ENTREVISTA | REVISTA CRP-MG
edição 3
Psicólogas(os)
encaram a pandemia e se reinventam, sensíveis às novas tessituras sociais Caminhos e desafios da valorização e reconhecimento da profissão pág. 5 Como a crise sanitária incidiu sobre a categoria pág. 10 1
crp
edicão 3 agosto 2021
revista
minas gerais
EXPEDIENTE SEDE Rua. Timbiras, 1532, 6° andar, Lourdes, Belo Horizonte, MG, CEP 30140-061. Telefone: (31) 2138-6767 E-mail: crp04@crp04.org.br Site: www.crpmg.org.br
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REVISTA DO CRP-MG Publicação do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRP-MG)
Cristiane Santos de Souza Nogueira I Centro-Oeste Elza Maria Gonçalves Lobosque I Sudeste Evely Najjar Capdeville I Sede Fabrício Júnio Rocha Ribeiro I Sede Jéssica Gabriela de Souza Isabel I Sede João Henrique Borges Bento I Triângulo Larissa Amorim Borges I Sede Liliane Cristina Martins I Sede Lourdes Aparecida Machado I Sede Luís Henrique de Souza Cunha I Norte Luiz Felipe Viana Cardoso I Sede Marleide Marques de Castro I Leste Paula Khoury I Leste Reinaldo Júnior I Centro-Oeste Renata Ferreira Jardim I Sede Rita de Cássia de Araújo Almeida I Sudeste Rodrigo Padrini Monteiro I Sede Suellen Ananda Fraga I Sede Ted Nobre Evangelista I Norte Thiago Ribeiro de Freitas I Sul Walter Melo Júnior I Sudeste Yghor Queiroz Gomes I Triângulo
EQUIPE DE COMUNICAÇÃO CRP-MG Andressa Chaves Antônio Paiva Carolina Melo Cristina Ribeiro Cristiane Bragança Eliziane Lara Guilherme Sá Nathalia Monteiro
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
COMISSÃO EDITORIAL: XVI PLENÁRIO (GESTÃO 2019-2022)
Mota Produções
DIRETORIA
Cristina Ribeiro (MTB 5222) Jornalista Responsável
Lourdes Aparecida Machado Conselheira Diretora Presidenta Suellen Ananda Fraga Conselheira Diretora Vice-Presidenta Evely Najjar Capdeville Conselheira Diretora Tesoureira Reinaldo da Silva Júnior Conselheiro Diretor Secretário
CONSELHEIRAS(OS) Anderson Nazareno Matos I Centro-Oeste Bruna Rocha Diniz de Almeida I Leste Camila Bahia Leite I Triângulo Carolina Siqueira Coutinho I Sul Cláudia Aline Carvalho Esposito I Sul
EDIÇÃO
REPORTAGEM Antônio Paiva (estagiário CRPMG), Cristina Ribeiro (assessora de Comunicação CRP-MG), Eliziane Lara (Jornalista CRP-MG), Guilherme Sá (estagiário CRP-MG)
REVISÃO Mota Produções
IMPRESSÃO Finaliza Editora e Indústria LTDA
TIRAGEM 40 mil exemplares
Envie sugestões de temas para jornalismo@crp04.org.br Leia a Revista do CRP-MG em versão digital no site www.crp04.org.br 2
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EDITORIAL
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ENTREVISTA
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Psicologia, ciência e profissão de muitas para muitas
ESPECIAL
Quando a pandemia nos atravessa
ARTIGOS
Entre corpos, máquinas e vírus: um ensaio sobre o agora Elaboração de documentos na prática da Psicologia: algumas reflexões A Psicologia Escolar no contexto da pandemia
REPORTAGEM DE CAPA
Psicólogas(os) encaram a pandemia e se reinventam, sensíveis às novas tessituras sociais
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ORIENTAÇÃO E FISCALIZAÇÃO Quem são as(os) psicoterapeutas? Psicoterapia por Psicólogas(os) e Não Psicólogas(os)
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ÉTICA
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IDEIAS E IDEAIS
Mediação de conflitos: A atuação da comissão de ética e comissão de meios de solução consensual de conflitos
Pandemia impõe desafios para além do planejado
EDITORIAL Um ano e meio se passou desde o início da pandemia de Covid-19, no Brasil. Um constante e complexo aprendizado nos tomou, sob o impacto das incertezas. Nós, psicólogas(os), preparadas ética e tecnicamente para acompanhar as transformações sociais, do dia para a noite, nos vimos diante da urgente demanda pela reinvenção da nossa forma de trabalhar. Na esteira da recriação de novos modos de trabalho, nos inspiramos no que temos de mais caro no Brasil, no âmbito da saúde: o Sistema Único de Saúde (SUS). Esse programa capaz de compreender a pluralidade da população, com táticas e técnicas baseadas na abordagem coletivista, e que foi definitivamente assimilado como fundamental para o país. Sim, nós, psicólogas(os), que também fazemos parte do SUS, do SUAS, da Educação, do Sistema Prisional e Socioeducativo, da Clínica, das Organizações e de tantas outros espaços, nos destacamos na vitrine do reconhecimento social, pois em tempos pandêmicos, cuidar da saúde mental se tornou primordial mesmo para quem ainda não alcançava esta percepção. No entanto, veio o triplo desafio: mitigar os impactos na saúde mental provocados pelos efeitos sanitários, sociais e econômicos; proteger portadoras(es) de sofrimento mental do aumento de suas vulnerabilidades; cuidar de nossas(os) colegas que também atuam na saúde; e focalizar no autocuidado, pois também somos afetadas(os) por todas essas questões. E neste exato momento, quando já podemos compartilhar tantas reflexões, tantos novos modos de fazer Psicologia, completamos 59 anos do registro profissional, indicando maturidade, evolução e refinamento do compromisso com a sociedade. Nada melhor, que relançar nossa revista, nos presenteando, nos reconhecendo, por todo o trabalho com tanta coragem e ousadia. Nesta edição, duas grandes reportagens entrelaçam histórias de todas(os) nós, psicólogas(os), representadas(os) na voz de colegas de cada canto dessas Minas Gerais. São relatos de experiências, de dúvidas e de superações. São narrativas de como se organizar em meio ao caos para estabilizar sentimentos e sobreviver ao esgotamento físico e mental. Na seção Entrevista, fazendo a essencial marcação da representatividade feminina, negra, de classe social e realçando o valor da nossa profissão, trazemos a história de uma de nós, expondo suas ideias, vivências, reflexões, que nesta mesma época completa dez anos de profissão. Pautas imperativas para a Psicologia que ganham vida nesta psicóloga. Colunas com orientações para o nosso fazer, artigos que refletem nossa atuação e nossas questões completam esta edição, que desenvolvemos com muita qualidade e dedicação. Boa leitura! Parabéns para todas(os) nós.
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Psicologia, ciência e profissão
de muitas para muitas ENTREVISTA Luanda Queiroga Texto e Foto: Cristina Ribeiro
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REVISTA CRP-MG | ENTREVISTA
A sociedade reconhece a Psicologia porque ela vem se colocando no lugar de quem também constrói políticas públicas que visam a garantia dos direitos sociais. Por onde passam a valorização e o reconhecimento da área que tem como missão acolher todas as pessoas, na visão da própria psicóloga Às vésperas de completar 10 anos de graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a psicóloga Luanda do Carmo Queiroga se ampara no conhecimento científico e nas experiências adquiridas na política pública e no controle social, para consolidar posicionamentos acerca das lutas e da trajetória necessária para fazer uma Psicologia comprometida com as conquistas sociais, pautada de forma inegociável nos marcadores relacionados aos Direitos Humanos.
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Nesta entrevista, a servidora no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), no município de Juatuba, conselheira representante do CRP-MG no Conselho Estadual de Assistência Social de Minas Gerais (CEAS) e diretora presidenta do Sindicato das Psicólogas e dos Psicólogos de Minas Gerais (Psind-MG) - que busca diariamente realizar o sonho de usar a Psicologia para solucionar as desigualdades que tanto fazem parte do
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seu cotidiano -, reflete sobre os caminhos que levam ao reconhecimento profissional, os enfrentamentos necessários para manter uma atuação ética e os aprendizados da pandemia por Covid-19. A valorização da psicóloga seria o primeiro passo para garantir uma Psicologia de qualidade, enquanto profissão? Ao pensar em valorização a primeira coisa que me vem à mente é valorizar a(o) profissional, a(o) trabalhadora(or) psicóloga e, portanto, o conceito está completamente atrelado aos direitos. Eu como sindicalista, defensora dos direitos humanos e trabalhistas, acredito que sem direitos é impossível existir alguma valorização. Nesse sentido, mais do que nunca se fazem importantes as pautas históricas da Psicologia: carga horária, trinta horas, piso salarial e remuneração digna. Este momento de pandemia emerge outra pauta fundamental, que é a isonomia de
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condições. Temos visto que em um mesmo espaço de trabalho, como exemplo, nos hospitais, existem condições desiguais de direitos trabalhistas para a(o) psicóloga(o) em relação a outras categorias. Por outro lado, a história da psicologia traçou um caminho de reconhecimento pela atuação de profissionais e das nossas instituições representativas. Conselhos, associações e sindicatos que sempre trabalharam em prol do fortalecimento, desenvolvimento e orientação. Isso me leva a crer que nós também carregamos a responsabilidade pelo nosso fazer e pela consolidação das instituições. Você coloca essa questão muito focada na gestão governamental, de algumas instituições e da própria categoria, mas no atual contexto pandêmico concorda que há um maior reconhecimento por parte da população? Certamente. Temos presenciado a intensificação de muitas questões psicológicas e a consequente procura por uma escuta especializada. A Psicologia é reconhecida como aquela capaz de atender essa demanda, que já era crescente considerando o nosso modo de vida e a forma desigual como a sociedade tem se organizado, ou seja, o sofrimento mental tem se dado por questões individuais e coletivas. Isso traz para a profissão um outro olhar, um olhar sobre os problemas comunitários que também tem sido valorizado por meio da crescente inserção da(o) profissional psicóloga(o) nas políticas públicas. Nesse sentido, cabe uma outra reflexão: a patologização da vida como opção imediatista da sociedade à depressão, à ansiedade e à vivência do luto. A busca por solução rápida e essa grande procura na Psicologia para se adaptar e ficar bem, digamos assim, também deve ser visto de forma coletiva. Neste sentido você acredita que a população também reconhece a(o) psicóloga(o) como alguém que luta pelos direitos sociais? Sim. A sociedade reconhece a Psicologia porque ela vem se colocando no lugar de quem também constrói políticas públicas que visam a garantia dos direitos sociais,
Ocupar é sempre muito positivo, desde que estejamos realmente representadas (os), defendendo nossos direitos enquanto categoria e também da sociedade, que é o nosso compromisso descrito no Código de Ética.
de quem elabora metodologias e formas de atuação compatíveis com o compromisso ético-político explicitado em nosso Código de Ética Profissional. Mas há uma dicotomia porque, enquanto isso, vemos no país um movimento extremamente perigoso de negação da necessidade desses direitos e da nossa própria luta pela sua garantia, orientado por determinados grupos políticos. Mesmo assim mantemos nosso compromisso de contribuir para todos os setores da sociedade, com o avanço e garantias de direitos. É o nosso caminho, nossa missão e enxergo avanços magníficos como em algumas políticas públicas que têm como protagonistas a atuação de psicólogas(os), tanto na execução quanto no controle social. Exemplos muito bem sedimentados são a saúde mental e os Sistemas Únicos de Saúde (SUS) e de Assistência Social (SUAS), onde nossa atuação enquanto instituições - sejam elas conselhos, sindicatos e associações – se dá no controle social, nos fóruns, nas frentes que são criadas para poder discutir e atuar. Temos um papel muito potente até mesmo no sentido do combate aos desmontes pelos quais essas políticas estão passando. A garantia da continuidade desses serviços e da qualidade do que está sendo ofertado, muito se deve também à atuação de psicólogas(os) junto com outras categorias.
