Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais Comissão de Psicologia, Laicidade, Espiritualidade, Religião e outros Saberes Tradicionais
Belo Horizonte
2019
© 2019, Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais É permitida a reprodução desta publicação, desde que sem alterações e citada a fonte. Capa: Brasil84 Revisão ortográfica e gramatical: Brasil84 Projeto e edição gráfica: Brasil84 Impressão: Gráfica Global Print Tiragem: 1.000 exemplares Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais Rua Timbiras, 1.532, 6º andar, Lourdes CEP: 30.140-061 – Belo Horizonte/MG Telefone: (31) 2138-6767 www.crpmg.org.br / crp04@crp04.org.br
Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais Comissão de Psicologia, Laicidade, Espiritualidade, Religião e outros Saberes Tradicionais XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (Gestão 2016-2019) DIRETORIA Stela Maris Bretas Souza Conselheira Diretora Presidenta Aparecida Maria de Souza Cruvinel Conselheira Diretora Vice-Presidenta
Felipe Viegas Tameirão Conselheiro Diretor Tesoureiro Délcio Fernando Pereira Conselheiro Diretor Secretário
CONSELHEIRAS(OS) Aparecida Maria de Souza Cruvinel Claudia Natividade Dalcira Ferrão Délcio Fernando Pereira Eliane de Souza Pimenta Eriane Sueley de Souza Pimenta Érica Andrade Rocha Ernane Maciel Felipe Viegas Tameirão Filippe de Mello Flávia Gotelip Leila Aparecida Silveira Letícia Gonçalves Madalena Luiz Tolentino Marcelo Arinos
Márcia Mansur Saadallah Mariana Tavares Marília Fraga Odila Maria Fernandes Braga Paula Khoury Reinaldo Júnior Rita Almeida Robson de Souza Roseli de Melo Solange Coelho Stela Maris Bretas Souza Tulio Picinini Vilene Eulálio Waldomiro Salles Yghor Gomes
Sumário Apresentação......................................................................................5 Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: os desafios de uma ciência e profissão no século XXI...................................9 A religião e as questões de gênero: construções do conceito de espiritualidade na compreensão da diversidade sexual............................36 Reinaldo da Silva Júnior Excurso sobre o humano e seus desdobramentos como perspectiva do “pós-humano”............................................................52 Henrique Marques Lott Por uma espiritualidade de enfrentamento ao fundamentalismo......75 Marcus Mareano O mal-estar na sociedade e seus efeitos sobre os matrimônios católicos contemporâneos: a proposta de mediação religiosa do Encontro de Casais com Cristo......................92 Denis Cotta Formiga Desafios e possibilidades da experiência de encontro interreligioso: uma investigação fenomenológica....................................109 Yuri Elias Gaspar e Miguel Mahfoud Somos mudança. Meditação (saúde espiritual) e transformação social.......................................................................135 Wanderson Xavier Mendes A dimensão de espiritualidade e o enfrentamento ao fundamentalismo: discutindo as relações de poder.........................151 Guaraci M. Santos Terapia no mundo antigo e suas implicações para um diálogo entre Psicologia e Teologia..................................................167 Davi C. Ribeiro Lin Anexo I: Nota de posicionamento sobre laicidade e religião...........181
Apresentação Em novembro de 2017, na sede do CRP 04, começamos os trabalhos da Comissão de Laicidade, Espiritualidade, Religião e Outras Tradições, batizada de Clerot. O objetivo maior deste coletivo é pensar como a Psicologia, enquanto ciência e profissão, deve se relacionar com essa temática, contribuindo para que nossa compreensão do ser humano e nosso trabalho junto a este possa ser mais eficiente na promoção da saúde como condição bio-psico-social-espiritual, conforme preconiza a OMS. Entendemos que o profissional de Psicologia, tanto em suas ações práticas em seus ambientes de trabalho, quanto em seu exercício como produtor de um conhecimento científico na pesquisa, precisa estar comprometido com um saber que contribua com a construção de condições favoráveis a esta existência saudável. Compromisso, este, que nos aproxima dos fenômenos sociais que são estruturantes da vida das pessoas; e a religiosidade, em todas as suas manifestações, compõe esse espectro. Entendemos, ainda, que não é possível uma análise criteriosa desse fenômeno sem a garantia dos direitos à diversidade de expressão cultural, por isso o olhar da Psicologia para a religião e para a espiritualidade precisa estar regido pela égide dos direitos humanos. Tendo como horizonte de sentido os axiomas dos direitos humanos e da saúde bio-psico-social-espiritual, a Clerot tem, nos fenômenos religiosos e na experiência de espiritualidade das pes-
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soas, seu recorte específico, procurando construir uma reflexão psicológica que nos ajude a compreender como o ser humano é afetado e afeta o mundo. Alguns princípios éticos precisam ser resguardados quando a Psicologia se propõe à seguinte reflexão: em primeiro lugar, a premissa da laicidade como condição da ciência. Ou seja, a ciência como uma racionalidade que se constitui de conceitos produzidos de forma racional, a partir dos experimentos e da análise crítica de seus resultados, não deve ser influenciada por dogmas. Em segundo, é preciso reconhecer a diversidade como condição ontológica, e como tal precisa ser legitimada e preservada nas relações humanas, o que só se faz possível pelo diálogo e aproximação entre os diferentes; é papel da Psicologia promover tal diálogo e garantir respeito à diversidade própria de nossa existência. Neste período de trabalho, a Clerot produziu uma nota de orientação dirigida à categoria e participou da Mostra de Práticas em comemoração ao Dia da(o) Psicóloga(o) com uma roda de conversa sobre Psicologia e espiritualidade. Também, realizamos oficina de práticas psicológicas em comunidades terapêuticas; organizamos, juntamente à UFMG, um seminário sobre a obra de Pierre Sanchis e sua relação com a Psicologia; além de dois Psicologia em Foco. Tivemos ainda, como atividade ordinária, as reuniões mensais da Comissão na sede. A Clerot também peregrinou pelo estado com o ciclo de conferências sobre laicidade, espiritualidade e religião; e essa ação teve como principal resultado a formação de grupos da Comissão em duas cidades (Divinópolis e Uberlândia). Participamos, ainda, do Grupo de Trabalho Nacional sobre laicidade, espiritualidade e religião; além de termos sido convidados a falar sobre
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a temática em eventos realizados em faculdades (estivemos na UNA BH, FAJE, UFTM e Unileste). Todo esse trabalho não poderia ficar restrito aos membros da Comissão e, por isso, produzimos este material para socializar com a categoria as reflexões que estão sendo geradas sobre o tema, entendendo que, assim, podemos ampliar o olhar e aprofundar ainda mais as discussões, trazendo à mesa atores que ainda não se engajaram no debate. Temos a convicção de que, apenas com o envolvimento das pessoas, podemos construir uma visão crítica que nos permita compreender o ser humano e os fenômenos que o cercam de maneira mais complexa, nos levando à perspectiva holística necessária nesta investigação. Sabemos, no entanto, que a compreensão do fenômeno religioso não se esgota, mas observamos que essa discussão, no momento atual de nossa história, parece ganhar importância ainda maior pelo fato da questão religiosa começar a receber grande destaque na realidade cotidiana da sociedade, ocupando os cenários político, educacional e econômico. Assistimos a retomada de uma reflexão moral pautada por dogmas, e não pela consciência ética. Este espírito de época estimula sentimentos ultraconservadores, que promovem a exclusão pelo pré-conceito e intolerância. Grupos acabam se fechando em guetos e o diálogo fica comprometido; além das relações, que precisam do diálogo para se sustentar. É dentro desse cenário que a Psicologia ganha papel relevante para o estudo da religião e da espiritualidade. Os textos deste livro não apresentam soluções, não serão eles que irão resolver a relação da Psicologia com a temática religiosa, se é que essa relação será um dia resolvida definitivamente. O que temos aqui é o resultado de uma construção coletiva, comprometida em produzir este diálogo por entender que a principal Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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ferramenta da nossa profissão é a linguagem e, por isso, precisamos sempre promover as condições para que a linguagem se coloque como instrumento do encontro entre as pessoas. Os autores apresentam seus textos, tendo como unidade metodológica discursos que têm a intenção de mostrar caminhos transdisciplinares que permitam o diálogo epistemológico em direção às aproximações, e não aos distanciamentos conceituais; na direção de maneiras de viver na diversidade, construindo identidades que não se isolem mas que permitam o trânsito na multiplicidade. É com esse espírito que apresentamos nosso trabalho, para que todos possam usufruir e contribuir com os desdobramentos futuros.
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Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: os desafios de uma ciência e profissão no século XXI
Comissão de Laicidade, Espiritualidade, Religião e Outros Saberes Tradicionais
Resumo Observamos em nossa prática como Psicólogas(os), nos diversos espaços de atuação - clínica particular, serviços públicos, políticas de saúde (A/D, saúde mental) -, uma forte presença do elemento religioso, seja no discurso de pacientes ou na implementação de projetos de políticas de saúde ligados a instituições e/ou tradições religiosas. Por conta da força dessa presença, o fenômeno religioso vai atravessar a prática da(o) Psicóloga(o), exigindo uma postura ética que deve ter como pressuposto a laicidade. Mas será que a(o) Psicóloga(o) está preparada(o) para absorver, em sua prática profissional, a perspectiva laica na relação com o fenômeno religioso, entendendo que esta postura não deve construir uma barreira entre ciência e religião mas, sim, garantir o diálogo entre essas racionalidades? O que entendo é que há a necessidade de produzir um saber psicológico sobre a religião capaz de reconhecer os aspectos políticos no qual o fenômeno se envolve, distinguindo estes da experiência subjetiva que leva as pessoas a perceberem o “sagrado” e tomar consciência da existência de tal, fazendo desta uma experiência revolucionária de encontro e sentido da vida.
Palavras-chave Psicologia. Laicidade. Espiritualidade. Religião.
Introdução A prática da Psicologia, pela sua peculiaridade de ter como principal instrumento a escuta e como objeto privilegiado de estudo a dimensão subjetiva e intersubjetiva do ser humano, es-
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barra a todo momento com o fenômeno religioso. A existência humana está indelevelmente marcada por essa condição. A religião, em sua concepção mais ampla, vai se mostrar nas estruturas sociais e nas relações intersubjetivas, que são as experiências de exterioridade do indivíduo, e também nas experiências internas (emocionais e perceptivas), que delimitam nossa subjetividade. É por conta dessa essencial presença do religioso na existência humana que a Psicologia, enquanto epistemologia voltada para a compreensão do ser humano, não pode desconsiderá-la ou desqualificá-la enquanto experiência real e legítima da condição humana no mundo. Compreender esse fenômeno, entender seu funcionamento e encontrar seu lugar no quebra-cabeça existencial deve ser um objetivo da Psicologia. Para tanto, se faz necessário que se construa um campo semântico de diálogo, que faça surgir uma epistemologia onde conceitos possam ser produzidos, no sentido de nos apresentar o fenômeno religioso à luz de uma racionalidade científica que não desqualifique seu objeto por conta de preconceitos axiomáticos inflexíveis. Um estudo psicológico da religião não pode descaracterizar esse fenômeno, confundindo-o com outras experiências humanas. Por isso, é preciso ser criterioso na descrição desse fenômeno, identificando, de forma sistemática, as diversas situações existenciais em que este se apresenta. Husserl utilizava do artifício da epoché e, aqui, esse exercício fenomenológico husserliano vai se mostrar de grande valia e servirá de instrumento para que a Psicologia possa identificar, no fenômeno religioso, o que dele se apresenta enquanto componente histórico, cultural, político, emocional e espiritual. Neste exercício intelectual, precisamos ter a consciência dos limites da própria razão e da consequente capacidade humana de compreender a realidade, pois essa condição limitada coloca o ser humano imerso num grande mistério que sempre permeará a exisPsicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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tência; e o fenômeno religioso, em sua essência, toca exatamente nessa relação que estabelecemos com esse mistério existencial. O que estou afirmando é que estudar o fenômeno religioso implica numa imersão nesse mistério, sabendo que os recursos que temos para compreendê-lo são insuficientes pois sua extensão é infinita. Sem essa humilde consciência de nossas limitações, qualquer hermenêutica sobre o tema perde sua credibilidade, pois tenderá a aprisionar esse mistério infinito em alguma justificativa estreita e, por isso, incompleta e incorreta. Dito isso, apresento este artigo em três momentos: o primeiro onde discuto o conceito de laicidade, procurando dar-lhe duas perspectivas: sua relação com a religião enquanto tradição instituída, colocando-se em contraposição à esta, e sua relação com a produção de conhecimento e organização política, quando a laicidade se coloca como paradigma. O segundo momento do artigo trata do conceito de religião, procurando destacar três olhares possíveis para o termo: o estudo antropológico, que se orienta pela compreensão da cultura e procura estudar os ritos e mitos das tradições religiosas, além de sua função para os grupos sociais e sua organização coletiva; o estudo sociológico, que vai se debruçar sobre as instituições religiosas e procurar entender o seu lugar na engenharia política das relações sociais; e terceiro, o estudo psicológico, que deve ter como objeto a experiência subjetiva com o mistério, que é chamada de experiência mística ou de espiritualidade. No terceiro momento do texto, procuro refletir um pouco sobre o conceito de espiritualidade. Por ver nele o elemento chave do fenômeno religioso para a Psicologia enquanto ciência e profissão, a espiritualidade vai se apresentar como objeto de nosso estudo e ferramenta de nossa intervenção. Por isso, compreender esse con-
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ceito é fundamental para que a(o) psicóloga(o) possa transitar por esse fenômeno, fazendo dele mais um instrumento na promoção da saúde e do pleno desenvolvimento do ser humano. Se podemos observar nas(os) psicólogas(os) de hoje uma grande dificuldade em lidar com o fenômeno religioso em sua prática cotidiana, provocando distorções tanto no que diz respeito a uma aproximação equivocada entre Psicologia e religião, como também num distanciamento esquizoide que impede a Psicologia de se apropriar dessa dimensão espiritual que é constitutiva do ser humano, tal situação é decorrente em grande proporção exatamente pela falta de uma descrição mais precisa do conceito de espiritualidade no universo epistemológico da ciência psicológica. A religião, em sua manifestação sociopolítica, pode funcionar como um catalisador para a libertação do ser humano, ou como um elemento de sua escravização; pode ser uma promotora da consciência que nos ilumina ou fonte de alienação que nos desorienta. Por isso uma Psicologia comprometida com a liberdade humana, que se projeta, enquanto ciência e profissão, como instrumento de luta por essa liberdade, precisa se aproximar da religião, fazendo desta relação mais um espaço de promoção do ser humano, valorizando sua diversidade de existir e sua capacidade de transformação do mundo e de sua subjetividade.
Laicidade: um conceito dentro da história do pensamento Façamos agora uma reflexão sobre a laicidade enquanto paradigma para a ciência. Para isso, precisamos, primeiro, contex-
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tualizar a ciência em sua construção histórica enquanto epistemologia, pois a mesma não nasce laica. Muito pelo contrário, a ciência, palavra que vem do latim scientia (sabedoria, conhecimento), sempre foi propriedade de uns poucos privilegiados eleitos que acabavam, por isso, detendo o poder sobre as grandes massas e, na maior parte da história, este pôde produzir o conhecimento que explicava que a realidade dada aos eleitos estava vinculada à religião. Esses eleitos eram escolhidos pelos próprios deuses, formando, assim, uma elite político-religiosa que formou a sociedade ocidental nas suas bases tradicionais greco-judaico -romana cristãs. O laico (ou leigo), aquele que não pertencia a essa elite político-religiosa que produzia o conhecimento – ou fazia ciência, se preferirem –, ficava condenado a reproduzir o modelo a ele imposto pela lógica oficial. Podemos fazer uma rápida comparação à condição de alienação1 proposta por Marx. Neste momento, podemos entender que a laicidade era uma condição do ser humano alienado. Devemos, ainda, reconhecer que o conhecimento produzido pela razão, que é o instrumento intelectual que o ser humano utiliza para explicar o mundo, esteve, por muito tempo, a serviço de um poder religioso que deveria ser utilizado como parâmetro para a definição da verdade e, por isso, a baliza da construção do conhecimento, ou da ciência.2 Essa ligação entre razão e fé pode ser melhor entendida quando observamos a necessidade humana mais perene: a busca pela verdade. A certeza de que a razão é um instrumento confiável para nos levar à verdade nunca se deslocou da convicção de que essa verdade 1 MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. 2 Um texto interessante para compreender esta trajetória do pensamento ocidental é: FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.
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é da ordem do transcendente, e que sua descoberta passa por uma revelação do absoluto, ou seja, é uma descoberta metafísica.3 A perspectiva da metafísica como lugar da verdade ou do real acompanha a história do pensamento ocidental, e pode ser vista no pensamento dos pré-socráticos que buscavam a perfeição do cosmos, em Platão com o mundo das ideias, passando por Agostinho e Tomás de Aquino, e até mesmo em Kant, o filósofo da razão pura e Hegel, com sua fenomenologia do espírito. Essa compreensão foi a garantia para que o conhecimento sobre a verdade absoluta ficasse sobre a salvaguarda daqueles que tinham uma certa intimidade com esse universo transcendente. Essa relação de intimidade entre o conhecimento, religião e poder e seus desdobramentos no cenário da sociedade laica é muito bem apresentada por Lott, em seu livro sobre o desencantamento do mundo de Gauchet4. A laicidade só ganha destaque na produção do conhecimento, como paradigma da ciência, na modernidade, quando o poder político procura se desvincular do poder religioso, a partir da ascensão de uma nova classe social: a burguesia5. A razão, então, muda de dono e passa a servir aos interesses desse novo estrato social, se vinculando fortemente ao que na Grécia antiga era de3 Podemos ver este viés místico mesmo na ciência da natureza, e um texto que apresenta com propriedade esta relação é: FORATO, Thaís Cyrino. A Filosofia mística e a doutrina newtoniana: uma discussão historiográfica. Alexandria: Revista de Educação em Ciência e Tecnologia, Florianópolis, v. 1, n. 3, p. 29-53, nov. 2008. ISSN 1982-5153. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/alexandria/article/view/37825>. Acesso em: 27 fev. 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.5007/%x. 4 LOTT, H. Religião, política e democracia: a sociedade desencantada de M. Gauchet. São Paulo: Fonte Editorial, 2017. 5 Para melhor compreensão deste processo histórico: HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 2003.
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nominado de techine, que se distingue do conceito de episteme6. A ciência, que era a produção de episteme, passa a ser a produção de techine. Mas existe na techine moderna da burguesia uma diferença fundamental da techine grega: a moderna está atrelada a outros paradigmas, que são o positivismo pragmático e a economia de mercado; é uma tecnologia funcional a serviço da produção instrumental, visando os bens de consumo e o acúmulo de capital para a burguesia. Está oficialmente inaugurado o capitalismo como modelo econômico e político e, para tanto, a visão laica de Estado e a produção do pensamento são fortes aliadas, pois trazem, no seu bojo, a perspectiva ideológica da liberdade. É preciso observar que, neste momento, mesmo os movimentos religiosos se apropriam dessa revolução iluminista, como é o caso do protestantismo. Um texto clássico que apresenta essa articulação entre religião e capitalismo é o livro de Weber7. Agora, na modernidade, o laico (ou leigo), aquele que não é iniciado e por isso está fora da religião, passa a ter voz e sua capacidade racional não é mais desprezada pela falta de vinculação com uma doutrina de fé. A laicidade passou de uma condição – a de não religioso – para um conceito que estava presente na essência da liberdade; ser laico passa a significar ter liberdade para circular entre os diferentes mundos que começam a surgir, ter um olhar crítico. O laico é o ser humano que tem o benefício da dúvida cartesiana. 6 MOURA, Lucas de & AZAMBUJA, Celso Candido de. O conceito de técnica segundo Aristóteles. XI Salão de Iniciação Científica – PUCRS, 09 a 12 de agosto de 2010. 7 WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Comp. das Letras, 2004.
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Nessa perspectiva, a laicidade passa a ser condição para um Estado livre e democrático, em contraposição ao Estado despótico dos reis e religiosos; também, para o pensamento pragmático e positivo de uma ciência tecnológica que vinha para transformar a realidade física do mundo. O laico ou leigo, aquele que não tinha autoridade, agora estava livre para expressar suas ideias8. Talvez o principal equívoco na utilização do termo nos tempos atuais, principalmente no senso comum, é a compreensão de que, ao se afastar dos dogmas e doutrinas de uma tradição religiosa, a laicidade bane a religiosidade da experiência humana. É preciso esclarecer que o processo é exatamente o contrário. Ao se afastar de um modelo religioso único, a laicidade se abre para a experiência religiosa em toda a sua multiplicidade, reconhecendo que a dimensão espiritual do ser humana não pode ser restrita a aspectos culturais e históricos, pois diz respeito à “ipseidade” do ser humano, compondo sua essência. A expressão fenomenológica dessa espiritualidade, essa sim vai estar marcada pela cultura e pelo tempo histórico, e por isso deve ser compreendida nesse terreno. Mas a espiritualidade é da ordem do transcendente e para ser compreendida em sua essência, como afirma Otto9, precisa ser vivenciada, senão não terá sentido; os instrumentos da razão não são suficientes para a percepção consciente dessa dimensão humana. 8 Uma história emblemática para ilustrar esse período é o julgamento de Galileu Galilei. RODRIGUES, Wellington Gil & BAIARDI, Amílcar. Dificuldades de comunicação científica em um contexto de censura: o caso Galileu. III Conferencia Latinoamericana del International, History and Philosophy of Science Teaching Group IHPST, Noviembre, Santiago de Chile, 2014. Disponível em: <http://laboratoriogrecia.cl/wp-content/uploads/2015/07/GIL-Y-BAIARDI-CO117.pdf>. Acesso em 20 fev. 2017. 9 OTTO, R. O sagrado. Lisboa: Edições 70, 1990.
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Quando aplicado ao pensamento ou à produção de conhecimento, o conceito de laicidade se apresenta como possibilidade de uma visão crítica sobre a verdade, um questionamento necessário ao pesquisador, que não deve se contentar com o dado, buscando sempre novas compreensões do real e promovendo uma hermenêutica livre e dinâmica, diferente da exegese dura e dogmática imposta pelas instituições religiosas. Para concluirmos nosso breve comentário sobre a laicidade, vamos retomar nossa reflexão inicial para constatar que, ao contrário da condição de laico imposta às pessoas pela Igreja Católica na Idade Média, classificando-as assim como não religiosas e, portanto, não aptas à produção do conhecimento e não capazes de reconhecer a verdade; o conceito de laicidade da modernidade não se coloca como oposição ao religioso e, sim, como possibilidade de um diálogo epistemológico e cultural, onde a diversidade religiosa deve ser respeitada e legitimada como manifestação da espiritualidade que nos compõe. O Estado laico moderno, portanto, não se pretende um Estado ateu e sim um Estado plural, que permite que a diversidade religiosa se apresente sem reservas e o pensamento laico, por sua vez, não é um pensamento que desconsidera a dimensão de espiritualidade, mas o observa enquanto experiência ontológica.
Definindo religião e pensando sua relação com a Psicologia Quando procuramos definir conceitos, o caminho natural do raciocínio lógico é buscar, nas raízes etimológicas do termo, as evidências de seu significado. Com o termo religião, esse exercício
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é complicado; se ficarmos apenas na vertente latina do termo, já teremos um problema enorme pois observamos que essa palavra da língua portuguesa não tem apenas uma origem etimológica. Temos o vocábulo religio, palavra utilizada pelos romanos para dizer dos cultos prestados aos deuses do panteão de Roma10, implicava em todo o conjunto de ritos direcionados aos diversos deuses que compunham o universo mitológico da Roma Antiga, bem próxima da estrutura mítica do mundo grego. Nesse contexto, as tradições monoteístas do Livro Sagrado não se caracterizavam pela prática da religio, ou seja, o judaísmo e o cristianismo11 não eram religião. Em uma outra vertente temos o termo religare como referência etimológica – esta, inclusive, a versão de maior apego popular –, que é a junção do prefixo re- com a palavra ligare, dando o sentido de uma fusão mais profunda, uma ligação mais intensa, ou uma “religação” com uma unidade perdida; aquilo que Freud entendeu ser típico da neurose, mas que na racionalidade religiosa subtende-se uma ligação com o sagrado, algo que faz a vida efêmera do ser humano mortal ganhar uma condição de transcendência que lhe proporciona uma percepção de perenidade, uma religação com o absoluto que permite o sentimento de unidade ou sentimento oceânico, como quis mostrar a Freud seu amigo religioso12. Uma terceira possibilidade hermenêutica de leitura etimológica da palavra religião na língua latina é a sua vinculação com o verbo relegere, que significa revisar ou reler, e se refere à necessidade exegética para a leitura do texto sagrado. Os textos sagrados 10 Sobre religião romana ver: CARDONA, F. L. Mitologia romana. Barcelona: edicomunicación, 1996. 11 O islamismo surge um pouco mais tarde, por volta de 600 d.C., quando o cristianismo já havia sido incorporado pelo Império Romano, o que aconteceu no século III. 12 FREUD, S. O mal-estar na civilização (obras completas vol. XXI). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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precisam sempre estar sendo relidos em condições específicas de um tempo, de uma cultura, de uma política e de uma ética, para terem sentido e serem úteis para a vida das pessoas13. Vejam, estou aqui apenas nos termos de origem latina, que é a mãe de nossa língua portuguesa, mas poderíamos estender nosso estudo etimológico para outra vertente linguística importante para a formação de nossa cultura e que se mostra muito presente em nosso vocabulário: a língua grega, onde temos o termo Κοινή (koiné - comum), apropriado pelos cristãos para nomear suas comunidades, que é também uma língua popular na Grécia Antiga, utilizada na escrita de textos bíblicos. Do mesmo radical temos o termo koinonia (comunhão), que é outro princípio bastante próximo do universo simbólico cristão, que foi a tradição religiosa predominante na formação de nosso povo e de nossa cultura. Esses pequenos exemplos foram postos para demonstrar a dificuldade de definição do conceito de religião, algo ampliado pela apropriação popular da palavra, carregando-a com uma série de significantes, alguns favoráveis, outros contrários à aceitação desta como um termo qualificado para a compreensão mais precisa do ser humano como requer a ciência, principalmente a ciência moderna. Mas se pretendemos estudar o fenômeno, é preciso que o identifiquemos a partir de critérios claros e bem definidos. Precisamos ser capazes de descrever e identificar sua manifestação fenomenológica para, então, compreender sua essência. Procuro construir minha definição do conceito de religião a partir de três critérios: 1 – Os aspectos sociológicos, que vão nos apresentar as instituições religiosas, que são as que se formam como grupos organizados, com regulamentos próprios (código moral) e hierarquia de poder, tendo como 13 AVEZEDO, Cristiane de. A procura do conceito de religio: entre o relegere e o religare. Religare, Juiz de Fora. v. 7 (1), 2010.
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catalisador o universo mítico e as experiências de transcendência que dão ao ser humano a evidência do sagrado. Quando estudamos essas instituições, é preciso compreender sua posição política, seus interesses econômicos e suas relações com as outras instituições sociais como a família, a escola, o governo; 2 – Os aspectos antropológicos, que nos mostram a tradição religiosa, os mitos, os ritos, ou seja, a forma estética que o sagrado ganha dentro das culturas e do tempo histórico, influenciando na construção ética de um povo e, consequentemente, na formação das subjetividades que se dão nesse contexto; 3 – Os aspectos psicológicos, que se referem à experiência vivenciada pelo sujeito, ou à percepção subjetiva do sagrado, os sentimentos, as sensações, a consciência, as atitudes que são próprias dessa experiência, fazendo dela um fenômeno específico, que é denominado religioso. É claro que esses três aspectos acontecem num intricado jogo que é a existência e não pode, portanto, ser pensado de maneira pontual, deslocado de seu todo; o que não significa, por sua vez, que não possamos descrever cada um deles em suas particularidades fenomenológicas aparentes. Para descrevermos de forma mais criteriosa os três aspectos do conceito de religião que procuro trabalhar neste texto, me parece ser adequado trazer para reflexão a relação que a Psicologia, enquanto ciência e profissão, pode ter com este fenômeno aqui conceituado. Quando pensamos nas instituições religiosas e na sua função social, não podemos desconsiderar as relações intersubjetivas14, um campo fértil de estudo para a Psicologia Social, assim como para análise institucional, área específica dentro da Psicologia Social15 14 HÖSLE, Vittorio. O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade. São Paulo: Loyola, 2007. 15 BAREMBLITT, Gregório F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 2002.
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que pode, e deve, ser aplicada ao estudo dessas instituições religiosas, apenas para citar duas possibilidades de interlocução com a Psicologia. Estamos falando de um aspecto da religião que se apresenta como objeto de estudo para que a Psicologia possa compreender o ser humano. As instituições religiosas, como todas as outras instituições, cumprem um papel fundamental na formação das pessoas, influenciando diretamente na organização da personalidade e na produção do adoecimento, que promove sofrimento e a dor que tanto nos debilita. Temos autores importantes que desenvolveram, e outros que desenvolvem, pesquisas nesse campo e servem de referência para esta análise psicossocial da religião instituída. Podemos citar como exemplo textos clássicos da história da Psicologia, como “O que é verdadeiro em religião”16 ou a “Psicologia dos povos” de Wundt, onde o autor desenvolve sua ideia de religião do medo17. E, também, autores contemporâneos como Oro e Ureta18, Pereira e Penzim19, Steil20, dentre tantos outros. São todos estudos de 16 FREUD, S. Moisés e o monoteísmo (obras completas vol. XXIII). Rio de Janeiro: Imago, 1996. 17 JORGE, Pe. J. S. Cultura religiosa: o homem e o fenômeno religioso. São Paulo: Loyola, 1994. 18 ORO, Ari Pedro; URETA, Marcela. Religião e política na América Latina: uma análise da legislação dos países. Horiz. antropol., Porto Alegre, v. 13, n. 27, p. 281310, junho 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832007000100013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 01 fev. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832007000100013. 19 PEREIRA, William César; PENZIM, Adriana Brandão. Análise Institucional na vida religiosa: caminhos de uma intervenção. Estudos e pesquisas em Psicologia, UERJ, RJ, v. 7, n. 3, p. 521-540, dez. 2007. Disponível em: <http://www.revispsi.uerj. br/v7n3/artigos/pdf/v7n3a13.pdf>. Acesso em 30 jan. 2017. 20 STEIL, Carlos Alberto. Pluralismo, Modernidade e Tradição – Transformações do Campo Religioso. Ciências Sociais e Religião. Argentina, v. 3, n. 3, 2001. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/CienciasSociaiseReligiao/article/view/2172>. Acesso em 29 jan. 2017.
