as relações interpessoais, o fato de serem “lugares” – ou seja, onde existe um forte sentido de identidade entre os moradores. A coexistência, contudo, pode ser indicativa dos efeitos da urbanização de uma Rocinha que cada vez mais deixa de ser “favela” e passa a se transformar em um “bairro”. A complexidade observada nos MCC’s é inerente a qualquer tipo de transição e os comércios são a expressão mais nítida de tal fenômeno.
Lugares de trocas comerciais e pessoais Na área conhecida como Setor 199 foi observada uma tentativa de institucionalização da prática do fiado. O proprietário de um mercadinho recorreu à velha prática da caderneta com um crédito para cada morador da região. Segundo a mulher do proprietário, os créditos são diferenciados de acordo com a renda da pessoa, o que já faz supor um grau de conhecimento e de intimidade entre comerciantes e vizinhos. O crédito aumenta se o morador paga em dia, podendo-se considerar tal conduta uma espécie de gestão informal de risco de crédito. Vender fiado comprova a existência de laços sociais de conhecimento ou amizade. O dono do mercadinho é categórico ao dizer que “só vende fiado para os conhecidos” e que ele e a esposa pretendem diminuir essa forma de pagamento, ressaltando que não é possível acabar de uma vez por todas com tal prática “porque tem freguês que é fiel”. Os estímulos para as relações interpessoais nos comércios dos MCC’s variam de acordo com o MCC em questão. A prática do fiado está presente em todos os MCC’s; porém, ela é gradativa e vai diminuindo inversamente ao tamanho do microcentro. O recebimento de cartas e encomendas também é um grande estímulo para essa rede de sociabilidade entre comerciantes e vizinhança. O comércio funciona como verdadeiro ponto de referência na comunidade, uma rede de apoio aos moradores dos becos e travessas, onde o correio não consegue entregar a correspondência.
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O uso, ainda que pequeno, de meios formais de pagamento, como os cartões de débito e crédito, começa a indicar as mudanças sendo promovidas pela presença do Estado e das instituições financeiras na Rocinha, promovendo a chamada bancarização de seus moradores e, por conseguinte, sua inclusão nos meios formais de trocas econômicas. O dono de uma mercearia informal na região conhecida como Roupa Suja queria instalar a máquina para poder aceitar cartões de crédito e débito. Segundo ele, “muitos moradores já utilizam o cartão”. Isso demonstra que, mesmo morando em uma região considerada pobre dentro da Rocinha, a população já começa a demandar formas de pagamento formais, fazendo com que os comerciantes, por sua vez, também busquem a formalização como forma de manter o negócio. A transição para a formalidade só não é mais ampla e forte devido aos problemas de infraestrutura da Rocinha – problemas estes que estão previstos de serem solucionados no projeto de urbanização em andamento. A falta de vias carroçáveis é um nítido empecilho à maior formalidade dos comércios do entorno, pois na maioria das vezes eles estão localizados em becos. Por outro lado, há quem ganhe o pão de cada dia transpondo tais obstáculos, levando produtos aos lugares de difícil acesso dentro da Rocinha. Os Microcentros Comerciais Compostos funcionam como um polo de apoio aos moradores em determinadas áreas. É importante frisar que há vários tipos de MCC’s dentro da Rocinha; porém, seja o menor deles, que seria apenas um mercadinho, ou o maior, com lojas de médio e até de grande porte; eles atuam como ponto de encontro da área em que se localizam. São o lugar em que as pessoas param para conversar, discutir, trocar informações. De maneira geral, a relação com a vizinhança é de aproximação e acolhimento. É possível reconhecer vários tipos de Microcentros Comerciais Compostos na Rocinha – cada um deles com um grau de pessoalidade entre moradores e comerciantes. São nos Mini-Microcentros Comerciais Compostos, ou pequenos
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comércios encontrados no interior da Rocinha, que os vínculos pessoais são ainda mais aparentes e fortes. É o caso de uma mercearia com oito anos de atividade e de propriedade de um casal que mora na localidade há dezenove anos. O comércio possui múltiplas funções: vende pão, cereais em geral, bebidas alcoólicas, etc. A esposa relata que muitas mulheres da localidade a procuram para pedir conselhos pessoais, mas não atribui isso ao fato de ter um comércio no local e sim ao longo período em que mora ali. A sociabilidade produzida por esse tipo de relação não é apenas comercial, mas sobretudo pessoal, engendrando laços de confiança que se estreitam à medida que se dão de forma “transparente e amigável”. Além da amizade, a solidariedade também permeia as relações interpessoais e é comum comerciantes e vizinhos se unirem para ajudar outras famílias em dificuldades. Muitas vezes, preparam uma cesta básica e mandam entregar na casa da pessoa necessitada. Em uma papelaria na região chamada de Setor 199 o atendimento feito diretamente pelo dono demonstra uma relação de amizade e reconhecimento pessoal. Alguns de seus clientes nem precisam dizer qual é o produto procurado. O dono já sabe! Outros não sabem bem o que precisam comprar e apenas aproveitavam para “bater um papo”, falar do dia dos namorados, do dia de Santo Antônio e até do defeito do telefone residencial. Em certa ocasião testemunhada em trabalho de campo, um cliente comprou um cartão pré-pago na papelaria e pediu que o dono inserisse créditos, pois ele não sabia como fazer. Segundo ele, havia perdido o celular que era de outra operadora e por isso estava com dificuldade para realizar a operação. O comerciante se lembrou da cor do celular do cliente (azul) e disse que um aparelho daquela cor havia sido achado por um amigo seu em uma festa realizada na noite anterior.
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Aconselhou que o cliente nem utilizasse o novo celular e procurasse a pessoa em questão. Situações como essas são comuns no dia a dia da Rocinha, principalmente nas áreas mais afastadas, nos Mini-MCC’s; e indicam que, além de uma relação comercial, existe uma relação de amizade e de confiança. A rua Dioneia é considerada um sub-bairro e, por apresentar um expressivo grau de pessoalidade nas relações comerciais e a prática frequente do fiado, foi identificada como possuidora de um MCC do tipo C. O relacionamento social entre comerciantes e moradores é muito parecido com o dos Mini-MCC’s e a informalidade também é a principal características da rotina de seus habitantes. A maior parte dos estabelecimentos comerciais (bares, mercadinhos, padarias) mantém a prática do fiado totalmente institucionalizada. Os comerciantes dizem, de modo geral, que só vendem “fiado” para aqueles em que confiam. Muitos afirmam não gostar dessa prática, mas de toda forma, o fiado não só existe, como seria muito difícil um comércio funcionar sem ele naquela região. Os comércios também funcionam como grandes pontos de referência na região da rua Dioneia. Eles recebem a correspondência dos vizinhos que moram em becos e travessas da mesma microárea. O mercadinho recebe mercadorias encomendadas pelos vizinhos. Tal rede de cooperação se estende inclusive entre os próprios comerciantes. A padaria recebe até mesmo produtos destinados a outros comércios aos quais os entregadores não conseguem chegar. Por isso, os pontos comerciais servem como polos de desenvolvimento da microárea, além de serem grandes pontos de referência. Na região conhecida como Vila Cruzado, a concentração comercial tem características de um MCC do tipo B, pois apresenta menor grau de impessoalidade nas relações comerciais. Há registro ali do uso de meios de pagamento mais formais, podendo, contudo, ser verificada a prática do fiado, principalmente no
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comércio de alimentos. A região concentra muitas oficinas mecânicas e está em um dos principais acessos à Rocinha, com a circulação de muitas pessoas não-residentes e, consequentemente, com a utilização de meios de pagamento formais. O principal comércio do bairro é um bar que recebe cartas e encomendas dos moradores dos becos ao redor. Já a microárea conhecida como Vila Verde, pela proximidade com um dos nodos comerciais, possui características de um núcleo comercial como a da impessoalidade nas relações e a diversidade das formas de pagamento, e por isso foi identificada como MCC do tipo A. Mesmo em pequena escala, observa-se a prática do fiado, concomitantemente a um pequeno grau de pessoalidade nas relações comerciais. Nessa região, pode-se notar a coexistência de formas de pagamento diferentes em dois estabelecimentos comerciais que servem também comida e vendem alguns alimentos não perecíveis, além de cigarro e bebidas alcoólicas. Em um deles, um mercadinho, o alto grau de pessoalidade marca a relação entre o comerciante e os seus clientes. O proprietário conhece bem a freguesia. Em uma ocasião, um dos clientes apenas entregou o dinheiro e o dono já sabia que ele queria cigarro e a marca do mesmo. Nesse caso, a prática do “fiado” continua sendo comum. Já em outro mercadinho próximo, as compras podem ser feitas por meio das vias formais de pagamento, ou seja, cartões e cheques. Mas apesar da instalação da máquina de cartão de crédito, o proprietário diz atender a um grupo específico de moradores; sua clientela é toda conhecida e por isso também mantém o fiado como alternativa de pagamento. Eventualmente ele aceita fazer doação de alimentos – quando uma pessoa de “boa índole” lhe solicita. De modo geral, em todos os Microcentros Comerciais Compostos, os comércios funcionam como grandes pontos de referência utilizados pelos
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moradores para se situarem dentro do denso território da Rocinha ou mesmo para indicarem seus endereços. Além dessa importância estratégica do ponto de vista geográfico, os microcentros ativam os lugares de encontro, de trocas de informações e experiências e do compartilhamento de acontecimentos felizes e tristes.
Biroscas, Mini-Microcentos Comerciais Compostos A presença das chamadas biroscas foi constatada em diversas regiões espalhadas por todo o território da Rocinha. Birosca55, segundo o Dicionário Houaiss, são pequenas vendas, de instalações simples, um misto de mercearia e bar. Tratam-se de estabelecimentos muito pequenos, mas com um papel crucial no atendimento de microáreas sem outros comércios próximos. Sendo assim, as biroscas foram classificadas como Mini-Microcentro Comercial Composto, quase sempre encontradas em locais distantes dos Nodos. São Mini-Mcc’s que têm a função de suprir, ainda que minimamente, as demandas imediatas dos moradores situados em pontos mais distantes do MCC. De certa forma, pode-se dizer que esses Mini-MCC (as biroscas) ativam o Nodo que, por sua vez, responde ao estímulo, oferecendo produtos e serviços voltados para essa relação de influência. Na localidade conhecida como Largo do Muarana há uma birosca na qual é comum a venda por fiado. Um dia um menino entrou na pequena loja e pediu uma caixa de sabão em pó “para sua avó”. A dona, tranquilamente, entregou a mercadoria à criança, sem questionar nada. Ela conhece seus clientes e seus laços de parentesco. Esse é só um exemplo de que, quanto menor é o comércio, maior é o nível da informalidade, alimentado pelas dimensões de identidade, históricas e relacionais de um Lugar. Dessa forma, o olhar que se lança sobre esse tipo de comércio não tem por objetivo visualizar a informalidade sob a luz da não relação com o Estado, tendo em vista que praticamente todos os negócios na Rocinha, sob essa mesma luz, são 55 Definição segundo Dicionário UOL Houaiss
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informais. A ausência de formalidade aqui tratada é, sim, na relação comerciante/ cliente – extremamente pessoal, e vista sob a ótica tridimensional do conceito de um Lugar. As biroscas, porém, são estabelecimentos que têm funções mistas. Relatos de comerciantes dão conta de que algumas mulheres, mães que voltam da escola com seus filhos, utilizam tais estabelecimentos como estação de parada, nos quais podem conversar um pouco e logo em seguida retomar suas rotinas. A dona de uma birosca em Vila Verde relata que costuma sentar-se na entrada da loja, nos fins de tarde, horário em que as mães buscam seus filhos na escola, para conversar um pouco com elas. Assim, esse espaço é visto como ponto de encontro entre moradores e lugar em que se estabelecem as relações sociais dentro da Rocinha. Em geral, as biroscas se destacam na paisagem comercial como local de convivência também para os homens. Nota-se a predominância da presença masculina devido à venda de bebidas alcoólicas. A presença feminina, por sua vez, se dá de modo intermitente, pois se limita à obtenção de suprimentos de necessidades imediatas. A venda nas biroscas ou Mini-MCCs de bebidas alcoólicas, bebidas em geral e produtos de cesta básica serve às necessidades urgentes dos moradores do entorno. A compra de bebidas é feita principalmente por homens e os produtos de cesta básica de forma mista, por homens e mulheres. A rede social criada em torno das biroscas independe das vias carroçáveis. Na verdade, elas surgem naturalmente por um tipo de demanda oriunda do fato de os Nodos não poderem atender todas as áreas. O objetivo das biroscas é justamente oferecer produtos de uso diário, sem que para isso as pessoas precisem se deslocar até os grandes Nodos. Uma moradora da Rocinha há 20 anos considera que a importância das biroscas, nas quais predominam a informalidade e o fiado, “tem se reduzido gra-
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dativamente”. Para ela, já não se encontra “de tudo” nessas pequenas lojas, como massa de tomate, milho, ervilha – que eram facilmente encontrados “antigamente”. A moradora acredita que tal mudança se deve ao crescimento e à diversificação do comércio local com uma oferta de produtos muito grande e preços quase iguais aos dos mercados situados fora da Rocinha. A moradora também atribui a mudança a um processo de conscientização da população de que “comprar em biroscas sai muito mais caro”.