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REVISTA CRP-MG | ENTREVISTA
É interessante, então, que a Psicologia ocupe outros espaços, como no poder Legislativo? Existe uma ideia de demonizar os espaços de construção política muito a partir da conjuntura que temos vivido no Brasil. Por essa razão, ocupar é sempre muito positivo, desde que estejamos realmente representadas(os), defendendo nossos direitos enquanto categoria e também da sociedade, que é o nosso compromisso descrito no Código de Ética. O que sai desse formato não nos representa e digo isso porque vemos psicólogas(os), infelizmente, prestando um grande desserviço à população questionando as conquistas no campo da reforma psiquiátrica, propondo a cura gay, entre outras. Temos uma mesma formação acadêmica, mas algumas pessoas misturam o que é da ciência e da profissão com questões morais, pessoais. É impensável. Temos uma ética a seguir e em nome dela devemos garantir
dignidade àqueles que atendemos. Enquanto profissionais e instituições nos cabe denunciar esse tipo de conduta. E ocupando esses outros espaços, representamos também a profissão, mesmo que indiretamente e, nesse sentido, é importante que quem os ocupa cumpra com o compromisso ético-político presente em nosso código de ética. No mesmo sentido de ocupar e também de marcar direitos sociais, a Psicologia tem sido espaço para a(o) psicóloga(o) negra e também para a desconstrução dos preconceitos de gênero? São duas marcações muito importantes. A primeira, de psicólogas(os) pretas(os) ocupando uma profissão historicamente elitista, transformando a profissão naquilo que é de atendimento à realidade da população em geral, da Psicologia voltada para as questões sociais. Sempre digo que
Desde a adolescência vivia aquela ideia de fazer algo para mudar o mundo, para transformar e solucionar as desigualdades e entendi que na Psicologia eu conseguiria. 8
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Esse caminho tão bonito que a própria Psicologia traçou de ser uma profissão comprometida em mitigar as vulnerabilidades me convocou e certamente inspira outras pessoas.
não é necessário ser preta(o) para lutar contra o racismo, muito menos contra as desigualdades, pois são questões que impactam diretamente nas relações e na saúde mental das pessoas. Ao atender temos que compreender todos os fatores que influenciam na trajetória dos sujeitos e por muito tempo fomos atendidas(os) por quem desconsiderava tudo isso. No meu cotidiano de trabalho escuto pessoas em extrema vulnerabilidade dizendo que se sentem acolhidas porque se reconhecem. As questões de gênero são outro ponto fundamental. Recordo que ainda na faculdade via alunas(os) questionando o porquê de estudar a temática, mas em nossa atuação diária ela aparece com frequência por meio das violências, desigualdades. Na nossa profissão mesmo há essa ideia do cuidado psi ser algo do campo do feminino. O estigma relacionado ao nosso próprio sistema machista, patriarcal. Mas temos que desconstruir essa ideia a todo momento. Somos a profissão da acolhida sem relação com gênero ou qualquer outra identidade. Devemos usar o marcador racial para superar estereótipos de gênero, privilégios de classe e cisheteronormatividades. A cada ano aumenta a procura das jovens pela graduação de Psicologia em Minas Gerais. Sabemos que o prestígio de uma profissão também passa pela atratividade da carreira. Você credita ao possível respeito pelas contribuições dadas? Precisamos novamente olhar para a história da Psicologia como uma profissão que começou bem elitizada e que, depois, ao mesmo tempo que via o acesso de mais pessoas às universidades, se inseria nas políticas públicas, podendo atender toda a população. Essas ampliações lhe deram mais visibilidade. Acredito que são fatores que contribuem para esse aumento na procura do curso. Isso sem falar na própria atuação que foi se diversificando ao longo dos anos. Aqui gostaria de fazer um parêntese e falar da minha motivação ao escolher o curso. Desde a adolescência vivia aquela ideia de fazer algo para mudar o mundo, para transformar e solucionar as desigualdades e entendi que na Psicologia eu conseguiria. O que mais me motivou foi exatamente as
desigualdades que encontro na minha realidade. Esse caminho tão bonito que a própria Psicologia traçou de ser uma profissão comprometida em mitigar as vulnerabilidades me convocou e certamente inspira outras pessoas. Valorização também passa por remuneração. Neste sentido, como está a questão das 30 horas da Psicologia, a busca por melhorias nas condições de trabalho e de salário no campo da atuação sindical? Primeiro preciso reafirmar que as(os) psicólogas(os) compõem uma classe trabalhadora. Vejo que em muitos momentos não nos reconhecemos como tal, talvez em função dos espaços privados, como os consultórios e até os próprios processos de trabalho. No entanto, isso é crucial para compreender as dificuldades que enfrentamos ao tentar garantir direitos trabalhistas, inclusive. Fortalecer nossas lutas enquanto classe é primordial. Do contrário parece à sociedade que não temos nossas pautas. Outro ponto nevrálgico é o desmonte desses direitos que temos vivido intensamente. As reformas e a precarização das relações de trabalho que impedem os avanços do que é histórico para a categoria de psicóloga(o). Diante disso, temos que assumir nossas pautas, nos somarmos inclusive a outros profissionais porque quando progredimos todas(os) as(os) trabalhadoras(os) progridem também. Esse é um sentido para a própria Psicologia. Diante dessas convocações é importante dizer que as lutas da nossa categoria permanecem ativas em nível estadual e nacional. Na contramão da nossa luta, no sentido de deslegitimá-la, temos experimentado um movimento forte de enfraquecimento das nossas instituições. Se estamos aqui abordando o reconhecimento profissional, precisamos nos atentar para isso, pois são essas instituições as responsáveis pela condução das nossas pautas, da nossa valorização. Elas precisam ser fortalecidas por nós, o que inclui participar, avançar junto, para que possam verdadeiramente representar nossas necessidades e construam uma Psicologia cada vez mais compatível com a realidade brasileira. 9
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QUANDO A PANDEMIA NOS
AVESSA
ATR
Como a crise sanitária incidiu sobre a categoria
Texto: Antônio Paiva e Eliziane Lara. Fotos: Agência Brasil: Marcello Casal Jr. / Tânia Rêgo / Tomaz Silva
Onde você estava quando foi declarada a pandemia de Covid-19? Qual foi a primeira ruptura que aconteceu em seu cotidiano? Quais sentimentos você experimentou? É provável que você não precise fazer muito esforço para responder essas perguntas. Um acontecimento dessas proporções produz lembranças profundas e elas nos servirão de guia ao longo desta reportagem. Nossa proposta é investigar como profissionais de Psicologia que atuam em frentes diversas, nas várias regiões de Minas Gerais, sofreram os impactos da pandemia. Todos os relatos apontam para um momento inicial de suspensão, seja nas políticas públicas ou em atendimentos particulares. “No dia 20 de março, foram fechados todos os CRAS [Centros de Referência da Assistência Social] do município. Nós fomos colocados em sobreaviso e não sabíamos o que ia ser daquele dia em diante”, lembra a psicóloga e técnica do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) de Sete Lagoas, Vanessa Ferreira. Há 400 quilômetros de distância, em Alpinópolis, sul de Minas, o psicólogo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família
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(NASF), Tanner Reis, também enfrentou uma reviravolta. O trabalho que antes se destinava a prevenção e promoção da saúde, sustentado principalmente pela atuação junto a grupos em equipamentos públicos da cidade, não podia continuar. A interrupção e a necessidade de construir uma nova forma de atuação veio acompanhada por um componente de manejo exigente: o medo. Para profissionais de saúde desenha-se um dilema. Ao mesmo tempo em que a emergência de uma crise sanitária convoca para atuação, o desconhecido e o risco à vida também levam a um desejo de recolhimento, retração. O psicólogo e professor universitário em Teófilo Otoni, região leste de Minas Gerais, Renato Faria, identifica que a pandemia gerou aumento da demanda por atendimentos psicológicos, inclusive entre profissionais de saúde. No caso da categoria psi, ele observa que há especificidades relacionadas ao campo de atuação que precisam ser consideradas. Profissionais que atendem pacientes com Covid-19, caso da atuação em hospitais; psicólogas(os) que
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trabalham em serviços essenciais, como Assistência Social e Atenção Básica à Saúde; e quem exerce a profissão em espaços privados, como clínicas e empresas, enfrentam questões e níveis de tensão diferentes. No entanto, é possível identificar elementos comuns à categoria. “Há um chamamento à atuação que é quase visceral em boa parte dos profissionais de Psicologia, mas, no caso da pandemia, também há preocupação com o cuidado de si e da família. Essa divisão pode se tornar fonte produtora de sintoma, porque são duas forças literalmente opostas atuando, isso gera um conflito psíquico”, explica Renato Faria. Somamse a esse conflito, representações sociais sobre a(o) psicóloga(o). “Existe uma uma certa fantasia de que o profissional de saúde mental está mais blindado para essas situações em que há grave ameaça e estresse emocional muito forte. E essa fantasia traz uma pressão ainda maior”, afirma. Por causa da pandemia, a psicóloga do Oncovida Hospital Dia, em Montes Claros, região Norte de Minas, Yara Araújo, foi orientada a atender os pacientes em tratamento oncológico de forma remota, o que a permitia trabalhar de casa, que tem uma confortável área verde no entorno. “Quando eu comecei perceber que estava adoecida emocionalmente, comecei a me cobrar. Eu não poderia adoecer, afinal eu estava numa situação privilegiada. Além disso, há uma ideia de que o psicólogo não pode sofrer, não pode angustiar. Eu percebi olhares e falas de cobrança: ‘você está com medo? Mas você não é psicóloga?!”, relata. Yara também participou do projeto de um aplicativo que atendeu pessoas do Brasil inteiro, em especial quem
atuava na área da saúde. Em janeiro de 2021, ela acolheu profissionais de Manaus, em meio à grave crise que gerou o colapso do sistema de saúde do estado. Ouviu muitos relatos de pessoas que tinham perdido colegas de trabalho e estavam atendendo outros em quadros graves. Na mesma época, hospitais de Montes Claros anunciavam lotação máxima. É como se as histórias de Manaus antecipassem um cenário que ela poderia viver em breve. O impacto dessas informações, somado a todos os desgastes gerados pela pandemia, fez com que ela percebesse a necessidade de buscar atendimento psiquiátrico. Em Alpinópolis, os atendimentos em grupo que Tanner Reis fazia no NASF foram substituídos por uma agenda cheia e totalmente dedicada a atendimentos individuais. A demanda crescente, a impossibilidade de fazer os retornos com a periodicidade adequada e o cansaço de uma rotina intensa se acumularam ao longo dos meses e ele também se sentiu no limiar de um esgotamento. “O que eu percebo como mais difícil é a autocobrança: como vou adoecer na hora em que mais precisam de mim?!”, questiona-se. Renato Faria identifica que a pandemia incide sobre um aspecto central do exercício da Psicologia. “O principal instrumento de trabalho do psicólogo é ele mesmo, sua própria subjetividade e emoções. Então, ao mesmo passo que as demandas para o profissional aumentaram, sua principal ferramenta está sofrendo múltiplos estímulos para o estresse. Mais uma vez vejo a atuação de forças contrárias, que provocam adoecimento”, afirma. Na pandemia, as estratégias que auxiliam no trabalho dessa subjetividade, como convívio
O mais difícil é a autocobrança: como vou adoecer na hora em que mais precisam de mim?!
social e atividades de lazer - para citar algumas - estão cerceadas. “Se tem algo que nos ajuda a elaborar os nossos danos é o contato humano. Então, é como uma panela de pressão em que você vai aumentando a chama, mas a válvula que permite a saída da pressão está cada vez mais entupida. Talvez o principal recurso para a saúde mental é conseguir encontrar esses furos, ver no que conseguimos nos equilibrar. Esse movimento é particular e foi se transformando ao longo da pandemia, mas foi necessário um trabalho de aceitação, de reconhecimento dos próprios limites”, pondera.
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PONTES TECNOLÓGICAS Diante da necessidade de manter o distanciamento social, o atendimento on-line apresentou-se como o principal recurso de viabilização do trabalho de psicólogas(os). Inicialmente, visto com alguma resistência e também receio pelo que estava por vir. Renato Faria conta que, apesar do uso de Tecnologias da Informação e Comunicação ser regulamentado pelo Sistema Conselhos de Psicologia , tinha objeções em iniciar atendimentos em psicoterapia dessa maneira. Até então, fazia teleatendimentos em situações pontuais e apenas para clientes que já atendia. “Na psicoterapia, o sujeito traz questões que, às vezes, não divide com mais ninguém. Ele precisa muito de um ambiente onde se sinta seguro, protegido. Talvez esse seja um dos pontos que me trazia resistência”, relata.
Informações sobre regulamentação e cadastro para atendimento on-line estão disponíveis em: e-psi.cfp.org.br.
HUMANO X HERÓI Muitas homenagens compararam a atuação das equipes de saúde no combate à Covid-19 a atos de heroísmo. A estratégia, no entanto, demonstrou-se inadequada. Além de aumentar a pressão sobre as(os) profissionais, negligencia a dimensão humana que marca os comportamentos na pandemia. Quando o primeiro paciente com confirmação de Covid-19 chegou ao hospital onde a psicóloga Gleicy Alves trabalha, em São João del-Rei, região sudeste do estado, ela identificou um impacto imediato. Ainda não havia leitos específicos para esses casos e a equipe deu sinais de insegurança. Com receio de que a situação se agravasse e resultasse em uma demanda que sozinha não seria capaz de atender, ela acionou professores do curso de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei. Docentes e estudantes de pós-graduação articularam o projeto “Cuidando de quem cuida”, que ofertou atendimento on-line a profissionais da saúde. “Foi importante ter o apoio de outros psicólogos, me deu segurança para
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passar por esse período de incerteza. O tempo todo eu estudei, pesquisei e senti que tinha pessoas apoiando e contribuindo diretamente para conseguir ofertar o serviço na instituição”, relata. Apesar de receber reconhecimento de pacientes e familiares em várias ocasiões, Gleicy Alves conta que também há cobrança e impaciência por parte da população. No começo da pandemia, pessoas chegavam a atravessar a rua quando viam profissionais de saúde ou questionavam o fato de estarem transitando em espaços públicos, pois poderiam estar disseminando a doença. Nos momentos de pico, quando houve necessidade de abertura de novos leitos, ela conta que a pressão aumentava significativamente, pois cada leito requer uma equipe e as(os) profissionais já estavam atuando no limite. Ao mesmo tempo, as queixas e reivindicações por mais atendimentos eram frequentes. “Acho que tem que mudar um pouquinho essa postura de só cobrar, porque às vezes a gente cobra sem entender e isso é muito desgastante para quem está ali na frente, fazendo de tudo para dar certo”, avalia.
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Existe uma certa fantasia de que o profissional de saúde mental está mais blindado a situações em que há forte estresse emocional. Isso traz uma pressão ainda maior.