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grande relevância para uma compreensão mais ampla da intersubjetividade e seus contornos. Ao dirigirmos nosso olhar para os elementos simbólicos das tradições (seus signos, ritos, mitos, sua construção ética e moral, seus valores estéticos), nos lembramos de autores como Jung21, Freud22, Campbell23. Podemos, a partir dessas reflexões, observar como nossa realidade existencial está marcada por esse imaginário simbólico que dá a ela significado e sentido; como nossas emoções, valores e reações se confundem com este universo mágico, nada racional, o mundo imaginário dos símbolos. Estes aspectos da religião – o sociológico e o antropológico, o institucional e o cultural – não causam muitos problemas para a racionalidade científica moderna que a Psicologia utiliza desde o século XIX; é a religião, se apresentando como objeto de estudo, assim como esse modelo o entende, visto a partir dos referenciais epistemológicos de outras disciplinas consolidadas, com as quais a Psicologia sempre dialogou com facilidade. O terceiro ponto, no entanto, pode trazer alguns embaraços para o seu estudo e à maneira como a Psicologia deve se apropriar desse fenômeno, construindo com este um diálogo mais fértil para o ser humano. Estamos falando da experiência religiosa em si; como nos apropriar de uma experiência vivenciada pelo outro sem utilizar, para isso, de nossos preconceitos? 21 JUNG, C. G. Psicologia e religião (obras completas vol. 11/1). Petrópolis: Vozes, 2011. _________. Resposta a Jó (obras completas vol. 11/4). Petrópolis: Vozes, 2011. 22 FREUD, S. Totem e tabu (obras completas vol. XIII). Rio de Janeiro: Imago, 1996. 23 CAMPBELL, J. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. ___________ (org.). Mito, sonhos e religião: nas artes, na Filosofia e na vida contemporânea. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
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Entramos aí numa racionalidade, um campo epistemológico que se denomina fenomenologia da religião. Não existe outro método possível para se tomar conhecimento da experiência sem utilizar os mediadores conceituais das teorias científicas ou teológicas que não seja o proposto por Husserl, a saber, voltar às coisas mesmas. Esta máxima, ou axioma husserliano, quando aplicada no estudo do fenômeno religioso, nos leva a uma experiência direta, imediata, com isso que se identifica como sagrado; experiência, esta, que só é possível a partir do exercício da epoché24, que nos permite vivenciar a unidade sujeito/objeto, sem o distanciamento provocado pelas mediações da linguagem. Autores da estirpe de Van der Leeuw25, Eliade26 e Otto27 se somam a nomes contemporâneos da Psicologia e da ciência da religião, como Mendonça28, Amatuzzi e Baungart29, Machado30, Goto31, 24 MARTINI, Renato da S. A fenomenologia e a epoché. Revista de Filosofia, v. 21, n. 1, UNESP, 1999. 25 VAN DER LEEUW, G. Fenomenologia de la religión. México: Fondo de cultura economica, 1964. 26 ELIADE, M. Tratado de história das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 27 OTTO, R. O sagrado. Lisboa: edições 70, 1990. 28 MENDONÇA, A. G. de. Fenomenologia da experiência religiosa. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, v. 2, nº 2, Juiz de Fora, 1999. Disponível em: <https://numen.ufjf.emnuvens.com.br/numen/article/view/873>. Acesso em 01 fev. 2017. 29 AMATUZZI, M. M.; BAUNGART, T. de A. A. Experiência religiosa e crescimento pessoal: uma compreensão fenomenológica. Rever, ano 7, dezembro, São Paulo, 2007. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv4_2007/i_baungart.htm>. Acesso em 30 jan. 2017. 30 MACHADO, Jorge A. T. Os indícios de Deus no homem: uma abordagem do método fenomenológico de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. 31 GOTO, Tommy Akira. Fenomenologia e experiência religiosa em Paul Tillich. Rev. Abordagem Gestalt, Goiânia, v. 17, n. 2, p. 137-142, dez. 2011. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672011000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 02 fev. 2017.
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Giovanetti32, dentre tantos outros pesquisadores (no qual me incluo), no estudo sistemático e criterioso do fenômeno religioso em sua essência. A compreensão de que a dimensão da espiritualidade é constitutiva do se humano e que, por isso, vai compor, juntamente com a história ou temporalidade, a cultura ou produção simbólica, materialidade espacial, o complexo fenômeno que identificamos como subjetividade, é o que nos dá identidade no mundo das coisas, que nos diferencia enquanto entes. Essa dimensão existencial – espiritualidade -, no entanto, por mais que seja exaustivamente estudada e demonstrada fenomenologicamente pelos estudiosos, ainda tem muita dificuldade de adesão no meio científico tradicional33, pois da experiência religiosa, mística, ou ainda espiritual, o que sobra para ser observado é a percepção do sujeito, que vai aparecer através de sua narrativa daquilo que os próprios místicos chamam de inefável; algo pouco conclusivo para alguns. Mas não é assim também quando estudamos a origem do universo e propomos o Big Bang? A Psicologia não deveria ter problemas com esta característica de inconsistência do fenômeno religioso, afinal foi nesse campo de saber que se construiu o conceito de inconsciente e, também, a compreensão de que o desejo é uma força que não controlamos completamente, dois princípios bastante fora do padrão métrico da ciência moderna. Mas mesmo a Psicologia demonstrou resistência em se apropriar do conceito de espiritualidade 32 GIOVANETTI, J.P. O sagrado e a experiência religiosa na psicoterapia. In: MASSINI, M. & MAHFOUND, M. (org.). Diante do mistério: Psicologia e senso religioso. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 33 Como tradicional estou chamando uma ciência que se prende ao modelo moderno, ancorado nos paradigmas cartesiano, positivista e empiristas.
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para a compreensão da representação do que seja a subjetividade humana, e maior resistência ainda em pensar na utilização da experiência religiosa como instrumento de sua prática. O que podemos afirmar, no entanto, é que essa resistência não é própria da religião e nem da ciência, mas, sim, dos atores que respondem por esses lugares. O que assistimos neste ringue é mais de ordem da luta pelo poder do que pelo saber. O objetivo deste texto é contribuir para amenizar essa rixa, criando condições epistemológicas e metodológicas para que a Psicologia compreenda a valor deste diálogo, abrindo, inclusive, oportunidade para se pensar uma incorporação instrumental da espiritualidade na prática psicológica, fazendo dessa dimensão existencial mais um veículo na promoção da saúde. Quando falamos de uma Psicologia comprometida com a promoção de um mundo mais saudável, onde as pessoas tenham condição de viver de maneira mais digna e respeitosa, e onde as diferenças não se transformem em desigualdade, estamos falando de uma sociedade em que a expressão da experiência religiosa, em toda sua diversidade, deve ser reconhecida não apenas como uma forma de manifestação cultural – que por si só já deveria ser preservada -, mas como uma maneira de promoção de saúde. Afinal, estamos falando do equilíbrio necessário para que corpo e mente manifestem a subjetividade em todo seu potencial. A religião, assim como o ser humano que a vivencia em sua subjetividade e intersubjetividade, não pode ser resumida em conceitos fechados, numa estrutura rígida, aprisionada em teorias definitivas e excludentes, pois estão – religião e ser humano – sempre em processo, transformando a si e o meio ao seu redor, no movimento que é a essência da existência.
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Pensando o conceito de espiritualidade para a Psicologia Neste curto ensaio, vou me ater a um ponto que, para mim, ressalta com maior evidência, quando pensamos esse diálogo entre Psicologia e religião: o conceito de espiritualidade. Para início de conversa é preciso pontuar que, quando tratamos de conceito, não estamos falando de percepção subjetiva, de sentimentos ou de construtos dogmáticos. O conceito se caracteriza por ser uma descrição fenomenológica rigorosa, uma representação semântica que dá significado ao objeto; por isso o conceito é universal, perene, não pode ser relativizado. O termo vem do latim conceptus, que por sua vez é uma conjugação do verbo concipere, que significa conter completamente, formar dentro de si. Por isso, quando construímos um conceito, não podemos fazê-lo sustentado por sensações extemporâneas ou percepções subjetivas, ele precisa estar calçado pela razão e seus princípios axiomáticos, que são universais34. É com esse pressuposto que apresento o termo espiritualidade como um conceito e não como uma percepção ou uma crença, um produto do desejo ou fruto do imaginário de alguma pessoa em particular. Vamos então apresentar, de forma criteriosa e sistemática, o conceito de espiritualidade a partir da perspectiva fenomenológica, no Brasil bem representada por pensadores como Francisco Holanda, Angela Alles Belo, Mauro Amatuzzi, José P. Giovanette e Tomy Akira Goto. A ciência produz os seus conceitos a partir da observação empírica e sistemática dos fenômenos estudados e é desse lugar que 34 Para uma melhor compreensão do tema: JUNIOR, João F. & JASMIM, Marcelo (orgs.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: EDPUC-RIO/ Ed. Loyola/IUPERJ, 2007.
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podemos afirmar que o ser humano se mostra fenomenologicamente como um ser aberto. O que significa “ser aberto”? Um ser que não está ontologicamente determinado, um ser que se transforma, se adapta, se refaz no ato de existir. Isso, talvez, seja a única e real diferença que nos distingue dos outros seres vivos deste planeta, que já nascem programados para executar certas funções e não saem de seus scripts. Jamais veremos um leão produzindo mel ou um elefante voando – a não ser que seja o Dumbo. Essa abertura ontológica do ser humano é bem apresentada por Rosa35. Essa condição radical de abertura ou incompletude do ser humano foi também identificada por diversos observadores da nossa natureza: Freud a chamou de falta; Buber, Chang e outros chamaram de intersubjetividade; Heidegger, de dasein (ser aí); Rogers, de congruência. Não estou aqui querendo igualar esses conceitos, pois são construtos que têm sentido próprio dentro de seus universos epistemológicos; o que faço aqui é o exercício da epoché fenomenológica como propõe Husserl, produzindo a redução que nos leve à essência, no caso, de cada um desses conceitos, e aí veremos que todos apontam para essa noção de incompletude do sujeito, que o faz necessitar de um outro que o preencha36. É essa mesma condição humana que lhe permite vivenciar o que chamamos de experiência de transcendência, uma experiência que, no campo perceptivo da subjetividade, pode ser descrita como uma sensação de preenchimento, de plenitude, que nos faz sentir o tempo parar. Algumas pessoas relatam uma sensação de paz, um sentimento de tranquilidade e segurança; outros 35 ROSA, Merval. Antropologia filosófica: uma perspectiva cristã. Rio de Janeiro: JUERP, 1996. 36 GUERRA, Alba G.; SIMÓES, P. Dialética da falta da incompletude à transcendência. São Paulo: Escuta, 1995.
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falam de transbordamento das emoções, e tem, ainda, os que falam de uma experiência que produz uma sensação de conforto e prazer. Otto a define a partir de três termos em latim: misteriun facinans tremendun37. Podemos observar essa experiência em situações bastante distintas. Por exemplo, quando dois amantes conseguem atingir o orgasmo numa transa envolvente e apaixonada, e ficam extáticos no segundo seguinte da explosão químico-orgânica de seus corpos (talvez por isso os orientais compreenderam que a relação sexual é um veículo místico, e para quem não sabe, o Kama Sutra é um livro religioso38); quando nos perdemos na contemplação do horizonte, de frente ao mar ou no cume de uma montanha39; quando o cientista descobre a solução do problema que o inquieta em sua pesquisa; quando o artista vislumbra sua obra ainda por sair mas já composta em sua mente. Espiritualidade não é outra coisa senão essa condição ontológica do ser humano, uma dimensão constitutiva de sua manifestação fenomenológica neste mundo, esta abertura radical que lhe permite vivenciar a experiência de transcendência e reconhecer no outro aquilo que lhe falta, reconhecer que o outro lhe completa e que, por isso, somos seres intersubjetivos; o outro se apresenta como o nosso complemento. Esse conceito, portanto, é fundamental para a Psicologia, pois nossa subjetividade está impreterivelmente marcada por esta condição de abertura própria da incompletude existencial que nos constitui. 37 OTTO, R. O sagrado. Lisboa: edições 70, 1990. 38 Sobre essa relação entre sexo e espiritualidade: WEIL, P. Mística do sexo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. 39 COMTE-SPONVILLE, A. O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
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Não podemos confundir esse conceito com a compreensão que o senso comum tem do termo, ligando-o à ideia de fantasma ou seres sobrenaturais; visão, esta, que foi fortemente marcada pela perspectiva de tradições espíritas no campo da religião, que devem ser respeitadas em suas particularidades doutrinais mas não devem ser utilizadas como parâmetro para a construção do conceito científico que devemos utilizar na discussão psicológica.
Conclusão Compreendo o quão complexo é tratar dessa temática, pois ainda vivemos, no ambiente científico brasileiro, um suspiro positivista cartesiano que nos coloca, em alguma medida, na condição do espírito de época moderno; ambiente, este, que dificulta um diálogo entre o pensamento que assume a condição de científico e o pensamento que ficou destinado a um gueto religioso. No entanto, se nos propomos a produzir uma análise crítica, tal análise precisa começar a ser feita na própria construção do conhecimento, como vemos no texto de Feyerabend40. A crítica que levanto não é nova, já havia sido detectada por Husserl em 193441, mas é fundamental para a construção de uma Psicologia que seja comprometida com o ser humano, com a promoção da qualidade de vida das pessoas e com a sustentabilidade de nossa casa mãe, a Terra. Estou falando da necessidade do resgate ao conceito de espiritualidade nas ciências que se propõem a trabalhar com o ser humano. A perspectiva de uma ciência humana que não considera a dimensão espiritual é de 40 FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989. 41 HUSSERL, E. A crise da humanidade europeia e a Filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 208.
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uma epistemologia empobrecida e uma metodologia ineficiente. Por isso não podemos pensar uma Psicologia verdadeiramente comprometida com a promoção da saúde humana, que não tenha, em seus estudos, um olhar dirigido para a espiritualidade como instrumento dessa práxis. Seguindo este raciocínio crítico, é preciso compreender que a condição de laicidade destinada ao pensamento científico depois da modernidade não pode ser apontada como justificativa para um afastamento entre essas racionalidades; pelo contrário, a perspectiva laica é exatamente a perspectiva do diálogo, onde a diversidade é legitimada e reconhecida como resultado da condição ontológica do ser. Essa aproximação entre Psicologia e religião, no entanto, não deve ser feita de qualquer forma, afinal estamos falando de uma reflexão criteriosa e, por isso, muito bem definida. Um ponto chave para essa construção dialogada é a identidade de cada racionalidade. Nessa relação, uma não deve se submeter à outra mas, sim, contribuir – ambas – para a ampliação do conhecimento que podemos ter do ser humano neste mundo e, nesse aspecto, em alguns momentos, a crítica se volta para a religião. Quando esta é estudada pela Psicologia nos seus fenômenos sociais, a religião, enquanto instituição e tradição, não vai fugir de uma análise sobre as relações de poder, sobre sua função de controle dos indivíduos dentro do sistema. Portanto, é fundamental para a Psicologia compreender e se apropriar da espiritualidade como instrumento de transformação do ser humano e da sociedade. E para isso, precisamos dirigir nossa crítica para nós mesmos, enquanto pensadores de uma epistemologia e pesquisadores que utilizam de um método no estudo e na abordagem do ser humano. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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Ao mesmo tempo, na construção de uma realidade social mais justa e ética, é necessário que as instituições sejam revistas em seus valores e estrutura, e aí a crítica se volta às instituições religiosas e ao papel que estas cumprem dentro desse modelo social e político. Sabemos que toda essa complexa trama está participando de um movimento holístico, que vai tratar da vida e do universo, da existência e da não existência; uma trama que nos coloca de volta à especulação filosófica e que, portanto, não tem fim, assim como a tela de Penélope42. Mas também sabemos que o nosso trabalho é participar ativamente deste processo de construção eterna do saber e do fazer neste mundo, e é com esse compromisso que nos propomos a estar à frente desse debate.
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A religião e as questões de gênero: construções do conceito de espiritualidade na compreensão da diversidade sexual
Reinaldo da Silva Júnior Psicólogo, doutor em Ciência da Religião, professor da UEMG Divinópolis, conselheiro do CRP 04.
Resumo As instituições religiosas procuram exercer um forte controle sobre seus adeptos, e um campo onde esse domínio pode ser sentido de maneira determinante é a sexualidade. Por isso, a concepção de gênero se torna um fator fundamental na construção do discurso ideológico dessas instituições, que tendem a desconsiderar a diversidade sexual enquanto componente na formação da identidade de gênero. Essa comunicação se propõe discutir como a liberdade sexual e a construção da identidade de gênero, em toda a sua diversidade, são expressões da dimensão de espiritualidade humana, que se caracteriza pela sua condição de abertura e faz do ser humano um sujeito em formação; e, por isso, um sujeito de múltiplas possibilidades, inclusive na construção de sua identidade sexual. É preciso diferenciar os interesses das instituições religiosas, que se alinham politicamente com grupos sociais na intenção de garantir seu espaço de poder, da experiência religiosa ou espiritual, que nos põe em contato com o outro, produzindo no ser humano a possibilidade de uma consciência ética. A expressão da liberdade, própria do espírito, aparece fenomenologicamente no mundo das coisas pela multiplicidade. No campo sexual, essa característica se apresenta na construção de identidades de gênero que não estão engessadas num determinismo incompatível com o espírito humano.
Palavras-chave Gênero. Religião. Espiritualidade. Liberdade. Fenomenologia.
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Introdução A religião é um fenômeno revelador da estrutura social de um povo. A partir de seu estudo, temos acesso a condições específicas de organização das relações afetivas, da moral e de como as pessoas expressam e convivem com seus sentimentos e valores. O ethos de um grupo é indelevelmente marcado pela sua tradição religiosa, sem entrar aqui no mérito de quem é o responsável pela estrutura aparente da sociedade, por entender que não se trata de uma leitura linear mas, sim, de uma complexa trama onde o religioso se apresenta como um elemento do jogo e, por isso, precisa ser considerado quando procuramos entender como as pessoas se enxergam e enxergam o mundo em que vivem. Por isso, alguns aspectos culturais e expressões da subjetividade e da intersubjetividade, no seio de um grupo estruturado, só podem ser compreendidos a fundo quando consideramos, em seu estudo, o fenômeno religioso e as implicações deste nessas interações. Dentre essas construções culturais, podemos citar a identidade de gênero e os hábitos de convivência coletiva que se configura como a moral do grupo, neste caso, no que tange ao comportamento sexual. Sexualidade e religião sempre estiveram intimamente relacionadas em todas as culturas: o controle do corpo para a libertação da alma; a relação da fertilidade feminina com a vida e o mistério da criação; e a apresentação do falo como o símbolo do poder são apenas algumas analogias possíveis dessa intimidade, às vezes favorável e às vezes repressora. Entendo que esses são fenômenos de expressão humana e que se apresentam como forte influência na construção do ethos brasileiro, pois estamos falando de experiências que vão dando forma a um modo de ser do povo, desenhando sua cultura e os sujeitos que
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a produzem. Por isso, compreender o significado do feminino e do masculino em nosso meio e como esses elementos aparecem na produção das relações sociais, demarcando a correlação de forças na disputa pelo poder, nos permite refletir com maior propriedade sobre a ética que emerge desse ethos nacional, e não tem como pensar o feminino e o masculino fora da expressão da sexualidade e da identidade de gênero. Essa compreensão, por sua vez, passa pela percepção de como o brasileiro se apropria de sua espiritualidade e de como ele a exercita em seu cotidiano existencial na busca de sua liberdade e de seus direitos, pois o exercício de aprender a lidar com as forças feminina e masculina que nos habitam é o exercício de nos responsabilizar pelo ser no mundo, possibilitando uma apropriação do corpo como expressão de nossa liberdade. Poder vivenciar a sexualidade a partir de uma visão mais aberta sobre o feminino e o masculino – visão, esta, que não reduza esses arquétipos às características biológicas e deterministas de um corpo físico entendido como um corpo pronto, mas sim como forças que compõe nossa espiritualidade de maneira dinâmica e transformadora – é fundamental para a implementação de uma ética respeitosa para com a diversidade de identidade de gênero e a consequente garantia de direitos de uma população que se vê desprovidas das assistências básicas para o cidadão; um público que não tem lugar nas escolas, nos programas de saúde, na segurança pública, na seguridade social, nos direitos trabalhistas, dentre outros. Com isso afirmamos que, ao discutir a liberdade do espírito humano na construção de sua identidade de gênero, estamos demarcando um espaço político de luta pelos direitos humanos; luta, esta, de dever conduzir qualquer discussão ética. Reconheço que os atravessadores dessa discussão são muitos, tornando-a uma reflexão de grande complexidade. Mas essa
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é apenas mais uma vantagem do tema, pois a complexidade é sinônimo de riqueza de possibilidades, o que faz deste um projeto aberto, que não se esgota em si mesmo e precisa dialogar com outras práticas e outros olhares para desenvolver um plano mais amplo de análise da realidade brasileira enquanto sociedade, além de como acontece a organização da subjetividade e da intersubjetividade no nosso universo cultural. Sendo assim, este trabalho se propõe a ser mais um problematizador do que uma pesquisa que venha trazer soluções que esgotem a temática. Espero que possamos, aqui, contribuir com uma gama de pesquisas e racionalidades que, ao longo da história, vêm trazendo à baila a necessidade de revermos a postura conservadora de um machismo excludente e opressor, resultado da cultura patriarcal que nos acompanha desde a antiguidade. Discursos como a fenomenologia; o existencialismo; a Psicologia analítica de Jung; a teoria reichiana; o pensamento feminista do século passado; as teorias queer; os textos místicos e de diálogo inter-religioso são exemplos desse esforço. Procuro, com esta contribuição, me somar a esses discursos na busca de diálogos que nos aproximem de uma verdade inquestionável: a essencial necessidade de garantir os direitos amplos para que a dignidade da vida seja respeitada e possamos, então, desenvolver uma ética e um ethos que nos conduzam à justiça e ao bem. O texto foi dividido em três momentos. No primeiro apresento, de maneira mais livre e sem compromissos de um estudioso do tema, uma compreensão sobre identidade de gênero. A liberdade que me guia nesta definição tem suas vantagens e também suas desvantagens, que não cabem aqui ser apresentadas para que cada leitor faça suas próprias críticas a respeito. No segundo momento, faço uma reflexão sobre a espiritualidade e sua relação com a expressão sexual, pensando a dimensão
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de liberdade humana para então, nas considerações finais (terceiro momento), tecer alguns comentários sobre a expressão política desta discussão. Espero que minha narrativa e análise possam proporcionar dúvidas e levantar problemas que venham produzir novas reflexões, dando ao tema a dinâmica que ele merece.
Compreendendo a identidade de gênero Vivemos numa época onde qualquer perspectiva perenialista é fortemente rejeitada, uma reação à hegemonia metafísica da Idade Média e à hegemonia da razão moderna; podemos dizer que uma reação até mesmo ao paradigma cósmico que está por trás de todo o pensamento ocidental. Nos dias atuais, a compreensão da realidade está intensamente marcada pela transitoriedade, pois a condição de temporalidade se colocou como imperativo da existência, em um mundo que Bauman chamou de líquido43. Como ganho advindo deste espírito de época temos a legitimação da diversidade: a diferença ganha não apenas visibilidade, mas reconhecimento. O sujeito é reconhecido e com ele, os direitos do ser humano podem ser reivindicados. A consolidação de um mundo plural é a consolidação de um mundo onde o direito à manifestação das diferenças esteja, de fato, garantido enquanto prática moral. Mas, como tudo que traz um ganho, este acompanha também uma perda. Essa dinâmica dialética, inclusive, é o axioma da própria mobilidade paradigmática dessa nova racionalidade. O que se perde nesse cenário de efemeridade é exatamente a capacidade de se definir referências seguras; uma dificuldade de estabelecer critérios que posam nos dar sustentação ética; uma cegueira para os 43 BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2013.
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elementos universais que devem ser os orientadores das escolhas do ser humano em sua passagem por este plano existencial; aquilo que nos permite reconhecer o bem, a virtude, o justo. Na questão do gênero, este paradoxo produzido pela dialética pós-moderna ganha um colorido próprio, pois temos que pensar os conceitos de masculino e feminino nessa dinâmica do universal e do produzido pela cultura na história. Um exercício complexo que vou procurar desenvolver a seguir – lembrando que minha abordagem do tema passa por um olhar fenomenológico mas não se prende aos conceitos husserlianos –, exercitando um diálogo com outras racionalidades, como a Psicologia analítica, e autores da temática específica da identidade de gênero e da discussão sobre espiritualidade na Psicologia e ciência da religião. Precisamos começar esta conversa reconhecendo que estamos trabalhando com dois conceitos distintos: masculino e feminino. Portanto, partimos da premissa da existência de elementos de diferenciação dessas categorias que podem ser identificados nas suas singularidades, de maneira que um não se confunda com o outro. Esta noção arquetípica44 do gênero, que nos permite saber da existência de um feminino e de um masculino, no entanto, não deve ser referência quando vamos pensar a identidade de gênero no mundo da cultura pois, assim como o sagrado ganha formas diversificadas nas diversas culturas e épocas históricas, também a manifestação dos arquétipos no mundo não pode ser padronizada. No que diz respeito à manifestação de gênero, vou trazer a contribuição de Scott:
44 “’Arquétipo’ nada mais é do que uma expressão já existente na antiguidade, sinônimo de ‘ideia’ no sentido platônico”. JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 87.
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Por “gênero”, eu me refiro ao discurso sobre a diferença dos sexos. Ele não remete apenas a ideias, mas também a instituições, a estruturas, a práticas cotidianas e a rituais, ou seja, a tudo aquilo que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento de organização do mundo, mesmo se ele não é anterior à organização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade biológica primária, mas ele constrói o sentido desta realidade. A diferença sexual não é a causa originária a partir da qual a organização social poderia ter derivado; ela é mais uma estrutura social movediça que deve ser ela mesma analisada em seus diferentes contextos históricos.45
Partindo dessa premissa, devemos compreender a identidade de gênero46 não apenas como identificação arquetípica, mas sim como uma construção histórica, política e cultural complexa, que vai transitar pelo que chamamos de intersubjetividade47, ou como nos apresentam brilhantemente Coelho Jr. & Figueiredo, as matrizes intersubjetivas: “matrizes intersubjetivas indicam dimensões
45 SCOTT, 1998 op. cit. GROSSI, Míriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Disponível em <https://www.researchgate.net/profile/Miriam_Grossi/publication/267977995_IDENTIDADE_DE_GENERO_e_SEXUALIDADE/links/55fe19dc08aeba1d9f69e6aa/IDENTIDADE-DE-GENERO-e-SEXUALIDADE.pdf> Acesso em 10 mai. 2017. 46 Para uma leitura mais técnica do termo: JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília: 2012. 47 Temos aí um ótimo caminho para compreender a relação entre espiritualidade e identidade de gênero, como propomos neste texto. Para auxiliar nesta reflexão: HÖSLE, Vittorio. O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade. São Paulo: Loyola, 2007.
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de alteridade que nunca ocupam de forma pura e exclusiva o campo das experiências humanas”48. Se localizar no espaço, no tempo, na cultura, enquanto indivíduo; dar conta das escolhas que nos constroem; compreender os caminhos trilhados para saber onde nos encontramos no presente... Esse é um exercício que exige uma entrega e uma consciência nem sempre possível em um mundo de cerceamentos, numa sociedade que tem como princípio segregar a diferença que macula a ordem estabelecida, como nos mostram Rodrigues & Heilborn: O normativo, portanto, não estaria apenas na categoria de gênero – regida por regras culturais – mas já se apresenta na categoria sexo, que só existiria dentro de uma prática normativa capaz de produzir os corpos para governá-los. Sexo, assim, não seria uma condição estática de um corpo, mas um processo pelo qual as normas materializam o “sexo”.49
Por isso, construções de subjetividades que não se enquadrem às normas são dolorosamente abortadas, produzindo um 48 COELHO JUNIOR, Nelson Ernesto; FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Figuras da intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade. Interações, São Paulo, v. 9, n. 17, p. 9-28, jun. 2004. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-29072004000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 16 mai. 2017. 49 RODRIGUES, Carla; HEILBORN, Maria Luiza. Construindo Vera Cruz e desconstruindo gênero: aproximações entre Pedro Almodóvar e Judith Butler. Sex., Salud Soc., Rio de Janeiro, n. 16, p. 73-85, 2014. Disponível em <http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872014000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 16 mai. 2017.
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sofrimento profundo pelo estrangulamento da condição existencial daquele que não pode ser o que sente ser. A possibilidade de experiência da sexualidade e da identificação de gênero exercida na liberdade, e autonomia do sujeito, é uma necessidade se pensamos numa sociedade que promova a saúde em suas relações, pois a negação dessa autonomia quanto à sua auto percepção vai criar toda uma estrutura social de exclusão e marginalização que se estende desde os recônditos mais íntimos do indivíduo, seus afetos e personalidade, até seus direitos civis de cidadão. A violência que surge como produto dessa condição é de ordem psíquica, física e simbólica, como esclarece Jesus50. Se compreender livre o suficiente para assumir que a sua percepção subjetiva não se alinha com o corpo físico que habita, é um exercício só possível em um espaço intersubjetivo de abertura e equidade; e é para a promoção desse ambiente social que precisamos trabalhar se nos comprometemos com a saúde das pessoas e com um mundo ético. Quando pensamos nas pessoas trans, a percepção e construção de uma identidade sexual fica ainda mais reprimida e ameaçada, produzindo uma exclusão social de uma violência bárbara. A invisibilidade desse público faz com que a sociedade simplesmente ignore seus problemas e, quando colocada de frente a este, o reconhece como uma aberração. Precisamos garantir a esse grupo de pessoas o seu espaço social, sua dignidade de cidadãos e sua saúde.
50 JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero : conceitos e termos. Brasília: 2012.
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O que a espiritualidade tem a ver com isso? O conceito de espírito vem etimologicamente ligado às ideias de ventilação, movimento, sopro, vida51. Ou seja, o espírito se apresenta, enquanto vocábulo, como um significante daquilo que produz o frescor e mobilidade a existência; o inanimado se torna animado pelo espírito; o que está inerte ganha vida pelo espírito. Nesse caminho epistemológico, a Filosofia se apropriou do conceito de espírito e viu nele a possibilidade de uma expressão fenomenológica do ser, expressão esta que ganha diversas interpretações, como demonstram Japiassú e Marcondes.52 Para o nosso propósito, seguirei a perspectiva que Teixeira nos apresenta53. Do que nos coloca o autor, vou destacar dois aspectos: o desapego e o potencial libertador da espiritualidade humana. É a partir dessas condições ou características do espírito que podemos fazer a ligação com a temática da identidade de gênero, pois estamos tratando exatamente da liberdade de expressão da subjetividade e do desapego aos padrões de identidade produzidos pelo sistema ideológico repressor de uma sociedade neurotizada e neurotizante. Nesse sentido, a possibilidade da experiência espiritual é a possibilidade de ruptura com esse modelo. Quando se entende o espírito humano como a dimensão antropológica de transcendência, observamos, nesta espiritualidade, que é a manifestação fenomenológica do espírito, a ca51 Um estudo muito bem feito sobre esta etimologia é: MEDEIROS FILHO, Félix Antônio de A concepção de alma/espírito na Pré-História: um estudo semântico do Nostrático. João Pessoa: UFPB, 2014. 52 JAPIASSÚ, Hilton, e MARCONDES, Danilo, Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 92-93. 53 TEIXEIRA, Faustino. O potencial libertador da espiritualidade e da experiência religiosa. In. AMATUZZI, Mauro M. (org.). Psicologia e espiritualidade. São Paulo: Paulus, 2005.
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pacidade de encontro que faz a passagem do subjetivo para o intersubjetivo; o sujeito se percebe pertencente a algo que o ultrapassa e se torna mais do que um indivíduo. O sentimento de pertença é um sentimento de sentido, e é o que nos permite construir uma identidade. Aí, então, podemos saber de nós e responder as questões que nos angustiam: quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Por isso, conseguir se encontrar sexualmente se torna uma experiência de espiritualidade, porque implica num exercício de liberdade e de desapego, num movimento de transcendência e de encontro, uma percepção que Heidegger chama de dasein, o “ser-aí”. É essa a necessidade das pessoas trans: permitir que, na liberdade de seu espírito, possam se desapegar do corpo original para se encontrar numa corporeidade de sentido, como nos esclarece Marzano-Parisoli: Com efeito, a sexualidade pode revelar-nos melhor do que outras experiências a relação estreita entre corpo, individualidade e intencionalidade. Ela pode também permitir-nos trabalhar sobre o paradoxo corporal expresso pela proposição: “nós somos nosso corpo ao mesmo tempo que o temos”, dentro de nossas relações mais intensas com o outro.54
Qual o nosso compromisso político enquanto agentes promotores da saúde? Garantir que as pessoas trans tenham condição de viver sua espiritualidade na expressão de sua sexualidade, exercitando sua liberdade de escolha e, com isso, aprendendo 54 MARZANO-PARISOLI, Maria M. Pensar o corpo. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 109-110.
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a se conhecer e se orientar por essas escolhas num mundo de pluralidade, marcado pelo mistério imponderável. O exercício do desapego nos permite mobilidade, uma habilidade fundamental num universo que está em trânsito. Esse exercício nos leva ao sentimento de liberdade que deve embalar nosso sonho ético. Uso essa licença poética de tratar a ética como um sonho por entender que ela nasce no mais profundo do ser humano, assim como o sonho. Este lugar de sentido último, que Husserl chamou de consciência transcendental55 e Jung de inconsciente coletivo56. Essa percepção profunda, que nos coloca em conexão com o todo, só pode emergir quando suspendemos os conceitos e permitimos, assim, que a experiência fale por si numa expressão imediata da existência. É nessa condição existencial de plenitude que a sexualidade se apresenta sem as censuras de um sistema ideológico repressor; e é também nesse ambiente que as pessoas trans podem se encontrar, descobrindo uma identidade encoberta e reprimida, assumindo a responsabilidade de se fazer a partir das escolhas que produzimos em nossas relações.