A relação Nodo-MCC Com a predominância de bares nos microcentros comerciais, a distribuição de bebidas cria um relacionamento direto entre o Nodo principal e os MCC’s. Uma das soluções encontradas por um dos setores mais dinâmicos da economia local, o comércio de bebidas, foi o abastecimento dos MCC’s por meio do fornecimento e, principalmente, da entrega de bebidas a partir do Nodo principal. A relação se torna ainda mais forte quando o MCC não pode ser acessado por vias carroçáveis. No principal Nodo da Rocinha, há pelo menos dois grandes distribuidores – não só de bebidas, como também de doces – que atendem principalmente os pequenos e “inacessíveis” MCC’s. A impossibilidade de caminhões do distribuidor oficial atingir alguns lugares, inclusive para abastecer as biroscas, faz com que toda bebida seja comprada nos depósitos localizados na própria Rocinha. Um deles é o depósito localizado na Vila Verde. Ele realiza entregas em todo o território da Rocinha. Por outro lado, quando o MCC está situado em vias carroçáveis, ou próximo a elas, as bebidas são compradas diretamente dos fornecedores oficiais ou mesmo em promoções das grandes redes de supermercado dos bairros vizinhos, como a Barra da Tijuca. A importância dos centros comerciais principais, os Nodos, para os MCC’s distantes das vias carroçáveis fica evidente no contato com dois bares distintos e de localidades diferentes, que têm em comum a falta de acesso. Dois donos de bares em vias não carroçáveis afirmam que prefeririam comprar diretamente do
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fornecedor de bebidas, mas que isso inviabilizaria o negócio. O primeiro mostra uma conta do depósito da Vila Verde que oferece o serviço de entrega gratuita em toda a Rocinha, e que por isso é utilizado por ele. O segundo explica que compra as bebidas nos depósitos situados no interior da Rocinha, pois quando compra dos fornecedores oficiais, “eles entregam lá em baixo, sendo necessário pagar um adicional de R$ 2,50 por caixa para que a entrega seja feita no próprio estabelecimento”. O depoimento do dono do depósito na Vila Verde explica a opção pelo serviço gratuito: Entregamos em toda a Rocinha sem cobrar por esse serviço. O preço que a AMBEV me cobra é praticamente o mesmo que ela cobra para entregar nos bares. A importância do Nodo no abastecimento do comércio dos MCC’s é mais significativa no setor de bebidas. Outras mercadorias chegam de fornecedores que as entregam no local por um custo elevado ou as entregam na parte plana da Rocinha, de onde são transportadas até o comércio local. Esse serviço de transporte é oferecido por pessoas que não têm ocupação fixa e que oferecem o serviço não só aos comerciantes, mas também aos moradores que fazem compras no Nodo principal. Esse fator contribui para o “encarecimento” dos produtos para aqueles que residem em regiões de difícil acesso.
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6. A dinâmica comercial na Rocinha A principal via de acesso à Rocinha é a Estrada da Gávea, por onde circulam linhas de ônibus e de vans, moto-táxis, carros particulares e caminhões que abastecem o comércio local. Uma das especificidades da Rocinha é justamente ter uma via principal que atravessa toda a sua extensão, o que não acontece na maioria das demais localidades da cidade do Rio de Janeiro. Devido à densidade demográfica da Rocinha, é comum o congestionamento do trânsito nas vias internas carroçáveis. Localidades como a Rocinha estão em processo de transformação para bairros como parte de uma política governamental relativamente recente no Brasil de urbanizar e formalizar os espaços urbanos que foram autoconstruídos frente ao grave problema do déficit habitacional no país. A Rocinha, por exemplo, têm serviços médicos privados, clínicas particulares, laboratórios de análises clínicas, dentistas, médicos especializados, entre outros – todos, preparados para receber os pacientes da favela. Há, também, pelo menos um veterinário. Escritórios de advocacia especializados em direito penal e do trabalho estão, igualmente, implantados na Rocinha. As oito agências imobiliárias da favela (a maior delas gerenciando 1.500 contratos) negociam a locação de imóveis de uso residencial e comercial. O problema crucial dos transportes é resolvido em grande parte pelos moto-táxis (cerca de duzentos) que servem a localidade a partir de sete pontos diferentes. Uma empresa (formal) de táxis tem a sua central de atendimento na Rocinha, prestando serviço a todos os bairros da zona sul do Rio de Janeiro. Um empresário local propôs às famílias que desejassem garantir a segurança dos filhos no trajeto até a escola pública o uso de um ônibus escolar, mas é comum ver crianças transitando na garupa dos moto-táxis, espremidas entre os adultos – no caso, o motoqueiro e o pai (ou a mãe) na garupa da moto. O trajeto a pé é igualmente perigoso. O espaço é disputado por veículos e pedestres nas vias principais, onde rua e calçada não têm um limite muito bem estabelecido.
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A verticalidade das edificações tem sido a forma de crescimento de localidades como a Rocinha já densamente povoadas. A Rocinha tem vinte e cinco zonas que poderiam ser caracterizadas como “bairros”: Largo do Boiadeiro, Barcelos, Campo da Esperança, Cidade Nova, Rua 1, Rua 2, Rua 3, Rua 4, Portão Vermelho, Morro da Roupa Suja, Macega, Terreirão, Capado, Faz Depressa, Setor 199, Vila Vermelho, Vila Cruzado, Vila Laboriaux, Vila Verde, Vila União, Curva do S, Cachopa, Cachopinha, Pastor Almir e Dioneia. A diversidade territorial tem sido relatada como fenômeno paralelo à diversidade socioeconômica, mas está presente em toda a favela.
Números que impressionam Os números referentes ao comércio na Rocinha impressionam. Dados revelados pelo Censo Empresarial, pesquisa feita pelo governo do Estado no mesmo período do Censo Domiciliar, entre 2008 e 2010, indicam haver na região 6.529 empresas ou empreendedores. O levantamento identificou os locais com a maior concentração de comércio na Rocinha: dos vinte e quatro bairros considerados, cinco deles (Barcelos, Rua 4, Rua 2, Vila Verde e Rua 1) têm mais da metade das empresas verificadas. O Bairro Barcelos e a Rua 4, sozinhos, concentram quase que 30% das empresas. Há duas possíveis explicações para esses dados. A primeira seria a própria formação histórica do “Bairro Barcelos” que foi o primeiro a ser ocupado e loteado, ainda na década de 1930; não sendo de se estranhar, portanto, que seja a região com maior concentração comercial. A segunda explicação seria a proximidade do “asfalto”, o que possibilita, além da facilidade de deslocamento do morador local, melhor acesso da população das regiões vizinhas. Se o Bairro Barcelos é o grande centro empresarial, pelos motivos já expostos, as quatro outras localidades dentro do ranking são bairros extremamente populosos, o que por si só já justificaria a concentração de produtos e serviços. Apesar de existir a tendência da concentração comercial estar acoplada
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à residência do dono do negócio, curiosamente na Rocinha observa-se que 72,7% das empresas estão desvinculadas fisicamente das residências de seus donos56. O baixo grau de escolaridade entre a população adulta da Rocinha se reflete também no empresariado da região: a média de idade dos empreendedores é de trinta e nove anos, com mais da metade sem concluir o ensino fundamental e menos de 2% com nível superior. Na comunidade, quase 70% das empresas ou empreendedores estão na área de serviços. A densidade populacional e de casas na Rocinha é enorme, o que faz alavancar o mercado de serviços domésticos. Diarista, babá, folguista, lavadeira, doméstica, passadeira e acompanhante concentram, sozinhas, 17,3% de toda a oferta de serviços ou produtos da localidade. Vale ressaltar que o atendimento é feito dentro e fora da Rocinha. Outro dado interessante é que mais da metade dos empresários começaram seus negócios porque estavam desempregados. O aumento da renda familiar, a percepção de uma boa oportunidade e o fato de não ter que “trabalhar para os outros” são os principais motivos apontados. Apesar do mapeamento da expansão comercial da Rocinha ser segmentada por bairros, é importante notar que a Estrada da Gávea é o grande vetor de crescimento empresarial da localidade. Não é difícil verificar a intensa movimentação de carros, motos, caminhões e pessoas por tal via e sua forte atividade comercial. Pode-se dizer que, assim como o próprio crescimento da Rocinha, o desenvolvimento comercial também é radial e linear. E que os processos históricos de formação da localidade levaram à sua expansão comercial. Em outras palavras, os vetores de crescimento populacional e demográfico são os mesmo que os empresariais: a Estrada da Gávea, a parte mais baixa (Bairro Barcelos), a Rua 1, a Rua 2, a Rua 3 e a Rua 4.
56 Censo Domiciliar, PAC, 2010
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Contradições estatísticas A primeira grande polêmica quando se analisam os dados demográficos da Rocinha se dá em relação ao número de moradores. Dados oficiais do Instituto Pereira Passos apontam 45.585 moradores em 1996. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou 56.338 moradores no ano de 2000. O Censo Domiciliar, levantamento mais recente, feito em 2010, pelo governo do Estado, para dar subsídios ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), estima a população da Rocinha em 98.319 pessoas. Há, porém, estimativas de que essa população chegue a 100 mil pessoas. Os dados obtidos pela pesquisa IMR também são contraditórios em relação aos obtidos no Censo Domiciliar e igualmente no Censo Empresarial. Pelos dados do Censo Domiciliar foi possível aferir que 63,7% da população se encontrava na faixa etária de até trinta e nove anos, ou seja, uma população bastante jovem. A proporção de moradores nas faixas etárias mais elevadas era reduzida. A população que se encontrava em idade economicamente ativa correspondia a aproximadamente 70,2% do total recenseado. Ainda de acordo com o Censo Domiciliar, 90,7% da população recenseada informou a seguinte situação ocupacional: 30,9% de empregados com carteira assinada; 6% de empregados sem carteira assinada; 7,8% de autônomos, realizando os chamados “bicos”, ou seja, trabalhos diversos e intermitentes; 1,8% que trabalhavam por conta própria, mas de modo informal; 0,4% que trabalhavam por conta própria de maneira formal e 0,2% de funcionários públicos. Somente 0,1% dos entrevistados declarou empregador e 7,7% estar sem emprego.
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Situação ocupacional Empregado com carteira Autônomo/ Bico Desempregado Empregado sem carteira Conta própria formal Conta própria informal Empresário / Empregador Estudante Aposentado / Pensionista Dona de casa Funcionário público Doente / inválido Outros Subtotal Não aplica (criança 0 a 4 anos) Não Informados Total*
Valor absoluto 22720 5705 5671 4406 304 1326 73 17256 3166 5210 115 278 382 66612 6056 742 73410
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% 30,9 7,8 7,7 6,0 0,4 1,8 0,1 23,5 4,3 7,1 0,2 0,4 0,5 90,7 8,2 1,0 100,0
Tabela Nº 2 – Situação Ocupacional (PAC)
Da população não economicamente ativa, entre os que declararam não possuir renda, temporária ou permanentemente, foram registrados 4,3% de aposentados e pensionistas; 0,4% de doentes e inválidos; 7,1% de donas de casa e 23,5% que se identificaram como estudantes em período integral. Ainda é possível notar que 30% da população economicamente ativa se encontrava no mercado informal, situação que é frequentemente acompanhada pelo não pagamento da Previdência Social – o que implica não ter acesso aos benefícios sociais. Outro dado interessante diz respeito à renda adquirida por meio do trabalho ou da aposentadoria, como é possível observar nos dados do Censo (Tabela 2). Vale lembrar que o salário-mínimo na época do Censo era de R$510 (quinhentos e dez Reais) – aproximadamente duzentos e vinte dólares em valores de 2013/2014.