Essas ressalvas mostraram-se comuns. Renato conta que as particularidades do atendimento on-line se tornaram centrais tanto na supervisão de profissionais quanto de estudantes de Psicologia. As dúvidas passam por questões técnicas, como quais aplicativos utilizar, e também pelo cerne do fazer psi. “Recebo muitas perguntas sobre como estabelecer vínculo com o atendimento remoto, isso em qualquer abordagem da Psicologia”, relata. As observações feitas em supervisão e a própria experiência em iniciar atendimentos no modelo remoto o permitiram mudar de ideia. “Essa é uma parte que nos trouxe uma espécie de revolução. Tenho convicção sobre a efetividade desses atendimentos online. Foi um aprendizado”, avalia. Quem também se surpreendeu positivamente foi Yara Araújo. Quando soube que precisaria fazer atendimentos remotos, ficou apreensiva, pois não tinha, segundo ela, habilidades para atuar nesse formato. Mas se tranquilizou já no primeiro atendimento. A empolgação que o paciente demonstrou por ter no celular o meio de manter o contato com a psicóloga, tirou muito do receio
de Yara e a ajudou na adaptação às novas circunstâncias. Cerca de seis meses depois, o teleatendimento estava bastante consolidado. Ela foi convocada a voltar para o regime presencial, mas os pacientes, a maioria idosos, preferiam fazer as consultas de casa. Em março de 2020, a psicóloga Flávia Zarattini atuava no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI), ação da Assistência Social voltada para pessoas e famílias em violação ou risco social, em Belo Horizonte. Ela relata que a Prefeitura manteve abertos os serviços de acolhimento institucional e aqueles voltados à população em situação de rua, os demais fecharam as portas até que se construíssem novas formas de atendimento. Foi aí que o WhatsApp tornou-se instrumento de trabalho: “eu tinha os contatos das famílias que atendia e auxiliava como podia, dando informações. Então, me pediam para tirar dúvidas de vizinhos, de pessoas que estavam com demandas ligadas à assistência social. Passei a fazer muitos atendimentos de pessoas que não necessariamente estavam referenciadas para mim”, relata.
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O tempo todo fui motivando, incentivando. Ela conseguiu o benefício e mandou uma mensagem de texto maravilhosa no telefone corporativo do CRAS para agradecer, disse que fiz um atendimento excelente, que ela se sentiu acolhida.
Com o tempo, os serviços foram reorganizados, as(os) profissionais puderam acessar equipamentos fornecidos pela Prefeitura e os atendimentos presenciais foram retomados com adaptações. Mas o aplicativo de troca de mensagens segue como uma ferramenta de trabalho. Flávia Zaratinni avalia que diante do fechamento abrupto no começo da pandemia e da própria dinâmica que foi se estabelecendo ao longo dos meses, o aplicativo se configurou como um instrumento muito importante para a manutenção dos vínculos com as famílias. Vanessa Ferreira conta que em Sete Lagoas, as equipes de Assistência Social procuram estabelecer estratégias de acolhimento no ambiente virtual. Com satisfação, ela relata que um dos momentos mais marcantes que viveu neste período foi o suporte que ofereceu a uma paciente oncológica que acionou o serviço em busca do “vale-saúde”, recurso que a prefeitura disponibiliza para o transporte de pacientes em tratamento. Segundo Vanessa, o processo para obtenção do auxílio é longo, cheio de idas e vindas. Pelo WhatsApp, ela orientou a paciente sobre os procedimentos e
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foi além: “o tempo todo fui motivando, incentivando. Ela conseguiu o benefício e mandou uma mensagem de texto maravilhosa no telefone corporativo do CRAS para agradecer, disse que fiz um atendimento excelente, que ela se sentiu acolhida. Eu fiquei muito feliz, porque sei que a logística para acessar esse benefício é injusta, mas ela conseguiu e isso me marcou muito”, relembra.
geraram bastante frustração. Para ela, seu fazer profissional parecia fora de rumo e o sentimento é de que estava falhando com quem precisava do seu trabalho.No PAEFI, Flávia Zarattini observou que o foco do trabalho, que é a intervenção em situações de violação dos direitos, precisou ficar em segundo plano. O que também gerou um certo incômodo e reflexões sobre a efetividade das ações realizadas.
POLÍTICAS DE ASSISTÊNCIA
Ao longo dos meses, os serviços foram sendo reorganizados nos dois municípios e as profissionais relatam que o sentimento de frustração vai dando lugar à avaliação de que no contexto de pandemia a necessidade de adaptação é constante. No caso da Assistência Social, o agravamento das vulnerabilidades, aumenta o público que requisita atendimento e torna demandas como acesso a cestas básicas e auxílio emergencial muito prementes. Reconhecer as necessidades que se apresentam e se concentrar sobre elas é o que torna viável a continuidade do trabalho.
SOCIAL E SAÚDE Uma constatação que ficou evidente ao longo dos meses é que a pandemia impacta os grupos sociais de formas distintas. Para as(os) psicólogas(os) que atuam nas políticas públicas esse é um fator central. Se o cenário muda, as estratégias também precisam ser alteradas e, por vezes, o sentimento é de ‘dar um passo atrás’, porque o que se torna urgente pode requerer atuação em pontos considerados básicos. Vanessa Ferreira conta que as dificuldades para estabelecer os atendimentos no início da pandemia
Em Alpinópolis, Tanner Reis prossegue com a agenda de atendimentos individuais. “O trabalho que faço hoje é de bombeiro, é emergencial.
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Acredito que o que pode fazer realmente a diferença é a atuação na promoção e na prevenção, que é o foco do NASF. Tenho tentado dar alta para alguns pacientes e vejo que é um avanço não assumir novos casos, mas não seria ético suspender os atendimentos agora, então, ainda não é possível voltar para os trabalhos em grupo”, relata.
troca de afetos. Flávia Zarattini a considera como uma das suas principais redes de apoio, tanto pelo auxílio mútuo como pela possibilidade de compartilhar as angústias da rotina. Antes, esses encontros aconteciam quinzenalmente e, com pandemia, passaram a ser semanais. “Foi um espaço muito potente. Compartilhamos questões sobre as políticas públicas e também visões pessoais”, conta.
EM BUSCA DE RECURSOS NOVAS ROTINAS, Em meio a um cenário tão desafiador, as(os) profissionais lançaram mão de recursos variados para lidar com os efeitos da pandemia. No caso de Renato Faria, os atendimentos na clínica ficaram suspensos por cerca de 40 dias. O retorno a este trabalho foi acontecendo gradualmente. Tanner Reis menciona que manter o processo de psicoterapia, que ele já fazia antes da pandemia, foi fundamental. Algumas sessões aconteceram, inclusive, de forma remota. No caso de Yara Araújo, além do auxílio médico, ela também conta que cuidar das plantas, cozinhar e fazer caminhadas periódicas foram recursos importantes. Vanessa Ferreira chegou ao esgotamento, mas não teve condições de arcar com psicoterapia. Contou com o auxílio de colegas da Psicologia e diminuiu um pouco o ritmo de participação em fóruns e outros espaços. Outro momento delicado que enfrentou foi o diagnóstico de Covid-19, na segunda quinzena de dezembro de 2020. Ela fez o tratamento em casa e conta que foi um período muito difícil, pelo medo de que o quadro se agravasse e pela necessidade do isolamento total. A Comissão de Orientação em Psicologia e Assistência Social do CRP-MG tornou-se um espaço de partilha e de
NOVOS RITMOS A sobrecarga e o aumento das horas de trabalho são marcas do período atual. Psicólogas(os) se viram diante do aumento da demanda pelo seu trabalho, ao mesmo tempo em que as estratégias de atuação precisavam ser reinventadas. Tudo isso, somado às inevitáveis mudanças que ocorreram nas demais esferas da vida. Se no início da pandemia, houve um chamado forte ao recolhimento e à desaceleração, hoje Renato Faria identifica que muitas adaptações às novas condições de trabalho estão levando a um ritmo de vida frenético. “Percebo que as pessoas estão construindo modelos muito parecidos com os antigos, com um nível de estresse altíssimo, em que precisamos estar conectados o tempo todo”, aponta. Segundo ele, cabe, então, à categoria se atentar para que não seja um instrumento que reproduz esses valores e que, consequentemente, auxilia pacientes a se ajustarem ao ritmo imposto. Uma medida que também vale para as(os) próprias(os) profissionais de Psicologia. “Precisamos cuidar de nós, dar conta de dizer não e delimitar nossos espaços. Eu não tenho que inventar uma nova forma para que eu possa atender a expectativa de trabalhar doze horas por dia”, finaliza.
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ENTRE CORPOS,
MÁQUINAS VÍRUS: UM
E
ENSAIO SOBRE
O AGORA
Reflexões e inflexões que reforçam a ideia de que vivemos um mundo de interações com contradições que desencadeiam em angústias, ansiedades e solidões A pandemia causada pela COVID-19, provocou de forma repentina, alterações nas coreografias sociais já ensaiadas pelo cotidiano e pelo fluxo que seguimos na rotina e das atividades imperativas da modernidade. Na medida em que veio à tona essas alterações, ocorreu, também, a potencialização de nossos corpos estendidos pela tecnologia e de problemas de contextos sociais e políticos, uma vez que entramos em um cenário caótico cujo vilão é invisível e está disperso no ar, típicos de enredos de filmes de ficção. Isso nos leva a construir algumas reflexões e inflexões que direcionam a pensar pontos distintos, mas que se atravessam em seus percursos, reforçando a ideia de que vivemos um mundo de interações, entre humanos e não humanos, por meio das ditas redes. Iniciamos a análise questionando: como se dá a relação corpo e tecnologia na contemporaneidade? A busca pelo se fazer existir na contemporaneidade tem sido marcada por influências e construções que se operam por meio de tecnologias, vistas pelos artefatos tecnológicos que, segundo Cupani (2016), são coisas técnicas que contém determinado desvelar da mente humana, representando significados políticos, econômicos, sociais, culturais, científicos que revelam nossas subjetividades, atravessando nossos corpos, provocando alterações significativas na forma com que lemos o mundo e como nele nos reconhecemos. Se observarmos nossos corpos e nosso tempo, veremos que eles têm sido 16
ocupados e atravessados por artefatos tecnológicos em seus inúmeros formatos e funcionalidades, como smartphones e seus aplicativos, próteses, medicações, veículos de transporte, utilidades domésticas, produtos de estética, dentre outros que alteram nossa forma de agir no e sobre o mundo. Essas formas de agir implicam toda a experiência humana, inclusive a forma que nos percebemos esteticamente, como nos relacionamos afetivamente, na aprendizagem, no trabalho, nas questões de gênero e na sexualidade, nos momentos de lazer e descanso: sempre há um processo tecnológico mediando nossa experiência com o mundo. Essa experiência intermediada e alterada pelos artefatos tecnológicos transforma o humano em um outro ser, que deixa de ser puramente orgânico e localizável e passa a ser reconhecido como um híbrido de humano e máquina, isto é, um ciborgue (HARAWAY, 2009). Um ser que extrapola o limite da derme e se integra a uma rede maquínica capaz de se fazer e refazer constantemente no mundo material e imaginário. A partir do conceito de ciborgue em Haraway (2009), podemos compreender que a imaginação representa o que vivemos da experiência da ficção. A ficção, por mais estranho que pareça, se materializa como realidade. O que difere uma da outra é o tempo e o discurso. Se analisarmos o que vivenciamos hoje por meio dos artefatos tecnológicos, percebemos que, no passado, essa
Uéverson Luiz Melato de Moraes Doutorando em Filosofia da Subjetividade, Arte e Cultura pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Mestre em Educação Tecnológica pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG) e Especialista em Gestão Pública pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
realidade era apenas o imaginário tentando construir um simbólico de uma ideia futurista. Por meio da ficção, somos capazes de construir novas atmosferas que condicionam nossa existência, como nos espaços virtuais, onde nossos corpos e relações estão sendo mediadas por redes sociais. A relação corpo e tecnologia estende o significado de corpo a uma condição moldável, fabricável, produzível, atualizável, imaginável etc. A construção dessa relação entre corpo e tecnologia se dá por meio da incorporação de artefatos tecnológicos, uma vez que, os discursos do biológico e da subjetividade se imbricam ao discurso tecnológico, criando um movimento que pode ser chamado de ciborguização. Como o humano é um ser histórico e cultural, a cultura na contemporaneidade é representada por uma cultura tecnológica ou uma tecnocultura, onde os
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fazeres humanos se estabelecem para e por meio das coisas técnicas (HARAWAY, 2004). A instalação de uma nova cultura tecnológica constrói para o humano contemporâneo, uma atmosfera virtual que antes só era possível no campo da simulação. Hoje ela é parte da realidade cotidiana das pessoas. Nesse contexto, das desigualdades sociais já tão conhecidas insurgem novas formas de reprodução que correspondem à era da tecnologia: a desigualdade tecnológica. Se as desigualdades sociais, econômicas e políticas são fenômenos observados pelo acesso, corpos desigualmente tecnológicos ultrapassam as teorias da determinação social da tecnologia e alcançam uma dimensão que manifesta fenômenos políticos em si mesmos (WINNER, 2017), revelando que há ciborgues ou corpos híbridos menos desenvolvidos que outros, aumentando ainda mais os abismos existentes. No contexto da relação corpo e tecnologia, o novo coronavírus também produziu impactos. Para melhor compreensão é necessário perceber como é a forma de interação entre humanos e não humanos. A interação entre humanos e não humanos pode ser observada sob a luz da Teoria Ator-Rede (TAR) ou sociologia das associações, proposta por Latour (2012), que inaugura um conceito ao tratar do que é social a partir de uma descrição do mundo advindo das ações de atores. Seres não-humanos assumem, tais como, papeis de agentes que interagem e impactam nas redes de associações (LATOUR, 2012, p.29). Assim, o novo coronavírus assume um papel de ator agente, incorporando um papel de não humano capaz de interagir nas relações humanas. A forma de disseminação e contaminação do novo coronavírus não atinge somente aos organismos humanos, mas impacta toda atividade social. Vimos que o vírus trouxe grandes impactos nas
questões políticas, econômicas, sociais e na própria subjetividade humana, consequentemente, de forma repentina, obrigou a sociedade a mudar seu modo de se movimentar, principalmente em espaços onde há acúmulo de pessoas, como no trabalho, no comércio, nas escolas, e na ocupação das cidades, ao ponto de propor inibidores de interações, como o isolamento e distanciamento social, o uso de máscaras, higienização do corpo, de objetos e de alimentos.
sociais, incluindo a educação, o acesso a saúde, segurança, segurança alimentar e ao emprego e renda.