Considerações finais Observamos que a proximidade entre a construção da identidade das pessoas trans e a experiência espiritual é maior do que pode parecer na visão do senso comum e de alguns extratos de uma ciência engessada em paradigmas da modernidade. 55 TOURINHO, Carlos Diógenes Côrtes. A consciência e o mundo na fenomenologia de Husserl: influxos e impactos sobre as ciências humanas. Estudos e Pesquisas em Psicologia v. 12, n. 3. Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, 2012. 56 JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008.
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Para perceber esse vínculo, no entanto, é preciso compreender claramente o que seja o espírito, pois esse conceito tem uma interpretação bastante confusa por conta da apropriação deste por diferentes ideologias e pelas instituições religiosas que procuram submeter o espírito, e a espiritualidade, aos dogmas e doutrinas de suas tradições. Aqui procuramos resgatar o conceito em sua raiz etimológica e na perspectiva hermenêutica da fenomenologia da religião. Encontramos nele um significante da condição existencial de abertura que Heidegger chamava dasein e, por isso, uma condição essencial quando pensamos na construção da identidade que vamos produzindo em nosso caminho existencial, incluindo aí a identidade de gênero. Para as pessoas trans, a possibilidade de viver sua sexualidade com liberdade e responsabilidade, respaldadas pelos direitos civis de cidadãos, só é possível quando o exercício da espiritualidade não é reprimido nem por forças internas, nem por forças externas ao sujeito. Por isso a necessidade de lutarmos por uma sociedade que reconheça a autonomia dos indivíduos e a pluralidade existencial, e tenha, em suas ações de políticas públicas, estratégias que garantam os direitos dessa população. A garantia dos direitos, dentro de uma realidade múltipla, passa pela construção de ralações de equidade, tanto entre os indivíduos quanto no que diz respeito à estrutura das políticas públicas em toda a sua extensão, que envolve a educação, saúde, segurança, lazer e seguridade social. Lutar por essas garantias é mais do que uma convicção, é um dever de todos aqueles que se comprometem com um mundo mais digno e justo, mais saudável e mais humano.
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É por isso que precisamos construir uma Psicologia que alcance as demandas dessas pessoas, que saiba ouvir suas angústias e seus desejos sem produzir estereótipos ou reproduzir padrões de respostas que atendam à manutenção de um processo de exclusão, que leva este público à condição de marginalidade. Uma Psicologia comprometida com a liberdade e com a promoção de direitos. Essa Psicologia, ao meu ver, passa por uma ciência capaz de dialogar com outras racionalidades, de absorver novos métodos e técnicas; uma Psicologia que seja, ela própria, um exercício dessa espiritualidade livre e dinâmica que nos anima. Um novo mundo exige uma nova Psicologia, que assuma a condição de criticidade que o olhar e a escuta precisam ter diante da realidade. Entendo que este é um processo longo, difícil e até utópico em certa medida, mas que não pode ser relegado por conta de sua complexidade pois, senão, perdemos o horizonte ético que nos conduz e um(a) psicólogo(a) sem ética se torna uma arma perigosa contra a humanidade.
Referências bibliográficas AMATUZZI, Mauro M. (org.). Psicologia e espiritualidade. São Paulo: Paulus, 2005. BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2013. COELHO JUNIOR, Nelson Ernesto; FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Figuras da Intersubjetividade na constituição subjetiva: dimensões da alteridade. Interações, São Paulo, v. 9, n. 17, p. 9-28, 2004. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-29072004000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 16 mai. 2017. 50
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HÖSLE, Vittorio. O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade. São Paulo: Loyola, 2007. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre a população transgênero: conceitos e termos. Brasília, 2012. JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2008. MARZANO-PARISOLI, Maria M. Pensar o corpo. Petrópolis: Vozes, 2004. MEDEIROS FILHO, Félix Antônio de. A concepção de alma/ espírito na Pré-História: um estudo semântico do Nostrático. João Pessoa: UFPB, 2014. RODRIGUES, Carla; HEILBORN, Maria Luiza. Construindo Vera Cruz e desconstruindo gênero: aproximações entre Pedro Almodóvar e Judith Butler. Sex., Salud Soc., Rio de Janeiro, n. 16, p. 73-85, 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-64872014000100005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 16 mai. 2017. SCOTT, 1998 op. cit. GROSSI, Míriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. Disponível em: <https://www.researchgate.net/ profile/Miriam_Grossi/publication/267977995_IDENTIDADE_DE_GENERO_e_SEXUALIDADE/links/55fe19dc08aeba1d9f69e6aa/IDENTIDADE-DE-GENERO-e-SEXUALIDADE.pdf>. Acesso em 10 mai. 2017. TOURINHO, Carlos Diógenes Côrtes. A consciência e o mundo na fenomenologia de Husserl: influxos e impactos sobre as ciências humanas. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 12, n. 3. Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói, 2012. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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Excurso sobre o humano e seus desdobramentos como perspectiva do “pós-humano”57
Henrique Marques Lott Graduado em Filosofia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (2004) e é mestre e doutor em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Realizou seu estágio doutoral em 2012, na modalidade Recherches Doctorales Libres, junto à École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHSS) de Paris, com a bolsa sanduíche da Capes. É também pós-doutor em Ciências da Religião pela PUC Minas (2017), tendo realizado seu estágio pós-doutoral com a bolsa do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) da Capes. 57 Este texto foi tema de apresentação oral no X Simpósio Internacional Filosófico-Teológico da FAJE (Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia).
Resumo A reflexão que propomos neste texto parte de algumas concepções filosóficas que permeiam a noção de humano, e se desdobra numa análise discursiva que procura indicar uma perspectiva de compreensão para tratarmos a noção contemporânea de “pós-humano”. Nossa análise acolhe um ponto de vista de ordem conceitual e especulativo que se divide em três momentos distintos. No primeiro, discorremos brevemente acerca da noção de humano, tal como esta é concebida por nossa tradição filosófica. Num segundo momento, nos detemos em concepções filosóficas modernas e contemporâneas, que indicam uma abertura possível para pensarmos a questão do pós-humano como uma extensão da noção de humano. Por fim, ensaiamos um debate concernente às implicações éticas e morais suscitadas pelos avanços das tecnociências e pela perspectiva do pós-humano no campo das relações sociais. Concluímos nossa análise apontando para a necessidade de um aprofundamento do debate em torno de questões relacionadas com a dignidade e a liberdade humana no âmbito das pesquisas científicas e da dinâmica social.
Palavras-chave Humano. Pós-humano. Tecnociência. Ética. Debate.
Introdução Testemunhamos atualmente a consolidação de um processo que nos coloca cada vez mais em confronto com as transformações técnicas e científicas, transformações estas que vêm se radi-
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calizando especialmente nas últimas décadas, quando registramos inegáveis avanços da ciência. A nosso ver, essa situação cria condições inéditas que permitem ao homem atual realizar experiências extremamente novas no âmbito de suas próprias criações. Para alguns teóricos e cientistas, confrontamo-nos hoje com a possibilidade de criarmos um ser “superior” a nós mesmos, um ser que poderá ultrapassar nossa própria condição de humanidade58. Essa busca de superação do humano vem alimentando os ideais e o imaginário simbólico de certas áreas das tecnociências, áreas que por vezes se engajam em uma construção que alguns autores consideram como uma “utopia pós-humana” (BESNIER, 2008). Estaríamos vivendo o início de uma nova era, em que o ser humano começa a se transformar pouco a pouco em um ser que não é mais humano ou, dito de outro modo, um ser para além do humano? Será que no futuro seremos substituídos por outros seres superiores a nós e deixaremos de existir? Ou será que vamos nos tornar uma subespécie (inferior) que vai coexistir com uma nova espécie (superior), que será criada por nós mesmos? Essas são, entre outras, algumas questões que têm inquietado a imaginação de muitos cientistas e pesquisadores de diferenciadas áreas do conhecimento (LANCELIN, 2012). Com o avanço das perspectivas delineadas pelo desenvolvimento das tecnociências, da comunicação, da informação e de 58 Essa compreensão permeia atualmente vários ramos da ciência como a nanotecnologia, a biologia, a engenharia genética, a neurociência e a informática aplicadas à dinâmica do conhecimento. O Massachusetts Institute of Techology (MIT), localizado em Cambridge, é um importante centro científico que busca a superação da condição humana natural. Uma de suas linhas de pesquisas mais destacadas é desenvolvida pelas unidades: Sloan School of Management, Lincoln Laboratory, Computer Science and Artificial Intelligence Laboratory, Media Lab e Whitehead Institute, que elaboram e “[desenham] a figura de um “trans-humano” numa perspectiva futura de um “homem desnaturalizado” (cf. BESNIER, 2008, p. 4). Os primeiros grupos de pesquisa trans -humana surgem nos anos de 1980, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles.
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pesquisas científicas diversas, como as do campo da neurociência e da nanotecnologia, entre outras, somos impregnados, de um modo ou de outro, pelo imaginário “pós-humanista” que se desenha no cenário contemporâneo (BESNIER, 2008). Trataremos dessas questões seguindo as linhas do roteiro que apresentamos no resumo acima. Procuramos sondar, primeiramente, de modo bastante sucinto, o que a tradição filosófica tem a nos dizer sobre o humano em suas linhas mais gerais como, por exemplo, as ideias de humano elaboradas a partir do composto corpo e alma, sobre o corpo como máquina, a racionalidade como alma e sobre o homem como ser histórico, social e moral. Desse modo, procuramos preparar o terreno para adentrarmos nas concepções modernas e contemporâneas que discutimos na segunda etapa de nossa reflexão, quando, então, tratamos a respeito de algumas concepções acerca de humano e de pós-humano no quadro das discussões mais recentes. São discussões que, a nosso ver, apresentam, por um lado, novas apreensões e possibilidades de abordagens compreensivas e, por outro, dão continuidade ao legado da tradição humanística, mantendo as antigas aspirações filosóficas e teológicas no quadro idealizado pelo “pós-humanismo”. A partir dos aportes que reunimos no primeiro e no segundo momento deste texto, conduzimos nossa atenção para um terceiro momento que aborda questões de cunho ético e moral, e que implica, direta ou indiretamente, a prática da ciência atual. Procuramos levar em conta, nesse caso, certas situações limites que nos colocam frente a frente com alguns efeitos produzidos pela ciência. Situações que podem, de uma parte, nos proporcionar significativos avanços mas, de outra parte, podem desfigurar nossa condição humana a ponto de colocar em risco nossa própria existência e nossa condição de sobrevivência. No âmbito
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dessas indagações, fazemos a seguinte pergunta: até que ponto é legitimamente aceitável permitir a “desconfiguração do humano” em nome da ciência e até que ponto essa permissão fere, ou não, os direitos mais fundamentais historicamente conquistados, como a igualdade, a dignidade e a liberdade humanas? Essa é a questão que conduz as discussões conclusivas que apresentamos no decorrer deste texto. Gostaríamos de ressaltar que a trajetória que seguimos aqui foi conduzida por uma perspectiva ampla de diálogos e de interlocuções com diversos autores.
Noções filosóficas sobre o humano Começamos nossa reflexão com uma pergunta básica que surge no contexto cultural das origens da Filosofia ocidental: o que é o homem e qual é a sua configuração como ser neste mundo? Foi com os sofistas que se registrou pela primeira vez a centralidade das preocupações filosóficas com o homem. A antropologia dos sofistas dava uma ênfase muito especial à dimensão espiritual do ser humano, pois concebia que “o espírito é o órgão através do qual o Homem apreende o mundo das coisas e se refere a ele” (JAEGER, 2001, p. 341). Protágoras, por exemplo, propunha um humanismo radical e explícito que segue o princípio do “homo mesura”. Em “sua obra Sobre a Verdade, [escreve a] famosa frase: ‘O homem é a medida de todas as coisas’ (πάντωνχρημάτωνμέτρ ονἄνθροπος).” (apud: FRAILLE, 1965, p. 230) Platão, que conviveu com os sofistas mas não era um deles, define o homem como sendo um composto de corpo e alma. Sua concepção dualista compromete a unidade antropológica que, no seu entender, é resultante da ordem das ideias. Platão realiza uma síntese da tradição filosófica anterior, dos sofistas e de Sócrates. A
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seu ver, é a ordem transcendente das ideias que permite explicar “no homem, a polaridade constitutiva da vida da ‘alma’ (psyché) em sua condição terrena” (VAZ, 1991, p. 36). Na antropologia platônica, o corpo é compreendido como a parte sensível do homem em oposição à alma que é de natureza suprassensível. O corpo é algo inferior, uma espécie de matéria impura que não é mais do que um “cárcere da alma”; e a alma, por seu turno, deve procurar fugir do corpo e, nesse sentido, ela escapa da morte, pois é de natureza imortal. Para Platão (Fédon, 64c), a morte do corpo abre o caminho para um novo ciclo de vida da alma. Desse modo, quando advém a morte corporal, a alma como “parte imortal foge, rápida, subsistindo sem se destruir, escapando à morte” (Fédon, 106e). Aristóteles, tal como Platão, considerava que “o homem é um ser composto (syntheton) de psyché e de soma. A psyché é, pois, a perfeição ou ato (entelécheia) do corpo” (VAZ, 1991, p. 39). Contudo, diferente de seu mestre, Aristóteles considerava que a alma era inseparável do corpo e que “todas as afecções da alma ocorrem com um corpo” (De Anima, 403a). Em sua obra A Política (1253a), Aristóteles dá outro tipo de definição, na qual entende que “o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e aquele que, por instinto, e não porque qualquer circunstância [se inibe e] deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem”. Segundo Aristóteles, é a capacidade de se expressar com palavras e a racionalidade que diferenciam o homem de todos os outros animais, desse modo, “ele é um ‘animal racional’, um zôonlogikón”. Na concepção aristotélica, “O homem transcende de alguma maneira a natureza e não pode ser considerado simplesmente um ser ‘natural’”. (VAZ, 1991, p. 40) No período medieval, a antropologia teológica de Agostinho (1973, p. 26) compreende o homem como o ápice de toda criação
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do mundo. Ele escreve, em suas Confissões, que “Deus está no homem; o homem em Deus”. Embora com clara influência do pensamento platônico e sua concepção sobre corpo e alma, a antropologia agostiniana diferenciava-se daquela dos filósofos gregos. Estes concebiam “que o homem bom é aquele que sabe e conhece, pois o bem e a virtude são ciência. [Para] Agostinho (...), ao contrário, (...) o homem bom é o que ama: o que ama o que [se] deve amar” (ANTISERI; REALE, 1990, p. 459). A antropologia agostiniana parte de premissas teológicas que implicam “a assunção do corpo na unidade da natureza humana na qual o Verbo se encarnou; (...) [e a] restituição escatológica da unidade do homem tal como procedeu da Palavra criadora de Deus”. (VAZ, 1991, p. 65) Tomás de Aquino, por sua vez, influenciado pela Filosofia de Aristóteles e de Santo Agostinho, também elabora sua antropologia baseada na concepção de que o homem é um animal racional composto de corpo e alma. Para ele, a alma humana realiza funções através do corpo, porém, não se mistura ao corpo, pois é uma substância intelectual que “se une ao corpo como forma” (TOMÁS, 1996, p. 266). A concepção de Tomás segue o viés aristotélico ao considerar que o entendimento humano está diretamente ligado com o corpo. A seu ver, os sentidos corporais são órgãos de conhecimento que possibilitam o conhecimento intelectual. O homem, como é um ser que está constitutivamente vinculado com um corpo material, deve buscar, “nas coisas sensíveis, cuja natureza é proporcional à [sua], um ponto de apoio para [se] elevar a Deus”. (GILSON, 2001, p. 658) Com o advento da modernidade, as questões sobre o humano se voltam radicalmente em direção à racionalidade. É possível dizer que “o pensamento modernista afirma que os seres humanos pertencem a um mundo governado por leis naturais que a razão descobre e às quais
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ela mesma se submete” (TOURAINE, 1992, p. 51)59. Descartes, por exemplo, considera que “o homem é um ser composto de duas substâncias diferentes: uma alma espiritual, cuja essência é o pensamento, e um corpo, cuja essência é a extensão. À alma pertence somente o pensar. O corpo é uma máquina, regida por leis gerais e mecânicas” (FRAILE, 1965, p. 516). Para explicar o corpo, Descartes se vale do modelo da máquina, que funciona como os “relógios, as fontes artificiais, os moinhos e outras semelhantes máquinas, que não sendo feitas senão pelos homens, não deixam de ter a força de se mover por elas mesmas” (DESCARTES, s/d, p. 807). O pensamento moderno vai desdobrar os rumos da “antropologia racionalista [que] prolongará a tradição do zôonlogikón, mas dando-lhe um novo conteúdo, pois nela o esquema mecanicista (ou a primazia do modelo da máquina) se estenderá à explicação da vida do homem”. (VAZ, 1991, p. 81) A Filosofia Iluminista do século XVIII vai seguir, por seu turno, a ideia de um progresso da razão, buscando interpretar as transformações que o homem realizou no campo social e cultural. Transformações estas que se afirmaram com o avanço da secularização, com a “conquista do mundo histórico” e com a formulação de novas ideias sobre o direito, o contrato social e o Estado. Para os filósofos das Luzes, “a razão é o ponto de encontro e o centro de expansão (...). A razão é una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda época, toda a cultura” (CASSIRER, 1997, p. 22-23). O uso da racionalidade aplicado às noções de “Humanidade, Civilização, Tolerância, Revolução, entre outras, são (...) ideias diretrizes que, (...) estruturam o espaço mental da Ilustração. Neste espaço o homem passa a ocupar o centro do qual irradiam as linhas da inteligibilidade”. (VAZ, 1991, p. 95) 59 Todas as traduções, do francês e do espanhol para o português, apresentadas neste texto foram realizadas por nós.
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Na esteira das ideias do Iluminismo, a Filosofia de Kant segue considerando o ser humano pelo primado da racionalidade. Contudo, para Kant, o homem é motivado tanto por seus desejos corporais e materiais, como por sua racionalidade. No seu entendimento, nossa condição como seres racionais indica que devemos estar “bem conscientes de nossas obrigações, e de que o valor moral surge somente da luta para realizá-las. Mas, como animais, estamos também vivamente preocupados com a felicidade” (DUDLEY, 2013, p. 65). Por um lado, a noção de humano em Kant apresenta-se como uma antropologia de viés pragmático, que é “uma intenção típica da Ilustração alemã, a de tornar a Filosofia útil para a vida”. Por outro lado, segue “as peculiaridades da concepção do homem do ponto de vista crítico”, permanecendo, nesse caso, “na linha da tradição dualista própria da antropologia racionalista”. (VAZ, 1991, p. 97-98) Esses são os traços mais gerais que gostaríamos de destacar acerca das compreensões antropológico-filosóficas de nossa tradição. Com essa breve digressão, procuramos preparar o terreno para darmos seguimento às questões que formam a parte central de nossa reflexão neste texto, parte esta que versa a respeito do deslocamento das questões do humano para o pós-humano. Isso é o que veremos a partir desse momento.
Humano e pós-humano: concepções modernas e contemporâneas Grande parte do pensamento moderno e contemporâneo considera que o homem é “um ser de transformação”. Essa é uma compreensão que “perpassa uma longa tradição filosófica
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que começa com os antigos filósofos gregos seguindo até Hegel, Feuerbach e Marx [além de] Hanna Arendt, dentre outros contemporâneos” (LOTT, 2013, p. 31). Na lógica dessa compreensão do homem como transformação, é possível afirmar, como faz o sociólogo austro-americano Peter Berger (2003, p. 20), que “o que aparece em qualquer momento histórico particular como ‘natureza humana’ é da mesma forma um produto da atividade do homem [para] construir um mundo”. Podemos acrescentar que o homem é também, e sempre foi, um “ser social”, que se confronta e se opõe ao mundo, transformando-o e manipulando-o com o propósito de criar um ambiente habitável e favorável para sua existência. Essa compreensão é parte do projeto intelectual elaborado pelo filósofo francês Marcel Gauchet, que propõe uma compreensão do humano através de uma antropossociologia transcendental (...). Antropologia no sentido de teoria do humano, disso que faz a humanidade do homem; sociologia porque os dois aspectos [parecem] inevitavelmente correlacionados; transcendental, enfim, para designar a dimensão propriamente filosófica do conjunto, a interrogação sobre as condições de possibilidade. (GAUCHET, 2003, p. 10)
Gauchet desenvolve uma análise histórica e política que começa com as sociedades primitivas, ou arcaicas, e chega aos dias atuais. Em sua interpretação, essas sociedades vivem o mito religioso na sua integralidade e praticam um tipo de religião que ele define como “religião primeira”. No seu entender, a “religião primeira” configura-se como uma forma de vestimenta de uma base
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antropológica mais profunda, que é o conflito. Para Gauchet, é o conflito social que leva o homem arcaico ou primitivo a recusar sua própria potência de criador e a negar a si mesmo para afirmar a figura de um todo outro, o heterônomo. Nas sociedades modernas e desencantadas, ao contrário das sociedades primitivas, o que predomina é o modelo autônomo, que tem como característica a autoafirmação e o reconhecimento do homem como ser de transformação e criação de mundo. Segundo Gauchet (2007, p. 133), com a modernidade e o processo de desencantamento do mundo, o homem passa a ter cada vez mais um domínio teórico e prático, que muda e transforma sua própria natureza e os rumos de seu destino. Numa outra interpretação, a do filósofo francês Edgar Morin (1979, p. 20), “a ideia de natureza humana” acabou sendo imobilizada por forças conservadoras com o propósito “de ser mobilizada contra a mudança social”. Para Morin, essas forças conservadoras se pautavam por uma “ideologia do progresso” e consideravam “que, para que houvesse mudança no homem, não era preciso que houvesse mudança de natureza humana”. A seu ver, em decorrência disso, houve um esvaziamento de conteúdos no que concerne à noção de “natureza humana”. Assim, “a natureza humana aparece como um resíduo amorfo, inerte, monótono: trata-se daquilo que o homem se subtraiu e não, de modo algum, daquilo que o fundamenta”. (MORIN, 1979, p. 20) Essa concepção de esvaziamento da ideia de “natureza humana” acena, a nosso ver, para algumas questões sobre o pós-humano. Mas cabe perguntar primeiramente: o que significa pós -humano? Trata-se de uma utopia ou de uma realidade concreta e plausível? Muitos consideram ter sido Nietzsche o precursor do pós-humanismo. Segundo o filósofo francês Serge Trottein
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(2006, p. 1), Nietzsche teria dado o primeiro impulso ao questionar os valores do humanismo e a propor um humanismo superior, sua intenção era “recuperar o anti-humanismo como promessa de um retorno a um humanismo mais autêntico”. Segundo Trottein (2006, p. 2), a crítica nietzschiana ao humanismo não se restringe a ser um anti-humanismo, ela confronta-se também com o pós-humanismo e abre, assim, a perspectiva de superação do humanismo clássico que, diga-se de passagem, já não atende mais à situação atual. Com as novas tecnologias, o homem adquiriu o poder da autotransformação e caminha para o rompimento das fronteiras que definem a compreensão do homem como zôonlogikón e, também, como homem e máquina. Ao que tudo indica, após Nietzsche, no âmbito da reflexão filosófica, “nós nos encontramos pela primeira vez, (...) em posição de produzir deliberadamente esse tipo supremo de humanidade”. (GAUCHET, 2007) Uma das primeiras elaborações concretas de pós-humanismo vem do filósofo alemão Peter Sloterdijk (1999), que causou grande impacto quando publicou seu livro Regras para o parque humano60. Nesse livro, o autor lança a questão sobre “como se organizar em um mundo onde seres híbridos deverão coabitar com seres humanos” (BESNIER, 2008, p. 3). Sloterdijk foi “acusado de fazer a promoção do super-homem nietzschiano pelo viés de uma apologia de recursos às novas tecnologias, [em] breve ele se encontraria acusado ou preso em flagrante delito de transhumanismo” (TROTTEIN, 2006, p. 4). Sua questão central versa sobre a “incapacidade do humanismo pensar a essência do humano”. (FERREIRA, 2004, p. 35) 60 Muitos autores consideram essa obra de Sloterdijk como um marco fundamental nas discussões sobre o pós-humanismo (cf. BESNIER, 2008; TROTTEIN, 2006; FERREIRA, 2004; RABENHORST, 2005).
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Sloterdijk parte de uma reflexão que começa com o humanismo clássico e se desenvolve na linha do pós-humanismo, que ele procura pensar a partir de Nietzsche e de Heidegger. Seu livro Regras para o parque humano foi inspirado pela carta de Heidegger Sobre o humanismo; sua intenção era oferecer uma resposta a esse texto e tentar reparar aquilo que, a seu ver, o texto resolutamente ignorou: “A história social do homem tocada pela questão do Ser, e o redemoinho histórico na abertura da diferença ontológica”, que não é outro que a história das domesticações do homem, o que Sloterdijk chama ainda “a face escondida da clareira”. E é aí que intervém Zaratustra (...). Nietzsche esboça o destino do futuro homem (...). O pós -humanismo é, então, a abertura de novas possibilidades de criação, de adestramento, de domesticação do homem. (TROTTEIN, 2006, p. 3)
Uma das questões discutidas por Sloterdijk diz respeito às novas tecnologias e às consequentes transformações que elas promovem. A seus olhos, o humanismo empreende uma luta contra a estupidez e o embrutecimento, combatendo as bestialidades que as pulsões humanas são capazes de realizar. Nesse caso, “tanto Heidegger quanto Sloterdijk acreditam que o humanismo instaura uma retórica de civilização em que, ao perigo da bestialização, é oferecida a tranquilidade da domesticação” (FERREIRA, 2004, p. 34). Contudo, ao procurar responder a Heidegger, Sloterdijk “introduz o pós-humanismo no seio da clareira” (TROTTEIN, 2006, p. 3). Em seu entendimento, o humanismo não foi capaz de coibir a bestialidade humana. (SLOTERDIJK, 1999, p. 32)
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Outra contribuição para a reflexão sobre o pós-humanismo vem do filósofo norte-americano Francis Fukuyama (2003), autor do livro Nosso futuro pós-humano. Fukuyama considera que com a queda do comunismo a história teria chegado ao fim e, doravante, caminhamos em uma nova história, a “história pós -humana”. Na interpretação de Eduardo Rabenhorst, Fukuyama procura refletir como a revolução biotecnológica abre caminho “para um retorno a um ordenamento muito mais hierárquico da sociedade” (...) Na nova sociedade (...) o ser humano, modificado geneticamente, viria ao mundo com um status sui generis, já que ele diferiria dos outros indivíduos da espécie (...). Corremos o risco de ver surgir num futuro bem próximo uma sociedade dividida em camadas superiores ou inferiores, não apenas do ponto de vista econômico, mas, sobretudo, sob o prisma genético. (RABENHORST, 2005, p. 120-121)
Essa concepção indica que, cedo ou tarde, nós teremos uma superação biogenética da atual condição humana. Todavia, esse avanço científico pode gerar uma desigualdade no que diz respeito à distribuição, ou seja, alguns seriam privilegiados e outros não. Além disso, corre-se o risco da incerteza genética e de uma cruel divisão no interior da sociedade. Diante dessa possibilidade funesta, “Fukuyama propõe uma outra fundamentação para a dignidade do homem”, ele toma como base “a própria consciência entendida como combinação de razão, linguagem, emoção, capacidade de deliberação e aptidão simbólica” (RABENHORST, 2005, p. 121). Assim procedendo, o filósofo norte-aPsicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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mericano procura identificar o que entende ser “uma qualidade humana essencial”. (FUKUYAMA, 2003, p. 158) Outros estudiosos do pós-humanismo, como o filósofo e sociólogo francês Hervé Fisher (2004), por exemplo, consideram que “o fantasma do pós-humanismo não merece a referência ao humanismo que ele invoca”. O homem vem demonstrando, de um modo progressivo, ao longo de sua existência histórica, o desejo de ultrapassar seus próprios limites naturais. Desse modo, é possível considerar que o homem sempre tentou escapar de sua biologia. O xamanismo [e] a religião exaltam sua relação com um mundo superior, mágico ou religioso (...). As religiões judaico-cristãs inventaram uma audaciosa visão de homem dotado de uma alma que o religa diretamente a Deus e que lhe permite participar assim do ser de Deus. (FISHER, 2004, p. 2)
Nesse sentido, é possível dizer que a ideia de pós-humano não é nova, pois o desejo de ir além de si, de transcender ao corpo e a esse mundo, é algo antigo na espécie humana. O que vemos com o pós-modernismo não difere muito disso, trata-se de um desejo “que obedece a lógica da tecnociência para negar o que é próprio da humanidade: seu enigma definitivo, sua fragilidade, sua irredutibilidade à matéria”. (FISHER, 2004, p. 2) Como vimos mais acima, Platão considerava o corpo como uma “prisão da alma”. Descartes, por sua vez, “desqualificava o corpo [e] o situava no nível mais animal de nosso ser. (...) Atualmente, a obsessão do corpo perfeito não é talvez [nada além] de uma recusa do corpo. E a tecnociência encara o desafio (...) de realizar este fan-
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tasma” (BESNIER, 2008, p. 4). O pós-humanismo persegue um ideal que pretende atingir “um estágio da humanidade tecnológica cuja principal meta é a transcendência das limitações físicas e biológicas do humano” (FELINTO, 2005, p. 3). As novas tecnologias alimentam os sonhos de realizar o desejo do homem de ir além de si, de ampliar sua inteligência, sua força, sua imunidade e sua capacidade física. Alimentam, também, “esse investimento imaginário compensatório que nós operamos na tecnociência, onde nós cultivamos a ilusão de ultrapassar nossos limites e de completar nosso ser irredutivelmente inacabado”. (FISHER, 2005, p. 3) As técnicas de eugenia não são novas na história humana, os gregos antigos as utilizavam com destreza (JAEGER, 2001). Contudo, os “eugenistas do passado pretendiam fazer a raça humana mais pura, mas ainda humana. Os partidários do pós-humanismo creem que chegou a hora de ir além, de se buscar um estágio avançado, em que não seríamos mais humanos” (RÜDIGER, 2007, p. 5). Todavia, essa aspiração compartilha dos mesmos sonhos de superação, de transformação e de transcendência que sempre tivemos. Se tomarmos um ponto de vista fenomenológico, será possível dizer que “o homem é uma ideia histórica e não uma espécie natural. A obstinação em desqualificar o corpo é uma atitude dependente de um pathos onde predomina a vontade de desencarnação”. (BESNIER, 2008, p. 5)
O pós-humano no contexto da dignidade e da liberdade humanas As concepções em torno do humano e do pós-humano, que acabamos de comentar, suscitam-nos reflexões sobre o campo da ética e das relações sociais. A nosso ver, será preciso refletir até que ponto o uso dos meios tecnológicos se legitima e até que ponPsicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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to esse uso se justifica por si mesmo. Não temos como fechar os olhos para os inegáveis avanços científicos que testemunhamos e dos quais nos beneficiamos amplamente nos dias de hoje. Contudo, quando o uso e a produção das tecnologias se desenvolvem sem a ponderação da reflexão ética; quando instigam a realização da vontade egoísta dos indivíduos sem levar em conta a vida, a liberdade e a dignidade do outro; quando a produção dessas tecnologias tem por objetivo um uso com vistas a uma dominação vil e desumana, nós certamente questionamos a legitimidade e a validade desse uso e dessa produção. Como escreve Edgard Morin (1979, p. 20), “se somos obrigados, hoje, a reconhecer que todos os homens são homens, a verdade é que excluímos imediatamente aqueles a quem chamamos ‘desumanos’”. (MORIN, 1979, p. 20) O pós-humanismo promete a possibilidade concreta de transformar o ser humano através da tecnociência. Essa possibilidade nos leva a refletir sobre dois caminhos distintos: o primeiro é extremamente positivo, pois indica que podemos seguir uma rota que nos levará a uma segurança e a um bem-estar cada vez maiores. Nesse caso, com os avanços da ciência, será possível assegurar um desenvolvimento humano bastante favorável, seja ele físico, mental, ambiental ou social. O segundo caminho, no entanto, não é a nosso ver nada positivo, porque é capaz de colocar em risco a própria vida e a dignidade humanas. Nesse caso, a ciência pode se colocar a serviço de interesses individuais egoístas e desumanos, pode se deixar levar pela indiferença para com o sofrimento e as más condições do outro, acentuando ainda mais a divisão social e a dominação política, econômica, técnica e científica. A promessa utópica do pós-humanismo nos coloca em um campo de incertezas no qual não sabemos o preço a pagar e não conhecemos quais as consequências que teremos que nos confrontar no futuro. O termo pós-humano nos causa, de fato, estranheza 68
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porque significa “após o homem”, isto é, significa uma situação futura em que não haverá mais humano. Por esse motivo, autores como Hervé Fisher, por exemplo, preferem falar de hiper-humano em contraposição a pós-humano. Em sua concepção, O hiper-humanismo não se inscreve (...) no espaço social pela confrontação, (...) ele é consciente da multiplicidade de espaços e de tempos sociais aos quais ele pertence. (...) O hiper-humanismo marca a passagem da solidão à solidariedade. Ele afirma o valor da interdependência entre os homens, entre as nações e entre os homens e o Universo. (...) Nosso medo de uma catástrofe final aparentemente inevitável — que está na base do sentimento do trágico atual — nos incita a buscar nossa salvação no crescimento de uma ética de responsabilidade dividida. O sentido de responsabilidade nasce da consciência dos vínculos entre nós e os outros, entre nossos atos e suas consequências. (FISHER, 2004, p. 4)
Atos e consequências, estes, que são certamente legítimos quando advêm de pesquisas científicas que levam em conta a consciência ética, e que procuram preservar a dignidade e a liberdade dos indivíduos. Em outras palavras, somos do parecer que são especialmente válidas as pesquisas que levam em conta a elevação da dignidade humana e trabalham para evitar a bestialidade, a opressão e as desigualdades. Sob essa ótica, podemos considerar que “a ética passa à frente da lógica da tecnociência”. Contudo, precisamos estar bem atentos porque, “infelizmente, a tecnociência é muito mais poderosa que a ética”. (FISHER, 2004, p. 7)
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Sendo assim, é preciso debater e aprofundar as questões que envolvem a dignidade humana e a tecnociência. Não podemos deixar que a tecnociência neutralize a consciência ética e a delete por completo. A dignidade humana é, segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas, uma questão incontornável, que tem um forte “significado nas relações interpessoais de reconhecimento recíproco e no relacionamento igualitário entre as pessoas” (HABERMAS, 2004, p. 47). As tecnociências nos colocam diante do perigo de chegarmos a ponto de não “nos [compreendermos mais] como seres vivos eticamente livres e moralmente iguais, orientados por normas e fundamentos”. (HABERMAS, 2004, p. 57) Para o filósofo alemão, é de fundamental importância ponderar, discutir e procurar saber até que ponto as tecnologias podem e devem alterar a “natureza humana”, pois corremos o risco de perder a dimensão ética e moral da espécie. Em seu entender, as intervenções eugênicas de aperfeiçoamento prejudicam a liberdade ética na medida em que submetem a pessoa em questão a intenções fixadas por terceiros, que ela rejeita, mas que são irreversíveis, impedindo-a de se compreender como autor único de sua própria vida (HABERMAS, 2004, p. 87).