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Renda
Valor em Reais
Valor absoluto
Percentual
Até ½ SM
(De R$ 1,00 a R$ 207,50)
992
1,4
Entre ½ a 1 SM
(De R$ 207,51 a R$ 415,00)
9826
13,4
Entre 1 a 2 SM
(De R$ 415,01 a R$ 830,00)
16946
23,1
Entre 2 a 3 SM
(De R$ 830,01 a R$ 1.245,00)
3130
4,3
Entre 3 a 5 SM
(De R$ 1.245,01 a R$ 2.075,00)
479
0,7
Entre 5 a 7 SM
(De R$ 2.075,01 a R$ 2.905,00)
88
0,1
Entre 7 a 10 SM
(De R$ 2.905,01 a R$ 4.150,00)
37
0,1
Acima de 10 SM
(Acima de 4.150,01)
44
0,1
Subtotal
31542
43,0
Não tem renda
17891
24,4
Não se aplica
10299
14,0
Não Informados
13678
18,6
Total
73410
100,0
Renda média aproximada por pessoa: Renda média aproximada por domicílio: Renda média aproximada por pessoa do sexo masculino: Renda média aproximada por pessoa do sexo feminino:
R$ 369,91 (49.433 moradores informaram renda) R$ 727,49 (25.135 domicílios) R$ 427,86 R$ 314,03
Tabela Nº 3 – Nivel de Renda (PAC)
31%
29%
29%
11%
18 -‐ 25
26 -‐ 35
36 -‐ 45
46 +
Figura 2– Distribuição Etária da Rocinha (IMR Brasil, 2010)
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Os dados obtidos na pesquisa IMR diferem daqueles do Censo Domiciliar do governo do Estado. Foi aferido que 47% da população recebia entre R$1.000 e R$2.000 (ou entre 2 e 4 salários-mínimos em 2010); já o Censo registrava que 37,9% dos trabalhadores recebiam até dois salários-mínimos. Acima dessa renda, segundo o Censo, estavam apenas 5,3% dos que declararam ter rendimentos a partir do trabalho. Não obstante, a pesquisa IMR apontou que o grupo que estava recebendo acima de dois salários-mínimos chegava a 50% da população. Ao analisar a discrepância entre os dados, é preciso avaliar o interesse do morador ao responder os dados do Censo, em obter alguma forma de assistência ou mesmo uma vaga de emprego dentro do próprio programa de urbanização. Isso reforça o interesse de manter as representações de vulnerabilidade econômica. A tabela No 2 também aponta uma diferença salarial entre mulheres e homens. Os homens recebiam um pouco mais que as mulheres, apesar destas representarem 51,5% da população. O Censo Domiciliar obteve ainda dados referentes ao local de trabalho do morador. Segundo o levantamento, 25,3% declararam trabalhar em bairros da zona sul; 9,6% na própria comunidade; 3% no entorno ou em bairros vizinhos; 2,3%, na zona oeste; 1,8% na zona norte; 0,1% na baixada e só 1,4% no centro da cidade. Assim, observa-se que dos 43,5% de respostas quanto ao local de trabalho, 37,9% dos entrevistados informaram trabalhar em locais próximos ao local de moradia, confirmando a posição estratégica da Rocinha em relação às oportunidades de trabalho. Apenas 3,7% dos entrevistados informaram ter outra fonte de renda. Além da atividade de trabalho; 1% disse obter renda extra por meio de aluguéis de casas ou quartos na própria Rocinha e 0,7% declarou receber como renda extra o Bolsa-Família do governo federal.
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Esses dados chamam a atenção uma vez que 34,4% dos entrevistados declararam viver em moradia alugada. Mais uma vez, é preciso levar em consideração a forma como os dados foram coletados. As explicações para esse quadro poderiam ser as seguintes: ou os donos de imóveis alugados não veem esse recurso financeiro como fonte de renda adicional, e, sim, como única fonte de renda; ou preferiram, por motivos pessoais e até mesmo por causa do imposto de renda, não declarar renda adicional. Outro dado importante do Censo é a proporção de moradores que alega não ter telefone fixo em suas residências: 32,3% - um número significativo. Tanto o Censo quanto a pesquisa IMR revelam os problemas no espaço urbano gerados pelo adensamento habitacional da Rocinha: a ausência de ventilação; falta de iluminação natural e falta de espaço foram as maiores queixas, ou seja, problemas decorrentes da grande quantidade de pessoas vivendo em um espaço proporcionalmente pequeno, devido às irregularidades legais e estruturais da ocupação do espaço. Já em relação à oferta de escolas, os moradores são atendidos por um total de sessenta e sete – situadas tanto no interior da Rocinha, quanto em bairros vizinhos. Destas escolas, 12,3% pertencem à rede estadual, responsável pelo ensino médio; 46,9% pertencem à rede municipal, responsável pelo ensino fundamental e 9,5% pertencem à rede particular – o que revela o investimento de moradores que têm recursos financeiros na educação dos filhos. Em relação ao grau de escolaridade dos moradores, é possível observar que 47,6% da população têm somente o nível fundamental. Foi também registrado que 59% não frequentam a escola atualmente. Apenas entre os menores de 15 anos é registrada maior frequência à escola porque a legislação brasileira prioriza o ensino fundamental e pode até punir os pais ou responsáveis que não matricularem seus filhos. Além disso, o governo federal vem incentivando a escolarização fundamental, inclusive concedendo o benefício social Bolsa-Família para os grupos familiares em determinada faixa social que comprovam a matrícula dos filhos na escola. Entretanto, os dados coletados do Censo revelam que apenas 0,7% dos moradores da Rocinha recebem o benefício, o que leva a crer que esse
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nível de escolaridade não é devido, principalmente, ao benefício recebido. A situação dos demais níveis de instrução não é tão empolgante quanto à do nível fundamental: dos 30,3% que atualmente frequentam a escola, 17,7% estão no nível fundamental; 5,8%, no ensino médio, e apenas 0,7%, no nível superior. Em relação a estes últimos, os dados do Censo e da pesquisa IMR são contraditórios. Segundo o levantamento do Censo, o grau de escolaridade da população, em geral, é baixo: 21,5% dos entrevistados com o ensino médio, contra 31% da pesquisa IMR (Figura 2); 1,5% com o ensino superior e 0,3% com o profissionalizante, contra 6% da pesquisa IMR; 7,3% declarando não possuir nenhum nível de instrução e 8,6% terem apenas a alfabetização, ou seja, sabem apenas ler e escrever. Na pesquisa IMR, a porcentagem é de 3%. Boa parte da população (47,6%) não ultrapassa o nível fundamental de escolaridade. A partir desses dados, é compreensível supor que o nível médio de renda da população não ultrapasse dois salários-mínimos. Esse dado é reforçado pelo Censo, para o qual uma parte significativa da população trabalha como empregados domésticos (7,8%), garçom (5,6%), em serviços gerais (4,2%) ou cozinheira (2,5%). Assim, ainda segundo o Censo, a população da Rocinha atua, em geral, como prestadora de serviços, principalmente em bairros da zona sul da cidade. Este quadro poderia parecer ruim aos olhos do mundo “ideal”. Entretanto, a possibilidade de obtenção de alguma renda, mesmo que pequena, ainda representa uma alternativa melhor à dura vida no campo, ou mesmo do trabalhador dos subúrbios da cidade, que gasta um tempo de deslocamento consideravelmente maior, além de ter que utilizar transportes precários para chegar aos locais de trabalho. Por esses e outros motivos, a Rocinha continua sendo um local muito atrativo aos trabalhadores da cidade e moradores de áreas rurais, principalmente do Nordeste, que continuam migrando para a localidade.
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60%
31%
4%
Superior Completo
4%
Superior Incompleto
3%
Sugundo Grau
Primer Grau
Analfabeto
Figura 3 – Grau de Escolaridade da Rocinha (IMR Brasil, 2010)
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7. As dinâmicas familiares na Rocinha Para entender a dinâmica familiar dentro da Rocinha, uma equipe de antropólogos acompanhou a rotina de famílias residentes em dois dos Microcentros Comerciais Compostos, durante o ano de 2010. Uma delas, no MCC do tipo C, moradora da rua Dioneia; a outra do Mini-MCC – ou birosca – na Rua 1, em uma das áreas consideradas “mais pobres” ou marginais da Rocinha, a região do morro da Roupa Suja. Também foram feitas entrevistas em profundidade com uma família moradora da localidade conhecida como “Terreirão” situada na Rua 2 – um MCC do tipo B – e com outra da Rua 3, em que está um MCC do tipo C. A família A, moradora da rua Dioneia, era composta por pai, mãe e duas filhas de 3 e 5 anos de idade. A mulher tinha uma filha de 15 anos, de um primeiro relacionamento, que morava com a avó, também na Rocinha. A família B era composta por pai, mãe e filhas de 10 e 14 anos de idade. A família C era mais numerosa e composta por sete pessoas: o pai de 58 anos de idade; a mãe de 53; uma filha de 32 com dois filhos gêmeos de 23 anos e outros dois filhos gêmeos, de 13 anos, que apresentavam problemas mentais. A família D era composta por pais, filhos, irmãos, cunhados e cunhadas, netos e netas. Dois idosos também faziam parte dela. Um dos idosos era uma mulher de 76 anos que morava com duas netas. E o outro seria o pai de uma das noras dela, portador da doença de Alzheimer e que morava com a filha e o genro. Num olhar mais atento, percebeu-se nessa numerosa família a existência de uma forma de “aglomeração vertical”. Cada grupo formado por pais e filhos morava em casas separadas. Devido ao tamanho da família D foi feito um recorte para efeito de pesquisa. A família D, portanto, era composta por pai, mãe, dois filhos – de 23 e 30 anos – e uma neta de 4 anos, com necessidades especiais. Famílias tão numerosas como a família D não são a maioria na Rocinha. Um certo tipo de planejamento familiar informal não pode ser descartado. Os dados estatísticos demonstram que as famílias já não são tão numerosas quanto eram há décadas; apenas 19% delas contam atualmente com 5 ou mais membros (Figura 4).
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29% 23%
23%
19%
6% 1 a 2 pessoas
3 pessoas
4 pessoas
5 ou mais
NR
Figura 4 – Nº de pessoas por lar (IMR Brasil, 2010)
66%
64%
14% 8%
Filhos
Conjuge
Pai
Irmãos
10%
Outros
Figura 5 – Com quem vive (IMR Brasil, 2010)
5% NR
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O grau de aglomeração existente na Rocinha não se refere, de modo restrito, ao fenômeno da aglomeração em uma só casa. Na verdade, o que se verifica é a existência de aglomerações verticais, nas quais residem as famílias nucleares provenientes de uma mesma parentela, todas em um mesmo espaço – mais especificamente, em edificações semelhantes a prédios. Cada núcleo familiar acomodado em um andar. A família D vivia em um prédio de três andares. Inicialmente havia no terreno apenas uma casa em que moravam pais e filhos. Quando estes se casaram, o casal construiu uma moradia no pavimento superior para a qual se mudaram, cedendo a casa do primeiro pavimento para o filho recém-casado que morava de aluguel em uma casa também na Rocinha. Quando o outro filho se casou, os pais cederam o pavimento superior para que construísse um apartamento para a sua família. Assim, surgiu um prédio de três pavimentos, no qual residem famílias nucleares procedentes de uma mesma parentela. Relações de ajuda mútua entre os núcleos familiares foram se desenvolvendo a partir de então. Apesar da solidariedade, cada núcleo se mantém financeiramente independente um do outro, mas foi constatada uma relação matriarcal, sinalizada pela intervenção constante da mãe nas decisões da família. No caso das famílias A, B e C não houve registro de aglomeração vertical. Porém, havia uma discreta aglomeração (neste caso horizontal) em função do terreno. A família A, moradora da rua Dioneia, construiu sua casa em um terreno cedido pela tia do homem mais velho, o pai das crianças. Essa tia, por sua vez, mora ao lado do terreno, e o cedeu para que o sobrinho construísse sua casa própria, a fim de sair da pequena casa onde residia com a família, pagando aluguel. Além da casa, o homem utilizou o terreno para construir uma loja no andar térreo. A família B ainda não tinha casa própria, morava de aluguel e ao lado da casa de outro parente, que também pagava aluguel. Neste caso, nenhuma das famílias era dona do terreno ou tinha casa própria.
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Núcleos de residência As famílias na Rocinha tendem a constituir núcleos de moradia próximos uns dos outros – seja em casa própria ou de aluguel. Uma razão para esse tipo de disposição espacial talvez seja a de que a localização estratégica destas famílias, próximas umas das outras, propicia relações de ajuda mútua, extremamente necessárias quando relacionadas a cuidados com crianças, idosos e incapazes. Exemplo disso pôde ser observado na família A, moradora da rua Dioneia. A família recebeu o terreno da tia, mas dedicava-se a cuidar uma vez por semana do seu irmão, um tio com necessidades especiais, dependente da mulher, a tia que cedeu o terreno. Ela pagava um valor simbólico de R$10 (dez Reais) à família para que pudesse trabalhar. Entretanto, a dedicação e esse tipo de cuidado requerem algo mais que a simples remuneração; demandam uma relação de confiança que nesse caso é fundada em relações de parentesco. Entre as famílias estudadas, as mulheres tinham menor grau de instrução que os homens, com ensino médio incompleto. Essas mulheres deixaram de estudar na ocasião em que os filhos nasceram para dedicar tempo integral a eles. Entretanto, não retomaram os estudos mesmo quando as crianças já não necessitavam de cuidados integrais, passando a se dedicarem a outras atividades a fim de contribuir com a renda familiar. Além da questão econômica, elas relataram também que os maridos, por ciúmes ou razões religiosas, impediram a volta delas aos estudos, alegando que não havia necessidade – no caso de uma delas, o marido tinha receio de que a mulher se afastasse da igreja ao frequentar aulas noturnas. O nível de escolaridade dos homens, em geral, não ia além do primeiro ciclo do ensino fundamental. Eles teriam deixado os estudos para se dedicar ao trabalho. A disposição espacial (com a concessão de uma laje ou de um terreno para a construção de moradias) entre as famílias gera estratégias de economia familiar.