A sociedade contemporânea é uma sociedade que responde ativamente a uma dinâmica econômica, sendo ela um dos meios de disseminação do vírus que se deu por esta cadeia de relações, iniciando, segundo SHEREEN (2020), em um mercado de frutos do mar de Hunan, na cidade chinesa de Wuhan. O mundo globalizado e tecnológico propicia e potencializa a mobilidade humana de um espaço a outro e, em um tempo muito curto, inferior ao prazo de manifestação dos sintomas do novo coronavírus, acarretando no transporte do vírus a qualquer lugar do planeta. “O coronavírus está perturbando cada vez mais o bom funcionamento do mercado mundial [...]”. (ŽIŽEK, 2020, p. 47).
Isso destaca que o vírus está presente não apenas no mundo real, biológico e social. Ele se tornou viral em nossos mundos virtuais, que agora são os nossos novos mundos real, biológico e social, vide o número gigantesco de Fake News que criam lendas e mitos sobre o vírus, assombrando constantemente com os números de likes e compartilhamentos, causando ainda mais adoecimentos físicos/mentais. “O que vemos agora é um retorno massivo ao significado original, literal do termo vírus. As infecções virais atuam lado a lado, tanto na dimensão real como na virtual”. (ŽIŽEK, 2020, p. 46).
Nessa medida, os impactos sociais provocados pelo vírus potencializaram diversas questões que precisamos analisar no contexto do humano contemporâneo na sociedade. Os humanos tecnologicamente mais desenvolvidos tiveram mais oportunidade de se adequar e permanecer em isolamento social do que aqueles pouco desenvolvidos. O trabalho remoto foi uma das alternativas de inibir a disseminação, mas não foi uma medida eficaz ampla, uma vez que, a desigualdade econômica, social e política ainda são imperativos, principalmente, em países como o Brasil. Ademais, não podemos deixar de apontar os recortes de gênero e raça, pelos quais se aprofundam ainda mais os processos das desigualdades
Para além disso, o novo coronavírus impactou em nossos corpos virtuais na medida que isolamento social propiciou na ampliação de nossas existências nas redes sociais. Começamos a imprimir, ainda mais e em tempo real, nosso cotidiano nas telas de smartphones, incluindo, nossas angústias e sexualidades.
Essa dinâmica social construída, que nos atemoriza e nos transporta para os enredos de ficção científica, faz com que o intitulamos de vírus-rede, a produzir uma atmosfera real de cenas futuristas de um cotidiano isolado fisicamente e conectado tecnologicamente, permeados pelas heranças das desigualdades sociais. Estamos vivendo de fato um ensaio que foi simbolicamente difundido nas ficções, agora tão reais quanto as que assistíamos. Encontramos aí um modus de vida que coloca em jogo a definição da existência humana e reverbera em contradições que desencadeiam em angústias, ansiedades e solidões, potencializadas por um vírusrede que expõe como a tecnologia, os corpos e o mundo econômico fazem parte de uma rede de interação infinitesimal, com graves problemas.
Referências CUPANI, Alberto. Filosofia da tecnologia: um convite. Florianópolis: Ed. da
SHEREEN, Muhammad Adnan et al. COVID-19 infection: origin, transmission, and
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characteristics of human coronaviruses. Journal of Advanced Research, 2020.
HARAWAY, Donna Jeanne. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e
WINNER, L. (2017). Artefatos têm política?. Em WINNER, L. “A baleia e o reator
feminismo-socialista no final do século XX (1985), in: SILVA, Tomaz Tadeu
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da (org.). Antropologia do Ciborgue – as vertigens do pós-humano. Belo
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Horizonte, Ed. Autêntica, 2009.
Lacerda Abrahão; Débora Pazetto Ferreira. Revista Analytica: Rio de Janeiro.
HARAWAY, Donna Jeanne. The Haraway Reader. Psychology Press, 2004.
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LATOUR, Bruno. Reagregando o Social: uma introdução à teoria do Ator-
ŽIŽEK, Slavoj. Um golpe como o de ‘Kill Bill’no capitalismo. Mike Davis et al.,
Rede. Salvador: Edufba, 2012.
Coronavírus e a luta de classes, Brasil, Terra sem Amos, p. 43-47, 2020.
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ELABORAÇÃO DE
DOCUMENTOS NA PRÁTICA DA PSICOLOGIA:
ALGUMAS REFLEXÕES Desafios a serem superados e ideias para que as (os) profissionais se apropriem dos atos normativos e trabalhem criticamente sobre eles No Brasil a Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, criou o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia com o objetivo de orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão, cuidando dos princípios éticos concernentes à prática profissional. Dentre as atribuições do Conselho Federal de Psicologia (CFP) estão a elaboração e aprovação do Código de Ética Profissional do Psicólogo - Resolução CFP 010/2005 - e a publicação de resoluções necessárias ao cumprimento das leis em vigor e das que venham modificar as atribuições e competências dos profissionais da Psicologia. A elaboração de documentos psicológicos integra o trabalho em psicologia em todos os campos de atuação e trata-se, conforme Resolução CFP 006/2019 “de um instrumento de comunicação escrita resultante da prestação de serviço psicológico à pessoa, grupo ou instituição”. A Resolução CFP 006/2019 revogou a Resolução CFP 007/2003 e tem como objetivos “orientar a(o) psicóloga(o) na elaboração de documentos escritos produzidos no exercício da sua profissão e fornecer os subsídios éticos e técnicos necessários para a produção qualificada da comunicação escrita”. A Resolução CFP 006/2019 ampliou as modalidades de documentos para: Declaração, Atestado Psicológico; Relatórios: Psicológico e Multiprofissional, Laudo Psicológico e Parecer Psicológico. Em relação às normativas anteriores, esta resolução apresenta alguns avanços significativos para as (os) profissionais ,distinguindo os documentos decorrentes da avaliação psicológica de outros relativos às diversas formas de atuação da (o) psicóloga (o), instituindo o Relatório Multiprofissional, a entrevista devolutiva e a obrigatoriedade de utilização de protocolo de entrega de documento. Outros documentos importantes no contexto de elaboração de documentos e registros do trabalho são: - Resoluções CFP 001/2009 e CFP 005/2010 relativas à obrigatoriedade de registro documental decorrente da prestação de serviços psicológicos. - Resolução CFP 009/2018 regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI) estabelecendo 18
Marília Fraga Cerqueira Melo Licenciada e Psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais em 1984. Mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, em 2012. Especialista em Psicologia Escolar/Educacional e Clínica. Atuação como psicóloga na APAE/Escola Estadual Helena Antipoff de Divinópolis/MG, Sistema Único de Saúde e consultório privado. Conselheira no XV Plenário do CRP MG.
um conjunto de diretrizes para a prática da avaliação psicológica considerando como fontes fundamentais os testes psicológicos aprovados pelo CFP, as entrevistas psicológicas, anamneses e protocolos ou registros de observação, podendo recorrer a fontes complementares de informação. Ressalta-se que as Resoluções têm caráter normativo e regulador na profissão objetivando absorver as transformações referentes à atuação da (o) psicóloga (o), e são instituídas após a problematização de algum aspecto do campo prático. Em que pese o trabalho desenvolvido no Sistema Conselhos em Psicologia na divulgação e promoção de debates que resultaram nas normativas, a elaboração de documentos continua gerando dúvidas entre psicólogas (os). Ocasionando
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também representações contra as profissionais por possível infração ao Código de Ética, por vários motivos, tais como a negativa de emissão de laudos, o conteúdo de documentos tendenciosos, parciais ou mal elaborados, que podem resultar em processos éticos. Alguns trabalhos acadêmicos se debruçaram sobre as representações contra psicólogas (os) no Sistema Conselhos de Psicologia: SHINE, 2009; SILVA e ALCHIERI, 2011; AMENDOLA, 2014; PRETO E FAJARDO, 2015; ZAIA, OLIVEIRA e NAKANO, 2018; MOREIRA e SOARES, 2019; PEREIRA e LOBOSQUE, 2019. As denúncias partiram de pessoas que se sentiram prejudicadas pelo conteúdo e qualidade dos documentos elaborados em virtude de trabalhos realizados no campo profissional. Sendo importante observar que qualquer pessoa que se sentir prejudicada pela atuação profissional de psicólogas (os),
pode formalizar uma representação ao Conselho Regional de Psicologia (CRP) da região em que a (o) profissional esteja atuando, ou da jurisdição onde ocorreu o fato. Amendola (2014a) relata que na atuação como conselheira no CRP 05 observou crescer a demanda para instauração de processos contra psicólogos por possível infração ao Código de Ética Profissional. Tal fato se devia aos documentos escritos em decorrência de avaliação psicológica, que se tornaram judiciais. Shine (2004) pesquisou denúncias no CRP 06 sobre os laudos psicológicos envolvidos em processos judiciais da Vara de Família. O autor verificou que o maior número de psicólogas (os) representadas (os) não atuavam na instituição judiciária, ou seja, por desconhecimento da realidade das disputas judiciais, profissionais produziram documentos que foram questionados.
CUIDADOS NA ELABORAÇÃO DE UM DOCUMENTO PSICOLÓGICO Neste contexto, cabe refletir: Quais são as dificuldades enfrentadas pelas (os) psicólogas (os) quando solicitadas (os) a emitirem um documento escrito? Que fatores contribuem para a elaboração de documentos com problemas técnicos, éticos e metodológicos? O que facilitaria para que as (os) profissionais se apropriassem dos atos normativos e trabalhassem criticamente sobre eles? A Psicologia enquanto ciência e profissão tem expandido no Brasil e profissionais da área atuam em diversos cenários, esperando-se que desenvolvam o trabalho com competências técnicas, éticas e científicas, compromisso social, respeitando e promovendo os direitos humanos. A formação em Psicologia é generalista e permite que as (os) psicólogas (os) possam trabalhar nas diversas áreas de atuação existentes. Cabe observar que cada área possui especificidades. A Resolução CFP 013/2007 lista os títulos de especialista que podem ser concedidos: Psicologia Clínica, Psicologia Organizacional e do Trabalho, Psicologia do Esporte, Psicomotricidade, Psicologia do Trânsito, Psicopedagogia, Psicologia Escolar e Educacional, Psicologia Jurídica, Neuropsicologia, Psicologia Hospitalar e Psicologia Social. A Resolução CFP 18/2019 reconhece a Avaliação Psicológica como especialidade.
Destacando que a titulação não é obrigatória para a atuação. Explorando a questão das especificidades de cada área e tomando como exemplo a avaliação psicológica, temos que ela pode ser realizada em vários contextos, recorrendo a diversos referenciais teóricos e metodológicos. Resultando em um documento que propiciará tomadas de decisões em múltiplos cenários, como a concessão da carteira nacional de habilitação, manuseio e porte de arma de fogo, trabalho em ambientes de risco, concursos públicos, liberação para cirurgia bariátrica etc. Podendose observar neste exemplo, o quanto de conhecimentos e habilidades são esperados da (o) psicóloga (o). A Resolução CFP 006/2019 destaca que na elaboração de documentos as (os) profissionais devem se pautar nos princípios éticos e técnicos da Psicologia usando instrumentos, conhecimentos e referenciais fundamentados cientificamente e para os quais estejam preparadas (os). Na construção do documento psicológico, considerará as informações encontradas associandoas com as observações dos fenômenos psicológicos, fundamentando os argumentos e redigindo em linguagem adequada, objetiva e compreensível
para a pessoa a que se destina. O Art. 6º parágrafo 3.º da Resolução 006/2019, define que a linguagem escrita baseiase “nas normas cultas da língua portuguesa, na técnica da Psicologia, na objetividade da comunicação e na garantia dos direitos humanos.” Salientando-se que o Código de Ética, no Art. 2º, parágrafo g, veta à (ao) psicóloga (o) a emissão de documentos sem fundamentação e qualidade técnico-científica. Destaca-se o necessário cuidado ao implementar uma conduta avaliativa, compreensiva e integradora que reflita a complexidade do exercício profissional nos diversos campos e o respeito aos deveres nas relações estabelecidas com a pessoa, grupo ou instituição, ao sigilo profissional, às relações com a justiça, com políticas públicas e conselhos de direitos. Antes de iniciar a elaboração de qualquer documento psicológico, fazse importantíssima a análise crítica da demanda por parte da (o) psicóloga (o), refletindo sobre o objetivo e a finalidade do documento escrito. Tal análise subsidiará as informações escritas que deverão estar em sintonia com a demanda ou solicitação, resguardando-se de divulgar dados desnecessários aos objetivos do atendimento. O cuidado poderá evitar 19
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a elaboração de documentos de maneira descontextualizada ou que desrespeitem os limites de atuação. O documento psicológico exibirá as informações rigorosamente necessárias para atender à solicitação explicitada, relatando apenas o indispensável para o objetivo do trabalho e para a tomada de decisão. Cumprindo-se a exigência prevista no Código de Ética, em especial no Art. 1º, parágrafo “g”, “informar, a quem de direito, os resultados decorrentes da prestação de serviços psicológicos, transmitindo somente o que for necessário para a tomada de decisões que afetem o usuário ou beneficiário”. Cada documento descrito na Resolução CFP 006/2019 apresenta características e exigências específicas. Destacando-se como essenciais os dados de identificação do avaliado com o nome da pessoa atendida, ou nome social completo; nome do solicitante; finalidade de sua elaboração, o local e a data da emissão; nome completo ou nome social da (o) psicóloga (o) que o elaborou, número de registro no CRP, rubrica em todas as páginas e assinatura. Sendo prudente enfatizar no documento, o sigilo e a confidencialidade das informações colhidas. A elaboração de documentos é uma tarefa complexa como complexa é a existência humana. Refletindo quanto aos motivos para dúvidas e dificuldades decorrentes da elaboração de documentos, pensamos sobre a formação. Formação que se encontra em mudanças decorrentes das condições políticas, econômicas e sociais e que não foram
objeto deste trabalho, mas que o atravessa. Pensamos a formação como um processo iniciado na graduação, e para atender às demandas profissionais é imprescindível continuá-la buscando cursos, supervisão e eventos científicos. Atualizando-se quanto à legislação profissional e contribuindo na elaboração e avaliação de documentos produzidos pelo Sistema Conselhos. Disponibilizandose a reflexões e revisões da atuação profissional que possibilite a qualificação das referências, para o exercício e o aprimoramento dos serviços prestados à comunidade.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Iniciamos esta reflexão visitando o arcabouço normativo da profissão e procuramos relacioná-la com as experiências profissionais e as aprendizagens enquanto conselheira na Comissão de Orientação e Fiscalização (COF) durante o XV Plenário do CRP MG. Reconhecemos a complexidade da tarefa de elaboração de documentos psicológicos e sugerimos a continuidade da formação no cotidiano da atuação. A COF, no âmbito dos Conselhos Regionais, tem a função de fiscalizar, orientar e esclarecer e encaminhar/responder solicitações da categoria e do (a) usuário (a) dos serviços psicológicos nas questões relativas à legislação, ética e regulamentações do exercício profissional.