No entendimento de Habermas, as pesquisas genéticas deveriam incorporar um arcabouço ético e moral que preservasse a dignidade humana e que nos desse, no presente, a perspectiva de uma “consciência futura”, livrando-nos das promessas da eugenia liberal, que se pautam pela “lei da oferta e da procura”. No seu parecer, é preciso impor limites para as pesquisas e práticas da eugenia, isso porque, especialmente “nas sociedades liberais,
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seriam os mercados que, regidos por interesses lucrativos e pelas preferências da demanda, deixariam as decisões eugênicas às escolhas individuais dos pais e, de modo geral, aos desejos anárquicos de fregueses e clientes”. (HABERMAS, 2004, p. 68) Para o filósofo alemão, só deveriam ser aceitas as práticas de eugenia que não colocassem em risco e não limitassem a autonomia e a igualdade entre os indivíduos. Em sua compreensão, as pesquisas e as práticas científicas que visam o aperfeiçoamento humano “não podem ser ‘normalizadas’ de modo legítimo no âmbito de uma sociedade pluralista e democraticamente constituída, que concebe a todo cidadão igual direito a uma conduta de vida autônoma”. (HABERMAS, 2004, p. 91-92)
Conclusão No caminho que trilhamos ao logo deste texto, procuramos exercitar uma interpretação-compreensão sobre a noção de humano que se desdobrou em seguida na noção contemporânea de pós-humano. Em nosso entendimento, a ideia de pós-humano segue, no geral, uma linha de continuidade que nasce do desejo humano de superação de si mesmo; desejo este que, diga-se de passagem, acompanha o homem desde suas origens. Contudo, assinalamos que a situação atual em que vivemos — que traz a marca indelével dos avanços das tecnociências — indica a possibilidade de alterarmos radicalmente a constituição biogenética do ser humano. Vivemos, assim, uma situação inédita em nossa história em que, por um lado, podemos mais do que nunca colher grandes benefícios; mas, por outro, corremos o risco iminente de criarmos a nossa própria extinção dentro dos laboratórios de pesquisas científicas. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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Ademais, corremos também o risco de diminuir a dignidade humana e de restringirmos sua autonomia, sua liberdade e o seu sentido de igualdade. Em virtude disso, consideramos que é preciso continuar aprofundando o debate em torno das questões que permeiam o fazer científico. Em suma, somos do parecer que, se de fato desejamos nos livrar dessa velha carcaça do humano, não podemos deixar que esse desejo se consolide sem a mediação da reflexão ética.
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Por uma espiritualidade de enfrentamento ao fundamentalismo
Marcus Mareano Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Bacharel e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina-Bélgica. Professor de Teologia na PUC-MG. Padre da Arquidiocese de Belo Horizonte.
Introdução Em culturas tão plurais e em tempos de alguns valores humanos considerados, ainda temos que estranhar o fundamentalismo, a inflexibilidade e a indisposição à mudança por parte de alguns grupos e setores da sociedade. O presente texto discute o atual fenômeno no âmbito das religiões e propõe a experiência espiritual como enfrentamento a esse atual desafio. Dentre as diferentes formas de fundamentalismo, a mais escandalosa é o fundamentalismo religioso, pois pratica intolerância e violência, de onde se espera promoção de justiça e paz. A preocupação de retornar aos “fundamentos” – como queria o movimento protestante do início do século XX que deu origem ao “fundamentalismo” – pode ser mais benéfica se tal fundamento for o espírito ao invés da letra dos textos. A reflexão se desenvolve a fim de propor sinais para uma espiritualidade que se oponha ao fundamentalismo. O primeiro ponto aborda a pertinência desse tema em diversos âmbitos e estratos sociais, sobretudo, o fundamentalismo religioso que, infelizmente, observamos no Brasil. Em seguida, contextualizamos nosso momento presente, denominado de “pós-modernidade”, e o lugar que a religião ocupa nele. Finalmente, elencamos alguns tópicos principais como indicativos para uma espiritualidade pósmoderna de contraposição ao fundamentalismo: o pluralismo religioso, a dimensão ética e o enfrentamento ao fundamentalismo. Consequência de uma conferência e de um debate subsequente, o texto não pretende ser exaustivo ou defender uma tese estrita sobre o tema. O escopo do trabalho é mais indicativo e discursivo do que conclusivo, e busca oferecer assinalações para ampliação da discussão.
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A questão do(s) fundamentalismo(s) Não é necessário muito esforço de pesquisa para sentir a urgência do tema no Brasil e no mundo. Constantemente escutamos e lemos notícias que remetem às diversas ações fundamentalistas no âmbito moral, político, econômico e, sobretudo, religioso. As consequências são nefastas para todas as pessoas. A história da humanidade traz marcas de inúmeros episódios de intolerância religiosa: as cruzadas, a rivalidade entre católicos e evangélicos em diferentes países, o extermínio de grupos minoritários, os grupos fundamentalistas muçulmanos, entre outros61. Poderíamos aprender com os erros passados, no entanto, ainda nos assustamos, como ressalta Armstrong (2001, p. 484): “Hoje o fundamentalismo faz parte do mundo moderno. Representa uma decepção, uma alienação, uma ansiedade, uma raiva generalizada, que nenhum governo pode ignorar sem correr risco. Até agora os esforços para lidar com o fundamentalismo não tiveram muito sucesso”. Especificamente no Brasil, neste momento histórico em que vivemos, destacamos duas atitudes principais, dentre muitas, decorrentes de fundamentalismo. A primeira, e talvez a mais momentânea, é a polarização político-partidária entre direita e esquerda, entre poderosos economicamente e ascendentes socialmente, entre golpistas e golpeados (TELLES, 2017, p. 195-205). A reflexão sobre esse tópico ainda se desenvolve e os eventos ainda acontecem à espera de um desfecho. (DULCI, 2017, p. 169-171) Outra atitude fundamentalista que destacamos se situa na esfera religiosa. O Brasil é um país predominantemente cristão 61 Uma melhor análise e maiores exemplos de fundamentalismo nas diferentes religiões: VASCONCELLOS, Pedro. Fundamentalismos: matrizes, presenças e inquietações. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 55-84.
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e, vergonhosamente, ainda por aprender a conviver melhor com as diferentes crenças, especialmente, as de matrizes africanas, principais vítimas de intolerância religiosa. Algumas notícias recentes demonstram como o fundamentalismo religioso cristão promove desrespeitos e provoca vítimas nas outras religiões. Dentre tantas notícias, destaca-se a seguinte: De janeiro a março deste ano, os casos de intolerância religiosa cresceram mais de 56% no estado do Rio de Janeiro em comparação ao primeiro trimestre de 2017. Em valores absolutos, o número subiu de 16 para 25 denúncias no período, segundo a Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos (SEDHMI). A capital concentra 55% das denúncias, seguida por Nova Iguaçu e Duque de Caxias, ambos na Baixada Fluminense, com 12,5% e 5,3%, respectivamente. O tipo de violência mais praticado é a discriminação (32%). Depois, aparecem depredação de lugares ou imagens (20%) e difamação (10,8%). As religiões de matrizes africanas são os principais alvos: candomblé (30%) e, umbanda (22%)62.
Se, por um lado, alguns poucos se desrespeitam e até matam em nome de Deus e da religião, outros muitos buscam um caminho de realização humana, plenitude, paz e felicidade. Pessoas querem viver em harmonia consigo mesmas, com os outros e com a criação. A espiritualidade é a via e superação dos absurdos de algumas pessoas religiosas. 62 Casos de intolerância religiosa sobem 56% no estado do Rio. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-05/casos-de-intolerancia-religiosa-sobem-56-no-estado-do-rio>. Acesso em 18 jun. 18.
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Religião e pós-modernidade Desde o início do novo milênio, nós nos situamos em tempos de rápidas mudanças socioculturais. O que era exato, firme e consistente, passa por um estado de liquefação. A pós-modernidade se consolida como novo tempo. Situamo-nos nesse momento incógnito da nossa história. As realidades estão dissolvidas e misturadas, por isso a metáfora da “fluidez”, conforme o uso difundido por Zygmunt Bauman (2001, p. 7-10)63. Nós recebemos uma herança de um processo de secularização desde a modernidade64. O pensamento atual considera “caducas” e “superadas” as questões modernas (por exemplo: verdade absoluta, moral universal, supremacia da razão) e cinde com a tradição. O passado não importa e o futuro não interessa. O que existe é o presente. Por essa razão, um tempo de instabilidade, crises – moral, fé, economia, política, meio ambiente, religião – e um relativismo pertinente. Do ponto de vista das religiões, nós passamos de tempos da “morte de Deus” para uma “revanche religiosa”: “Ouve-se falar, cada vez mais frequentemente, de um regresso do ‘religioso’ ou do ‘sagrado’. E é já costume caracterizar a nossa época, precisamente, por esse regresso, o que a tornaria uma época de atitude pós-moderna, isto é, superadora de uma correspondente atitude 63 Sobre a dificuldade de precisão do conceito “pós-modernidade”: “A denominação de pós-modernidade aplicada ao final do século XX e à transição do segundo milênio para o terceiro, tornou-se patrimônio comum a múltiplos âmbitos da cultura e da sociedade. Por isso mesmo, torna-se extremamente difícil uma caracterização precisa desse conceito”. DUQUE, João Manuel. Dizer Deus na pós-modernidade. Lisboa: Alcalá, 2003, p. 5. 64 Sobre o processo de secularização e suas consequências na contemporaneidade: MONICO, Lisete. Secularização, (a)teísmo e pluralismo religioso nas sociedades ocidentais contemporâneas. Horizonte, Belo Horizonte, v. 13, n. 40, p. 2064-2095, out./dez. 2015. Especialmente o tópico sobre a secularização MONICO, 2015, p. 2067-2069.
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moderna, que se diz por sua natureza adversa ao religioso e ao sagrado”. (DUQUE, 2003, p. 163) A proliferação das crenças responde à necessidade de recompor, a partir do indivíduo e de seus problemas, algo do sentido perdido. A religião na contemporaneidade se caracteriza, entre outras coisas, pela difusão de crenças individualistas, uma reconsideração institucional da religiosidade e uma nova religiosidade flutuante de elaborações sincréticas (HERVIER-LÉGER, 2008, p. 20-25). Assistimos a um processo de “desregulação” das religiões. As novas gerações se opõem às antigas gerações. Há lacunas diferentes e enormes entre uma geração e outra que representam verdadeiras rupturas culturais. Os pais ou responsáveis rejeitam transmitir alguma fé para os filhos e deixam para eles a escolha da religião. Ou ainda, os mais antigos não têm mais certezas de fé ou vivem crenças pessoais distinta das instituições. O que antes era oferecido e aceito como pronto e indiscutível, hoje necessita de um esclarecimento e uma opção refletida. Os que creem hoje, fazem com maior convicção. A responsabilidade de escolher o próprio rumo pesa sobre o indivíduo pasmo diante de múltiplas alternativas. Por isso, a emergência de fundamentalismos e de um tradicionalismo estéril, reflexos da pouca capacidade de diálogo com o presente. Repetem-se modelos velhos sob uma nova roupagem, enquanto não se aceita os atuais desafios. O indivíduo atual deseja uma experiência pessoal que corresponda aos seus anseios profundos e lhe forneça consolo e sentido de existência perene para sua vida. Independentemente de denominação religiosa, o ser humano anseia por algo da ordem da transcendência: Ela é uma experiência, porque este saber de cunho atemático, mas inevitável é momento e
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condição de possibilidade de toda e qualquer experiência concreta, de qualquer objeto que seja. Essa experiência é chamada transcendental porque faz parte das estruturas necessárias e não suprimíveis do próprio sujeito que conhece e porque consiste precisamente na ultrapassagem de determinado grupo de possíveis objetos ou de categorias. A experiência transcendental é a experiência da transcendência, experiência na qual a estrutura do sujeito e, consequentemente, também a estrutura última de todo objeto concebível de conhecimento está presente conjuntamente e na identidade. (RAHNER, 1989, p. 33)
Embora os pensadores de diferentes tempos da história tenham apontado essa dimensão humana, no momento presente ela se torna destacada pela reação ao racionalismo histórico anterior e pelo enfraquecimento das grandes instituições sociais. O ser humano possui uma sede de “Deus”. Para corresponder a tal sede (busca humana pelo espiritual), deve-se considerar também a água (espiritual) e a forma de satisfação (os meios para satisfação). Portanto, qual espiritualidade corresponderia melhor ao nosso tempo pós-moderno?
Por uma espiritualidade na pós-modernidade A pergunta complexa não merece uma resposta simplória nem definitiva, pois o fenômeno exige ampla pesquisa. Entretanto, elencamos algumas características basilares para uma espiritualidade na pós-modernidade, especialmente para o enfrentamento do fundamentalismo. Compreendendo espiritualidade como movimento humano para a transcendência.
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Pluralismo religioso O primeiro tópico a ser considerado é o pluralismo religioso, aludido acima. Os tempos não são de hegemonia de uma denominação, nem de uma única maneira de relacionar-se com a transcendência. Cada vez surgem novas religiões ou novas formas de viver a religiosidade: De forma evidente, a religião transfigurou-se, fragmentou-se e multiplicou-se, embora cada fragmento não tenha efeitos maiores nas sociedades laicas, permanecendo através das suas circulações simbólicas, do mistério, das práticas e dos ritos, mesmo em atividades, grupos ou projetos não explicitamente tidos como religiosos. Na atualidade das sociedades pós-seculares, utilizando a designação emblemática de Habermas, identifica-se uma abundância de novas direções religiosas e filosóficas, uma expansão acelerada de vários grupos religiosos, ou meramente de apelos para distintos modus vivendi. Quando um ritual, um simbolismo e uma estrutura institucional são radicalmente modificados, resulta um novo movimento religioso, ao qual os membros facilmente tanto aderem como abandonam, em função da resposta a necessidades ou a desejos pessoais. (MONICO, 2015, p. 2078)
Assim, um indivíduo que hoje busca alguma espiritualidade, se depara com a variedade de ofertas. Cada pessoa escolhe conforme lhe apraz: “Ao invés de uma religiosidade universal, estamos caminhando para uma religiosidade profundamente pessoal, uma 82
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religiosidade a partir da qual cada um poderá encontrar sua linguagem pessoal, própria e mais específica para se dirigir a Deus” (FRANKL, 2011, p. 111). Preza-se pela experiência mais do que pela normatização. A dificuldade se encontra na solidez, na perenidade e no compromisso com a própria dimensão espiritual. As religiões podem propor uma espiritualidade sadia que humanize e integre o ser humano65. Dessa forma cumpre-se a tarefa dessas instituições, que é a de ligar, no sentido de relacionar (religare), a transcendência e a imanência, o invisível e o visível, o divino e o humano. Do contrário, a experiência religiosa torna-se uma patologia, gerando fanatismo e fundamentalismo, e adoecendo as pessoas e a sociedade. O remédio é o desafio de cultivar uma experiência transcendental adequada e perene. Por isso, uma espiritualidade não pode ser um anestésico humano. Um movimento espiritual conflui para uma prática de vida melhorada. As religiões contribuem para um mundo melhor se a espiritualidade aponta para uma ética e o que se experimenta por uns instantes, deriva em melhores ações de seres humanos inebriados pelo mistério.
Dimensão ética Nos tempos atuais, muitas pessoas procuram viver eticamente sem alguma vinculação religiosa institucional. Ou, ainda, frequentam algumas instituições religiosas sem viver genuinamente 65 Luiz Carlos Susin apresenta alguns critérios para uma espiritualidade saudável: “a árvore e os frutos”, isto é, as consequências práticas de uma espiritualidade; “a livre decisão do amor”: liberdade e autonomia para viver qualquer tipo de fé. SUSIN, Luiz Carlos. O ato de religião como virtude e seus vícios: sobre fundamentalismo, fanatismo, esquizocrentes. In: MILLEN, Maria Inês de Castro; ZACHARIAS, Ronaldo (org.). Fundamentalismo: desafios à ética teológica. Aparecida: Santuário, 2017, p. 195 -222.
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os preceitos religiosos. A religião fica à serviço dos gostos individuais e não parece ser mais necessária para a felicidade humana. A ética pode substituir uma fé ou uma vivência religiosa. Cada vez mais, cresce o número de pessoas que vivem bem, mas não “participam” das religiões ou sequer dizem acreditar em Deus. Por esse motivo, diferentes propostas aparecem como alternativas, como por exemplo, a espiritualidade ateia do filósofo André Comte-Sponville: “Uma espiritualidade da fidelidade antes da fé, da ação antes que da esperança (sim, a ação pode se tornar um exercício espiritual: tanto os trabalhos nos mosteiros, quanto as artes marciais no oriente), do amor, enfim, antes que do medo ou da submissão” (2006, p. 150). Ou ainda a proposta de uma espiritualidade laica de Luc Ferry: “O amor, é claro, é o mais visível e mais forte, não só por se encarnar em relações com outras pessoas, mas também por animar todas as demais ordens: do direito à ética, passando pela arte, a cultura e a ciência”. (FERRY, 2012, p. 200) Seja pelos conhecidos discursos das religiões, seja por reflexões que as dispensam, a espiritualidade supera as instituições e conduz à prática do amor. O ser humano que anseia uma experiência transcendental, aspira amar e sentir-se amado “para além” e “a partir” das limitadas experiências sensoriais de amor. Portanto, o espiritual incide na práxis cotidiana da vida; o transcendente me remete ao drama real vivido e me insere nele, de maneira diferente, para atuar mais eficazmente. O ato deve ser todo da pessoa humana, mas como se fosse todo dependente da vontade transcendental, em uma síntese entre as vontades humana e divina, na qual uma não pode nada sem a outra (BLONDEL, 1893, p. 385). A ação é o ponto de encontro e de cooperação e o lugar de comunhão entre o ser humano e sua destinação própria (Deus), onde o homem ascende à
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finalidade para a qual foi criado e o meio pelo qual se configura ao infinito que é o princípio e o fim da ação humana. A comunhão com o divino é a consumação da ação plenamente realizada pela participação no amor. A orientação e a finalidade da ação humana se dirigem para essa realidade absoluta, infinita e comumente nomeada por “deus”66. Mesmo a práxis sendo múltipla e transitiva, ela anseia uma unidade, que a atrai e a impulsiona adiante. O ser humano é livre na medida em que age conforme sua própria orientação e finalidade. Não obstante, ainda se praticam crueldades em nome de Deus e das religiões; cultivam-se ódios, guerras, conflitos e divisões. O que poderia ser para humanização e melhoramento humano, às vezes se torna combustível para inflamar rupturas sociais em nome de uma verdade. O amor fica teórico e presente apenas nos discursos, e a vida desses crentes fundamentalistas causa mais estranhamento do que admiração. Se por um lado muitas pessoas das religiões disseminam caos, por outro, a espiritualidade representa resistência, luta pacífica e oposição aos destroços; como exemplo, importantes expoentes da nossa história recente de diferentes denominações: Mahatma Gandhi, Dalai Lama, Asia Bibi, Papa Francisco, Thich Nhat Hanh, Madre Tereza de Calcutá, entre outros.
Enfrentamento ao fundamentalismo Os discursos de grupos fundamentalistas trazem o nome de “deus” e justificam as atrocidades por causa de uma falsa fé. Por 66 Com essa grafia queremos comunicar a ideia de Deus de maneira não confessional por uma religião específica.
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detrás, há uma imagem equivocada de Deus como soberano, infinito e onipotente que opera tudo e faz com que todas as coisas ocorram conforme seus desígnios. Os líderes usam disso para manipular os grupos em prol de seu propósito de poder. Então, como pensar uma imagem de Deus que se oponha a essa realidade desumanizante? Como uma relação com a divindade supera o fundamentalismo doentio que ainda temos notícias e se dispõe para uma aventura com o mistério? Nossas maneiras de nomear o mistério são variadas: “deus”, transcendência, inefável, etc.; no entanto, o humano percebe uma realidade para além de si mesmo, da qual tem sede e almeja uma relação. As religiões podem ajudar nesse caminho, renovando o próprio discurso, considerando o momento atual e história real na qual o divino se manifesta: Aqui, neste ‘aquém’ da subjetividade desconstruída, encontramo-nos sós e ao mesmo tempo acompanhados. Sós em nossa liberdade pensante e acompanhados na sensibilidade de outros corpos. Sós no luto, mas acompanhados de nossos mortos e dos vivos a que com pena e com gozo, entre mesclados sempre, mal conhecemos e amamos. (...) Um lugar que não é lugar, um sentido que é sem sentido, um ser que não ente nem super ente, mas abismo do ser. (...) Teremos de dar esse salto no vazio: uma fé que não é crença que se engana anelando possuir um objeto de latria, mas fé que é confiança incondicional no outro. Uma esperança que não espera nada e, no entanto, dá todo na aposta de
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um amanhã. Um amor que não é correspondido porque não tem medida, mas só sabe ser pura doação. Tal será o lugar para falar da revelação divina no meio dos escombros da pós-modernidade. (MENDOZA-ÁLVAREZ, 2016, p. 42-44)
Podemos pensar em “deus” como quem verdadeiramente se situa na realidade humana e padece o drama de todos. Assim, será possível encontrar uma finalidade para as adversidades e força para o enfrentamento cotidiano, como Zizek arguemnta: Schelling já havia escrito: ‘Deus é uma vida e não apenas um ser. Mas toda vida tem um destino e está sujeita ao sofrimento e ao devir. Sem um conceito de Deus que sofre humanamente toda a história permanece incompreensível’. Por quê? Porque o sofrimento de Deus indica que ele está envolvido na história, é afetado por ela, e não apenas um mestre transcendente que controla tudo lá de cima: o sofrimento de Deus significa que a história humana não é apenas um teatro de sombras, mas sim o lugar de uma luta real, a luta que o próprio absoluto está envolvido e em que seu destino é decidido”. (ZIZEK, 2016, p. 132)
Um “deus” sofrente agride o imaginário comum, no qual se habituou a imaginar o divino como um espírito perfeitíssimo, onipotente, onisciente e onipresente. Assim como as grandes instituições sociais, a maneira de viver, os valores e a sociedade estão em crise por conta das aceleradas mudanças da pós-modernidade; da mesma forma, a imagem de “deus” deve ser repensada
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e discutida sempre. As buscas pelo mistério continuam por parte do ser humano e as repostas possíveis devem assumir as novas questões e os indivíduos gestados nessa cultura. Os desafios presentes não são piores do que os de outros momentos na história. A ousadia de um encontro com o mistério contribui para refletirmos além dos horizontes estreitos do espaço e tempo em que nos situamos. A experiência espiritual eleva nossas mentes, ilumina nossos olhares e fortalece nosso ser para o empenho por uma existência abundante de sentido de ser. Assim, “deus” não é um ídolo propriedade de alguma denominação religiosa ou alguém que suscite guerras, desrespeitos e rivalidades para melhor ser adorado. As características da nossa sociedade contemporânea apontam para uma experiência humana de um “deus” percebido nas tramas da história e na vivência da complexidade do tempo. Um “deus” mais na terra do que nos céus, menos ontológico e mais existencial, presente no interior das pessoas mais do que nos templos religiosos, que se conhece pelas relações mais do que pelos discursos. Assim, teríamos uma espiritualidade verdadeira ao invés da intolerância religiosa.
Considerações finais Finalmente, podemos nos questionar: “Que lições podemos tirar do passado que nos ajudem a enfrentar mais criativamente, no futuro, os medos que o fundamentalismo encerra?” (ARMSTRONG, 2001, p. 484) O barulho rouco dos fundamentalistas parece ser mais forte do que as ações das pessoas que fazem uma experiência transcendental. Se comparamos, quantitativamente e qualificativa-
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mente, os “espiritualizados”, que fazem verdadeira experiência espiritual, exercem melhor sua humanidade que outros que querem impor uma religião própria para todos, aqueles deixam melhor herança para os humanos pósteros do que estes. Um caminho de superação das barbáries fundamentalistas deve ser a espiritualidade. A experiência humana sobressai aos discursos religiosos. Podemos enaltecer antes o conteúdo (o mistério de um “deus”) do que as etiquetas (denominações religiosas). A beleza dos cultos e liturgias das diferentes religiões, as preces feitas de maneiras próprias e a vivência do amor ocultam as marcas deixadas pelos atos fundamentalistas. A pós-modernidade desafia-nos para novas compreensões das religiões e de “deus”. Seremos tanto mais inseridos no mundo presente quanto mais o escutamos e dialogamos com/sobre ele. Nele fazemos a experiência espiritual e para ele tal ato se volta. Por isso, a esperança de uma consistente espiritualidade supera o medo do fundamentalismo. Se, infelizmente, ainda se noticiam atos de violência por causa da religião, a espiritualidade deve chegar de maneira eloquente no enfrentamento dessa realidade, como um rio que quanto mais profundas são as águas, mais silenciosas, perenes e fecundas, vitalizando tudo por onde passa. Então, o presente se torna melhor com o que aprendemos do passado e, pouco a pouco, construímos um futuro menos intolerante e mais espiritual. Se cada indivíduo possui uma tendência a integrar-se, cada experiência com o mistério potencializa isso e gera a paz que a humanidade almeja.
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O mal-estar na sociedade e seus efeitos sobre os matrimônios católicos contemporâneos: a proposta de mediação religiosa do Encontro de Casais com Cristo
Denis Cotta Formiga Mestrando em Ciências da Religião na PUC Minas e bolsista desta (Bolsa Assistencial Stricto Sensu).
Resumo O presente estudo visa analisar os aspectos advindos do mal-estar da sociedade contemporânea e seus impactos sobre os vínculos amorosos, mais especificamente sobre os matrimônios cristão-católicos. Nessa premissa, salienta-se o serviço escola da Igreja Católica, a saber, o Encontro de Casais com Cristo (ECC), que tenta instaurar uma mediação religiosa em prol da consolidação do sacramento do matrimônio. De acordo com a hipótese desta pesquisa, o ECC preza por uma ressignificação do matrimônio de seus participantes, contudo, salientam-se problemáticas para a instauração deste objetivo. Observa-se que tais problemáticas são derivadas, em certo grau, aos sentidos produzidos nos indivíduos pelo mal-estar na sociedade contemporânea, de acordo com o prisma psicanalítico. No que tange ao referencial teórico utilizado, esta pesquisa se fundamenta em duas subdisciplinas das Ciências da Religião, a saber: a Sociologia da Religião e a Psicologia da Religião, no intuito de propor um diálogo teórico entre ambas. Neste sentido, no tocante à subdisciplina de Psicologia da Religião, este trabalho se utilizará da abordagem psicanalítica freudiana, tratada pelo psicanalista brasileiro Joel Birman, que propõe um diálogo com o pensamento do sociólogo Max Weber referente ao processo de desencantamento do mundo. Além disso, este estudo visa salientar a concepção freudiana referente à concepção de amor narcísico e de amor anaclítico, que são elucidadas na obra Sobre o narcisismo, de autoria de Sigmund Freud, e que serão abordadas posteriormente neste trabalho.
Palavras-chave ECC. Matrimônio. Sociedade Contemporânea. Psicanálise. Mal-estar. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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Introdução As Ciências da Religião (CR) constituem um vasto campo do saber que se dedica a uma análise científica da religião e que preza pelo estudo empírico dos aspectos individuais e sociais dos fenômenos religiosos. No âmbito epistemológico, o campo das CR é constituído de uma árvore do conhecimento composta de oito subáreas, cada qual com uma metodologia e aporte teórico próprios. Dessa forma, por intermédio da subárea da Psicologia da Religião, pretende-se analisar os aspectos subjetivos dos indivíduos participantes e os efeitos psicológicos produzidos por este serviço escola da Igreja Católica, intitulado Encontro de Casais com Cristo (ECC). Além disso, este estudo visa apresentar, sob um prisma psicanalítico, o contexto em que se encontra o sujeito “desamparado e em mal-estar”. Assim, este indivíduo, de acordo com suas necessidades, pode recorrer a uma mediação religiosa como o ECC, em busca de respostas para seu sofrimento emocional e amoroso. Primordialmente, deve-se salientar qual é o discurso religioso difundido por esse serviço da Igreja Católica, para que posteriormente se possa realizar a inferência com o desencantamento religioso. De uma forma geral, pode-se dizer que o discurso religioso oriundo do ECC preza, sobretudo, pela evangelização da família e pelo fortalecimento dos laços matrimoniais de seus participantes. Na premissa de promover “o cuidado matrimonial” dos casais paroquianos, surgiu o Encontro de Casais com Cristo. Essa ação pastoral familiar foi idealizada nacionalmente pelo Padre Alfonso Pastore, que iniciou o projeto em 1970, na Paróquia Nossa Senhora do Rosário, na Vila Pompeia, em São Paulo - SP. Segundo Pastore (2000), o propósito do ECC seria, de uma forma geral, realizar um “chamado da igreja” para que seus fiéis se atentassem à importância da família e do casamento. 94
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Nesse contexto, o discurso utilizado pela Igreja Católica e, mais propriamente, pela ação do ECC, segue em uma direção oposta ao discurso proferido pela sociedade contemporânea/consumo e que, em algum grau, podem fragilizar os laços amorosos, como é o caso do conceito de “amor narcisista” elucidado por Sigmund Freud.