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A troca de favores nessa rede de solidariedade ajuda a reduzir os custos, além de produzir certa dose de tranquilidade, pois as famílias têm sempre por perto alguém que pode ajudar, quando necessário. Uma dona de casa que pertence à família A e mora em um terreno cedido pela tia relatou que a maioria de seus móveis e eletrodomésticos foi doação de amigos e parentes. Na família C, seus membros espalhados pelos três pavimentos de um pequeno prédio se revezavam nos cuidados com uma criança de 4 anos com necessidades especiais. A avó da criança preparava a comida da neta que tinha que ser especial. Essa mesma família tinha uma vizinha cuja neta também apresentava necessidades especiais, por isso, também doava parte da comida “especial”, feita com muitos legumes e verduras, à filha da vizinha. A ajuda era muito bem-vinda, pois a vizinha vivia com um salário-mínimo. (Nesse caso, ocorria um pequeno drama familiar, pois o avô da criança se recusava a ajudar por não concordar com o abandono dos pais da criança, obrigando a avó a se responsabilizar por ela.) A rede de solidariedade não se reduz ao núcleo familiar. Ela se estenderia aos vizinhos que não são parentes, mas mantém relações de compadrio. As duas vizinhas que se ajudam são comadres; uma delas é madrinha de um dos filhos da outra. Elas se conhecem há muitos anos, pois nasceram e foram criadas no mesmo local. Outra forma de solidariedade se expressa entre conterrâneos, pessoas migrantes oriundas de uma mesma cidade ou estado da Região Nordeste. É o que conta uma das mulheres entrevistadas na pesquisa. Ela, que é pernambucana, faz parte da família B e costuma ajudar conterrâneos que vem do Nordeste tentar a vida no Rio. Entretanto, faz uma ressalva e diz que não os recebe para morar na casa dela, nem mesmo temporariamente, pois tem receio de receber “estranhos” por causa de suas filhas. Apesar disso, tenta ajudar, pagando o aluguel de uma quitinete para o recém-chegado; servindo almoço ou mesmo doando móveis e eletrodomésticos novos ou usados. Segundo essa moradora, é muito comum naquela região ajudar os “que estão começando a vida agora”, ou seja, os recém-
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casados e os recém-chegados do Nordeste, doando móveis usados ou utensílios domésticos. Esse tipo de auxílio pode ser verificado principalmente quando uma nova família se instala no local. A ajuda diminui à medida que esse novo núcleo familiar se estabelece definitivamente na Rocinha. Outra forma de “solidariedade” é a doação de alimentos pela Associação de Moradores do Bairro Barcelos – fato ignorado por muitos moradores. Alguns, inclusive, se recusavam a aceitar tais alimentos, alegando que outras pessoas precisavam mais. Porém, doações vindas dos líderes do tráfico de drogas eram aceitas, sem a consciência de que por meio delas era feita a cooptação dos moradores, a criação de uma linha de dominação pela cumplicidade. Entre os moradores não há uma leitura crítica da origem das doações, que são aceitas de bom grado, sem que o beneficiário questione de onde vieram. Em outras palavras, tais moradores aproveitam a ocasião para levar a parte que julga lhes caber. Contudo, é a ajuda entre vizinhos e parentes a que mais repercute no orçamento doméstico familiar, gerando economia. Certa vez, a moradora da rua Dioneia, e membro da família A, precisou de remédios para a filha. Como era final do mês e estava meio “apertada” de dinheiro, recorreu à mãe, que pediu ao marido que comprasse um xarope para a menina. Segundo ela, a mãe medica todo mundo na vizinhança e foi só olhar para a menina para prescrever um remédio. A menina permaneceu na casa dos avós por uma semana, sendo cuidada pela avó, que lhe preparava comidas mais leves. Em outra ocasião, no aniversário de uma das filhas, a ajuda veio de diversas partes. A tia do marido doou a quantia para a compra de refrigerantes; a vizinha tratou das unhas e dos cabelos da aniversariante; uma amiga da igreja doou a boneca que enfeitou o bolo. Enfim, foram feitas várias doações de parentes e vizinhos em forma de presentes. O mais comum é que a ajuda financeira venha de parentes mais próximos, especialmente em casos mais corriqueiros, como tratamento de
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saúde ou a ida a um dentista. Muitas vezes, há uma certa tensão, como relata a moradora que afirma que não gosta de contar com o auxílio do pai porque, segundo ela, ele tem por hábito embriagar-se e, quando fica bêbado, reclama de ter de ajudá-la. Como se vê, nem sempre a convivência diária das famílias na Rocinha é pacífica ou marcada pela solidariedade. Há relatos de que em certos momentos, como nos casos de doenças, nem sempre se pode contar com a vizinhança, a não ser “moralmente”, por meio de visitas e de palavras de incentivo. Muitos criticam essa situação. Uma entrevistada chegou a dizer: “Aqui na Rocinha ninguém ajuda ninguém e só fazem alguma coisa quando há algum pagamento”. Uma outra característica da sociabilidade na Rocinha é a forma como homens e mulheres se relacionam. Os homens estão ligados à rua e as mulheres à casa. Para os homens, “os amigos estão na rua”; as mulheres recebem suas amigas em casa. Por isso, é muito comum a mulher não conhecer os amigos do marido. Pelas ruas da Rocinha, percebe-se a presença majoritariamente masculina nos numerosos bares existentes no local. A presença feminina é bastante rara, quando inexistente. As vivências comunitárias femininas se dão no âmbito doméstico; no interior da própria residência ou na porta de entrada das casas, numa fronteira entre a moradia e a rua. O aspecto interessante dessas vivências comunitárias é que tanto entre os homens, quanto entre as mulheres, tais relações dão lugar à configuração de relações comerciais; de prestação de serviços e de geração de trabalho e renda. No caso das mulheres, foi possível verificar que, além da amizade, havia entre elas constantes relações comerciais. Muitas amizades tiveram início após uma negociação comercial; a encomenda de um empadão, por exemplo. A partir disso, cliente e cozinheira podem se tornar amigas íntimas, uma visitando a casa da outra, uma auxiliando a outra e transpassando as relações comerciais.
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Entre os homens, as amizades podem começar em um canteiro de obras ou na indicação de um emprego. Um exemplo de geração de serviço dentre os homens se dá nos processos de mudanças. É muito comum os homens “contratarem” os amigos para o transporte de mudanças.
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8. Composição do orçamento familiar Em geral as famílias residentes na Rocinha contabilizam apenas as suas rendas consideradas “mais estáveis”, ainda que essa fonte seja informal. Esse aspecto foi verificado durante pesquisa com duas famílias da comunidade, como foi relatado no capítulo anterior. Uma delas, a família A, moradora do MCC do tipo C, na rua Dioneia. A outra família, denominada B, residente em um Mini-MCC – ou birosca – na Rua 1, em uma das áreas consideradas “mais pobres” ou marginais da Rocinha, a região do morro da Roupa Suja. A família A, moradora da rua Dioneia, era composta por pai, mãe, e duas filhas de 3 e 5 anos de idade. A mulher tinha uma filha de 15 anos de um primeiro relacionamento que morava com a avó na Rocinha mesmo. A família B era composta por pai, mãe, e filhas de 10 e 14 anos de idade. No caso da família B, o trabalho informal é a principal fonte de renda familiar. O homem trabalhava como pedreiro e ganhava em média R$ 1.500. Durante o período de pesquisa, bastava circular um pouco pelas ruas da Rocinha para perceber que a favela mais parecia um grande canteiro de obras. As construções estavam se verticalizando. Mas havia também o mercado de reformas, que até 2013 não era desprezível. Dessa forma, o “chefe de família” tem uma oferta constante de serviços. E, segundo mulher dele, nunca fica “parado”, ou seja, tem sempre uma obra onde trabalhar. De acordo com o relato da mulher, o “chefe de família” trabalha sob o regime de empreitada. Apresenta um orçamento para concluir um serviço e contrata os chamados “ajudantes” por uma diária, mobilizando assim um mercado de trabalho informal que abrange também outras famílias locais. Esse mercado construtivo local é bastante dinâmico e funciona seguindo a mesma a lógica de pessoalidade existente nos Microcentros Comerciais Compostos (MCCs). Essa pessoalidade “garante” formas de pagamento alternativas em situações de dificuldade financeira do contratante. São os chamados “rolos”, como a troca de
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um serviço por uma moto, por exemplo... É, portanto, um mercado que apresenta alternativas que podem ser interessantes para ambos os lados e não perde dinamismo na ausência dos meios de pagamentos formais. A família A trabalha com a venda de doces, salgados, balas etc. produtos são vendidos numa loja, de propriedade da família no andar térreo da residência. Com ela, a família alegou arrecadar cerca de R$ 500 mensais. Em ambas as famílias, as mulheres prestam serviços domésticos em bairros nas proximidades da Rocinha. Uma delas arrecada R$ 90 e outra R$ 60 por uma diária semanal. Esses serviços domésticos são oportunidades de trabalho vindas das chamadas “indicações” de amigos ou parentes; tratam-se de oportunidades oriundas de relações pessoais. Além dessas atividades informais contabilizadas como fontes de renda familiar, outras, mais instáveis e intermitentes, integram a formação da economia familiar. Os chamados “bicos” não são registrados pela família como fontes de renda, mas, apesar dessa omissão na contabilidade, são muito importantes para o orçamento familiar. Essas serviços são, em geral, prestados a parentes e amigos; são marcadamente pessoais. Assim, ocorre de alguém encomendar um bolo de aniversário a uma vizinha e também convidá-la para a festa de aniversário. Na festa, os elogios ao bolo são feitos à pessoa que o fez, o que pode render novas encomendas. O mesmo se aplica a doces e salgados feitos pelas mulheres em sua rede de relações pessoais locais. Nesse mercado informal ocorre uma espécie de reciprocidade implícita, como se estivesse ocorrendo uma “troca” não impulsionada apenas por relações comerciais, mas por relações pessoais. A troca é feita com fins comerciais e são permanentemente ativadas por meio de relações de amizade e de ajuda mútua, no caso de vizinhos e parentes.
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No caso da encomenda de doces para festa de aniversário, por exemplo, a contratada disse que faz um preço “mais em conta”, um preço mais baixo, para os amigos. É convidada para o aniversário e na festa é apresentada aos demais convidados, que, se gostarem do doce, encomendam os seus serviços. Nesses casos, o preço segue o padrão do mercado local. A extensão dessa rede pode significar a construção de uma atividade informal mais estável. Entretanto, como se tratam de atividades eventuais, ou seja, relacionadas a festas e eventos, esses serviços apresentam uma instabilidade maior que os demais prestados dentro e fora da Rocinha. Mesmo assim, os chamados “bicos” ativam a economia local e representam, efetivamente, uma parcela importante da renda familiar e do orçamento doméstico.
Gasto versus orçamento familiar Durante o levantamento do orçamento familiar, por meio do relato mais formal feito pelos membros da família, constatou-se que a renda familiar declarada era inferior à realmente obtida. Na verdade, as mulheres desconheciam o valor real da renda, enquanto os homens sabiam dizer com precisão o quanto era arrecadado mensalmente pela família. Uma possibilidade seria a de que ali ainda prevalecesse a tradicional visão machista pela qual os homens são tidos como “provedores” da renda familiar. A discrepância entre a renda declarada e a renda real obtida pela família é evidente em ambas as declarações. A média de valor não declarado variou de 15% da renda real, no caso de uma família, a 40% da renda real no caso de outra. Essa diferença pode estar relacionada ao fato de as famílias não declararem como renda o dinheiro vindo dos “bicos”, os serviços temporários. A renda informal declarada tem certa estabilidade; é possível falar em uma média mensal de ingressos, ainda que em alguns meses obtenham mais rendimentos do que em outros. A renda proveniente dos chamados “bicos” é mais instável. Assim, apesar desses serviços terem uma relevância na construção do
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orçamento doméstico, não são contabilizados como parte integrante da renda familiar. Durante a pesquisa foram entrevistadas outras famílias para traçar um panorama do orçamento familiar na Rocinha. Uma delas foi feita com mais profundidade e foi aplicado questionário com questões objetivas. A renda familiar declarada neste último questionário, não coincidiu com a renda relatada no primeiro contato. Isso aconteceu porque a mulher não incluiu no orçamento familiar, por considerar apenas um “bico”, a renda do filho, que fazia manutenção de computadores. Em outro caso, verificou-se que as atividades informais não declaradas, os chamados “bicos”, têm grande relevância na construção do orçamento doméstico, na Rocinha. Uma mulher, por exemplo, contou que recusou propostas de emprego como doméstica, para manter a produção, em casa, de doces por encomenda. Essa moradora já havia arrecadado na época, junho de 2010, R$ 600, valor superior a um salário-mínimo (R$ 510) Uma grande rede de negócios e de prestação de serviços se encontra nessas regiões que foram classificadas como Microcentros Comerciais Compostos. Essa rede contribui de modo significativo para a construção da renda familiar. Entretanto, por se tratar de uma renda intermitente, variável e instável, as famílias não a declaram como fontes de renda familiar, embora esses “bicos” possam representar cerca de 30% dessa renda.