Referências AMENDOLA, M. F. (2014a). A prática psicológica de avaliação pelo olhar dos
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Acesso em 29/02/2020.
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ARTIGO | REVISTA CRP-MG
PSICOLOGIA ESCOLAR NO CONTEXTO
A
DA PANDEMIA
Implicações do contexto atual sobre as relações escolares e a implementação da Lei n.º 13.935/2019
Celso Francisco Tondin
Luis Henrique de Souza Cunha
Stela Maris Bretas Souza
Psicólogo, CRP 04/11244. Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João delRei (UFSJ). Coordenador da Comissão de Orientação em Psicologia Escolar e Educacional do XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia - Minas Gerais - 4ª Região. Email: ctondin@gmail.com
Psicólogo, CRP 04/43813. Especialista em Gestão de Saúde pela União Brasileira de Faculdades UniBF. Psicólogo escolar em Pirapora/MG e da Saúde em Várzea da Palma/MG. Conselheiro do XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia Minas Gerais - 4ª Região, referência da Comissão de Orientação em Psicologia Escolar e Educacional da autarquia. Email: luishenriquecvv@gmail.com .
Psicóloga, CRP 04/9476. Mestra em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professora dos cursos de Psicologia e Pedagogia do Centro Universitário Católica do Leste de Minas Gerais (Unileste). Compõe a representação estadual em MG da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) e a diretoria da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP). Colaboradora das Comissões de Orientação em Psicologia Escolar e Educacional e de Formação Profissional do XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia - Minas Gerais - 4ª Região. Email: stela.maris.bretas@gmail.com
Pensar a educação escolarizada a partir de perspectivas críticas em Psicologia Escolar e Educacional implica em compreender o caráter histórico e social dos fenômenos psicológicos, em que indivíduos e sociedade são pensados numa relação dialética, cabendo àqueles exercer papel ativo na transformação social. Assim, tendo como foco a dimensão subjetiva do encontro dos seres humanos
com a educação, em que as(os) psicólogas(os) se dedicam a intervenções no processo de escolarização, é fundamental levar em conta as condições macro e micro estruturais em que se imbricam os marcadores sociais de classe, raçaetnia, sexualidade, gênero, território etc. presentes na população brasileira, e os modos como são (re)produzidas nas escolas e vivenciadas nas relações intersubjetivas. 21
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Com base nessas premissas, propomos uma reflexão sobre as implicações do contexto pandêmico nas relações escolares, bem como acerca da implementação da Lei n.º 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de Psicologia e de Serviço Social nas redes públicas de educação básica, num contexto de crise sanitária, social e econômica, já que o início da sua implementação foi praticamente concomitante à declaração da pandemia de COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
EDUCAÇÃO, PANDEMIA E A
PSICOLOGIA ESCOLAR Segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), no Brasil, cerca de 82% das(os) alunas(os) da educação básica pararam de frequentar as escolas, durante o primeiro semestre de 2020, fruto do distanciamento social necessário ao enfrentamento da pandemia. Se por um lado esta é uma medida sanitária eficaz para diminuir a propagação do contágio pelo novo coronavírus, por outro ela tem intensificado dramas na vida das(os) crianças/alunas(os). Dentre eles, a violência doméstica e sexual, a dificuldade de se conviver em família, o luto, o sentimento de desamparo e de abandono frente a perdas de familiares e o agravamento da fome (com a falta da merenda escolar, desemprego, diminuição de renda etc.). Já em relação às(aos) professoras(es), a ausência do ensino presencial tem lhes imposto um aumento da jornada de trabalho em suas casas, com uma crescente precarização das condições do exercício profissional. Essas situações têm favorecido o adoecimento psicológico, que por sua vez, vem frequentemente, acompanhado de sintomas físicos, fomentando o uso de medicamentos e até da automedicação. Nesse contexto de pandemia, percebe-se ainda que os lares acumularam outras funções: a de promover o ensino através dos familiares, que assumiram um papel compulsório de coadjuvantes das(os) professoras(es) na função específica destas(es) de ensinar os conhecimentos científicos; e a de ser ambiente de trabalho, onde salas e quartos foram transformados em escritórios e estúdios. O ambiente doméstico agora é também local de trabalho em casa (home office). Toda essa situação tem fragilizado o processo ensino aprendizagem e tensionado as relações entre as pessoas que convivem no mesmo espaço doméstico. Sobre as instituições de ensino, a pandemia fez com que elas buscassem alternativas para manter o processo de escolarização das(os) educandas(os), utilizando-se das tecnologias de informação e comunicação (TIC) como ferramentas metodológicas para realizar o ensino remoto. Reconhece-se que este é uma estratégia visando minimizar os impactos negativos na aprendizagem e desenvolvimento das(os) estudantes, provocados pelo distanciamento social. No entanto, os resultados de 22
pesquisas vêm demonstrando prejuízos nas relações entre discentes e docentes e ainda, no desempenho das atividades didático-pedagógicas. Tais resultados estão diretamente relacionados às desigualdades sociais e escancaram os abismos existentes entre os segmentos populacionais do nosso país. A título de ilustração, só com relação ao acesso à internet, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) informa que 17% das(os) brasileiras(os) de 9 a 17 anos não têm acesso a este recurso, o que compreende 4,8 milhões de crianças e adolescentes; além disso, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) contabiliza que 98,7% das(os) brasileiras(os) acessam a internet pelo celular. Essa situação afeta drasticamente a qualidade do ensino e intensifica os processos de exclusão que resultam na violação do direito à educação, especialmente dos segmentos sociais mais vulneráveis. Somando-se a isso, tem-se um governo cuja agenda não inclui a defesa da vida das(os) brasileiras(os), que amplifica os ataques às instituições educacionais e que promove a desconstrução das políticas sociais de caráter popular e emancipatório. Com esse cenário, e não por acaso, verificam-se tentativas de fomentar iniciativas anticientíficas e anti-intelectuais, como a do ensino domiciliar (homeschooling). Pelo exposto, é certo que o contexto pandêmico impõe desafios para a Psicologia Escolar e a convoca a buscar alternativas para lidar com as adversidades do campo educacional. Esta área busca - a partir da escuta e da participação das(os) alunas(os), suas famílias, professoras(es), demais funcionárias(os), enfim, toda a comunidade escolar, e em articulação com toda a rede intersetorial - criar linhas de ação visando o cuidado e acolhimento das diversas experiências, produtoras de sofrimento, vivenciadas por elas(es). Assim, pode-se desenvolver estratégias de curto, médio e/ou longo prazos que contribuam para a qualidade da educação, numa perspectiva inclusiva, em diferentes frentes de atuação, envolvendo vários contextos, com foco na mediação das relações estabelecidas entre as(os) agentes da educação.
LEI N.º 13.935/2019 E O CONTEXTO DA PANDEMIA O Conselho Regional de Psicologia da 4ª Região - Minas Gerais (CRP04-MG), por meio da Comissão de Orientação em Psicologia Escolar e Educacional (COPEE) organizada na sede e nas seis subsedes da autarquia, em parceria com o Conselho Regional de Serviço Social de Minas Gerais (CRESS - 6ª Região), a representação estadual da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), o Núcleo Minas Gerais da Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (ABEP) e o Sindicato das Psicólogas e dos Psicólogos do Estado de Minas Gerais (PSIND-MG), tem atuado incansavelmente na divulgação, mobilização, orientação e suporte técnico, jurídico e político em prol do
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cumprimento de Lei n.º 13.935/2019 nas redes municipais e estadual de ensino deste estado. Questões históricas e novas questões, inclusive as atinentes ao contexto pandêmico, têm permeado toda a movimentação em torno da regulamentação desta lei. Afinal, como efetivar seus preceitos no cenário atual, quando escolas estão fechadas e a prioridade dos investimentos públicos são em ações sanitárias de mitigação dos efeitos da pandemia? Como implementar novos serviços com as restrições impostas pela Lei Complementar (LC) n.º 173/2020? Tem sido intenso o investimento das entidades de ambas as profissões com participação de profissionais nos mais diversos lugares de Minas Gerais - junto às(aos) gestoras(es) municipais e estaduais para que conheçam a lei federal, compreendam os fazeres dessas(es) profissionais, em equipes multiprofissionais e numa perspectiva institucional, e reconheçam a legitimidade do trabalho dessas áreas junto à Educação, de modo a construir as condições para o cumprimento deste dispositivo legal nas redes de educação básica sob sua responsabilidade. Um dos entraves sempre colocado, inclusive por aquelas(es) que já se empenham na efetivação da lei, é quanto ao financiamento dos serviços dessas equipes multiprofissionais. Nesse quesito, merece destaque a supra citada LC n.º 173/2020, que constitui um programa de repasses federais aos estados e municípios para articulação de ações de enfrentamento à pandemia. Dentre as suas premissas, foram postas, pelo governo federal, condições aos entes federados que participam desse programa, dentre as quais o impedimento do aumento de despesas com pessoal, o que, por sua vez, impactou na implementação da Lei n.º 13.935/2019, pois os serviços
de Psicologia e de Serviço Social demandam a contratação de novas(os) profissionais, sendo melhor ofertados quando exercidos por servidoras(es) públicas(os) concursadas(os) e lotadas(os) no setor de Educação. Ainda no quesito financiamento, cabe ressaltar a Emenda Constitucional (EC) n.º 108/2020, que tornou permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o novo FUNDEB, e a Lei nº 14.113/2020, que o regulamenta. Esses dispositivos são cruciais para a implementação do Plano Nacional de Educação (PNE), dada sua visão sistêmica da educação pública brasileira à medida que leva em conta, na alocação das verbas, o nível de desenvolvimento social e econômico das regiões. Assim, ao praticar a justiça redistributiva se constitui como um instrumento de garantia do direito à educação e de melhoria da qualidade da escola pública. Na Lei nº 14.113/2020 está previsto o uso de recursos do novo FUNDEB para a implementação da Lei nº 13.935/2019, quando regra que o pagamento da remuneração das(os) profissionais da educação básica em efetivo exercício abarca aquelas(es) previstas(os) na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) bem como as(os) referidas(os) na Lei n.º 13.935/2019. Ressalta-se, por fim, que a EC também eleva a participação da União no financiamento da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio, que era de 10% em 2020 e chegará a 23% em 2026. Diante desse contexto e com base no compromisso social da profissão, as(os) psicólogas(os) são chamadas(os) a contribuir, no “chão da escola”, com a construção de alternativas frente às questões e necessidades educacionais, possibilitando o fortalecimento e potencialização das relações escolares
como fator de desenvolvimento e aprendizagem. Enquanto categoria, os desafios, num período de tantas contingências como este que estamos vivendo, se apresentam na mobilização e intensificação contínuas das lutas e trabalhos, junto às(aos) gestoras(es) municipais e estaduais, para que possamos implementar a Lei e garantir o fazer da(o) psicóloga(o) escolar numa perspectiva emancipatória, que leve em consideração uma educação libertária e transformadora da realidade social. Enfim, não há como falar do trabalho da Psicologia Escolar sem resgatar elaborações historicamente consolidadas em estudos, pesquisas e práticas da área, mas (re)atualizando-as com as questões demandadas pelo presente, que só reforçam a necessidade da atuação das equipes multiprofissionais previstas na Lei n.º 13.935/2019, de forma colaborativa com as(os) demais trabalhadoras(as) da Educação, a fim de lidar com os impactos da pandemia no processo de escolarização, e não apenas no setor da saúde, como têm entendido sobremaneira as(os) gestoras(es). Assim, a Psicologia Escolar, em conjunto com todas as formações que atuam na Educação, chama a atenção para os efeitos que se fazem presentes nas relações escolares e para o papel desempenhado pela escola no enfrentamento da pandemia, especificamente aqueles que incidem sobre o processo ensino aprendizagem e que fragilizam o cumprimento da função desta instituição: a de socialização dos conhecimentos científicos, na perspectiva de formação integral das(os) educandas(os) e de forma atenta aos cuidados com a saúde das(os) profissionais da Educação.
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CAPA | REVISTA CRP-MG
No século 20, a estatística criou formas para “sofisticar” o processo de pesquisa ao fornecer parâmetros de investigação que misturavam tecnologia e lógica, com vistas à solução de problemas nas diversas áreas do conhecimento, relata David Salsburg, em seu livro “Uma senhora tomando chá”. A ideia é usá-la sempre que surgirem as incertezas.