Visão psicanalítica freudiana: sobre os impactos da sociedade contemporânea sobre os matrimônios católicos É de suma importância, inicialmente, realizar um aporte teórico da presente pesquisa sob a perspectiva das Ciências Psicológicas da Religião, e sua interpretação da subjetividade e da conduta dos indivíduos em contexto religioso. Assim, uma Psicologia da Religião não deve se pautar pela crítica ou pela defesa da religião, mas pelo seu serviço de conhecimento científico. Em outros termos, trata-se de realizar “[...] o estudo científico, descritivo e objetivo, do fenômeno religioso no que se refere ao comportamento humano.” (RODRIGUES; GOMES, 2013, p. 333) Cabe ressaltar outro ponto de referência neste trabalho, a saber, o conceito de sociedade contemporânea, que segundo Agamben (2009), recorre inicialmente ao conceito de Nietzsche, que vislumbra o que é ser contemporâneo como “intempestivo”. Assim, o autor relembra que, para Nietzsche, o ser contemporâneo possui, como uma de suas principais características, a sua “inadequação” ao seu próprio tempo; em outros termos, o indivíduo não se identifica com o contexto temporal em que vive. Um exemplo disso é o próprio Nietzsche, que considerava suas ideias à frente de seu contexto histórico.
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Dessa forma, para o autor supracitado, o ser contemporâneo é aquele que “pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p.5859). O referido autor ainda propõe outra forma a qual se pode definir a contemporaneidade, assim: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”. (AGAMBEN, 2009, p. 62) Nesse sentido, Agamben (2009) salienta que a escuridão, nesse contexto, não se remete à inércia, ou à falta de visibilidade do ser contemporâneo, ao contrário, diz respeito à capacidade de ver aspectos de seu tempo que estão encobertos nessa escuridão. Em outros termos, o sujeito contemporâneo, segundo o pensamento do autor supracitado, é capaz de vislumbrar aspectos obscuros de sua realidade social; aspectos, estes, que na maioria das vezes se encontram ocultos à uma analise superficial das esferas sociais. Em suma, segundo o pensamento do autor supramencionado, o sujeito contemporâneo deve aprender com a “escuridão” do presente e trazer a luz da interpretação do passado. Por isso a importância de se recorrer à história, para que, assim, possa iluminar as trevas da contemporaneidade e, dessa forma, interpretar o tempo presente de uma melhor forma. Nessa guisa, com o intuito de tratar o afastamento dos casais da paróquia, e ao mesmo tempo em que propõe um diálogo entre a Igreja e a sociedade contemporânea, o Encontro de Casais com Cristo se mostra como uma espécie de mediação religiosa (com enfoque no sacramento matrimonial) frente ao “mal-estar” social que pode impactar, direita ou indiretamente, o casamento dos paroquianos.
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Dessa forma, antes de se analisar os aspectos psicológicos e emocionais que podem ser observados nesse Encontro, salientase a necessidade de contextualizar o enfoque inicial que se propõe o ECC Católico. Este se fundamenta, de uma forma geral, em três etapas, cada qual com suas particularidades e direcionadas a alcançar um determinado objetivo. A primeira etapa é caracterizada por desempenhar a “quebra de gelo”, é o momento da convocação dos casais afastados da igreja e do início do processo de ressignificação do matrimônio. A segunda etapa é o reencontro, tratando da proposta de compromisso com a Igreja, foca-se no engajamento de casais da paróquia no ECC. A terceira etapa, enfim, possui um enfoque na reflexão das estruturas injustas da sociedade. Ao tratar do contexto de desencantamento do mundo67, o psicanalista brasileiro Joel Birman aponta que este referido estado (de desencantamento) traz, ao sujeito, um sentimento de desamparo, que em outros termos pode ser descrito como certa descrença para com os aspectos sociais, abrangendo os relacionamentos interpessoais e sua própria condição humana. Nesse sentido, serão tratados, no próximo tópico deste trabalho, os possíveis diálogos entre as teorias weberiana e freudiana, no que cerne ao conceito de desencantamento do mundo. Pode-se, inclusive, retomar ao conceito da castração realizada pela figura paterna para dialogar com esse processo do sujeito desencantado. Na concepção freudiana, Deus seria para o sujeito a repre-
67 O conceito sociológico de “desencantamento do mundo” foi utilizado amplamente por Max Weber. No entanto o psicanalista freudiano Joel Birman se utiliza desse mesmo termo para realizar uma dialética entre a visão weberiana e a freudiana; fundamentando-se principalmente na obra “Mal-estar na civilização”, de Sigmund Freud.
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sentação do pai simbólico68, no qual são refletidas/depositadas todas as suas experiências (medos/traumas) e recalques inconscientes. Dessa forma, o sujeito pode perder a referência de Deus, da religião, ou até mesmo de si. Esse estado, no qual o sujeito neurótico vivencia o desencantamento, pode prejudicá-lo em diversas esferas de sua vida, entre elas as relações interpessoais e sociais. Nesse viés, o(s) indivíduo(s) desencantado(s) se encontra(m) com as referências de normas e valores presentes no superego69 fragilizado. Assim, sem a repressão de que certa forma servia como estrato psíquico controlador de sua conduta social, o sujeito acaba dividido e sem qualidades, no que tange à sua persona sociocultural. (BIRMAN, 1998) Nesse viés se encontra um dos maiores desafios da ação da Igreja Católica, e mais especificamente do ECC. A problemática que se apresenta é de como propiciar a este sujeito desencantado uma ressignificação do sacramento matrimonial. Como relembra Schuchter (2014), de acordo com o pensamento weberiano, o desencantamento religioso também pode ser visto na mudança de paradigma entre o homem e a sua ideia de salvação. Dessa forma, se há uma negação por parte do sujeito da necessidade da Igreja, de seus líderes religiosos, assim como dos 68 Na visão psicanalítica freudiana, Deus seria a representação simbólica paterna, tanto em níveis de experiência do sujeito, quanto de idealizações feitas à essa imagem, que podem variar desde a concepção de um “pai amoroso” até a de um “pai extremamente severo e repressor”. 69 A segunda tópica freudiana estabelece que todo sujeito possui três esferas de ordem psíquica, que controlam e moldam sua conduta, assim como as experiências vividas. Assim, de forma geral, o ID é reservatório das pulsões de vida e morte, é estritamente regido pelo princípio do prazer. O ego estabelece o equilíbrio entre as exigências do ID e, às ordens do superego, é regido pelo princípio da realidade, é o regulador. O superego origina-se com o complexo de Édipo, a partir da internalização das proibições; seu conteúdo se refere às exigências sociais e culturais. (BOCK, 2009)
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sacramentos instituídos, este indivíduo se encontra em um processo de racionalização religiosa, que pode ser concebida como aspecto do desencantamento religioso. A partir dessa premissa, o ECC possui dois principais desafios: o primeiro seria a tentativa de propiciar um reencantamento religioso desse sujeito, procurando instaurar (ou reavivar) sentimentos, idealizações que façam com que esse indivíduo retorne à Igreja e professe sua fé cristã-católica. O segundo desafio estaria relacionado à proposta de ressignificação70 do sacramento do matrimônio, que preza por uma “nova visão”, ou renovação do amor inicial vivido no início do vínculo amoroso. Ao se pensar nas problemáticas e dilemas, (entre eles o desencantamento do mundo) que levaram esses indivíduos a participarem desse encontro para casais, pode-se analisar os possíveis impactos emocionais gerados – inicialmente – nesses indivíduos, ao serem submetidos a esse discurso religioso. Discurso, este, que é pautado pela figura de um Deus-pai amoroso e que se preocupa com a união da família e, sobretudo, com o sacramento71 do matrimônio. Nesse contexto em que se apresentam casais que, em sua maioria, se encontram emocionalmente fragilizados, as mensagens difundidas nas palestras da primeira etapa do ECC, em um primeiro momento, podem propiciar uma eclosão de emoções ligadas ao arrependimento, à carência afetiva, entre outros aspectos que, de alguma forma, remetem ao passado ou ao presente do relacionamento do casal. 70 Neologismo que se refere à atribuição de um novo significado de algo. 71 A definição de sacramento é atribuída a Santo Agostinho e é resumida como um sinal externo e visível de uma graça interior e espiritual. (NOVO DICIONÁRIO DE TEOLOGIA, 2011)
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Como referenciado anteriormente, esses encontros podem instaurar em seus participantes a importância da empatia do vínculo amoroso, em que o amor narcísico dá lugar ao amor anaclítico. E é aqui, neste exato ponto, que se vislumbra a contribuição teórica de Freud o presente estudo. Segundo a concepção psicanalítica freudiana, o amor narcísico pode ser entendido em um sentido egocêntrico, no qual o sujeito só ama alguém que reflete sua imagem, como o reflexo de um espelho. Em outros termos, no amor narcísico o sujeito só ama quando se reconhece no outro. Pode-se dizer que ama a si mesmo refletido(a) no(a) parceiro (a). Outro tipo de amor apresentado por Freud [1914] (1996)72 é o anaclítico, em que, ao contrário do narcísico, o sujeito identifica no outro a diferença e, dessa forma, ama a diferença do outro. Esse tipo de amor pode ser compreendido como um enfoque no outro, ou seja, o sujeito é ciente das diferenças entre ele e a outra pessoa, não necessitando ver refletida sua imagem no(a) parceiro(a) para amá-lo(a); até pelo contrário, o que ele deseja é a diferença. Diante dessa perspectiva, o autor salienta que, para superar esse “amor mercantilista” baseado em bens de consumo, é necessária uma ressignificação deste. Deve ser encarado como uma arte que exige humildade e esforço de ambas as partes envolvidas, para que, assim, se possa criar a possibilidade de um amor anaclítico. Em suma, com base na teoria psicanalítica de Freud é possível associar a proposta do ECC Católico por meio da concepção de ressignificação do casamento; nesse viés, o processo de atribuição de um novo significado para o matrimônio, que se dá 72 A primeira data, entre colchetes, se refere à publicação original da obra e a segunda, entre parênteses, remete à data da obra consultada. Nas demais citações, serão elucidadas somente a data da obra consultada.
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por meio do discurso religioso do ECC. Nessa premissa, o amor narcísico precisa ser superado, extinguido do casamento, para que, assim, possa dar lugar ao amor anaclítico.
O desencantamento do mundo: uma proposta de diálogo entre a sociologia weberiana e a psicanálise freudiana Através de uma análise da Psicologia da Religião, e mais especificamente da abordagem psicanalítica, pode-se contextualizar o desencantamento religioso, tratado por Weber na Sociologia, como um dos fatores que podem propiciar o aspecto de fragilidade desses laços amorosos. Nessa perspectiva, se os indivíduos se encontram afastados da Igreja, e/ou não se atêm ao matrimônio enquanto sacramento, nota-se uma mudança na conduta desses sujeitos. Para uma melhor compreensão do conceito weberiano de desencantamento do mundo, cabe ressaltar a figura do filósofo e sociólogo brasileiro Carlos Eduardo Sell, que discorre sobre esse conceito da teoria weberiana. Primordialmente, Sell (2015) aponta que, antes de se compreender a concepção de secularismo na obra sociológica de Weber, deve-se atentar aos dois ideais que estão quase sempre associados ao processo de secularização, sendo: a racionalização e o desencantamento do mundo. No pensamento weberiano, o conceito de desencantamento do mundo pode ser entendido em duas esferas: [...] o desencantamento religioso (entendido como ‘desmafigicação’), do desencantamento científico (entendido como ‘perda do sentido’),
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identificando, pois ‘dois significados’ no conceito, elide o fato de que também a ciência repousa sobre a desmafigicação. (SELL, 2015, p. 16-17)
Segundo Sell (2015), o conceito de secularização na obra weberiana é um tanto quanto fraco; se for vislumbrado enquanto termo, o processo de secularização pode ser encontrado ao se abarcar, de forma mais holística, sua obra. Na tentativa de elucidar como a secularização é entendida na obra de Weber, Sell (2015, p. 22) aponta que esse processo é dividido em uma estrutura “[...] bidimensional: a secularização tanto os processos de ruptura quanto de continuidade entre o moderno e suas raízes religiosas”. No intuito de instaurar a dialética entre a Sociologia e a psicanálise, este trabalho apresenta a visão freudiana sobre o desencantamento do mundo. Assim, de acordo com Birman (1998, p. 141), o desencantamento pode ser concebido “[...] como a racionalização do mundo pela ciência e o correlato esvaziamento dos deuses que encantavam o mundo produzem no sujeito um desamparo originário e inevitável”. Segundo o autor supracitado, esse conceito freudiano é difundido, sobretudo, na obra O mal -estar na civilização, publicada originalmente em 1929. Nesta, Sigmund Freud, apesar de não utilizar propriamente o termo “desencantamento do mundo”, ressalta que o sujeito na modernidade se encontra destituído de suas potencialidades, e desta forma é destinado ao desamparo e ao mal-estar. (BIRMAN, 1998) Nesse sentido de esvaziamento ao qual o sujeito se encontra no desencantamento, a religião perde o seu status de proteção e de salvação para esse indivíduo. Assim, a “fantasia da proteção de um Deus-pai”, não é mais alcançada e/ou vislumbrada por esse sujeito, que padece então de um desamparo inevitável, como relembra a teoria freudiana. 102
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Para se tratar do caráter do desencantamento no viés psicanalítico, é de suma importância frisar a ideia de religião expressa por Freud, que é concebida como uma neurose infantil do sujeito. Ao retomar sua concepção de religião enquanto neurose infantil, Freud [1929] (2011, p. 17)73, esclarece que: [...] o homem comum entende como sua religião, o sistema de doutrinas e promessas que de um lado lhe esclarece os enigmas deste mundo com invejável perfeição, e de outra lhe garante que uma solícita Providência velará por sua vida e compensará numa outra existência as eventuais frustrações desta.
A partir desse fragmento, o autor supracitado nos remete ao pensamento de que o sujeito, ao perder o “encantamento” pela religião ou até mesma ao encará-la como uma neurose infantil, pode se lançar ao mal-estar e/ou ao desprazer. E assim, para evitar o desprazer, o sujeito busca o sentido da vida que, segundo Freud (2011), é permeado pela procura da felicidade/prazer. No entanto, de acordo com o autor em foco, a felicidade não é eterna, mas sim passageira; em outros termos, as pessoas não são felizes, mas estão felizes, dada a ideia de fenômeno episódico. Através de seu pensamento, Freud (2011), aponta que a busca pelo prazer, em certas ocasiões, pode levar os indivíduos a procurar na religião um alento para o seu estado de desamparo, mesmo que como paliativo. Seguindo essa concepção, observa73 A primeira data, entre colchetes, se refere à publicação original da obra e a segunda, entre parênteses, remete à data da obra consultada. Nas demais citações, serão elucidadas somente a data da obra consultada.
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se que “[...] grande número de pessoas empreende conjuntamente a tentativa de assegurar a felicidade e proteger-se do sofrimento através de uma delirante modificação da realidade. Devemos caracterizar como tal delírio de massa também as religiões da humanidade”. (FREUD, 2011, p. 26) No tocante ao pensamento da expressão “desancamento do mundo”, a análise da obra freudiana O mal-estar na civilização, mesmo sem utilizar essa expressão, fornece subsídios para um processo dialético entre a sociologia e psicanálise. Freud (2011) estabelece primordialmente que a busca pelo prazer não se limita somente ao campo religioso, salientando que essa “procura” se dirige aos demais constructos socioculturais como a ciência e a arte; mesmo que ambas fracassem no quesito “promoção da felicidade duradoura”. Neste intuito, a concepção freudiana elucida que, por mais que arte possa ser fonte de momentos de alegria, não é capaz de “[...] produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real”. (FREUD, 2011, p. 25) Nesse sentido, Birman (1998) concebe o desencantamento religioso como uma tentativa do sujeito de fingir para si mesmo, e/ou para as outras pessoas, que ele ainda se encontra firmemente ligado à religião, mas, no entanto, já se encontra apartado dela há algum tempo. Dessa maneira, o pensamento freudiano concebe o processo de racionalização da religião, que acaba por instaurar novas perspectivas acerca da necessidade de significação da religião para o homem. Então o sujeito, ao migrar sua crença para a “nova religião” que se apresenta, a saber, a ciência moderna, acaba por se sentir desamparado por não encontrar nela as respostas que procurava para o anseio de sua alma. Nesse viés, o intuito científico de fornecer
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ao homem as respostas sobre “[...] a verdadeira Arte, verdadeira Natureza, o verdadeiro Deus, ou mesmo a verdadeira Felicidade, fracassa miseravelmente”. (SCHUCHTER, 2014, p. 46) Diante desse paradigma, o sujeito neurótico insatisfeito com as repostas dadas pela ciência moderna se volta para sua incompletude, e se encontra novamente desamparado. Esse estado de desamparo pode, muitas vezes, levar esse sujeito à tentativa de retorno à “ilusão religiosa”, que pode ser vislumbrada pela ideia de reencantamento. Nessa guisa percebe-se, segundo o pensamento de Schuchter (2014), que o processo de desencantamento do mundo instaura, de alguma forma, a necessidade de um reencantamento. Em outros termos, nessa concepção, observa-se que: [...] desencantamento não é nenhum processo linear e irreversível. Trata-se de um longo processo, conduzido, principalmente, pela religião de salvação judaico-cristã e pela ciência grega e moderna, no qual o desencantamento e o reencantamento estimulam-se mutuamente, mas no qual também a constelação fundamental das esferas de valor e ordens de vida veem-se profundamente alteradas. (SCHUCHTER, 2014, p. 49-50)
Ao analisar o pensamento do sociólogo Schuchter (2014), pode-se perceber a proposta de diálogo entre a teoria psicanalítica freudiana e a sociológica weberiana, em que ambos tratam de um duplo desamparo do sujeito ou, em outros termos, um duplo desencantamento. No paradigma sociológico observa-se o conceito de “desencantamento”; já na perspectiva freudiana, vislumbra-se o mal-estar social, ou desprazer, e sua busca pela felicidade.
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Conclusão Por intermédio dos teóricos utilizados neste trabalho, pode-se observar características marcantes da sociedade contemporânea e sua relação com o âmbito religioso. Com o propósito de estabelecer um diálogo entre pensadores clássicos, como o sociólogo Max Weber e o psicanalista Sigmund Freud, percebe-se que o indivíduo contemporâneo se encontra não desencantado, mas “duplamente desencantado”.74 Nessa perspectiva, percebe-se os desafios enfrentados pelo ECC na contemporaneidade, ao tentar promover uma consolidação do sacramento matrimonial, que por sua vez se encontra permeado por um contexto sociocultural caracterizado pelo desprazer. Assim, os vínculos amorosos e religiosos apresentam aspectos de porosidade, ou nos termos de Bauman, “formas líquidas”, tanto no âmbito social quanto nas formas de relacionamento, como elucidado em sua obra intitulada Amor Líquido. Em suma, este estudo visa salientar que caso a religião deseje continuar relevante ao viés sociocultural ao qual está inserida, é de suma importância a promoção do diálogo Igreja/sociedade. Como dito anteriormente neste trabalho, os sujeitos não possuem a mesma “visão de mundo” e, além disso, a sociedade contemporânea também dispõe de seus “deuses” e ideologias religiosas que são amplamente divulgadas como substitutas às tradições religiosas ditas tradicionais. Nesse impasse, o sujeito pós-moderno se encontra entre um verdadeiro “cardápio religioso a la carte”, em que o sincretismo 74 Esse “duplo desencantamento” se refere, primeiramente, à religião e aos aspectos míticos em geral; e posteriormente, o segundo desencantamento com a ciência e as promessas da modernidade.
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religioso e/ou ideológico aparece como mais uma opção às restrições de instituições religiosas ortodoxas. Sendo assim, as instituições religiosas tradicionais tendem a “afrouxar” seus discursos com o intuito de acomodar esse sujeito “duplamente desencantando” mas que, em certa medida, ainda recorre à religião como reduto contra o desamparo e ao mal-estar da contemporaneidade.
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Desafios e possibilidades da experiência de encontro inter-religioso: uma investigação fenomenológica
Yuri Elias Gaspar Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil (2014). Professor adjunto da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - Campus JK. Miguel Mahfoud Doutorado em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Brasil (1996). Professor associado aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais.
Introdução “Embora haja tanto desencontro pela vida”, “a vida é arte do encontro”, já dizia o grande poeta Vinícius de Moraes (1988). Não foi por acaso que invertemos a ordem dos famosos versos, pois triste é constatar que, de fato, o desencontro é tanto e tem chamado tanto a nossa atenção, fazendo-se presente nas relações entre pessoas, grupos, comunidades, povos, países. Triste também é perceber que, diante de tantos desencontros, muitas pessoas, cansadas e machucadas, reafirmam que a vida é a impossibilidade do encontro. Mas, permitindo-nos retomar à mesma canção de Vinícius, “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”. Não uma esperança vazia, ideológica ou ilusória, pois a ferida aberta de um desencontro reacende a chama da nossa espera por reais experiências de encontro: “é assim como a luz no coração”. É com essa chama que reconhecemos não só como os desencontros nos ferem, mas como os encontros podem efetivamente nos corresponder. Aqui podemos nos encontrar (inclusive conosco mesmos) e nos abrir para reconhecer a arte da vida do encontro e no encontro. Embora haja tantas possibilidades de encontros-vida, uma modalidade em especial nos interessa: o encontro entre “diferentes”. Não de qualquer diferença, mas daquela (seria mesmo diferença?) que se joga na raiz, que tende a tocar no horizonte último da vida: a diferença inter-religiosa. Já é perceptível, nesta primeira problematização, o emergir de uma provocação: a diferença é um fato, mas a experiência do encontro pode revelar uma proximidade surpreendente. Na diferença, pode emergir uma unidade. No relacionamento inter-religioso, o desencontro tem sido uma constante, além de ser, em algumas situações, assustado-
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ramente perigoso (TEIXEIRA, 2010). A tensão toma a cena no desenrolar da relação, podendo se concretizar implícita ou explicitamente por meio de formas diversas: estranhamentos, preconceitos, discordâncias, mágoas, brigas, ódios, guerras “santas”, genocídios… Tensão que se revela tanto no relacionamento interpessoal quanto em modalidades mais amplas de relação social. Tensão por vezes velada, por vezes assumida: “religião não se discute”, afirma o antigo ditado. Tensão por vezes incentivada, o que pode tanto dificultar a constituição e manutenção do relacionamento baseado no reconhecimento recíproco, quanto levar, em última consequência, a verdadeiras batalhas. Inclusive, muitas das guerras foram (e continuam) sendo justificadas “em nome de Deus” – tenha Ele o nome que for – frente àqueles que não compartilham daquela crença. Enquanto aparecem, em vários países (e entre países), situações de desencontro e violência suscitadas pela diferença religiosa, não só a relação entre pessoas, povos e países se vê ameaçada, como também a própria existência do ser humano. Tanto que muitos dizem, e propõem, que seria melhor que a religião não fizesse parte da vida das pessoas, grupos e nações – em síntese, que não existisse –, já que ela seria o fator que gera mais desencontro e violência. Se no relacionamento inter-religioso o desencontro é dramático (e por vezes trágico), o encontro, quando se realiza, mesmo marcado por tensões, pode ser gerador de vida, ocasião de reconhecimento de uma proximidade fundamental na diferença, que pode lançar provocações para a totalidade da vida. Acontecimento que surpreende a todos os envolvidos, por mais que seja planejado: ele instaura uma novidade que pode abrir novos caminhos para o relacionamento inter-religioso. Desenrolando-se em nível interpessoal, o encontro inter-religioso pode inundar a constituição das
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relações sociais mais amplas, contribuindo para a constituição de uma cultura que o favoreça. Desenrolando-se em nível macro social, ou sendo proposto por figuras e instituições de referência, o encontro inter-religioso pode se constituir como recurso cultural para a transformação dos relacionamentos cotidianos. Tanto é assim que, nos últimos anos, ampliaram-se os esforços para promover explicitamente o encontro inter-religioso. São iniciativas que nasceram de diferentes tradições religiosas e em diversas partes do mundo; experiências em ato que evidenciam a urgência e a radicalidade do encontro como resposta a tantos desencontros, oferecendo indicações preciosas para a constituição do relacionamento frutífero com o diferente (na diferença) e para construir um mundo mais humano. Não se trata de propostas genéricas de como “deveria ser” a relação inter-religiosa, mas de situações concretas que evidenciam o valor de contemplar a experiência, para dela aprender como o encontro pode acontecer. A importância de investigar efetivos encontros inter-religiosos é evidenciada por Sodré (2007) ao destacar que experiências concretas de acolhimento e diálogo entre sujeitos de diferentes perspectivas religiosas podem se tornar exemplos vivos, que mostram a possibilidade de aprofundamento da experiência religiosa no reconhecimento da alteridade e no respeito à pluralidade de manifestações da religiosidade. Nesse sentido, o Brasil apresenta uma realidade particularmente interessante e provocadora, marcada tanto por uma intensa e multifacetada convivência entre pessoas de religiões diferentes, quanto por inúmeros exemplos de encontros inter-religiosos que estruturam relacionamentos baseados contemporaneamente no reconhecimento (e enriquecimento) mútuo e na vivência da própria religiosidade na relação com a alteridade.
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A partir dessa problematização, realizamos pesquisa de doutorado (Gaspar, 2014) com o objetivo de investigar a constituição e o dinamismo próprio da experiência de encontro inter-religioso a partir de quem pôde vivenciar unidade dentro da diversidade de posições religiosas. Para tanto, adotamos a Fenomenologia Clássica de Edmund Husserl (2006, 2012) e Edith Stein (2003, 2005) como base de nosso referencial teórico-metodológico (Ales Bello, 2004) e entrevistamos seis pessoas que, de fato, carregam essa experiência de encontro inter-religioso consigo. Vejamos quem são essas pessoas75: Dom Bernardo, católico, é prior de um mosteiro trapista no Brasil. Ele é neto de imigrantes judeus da Europa Oriental. Criado num ambiente tipicamente americano, foi também formado segundo as tradições judaicas. Mesmo reconhecendo o valor do Judaísmo em sua formação, maravilhou-se pela presença de Jesus e converteu-se ao Catolicismo após uma passagem pela Igreja Presbiteriana. Interessado na vida monástica, primeiramente se tornou padre jesuíta para só depois tornar-se monge trapista. Carolina, budista, é participante ativa da SokaGakkai International, onde é responsável por acompanhar os membros dessa organização, especialmente as jovens budistas de sua faixa etária. É em casa o lugar por excelência onde sua convivência inter-religiosa acontece. Filha de pais católicos, Carolina transformou a resistência inicial em simpatia, diálogo e boa convivência. Mesmo permanecendo católica praticante, sua mãe não se opôs que Carolina se convertesse ao Budismo, e também participa de algumas reuniões da SokaGakkai. Criado no meio evangélico, Davi, desde muito cedo, participou ativamente da vida da Igreja, interessando-se na adolescência pelos 75 A partir da autorização dos entrevistados, optamos por manter seus nomes próprios reais na apresentação dos resultados, pois compreendemos que a pessoalidade encarnada em cada história é, desta forma, melhor respeitada.
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caminhos teológico e pastoral. Enquanto estudou em colégios confessionais, teve oportunidade de se relacionar com pessoas de outras perspectivas religiosas. Na graduação em Psicologia, aprofundou relacionamentos dessa natureza, especialmente com católicos e espíritas, cultivando a amizade e a disponibilidade para conviver e aprender com o outro. Aprofundando-se na própria perspectiva, tornou-se mestre em Teologia e pastor, sem abandonar o percurso já feito: busca integrar a contribuição das duas vertentes em que se formou. Assim, hoje, atua como psicólogo clínico e é um dos líderes de uma comunidade evangélica, bem como continua a cultivar sua abertura para se relacionar com o diferente, participando de algumas modalidades de diálogo inter-religioso, entre outras iniciativas. José Luiz, espírita, carrega uma trajetória familiar interessante. De católicos não-praticantes, ele, sua mãe e irmãos converteramse ao Espiritismo. Anos mais tarde, a mãe e os irmãos tornaramse evangélicos batistas, enquanto ele permanece espírita. Seu pai, mesmo por não frequentar nenhuma religião, é descrito como “extremamente espiritualizado” e dedicado ao bem do próximo. Completando o quadro, sua esposa, oriunda de uma tradicional família mineira, é católica, ministra da eucaristia, e seus filhos também são católicos praticantes. E é nesse seio familiar que José Luiz reafirma sua experiência de “boa convivência” inter-religiosa. Miriam é descendente de imigrantes judeus que se refugiaram no Brasil devido às perseguições das duas Guerras Mundiais. Ela foi criada num lar judaico e formada numa escola e comunidade judaicas. Nutrindo-se dessa raiz, Miriam se abre e se apropria de outras perspectivas religiosas – tais como Budismo, Espiritismo e Catolicismo –, retoma elementos de sua tradição judaica, e realiza uma síntese pessoal de todas as tradições religiosas que herdou e encontrou em sua trajetória.
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Silvia, candomblecista, realizou longo percurso dentro do universo protestante, formando-se em Teologia e atuando como reverenda na área pastoral. Além de teóloga, Silvia também é filósofa, mestre em Ciências da Religião e doutoranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero, Feminismo. Ao investigar gênero, raça e poder tendo como universo o Candomblé, tornou-se filha de santo e hoje, mesmo afastada das instituições evangélicas em que inicialmente se formou e atuou, continua mantendo a convivência com pessoas desse movimento evangélico, e também ministra aulas numa faculdade ecumênica. As entrevistas foram realizadas individualmente, tendo como ponto de partida a seguinte pergunta: “Gostaria que você me contasse a sua experiência religiosa, descrevendo tanto a sua história de adesão à sua perspectiva religiosa quanto de relacionamento com pessoas de outras religiões”. Quando necessário, os sujeitos foram convidados a esclarecer pontos de especial interesse para a pesquisa. A transcrição dos relatos foi analisada fenomenologicamente e os resultados foram organizados em narrativas, de modo a acompanhar e aprofundar a trajetória da vivência religiosa de cada sujeito e os encontros inter-religiosos por eles vivenciados. Para os fins deste capítulo, optamos por apresentar a generalização qualitativa dos resultados alcançados. Trata-se da experiência-tipo (Van der Leew, 1964) da constituição do encontro inter-religioso que apreendemos a partir da análise das entrevistas. Buscamos explicitar as tensões e as possibilidades características da experiência de encontro inter-religioso que emergiram na descrição da vivência e da elaboração da pessoa em sua relação com a alteridade religiosa76. 76 Quando se mostrou pertinente, inserimos notas de rodapé mostrando como nossas compreensões se articulam com contribuições teóricas.
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A constituição da experiência de encontro inter-religioso Aceitando o desafio de analisar experiências religiosas e inter-religiosas de nossos seis sujeitos, adentramos um universo plural, multifacetado, cheio de nuances, tensões, descobertas e aberturas. A diversidade se apresentou a nós em múltiplos tons, em tantas formas possíveis de viver a fé, de elaborar experiências, de se posicionar no mundo, de configurar relações. O contato com a alteridade, e em particular com a alteridade religiosa, também pôde ser apreendido em sua riqueza de possibilidades, provocando-nos em nosso ensejo de delinear como pode se realizar a unidade dentro da diversidade religiosa. No impacto com uma alteridade religiosa, a pessoa colhe uma provocação. Não fica impassível diante do que se lhe apresenta: de algum modo, o real a solicita. Mas não se trata de qualquer solicitação, já que ela se vê tocada num ponto radical de sua constituição: é a resposta pessoalmente reconhecida às perguntas últimas que se coloca em jogo, é a sua compreensão da totalidade da vida e do fundamento do seu ser que toma a cena nessa modalidade de relação. Em síntese, é a sua experiência religiosa77 que se apresenta e, de algum modo, é solicitada no impacto com a alteridade. Como evidencia José Luiz em sua experiência: “Meus dois filhos [católicos] têm um conceito de vida bem ético. Todo mundo elogia. Então para mim é o que basta. Se os outros estão vendo assim, se eu sei como eles são, e aos olhos de 77 Segundo Giussani (2009), a experiência religiosa, compreendida enquanto experiência humana, se articula ao senso religioso, descrito como a “capacidade que a razão tem de exprimir a própria natureza profunda na interrogação última”. A experiência religiosa se constitui, então, como resposta às perguntas últimas, no relacionamento do eu com uma Presença misteriosa reconhecida como fonte de sentido.