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FONTES
Valor/ Média
DESCRIÇÃO
Aposentadoria do homem
R$ 510
Aposentadoria por invalidez, decorrente de doença crônica.
Mulher
R$ 360
Prestação de serviços domésticos aos domingos - “Bico”
Venda de doces e salgados
R$ 500
Estes produtos são vendidos na loja situada no andar de baixo da casa do casal. Essa loja é própria, ou seja, não pagam aluguel
Venda de produtos de marketing de rede
R$ 40
A dona de casa vende produtos das linhas Inspiração e Forever. Entretanto, suas vendas não são muito expressivas - “Bico”
Vendas de salgados na escola da filha
R$ 45
A dona de casa disse que, sempre que precisa, recorre a expedientes como esse, a fim de aumentar a renda familiar- “Bico”
Bolsa família
R$ 40
A família recebe esse benefício do governo federal por manter as duas filhas na escola
TOTAL
R$ 1.495
Tabela 4 – família a – renda mensal
DESPESAS
Valor/ Média
DESCRIÇÃO
Alimentação
R$ 300
Gasto médio por dia: R$ 10
Telefone residencial
R$ 58
Valor que corresponde aproximadamente ao preço da assinatura mensal.
Telefone móvel
R$ 24
Valor correspondente a duas recargas de R$ 12 de um telefone pré-pago
Lanches para as filhas
R$ 30
Compra de sucos e biscoitos da preferência das filhas
Cuidados femininos
R$ 40
Gastos para tratamentos de beleza
Pagamento de empréstimo
R$ 116
Empréstimo empregado na construção de mais uma casa no pavimento superior da residência do casal.
Pagamento de empréstimo
R$ 209
Empréstimo empregado na obra citada acima e na compra de materiais para vender na própria loja.
Pagamento de prestação de compra de roupas
R$ 50
Transporte
R$ 160
Gasto médio diário com moto-táxi para levar e buscar na escola cada uma das duas filhas: R$ 8
Dízimo
R$ 149,50
10% de tudo que recebem são destinados a contribuições para a igreja
TOTAL (declarado)
R$ 1.136,50
Destinação não informada
R$ 358,50
No mês da pesquisa foram gastos cerca de R$ 300 na compra de artigos de festa para a comemoração do aniversário da filha do casal
Tabela 5 - família a – despesas mensais
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FONTES
Valor/ Média
DESCRIÇÃO
Média de remunerações do homem
R$ 1.500
Recebidos por serviços de empreitada (obras realizadas a partir de um orçamento por serviço). Por isso, se torna quase impossível calcular a média diária.
Mulher - Cuidadora de criança
R$ 80
Serviço de levar e buscar a sobrinha na creche. E de cuidar da sobrinha, quando a creche não funciona - “Bico”
Venda de doces e salgados (mulher)
R$ 58,50
Esses produtos são vendidos para uma loja. que os revende. O preço é de R$ 1,30 por docinho. As encomendas são feitas três vezes por semana, numa média de 10 a 20 doces por pedido - “Bico”
Venda de doces para festa
R$ 120
No mês pesquisado foram encomendados 800 docinhos. A dona de casa disse que costuma cobrar R$ 30 pelo cento de doces. Mas, como a amiga que encomendou comprou todo o material para a confecção dos doces, cobrou R$ 15 pelo cento. “Bico”
Encomenda de doces para a festa
R$ 400
Encomenda de 1.500 docinhos para uma festa de aniversário. “Bico”
Faxina
R$ 60
Recebidos por um dia de trabalho por semana - “Bico”
Bolsa família
R$ 136
Benefício social concedido pelo governo federal às famílias que mantêm seus filhos na escola. No caso desta família, as crianças recebem respectivamente R$ 92 e R$ 44.
Total
R$ 2.354
Tabela 6 - família b – renda mensal
DESPESAS
Valor/ Média
DESCRIÇÃO
Alimentação
R$ 800
Família gasta, em média, R$ 26,66 por dia
Prestação
R$ 300
Pagamento de parcela televisão
Telefone móvel
R$ 22
Referentes a 2 cartões pré-pagos de R$ 11
Lanches para as filhas
R$ 100
Cada uma das duas filhas recebe a quantia de R$ 2 a R$ 3 para o lanche escolar.
Telefone móvel marido
R$ 50
TV A CABO
R$ 25
INTERNET
R$ 35
Energia elétrica
R$ 3
Valor correspondente à taxa mínima para populações de baixa renda. Esse valor se deve aos chamados “gatos” (furtos de energia), muito comuns na favela.
Transporte das compras
R$ 150
Pagamento de transporte das compras de supermercado até a casa.
Roupas
R$ 116
Compra de roupas para Vera e suas duas filhas
Total declarado
R$ 1.466
Despesas não declaradas
R$ 888
Compra de roupas para a mulher e as duas filhas. Homem gasta “muito” dinheiro com bebidas alcoólicas e com cigarros.
Tabela 7 - família b – despesas mensais
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Evolução da renda e distribuição do gasto Como já visto, muitas famílias que se estabeleceram na Rocinha vieram de outros Estados, especialmente da Região Nordeste. A família B, por exemplo, veio de Pernambuco, em 1996. O casal chegou à Rocinha em 1997, um ano após o casamento. O marido chegou um pouco antes, para conseguir moradia, já trazendo a mudança da família. O casal conseguiu alugar uma quitinete na rua do Valão, na favela, por R$ 160 mensais na época. Os móveis, conseguiram comprar “de segunda mão”, móveis já usados. O marido relatou que a mobília era apenas um fogão, uma cama de casal, um guarda-roupa e uma geladeira. Nesse período, não tinham nem telefone fixo. Assim, utilizavam o telefone público para falar com a família em Pernambuco. A mulher contou que comprava um cartão de 20 unidades de 15 em 15 dias. Segundo ela, só havia essa alternativa. Em suas palavras: “Se desse pra falar tudo com 20 unidades, bem. Se não desse, só dali a 15 dias” Foi uma época difícil para o casal; apenas o marido trabalhava. Ele era entregador de bebidas e a renda mensal da família não passava dos R$ 120, com direito a uma cesta básica, plano de saúde e tíquete de alimentação (que também era usado nas compras de supermercado), além de um valor adicional por horas extras. A mulher disse que o marido fazia muitas horas extras e a renda assim chega a R$ 260. Todo mês, R$ 160 eram destinados ao aluguel. Um ano depois, em 1998, o marido já havia deixado a empresa de bebidas e trabalhava como ajudante de pedreiro. Na nova ocupação, recebia o salário–mínimo da época, R$ 130, e o vale-transporte. Com uma filha de quase 3 anos, a mulher sentiu a necessidade de trabalhar para complementar a renda familiar. Assim, por meio dos amigos conseguiu trabalho em uma creche na região conhecida na Rocinha como Cachopa. Todos os dias, levava a filha para creche. Ali, enquanto uma amiga tomava conta da filha, com outas crianças da mesma idade, ela era responsável pela filha dessa amiga, em outra faixa etária e, portanto, parte de outro grupo de crianças. Havia uma espécie de “troca” entre as duas funcionárias da creche, permitida pela direção do estabelecimento. Dessa forma, ela poupava dinheiro, pois não pagava para que
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alguém cuidasse da filha. Neste serviço, a mulher também recebia um salário-mínimo. Portanto, o casal recebia R$ 260, a mesma renda mensal de quando apenas o marido trabalhava. Em 1999, nasceu a segunda filha da família B. A esposa ainda trabalhava na creche e os presentes que ganhou minimizaram os gastos com o nascimento do bebê. Nesse mesmo ano, a família se mudou para uma casa maior, mas o valor do aluguel se manteve em R$ 160. Em 2001, o marido, com o aprendizado prático, já havia se tornado pedreiro, o que abriu a possibilidade de um aumento na renda familiar. E foi o que aconteceu quando ele passou a receber um salário de R$ 700. Nesse ano, porém, o valor de seu aluguel aumentou para R$ 200. Nessa mesma época, a mulher saiu do emprego na creche, por causa dos constantes atrasos de pagamento e resolveu trabalhar em casa de família, como diarista. Em uma dessas casas, trabalhava duas vezes por semana e recebia R$ 170 mensais. Em outra, trabalhava três vezes por semana e recebia R$ 220. Com a renda de R$ 390 dela e os R$ 700 do marido, o casal chegou a ter uma renda média de R$ 1000. Em 2002, o marido decidiu trabalhar como autônomo, ali mesmo na Rocinha. Aos poucos, o trabalho foi aumentando, ele teve de contratar ajudantes, mas, mesmo assim, sua renda mensal aumentou. A mulher contou que, entre 2001 e 2007, trabalhou em duas casas de família, somando dois salários-mínimos e meio em valores da época. Com o aumento da renda, o casal mudou-se para uma casa maior, na qual residiam no período da pesquisa. Um dos fatores que podem ter contribuído para essa melhoria pode ter sido o fortalecimento da rede de relações do casal no local, pois todas essas oportunidades de trabalho vieram da convivência na favela. O gráfico sobre a evolução dos rendimentos, mostra que a partir do ano 2000, o casal se manteve com aproximadamente seis salários-mínimos, quando ambos estavam trabalhando:
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128
8 6 4 2 0
1995
2000
2005
2010
2015
Figura 6 - Rendimentos casal B
No período em que a pesquisa foi realizada, a mulher não estava trabalhando e por isso, houve uma queda no rendimento do casal, amenizada pelos chamados bicos. A família B mora na Rocinha desde 2002. Nessa época, a mulher trabalhava em casa de família e recebia dois salários-mínimos, enquanto o marido recebia um salário-mínimo e meio, com o trabalho em uma loja própria e em uma universidade. Um problema de saúde obrigou o marido a deixar o emprego e a mulher decidiu também largar o trabalho para ajudar a cuidar dele, acometido por um linfoma. Por causa disso, em 2003, a loja da família quase fechou. Um ano depois, nasceu a primeira filha do casal. O marido, com a doença sob controle requereu a aposentadoria e investiu o dinheiro em sua loja. A partir daí, com o aumento da variedade de produtos, a loja começou a dar lucro. A esposa voltou a trabalhar, fazendo doces e salgados para a loja e sob encomenda e prestando serviço doméstico aos domingos. Com isso, conseguia pouco mais de meio salário-mínimo. Para completar a renda, vendia cosméticos e fazia “escova” em suas amigas. A doença do marido provocou uma queda na renda familiar, que só melhorou depois que a família passou a investir no próprio negócio. Situada em um Microcentro Comercial Composto, a pequena loja atendia aos vizinhos e conhecidos de uma região muito marcada pela influência das relações pessoais no comércio.
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Administração da renda familiar Na Rocinha, as mulheres são as rainhas do lar. Pelo menos é como elas se reconhecem, por serem responsáveis pelo controle do orçamento e da renda familiar. Resquício de uma sociedade tradicionalista de quando as funções relacionadas às atividades domésticas eram delegadas às mulheres, talvez seja esta a razão para que as mulheres assumam este discurso, afirmando-se as administradoras do lar. O certo é que, a importância da contribuição feminina na construção do orçamento doméstico, ainda que pelos trabalhos informais e intermitentes, confere certo “poder” a tais mulheres no que se refere à construção de sua trajetória histórica. Muitas delas planejam retomar os estudos, mesmo contra a vontade do marido, assim que se liberarem parcialmente dos cuidados com os filhos. Essa decisão só se torna possível à medida que essas mulheres têm um papel relevante na construção do orçamento doméstico, não dependem integralmente da renda do marido. Mas uma certa divisão do trabalho administrativo entre homens e mulheres pode ser observada na Rocinha. Essa divisão pode se manifestar de forma cooperativa; as decisões podem ser tomadas por ambos, a partir da formação de um consenso. Ou podem ser tomadas por uma das partes, ao assumir um determinado setor de compras para o lar. Por exemplo: em uma das famílias pesquisadas, a mulher era a responsável pela compra de mantimentos em geral e o marido, pela compra de carnes. Ela disse que comprava somente o que lhe agradava, ainda que o marido não partilhasse de sua opinião. Ele comprava as carnes, porque, segundo a mulher, sabia escolher as de melhor qualidade. O homem era também responsável pela compra de móveis e eletrodomésticos para casa, mas, em geral, consultando a mulher antes de efetuar a compra. Nem sempre esse arranjo doméstico dá certo. Muitas vezes o casal não se entende sobre essa divisão de trabalho e aí surgem casos de mulheres reclamando das compras feitas pelo marido. Na Rocinha, ainda é possível encontrar mulheres
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que consideram os maridos os provedores do lar, com autoridade suficiente para tomar decisões. No entanto, assim como ocorre na sociedade moderna, a mulher vem assumindo cada vez mais papel de destaque na organização familiar dentro da favela. Essa mudança de papel gera tensão nas relações familiares. Muitos homens se opõem à retomada dos estudos das mulheres, temerosos de que a maior escolarização possa se traduzir num distanciamento entre as concepções de mundo da mulher e do homem que optou, por razões diversas e muitas vezes adversas, por deixar os estudos para dedicar-se exclusivamente ao trabalho. Apesar disso, as mulheres relatam a busca pelo consenso, embora algumas vezes optem por se calar e não manifestar oposição alguma às decisões do homem. É notável, porém, a influência das mulheres nas decisões domésticas, pois os homens acreditam na capacidade administrativa delas, confiando-lhes, principalmente, a atribuição de poupar.