PSICÓLOGAS(OS) ENCARAM A
PANDEMIA E SE REINVENTAM, SENSÍVEIS ÀS NOVAS TESSITURAS SOCIAIS
Histórias de resiliência e de tentativas de conformação em um cenário imprevisível
Texto: Cristina Ribeiro e Guilherme Sá Foto: Marlene Alves
No mesmo período da história brasileira, a Psicologia foi reconhecida legalmente como profissão - 27 de agosto de 1962 – e a partir da atuação da própria categoria e das(os) estudantes na graduação, vem se transformando para compreender e intervir no sofrimento mental causado por variantes, tais como o modo de organização social e as diversas violências individuais e coletivas. As incertezas aqui ganham nomes como racismo, exclusão, luto, ansiedade e medo. O século agora é 21. Uma pandemia mundial provocada por um organismo invisível aos olhos desafia as cifras e as subjetividades; a maior emergência de saúde pública que todas as civilizações enfrentam em décadas. Mais de doze meses se passaram do marco inicial no Brasil – 16 de março de 2020 – mas a Covid-19 permanece afrontando a ciência, a tecnologia e a humanidade. Gráficos ganham movimento constante ao atualizar a contagem de infectados, hospitalizados, óbitos e vacinados. Os dados são fundamentais para convocar resoluções. Enquanto isso, esses mesmos números são acolhidos e reconhecidos pela Psicologia de forma singular, pois trazem histórias, vivências, interseções, pulsos. O chamado “tecido básico da vida social” - composto por modos de viver e se relacionar com o outro, com o mundo e com o futuro - foi revirado muito além do avesso. A resiliência, tão cobrada entre as pessoas para conseguirem seguir em frente, se esgota. Essa fadiga é perceptível no passar dos dias: a população está cansada e dolorida; uma dor que atinge não só o corpo, mas, principalmente, a alma. São indivíduos que veem os números renovados nessa contagem sem fim.
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Neste momento, quais histórias haverá por trás das milhares de vidas perdidas e milhões de brasileiras(os) infectadas(os)? Como cada indivíduo está lidando com uma espécie de estado de suspensão? Uma verdadeira convulsão de sentimentos que implica em questões urgentes a serem encaradas pelas(os) psicólogas(os). Em todas as frentes de atuação, essas(es) profissionais têm se deparado com desafios novos e velhos obstáculos potencializados pela pandemia. É o que será contado a seguir por elas(eles) mesmas(os).
SONHOS ROUBADOS; CENÁRIOS DE
ESTRESSE
A cidade é Formiga. Localizada no Centro-Oeste, tinha uma população em torno de 60 mil habitantes no começo de 2020.
Entre as(os) psicólogas(os) que ali atuam está Bruno Ribeiro. Ele também é professor no Centro Universitário de Formiga (Unifor), onde coordena a clínica universitária para atender os graduandos. O perfil do público é conhecido: alunos que precisam trabalhar para custear os estudos. “Nessa dupla jornada, o estudante não consegue cuidar da saúde mental. Durante a pandemia, isso ficou evidente, pois somou-se o estresse de não ter um espaço adequado para o estudo, a falta do convívio com os colegas e o medo do desemprego. Ele cria cenários muito catastróficos, nos fazendo entender o processo social por trás de tanta ansiedade, de tanta irritabilidade, de tanta alteração de humor, de apatia social”, diz Bruno. Por onde foram os sonhos? Uma das capacidades mais poderosas nos seres humanos é sonhar e acreditar, este momento de incerteza abalou essa perspectiva. Ao sintetizar a origem dessa descrença, o psicólogo elenca dois fatores principais: a pandemia e a desigualdade social. “Sonhos foram roubados, além de trazer mortes. O país desigual foi evidenciado pelo ensino remoto. A pandemia nos tirou a opção de planejar o futuro. O que a população traz na minha clínica particular é um 26
Até mesmo pessoas que estão na unidade há dois, três anos, e que não apresentavam nenhum quadro de sofrimento psíquico estão adoecendo com um consequente agravamento na convivência entre os colegas. sentimento de profunda incerteza. Os transtornos de ansiedade e de humor se tornaram muito recorrentes em função da apatia social. A pandemia colocou visíveis as vísceras sociais. Muitas pessoas acabaram desenvolvendo um nível de criticidade social em relação a essas vísceras e isso criou um looping de angustiamento muito grande já que a pandemia se prolonga”, lamenta. “Precisamos fazer uma psicologia crítica que olhe para os determinantes sociais dos processos de produção de saúde e doença e entender que esses quadros que vão surgindo a partir
da pandemia, de adoecimento, de adoecimento mental, principalmente os quadros de transtorno de comportamento relacionados à ansiedade começaram a se tornar muito frequentes”, recomenda Bruno.
DESIGUALDADE POTENCIALIZADA; CENÁRIOS DE
DESPROTEÇÃO A cidade é Governador Valadares. Localizada no Leste, tinha uma população em torno de 280 mil habitantes no começo de 2020.
No principal município da região funciona o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que conta com a atuação da psicóloga Denise Vilela. Diariamente ela acolhe o sofrimento das mulheres vítimas de violência que agora estão isoladas em casa com seus agressores, muitas vezes sem emprego, sem renda, levados pela pandemia. Segundo dados de pesquisa do Datafolha, divulgada em junho de 2021, a cada quatro mulheres, uma foi vítima de violência no ano de 2020. As agressões cometidas dentro de casa subiram de 42% em 2019 para 48% em 2020. “No começo da pandemia os casos reduziram, depois subiram. É o que chamamos de efeito tsunami: quando o mar recua, significa que a onda forte vem. Passados os meses iniciais de 2020, houve um aumento muito grande dos casos”, afirma Denise que vê diariamente mulheres que não se reconhecem como vítimas sendo potencialmente acuadas pela dependência financeira. “É na assistência social que elas encontram a proteção e o acolhimento, porque não paramos o atendimento presencial. O receio do contágio existe, mas a necessidade da escuta é muito maior. O medo do contato com o profissional fica em segundo plano” afirma. Ela assinala que o desafio da Psicologia nesta política pública é fazer com que as mulheres se sintam fortes o suficiente para denunciar os agressores e reconstruir a vida. No entanto, segundo Denise, o que mais se viu na pandemia foi o aumento dos relacionamentos que estavam sob medida protetiva sendo retomados.
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Nosso papel tem sido elucidar os fatos, articular com os hospitalizados e familiares como funciona o tratamento. Por último, a psicóloga relata uma consequência ainda mais preocupante a partir de uma sobrecarga emocional, de falas incapacitantes, de se culparem pelo quadro da violência e pela falta de perspectiva de melhora do quadro: “muitas mulheres negligenciaram a própria saúde, não buscaram os postos de saúde e se automedicaram”, conclui.
ESTADO DE VIGÍLIA; DEPRESSÃO À VISTA A cidade é Oliveira. Localizada no Centro-Oeste, tinha uma população em torno de 42 mil habitantes no começo de 2020.
O Centro de Atenção Psicossocial (Caps) conta com o trabalho da psicóloga Jéssica Silva Gois, que também atua em clínica própria. Na pandemia, ela percebe que as pessoas estão em vigília o tempo inteiro. “Esse constante estado de alerta é uma das reações provocadas pelo medo e aparece bastante nos relatos, sobretudo o medo do contágio pelo coronavírus, casos de depressão, de ansiedade, de pânico e tentativas de autoextermínio”, relata. A solução encontrada pela equipe, que conta com três psicólogas, foi se fortalecer e se reinventar. Como exemplo tem sido o uso do telefone para manter contato mais frequente com os atendidos. Nesta modalidade, segundo ela, as profissionais reafirmam a necessidade de procurar o serviço presencial para dar continuidade ao acompanhamento.
Nos atendimentos em consultório, a psicóloga tem visto um aumento na procura por atendimento: “talvez houvesse antes uma espécie de receio que foi rompido pela pandemia, levando pessoas pela primeira vez a buscar acolhida, orientação. Trabalhamos com singularidades, e elas habitam em um contexto. Então, não estamos diante somente do sujeito, mas diante do que ele reproduz no seu contexto, nas suas relações. Estamos então atuando sempre em uma realidade coletiva”, completa Jéssica.
INTERAÇÃO INTERROMPIDA; VÍNCULOS AFETADOS
A cidade é Frutal. Localizada no Triângulo, tinha uma população em torno de 60 mil habitantes no começo de 2020.
A psicóloga Marina Mendonça, que atuava no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) no começo da pandemia, atendia crianças e adolescentes com sofrimento mental ou sob guarda judicial. Inicialmente, conforme ela conta, foi priorizado o atendimento dos casos judiciais, mas não mais no formato em grupo, gerando uma perda na ideia de acolhimento. “Em um segundo momento foi possível criar uma plataforma oferecendo o trabalho para toda a população, não atendemos só o CAPS infantil, participamos da rede do município”, explica. Nesses primeiros atendimentos na pandemia o grande desafio logo se descortinou: “atendíamos casos de transtornos psicóticos graves, o que dificultava estabelecer uma dinâmica de protocolos de segurança. A higienização das mãos e a proibição dos abraços eram de difícil
Uma das capacidades mais poderosas nos seres humanos é sonhar e acreditar. Este momento de incerteza abalou essa perspectiva. 27
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compreensão. Outro ponto muito difícil era não poder mais ter o contato físico, o abraço na chegada, o acolhimento do grupo, o contato entre eles. A questão ficou ainda mais complexa a partir do momento que se deram conta que não existia mais esse pertencimento social proporcionado pela escola, que estava fechada. Vimos que principalmente os adolescentes foram se fechando mais diante da ideia do não lugar”, lembra. Ela também experiencia, pela primeira vez, o atendimento on-line na clínica com crianças e adolescentes que já eram seus clientes. Na mudança, percebeu uma “grande dificuldade com relação ao sigilo, como se esse adolescente não tivesse mais um espaço próprio para fazer a terapia. Vejo também que estão com um contato mais direcionado com sentimentos de angústia e medo. A dificuldade de estabelecer um convívio diário com a família é algo que eles trazem muito. A questão dos relacionamentos e da convivência”, completa Marina.
POUCA INFORMAÇÃO CAUSA ANSIEDADE;
EM EXCESSO, GERA
ANGÚSTIA A cidade é Belo Horizonte. Localizada no Centro do estado, tinha uma população em torno de 2 milhões e 700 mil habitantes no começo de 2020. Bernardo Dolabella, psicólogo de Emergências e Desastres, integrante da Fiocruz e da Cruz Vermelha, está atento à avalanche de notícias que circulam sobre contaminação, internações, óbitos, eficácia de medidas de proteção e vacinas. “Nesse momento pandêmico, as pessoas não sabem no que confiar e sentem uma dificuldade muito grande em interpretar dados, gerando obstáculos para dimensionar a situação e construir comportamentos protetivos”, adverte. Bernardo acrescenta que esse consumo exacerbado acarreta em estímulos agudos, à manutenção de um estado de tensão permanente. Ele 28
Não estamos diante somente do sujeito, mas diante do que ele reproduz no seu contexto, nas suas relações. explica que cabe às(aos) psicólogas(os) reunir as informações, priorizando as de cunho científico, interpretar, transformar para uma linguagem acessível e entregar para a população “de uma maneira empática”. Para ele, essa construção faz parte de uma rede, elaborada a partir do diferencial da Psicologia: “durante a pandemia, o que mais buscamos foi o fortalecimento de redes sócio afetivas, possibilitando às pessoas manter sua saúde mental. Neste sentido a Psicologia se distingue ao ofertar escuta e acolhimento”, pontua Bernardo.
DESMISTIFICAR RESULTA EM EFICÁCIA; HÁ PROCEDIMENTOS
INEVITÁVEIS A cidade é São João del-Rei. Localizada no Sudeste, tinha uma população em torno de 90 mil habitantes no começo de 2020.
Na localidade, esse sentimento de desproteção também é percebido por Gleicy Alves dos Santos, psicóloga hospitalar. “Muitos pacientes entram na unidade com algum receio porque
estão se tratando de uma doença muito em voga e com muitas informações desencontradas. Nosso papel tem sido elucidar os fatos, articular com os hospitalizados e familiares como funciona o tratamento. Tudo contribui para conseguir a melhor adaptação do paciente e auxilia diretamente na condução do processo”, relata. O medo principal, segundo ela, diz respeito à intubação e todas as informações consumidas sobre o assunto até então. “A orientação que damos sempre vai depender da forma como o paciente chega à instituição: uns dão entrada com medo de um procedimento que pode estar muito distante de ser executado, porém, há outros que já estão no limiar”, explicita Gleicy que ainda pontua a necessidade de ser criteriosa para compreender a demanda, explicar os benefícios de cada processo e o porquê de realizar os procedimentos definidos. “Surgiu a criação de uma articulação entre os próprios pacientes. Aqueles que saíram do tratamento com uma boa evolução, me enviaram vídeos contando como foi enquanto estavam em processo de cura. Isso gera um resultado muito interessante: mostrar histórias de sucesso tranquiliza quem está passando pelo processo”, completa Gleicy que ainda chama a atenção para o cansaço gerado por todo o contexto prolongado da pandemia, levando muitas pessoas a flexibilizar as medidas sanitárias: “no início da pandemia já era difícil conseguir adesão. Agora se tornou um desafio afetando bastante os tratamentos”.
A pandemia se tornou um catalisador. Tirou as pessoas da zona de conforto.
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EM ISOLAMENTO COTIDIANO;
A SAÚDE DA FAMÍLIA É PRIORIDADE A cidade é Francisco Badaró. Localizada no Norte, tinha uma população em torno de 10 mil habitantes no começo de 2020.