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Deus também, é o que basta. Se eles vão acreditar no que eu acredito… Às vezes eu ficava um pouco apreensivo com eles em termos de limitação de visão, mas hoje não. Acho que a ideia espírita te abre formas de enxergar muito diferente”. Impacto que poderia ser desconsiderado para não ser vivido e elaborado, já que alguém, assustado, receoso ou ferido, poderia fechar os olhos para a realidade que se apresenta. No entanto, não foi isso que apreendemos. Impactada, a pessoa pode decidir, ainda que implicitamente, acolher a provocação que lhe chega, dando espaço para que a relação continue a se delinear, continue a se constituir. Nesse ponto, o outro efetivamente adentra seu universo, das mais diferentes formas. Formas que muitas vezes a machucam, como quando a pessoa vive uma experiência de não correspondência com algum ponto radicalmente significativo que estrutura o seu ser no mundo. A provocação acolhida – que poderia se tornar uma ocasião de encontro – se constitui, então, como experiência de desencontro inter-religioso, ou desencontro entre quem abraça alguma religião e um contexto social supostamente laico. A tensão da diferença, inicialmente percebida, se instaura e passa a dar o tom da relação. Não se trata de uma experiência tranquila, a pessoa vive a dor por se dar conta de uma realidade que não lhe corresponde, por estar imersa numa relação na qual não há espaço para a reciprocidade, em que ela possa expressar livremente a própria religiosidade sem ser julgada negativamente ou sem que o outro lhe tente subjugar. Nessas modalidades de relação, Dom Bernardo se vê manipulado; Carolina, julgada preconceituosamente; Davi, hostilizado; José Luiz, desrespeitado; Miriam, desconsiderada; Silvia, discriminada. Carregando essa dor por não se perceber considerada e buscando cuidar do que lhe é radicalmente significativo, a pessoa Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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pode se posicionar mantendo a distância inicialmente percebida, por vezes silenciando; por vezes evitando o conflito e as discussões polêmicas em torno da questão religiosa; por vezes marcando a diferença entre as perspectivas em jogo; por vezes desqualificando a intenção do outro; e por vezes exigindo respeito. Não se trata de reação impulsiva, já que ela, percebendo-se incomodada, desconsiderada, enganada ou ofendida, colhe um juízo de não correspondência e afirma, na relação, o que lhe é radical. Como pontua Silvia: “Não quero enxotar ninguém. Se é do outro, tá… Mas assim: não entra na minha individualidade porque a minha essência… No que é essência, para mim nisso eu sou radical, então não toca porque eu já estou definida”. Em sua elaboração, quando não se vê considerada em seu centro, não faz sentido para a pessoa continuar na relação, ou manter o modo como esta se estrutura naquele momento, ou ainda aceitar as suas implicações. Dom Bernardo não pode colocar entre parênteses a verdade que reconheceu; Carolina não quer viver sem diálogo; Davi não aceita relativizar tudo; José Luiz não prostitui seus princípios; Miriam não pode abrir mão do que para ela é mais importante; Silvia não admite que entrem em sua essência. Não se trata de um posicionamento fácil, uma vez que a pessoa, por vezes, vive o drama de se distanciar ou mesmo de precisar romper relações que lhe são significativas. Consequências não necessariamente desejadas, mas que se mostraram necessárias ou inevitáveis para que ela conseguisse afirmar o que compreende ser central para si em termos de vivência religiosa. Não obstante, mesmo nesses momentos de distanciamento e ruptura, colhemos o desejo de continuar a cuidar do outro de alguma forma. Tanto que Dom Bernardo, compreendendo a posição de sua família, pede a Deus para que tudo se resolva; Carolina, dian-
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te da resistência inicial, continua a desejar a harmonia em seu ambiente e a se mobilizar para tanto; Davi cultiva a esperança de que o relacionamento seja efetivamente respeitoso e pessoal; José Luiz e Silvia permanecerem se relacionando mesmo após tentativas de conversão ou conflitos; Miriam busca compreender e respeitar a posição de seus familiares e de seu, agora, ex-marido. Ainda diante de relações de desencontro, a pessoa, ao retomar o fundamento do próprio ser, o valor do outro para a realização de si e a correspondência pessoal de uma experiência de encontro, se posiciona diante do outro afirmando a sua abertura, a sua disponibilidade para o encontro inter-religioso e buscando dar sua contribuição para que a relação se estruture em outros termos. É nesse sentido que Carolina afirma: “Com o tempo, com o meu comportamento, com as questões positivas que o Budismo foi gerando na minha vida, fui mostrando para eles que as coisas podiam ser de outra forma. E aí a gente começou a entrar em harmonia e dialogar, e eu me converti dois anos depois”. Diante de uma experiência de desencontro, a pessoa reconhece um ponto fundamental e decide afirmá-lo como ocasião para provocar o outro, solicitando que ele reconsidere sua posição inicial de fechamento. Marcando a própria posição, espera e busca uma correspondência. Assim, explicita as razões da própria religiosidade para superar preconceitos; evidencia pontos compartilhados para possibilitar o reconhecimento de uma proximidade; solicita o outro a considerar fatores inicialmente não problematizados buscando criar uma nova possibilidade de relação; aceita suspender certos princípios para afirmar outros mais fundamentais, podendo inclusive ceder para não criar atrito em nome da boa convivência; protela a adesão a algo significativo para respeitar o momento do Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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outro; muda o próprio comportamento na relação para evidenciar o bem de sua religião com o intuito de quebrar resistências e promover o diálogo. Muitas são as possibilidades, diferentes modos de buscar um mesmo objetivo: a transformação daquela relação de desencontro em encontro. Ao se colocar nessa posição diante do outro, a pessoa não necessariamente elimina a tensão inicial, mas esta não dá mais o tom da relação. Ao atuar sua abertura, afirma uma possibilidade, dando testemunho da sua posição como uma proposta que espera uma resposta78. E quando ela se coloca nessa posição, o encontro pode realmente acontecer e a relação efetivamente frutificar: Dom Bernardo transforma separação em reaproximação; Carolina, resistência em simpatia; Davi, rejeição em proximidade; José Luiz, desrespeito em boa convivência; Miriam, desconsideração em aceitação; Silvia, discriminação em respeito. É justamente a possibilidade do emergir da novidade no impacto com a alteridade religiosa que, no fim, abre caminho para a constituição da experiência de encontro inter-religioso. Qual é a dinâmica própria dessa experiência? Eis que algo acontece: assim se inicia a experiência de encontro . A pessoa é surpreendida por um acontecimento que abre novas possibilidades para si. Seja quando algo imprevisto irrompe em seu universo, seja quando a própria pessoa busca ativamente o que lhe interessa. Seja quando se trata de um primeiro contato, ou quando ela redescobre algo que já estava presente 79
78 Segundo Giussani (2004), o processo educativo efetivamente se estrutura na medida em que o sujeito responde à proposta recebida a partir de um critério pessoal. 79 Tanto Guardini (2002) quanto Romano (2008) evidenciam que está no acontecimento a força de provocação do encontro. Nesse sentido, o encontro é sempre novo (mesmo que seja com a situação de sempre), pois emerge dentro de um horizonte diferente de significado, e criativo, pois nos abre para algo que transcende o que está estabelecido.
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em seu horizonte: uma situação cotidiana, uma relação que lhe é familiar. Seja por uma via ou por outra, o encontro se constitui na experiência na medida em que a pessoa colhe uma provocação para si que desperta um dinamismo, na qual se vê pessoalmente envolvida. Em suas elaborações, Davi diz: “[meus amigos espíritas] me lembram que eu sou amado. Incrível isso, né?! Eu me lembro de uma conversa que tive com Roberta. (…) E ela citou literalmente Paulo a Timóteo que fala: “o espírito que Deus nos deu não é de temor, mas de poder, amor e equilíbrio”. Eu falo: “uai, se Roberta tem capacidade de citar o apóstolo Paulo assim para compreender a minha experiência… Pô, fala sério!” [risos]. Como é que eu vou ficar longe? Então, foram experiências humanas grandes que nos fazem querer estar perto.” Em síntese, o encontro inter-religioso é o emergir da novidade que surpreende, mesmo quando se trata de algo já desejado ou quando se desenrola numa relação já existente. Dom Bernardo se impacta com a música cristã que anuncia o nascimento do Rei de Israel; Carolina se encanta com a abertura e maturidade do primo evangélico; Davi se surpreende com a amiga espírita que cita o Evangelho para compreender a sua experiência; José Luiz admira o modo como sua esposa católica vive a própria religiosidade; Miriam se maravilha com a leitura do livro do católico Giussani; Silvia, ainda pastora, se desconcerta diante da liberdade da mãe de santo. Esse primeiro impacto, surpreendente com a alteridade que instaura uma novidade, já é vivido como experiência de correspondência, mesmo que seja apenas intuída, sinalizada, vislumbrada. Ainda que perceba um estranhamento inicial ou que não compreenda claramente os significados de tal provocação, a pessoa já vive uma correspondência pessoal, intui algo pelo qual vale a pena se lançar e se mobiliza para ir em direção ao que se
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insinuou em sua experiência. Miriam assim nos relata uma de suas experiências de encontro: “Eu sentei e a moça deu o Johrei [imposição de mãos]. Bom… são 15 minutos que a gente fica lá. Da hora que sentei até a hora que levantei eu chorava… Eu chorava, eu chorava e vinha um calor. Não sabia [por que chorava]. Eu só senti um peso saindo, um peso saindo, assim, um alívio. Eu falei: “tem alguma coisa estranha nisso, eu quero saber o que é””. Dom Bernardo, mesmo sem saber, se maravilhava ao escutar o nome de Jesus quando criança e, mais velho, procura conhecer mais a fundo este homem. Carolina, receosa por não concordar com algumas crenças de sua tia católica, se dispõe a dialogar abertamente. Davi, achando a missa horrível, continua a frequentá-la com o gosto de compartilhar e de oferecer o seu olhar. José Luiz, estranhando o casamento, permanece participando da cerimônia porque direciona seu olhar à sua esposa, considerando-se um convidado muito especial. Silvia, ainda pastora, mesmo incomodada, continua pesquisando, querendo compreender mais a fundo o Candomblé. Portanto, é por viver e vislumbrar algo correspondente para si que a pessoa colhe uma realização por participar daquele encontro, se dispondo, então, a continuar a se envolver, a levar a sério a provocação recebida, a se empenhar para aprofundar a relação. Mesmo quando a novidade que nasce do encontro instaura uma tensão ou traz problemas na convivência com outros, a pessoa permanece sustentando sua posição de abertura80 por carregar uma evidência de correspondência presente naquela relação. Trata-se de uma novidade que a um só tempo desconcerta e atrai: surpreendida, a pessoa é provocada a retomar com vitalida80 Sobre a constituição de uma experiência de abertura que nasce do impacto com o real, confira o livro O senso religioso, de Luigi Giussani (2009) e o livro Experiência Elementar em Psicologia: aprendendo a reconhecer, de Miguel Mahfoud (2012).
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de o que lhe acontece. O novo solicita, coloca questões, explicita tensões, desperta elaborações, abre caminhos. No entanto, a pessoa não se perde nessa provocação: a todo tempo está verificando o que lhe acontece, tendo como crivo uma referência pessoal, de modo a se certificar se é real e verdadeira aquela hipótese por ela encontrada, aquela correspondência inicialmente vivida. Não se trata de uma verificação qualquer, já que a pessoa, justamente por se encontrar diante de uma alteridade religiosa, é solicitada a reelaborar um ponto radical da própria compreensão de si e do mundo. Nesse sentido, ela não se abre para o encontro com o outro por estar distraída, por não se interessar, ou por decidir não aderir a nada para não se alienar, como forma de mostrar suposta abertura. Pelo contrário: tendo escolhido entrevistar sujeitos enraizados na própria tradição, pudemos apreender como a pessoa, que tem presentes as próprias referências pessoais e que tem clareza do que lhe faz sentido, pode realizar esse movimento de verificar o que acontece com as próprias referências, abrindo-se para a novidade que nasce do encontro. Como diz Dom Bernardo: “É interessante descobrir que é possível ter uma relação visceral a duas realidades diferentes. Por um lado, é impossível imaginar minha vida sem Jesus. (…) Ele é a minha salvação. (…) Por outro lado, uma reação típica: quando leio num jornal sobre um crime cometido, a primeira coisa que meu coração diz é: “tomara que não seja judeu” [risos]. Porque há essa preocupação e essa identificação. Houve uma época em que eu imaginava que, com o passar do tempo, eu ficaria cada vez mais católico e menos judeu, mas faz anos, anos e anos… E nem quero que seja assim. É uma riqueza para mim.” Diversas são as possibilidades de verificar o que acontece. A verificação pode se dar na convivência cotidiana; numa ação conjunta com um objetivo comum; na partilha de práticas reli-
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giosas; no diálogo explícito. Por vezes, inclusive, a pessoa recorre a companhias para ajudá-la a sustentar sua disponibilidade para o outro e a verificar de modo aberto. Independente do espaço e dos recursos para que isto aconteça, a pessoa realiza um movimento de comparação entre a sua referência pessoal e aquilo que encontra, de modo a colher um juízo para si naquela experiência. E a pessoa reelabora, também, a própria identidade no encontro com o outro81: é na relação em si, e não fora dela, que ela se vê solicitada a se contemplar e redescobrir. Um processo que pode conduzir aos mais diversos resultados. A pessoa pode reafirmar, retomar ou reinterpretar a própria posição e a tradição religiosa da qual faz parte; pode identificar proximidades, distâncias e possibilidades de relacionamento; se apropriar de contribuições do outro para aprofundar a própria perspectiva; pode articular criativamente elementos, religiosos e/ou culturais, das diferentes religiões em jogo; pode assimilar os fatores que fazem sentido para si, integrando e sintetizando de modo próprio; reconhecer uma dupla inserção, que pode assumir diferentes formas; pode até mesmo reconhecer e aderir à religião anunciada pelo outro. Diante dessa multiplicidade de possibilidades de elaboração, colhemos uma mesma raiz: um posicionamento no qual a pessoa, verificando, afirma o que emerge como mais verdadeiro para si, como mais correspondente. Novamente, não se trata de um processo puramente intimista ou racionalista, já que a verificação é despertada, vivida e sustentada pela relação: é diante da alteridade que a pessoa se posiciona. No encontro com o outro, ao realizar essa verificação, a pessoa identifica e afirma uma experiência ainda mais central, uma verda81 Para a compreensão de diferentes formas de reelaboração da própria identidade a partir do impacto e da relação com o outro, confira as elaborações realizadas por Pierre Sanchis (2012) sobre a dinâmica do sincretismo.
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de ainda mais radical82, que se configura como ponto fundante de sua abertura para a diversidade, que sustenta sua fidelidade à correspondência vivida. Essa experiência emerge como critério que possibilita com que a pessoa dê continuidade ao encontro vivido com a alteridade e afirme plenamente o valor de si, do outro, da relação e da vida mesma. O ponto fundante, para Dom Bernardo, é a confiança em Deus. Para Carolina, a convivência harmoniosa, a felicidade e a paz. Para Davi, a afirmação do caráter relacional de Deus, amor primário, e a valorização da humanidade comum. Para José Luiz, a centralidade da justiça divina e da moral cristã. Para Miriam, o fato de sermos todos filhos de Deus e estarmos em busca de algo. Para Silvia, a marca mística e a possibilidade de reconhecer a manifestação de Deus de várias formas em vários lugares. Cada qual, a seu modo, seja numa relação com o transcendente, seja numa relação mais profunda consigo mesmo, identifica numa experiência radical (que também é relacional) o fator estruturante da relação. O encontro com o outro solicita a pessoa a retomar o fundamento do seu ser, que acaba se revelando, em sua elaboração, como o fundamento de todo ser. A pessoa, ao identificar a raiz da própria verdade, ancorada em sua religiosidade e elaborada a partir do encontro com o outro, entende identificar também a raiz de toda verdade, fonte a partir da qual cada sujeito (individual ou coletivo) ou cada religião pode se estruturar. A partir desse reconhecimento, a pessoa vive uma realização também por, no confronto com o diferente, retomar a verdade que encontrou de forma mais profunda e por se dar conta de sua abertura para afirmar a si mesma e ao outro. 82 Reconhecemos em Teixeira (2002) elaboração semelhante: “O diálogo inter-religioso faculta, assim, a experiência rica e inovadora de ‘celebração de uma verdade que é mais elevada e mais profunda que a verdade parcial’ reivindicada pelos interlocutores em questão, ainda que os mesmos possam estar persuadidos de seu engajamento incondicional com sua verdade particular (p. 160).
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O reconhecimento desse critério nuclear se configura como base também para que a pessoa permaneça perto mesmo na diferença; afirme o valor do outro mesmo não concordando com sua crença; se posicione com liberdade, explicitando pontos de discordância dentro do relacionamento; se disponha a dialogar sobre temas polêmicos; elabore criticamente as perspectivas religiosas em jogo como ocasião de crescimento mútuo. Dom Bernardo, embora veja limites intransponíveis entre Catolicismo e Judaísmo, deseja que este último continue existindo. Carolina, ao ler o livro que sua tia lhe deu, afirma, com liberdade, que pensa de outra forma. Davi, mesmo não compartilhando algumas crenças, permanece perto dos pentecostais, católicos e espíritas. José Luiz, diante do convite de sua irmã para ir à igreja, com carinho diz não. Miriam permanece perto de quem lhe faz bem, mesmo que este adote um caminho diferente. Silvia continua convivendo bem com pessoas vinculadas à instituição religiosa com a qual teve grandes atritos. A percepção e a elaboração da diferença não eliminam o valor do outro e da relação. Pelo contrário, é por meio da relação83 que a pessoa encontra elementos para elaborar, e é na relação que ela vive o gosto de ser ela mesma, de valorizar o outro em seu caminhar e de ter liberdade para compartilhar a vida numa relação de proximidade marcada pelo profundo respeito. Dentre os modos encontrados para lidar com a existência e convivência de polos opostos na relação, apreendemos o humor84 como um caminho em que o mal-estar, gerado pela tensão da diferença, pode ser enfrentado sem deixar nada de fora, ao mesmo 83 Segundo Donati (2009), o relacionamento que nasce do encontro inter-religioso pode se tornar um bem na medida em que possibilita o reconhecimento e a transformação recíproca. 84 Encontramos em Frankl (2003) elaboração semelhante. Para o referido autor, o humor pode ser um importante recurso para enfrentar o sofrimento.
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tempo em que se busca manter o relacionamento. Em outras palavras, a pessoa, diante da tensão da diferença, recorre ao humor como instrumento para ajudá-la a enfrentar o que é dramático ou inquietante, sem deixar de cuidar da relação. Dom Bernardo chega mesmo a explicitar que esta é uma herança judaica: quanto mais importante a questão, maior o elemento humorístico. Carolina afirma que “é o Budismo” e ri, ciente de que torna superlativa a afirmação da própria identidade como estratégia para enfrentar preconceitos. Em situações em que a tensão se apresenta, Davi faz piadas e joga com as palavras, dando leveza à relação sem renunciar ao exame dos pontos críticos. José Luiz brinca com a esposa e com quem lhe pergunta sobre os filhos, propondo o diálogo como espaço para se posicionar livremente e para respeitar o caminho do outro. Miriam também brinca, anunciando que em algum momento vai dar tilt: forma de lidar com o drama da sua abertura a tudo em oposição à necessidade humana por alguma delimitação. E Silvia, a todo tempo, debocha e se diverte, seja ironizando a própria experiência e o incômodo quanto aos deveres que tem que cumprir, seja brincando de amarrar a disparidade de suas pertenças em títulos que tentam dar conta da sua complexidade: uma forma de responder que é muito sua e que está, também, presente nas coletividades em que ela se insere. Vivenciando o encontro sem esconder a tensão que lhe é própria, a pessoa descobre o valor e a dignidade daquilo que encontra e, quando é o caso, do outro que encontrou, admirando-se por ele ser quem é. Como afirma José Luiz: “Como a minha esposa é uma pessoa muito ética, de princípios bem definidos, a gente convive bem em função disso. Eu respeito muito a sua forma, o seu empenho, as suas ideias, apesar de não acreditar no que ela acredita. (…) Isso é a verdadeira função da religião: se você acredita, vai incorporar aquilo na sua vida, procurando ser melhor em função do que acredita.”
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Valorização que se dirige por vezes ao fato do outro ser uma boa pessoa, por vezes à coerência e fidelidade com a qual vive a própria religiosidade, por vezes à beleza e verdade da perspectiva religiosa a que adere. Nesse sentido, o outro emerge não só como um anexo, mas como parte constitutiva do caminhar da pessoa, que a enriquece, fortalece e realiza85. Dom Bernardo se alegra pelo reestabelecimento do relacionamento com sua família; Carolina se maravilha com a participação da mãe em sua cerimônia de conversão; Davi se reconhece amado a partir das amizades que tem; José Luiz se orgulha das pessoas de sua família; Miriam é grata àqueles que lhe abriram caminho; Silvia vive o gosto por indicar a amiga para a entrevista, repetindo que sua história é um celeiro. Justamente por reconhecer o valor do outro para si, a pessoa por vezes carrega o desejo de que ele compartilhe a verdade e a realização daquilo que ela vive, como pudemos acompanhar na posição de Dom Bernardo diante de seus pais; Carolina diante de sua mãe; Davi diante de seus amigos; José Luiz diante de seus filhos; Miriam diante do marido; e Silvia diante da sociedade. No entanto, ao retomar que o sentido da relação é a realização de si e do outro, e ao perceber que este sentido está presente no modo como a relação tem se configurado, a pessoa reafirma que, embora carregue esse desejo, há um respeito pela posição do outro. Em sua elaboração, é mais realizador, inclusive para si mesma, quando o encontro se fundamenta numa reciprocidade na qual cada um se sente reconhecido e respeitado em sua posição. É a partir desse respeito que o encontro pode ser, inclusive, ocasião de mudança e transformação. 85 Sobre o reconhecimento da centralidade do outro para a constituição de si mesmo, confira o livro O eu renasce no encontro, de Luigi Giussani (2010) e o livro Experiência Elementar em Psicologia: aprendendo a reconhecer, de Miguel Mahfoud (2012).
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Encontro inter-religioso em que a pessoa não só descobre o valor do outro para si como também descobre a si mesma com um novo frescor. A relação é vivida como ocasião preciosa para redescobrir os próprios valores, colher novos aprendizados, apreender o que é central e periférico, afirmar o que não pode abrir mão, aprofundar a própria verdade, reconhecer contribuições possíveis, encontrar sentidos para o viver. É também por isso que, nessas modalidades de relação, a pessoa se empenha para continuar a aprofundar esta, para cuidar de si, do outro e daquilo que encontrou porque, de certa maneira, o encontro acaba estruturando o modo como a própria pessoa se concebe. Além disso, a experiência de encontro inter-religioso não se encerra em si mesma: de uma situação circunscrita, a pessoa, tocada no centro do seu ser, num movimento de abertura, começa a elaborar, a tirar consequências cada vez mais amplas daquele encontro nos mais diferentes âmbitos. Como explicita Davi: “Quando brota um diálogo a partir de um relacionamento, não conversamos só como ideia, mas conversamos de um para um, reconhecendo que no final da história é a comunhão que faz o ser. É a questão da Trindade. Porque Pai, Filho e Espírito Santo produzem vida a partir do relacionamento desde o início da história. (…) É disso que estamos falando, de relacionamentos fecundos, porque são pessoais”. Dom Bernardo, a partir da relação visceral que reconhece em si, examina as possibilidades de articulação entre Judaísmo e Catolicismo. Carolina, do diálogo com seus familiares, amplia os horizontes para enfrentar muitas questões, dentre as quais a possibilidade da convivência harmoniosa e da paz mundial mesmo que existam conflitos e diferenças. Davi, refletindo sobre cada encontro vivido, ao mesmo tempo elabora questões teológicas e problematiza os fundamentos que viabilizam o diálogo inter-reli-
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gioso. José Luiz, a partir da boa convivência com seus familiares, se põe a pensar sobre a importância da diferença para o crescimento da humanidade. Miriam, no encontro com o Johrei Center, se abre para a espiritualidade, reconhecendo uma primeira virada em sua vida. Silvia, em sua convivência com os batistas, problematiza criticamente os modos com os quais a religião pode ser perversa. Trata-se de um movimento de reflexividade que brota da relação e a retroalimenta, abrindo caminho para novos encontros, provocações, verificações, posicionamentos, elaborações, reflexões mais amplas, e assim por diante. E o encontro não se encerra em si mesmo também porque passa a ser desejado. A pessoa, provocada pela experiência de encontro, mobiliza-se para que o mesmo continue a acontecer, seja na mesma relação onde se deu, seja em outras. É também por isso que Dom Bernardo propõe a seus companheiros monges a leitura do livro Sobre o Céu e a Terra86 (que narra um diálogo inter-religioso entre o Papa Francisco e um rabino de Buenos Aires) e a visita ao Museu do Holocausto. Que Carolina se dispõe ao diálogo com outros familiares, com membros de sua organização e interessados no Budismo. Que Davi se dedica a cultivar as amizades com as pessoas que são profundamente próximas e profundamente diferentes. Que José Luiz busca manter a boa convivência com toda a sua família, mesmo quando a curiosidade não é construtiva. Que Miriam permanece indo a fundo nas perspectivas religiosas que encontrou sem abandonar as suas raízes. Que Silvia continua mantendo os laços com os evangélicos. O ponto é que o encontro se torna uma experiência significativa na qual a pessoa, por viver uma correspondência profunda, se empenha para que ele continue de algum modo. 86 Bergoglio, J.; Skorka, A. (2013). Sobre o Céu e a Terra: as reflexões do novo Papa sobre a família, a fé e o papel da Igreja. (S. M. Dlinsky, Trad.). São Paulo: Paralela.
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Diante desse encontro tão provocador, a pessoa também se sente grata por se ver integrante de uma relação que a ultrapassa e constitui. Seja quando há evidente realização, seja quando a dor se faz presente (como é o caso de Silvia com os metodistas), a pessoa colhe um juízo de gratidão por, de algum modo, viver uma correspondência; gratidão por encontrar um sentido para si naquele encontro; gratidão pela história que, com seus dramas e riquezas, é a sua história, o caminho que a formou. Gratidão que sinaliza que o encontro é vivido como sendo de algum modo dado, mesmo que seja buscado, construído, transformado. Há um posicionamento de abertura da pessoa sem o qual ele não pode acontecer, ao mesmo tempo em que seu empenho não pode garantir que ele se dê. Um acontecimento no qual a pessoa, ativa, recebe: um dom.
Considerações finais Partimos do objetivo de investigar os fatores constitutivos e a dinâmica característica da experiência de encontro inter-religioso. E, dentro da diversidade de rostos e trajetórias, encontramos um fio comum, o delineamento de um percurso, sempre encarnado de modo único e, justamente por isso, propriamente humano. Percurso que revela uma unidade de experiência em sua vitalidade; percurso em que o encontro inter-religioso é acontecimento que provoca, abre novas possibilidades; em que a pessoa, nesse encontro com a alteridade religiosa, vive uma correspondência e vai em direção a ela, confronta o que encontrou com as próprias referências, colhe um juízo, reelabora a própria identidade e se posiciona afirmando o que é radical, identificando uma verdade mais central que a reconecta consigo, com o outro e com a vida. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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Vivendo uma realização, a pessoa elabora, tira consequências, deseja a continuidade, é grata. A partir desse percurso, colhemos também convites: chamados a se abrir à relação antes de julgar o outro, a se deixar provocar por sua presença, a verificar na convivência. Pois é na relação com o outro e com a vida que o encontro pode acontecer, prenhe de possibilidades novas. Embora haja tanto desencontro, este trabalho se constituiu como uma ocasião de encontro com pessoas, com experiências, com compreensões da realidade humana. Encontros a partir dos quais esperamos que possa se constituir uma contribuição real ao nosso campo e à nossa sociedade. Encontros aos quais somos imensamente gratos. De fato, embora haja tanto desencontro pela vida, o encontro se mostrou a nós, por meio desta pesquisa, uma arte que embeleza a vida.
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Somos mudança. Meditação (saúde espiritual) e transformação social
Wanderson Xavier Mendes Psicólogo, licenciado em Psicologia, professor de Yoga, membro do CIT e Clerot. Desenvolve atividade transdiciplinar no NASCE/ UFMG e LIASE/UFMG.
Neste preâmbulo gosto de sugerir inestimável e promissora exortação: “Quem tiver “olhos” para “ver”: veja! “Ouvidos” para “ouvir”: ouça!”