Gastos x Poupança Na vida familiar na Rocinha, uma distinção importante que deve ser feita é entre gastos e economia e gastos e poupança. No primeiro caso, há uma grande preocupação entre as mulheres em comprar produtos em promoção. Algumas fazem compras semanais porque assim têm acesso a diversas promoções, conseguindo economizar, sem prejuízo na qualidade dos produtos. Outras compram mensalmente os mantimentos para a casa, também de olho nos produtos mais baratos ou em promoção. Em ambos os casos, o objetivo é uma economia para poder gastar com produtos que não são de primeira necessidade, mas que satisfazem algum desejo da família. Já com relação à poupança, o principal objetivo das famílias ao decidirem “poupar” é o de fazer uma espécie de “reserva” para os momentos de maiores necessidades, os chamados imprevistos. Em geral, esses imprevistos estão relacionados a problemas de saúde, como aconteceu com a família B, que precisou
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recorrer ao dinheiro da poupança quando, primeiro a filha e depois a esposa ficaram doentes. O marido precisou se ausentar do trabalho e, se a família não tivesse algum dinheiro de reserva, teria passado por grandes necessidades. Nem sempre, porém, é possível guardar dinheiro ou mesmo, pensar nessa possibilidade. Muitos moradores alegaram que até tentam, mas as necessidades imediatas se sobrepõem ao projeto de poupar. E, por isso, acabam sempre adiando a poupança. Para muitas famílias, a necessidade imediata pode ser a construção de outra casa, para moradia ou para aluguel, a fim de aumentar a renda familiar. Neste caso, o dinheiro que arrecadam, e que poderia ser direcionado para a poupança, é investido na obra em questão. Há casos em que o morador decide investir no próprio trabalho, como um empreiteiro que utiliza parte do que ganha para pagar pedreiros e ajudantes. Ele assumiria, aí, papel semelhante ao de um empresário que contrata, mesmo que informalmente, seus ajudantes. Desta forma, não é feita uma poupança para a família, senão uma “reserva” para reinvestir no trabalho, cujo rendimento será destinado às necessidades familiares. É uma realidade, na Rocinha, o fato de os moradores não conseguirem poupar, não por uma falta de preocupação com o futuro, mas simplesmente por não terem renda familiar suficiente para arcar com os gastos mensais e ainda guardar alguma coisa. Boa parte do orçamento familiar é destinada aos gastos com a alimentação. A família A tinha uma renda mensal de R$ 1.495. Desse total, R$ 1.136,50 eram destinados aos pagamentos mensais (dados obtidos na época da pesquisa). Cerca 20% dessa renda eram destinados aos gastos com alimentação; 21,7% ao pagamento de empréstimos feitos para a construção de uma casa e na compra de mercadorias para a loja, a fim de garantir a estabilidade da renda familiar atual. Os demais gastos eram os seguintes: 3,3% em vestuário para a família,
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5,4% com telefonia, 10% o dízimo para a igreja à qual o casal pertence. Além disso, 10,7% eram destinados ao transporte das filhas para a escola, pois se trata de uma região muito íngreme, cuja subida é difícil; 2% ao lanche escolar e 2,6% com os cuidados femininos. O destino dos demais 24,3% da renda não foi declarado; sabe-se apenas que a família A não estava fazendo poupança no momento. A família B tinha uma renda mensal de R$ 2.354, dos quais destinava 34% da renda familiar aos gastos com alimentação; 13% para a prestação de uma TV de 32 polegadas; 3% para telefonia; 4,2% a lanches para as filhas; 3,1% ao pagamento de contas de luz, internet e TV a cabo; 4,9% a roupas. O destino dos demais 37,8% não foram declarados. Nessa família, os gastos são majoritariamente destinados à satisfação de necessidades imediatas. São duas situações bem distintas. Uma família com um orçamento menor, investindo no futuro, com a construção de uma casa e o abastecimento da loja. E outra, com orçamento maior, gastando no conforto e “bem-estar” da família. Duas concepções de “bem-estar” que se enquadram em suas respectivas situações orçamentárias.
Bem-estar familiar As famílias em questão associam o “bem-estar” familiar a uma boa alimentação. “Aqui a gente gosta de comer bem. Sabe como é pobre, né? Adora comer bem”, costumam afirmar. Esse “comer bem”, no entanto, não é somente comer muito, grandes quantidades de alimentos, mas está associado ao consumo de produtos de marcas, reconhecidos popularmente como de maior qualidade e, portanto, mais caros. O vestuário, especialmente dos filhos, é outro fator que contribui para o “bem-estar” das famílias. Uma das mães chega a separar o benefício recebido pelo Bolsa Família para comprar roupas e adereços de cabelos para as filhas. Outra contou que as filhas, já adolescentes, não gostam de ir às festas com roupas “repetidas”. Por isso, a cada festa era preciso comprar roupas novas para que não se sentissem constrangidas.
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Se por um lado alimentação e vestuário são considerados itens muito importantes para o bem-estar familiar, a educação é considerado item fundamental para ambas as famílias. A mãe da família A afirma que seu maior desejo é matricular as filhas em “boas escolas”. Esse termo “boas escolas” refere-se a escolas que ofereçam aulas de inglês, informática e que gozem de boa reputação. Ela disse que gostaria de matricular a filha em uma escola de profissão religiosa, localizada dentro da favela da Rocinha. Segundo ela, essa escola ofereceria o ensino “de base” que as crianças precisam. Se tivesse de matricular as filhas em escola pública, não seria em qualquer escola, mas em alguma inaugurada recentemente, pois nelas os novos professores não costumam faltar ao trabalho. Além disso, as escolas recém-inauguradas não têm má-fama. De acordo com ela, a maioria das escolas públicas ministra um ensino defasado, cheio de lacunas. Em suas palavras, “um ensino meia-boca”. Essa moradora gosta de viver na Rocinha e diz que só permanece ali por causa das filhas. Pernambucana, gostaria de voltar ao Nordeste, mas lá o ensino é muito “fraco”, além de não oferecer oportunidades de trabalho para as filhas. Por isso, “suporta” viver na Rocinha. Outro fator presente na visão dessas famílias para um futuro “bem-estar” familiar é justamente a localização da moradia. Enquanto a família A gostaria de mudar-se para uma área mais plana da Rocinha, a outra, a família B, deseja mesmo é sair da favela para outro bairro, não necessariamente localizado no Rio. O grande sonho da mulher é o de retornar ao Nordeste. No entanto, em ambos os casos os “desejos” não configuram ainda projeto familiar. A razão para essa resignação pode ser atribuída às condições compensadoras desta suposta “má moradia”. No caso de uma dessas famílias, alega-se que morar na Rocinha significa oferecer melhor educação às filhas. No outro caso, morar numa região íngreme da Rocinha significa ter uma lojinha para vender doces e salgados.
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A permanência das famílias no local pode estar mais associada às escolhas que maximizam o “bem-estar-familiar”, condicionado por uma situação financeira favorável. Na Rocinha é possível, além de estar próximo de oportunidades de emprego nos bairros vizinhos, acessar o mercado informal local para obtenção de rendimentos bastante razoáveis. Assim, não há razão para se falar em comodismo, senão em adequação às melhores condições de vida que têm no momento atual. E, a partir dessas justificativas, não se pode afirmar que tais famílias se encontrem em uma situação de pobreza absoluta.
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9. O contexto dos Microsseguros O conceito de risco dentro da acepção da indústria seguradora se refere à possibilidade de um evento futuro incerto causar perdas e danos de bens e pessoas. O risco é um evento aleatório e intangível cuja cobertura por parte de um seguro se dá em troca de um pagamento constante e tangível. O risco é o elemento essencial de um contrato de seguros. O conceito de risco para pessoas em situação de “risco social” não têm o mesmo sentido e significado que possui para as classes média e alta da sociedade . tradicionais consumidoras de seguros. No trabalho de campo (etnografia) e nas entrevistas quantitativas aplicadas durante o estudo na Rocinha se buscou captar as percepções de risco e perigo em linha com a partícula linguística segundo Niklas Luhmann em sua teoria sobre sistemas sócias fechados e complexos. Dessa forma, a definição de risco para os habitantes da Rocinha é a de uma situação em que o resultado de uma determinada ação vem a ser de responsabilidade da própria pessoa; enquanto que a definição de perigo é aquela em que o resultado é atribuído a um entidade metafisicamente externa – como Deus ou o destino. Os habitantes da Rocinha assumem o risco de uma ação percebida como arriscada em função de um objetivo específico. Uma residente considera que andar de moto-táxi com os filhos na garupa sem capacete é algo perigoso, mas pondera que é impossível subir andando até a sua casa com as crianças, especialmente em alguns determinados horários. Ela tem a percepção do risco, mas seu objetivo e prioridade é chegar em casa o mais rápido e comodamente possível. Para outros habitantes é preferível andar de ônibus – um transporte mais seguro que o moto-táxi – e para o qual existe cobertura de seguro em caso de acidente. A percepção de risco está presente nos relatos de campo, mas se abre uma exceção e se assume um risco quando há um motivo justificável. Caso
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contrário, as situações de risco são evitadas. Tal tipo de percepção de risco esteve presente em relatos de outros habitantes, segundo as medições realizadas com a seguinte pergunta: “Uma pessoa sai com seu carro em uma noite escura e chuvosa. Ela dirige em alta velocidade pelas ruas da cidade e sofre um acidente, ficando gravemente ferida”. Qual das seguintes frases parece mais oportuna para descrever essa situação? • Foi a vontade de Deus • Foi responsabilidade/culpa da própria pessoa por dirigir de forma imprudente sob condições perigosas • Não responsabilidade/culpa de ninguém. Era o destino da pessoa. A questão do risco social também envolve uma preocupação com a previdência social. Os habitantes da Rocinha relatam que muitos deles não contribuem com a previdência social – sobretudo por não possuírem emprego formal. Dessa forma, indivíduos e suas famílias ficam totalmente desprotegidos frente aos riscos. As categorias de risco e perigo são importantes quando se analisa a questão dos seguros e, no caso da Rocinha, dos Microsseguros; pois a compreensão de como os seus habitantes avaliam o que é risco é fundamental para traçar um perfil do que querem e esperam de um seguro.
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Valor Irrenunciável & Gasto Moral Valor é um conceito que faz parte do estudo da Filosofia, Sociologia, Economia, Psicologia, Antropologia e Política. Para o antropólogo Clide Kluckhon , valor é “uma concepção do desejável explícita e implícita, característica de um indivíduo ou grupo, e que influencia a seleção dos modos, meios e fins da ação”. Para a filósofa Agnes Heller , o valor é um “modo de preferência consciente”. Para o sociólogo Nildo Viana , “o valor é algo significativo, importante, para um indivíduo ou grupo social”. O conceito de valor tem sido investigado e conceituado em diferentes áreas do conhecimento. A abordagem filosófica descreve-o como nem totalmente subjetivo, nem totalmente objetivo, mas como algo determinado pela interação entre o sujeito e o objeto. Nas ciências econômicas, a noção de valor tem uma interpretação predominantemente material. Smith propõe a análise de valor como a habilidade intrínseca de um produto oferecer alguma utilidade funcional. Já no conceito moderno, dado pelo marketing, isto é uma função dos atributos dados ao produto ou ao conjunto formado por ele e que o envolve, quando necessitamos obtê-lo. Muito embora a sociologia não seja uma ciência valorativa, ela reconhece os valores como fatos sociais. O valor exprime uma relação entre as necessidades do indivíduo e a capacidade das coisas e de seus derivados, objetos ou serviços, em satisfazê-las. É na apreciação desta relação que se explica a existência de uma hierarquia de valores, segundo a urgência/prioridade das necessidades e a capacidade dos mesmos objetos para as satisfazerem, diferenciada no espaço e no tempo.
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Reconhecer um certo aspecto das coisas como um valor, consiste em hierarquiza-los para tê-los em conta na tomada de decisões, ou, por outras palavras, em estar inclinado a usá-los como um dos elementos a ter em consideração na escolha e na orientação que damos às decisões sobre nós próprios e os outros. Há os que vêem os valores como subjetivos e consideram esta situação em termos de uma posição pessoal, adotada como uma espécie de escolha (desejo) e imune ao argumento racional. Como podemos observar, o processo subjetivo de atribuição de valor é um componente chave em um processo de tomada de decisão – seja ela de que natureza for. Trazendo esta ideia para o campo onde queremos atuar, pretendemos, como estratégia de conscientização e educação do consumidor, atribuir valor aos seguros e ao que representam em termos socioeconômicos. É de fundamental importância, neste sentido, criar um conceito tridimensional de Valor para os seguros – um conceito que não se limita à acepção de Valor enquanto sujeito econômico (a relação custo/benefício), mas que abarca, sobretudo, o sentido social de um contrato de seguro (o mutualismo) e o sentido moral, ou seja, o ato de proteger pessoas e bens. No caso do Valor enquanto sujeito econômico, destacamos em nosso instrumento operacional o conceito da Teoria do Valor Subjetivo que é a importância que um bem ou um serviço tem para um indivíduo, caracterizando-se em uma questão de circunstância e preferências pessoais, sendo que o mesmo se pode dizer acerca do que este indivíduo esteja disposto a pagar por tais bens ou serviços. Com isso percebemos que o Valor econômico não é suficiente para construir uma fundação sólida, sendo preciso estabelecer uma conexão em camadas mais profundas em satisfazer as necessidades dos indivíduos.