A psicóloga que atua no sistema prisional, Antônia Josefina de Oliveira, enfrenta ainda mais desafios para trabalhar onde isolamento já é rotina, porém, sem nenhuma condição de distanciamento e sigilo, em uma sala com 1,20m x 1,20m e escolta presente. “Logo no início me vi no dilema: devo restringir o atendimento, só em casos de emergência e urgência, mas aqui, o que é emergência e urgência? Além disso, a pandemia agravou o sofrimento e fez crescer a demanda. Falei: ‘bom, não tem como fugir. Vou atender”, recorda. Segundo ela, quase todas as pessoas atendidas apresentaram, no início da pandemia, um medo muito forte em relação ao que de fato a Covid-19 causa. “Grande parte se preocupa com a família e ficou aliviada com a suspensão das visitas em função do contexto. Ao mesmo tempo, clamava por notícias de seus entes. Me tornei então a ponte desses contatos para mitigar a angústia até que começassem as visitas virtuais”, descreve Antônia, que viu o fortalecimento da relação de confiança como consequência de ser a única pessoa portadora da realidade fora do presídio.
Do lado de dentro das celas, Antônia percebeu o crescimento de relatos de insônia, ansiedade e irritabilidade. “Até mesmo pessoas que estão na unidade há dois, três anos, e que não apresentavam nenhum quadro de sofrimento psíquico estão adoecendo com um consequente agravamento na convivência entre os colegas”, expõe Antônia.
INCOMPREENSÃO NATURAL DO PERIGO;
IDAS E VINDAS De volta à cidade de Frutal, desta vez o retrato é do Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD), pela psicóloga Ana Carolina Rodrigues Benevides, que atende “pessoas muito fragilizadas, sensíveis, que lidam com a dor o tempo todo”. Ela explica que as oficinas e trabalhos em grupo foram imediatamente suspensos logo no início da pandemia e quando há atendimento este é ainda mais cercado de cuidados porque “essa população tem dificuldade de compreender os protocolos de biossegurança, às vezes não percebem o que está acontecendo. Muitos chegam em estado precário de higiene”. Outro problema identificado pela psicóloga são as oscilações provocadas pelo abre e fecha da política pública em função do perigo de contágio. “A consequência, infelizmente, é a recaída, que sempre é seguida do sentimento de culpa do usuário. Do contrário, quando o serviço está
A consequência, infelizmente, é a recaída, que sempre é seguida do sentimento de culpa do usuário.
O receio do contágio existe, mas a necessidade da escuta é muito maior. aberto, praticamente passam o dia todo aqui, o que reflete em uma melhora muito significativa”, assegura. Diante de todas as dificuldades e sentimentos aflorados, a psicóloga conta que é comum a equipe do Caps ad se emocionar e buscar amparo entre si: “entre nós e sobretudo na Associação de Psicólogas e Psicólogos, que há na região, fazemos debates on-line e conversas no whatsapp para encontrar os melhores caminhos”, explica Ana Carolina.
NEGAÇÃO DA REALIDADE; ASSUMINDO AS
DIFICULDADES A cidade é Alpinópolis. Localizada no Sul, tinha uma população em torno de 20 mil habitantes no começo de 2020.
O psicólogo do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF), Tanner Reis, lembra que logo no início foi deslocado para fazer um trabalho de orientação nas entradas da cidade, que “ao meu ver não era muito eficaz porque muitas pessoas ignoravam, não nos ouviam, se negavam a usar máscara, enfim, não tinham preocupação nenhuma. Falavam que isso não existia e se tratava de uma questão política”. 29
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Em função das restrições impostas pela pandemia, Tanner passou da atuação em grupos para atendimentos individuais. Novas pessoas foram surgindo e com elas a depressão, a irritabilidade, o nervosismo, os transtornos alimentares, a fobia, conflitos familiares, situações que estavam, às vezes, encobertas e que se agravaram porque esses sujeitos não estavam conseguindo lidar.
Durante a pandemia, o que mais buscamos foi o fortalecimento de redes sócio afetivas, A PSICOLOGIA SE REINVENTA, possibilitando SEM PERDER O FOCO NO às pessoas ACOLHIMENTO manter sua saúde mental. “A pandemia se tornou um catalisador. Tirou as pessoas da zona de conforto. Casos que utilizavam somente medicamentos psicotrópicos se renderam à psicoterapia por sentir que os remédios não estavam mais atendendo suas exigências”, descreve Tanner.
O estado é Minas Gerais. Localizado no sudeste do país, tinha uma população de quase 20 milhões de habitantes no começo de 2020. São muitas Anas, Antônias, Gleicys, Jéssicas, Marinas, Denises e muitos Brunos, Bernardos e Tanners, que vêm se deparando
PRESERVAR A MEMÓRIA PARA
SUPERAR A PANDEMIA
com novas questões, algumas sem resposta. A estatística, que tenta organizar a pandemia em números, se fundamenta na precisão, busca recorrências. Mas a Covid-19 trouxe imprecisões. De mais real é esse lugar instigante da Psicologia, de acolher os sofrimentos, de reconstruir juntas e juntos, de buscar pertencimento e de fortalecimento de laços para que cada indivíduo possa lidar com esse contexto. São fartos campos de atuação lidando com um material singular, o ser humano, em uma conjuntura de complexas novidades. Cada profissional mencionada(o) nesta reportagem representa toda a categoria dos 853 municípios mineiros, compartilhando um mesmo desafio: como elaborar as melhores estratégias enquanto as questões não param de surgir? Como acolher as afetações do momento? Como transpor as barreiras do que causa sofrimento psíquico produzido a partir das relações intersubjetivas? Algumas certezas se tem: aqui e lá fora são vidas singulares. Não são números. E a profissão de psicóloga(o) tem a potência necessária para compreender as dimensões coletivas dos sofrimentos e construir conjuntamente com toda a sociedade melhores caminhos.
na, além de centenas de jornalistas e outros voluntários. Por meio da divulgação de relatos sobre as pessoas vitimadas pela Covid-19, familiares celebram cada vida que existiu construindo memória e ressaltando afeto e respeito. O que move esse trabalho? A ideia de que nú-
A Psicologia das Emergências e Desastres compreende
meros são inexpressivos e incapazes de dizer quem são
que os perigos sociais prolongados do trauma coletivo
essas singularidades.
consistem no esquecimento, pois o que não é proces-
“O Memorial funciona no site e nas redes sociais”, expli-
sado não cicatriza. Mas, será possível, um dia, colocar a
ca Larissa Reis, uma das colaboradoras mais antigas. Ela
Covid-19 no limbo da memória? Como ficarão os lutos
conta que “os entrevistados se sentem gratos, pois con-
não consolidados pela impossibilidade das despedidas e
sideram uma espécie de substituição ao formato de ve-
dos ritos usuais?
lório tradicional, quando é possível ganhar afeto e con-
Incomodado com uma possível perda da noção de rea-
forto pelos amigos. Durante a entrevista aos voluntários,
lidade, o artista Edson Pavoni criou o Memorial Inume-
alguns assumem que ainda não conseguiram falar com
ráveis com a colaboração de Rogério Oliveira, Rogério
ninguém sobre seus sentimentos de perda”. Ela conta
Zé, Alana Rizzo, Guilherme Bullejos, Gabriela Veiga,
ainda que o Inumeráveis deve ganhar uma versão física
Giovana Madalosso, Rayane Urani, Jonathan Querubi-
em breve.
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ORIENTAÇÃO | REVISTA CRP-MG
QUEM SÃO AS(OS)
PSICOTERAPEUTAS? PSICOTERAPIA POR PSICÓLOGAS(OS) E NÃO PSICÓLOGAS(OS) Texto: Comissão de Orientação e Fiscalização do CRP-MG elaborado por Liziane Karla de Paula (Psicóloga Fiscal) e Carolina Abreu (Estagiária de Psicologia) com a colaboração da Equipe do Setor de Orientação e Fiscalização. 31
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Atividade, apesar de ser um referencial teórico utilizado pela categoria para subsidiar sua atuação, permanece aberta para exercício de outras profissões A Psicologia é uma profissão regulamentada pela Lei 4119/62 que estabelece pré-requisitos para o seu exercício, sendo eles: graduação em Psicologia em faculdade reconhecida pelo Ministério da Educação e Cultura/MEC e inscrição obrigatória no Conselho de Psicologia, cujas competências de regulamentar, orientar e fiscalizar a profissão foram instituídas pela Lei 5766/72. Trata-se de uma profissão cuja atuação inicial no país se consolidou principalmente nas áreas de Psicologia Escolar, Organizacional e Clínica, e que, desde então, vem ampliando e diversificando o seu escopo de atuação em diversas outras áreas/especialidades tais como: Psicologia Social, Hospitalar, Jurídica, Saúde, Neuropsicologia, Psicopedagogia, Psicologia de Trânsito, do Esporte, entre outras. Dentre estas diversas áreas, então, está a Psicologia Clínica que contempla/ inclui a psicoterapia, uma das práticas mais antigas, consolidadas e de relevância para a Psicologia enquanto Ciência e Profissão, e que está regulamentada através da RES CFP 10/2000 que “Especifica e qualifica a Psicoterapia como prática do Psicólogo”, além de ser a Psicologia Clínica uma das especialidades possíveis de titulação pelo Conselho Federal de Psicologia (RES CFP13/2007). Mas afinal, o que é a psicoterapia? Poderia se elencar uma série de
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definições sobre, mas tendo como referência a resolução citada, psicoterapia é “um processo científico de compreensão, análise e intervenção que se realiza através da aplicação sistematizada e controlada de métodos e técnicas psicológicas reconhecidos pela ciência, pela prática e pela ética profissional, promovendo a saúde mental e propiciando condições para o enfrentamento de conflitos e/ou transtornos psíquicos de indivíduos ou grupos. ” O exercício da psicoterapia por psicólogas(os) encontra elevado reconhecimento social, tanto que há uma parte considerável da categoria exercendo essa atividade, inúmeros cargos públicos e privados que exigem a formação psicóloga(o) para exercer funções que incluem a psicoterapia, e o próprio Código Brasileiro de Ocupações (CBO) que considera psicoterapeuta e terapeuta também como sinônimos de psicóloga(o) clínica(o) (Código 2515). Tudo isto, além da ANSS indicar a atividade de psicoterapia para médicos e psicólogos. A razão desta legitimação social se deve a diversos fatores, dentre eles: a graduação de psicologia, que inclui disciplinas e estágios preparatórios para o exercício da clínica/psicoterapia; um extenso acúmulo de experiência prática e produção científica sobre a matéria; e o fato de ser uma profissão regulamentada e ter um Conselho de Profissão que atua regulamentando,
orientando e fiscalizando seus profissionais em busca de serviços de qualidade para a população. Sobre o exercício destas competências por parte do Conselho, poderíamos citar a expedição de legislações tais como: O Código de Ética Profissional do Psicólogo/RES CFP10/2005 que estabelece o dever da(o) psicóloga(o) estar capacitada(o); realizar um trabalho fundamentado na ciência, ética e legislação; além da obrigação de resguardar o sigilo; entre outros. Ademais, a RES CFP01/2009 (alteração RES CFP05/2010), que torna o registro em prontuário obrigatório e fornece diretrizes para tal procedimento, a RES CFP 06/2019, que regulamenta a elaboração de documentos psicológicos e a RES CFP08/2010 que orienta atuação das(os) psicólogas(os) diante de demandas do poder judiciário. Lembrando que as(os) psicólogas(os) devem referenciar sua atuação nessas e todas outras legislações expedidas pelo Conselho de Psicologia, e no caso de descumprimento, o Conselho ainda tem poder legal para fazer fiscalizações, exigir adequações, instaurar processos éticos, aplicar penalidades, e até mesmo impedir o exercício profissional quando, em última instância, isso for necessário para proteger a sociedade. Todavia, faz-se necessário elucidar que a psicoterapia não é atividade privativa da psicologia, pois a Lei 4119/62 que
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regulamentou a profissão, estabeleceu limites restritivos quanto ao uso de técnicas e métodos psicológicos, como os testes psicológicos, mas não quanto ao exercício da psicoterapia. Ademais, também não existe uma lei federal que reconheça a psicoterapia como profissão criando pré-requisitos para o seu exercício, podendo assim ser exercida por diferentes profissionais. Da mesma forma, também não são regulamentadas a Psicanálise (que no CBO é considerada como uma ocupação), as diversas terapias e outras práticas também voltadas à promoção de saúde mental. Um parêntese apenas para explicar que a psicanálise também é um dos referenciais teóricos utilizados pelos psicólogas(os) para subsidiar sua atuação. De qualquer forma, observa-se que a exclusividade da psicoterapia para a psicologia é um tema polêmico para a própria categoria, já que envolve por um lado a qualificação/habilitação para seu exercício, além da preocupação com os prejuízos sofridos pelos usuários atendidos por profissionais que não são minimamente capacitados e que de forma crescente vêm disputando esse mercado, mas por outro lado, envolve a inegável contribuição de outros saberes na construção do conhecimento sobre a psicoterapia e seus benefícios para a população. Ilustrando a complexidade dessa discussão, no ano da Psicoterapia no Sistema Conselhos (2009) e em alguns CNPs (Congressos Nacionais de Psicologia) já houve uma tendência nas discussões e deliberações pela não defesa desta exclusividade. Porém, em outros CNPs, como o XCNP em 2019,
direcionou-se pela necessidade de movimentação política em busca da restrição desta prática à psicologia. E diante desta polêmica, neste ano de 2021, temos o Seminário e a Consulta Pública sobre a Psicoterapia que está sendo promovida pelo Conselho Federal de Psicologia. De toda forma, é imprescindível destacar que mesmo a psicoterapia não sendo uma prática privativa da psicologia, e ainda existindo a discussão sobre esta questão, essa profissão, conforme acima demonstrado, possui inquestionável acúmulo, legitimidade e competência legal para exercer esta atividade, bem como o Conselho de Psicologia tem o devido respaldo e dever de orientar aos usuários e psicólogas(os) em busca da oferta de psicoterapia de qualidade para a população. Assim, aos usuários ou interessados pela psicoterapia, é essencial buscar informações sobre a formação e registro do profissional para atuação. Lembrando que, no caso da escolha por profissional não psicóloga(o) e que não tenha profissão regulamentada e conselho de profissão, não haverá garantia de qualificação mínima e nem instância responsável pela normatização, fiscalização e tratamento de questões éticas, ficando a cargo da justiça comum a apuração e punição apenas quando houver infrações legais. Ressaltando-se que não psicólogas(os) não podem sobremaneira: oferecer serviços utilizando o nome Psicologia ou Psicóloga(o), utilizar siglas como CRP ou outras semelhantes que
remetam a inscrição no Conselho de Psicologia ou outros Conselhos que não existam legalmente, tentar induzir aos usuários destes serviços a acreditar equivocadamente que há uma habilitação em psicologia; utilizar métodos e técnicas que sejam privativos da Psicologia como os testes psicológicos. Afinal, tais condutas podem ser enquadradas como exercício ilegal de profissão, uma contravenção penal passível até de prisão (Lei 3688/41). E, às(aos) psicólogas(os) psicoterapeutas, orienta-se que respeitem as orientações técnicas e éticas para o exercício profissional da psicologia, destacando-se o dever de “prestar serviços psicológicos de qualidade em condições de trabalho dignas e apropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conhecimentos e técnicas reconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na legislação profissional” (CEPP - Código de Ética Profissional do Psicólogo RES CFP10/2005). Por fim, é de suma importância que todas(os) psicólogas(os) se apresentem como psicólogas(os), inclusive com número de registro no Conselho Regional e suas qualificações, pois, além de ser uma obrigatoriedade prevista na Lei 5766/71 e CEPP, é uma forma de fornecer aos usuários informações sobre sua formação, habilitação e o serviço que será prestado. Ademais, que todas(os) psicólogas(os) sejam sempre multiplicadores dessas informações e orientações, demarcando e valorizando a Psicologia enquanto Ciência e Profissão.