A Meditação é uma arte e técnica milenar, um processo que vem se desenvolvendo há milhares de anos junto a povos primitivos, que a receberam e/ou elaboraram com o propósito de provocar experiências não ordinárias de tomada de consciência de verdadeira unidade, do reino de Luz e dimensões da verdade e sabedoria dentro de nós mesmos – a chamada auto realização, nosso direito inato, e muitas vezes inconsciente. Esse “reino de Luz”, “sentimento oceânico”, embora não tenha encontrado eco no espírito investigativo do precursor da psicanálise, motivou interlocuções penetrantes dele com seu correspondente, o escritor Romain Rolland, que se revelaram de sensível importância ao estudioso do tema; que, embora muitas vezes ambíguas, não obstante, evidenciam um campo de estudo de fundamental importância para compreensão dos limites e alcances da teoria psicanalítica a respeito do misticismo (BORGES, 2008). Tal experiência denominada mais tarde “Experiência de Platô”, por Abraham Maslow (FADIMAN E FRAGER, 2002). A “Consciência Cósmica”, por R. M. Bucke (WEIL, 2003), vem sendo decifrada meticulosamente pela Psicologia desde que representantes dessa jovem ciência, nomes da envergadura do já citado Maslow, como Grof, Viktor Frankl, Vich, Murphy, Jourard e também o citado Fadiman, fundaram a Revista de Psicologia Transpessoal, e iniciaram o movimento sob a liderança de Antony Sutich, o que configurou a Quarta Força em Psicologia, em 1969. Tudo está relatado em Pierre Weil, Os Mutantes: Uma Nova Humanidade para um Novo Milênio (WEIL, 2003 op. cit.), e em Elias Boainaim, Tornar-se Transpessoal (BOAINAIM, 1998). 136
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Hoje, é cada vez mais evidente e acessível – a um número cada vez maior de pessoas – a existência de indícios em relatos de antigas escrituras do Oriente (Norte da Índia) que um extraordinário aborígene, conhecido em tal região como SadaShiva, foi quem começou a difusão desse processo. Tal meditação subjetiva estendeu-se veladamente de modo sistemático e rigoroso, a partir do Oriente, através da literatura, da arte, da dança e da medicina, configurando uma ciência milenar holística da vida. (ANANDA MARGA, 2008) Recentemente, começa a ser investigado, verificado e comprovado, de modo inequívoco, também pelas Ciências Acadêmicas, que TANTRA (nome original dessa Ciência Eterna), ao longo de muitos anos foi, à maneira do que ocorreu com o modelo filosófico e científico do Ocidente, fragmentando-se em disciplinas cada vez mais especializadas, conformando os diversos ramos do Yoga que estiveram mais ou menos integrados. Por exemplo, Karma Yoga, que enfatiza a ação e o serviço ao próximo; Jnana Yoga, que enfatiza o autoconhecimento; e Bhakti Yoga, que cultiva a devoção amorosa ao Ser, a Suprema e Essencial Consciência, Infinita e Eterna que, como dito acima, habita, mais ou menos conscientemente, o nosso interior (ANANDA MARGA, 2009). C.G. Jung, príncipe herdeiro do legado freudiano, relata que as diversas formas do Yoga Tântrico e seu rico simbolismo lhe forneceram material comparativo preciosíssimo para a interpretação do inconsciente coletivo (JUNG, 2012). E, assim, vemos aquele que iluminou o túnel aberto por seu predecessor render créditos à sabedoria perene do Oriente. Sabe-se, muito mais que suficientemente, o que disse este “Ser” que marcou, profunda e indelevelmente, sua passagem em a.C. e d.C. neste planeta. Ele nos provocou, agudamente, esti-
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mulando em nós preciosas percepções e efetivas mudanças. “Em certa ocasião, num breve, simples e sublime exemplo, Ele nos disse: [no tempo certo] “(...) nada há de oculto que não venha a ser manifesto, e nada em segredo que não venha à luz do dia. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça!”. (Marcos, 4, 22, 23) Agora é o tempo para reconhecer, então, que após SadaShiva, há aproximadamente 3.500 anos, práticas meditativas e valores espirituais foram difundidos entre os devotos de Krishna, através, dentre outros métodos, do cantar do Mantra (vibração acústica sagrada) “Hare Krishna” (PRABHUPADA, 2009), que continua a ser ouvido ainda hoje. E de evidenciar, também, como o Mantra contemporâneo “Baba Nam Kevalam” e um sistema sofisticado de práticas e valores espirituais, resgatado da Tradição Tântrica pelo Yogue Sri SriAnandamurti (1921-1990), fundador da Ananda Marga, foi difundido globalmente, atravessou continentes, propagando-se a partir da missão de renunciantes incansáveis – monges, monjas, e abnegados discípulos gestando, sutilmente, uma revolução silenciosa, a qual se encontra em pleno curso. (ANANDA MARGA, 2019) Causar-nos-ia estranheza citar Yogues e Mantras num trabalho científico. Não fora o exponencial aumento das citações de renomados pesquisadores, das neurociências, e variados outros campos de investigação de vanguarda que vêm empreendendo a árdua tarefa de desvendar o que, até há pouco, mantinha-se abrigado no oculto. Observemos, com acuidade, o que se constatou em recente artigo publicado ao tratar de modificações de estados psíquicos e físicos: (...) uma destas ações compreende o direcionamento da atenção através da introspecção, a qual se pode alcançar mediante diversas estra-
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tégias. Por exemplo, por meio do som, como nos Mantras (...). (REBOIRAS Y GRZONA, 2015)
Mantendo-nos amparados pela arqueologia, podemos reconhecer, também, que há 2.600 anos, Sidharta (“Buddha”) Gautama – “o Príncipe de Kapilavastu” –, através de um extraordinário esforço e valorosa renúncia, enveredou por práticas meditativas Dhya’na (de Tantra Yoga), que se desdobrou no Ch´na (na China), Ch´em (na Corea) e Zen (no Japão) (SARKAR, 1997). Por qual razão, ainda hesitamos em tratar, sob enfoque psicológico, o legado principesco do Budismo, uma vez que John Kabbat-Zinn, sobejamente demonstrou, nos laboratórios de redução de estresse em Harvard, resultados muito positivos da prática da “Plena Atenção” sobre pacientes oncológicos, cardiológicos ou com transtornos de ansiedade, depressão, drogadicão e dor? (KABBAT-ZINN, 2017) Ou ainda: A experiência protagonizada por Mathieu Ricard, francês doutorado em biologia molecular no Instituto Pasteur, que abandonou sua carreira científica para concentrar-se na prática do budismo no Himalaya. [Mais tarde] Ricard e outros meditadores profissionais com mais de 2 mil horas de prática submeteram-se a múltiplos estudos de ressonância magnética e eletroencefalograma de duzentos canais nos quais se observaram níveis muito superiores de emoções positivas, evidenciadas pelo aumento do metabolismo do córtex pré-frontal em relação a um grupo controle da população em geral (...) Estudos, tais, que foram replicados em meditadores
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novatos e referenciaram os mesmos benefícios. (REBOIRAS Y GRZONA, 2015)
A literatura Taoísta representada pelo precursor LaoTsé (Mestre Lao), exposta no Tao Te King, a “Via Iluminadora” veio também permitir, aos estudiosos, apontar que a meditação já existia na antiga China de forma sistematizada e comsistente pelo menos há cerca de 2.500 anos. (TAO TE KING, 2001) Ainda mais próximo de nossa ancestralidade: Outras experiências como as Xamânicas (nome dado pelos antropólogos) relatam que grupos, como por exemplo, os Kung do deserto de Kalahari, na África, valem-se de experiências como a privação de sentidos, (experiências que acontecem a noite), sons de tambores e outros instrumentos, além da respiração intensiva e profunda para entrar no denominado êxtase. Desta feita com finalidade de obter a cura pessoal e da comunidade. (KATZ, 1982)
Podem ser ainda mais familiares as experiências propostas e reveladas por Ieshouade Nazaré a partir de Israel; desde que aprofundemos nosso acesso a elas através do trabalho interno, penetrando profundamente em suas camadas/conchas, muitas vezes inocentes, ingênuas e superficiais e atinjamos o seu cerne. A prática do “Hesicasmo”, tradição contemplativa do Cristianismo Ortodoxo Católico Oriental com o uso da palavra (vibração acústica) sagrada “Kyrie EleisonChrystieEleison”, associado à postura e respiração profunda, há muito “esquecidas”, seguramente nos aponta um caminho de mudança acertado propagado
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por Jean-Yves Leloup no Escritos sobre o Hesicasmo (LELOUP, 2003), assim como revela ser o Caminho de Místicos (que decifraram o mistério da verdade por experiência direta), como João da Cruz, Tereza D’Ávila, Francisco e Clara de Assis, da Tradição Romana. Ressalta-se, ainda, os recentes e inestimáveis estudos resgatados do Clássico Nuvens do Não-Saber por Monges Trapistas – Tradição “Centrante” (in Keating, 2005). Também os protestantes mais progressistas (os quais talvez fossem melhor denominados de “nossos irmãos separados”) exortamnos, além da prática da oração, aos “Momentos de Silêncio a Sós com Deus” (IBC, [s.d.]). Sem dúvida, uma vasta “tecnologia” teológica; significativos avanços na intimidade das Igrejas da mesma Uni-Trindade dos quais podemos, se quisermos, nos conscientizar e aprofundar de modo rigoroso e sistemático através de uma verdadeira Ciência do Espiritual, que desponta altaneira. Ora, o que delineamos até aqui expõe um novo olhar, um percurso que une ciência e espiritualidade. Trata-se de fenômeno complexo e multifacetado vivenciado sob a forma de princípios, rituais, símbolos, institucionalizados ou não, que ultrapassaram fronteiras culturais, revelando algo maior, há muito “(in) definido” como onipresente, infinito ou inefável; e que começou, a partir de um novo paradigma, a ser melhor compreendido pela ciência acadêmica (artigos e publicações) e a tecnociência (tomografia, eletroencefalograma de 200 canais, ressonância magnética) que o acompanha. Necessário percurso, uma vez que o universo, como uma máquina, já não satisfaz a mente daqueles que tiveram tal mecanismo, frequentemente acoplado ao pulso, substituído pelo efeito piezoeléctrico do cristal de quartzo. Mas, a metáfora não é o que melhor nos acudirá neste momento. Portanto, mantenhamos a nossa caligrafia firme nas linhas Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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da história o Yoga do Maha (grande) Bharata, a Índia Antiga, revisitado pela ciência moderna e a religião comparada permite-nos, num abraço transdisciplinar, aliar o mais antigo ao mais atual como nos ensina Roberto Crema em “Antigos e Novos Terapeutas” (CREMA, 2002), um manual de verdadeira pacificação de espíritos belicosos há muito movidos pelo fanatismo da diabolização, a divisão que tem atrasado o discernimento do Uno, uma vez que promove embates ao disputar a propriedade disso que buscamos decifrar. Embates, estes, manifestos em múltiplos “igrejismos” (embates de religiões) e “psicologismos” (embates de teorias psicológicas), grupismos que P.R. Sarkar denomina de “sócio-sentimento” no “Neo-Humanismo: Ecologia, Espiritualidade e Expansão Mental” (SARKAR, 2001). Ora, para aprofundar ainda mais a nossa reflexão, sem exasperarmos ao nosso leitor competente, é imperativo que explanemos, sem demora, qual o fundamento da nossa metodologia, pois assim ele poderá acompanhar o nosso raciocínio opondo um mínimo de resistência, a qual o seu espírito investigador criterioso, porventura, já tenha incorrido. É a UNESCO, órgão das Nações Unidas responsável pela Educação, Ciência e Cultura no mundo, que nos respalda mais convenientemente ao recomendar o diálogo entre a Ciência, a Arte, a Filosofia e a Tradição Espiritual por meio da Declaração de Veneza, 1986. Documento sintetizado após o Simpósio “Ciência e as fronteiras do Conhecimento: prólogo do nosso passado cultural”, que reuniu 19 expoentes de todas as partes e distintas especialidades do mundo, entre os quais dois detentores de prêmios Nobel. Esse Simpósio contou, ainda, com a participação do eminente matemático brasileiro Ubiratan D’Ambrósio (SOMMERMAN, 2008). Ainda em Sommerman, dentre numerosos
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colóquios, congressos, pesquisas e publicações sobre o tema, destacamos dados da “Carta da Transdisciplinaridade” de 1994, assinada no Primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, em Portugal, por 62 participantes advindos de 14 países, além dos dados dos anais do Congresso de Locarno, 1997. No Congresso de Locarno (1997), foram definidos os três pilares metodológicos da pesquisa transdisciplinar: 1) Complexidade; 2) Lógica do Terceiro Incluído; e 3) Diferentes Níveis de Realidade. A Declaração de Veneza (1986) aduz, em seu Artigo 11 (UNIPAZ, 2011): Rigor, Abertura e Tolerância são características fundamentais da atitude e da visão transdisciplinar. O rigor na argumentação, que leva em conta todos os dados, é a melhor barreira contra possíveis desvios. A abertura comporta a aceitação do desconhecido, do inesperado e do imprevisível. A tolerância é o reconhecimento do direito às ideias e verdades contrárias às nossas.
Já em Anexo 1, também, a Declaração de Veneza, em seu Artigo 2, reconhece (UNIPAZ, 2000): O conhecimento científico, no seu próprio ímpeto, atingiu o ponto em que ele pode começar um diálogo com outras formas de conhecimento. Nesse sentido e mesmo admitindo as diferenças fundamentais entre Ciência e Tradição, reconhecemos ambas em complementaridade e não em contradição. Esse novo e enriquecedor intercâmbio entre
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ciência e as diferentes tradições do mundo abre as portas para uma nova visão da humanidade (...)
E, assim, sem receio, devidamente munidos dessa promissora visão transdisciplinar, podemos, agora, com a coerência, congruência e fôlego do investigador ousado e, sobretudo, bem preparado, imergir um passo a mais na viagem que os mestres da consciência ousaram traçar e percorrer: a viagem interior a si mesmo. Um número cada vez maior de cuidadores poderá, assim, familiarizarse com a cartografia transpessoal de consciência apresentada no recém lançado Meditação - o que dizem os Cientistas e Sábios, da monja, psicóloga e antropóloga de Harvard, Susan Andrews (ANDREWS, 2018), que abrange não só consciente e inconsciente, mas também a nossa dimensão superconsciente – “transpessoal” –, nível tão ou mais saudável quanto o autor do Introdução à Psicologia do Ser ousara sonhar (MASLOW, 1962). Ken Wilber, conhecido pela profundidade e originalidade de sua produção, nada mais, nada menos, como “o Einstein da Consciência” através do seu Espectro da Consciência (2007) e do seu Psicologia Integral (2002) é outro autor ocidental que também enfocou as cinco camadas da mente à luz da Psicologia Transpessoal. Eis uma síntese de Andrews em diálogo com psicólogos ocidentais e com Sarkar da Escola Tântrica, que é por ela designado reiteradamente como a fonte de sua inspiração (ANDREWS, 2018), (FADIMAM E FRAGER, 1986), (SARKAR, 2007): “Sabe-se que a mente, na perspectiva da Psicanálise Freudiana, é situada em 3 camadas: ID, ego e superego. Também é notório que a Escola Ocidental costuma se referenciar a ela como consciente, subconsciente e inconsciente, e importantes representantes da Escola Oriental, segundo Wilber, também a configuraram
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em 3 níveis, a saber: Mente Densa, Mente Sutil e Mente Causal. O representante da Escola Tântrica emprega o termo Kosa como sinônimo de camada. Sendo a consciente, sensório-motora ou, no original Sânscrito, KamamayaKosa – mente de desejos – (Kama = Desejo) a primeira camada. A segunda camada, subconsciente, abriga ManomayaKosa, a camada lógica ou do intelecto (Man = Pensar), onde se alojam pensamentos mais profundos. Até aqui, nada de novo. Ocorre que, na cartografia Tântrica, há um terceiro nível e é o superconsciente, que abriga, ainda, outras três “Kosas”: AtimanasaKosa, a camada supra-mental domínio da intuição e criatividade (Ati = Supra); VijnánamayaKosa, chamada de “mente do conhecimento especial”, (Vi = especial e Jnána = conhecimento), capaz de promover o verdadeiro discernimento do que é a realidade perene e um efêmero espetáculo, o que leva ao desapego espontâneo. E HiranyamayaKosa, camada dourada – todas as autênticas tradições e caminhos espirituais dedicam elevado apreço a essa camada iluminada, cuja linguagem se encontra mais próxima do silêncio, convidando a uma “escuta” ainda mais profunda e ampliada (Hiranya = dourado). Ao trilharmos esses três degraus, nos aproximaremos, assim, da Psicologia de inteireza, a qual consideramos mais apta a tratar do ser humano em sua totalidade.” E talvez, se ousarmos superar preconceitos e rótulos ultrapassados – muitos dos seres extraordinários citados acima já foram equivocadamente rotulados como portadores de severas patologias – e ideais caducos de cientificidade, indo além de estarrecedores dogmas científicos e religiosos, a experiência nos mostre que “essas vivências retiram a espiritualidade unicamente da religião a qual na maior parte da sua história não foi, senão, outra forma de adaptação ao mundo material, ainda que, matriz e fonte de alimento da espiritualidade”. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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“Nós precisamos ser a mudança que queremos ver no mundo!” (M. Gandhi) E talvez nós possamos, assim, “vê-lo” e “ouvi-lo em todo lugar na nossa casa nova, na nossa nova aldeia global. E, esse pontinho azul sofrido e sagrado será, assim, um pouco mais dignamente habitável, até quiçá volte a ser um. Por isso, e muito mais, ousamos e convidamos você a eliminar a pobreza, a estreiteza e toda manipulação e condicionamento material ou espiritual e dizer: eu sou, tu és e nós somos mudança, num grande “Sangachadvam” – “mover juntos”. Sem “igrejismos” ou “psicologismos”. Num mutirão de curadores, como exorta a Organização Mundial de Saúde - OMS. Pois, chegado é o tempo de diminuir a competição e enaltecer a cooperação! “Para o nosso bem-estar e o bem-estar de tudo e de todos!” E já que, como vimos, a arte é parte integrante da abordagem transdisciplinar, convidamos o leitor a manter o seu olhar (que “vê”) atento à poesia de Crema, 2002:
Novo milênio, novo olhar Mudar o mundo, é mudar o olhar. Do olhar que estreita e subtrai, para o olhar que amplia e engrandece. Do olhar que julga e condena, para o olhar que compreende e perdoa. Do olhar que teme e se esquiva, para o olhar que confia e atreve. Do olhar que separa e exclui, Para o olhar que acolhe e religa.
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Todos os olhares num só Olhar. O olhar da inocência e o olhar da vigilância. O olhar da justiça E o olhar da Misericórdia. Todos os olhares num só Olhar. Olhar de criança que brinca, na Primavera, olhar do adulto que labora, no Verão, olhar maduro que oferta, no Outono, olhar de prece e de silêncio, no Inverno. O olhar de quem nasce, O olhar de quem passa, O olhar de quem parte. Olhares da existência no Olhar da Essência. Todos os olhares, num só Olhar. Dançar de roda na órbita do olhar, dançar de guerreiro em volta da fogueira do olhar, dançar de Ser no olhar do Amor. Dançar e brincar de olhar. Olhar o porvir, Do Instante que nasce,
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no coração palpitante da transmutação. Viva o novo olhar! Olhe a vida de novo! Novo olhar, novo viver! Mudar o mundo É mudar o olhar. É alto olhar, Altar do olhar. É ousar viver, É viver no ousar. É amar viver, É viver para amar. Só então partir, Para o Grande Olhar. Todos os olhares num só Olhar. Num mesmo Olhar Supremo Olhar. Olhar.
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A dimensão de espiritualidade e o enfrentamento ao fundamentalismo: discutindo as relações de poder
Guaraci M. Santo Psicólogo e especialista em Psicanálise e Direito pela Newton Paiva. Especializado em Direito Público pela Newton Paiva/ Anamages. Mestre e doutorando em Ciências da Religião, membro do Grupo de Pesquisa Religião, Pluralismo e Diálogo Inter-religioso (REPLUDI)/ PUC Minas e do Fórum InterReligioso contra a Violência e a Discriminação, CONIC-MG, CENARAB-MG, Pastoral e DEC – PUC Minas, Educafro, UFM, CUT-MG. Ex-secretário e vice-presidente da Associação de Umbanda e Candomblé do Estado de Minas Gerais, Tateturia n’ kise (Sacerdote candomblecista) na Nação de Angola, tradição africana Bantu, rei de congado e umbandista.
Introdução Um convite à reflexão: como a espiritualidade pode contribuir para o enfrentamento ao fundamentalismo, mais especificamente o religioso? Em que medida a Psicologia pode tratar de temas atuais que se pautam em fundamentalismos como racismo, xenofobia, homofobia e intolerância religiosa? É a partir dessas indagações que pretendemos construir uma relação dialogal com os pares e público aqui presentes, no Psicologia em Foco 2018, a convite do CRP-04 por meio do Professor Reinaldo da Silva Junior, coordenador da Comissão Psicologia, Laicidade, Espiritualidade, Religião e Outros Saberes Tradicionais (Clerot), do qual faço parte. Ao falarmos de Psicologia, deixamos claro que não se trata de uma generalização desta; pelo contrário, acreditamos na importância de salvaguardar as especificidades de cada corrente teórica que compõe os saberes psicológicos. Entretanto, é fato uma finalidade comum entre eles: indiferente do eixo epistemológico a que pertencem, estes têm como premissa o cuidar de seres humanos, por meio técnicas especificas. Cuidado que acreditamos que deva ser feito de forma ética e profissional, respeitando as singularidades de cada caso e seguindo as normas e técnicas propostas por cada epistemologia. Quanto aos seres humanos, sujeitos, e suas demandas, estes podem apresentar dificuldades relacionais com seus semelhantes, as quais muitas vezes são fruto da falta de conhecimento acerca de si e/ou do outro. A isto se junta a característica das sociedades contemporâneas de oferecer, em um mesmo ambiente histórico geográfico, diferentes maneiras de compreender o mundo, o que impede que o sujeito se adeque calmamente a uma moral de época. Uma das respostas possíveis a essas ques-
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tões que levantamos é o fundamentalismo. Como efeito, temos assistido a uma crescente onda de comportamentos fundamentalistas nas relações sociais, politicas e religiosas entre outras. Segundo Magali Cunha (2017), o termo fundamentalista deu-se primeiramente por Curtis Lee Laws, editor e próximo da Igreja Batista. Esse termo foi empregado para retratar um movimento teológico protestante conservador contrário ao liberalismo teológico e científico inaugurado pela modernidade. Movimento que, segundo a autora, o qual resultou em uma obra de doze volumes intitulada Os Fundamentos: um testemunho para Verdade. A obra objetivava defender os fundamentos da fé cristã, pautando-se nas escrituras sagradas desta. Neste viés, ela defende um Jesus divinizado e a literalidade de seus milagres, isso sem uma mínima possibilidade de contextualização e atualização de seus pressupostos e narrativas. Ademais, ignorava os teólogos liberais da época, abertos ao progresso científico e as inovações propostas pela modernidade em prol da justiça e da paz. Esse ignorar representava uma rigidez de comportamentos que não permitiam a abertura a outras realidades e perspectivas socioculturais e religiosas, ou sequer as consideravam possíveis de existir. O que sinalizava uma indisposição ao outro, negando-se, assim, a possibilidade de qualquer tipo de diálogo. Como resultado disso, abria-se um campo propício ao extremismo e ao fanatismo, fomentando atos de intolerância. Hoje, recorrentemente, nos deparamos com o termo fundamentalismo, associado prioritariamente ao mundo Islâmico, a partir de atos terroristas cometidos pelo Estado Islâmico e outros grupos fundamentalistas e/ou terroristas. Com isso, incorremos numa rotulação genérica, se consideramos que existem outras formas de comportamentos fundamentalistas que podem ter caracPsicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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terísticas extremistas e fanáticas, por meio de ações autoritárias e passionais, ou não. E que atos de cunho fundamentalistas não se circunscrevem somente aos campos religiosos ou políticos. No Brasil é cada vez mais recorrente o uso desse termo como forma de nomear grupos evangélicos religiosos e/ou políticos, dentre outros, que defendem um conservadorismo contrário aos direitos de livres expressões sexuais, organizações familiares e religiosas entre outras, em nome de fundamentos confessionais específicos como os cristãos católicos e protestantes em suas diversas variações. O que, por sua vez, pode potencializar conflitos sociais, políticos e religiosos. Exemplo disso são os atos de homicídios das populações jovens negras e LGBT, além dos ataques a afro-religiosos e seus terreiros, também com registros de ações semelhantes, que infelizmente estão se tornando comuns, em nome de verdades inflexíveis e descontextualizadas, no Brasil. Atos, estes, de extrema perversidade e violência contra a dignidade e a vida humana. Com efeito, a essa realidade, Cunha (Carta Capital, 2017) ressalta ser “necessário diferenciar a defesa de doutrinas e princípios do fanatismo, religioso ou político”, para que possamos ser justos em nossas construções acerca do tema fundamentalismo. Sabemos que, para os seres humanos, é importante, nesse mundo moderno e competitivo, fundamentar-se bem por meio de suas crenças e valores, religiosos ou não, a fim de orientar a própria existência. Contudo, como explicitamente isso é feito e sua finalidade é que precisa ser assistido. Para tanto, nos perguntamos: a espiritualidade, em interlocução com as Ciências Psicológicas, pode ser pensada como um recurso efetivo a fim de promover os fundamentos teóricos de determinados segmentos, como os teológicos, a uma perspectiva essencialmente mais humana?
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Segundo Teixeira (2005, p.15), a espiritualidade “[...] não é algo que ocorre para além da esfera do humano, mas algo que toca em profundidade sua vida e experiência”. Nesse sentido, entendemos a espiritualidade como uma manifestação intrinsicamente humana que corrobora para uma busca de sentido existencial, subjetivamente. Teixeira (2005) afirma, ainda, que esta é uma energia não perceptível ao ser e, contudo, instiga-o ao trabalho de seguir e atingir uma condição espiritual universal. Ações que podem acontecer fora ou dentro de uma conformação religiosa. Isso difere a espiritualidade da religiosidade já que esta se caracteriza pela busca de sentido por meio da prática religiosa, mediada por ritos. A religiosidade é a forma que os seres humanos elegem de acordo com suas perspectivas e afinidades de expressar subjetivamente, em atos, suas crenças e valores religiosos confessionais, fundamentos e dogmas sagrados, visando orientar suas vidas cotidianas. Conjuntamente, espiritualidade e religiosidade podem colocar os sujeitos a serviço do outro e da comunidade. Uma dinâmica que confere, de forma subjetiva, legitimação a existência dos seres humanos. (TEIXEIRA, 2005, p. 16). Quanto à religião, esta é entendida, aqui, como instituição, onde a normatização de seus valores se faz legitimada por uma doutrina mor, codificada em escrituras sagradas e/ou registrada formalmente. Contudo, entendemos que existem formas de manifestações da espiritualidade, busca de sentido, que culturalmente não se enquadram nas categorias que privilegiam registros escritos. Bem como se organizam a partir do princípio de inter-relação e interação contínua entre o mundo material e o espiritual, como por exemplo, as religiões de matrizes africanas. Estas religiões entendem que o religar-se não é possível pois, para elas, nunca se Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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perde a ligação com o divino. Elas acreditam que a vida é contínua e perpassa os mundos visível e invisível dinamicamente e que o sagrado se manifesta no ser humano e em sua vida cotidianamente. Temos ainda outras religiões, que são nomeadas por seus praticantes como muito particulares, uma bricolagem individual e coletiva de crenças, desembocando em uma crescente gama de novas denominações religiosas, para ilustrar citamos o Umbandaime. Uma mescla de práticas umbandista, ameríndias, orientais e daimistas, que passam a compor o cenário das religiões minoritárias e que, como tal, estão sujeitas às pressões fundamentalistas dos setores homogêneos religiosos e políticos, dentre outros. Por consequência à pluralidade crescente de opções religiosas e de uma carência de sentido, o sujeito pode responder se abrindo às diferenças ou adotando posturas fundamentalistas. As posturas fundamentalistas se ligam a duas estratégias defensivas: a estratégia de gueto, onde se busca o afastamento de pessoas e situações que não fazem parte daquela religião específica, e a estratégia da cruzada, onde se tenta resgatar o mundo e as pessoas através de conversões e mudanças nas práticas sociais. (TEIXEIRA, 2007). Essa segunda estratégia pode ser utilizada conjuntamente a atos de violência, tanto simbólica quanto física. Mariz (2013) aponta que as religiões mais conservadoras, dentro dos campos católico e evangélico, tendem a demonizar as religiões da nova era e as religiões com matrizes africanas. Dentro dessas mesmas religiões cristãs existem buscadores de diálogo, principalmente nos setores mais intelectualizados, que entendem que o contato com outras religiosidades pode reavivar sua fé. A saber, as religiões de matrizes africanas são, no Brasil, o principal alvo de preconceitos religiosos. A cada três dias uma queixa de intolerância religiosa chega à Secretaria de Direitos
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Humanos da Presidência da República. No ranking das denúncias por intolerância religiosa, entre 2011 e 2014, encontramos que a intolerância às religiões de matrizes africanas são as campeãs em denúncias, totalizando 75, seguidas pelas manifestações cristãs evangélicas com 58, espíritas com 27 e católicas na casa dos 22 registros (Folha de São Paulo, 27/06/2015). Segundo Silva (2007), isso acontece por meio de atos que caracterizam uma “Guerra Santa” como: Ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo; agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros; ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públicos ou a símbolos dessas religiões existentes em tais espaços; ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; e as reações públicas (políticas e judiciais) dos adeptos das religiões afro-brasileiras. (SILVA, 2007 p. 10)
Historicamente perseguidas, as religiões de matrizes africanas carregam em si uma herança colonial de exclusão e a marginalidade de suas práticas e etnia, estas, classificadas pelas classes dominantes da época, como ainda hoje, como sendo desprezíveis e inferiores. (QUEIROZ, 1989) Sendo assim, a discriminação e perseguição aos negros e suas práticas é histórica no Brasil. (CORRÊA, 2001; QUEIROZ, 1989) A saber, nos primórdios das escolas científicas no Brasil, nos períodos imperial e republicano, os negros eram tidos como in-
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feriores aos brancos, uma posição de afirmação da escravidão e desqualificação desse povo. Uma forma do governo dominante de se manter por meio de um racismo pseudocientífico fomentado e instrumentalizado pelas elites dos períodos citados. Forma excludente que mesmo durante a república e a abolição da escravatura permaneceu intrínseca na estrutura do Estado, assim como das classes dominantes do país. Assim, qualquer manifestação religiosa ou não relacionada à cultura africana era recachada, sob o pretexto que elas faziam apologia ao mal e/ou a própria demonização do negro escravizado e seus descendentes. Nesse contexto, religiões de matrizes africanas como o candomblé foram perseguidas veementes por meio de “políticas específicas de repressão das atividades religiosas ou culturais dos negros” (CORRÊA, 2001, p. 43). Como, por exemplo, a necessidade de autorização policial feita nas delegacias de bons costumes e diversão da Polícia Civil até os anos 1980, para que os terreiros pudessem fazer seus rituais e festejos dentro da lei e da ordem. Dentre as práticas das comunidades negras, no Brasil, as do candomblé se destacaram, visto que se apresentaram como uma forma de resistência, pois: “[...] salvaguardaram as maneiras de ser e pensar que constituíram seu patrimônio específico, impedindo que a cultura ocidental, fortemente hegemônica [...]” (QUEIROZ, 1989, p. 33). Práticas que contribuíram para o não aniquilar coletivo das identidades étnicas e religiosas dos africanos escravizados e seus descendentes. Entender as perseguições das igrejas pentecostais às religiões de matrizes africanas, umbanda e candomblé, nos auxilia no entendimento sobre a atual intolerância religiosa. Para SOARES, 1990, essas igrejas cristãs modernas buscam “imbuir seus fiéis do espírito do
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combate ao mal” e, a partir disso, as religiões africanas ficam expostas a atos extremistas oriundos dos fiéis das igrejas neopentecostais. Para a autora, a fé cristã neopentecostal é inflexível quanto à sua não abertura ao diálogo com as religiões afro-brasileiras. Realidade que tenciona muito o campo religioso nacional e traz muitos prejuízos financeiros e psicológicos aos afro-religiosos por meio de ataques verbais e físicos, que também se estendem aos seus terreiros. Nesse aspecto, lançamos mão do conceito de poder foucaultiano. Para Foucault, poder não é algo que se possui inerentemente e, sim, função de exercer suas vontades no contato com outros dentro de uma determinada situação concreta. O poder está, o tempo todo, sendo alvo de disputas. A Guerra Santa, acima citada, é estratégia de tomar e manter para um grupo religioso o poder de nomear-se como única religião aceitável. Outro conceito do mesmo autor que podemos utilizar é o de panóptico, apresentado por Bentham e utilizado por Foucault. Um modelo de prisão que permite vigilância a partir de uma conformação geográfica, onde os sujeitos presos são sempre possíveis de serem vistos. Podemos ampliar este conceito para qualquer situação onde o olhar sobre o outro demonize e/ou menospreze os diferentes, e permita vigiá-los no intuito de tolher suas manifestações. Isto vem ocorrendo com as religiões de matrizes africanas. O preconceito, a discriminação e a falta de informação sobre as manifestações da cultura afro-brasileira faz com que muitos considerem legítimo “esse poder, que tem a possibilidade tanto de vigiar quanto de constituir, sobre aqueles que vigiam, a respeito deles, um saber”. (FOUCAULT, 2008. p. 88) A intolerância religiosa parece estar ligada à construção dessas “verdades” sobre os rituais do candomblé e umbanda. Apesar da divisão atual de poder de nossa sociedade deixar em vantagem as religiões fundamentalistas extremistas sobre as afro-brasilei-
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ras, novos arranjos são possíveis a partir de ações concretas de empoderamento dessas religiões. Uma primeira ação é aumentar o conhecimento sobre essas religiões, combatendo as ideias equivocadas construídas por discursos fanáticos e de ódio. Na intenção de conhecer melhor as manifestações religiosas de matriz africana, elencaremos alguns de seus princípios, os quais se chocam com as posturas exclusivistas e fundamentalistas e, por isso, acabam as colocando como alvo de discursos de ódio. Dentre eles temos: O Princípio da Diversidade, que tem como premissa que os seres humanos são diferentes por natureza. O que reforça tanto o respeito à alteridade quanto a necessidade de complementação dos diferentes na vida comunitária e co-dependente entre os seres do mundo visível e destes com os do mundo invisível. O Princípio da Ancestralidade provedora do “n’gunzo”, na língua africana de tradição Bantu87, ou “axé”no dialeto Yorubá88, a força vital, como sendo a realidade fundante dessas religiões e que permite compreender suas vidas cotidianas. Todo ancestral tem um passado terreno, foi antepassado, mas nem todo antepassado foi ou será ancestral. Para os povos africanos, e também para os afro-religiosos brasileiros, sua cosmovisão está centralizada nos ancestrais e é a partir disso que suas as relações sociais são instituídas. 87 Bantu (Banto): especificação étnico-linguística que corresponde aos países localizados na parte subequatorial do continente Africano, correspondente a países como Moçambique, Angola e República do Congo e outros. Tradições das religiões de matrizes africanas como as Congadas, as Folias de Reis; mesmo que consideradas como manifestações culturais populares, sabemos que elas se constituem a religiosidade por meio da descendência africana e, os candomblés de Angola, no Brasil. 88 Grupo étnico e linguístico localizado ao norte no continente africano composto por países como Nigéria, Benim, Costa do Marfim e etc., de onde se originam os candomblés de tradição Yorubá e Nagô com os terreiros de Jeje, Kêtu, Efón e outros, no Brasil.