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Neste sentido, Pedro Alvim, considerado o maior jurista brasileiro na área dos seguros, destaca o valor social: Importa, socialmente, evitar o sacrifício de alguém pelo risco e eliminar a insegurança que ameaça a todos. Isto só é possível através do processo do mutualismo que reparte os prejuízos para muitos em pequenas parcelas que não afastam sua estabilidade econômica. O patrimônio de todos é resguardado.57 O valor subjetivo da moral vem reforçar o conjunto de valores quando se alude à função mais básica e de apelo universal que os seguros possuem: a proteção. Após passar pela fase de educação financeira, onde aprenderá a diferença entre um gasto e um custo, posicionando os seguros de forma coerente no orçamento familiar, um chefe de família estará chegando, por A + B, à conclusão de que comprar um seguro que se adeque à sua necessidade é um decisão moral porque implica em proteger as pessoas que ele(a) ama e os bens que com tanto sacrifício são conquistados. Se pensarmos bem, todo corte em orçamento parte do princípio que o gasto deva ser supérfluo, ou seja, desnecessário e que se caracteriza por um alto valor econômico apenas. Conscientizar/educar o consumidor no sentido de que os seguros não são um gasto e sim um custo é um primeiro passo para retirar estes instrumentos imprescindíveis de proteção da classificação de “supérfluos” e fazer seu upgrade para o rol dos itens intocáveis no orçamento – o que, aqui, denominamos “valor irrenunciável”.
57 Alvim, Pedro, O contrato de seguro. Rio de Janeiro: Forense, 1983, pág. 130.
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Decisão Moral Transformar os Microsseguros em um produto valorizado pelo mercado a que se destina passa por um processo subjetivo de tomada de decisão – uma decisão que precisa ser Moral para este público. Através de um atribuição de valor que vai além da dimensão econômica e que é feita dentro de um programa de educação financeira, os seguros teriam um custo/benefício moralmente aceito pelas classes sociais mais baixas e emergentes. Além da dimensão individual e social da moral presentes em cada um destes conceitos, há um terceiro elemento dentro da moralidade: trata-se do objetivo modelador do comportamento moral, ou seja, da ideia de bem ou de valor. O comportamento moral não se esgota na decisão de como viver individualmente e no contexto de uma comunidade, mas de decidir qual a melhor forma de fazê-lo, isto é, quais os valores que devem orientar os comportamentos das pessoas na sua vida particular e social. Sabemos que não existem consensos naturais a respeito dos valores que deveriam orientar o comportamento individual e social das pessoas. Para as situações concretas que exigem decisões morais abre-se sempre a possibilidade de vários caminhos dentre os quais é preciso escolher, tendo em vista o pessoalmente desejável e o socialmente justo. O Valor é, pois, uma ponte para a Moralidade. Algo que possui (ou ao qual se atribui) valor é algo moralmente (convencionalmente) aceito – visto ter a moral um maior elemento social que os valores. Dessa forma, o valor é o elemento micro que atua na subjetividade de cada consumidor em potencial. A moral é o elemento macro que atua na natureza da decisão. Ela é o resultado do processo resultante das emoções geradas a partir de valores e de custos. É na decisão que se encontra a verdadeira moralidade.
Uma decisão moral será um cimento bem sólido para o posicionamento dos Microsseguros no orçamento familiar ao longo do tempo e do espaço (MCC). Para isso, é necessário tomar os elementos genéricos dos seguros – que são elementos “de valor”, como proteção, gestão do risco, segurança financeira, pensão – e trabalhar tais elementos dentro do repertório de valores (sistema de crenças de um indivíduo ou grupo social) que se relacionam com a necessidade de consumir os produtos de seguros. A partir disto, o fator do custo do seguro – reforçado pela ideia de que o “sacrifício econômico” presente reverte em benefício futuro devido à transferência do risco – se une ao sistema de valor para formar a decisão moral. Para lograr transformar os seguros em uma Decisão Moral, devemos eficaz e eficientemente transmitir a mensagem não só dos atributos dos seguros, mas também do papel que desempenham na cultura popular e, por isso, na vida das pessoas. As estratégias relacionadas aos Microcentros Comerciais Compostos são muito úteis para alcançar esse ponto onde as distinções de valor se ativam em um contexto de sentido sociocultural. Ao longo deste estudo buscamos compreender com profundidade os traços psicossociais na administração do risco e do orçamento familiar produzidos na relação das famílias e indivíduos residentes da Rocinha. O caminho passa por desenvolver a consciência nas famílias de que a compra de um seguro é uma decisão moral – o investimento que reverterá para o bem da família futuramente. Nos resultados seguintes do estudo quantitativo pudemos obter elementos que nos permitem observar os atributos dos seguros que são valorizados e os que são rejeitados. O “dever de casa” é transformar as percepções negativas em positivas ou valóricas.
Considerações sobre Produtos de Microsseguros O Estudo Quantitativo de campo realizado em 2010 entrevistou 500 pessoas na Rocinha. O questionário aplicado começava com a questão sobre ter ou não um
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seguro. Diante da pergunta “Você tem algum tipo de seguro privado?”, 92% da população da Rocinha disse não ter nenhum. Contudo, verificou-se que dentro dos 8% que têm seguros privados, 63% indicaram tratar-se de seguro de vida e 42% de um plano de saúde.
Sim 8 %
Nao 92
Figura 7 - “Você tem algum tipo de seguro privado?”,
O mais relevante aqui, porém, foi a enorme proporção de habitantes que NÃO contavam com algum tipo de proteção financeira – o que dá uma dimensão do potencial que o mercado segurador tem nesses ambientes. Mas, tanto os fatores de poder aquisitivo, como os de expectativas de crescimento individual, familiar e coletivo são extremamente altos, abrindo caminho para sistemas inteligentes de comercialização. A pesquisa do IMR se concentrou no estudo de produtos relacionados aos seguros de vida.
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Atributos Do Produto O seguinte conceito de Seguros foi apresentado aos entrevistados, durante as entrevistas quantitativas: O seguro é uma maneira de as pessoas protegerem sua família e também seus bens dos efeitos negativos de acontecimentos como morte, doenças, incêndio, roubo e outros. Existem diferentes tipos de seguros: os chamados “de vida”, que protegem as pessoas, e os que protegem bens, como automóveis e casas. No caso do seguro de vida, por exemplo, o segurado paga mensalmente à seguradora um valor (prêmio) pré-determinado em contrato (apólice) para que, no caso de sua morte, a família receba um pagamento (indenização) em dinheiro. Em geral, o contrato de seguro tem uma duração ou período de vigência de um ano, e pode ser renovado quantas vezes o cliente desejar. Se nada acontece durante o período de vigência da cobertura, NÃO há a devolução dos prêmios pagos. No total, 61% do universo pesquisado da Rocinha indicou uma visão favorável acerca do conceito Dentro do grupo de opinião favorável ao seguro de vida, 59% dos entrevistados destacaram os aspectos familiares, sendo bastante valorizada a ideia de que a família não fica desamparada com a perda de um de seus membros economicamente ativos. Um grupo de 20% associou a necessidade do seguro de vida com a proteção dos filhos. Sendo assim, a família (o grupo) e os filhos são os fatores mais destacados. Já os fatores de rejeição ao seguro se concentraram (39%) no fato de que o dinheiro gasto com a proteção do seguro não ser devolvido.
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Nao 39
Sim 61%
A família fica em boa situação – 31% A família não fica desamparada – 28% Os filhos recebem o dinheiro– 10% Os filhos ficam protegidos– 10% Tranquilidade caso ocorra algum imprevisto– 6% É importante ter um seguro – 4%
Figura 8 - Há algum aspecto do Conceito de Seguro que tenha sido de seu agrado? (Rocinha)
São três os atributos de valor do seguro de vida, cuja importância se observa e que são úteis para se pensar em estratégias de produtos:
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1) A família deve ser a destinatária dos benefícios do produto 2) Proteção dos filhos 3) O retorno do dinheiro em vida Outro elemento que ajudaria a complementar a percepção de valor se nota na importância que os moradores atribuem ao fato de se contratar um seguro de vida e de acidentes pessoais. Na Rocinha, 56% consideram Importante e Muito Importante contratar um seguro de vida e acidentes; e ainda, se for agregada à análise os 15% que consideram Mais ou Menos Importante, pode-se supor que 71% da população pode ser considerada como estando dentro da faixa de clientes em potencial, com um genuíno interesse nesse tipo de produto.
44%
56%
24%
15%
12%
6%
Nada importante
Pouco importante
Mais ou menos importante
Importante
Muito importante
Figura 9 – Importância de Contratar um Seguro de Vida e Acidentes Pessoais (Rocinha)
A pesquisa IMR indagou, também, as razões dos moradores para contratar um seguro de vida, destacando-se, na Rocinha, que para 34% a família “fica segurada” e que para 24% a família “receberia assistência em dinheiro” – o que
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equivale a um total de 56% das respostas circunscritas a um argumento que leva em consideração a família como destinatária dos benefícios do produto. 56% 34%
24%
11% 7%
7% 3%
A família fica segura
A família receberá um dinheiro
Os filhos Os filhos ficam com um futuro ficam protegidos. garantido.
Ajuda financeira quando mais se precisa.
Ninguém sabe o dia de amanhã.
3%
É uma segurança financeira
Figura 10 – Razões para Contratar um Seguro de Vida (Rocinha)
3%
Ajuda com os gastos funerários
Como fica claro no gráfico seguinte, as respostas que não atribuem importância à contratação de um seguro de vida não ultrapassam os 16%, com apenas 10% indicando como negativo o fato de que o produto “Não presta ajuda em vida”. O dado alude à percepção anteriormente informada pelos moradores como “defeito do produto” ao apontarem o não recebimento de dinheiro em vida.
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16%
10% 9% 7%
6% 4%
Não há necessidade.
Não oferece ajuda em vida
Há outras São produtos operados prioridades pelos bancos
Não sabe nada sobre seguros, nunca pensou nisso.
Os parentes podem querer me matar
4%
Não tem condições financeiras de pagar
4%
O dinheiro pago não é devolvido.
Figura 11 – Razões para NÃO Contratar um Seguro de Vida (Rocinha)
Ao indagar sobre a possibilidade de se contratar um Seguro de Vida, o estudo optou por relativizar as respostas. A razão para isso se deve ao fato de que a pessoa foi abordada em um contexto de não reflexão e falta de condições adequadas para discussão e transmissão de ideias e valores, o que lhe permitiria perceber a necessidade do produto. A mera entrevista com questionário no meio da rua impossibilita isso – daí as respostas positivas serem baixas, 28%. Esse ponto é a objeção que o estudo IMR tem em relação à maioria das sondagens e pesquisas que utilizam apenas questionários. Perguntar se uma pessoa está pensando em contratar um seguro de vida não é a mesma coisa que perguntar sobre a intenção de se tirar férias. As respostas, no caso da última pergunta serão, evidentemente, mais positivas, devido ao fato
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da pergunta aludir a um bem desejado, enquanto que o seguro de vida lida com ideias indesejadas – em particular nos segmentos socioeconômicos mais baixos – de morte, de acidentes.