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Por fim, e não menos importante, o Princípio Religioso, como forma de ser e viver. A religião como razão primeira das culturas africanas de tradição Yorubá e Bantu, entre outras, é constituída por meio das memórias e codificada pela oralidade. Esta oralidade, que é mais fluida que o saber expresso nos livros sagrados, se adapta às novas configurações sociais ao mesmo tempo em que repete o mito de fundação da religião. Não é de se espantar que isto os partidários do fundamentalismo. Neste sentido, entendemos que o diálogo inter-religioso a partir de seus princípios norteadores como proposto a seguir, pode, de forma cuidadosa, auxiliar em nossa reflexão foco. Isto, por acreditarmos que, assumir o reconhecimento da necessidade de construções de novos saberes de forma transversal e compartilhada é dar o primeiro passo, para abrir-se ao encontro com o outro. Panasiewick (2003) apresenta quatro níveis de encontro inter -religioso, com suas respectivas formas de diálogo: a) nível existencial: presença e testemunho. Diz respeito à vivência espontânea e natural dos valores internalizados pelos fiéis no interior de uma tradição cultural e religiosa, a partir da convivência com eles em ambientes não religiosos. É por isso que os fundamentalistas insistem na postura de gueto relacional, procurando afastar seus membros do contato com pessoas e atos por eles nomeados como mundanos; b) nível místico: oração e contemplação. No nível mítico, as pessoas são chamadas a participar dos rituais de outras religiões. Neste nível compartilha-se a experiência comunitária e a experiência contemplativa da fé perante o Ser, além das diferentes metodologias de se aproximar do Absoluto; c) nível ético: libertação e promoção do ser humano. É o nível do diálogo “das ações e da colaboração com objetivos de caráter Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradições: encontrando caminhos para o diálogo
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humanitário, social, econômico e político que se orientem para o eu”. (PANASIEWICK, 2003, p. 50). Entendemos o nível da ética propício para um tratar de questões com evidências religiosas fundamentalistas. Visto que, tanto por meio da ética pessoal, quando o ser humano usa valores que privilegiam o respeito ao outro, antes de qualquer teoria; e também da ética profissional, preconizada pelo Código de Ética proposto pelo Conselho Federal de Psicologia, podemos construir posturas contra o preconceito e, para além, conseguimos ver, a partir da narrativa do consulente, uma possibilidade de trabalho que privilegie a reflexão, um deslocamento do discurso ou até mesmo uma ressignificação subjetiva acerca da problemática em questão. Uma escuta sem proselitismo e com suspensão de juízo de valor é instrumento de suma importância neste cenário. Ressaltamos que as verdades são relacionais e como tal devem ser consideradas como vetores que indicam por onde e de que forma a questão deve ser conduzida e na melhor das hipóteses, sanada. d) nível teológico: enriquecimento e aplicação dos patrimônios religiosos. O diálogo dos especialistas. O objetivo é “confrontar, aprofundar e enriquecer os respectivos patrimônios religiosos, como também aplicar os recursos, aí contidos aos problemas que se põem à Humanidade no decurso da sua História”. (PANASIEWICK, 2003, p. 50) Falando da valoração inter-religiosa, Vigil (2006) afirma que as pessoas podem utilizar três formas diferentes de valorar as outras visões frente à própria visão religiosa: formas exclusivistas, inclusivistas e pluralistas. A postura exclusivista é aquela que afirma que só a própria crença ou cosmovisão propicia a salvação e/ou reflete, com clareza, a verdade.
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O inclusivismo inclui as religiões de mesma base, por exemplo, todas as religiões cristãs, no rol das possibilidades de salvação; e outras cosmovisões parecidas no rol das verdadeiras. Além disso, alguns pensadores incluem também religiões não cristãs, como as religiões afro-brasileiras, pois elas teriam um cristianismo anônimo que manteria características cristãs sem nomeá-las desta forma. A terceira postura é a do pluralismo. O pluralismo afirma que a salvação está em Deus. Afirma também que cada cultura percebe alguns aspectos de Deus e ignora outros, visto que Deus é inacessível à mente humana. Assim, todas as religiões, apesar de não serem iguais, seriam verdadeiras, pois ofereceriam uma leitura de partes desse divino. Existem algumas disposições e condições para que o diálogo inter-religioso seja possível, são elas: o respeito ao outro, em sua identidade própria; a fidelidade à sua própria identidade; certa igualdade entre os parceiros; consciência de humanidade e a abertura de valor de alteridade. A partir disso, entendemos que a espiritualidade, produção de sentidos relacionais, concomitantemente com as práticas psicológicas pode ser instrumento de enfretamento ao fundamentalismo. Elencamos, como possibilidades de intervenção psicológica nesses campos de conflitos: promoção de diálogos; mediação de conflitos; reflexões contra as introjeções de preconceitos religiosos; ensino nas universidades sobre questões religiosas e suas influências nas práticas psicológicas; além da formulação e apoio a leis específicas como papel dos Conselhos.
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Considerações finais Temos, no cenário brasileiro atual, grandes desafios, dentre eles o de sermos responsáveis e justos em nossas reflexões e, consequentemente, em nossas ações. Nesse sentido, devemos nos esforçar para diferenciar a defesa de fundamentos políticos e/ou religiosos e outros, conservadores ou não, de atos extremos ou fanáticos expressos, verbal ou fisicamente, de forma violenta. Sendo assim, o tratar psicológico de posições fundamentalistas que se apresentam em nossos cotidianos, sobre racismo, xenofobia, homofobia e outras, depende do conhecimento e aceitação das diferenças, de uma consciência crítica, profissional e humana. No caso da religião, entendemos que não há uma religião em abstrato, as religiões se apresentam à Psicologia de modo geral, corporificadas em pessoas e organizações. São essas pessoas e organizações os locus de intervenção do saber psicológico, mais do que as doutrinas, locus de intervenções teológicas. As práticas fundamentalistas violentas e discursos de ódio cometidos contra grupos minoritários, como as religiões de matrizes africanas, surgem em contexto de competitividade religiosa, nos moldes do mercado de consumo, ancoradas nas vontades de angariar poder e dinheiro. Essas religiões, neste contexto, sofrem de dupla desvantagem. Primeiro, por carregarem uma menos valia ligada culturalmente à herança africana; e segundo, por não fazerem proselitismo, pois não se colocam como melhores que outras religiões, e oferecerem seus “produtos” simbólicos sem a necessidade de conversão. Quanto à espiritualidade, dimensão do sentido, quando bem trabalhada, coloca os seres humanos diante à uma vivência relacional com outros seres humanos, visto que o “eu” se define
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frente ao “não eu”. Essa relação, com respeito à alteridade, é, em no nosso entendimento, a principal arma no combate aos fundamentalismos. Cabe à Psicologia, como ciência e prática social, se debruçar sobre essa questão e criar metodologias que facilitem a vivência do diálogo e do respeito à diferença.
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SILVA, Vagner Gonçalves Da. Prefácio ou Notícias de uma Guerra Nada Particular os ataques neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil. In: Intolerância Religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007. SOARES, Mariza de Carvalho. “Guerra Santa no País do Sincretismo” In: Sinais dos tempos: diversidade religiosa no Brasil. Cadernos do ISER, 23:75-104,1990. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. TEIXEIRA, Faustino. O Pluralismo Religioso e a Ameaça Fundamentalista. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 10, n. 1 e 2, p. 9-24, 2007. TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata. Religiões em Movimento: o Censo de 2010. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 17-36, 2013. VIGIL, José M. Teologia do pluralismo religioso: para uma releitura pluralista do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006.
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Terapia no mundo antigo e suas implicações para um diálogo entre Psicologia e Teologia
Davi C. Ribeiro Lin Doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Brasil (2019). Psicólogo.
Introdução Este artigo recupera a ideia de terapia na antiguidade, visando reconhecer referências de saber interdisciplinar e caminhos de diálogo para a Psicologia. Em outras palavras, porque a Filosofia antiga e a Teologia patrística têm uma concepção elaborada de terapia da alma muitos séculos antes da Psicologia fazer-se ciência, a relação entre Psicologia e outros campos do saber não é necessariamente uma história de conflito inevitável, mas pode abrir-se a um diálogo interdisciplinar de cooperação e enriquecimento mútuo. Se a Psicologia quiser manter um ouvido atento em tempos de polarização e radicalismos no campo religioso e científico, ela é convidada a cultivar um diálogo respeitoso entre diferentes campos do saber, mantendo tanto uma postura epistemológica clara, quanto intencionalmente evitando uma miopia histórica que desconhece as potencialidades e limites de tradições e saberes anteriores a própria ciência psicológica. No atual contexto brasileiro, fomentar um caminho de interdisciplinaridade entre Teologia e Psicologia torna-se necessário diante do crescente processo de disjunção e ausência de diálogo entre fé religiosa e ciência ou uma sobreposição que não compreende a singularidade de cada enfoque.
A terapia na antiguidade Pierre Hadot destaca que a Filosofia no mundo antigo se relacionava a uma escolha de um modo de vida em comunidade integrando discurso filosófico como teoria com uma prática existencial. Consequentemente, a Filosofia antiga difere radicalmente daquilo que conhecemos por Filosofia no século XXI: era uma
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escolha por um caminho filosófico, não como um apêndice da reflexão, mas seu ponto de partida, integrada a uma visão global de certo modo de viver89. O discurso filosófico na antiguidade relacionava-se a uma escolha de opção existencial, nunca feita por um indivíduo isolado, mas orientado por uma escola rumo a um ideal de felicidade. Exigia uma mudança de estilo de vida e conversão do ser como uma preparação para a sabedoria90. Uma essencial tarefa das diferentes escolas filosóficas relacionava-se a justificar essa escolha existencial, incorporando sua visão de mundo à prática, na qual o discurso filosófico expressava um caminho terapêutico de um tipo de vida escolhida. A Filosofia na antiguidade clássica tinha como tarefa principal a terapia da alma. Cícero (106-43 a.C.) orador, filósofo e político romano, descreve a necessidade de se despertar no paciente um conhecimento sobre a ambiguidade de seu próprio estado de enfermidade: “A alma julga sobre si mesma quando justamente o que nela julga está doente”91. Ao contrário da Filosofia moderna, que se ocupou mais com fundamentações normativas, a ética antiga centrou-se na busca da felicidade e do sumo bem, e desembocou em um desenvolvimento de uma ars vivendi, uma metodologia terapêutica para se alcançar a meta de uma vida92. A consequência é que a Filosofia antiga tomou para si a necessidade da criação de métodos que conduzissem um ser humano ao caminho da felicidade, propondo um autoconhecimento e métodos terapêuticos pelos quais o homem tornava-se cônscio de sua enfermidade, e assim poderia ser conduzido ao caminho da 89 Hadot, Pierre. What Is Ancient Philosophy? (Cambridge: Harvard University Press, 2002), 3 90 Ibid., 4. 91 Cicero, Tusculana e disputationes, III 1. 92 Johannes Brachtendorf, Confissões de Agostinho (São Paulo: Loyola, 2008), 14.
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felicidade. Portanto, aquilo que hoje conhecemos como parte do objeto de estudo e prática da Psicologia, era na antiguidade uma ocupação filosófica. O papel do terapeuta na era helenística era ocupado por guias filosóficos que curavam através da palavra: o discurso precisava adequar-se ao estado do paciente e o uso da retórica buscava um ideal de florescimento, não como um Deus, nem como um animal, mas como um humano. Conversas pessoais com um sábio filósofo buscavam harmonia com o universo, em uma concepção na qual a Psicologia e a física não se distanciavam, mas participam da mesma ordem cosmológica em vistas a uma opção existencial de realização da felicidade humana. Pode-se afirmar que aquilo que conhecemos hoje como prática psicoterapêutica não era totalmente compreendida no mundo antigo; no entanto, suas raízes têm uma longa tradição na história das ideias psicológicas. Uma incipiente psicoterapia foi desenvolvida na antiguidade nos campos da história médica, Filosofia e da Teologia na tradição judaico-cristã. Também é relevante notar que, mesmo no mundo antigo, as disciplinas já estavam encontrando suas especificidades. Hipócrates, que encarnou os valores do que é hoje a profissão médica, tendeu a destacar o tratamento somático, embora ele se esforçasse por ter mente e corpo sadios. Os filósofos, em contraste, eram hábeis na cura através de belas palavras, na arte da retórica. A tradição filosófica da terapia helenística também foi denominada como “psicagogia”, um sistema de cuidado dedicado ao desenvolvimento holístico do seguidor. Como bem sintetiza Paul Kolbet, a “psicagogia” refere-se a “tradições de terapia filosoficamente articuladas, comuns na literatura helenística, relativas a como uma pessoa amadurecida leva os menos maduros a perceber e internalizar a sabedoria por si mesmos. Essas tradições,
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além disso, enfatizam que para o discurso terapêutico ser eficaz, ele deve se basear no conhecimento e persuadir adaptando-se de maneiras específicas tanto ao estado psíquico do receptor como à ocasião particular”93. Consequentemente, não é difícil perceber como esse ideal cultural também influenciou o cristianismo e a seguinte articulação teológica. A “psicagogia” também foi apropriada por judeus e cristãos que, interessados em desenvolver meios para o desenvolvimento da pessoa humana a partir da perspectiva da fé, integraram a tradição judaico-cristã com os ensinamentos da Filosofia helenística. Fílon e os terapeutas de Alexandria viveram no primeiro século da era cristã em um caldeirão de encontro entre cultura grega e tradição judaica. Reconhecendo que a tarefa da Filosofia era terapêutica e integrando-a no judaísmo helenístico, cultivou um modelo integrado da unidade da pessoa. Seu modelo de saúde não se limitava ao corpo ou retirava o olhar das dimensões psíquica e espiritual da vida, mas buscava-se um cuidado com a pessoa humana em seu corpo, alma e espírito: terapeutas com uma antropologia holística, buscando o cuidado de ser em suas dimensões corporal, psíquica e espiritual em sua integralidade constitutiva94. Ao terapeuta, cabe uma escuta que não é somente um ato corporal, mas a condição para a saúde psíquica e que se revela uma postura espiritual95. O ouvir é o primeiro chamado da shema hebraica, “Ouve, ó Israel”. A consequência é que se institui um modelo antropológico holístico com escuta integral que inspira na atualidade um trabalho em conjunto de diferentes disciplinas, como medicina, 93 Paul R. Kolbet, Augustine and the Cure of Souls: Revising a Classical Ideal (Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2010), 8. 94 Jean-Yves Leloup. Prendresoin de l’être: Philonet les thérapeutes d’Alexandrie (Paris: Albin Michel, 1999). 95 Ibid., 83.
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Psicologia e espiritualidade. Fílon efetua uma síntese terapêutica entre as tradições da antropologia judaica e a helenística: exemplo de uma prática na tradição de matriz judaico-cristã que, ao inserirse em um diálogo com a cultura helênica de maneira frutífera, se posiciona contra um olhar fragmentado ao indivíduo e a favor do cuidado com a pessoa inteira. Com o desenvolvimento da fé cristã em um corpo de saber e perspectiva teológica, a Teologia valida o ideal filosófico de terapia e o apropria dentro da tradição cristã. Na interação entre a herança greco-romana e a tradição judaico-cristã, filósofos cristãos acolhem para si práticas da Filosofia helenística e o adaptam, afirmando a fé cristã como a verdadeira philosophia. Agostinho (354-430), orador e retórico na corte imperial de Milão, e posteriormente bispo de Hipona, era consciente de que as palavras não somente informam, mas performam e moldam a direção dos afetos. Em uma de suas cartas, ele recomenda um tratamento da vida interior, algo que parece aproximar-se de uma recomendação a psicoterapia em dias atuais: “se esses problemas te incomodam, assim como eles me perturbam, discuta-os com algum médico do coração (cordis medico), caso encontres alguém onde moras ou quando fores a Roma”96. Agostinho é, possivelmente, o maior responsável na adaptação cristã do modelo clássico de terapia. Apesar de conservar os mesmos ideais por sabedoria que herdou da leitura de Cícero, Agostinho vê, no Christus Medicus, o modelo do sábio médico filosófico: a encarnação de Cristo, sua humanidade permitiu uma troca na qual os seres humanos trazem suas doenças, mas através de sua identificação com as feridas humanas, Cristo os dá vida. A consequência é que Agostinho retém o ideal filosófico, e ao mesmo tempo traz a ideia de terapia para a Cristologia e a Teologia. 96
Santo Agostinho, ep. 95.6.
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Confissões, uma expressão autobiográfica de um narrar sobre si dentro de um horizonte relacional-terapêutico, descreve a jornada da conversão da vida interior de Santo Agostinho em direção a uma vida relacional mais autêntica. Sua conversão, ao deixar a carreira como um profissional do mercado da oratória e retórica, é também um novo jeito de se comunicar com o mundo, um manifesto de uma vida interior que abandonou a manipulação das palavras visando o ganho pessoal. Agostinho percebe-se como alguém que é feito a partir de relações de acolhimento e graça. Suas noções elaboradas sobre interioridade, memória e um ideal comunitário de transformação da vida interior sinalizam que a antiguidade, tanto na Filosofia quanto na Teologia, já era dotada de modelos psicológicos complexos. Apesar de não terem um caráter científico moderno, limitados pelo próprio avanço e horizonte dos antigos séculos, tanto a Filosofia helenística, quanto a Teologia patrística se propunham a cuidar da pessoa humana e de seus processos psíquicos. Como aponta Paul Kolbet, situar Agostinho como antigo terapeuta, ou pelo menos um proto-terapeuta, permite-nos compreender a complexidade de um saber psicológico de outra época e ao mesmo tempo tomar consciência de nossas próprias pressuposições. Ao tomar uma tradição filosófica complexa como a da Filosofia clássica e produzir um modelo filosófico teológico profundo como o descrito em Confissões, Agostinho de Hipona aponta para a possibilidade de pessoas com um conhecimento teológico produzirem um saber psicológico aprofundado, contendo elementos originais. Um dos desafios da na contemporaneidade e da nossa profissão enquanto psicoterapeutas é que podemos sofrer de uma miopia histórica. Enquanto ciência nascida no século XIX, gerada na confluência das ciências naturais, Filosofia e estudo da
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fisiologia, a Psicologia estabeleceu uma necessária relação de diferenciação. Entretanto, distinção não significa necessariamente banimento de diálogo, mas clareza e limites necessários. Pelo nosso desconhecimento do saber psicológico anterior ao século XIX, a Psicologia pode fechar-se em uma atitude de afastamento em vez de mutuo enriquecimento com campos como a Filosofia e a Teologia. Apesar das transformações históricas nos diferentes campos do conhecimento e da distância entre antiguidade e contemporaneidade, Teologia, Filosofia e Psicologia podem participar de um diálogo interdisciplinar fecundo, reconhecendo limites e possibilidades, se retém tanto epistemologias próprias e claras, quanto uma abertura a construção de pontes de contato. A ideia de conflito inevitável entre saber científico e a espiritualidade é também fruto de uma ciência nascida em um momento histórico que reforçou a distância entre a ciência e a expressão religiosa. No século XIX, com o desenvolvimento de ciência e de uma classe distinta – o cientista – ganha força o discurso de confronto inevitável entre ciência e comando religioso. A nova classe de cientistas questiona a autoridade da igreja: as ciências nascidas no século XIX e início do século XX tenderam a se estabelecer em contraposição à linguagem religiosa. A ideia de conflito inevitável carrega também contornos de substituição de saberes, como exemplificada pelo cientista natural e evolucionista Thomas Huxley. Seus textos científicos são descritos como “sermões”, e o museu de história natural é “a catedral da natureza”. A Psicologia nasce nesse contexto do século XIX, com uma visão de conflito entre ciência e fé. Em O Futuro de Uma Ilusão, de 1927, Sigmund Freud parte do princípio de que a religião foi criada pelo homem por motivos de auto conservação, por seus desejos pulsionais; é uma projeção de sua orfandade, de um nar-
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cisismo infantil e, portanto, o ser humano precisa da descrença para abrir-se à liberdade. Há de se notar que a crítica de Freud é válida quando a religiosidade reproduz medos infantis e não permite um amadurecimento humano. Entretanto, nem todos os psicanalistas que correspondiam com Freud compartilhavam de sua mesma visão sobre a questão religiosa, como no caso do pastor reformado, teólogo e psicanalista Oskar Pfister, com quem Freud manteve uma amizade e extensa correspondência por trinta anos. Como se evidencia na rica correspondência entre ambos, as dissonâncias não impediram um diálogo fecundo.97
Caminhos de interdisciplinaridade A primeira condição necessária para que a Psicologia se reconheça como um saber em diálogo é uma clareza epistemológica entre o campo religioso e o científico. No excelente texto Ser cristão e ser psicólogo, endereçado ao Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), a psicanalista e doutora em Teologia Karin Wondracek descreve diferentes modos de interação entre Psicologia e fé, em um contínuo que vai desde perigosos atalhos de junção, a dissociações reativas98. Wondracek também discute o aporte da Psicologia da religião, as contribuições propriamente teológicas e como algumas junções entre Psicologia e fé podem ser prejudiciais. O argumento reforça que não é justo que se use no consultório oração aos santos, bíblia, mediunidade ou florais exotéricos ao invés de sua abordagem teórica, abandonando Freud, Rogers, Gestalt, substituindo a técnica pela religião. É desleal e antiético quando profissionais religiosos 97 Karin Wondracek, O amor e seus destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre psicanálise e teologia (São Leopoldo: EST/Sinodal, 2005). 98 Karin Wondracek, Ser cristão e ser psicólogo, em Psicoteologia, 2º. semestre 2013.
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não levam a ciência a sério e a metodologia terapêutica de sua abordagem: deixam a formação que receberam nos anos de graduação em Psicologia, transformando um espaço de escuta em outro de pregação. A máxima bíblica “de graça recebestes, de graça dai” também se aplica: parafraseando as palavras do próprio Cristo, não se pode esperar ganho financeiro quando se usa uma mensagem espiritual como método de intervenção terapêutica. O próprio Cristo criticou os líderes religiosos de seu tempo que, em nome de uma religião neurótica, impunham fardos sobre os mais simples. Apesar dos atuais esvaziamentos na compreensão dos limites entre saberes, paradoxalmente, a própria tradição teológica é rica nesta interface interdisciplinar que respeita as balizas de ambos os campos. Desde o Concílio da Calcedônia do ano de 451, que articulou mais profundamente a dupla natureza de Cristo, mantendo tanto sua natureza divina e humana, articulam-se teologicamente duas dimensões diversas, sem perder a validade e singularidade de ambas. O concílio não apenas conceitua uma verdade a respeito das duas naturezas do Cristo, mas se torna um paradigma para dialogar campos e diferentes saberes99. Ao recuperar o paradigma proposto por Calcedônia, o teólogo de Princeton James Loder é um exemplo de capacidade de diálogo interdisciplinar entre Psicologia e Teologia a partir da antropologia teológica100. Há de se perceber, portanto, que a ausência de um básico conhecimento teológico entre profissionais que se dizem cristãos fomenta a incapacidade de diálogo entre os campos religioso e o científico. Não é o saber teológico ou a expressão da doutrina o problema, mas uma superficial religiosidade que não permi99 Ibid,. 13-14. 100 James E. Loder, The Logic of the Spirit: Human Development in Theological Perspective. (San Francisco: Jossey-Bass, 1998).
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te um aprofundamento na mesma. Infelizmente, uma devoção cristã que pouco conhece a própria tradição teológica, seja ela Católica ou Protestante, pode reduzir-se em um fechamento, uma redoma anti-intelectualista que impede o aprofundamento interdisciplinar. Há, entretanto, dentro dos recursos da própria tradição religiosa, elementos que facilitam e provocam o diálogo respeitoso com a ciência e a Psicologia. A fé cristã, assim como a experiência espiritual em diferentes religiões, busca o florescimento da experiência humana e do bem comum de toda sociedade, e como objetivo de cuidar da pessoa e de seu mundo, e se insere em objetivos semelhantes ao que se propõe a Psicologia. Por outro lado, parece-me que uma atenção à questão religiosa e as expressões da espiritualidade humana precisam achar espaço nos diálogos da Psicologia. As perguntas mais fundamentais sobre o sentido de vida, transcendência e o absolutamente outro parecem fazer parte da vivência humana ao longo dos séculos e, possivelmente, de toda constituição humana. Se, em reação ao fundamentalismo religioso, pressupomos que a experiência religiosa certamente tem elementos patológicos, não acompanhamos a experiência humana dos nossos pacientes. O risco é invalidarmos a experiência religiosa quando ela é expressão humana de uma busca por sentido e transcendência. Se considerarmos que a vivência religiosa é doentia, ela já se constitui um olhar terapêutico enviesado e para nós já tem, a partir de nosso olhar presente, o futuro de uma ilusão. Infelizmente, porém, se desvalidamos previamente a experiência de fé da pessoa, corremos o risco de não realizarmos a contemplação desinteressada da epoché fenomenológica de Husserl ou a aceitação incondicional de Carl Rogers: não acompanhamos a pessoa. Não acolhemos o sofrimento e a nossa capacidade de empatia fica reduzida. Não
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proponho que vejamos todos os processos religiosos na clínica psicológica como saudáveis, mas que mantenhamos a abertura de toda boa ciência ao mistério da vida que se apresenta. A pergunta sobre Deus e o sentido da vida parece perpassar a própria constituição da experiência humana: quer a acolhamos ou não, ela não deixará os consultórios de Psicologia. À essa separação que não acompanha a pessoa, que faz da disjunção entre Psicologia e fé o seu objetivo primeiro, também podemos tragicamente chamar de fundamentalismo. Creio que em épocas de polarização como a nossa, precisamos rejeitar os dois fundamentalismos, o religioso e o secular, em nome de um diálogo respeitoso que considere a integridade do conhecimento científico. Paralelamente, os psicólogos na clínica são chamados a recusar respostas prontas e permanecer diante do mistério, pois como indica Ancona-Lopez, o símbolo religioso, a palavra e o rito excedem a capacidade de compreensão racional: “a inclusão da experiência religiosa na clínica psicológica exige abertura para a metáfora, para os símbolos, para o desconhecido, para o reconhecimento do instante fugaz em que um significado, restaurado, torna-se pleno de vida”101.
Conclusão Dizer que não é possível praticar psicoterapia e, ao mesmo tempo, cultivar uma abertura à dimensão religiosa dos clientes é uma atitude reducionista e constitui-se como miopia histórica. Ao longo dos séculos, desde a antiguidade, pessoas que cultivavam princípios filosóficos e valores religiosos se envolveram 101 Ancona-Lopes, Marília. Religião e psicologia clínica: quatro atitudes básicas. In: Massimi, M.; Mahfoud, M. Diante do mistério: Psicologia e senso religioso (São Paulo: Loyola, 1999), 85.
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para contribuir para o avanço da cultura, arte e ciência, porque viam em sua vocação profissional um modo de cultivar e servir no mundo e ao bem comum. Aqueles entre nós com uma vivência espiritual fecunda carregam uma consciência de que a vida inclui a dimensão do mistério: sem transcendência, seja ela através da arte ou da experiência espiritual, os valores da sociedade passam a ser guiados por uma sociedade capitalista e materialista, que adoece a saúde emocional. O caminho da interdisciplinaridade entre Teologia e Psicologia torna-se urgente diante do crescente processo de disjunção entre fé e ciência e sobreposição, que não compreende a singularidade de cada enfoque. Um caminho de diálogo profícuo entre ciência psicológica e fé dependerá da formação de profissionais em Psicologia que tenham um respeito à dimensão humana em sua procura por transcendência e sentido; consequentemente, estarão abertos a acolher a busca contida na experiência religiosa dos seus clientes. Cabe à Psicologia não somente reforçar as singularidades de cada campo, mas, em uma atitude de humildade diante das fontes que recebemos do passado, abrir-se a interdisciplinaridade, incluindo pessoas com uma espiritualidade viva que queiram contribuir à Psicologia cultivando rigor acadêmico e prática profissional ética.
Referências bibliográficas AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Paulus, 1984 AGOSTINHO, Santo. Epistola 96. In: Library of Latin Texts: CLCLT-5. Moderante Paul Tombeur. Turnhout: Brepols, 2002. 3 CD-ROMS. (Database).
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ANCONA-LOPES, Marília. Religião e Psicologia clínica: quatro atitudes básicas. In: Mahfoud, M.; Massimi, M.. Diante do mistério: Psicologia e senso religioso. São Paulo: Loyola, 1999. BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. São Paulo: Loyola, 2008. CICERO. Cicero’s Tusculan Disputations. Also, Treatises On The Nature Of The Gods, And On The Commonwealth. Project Gutenberg, 2005. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996. HADOT, Pierre. What Is Ancient Philosophy? Cambridge: Harvard University Press, 2002. KOLBET, Paul R. Augustine and the Cure of Souls: Revising a Classical Ideal. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2010. LELOUP, Jean-Yves. Prendresoin de l’être: Philonet les thérapeutesd’Alexandrie. Paris: Albin Michel, 1999. LODER, James E. The Logic of the Spirit: Human Development in Theological Perspective. San Francisco: Jossey-Bass, 1998. WONDRACEK, Karin. “Ser cristão e ser psicólogo”, Psicoteologia, 2º. semestre 2013, 8-15. WONDRACEK, Karin. O amor e seus destinos: a contribuição de Oskar Pfister para o diálogo entre psicanálise e Teologia. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2005.
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Anexo I
Nota de posicionamento sobre laicidade e religião No momento histórico vivido pelo país, a Psicologia brasileira – ciência e profissão – vem a público apresentar seu posicionamento frente a uma das temáticas mais relevantes para a manutenção das instituições democráticas que garantem o Estado de direito, conforme prevê o Artigo 5º da Constituição Federal: a laicidade do Estado e a liberdade religiosa. O CRP-MG, como autarquia pública, preocupado em zelar pelo Estado de direito e pelas instituições democráticas, gostaria de reforçar os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional das(os) Psicólogas(os), especificamente o parágrafo primeiro: “O psicólogo baseará seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.” Entendemos que o Estado laico é o modelo social que nos garante as condições de direito que precisamos defender; é através da laicidade do Estado que a diversidade religiosa pode ser garantida e legitimada como manifestação da pluralidade étnica que define a construção de nosso povo.
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O CRP-MG reconhece a importância dos fenômenos culturais na formação da subjetividade, e por isso legitima as tradições religiosas em toda a sua diversidade como fenômenos importantes para a compreensão do ser humano. Por isso, defendemos a laicidade do Estado como condição fundamental para que o direito à diversidade religiosa seja garantido. É preciso, ainda, ressaltar a laicidade da própria Psicologia que, enquanto ciência, fundamenta a construção de seu saber na pesquisa rigorosa e metodologicamente estruturada e comprovadamente eficaz. Não podemos, portanto, utilizar de preceitos de fé ou dogmas teológicos na produção de nosso saber e de nosso fazer como Psicólogas(os). A(O) profissional da Psicologia, no exercício de sua prática, deve saber respeitar as pessoas com quem trabalha, reconhecendo suas histórias e trajetória existencial, não impondo ao outro seus próprios valores, como preconiza a alínea b, do artigo 2º, do Código de Ética: “Ao psicólogo é vedado: induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual, ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais.” Por isso, a identidade profissional da(o) psicóloga(o) não deve estar vinculada à sua tradição religiosa, sendo inapropriada a utilização de termos como “Psicologia espírita”, “Psicologia cristã”, “Psicologia umbandista”, “Psicologia budista”. E, no exercício de sua prática, é preciso que suas convicções religiosas não conduzam o processo, que deve ser orientado pelas técnicas produzidas pela ciência psicológica.
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