34%
23% 18% 15% 10%
Definitivamente não contrataria
Possivelmente não contrataria
Não sei se contrataria
Sim, possivelmente contrataria
Sim, definitivamente contrataria
Figura 12 – Intenção de Contratar um Seguro de Vida e Acidentes (Rocinha) Portanto para sugerir os produtos, é preciso considerar os seguintes aspectos:
Por serem as mulheres as que administram o orçamento familiar, e serem mistas as decisões com respeito ao bem-estar da família, as mensagens sobre os produtos devem ter a ambos como destinatários principais. Se homens e mulheres serão os receptores das mensagens sobre os produtos, estas devem fazer um “sentido familiar” para seus receptores. A identificação da posição das mulheres dentro do círculo familiar como organizadoras e gestoras do orçamento coletivo, com o enfoque da tomada
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de decisões segundo aquilo que beneficia o todo, ou seja, a família, gera uma necessidade de comercialização de produtos destacando o aspecto do bem-estar coletivo. Entre os principais “bens” percebidos pelas populações estudadas estão, em ordem de prioridade: • O bem-estar da família, associado à saúde e conservação das fontes de renda. • Melhorias na moradia. • Segurança contra “imprevistos”. As respostas dos moradores da Rocinha à pergunta acerca do direcionamento de economias, cruzadas com as prioridades identificadas com o trabalho de campo etnográfico, permitiu compreender que a destinação de recursos para “imprevistos” e melhorias da casa é fundamental. Chamou a atenção a diferença de resultados quanto ao estudo que IMR realizou no Peru, em 2009, no qual as maiores prioridades verificadas foram a de destinar as economias para o investimento em um negócio próprio. Na Rocinha, esse dado se apresentou à margem dos demais: apenas 4%. A destinação de economias para imprevistos inclui o reconhecimento por parte dos moradores da favela do conceito de perda – do emprego, adoecimento repentino, acidente ou morte prematura – o que pode ser um gancho para ser usado na venda da ideia de seguro de vida e demais ramos. Trabalhar com o imaginário da perda dentro do contexto dos moradores da favela pode vir a ter um grande apelo no desenvolvimento de uma estratégia de marketing de seguro de vida. A educação não foi incluída entre as prioridades de direcionamento das economias, ainda que possa estar contida na resposta “o futuro de meus filhos”, mas ainda assim, ela segue como terceira opção no ranking de prioridades. De
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alguma forma, a moradia ocupa um lugar central nas expectativas das populações da Rocinha, acima da preocupação com os filhos ou mesmo da educação. Portanto, os produtos oferecidos devem ter o caráter de um plano de segurança familiar, que conte também com um elemento de proteção ou investimento para a melhoria da moradia. Esse dado é fundamental, pois construindo um produto com tais características, se atenderá quase que 100% das necessidades dos moradores. Os produtos relacionados devem ter as seguintes características: • Vida • Acidentes – permitirá ter seguradas as fontes de renda (coletivas) principais, no caso de se transformarem em passivas, por um fato fortuito. • Moradia – proteção contra incêndio, acoplada a uma poupança para a melhoria da moradia que possa ser resgatada em um período de 4 a 5 anos.
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10. Conclusão A mera observação não é suficiente para entender os sistemas socioeconômico e cultural que se formam e configuram em espaços urbanos autocriados frente ao déficit habitacional do Brasil e que por décadas se desenvolveram com uma lógica própria. A metodologia socioantropológica da pesquisa IMR levou pesquisadores a campo para morar e conviver no dia-a-dia com os residentes de tais espaços, compartilhando os problemas, descrevendo as soluções e criando laços que permitiram a obtenção de dados qualitativos. Assim sendo, concluímos que termos como “favela” e “comunidade” se constituem em representações sociais. Os resultados do estudo permitiram desconstruir alguns dogmas sobre a Rocinha. Um deles, a presença de um “comunitarismo” total, ou seja, a ideia de que as relações são maioritariamente pessoais e íntimas. Na Rocinha, a diversidade de relações está presente em distintas áreas. Assim, regiões que apresentam grande circulação de pessoas são marcadas por relações impessoais e transitórias, características de grandes centros comerciais, aqui classificados como “Nodos”. As relações pessoais predominam no comércio local, nos chamados Microcentros Comerciais Compostos (MCC). A pessoalidade permeia as relações comerciais entre os moradores dos microcentros abordados. Tais relações conferem bastante dinamismo à economia familiar, apesar da hipótese do comércio local nos MCC’s ter importância estratégica necessitar de estudos complementares e ainda mais aprofundados. As famílias estudadas fazem pouco uso do comércio local para as compras do mês, preferindo comprar no Nodo Comercial mais próximo da residência. As compras nos MCC’s são limitadas ao abastecimento diário de itens como pães e leite e aos mantimentos mais urgentes. Os bares localizados nos MCC’s são importantes espaços de convivência comunitária masculina, de certa forma vedados às mulheres. Algumas vezes, porém, apresentam-se como espaços “mistos”, pois as chamadas “biroscas” – que
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vendem de mantimentos a artigos de limpeza e bebidas alcoólicas – atendem a homens e mulheres da Rocinha. Em depoimento à pesquisa, uma mulher disse que gosta de “descer” para jogar baralho com suas amigas na casa de uma delas. Ao ser indagada se jogavam em algum bar, respondeu: “Deus me livre! Se meu marido me ver (sic) dentro de um bar, ele me mata”. Os espaços de convivência das mulheres são, portanto, os espaços domésticos. Na Rocinha os espaços de convivência, tanto os masculinos, quanto os femininos, geram, dentre outras coisas, trabalho e renda. Entre os homens, é comum, mesmo entre os que bebem sem moderação, a geração de serviços de transporte de material e/ou de mudanças. Entre as mulheres é frequente a prestação de serviços relacionados à beleza feminina, como os de manicure, cabeleireira e de confecção de alimentos para festas. Os trabalhos intermitentes, os chamados “bicos”, são responsáveis por cerca de 30% da renda familiar. Essa percentagem da renda não é declarada como parte do orçamento doméstico, dada a sua imprevisibilidade. Por isso, os estudos quantitativos não conseguem aferir a renda real das famílias na Rocinha. Com isso, acabam contribuindo para sustentar o “dogma da pobreza”, segundo o qual todas as pessoas que moram na “favela” são necessariamente pobres e de que a moradia reflete tal condição. O estudo conclui, de forma preliminar, que a permanência de muitas famílias na Rocinha representa uma vontade pessoal, sendo muito mais por oportunidades do que por necessidades econômicas. Morar na Rocinha se traduz em oportunidades de trabalho e renda mais vantajosas do que em qualquer outro local da cidade. A permanência pode significar a consolidação das relações pessoais, geradoras de ocupação e ganhos; e, em última instância, de solidariedade. Outro “dogma” sobre a realidade da Rocinha é a ideia de que existe uma grande solidariedade entre os moradores. Ao se analisar os relatos e as condutas das famílias pesquisadas, verifica-se que a solidariedade não é tão ampla assim. A hipótese é a de esta seria restrita a parentes cujas moradias seguem uma
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aglomeração vertical e/ou horizontal e aos conterrâneos, podendo ser estendida a vizinhos que se conhecem há muito tempo. A solidariedade entre conterrâneos é exatamente a responsável pela origem, crescimento e consolidação da própria Rocinha, casa de uma população nordestina bem numerosa. Conclui-se, ainda em forma de hipótese, ser falsa a ideia de que entre os moradores falta perspectiva de futuro. Na análise das projeções econômicas dos entrevistados, observa-se que as decisões não são maioritariamente imediatistas. As famílias entrevistadas apresentaram métodos de planejamento em relação ao futuro por meio da construção de uma casa para alugar ou por investimentos no próprio negócio. Verifica-se que o custo de vida nas regiões mais afastados dos Nodos é maior do que naquelas próximas ao Nodo principal – um aspecto cruel da ausência ou da precariedade das vias de acessos a esses locais mais afastados no acidentado terreno da Rocinha. Até a conclusão desta pesquisa, as intervenções de urbanização feitas pelo Estado se concentravam em torno dos centros comerciais principais. As condições dos locais de difícil acesso acabam se refletindo na situação financeira das famílias. No caso de uma moradora da rua Dionéia, o custo de transporte dentro da Rocinha equivale a 10,7% de sua renda familiar. Além do custo financeiro, trata-se de um tipo de transporte (moto-táxi) inadequado para crianças, pois na maioria das vezes os equipamentos de proteção individual não são utilizados.
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As principais conclusões da pesquisa: • A mulher cumpre um papel fundamental e proeminente na administração do orçamento familiar como tomadora de decisões para o bemestar da família. • O papel da mulher como administradora é tácito. Não existe um “mandato” explícito, mas é ela quem vai administrar e gerir o orçamento destinado a cobrir as necessidades da família. • Se, por um lado, a sociedade da Rocinha, em geral, apresenta traços de comportamentos tradicionais, nos quais a mulher costuma desempenhar um papel secundário e ser marginalizada em determinados espaços, por outro, as decisões familiares são, geralmente, tomadas em comum com o cônjuge masculino. • Os rendimentos médios indicados em diversos estudos estatísticos, incluindo o realizado pela IMR para a Rocinha, não representam a realidade. Isso se deve ao fato das rendas familiares serem compostas, sendo o número mais condizente com a realidade, em geral, de 30% a 40% maior do que o informado pelas pessoas. Isso é o que chamamos RFC, Renda Familiar Composta. • A renda familiar é, portanto, composta; mas apenas uma parte é de acesso coletivo – uma porcentagem menor fica à discrição de quem a obtém. • A mulher tem uma influência “moral” sobre a renda familiar composta. • Mesmo tendo rendimentos que geralmente estão muito acima da média declarada em pesquisas e estudos, a mulher não chega a dispor, diretamente, do total de dinheiro que ingressa no lar. • Distinguem-se duas formas de enfrentar as “emergências”: pelas redes familiares em primeira instância, e, em menor grau, pelas redes sociais. Além de um sistema informal de se fazer economias.
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• Os centros urbanos, denominados “Nodos” são chaves para o desenvolvimento comercial da Rocinha, sendo que a pesquisa identificou e mapeou três Nodos: Via Ápia, Largo do Boiadeiro e Estrada da Gávea. • O Nodo nasce, se desenvolve, estabelece e se configura a partir de uma história evolutiva da área urbana na qual está inserido. Ele é o produto de anos de evolução de um espaço urbano, que faz com que os habitantes de tal espaço se identifiquem com sua história e progresso. • O dinamismo social e econômico que se concentra e encontra nos grandes Nodos está relacionado à região do entorno, denominada de Microcentros Comerciais Compostos (MCC), nos quais existem comércios medianos e pequenos, estes últimos denominados “biroscas”. • Inexistem na Rocinha grandes Centros Comerciais do tipo de um shopping mall ou grandes redes de super ou hipermercados (como Guanabara ou Extra) e que tenham sido introduzidos de forma artificial, gerando a presença de Nodos espontâneos. Mesmo o processo em curso de intervenção urbana/estatal na figura do PAC não busca se introduzir de forma comercial e sim criar condições para que, pela organização do espaço urbano, os grandes centros comerciais possam vir a existir. • A partir dos Nodos, os rendimentos familiares são redistribuídos até outras redes ou microcentros, sendo estes compostos por pequenos comércios, principalmente mercadinhos. • O Microcentro Comercial Composto é, portanto, uma “parada”, uma estação, no processo vivido pela Rocinha de transição da informalidade para a formalidade e que é diariamente ativado pelas famílias. • Quanto mais afastado do Nodo, maior a informalidade e, portanto, também a vulnerabilidade social e incerteza econômica.
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• A razão do ponto anterior se deve a aspectos de acesso à zonas da da Rocinha que são mais pobres e marginais pela falta de vias que permitam aos moradores levar materiais de construção até suas casas. • As fachadas e estados das casas e ruas não podem ser utilizados para atribuir pobreza aos moradores, dado que a falta de cuidado ou de manutenção obedece a um mercado imobiliário muito ativo e dinâmico. • Os Microcentros Comerciais Compostos descrevem relações simbólicas de confraternidade e familiaridade entre vizinhos e comerciantes. • A dinâmica socioeconômica formada pelos mercados, mercadinhos, biroscas, identifica e destaca a riqueza das redes sociais, que se deslocam aos microcentros e se expressa nos graus de uma eficaz empatia entre cliente e comerciante. • Mercados, mercadinhos e biroscas localizados em qualquer tipo de Microcentro Comercial Composto são os espaços mais adequados para explicar e comercializar Microsseguros. • Devido ao processo de desenvolvimento “urbano” que se observa na Rocinha e a acessibilidade a sistemas de informação, existem muitas possibilidades de se encontrarem mercados e mercadinhos que utilizem tecnologias de informática, seja a internet ou sistemas de pagamento online. Isso permitiria fluidez na comunicação e maior economia de custos, ao se estabelecer uma relação de Correspondente Bancário para distribuição e cobrança de Microsseguros. • Os mercadinhos são um dos espaços com maior potencial para a venda de Microsseguros, mas ainda muito carentes de infraestrutura apropriada.
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• Os produtos mais recomendados para se distribuir na Rocinha, de acordo com as dinâmicas urbanas e econômicas observadas por esse estudo, além das expectativas descritas, são os de proteção familiar, vida, acidentes pessoais, e, de forma complementar, seguros para proteção da casa. • A destinação de economias para imprevistos inclui o reconhecimento por parte dos moradores da favela do conceito da ideia de perda – perda do emprego, adoecimento repentino, acidente e morte prematura – o que é um gancho muito oportuno para se usar na venda da ideia do seguro de vida e demais ramos. • Os fatores percebidos da mesma forma por homens e mulheres como importantes para a família são, em ordem de importância: • O bem-estar da família, que está associado à conservação das fontes de renda coletiva e à saúde. • A moradia, subordinada à permanente construção e acabamento, sem falar na irregularidade fundiária. • O bem-estar dos filhos
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Sobre o Autor Hernán Poblete Miranda é formado em Arte e Design pela UTEM em Santiago do Chile e em Antropologia Social pela Universidad Bolivariana; eterno candidato a Mestre em Sistemas Sociais Complexos da Universidad de Chile. Estudou o tema deste livro em mais de 15 países da América do Sul e Central, bem como da Ásia.