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MEDIAÇÃO DE
CONFLITOS
A atuação da comissão de ética e comissão de meios de solução consensual de conflitos
Novo Código de Processo Civil de 2015
Lei 13.140, de 26 de junho de 2015
Texto: Comissão de Orientação e Ética do CRP-MG.
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A mediação é um método de solução de conflitos em que uma terceira pessoa (amediadora), imparcial e escolhida ou aceita pelas partes, as auxilia na busca de soluções para uma ou mais controvérsias. No Brasil, a mediação apareceu inicialmente como uma forma alternativa de solução de conflitos empresariais e, a partir do sucesso da técnica, foi incorporada ao texto do Novo Código de Processo Civil de 2015 , ganhando regulamentação independente com a edição da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, que dispõe sobre sua prática, sobre a elegibilidade de mediadoras e sobre os limites de atuação, ética e confidencialidade. As mudanças do Código de Processo Civil, demonstram a preocupação com uma Justiça mais acessível, ágil e descomplicada, para a qual o sistema de mediação se torna uma estratégia fundamental para a autocomposição dos conflitos. Além disso, a mediação promove uma cultura de paz na medida em que favorece uma mudança de paradigma na Justiça: da disputa para o diálogo. Na última década, psicólogas(os) atuantes em diferentes especialidades têm encontrado na mediação uma ferramenta que permite tanto a intervenção precoce, preventiva, como a intervenção em crises agudas, com o objetivo de gerar opções para solucionar conflitos com qualidade, eficácia, idoneidade e rapidez. Ela pode ser utilizada em todo tipo de conflito, principalmente nos que versam sobre relações continuadas, resguardando os princípios da imparcialidade
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do mediador; isonomia entre as partes; oralidade; informalidade; autonomia da vontade das partes; busca do consenso; confidencialidade e boa-fé. Os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia, frente a esse quadro, e acreditando que haja, na Psicologia, construção teórica, técnica e ética para o desenvolvimento de uma cultura pacificadora, implementou a Resolução do CFP nº 007, de 21 de junho de 2016. Esta, por sua vez, determinou a criação, pelos Conselhos Regionais, das Câmaras de Mediação no âmbito de suas respectivas Comissões de Ética (COE). A COE compõe a Comissão de Meios de Solução Consensual de Conflitos e pode encaminhar as partes, a qualquer momento do trâmite dos processos investigativos e disciplinares éticos, para a Câmara de Mediação. Esta funciona, no CRPMG, através do cadastro de mediadoras(es) independentes, que são profissionais com formação e experiência nesta prática. Importante ressaltar que a mediação no Sistema Conselhos é um recurso voluntário e oferece àquelas pessoas que estão vivenciando um conflito a oportunidade e o espaço adequados para solucionar suas questões. As partes
poderão expor seu pensamento e terão uma oportunidade de solucionar questões importantes de um modo cooperativo e construtivo. O objetivo da mediação é prestar assistência na obtenção de “acordos” que poderão constituir um modelo de conduta para futuras relações, num ambiente colaborativo em que as partes possam dialogar produtivamente sobre suas necessidades e interesses. Foi criada com o objetivo de promover uma transformação das práticas da(o) psicóloga(o), em uma relação de diálogo entre categoria, usuários dos serviços psicológicos e demais entes da sociedade. A ideia é tratar as situações de conflito de forma distinta da lógica judicializante, lógica esta que prevalece em nossa sociedade, sendo responsável por práticas policialescas e apenas punitivas, e que muitas vezes apareciam nos processos éticos do Sistema Conselhos. Investe-se, assim, nas possibilidades de orientação e retificação. O mediador atua como facilitador na comunicação, buscando identificar os interesses subjacentes às demandas apresentadas, podendo os participantes, de comum acordo, resolverem as questões e indicar soluções próprias e adequadas. 35
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Segundo Márcia Alves dos Santos, que atualmente atua como mediadora no CRP-MG, aponta que: “É dever do Mediador capacitado, preservar o instituto da Mediação, por meio de uma conduta ética, propiciando uma credibilidade aos que nos procuram. O princípio da Autonomia da vontade é o balizador do procedimento, a meu ver, juntamente com a confidencialidade, são princípios fundamentais para a realização da mediação. Toda decisão deve ser voluntária e nunca coercitiva, estabelecendo sempre liberdade durante todo o procedimento. Onde o Mediador irá sempre auxiliar no esclarecimento dos interesses subjacentes às posições, através das técnicas. Para que os participantes possam, dentro do princípio da decisão informada, chegarem, de comum acordo, a resoluções que beneficiem a ambos.” Com relação aos princípios de independência e autonomia, o mediador através de sua conduta ética, deve construir e manter a credibilidade perante as partes, sendo independente, franco e coerente. Sempre atuar com liberdade técnica, sem sofrer qualquer pressão interna ou externa. E se sofrer tais pressões, interromper o procedimento no qual está atuante, podendo ser em definitivo ou até esclarecer e cessar as pressões sofridas. Portanto, o Mediador poderá recusar, suspender ou interromper a sessão, se ausentes as condições éticas, principiológicas, necessárias para o desenvolvimento e condução do procedimento. Este é um princípio muito importante quando se atua em colaboração com uma instituição. Manter uma autonomia, imparcialidade e independência técnica na atuação. Marcia ainda aponta que: “Enquanto mediadora atuante nas representações ao CRP, observo como é restaurador para pacientes e, ou responsáveis e para a(o) psicóloga(o) a possibilidade de um diálogo na mediação. A atuação de um mediador capacitado auxilia a condução do diálogo, para o esclarecimento e a compreensão das ações que foram tomadas pelos participantes Portanto, a solução consensual dos conflitos, aponta para uma reflexão crítica sobre a atuação ética profissional, com a possibilidade de análise sobre o fazer da Psicologia, reforçando assim o compromisso social da profissão.” A fim de ampliar o seu quadro, o CRP abrirá brevemente novo edital de seleção para formação de cadastro de mediadoras(es) capacitadas(os) e independentes. Convidamos a categoria a direcionar atenção para esta área de atuação e realizar o cadastro e aprender junto esta nova prática que o Sistema Conselhos tem apostado.
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IDEIAS E IDEAIS
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PANDEMIA IMPÕE DESAFIOS PARA ALÉM DO PLANEJADO XVI Plenário iniciou gestão modificando cenários traçados, mas mantendo o compromisso de realizar uma gestão horizontal Vinte e seis de setembro de 2019, 16 de março de 2020. Cento e setenta e três dias separam a data na qual o XVI Plenário foi empossado e a que marca a decretação da pandemia de Covid-19, no país. Ao mesmo tempo em que as(os) conselheiras(os) tomavam ciência do funcionamento do Conselho Regional de Psicologia – Minas Gerais (CRPMG) e iniciavam o compartilhamento de ideias e decisões, “foi necessário criar e estabelecer um plano emergencial de trabalho para que a autarquia pudesse se manter funcionando, sem interrupção de seus serviços, e refazer as estratégias políticas para enfrentar a urgência imposta pelo contexto”, explica Lourdes Machado, conselheira presidenta. A primeira providência na perspectiva de “coletivizar caminhos”, conforme explica Evely Capdeville, conselheira tesoureira, foi criar o Comitê de Crise: “colocamos o DNA da gestão, de horizontalidade nas decisões, para esse novo grupo de governança, que ampliava o Plenário contando com representantes de todas as entidades da Psicologia em Minas”. Segundo Lourdes Machado, essas instituições também fazem parte de um grande coletivo que trouxe o XVI Plenário para o Conselho, assumindo o compromisso de colaborar com sua direção política. Ao mesmo tempo em que o grupo, em conjunto com as equipes de trabalho do CRP-MG, criava novos protocolos de trabalho interno e orientações para a categoria encarar
a pandemia, também se viu ainda mais convocado a atuar no enfrentamento aos desmontes de políticas públicas e na salvaguarda de normas sanitárias. “Passamos a nos dedicar intensamente na sugestão de medidas para proteção da vida junto aos órgãos governamentais do estado, conforme preconiza nosso Código de Ética profissional”, relembra a conselheira presidenta, ressaltando que não existiam referências de como agir nem tempo para planejar. “Tínhamos uma certeza: o momento não poderia nos tirar da rota da defesa dos direitos humanos”, completa.
AÇÕES CONCRETAS O Comitê de Crise, que atuou de forma integrada com o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e com os demais Conselhos Regionais de Psicologia no sentido de produzir reflexões e ações de orientação à categoria, se reuniu semanalmente por muitos meses até conseguir consolidar os protocolos e analisar as demandas da categoria. Entre as mais relevantes estão: - prorrogou o prazo de pagamento da Anuidade 2020 por meio de Resolução CRP04-MG – Nº 02/2020. - produziu e mantém atualizado um hotsite sobre atuação da Psicologia no contexto da Pandemia COVID 19 - https://crpminasgerais.wixsite.com/ coronavirus. - elaborou e veiculou materiais orientativos para a categoria atuar neste contexto de pandemia em formatos de vídeos, cartilhas, notas, entrevistas e posts para redes sociais, disponíveis neste hotsite. - criou o grupo de trabalho entre os setores jurídicos do CRP-MG e do Psind-MG para discussão de assuntos trabalhistas. - nomeou comissão para criação da Central de Serviços e Projetos para atendimento à COVID-19. - realizou campanha virtual, por meio de vídeos, em defesa da continuidade dos programas estaduais de caráter preventivo no contexto da Segurança Pública e garantia de trabalho protegido, especialmente no período de pandemia do Coronavírus e, nesta mesma pauta, participa de coletivo com outras dez entidades que vem se reunindo com o Executivo e o Legislativo mineiro para sugerir e cobrar providências para proteção dos públicos envolvidos. - produziu entrevista que faz reflexão sobre o envolvimento da Psicologia na discussão dos critérios para acesso a leitos de UTI. - apoiou a Associação de Usuários em relação à utilização dos leitos do Hospital Psiquiátrico Galba Veloso para atenção ao Covid-19.
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- participou da articulação com demais conselhos e entidades para a garantia de equipamentos de proteção, segurança e valorização dos profissionais de saúde em Minas Gerais. - colaborou com o Conselho Estadual de Saúde na promoção de iniciativas em defesa de categorias profissionais que atuam no enfrentamento à pandemia em Minas Gerais -Recomendações CESMG ao governador do Estado em função do Decreto Nº. 47.914, de 10 de abril de 2020. - assinou o documento “A necropolítica do governo brasileiro e sua política de drogas em tempos de pandemia” - iniciativa coordenada pela Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila), que exige a revogação imediata da Portaria nº 340/2020, do Ministério da Cidadania, que estabelece medidas para o enfrentamento da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional decorrente de infecção humana pelo novo coronavírus (COVID-19), no âmbito das comunidades terapêuticas. - produziu orientações e seminários no sentido de acolher questionamentos de estudantes de Psicologia, docentes e coordenadores de curso que buscaram na autarquia CRP-MG instruções seguras e assertivas para a continuidade dos processos educativos nas Instituições de Ensino Superior (IES).
PRÁTICAS AINDA MAIS HUMANIZADAS “O manejo de crise, desde o princípio, vem se desdobrando em diferentes etapas e por consequência, na readaptação das práticas psicológicas que respeitem o distanciamento social, de acordo com a realidade de cada local de trabalho. Geralmente, as orientações básicas sobre biossegurança, a prevenção e o controle de infecção são destinadas aos profissionais que atuam na área da saúde, porém, no cenário pandêmico, esta passou a ser uma questão que diz respeito a toda a categoria, independente da área de atuação”, explica Evely Capdeville. Todas as comissões do CRP-MG foram envolvidas nas reflexões e organizações de materiais orientativos, cabendo às de Emergências e Desastres, Saúde Mental, Saúde, Ética, Formação, Escolar e Educacional, Mulheres e Questões de Gênero, Clínica, Política de Assistência Social, Sistema Prisional e Socioeducativo, Relações ÉtnicoRaciais, Criança e Adolescente atuar com mais intensidade nestas produções e mobilizações de outros entes para tentar garantir o estabelecimento dos novos protocolos. “Na esteira das urgências para encontrar saídas aos problemas enfrentados pelas(os) profissionais da linha de frente nos hospitais, a organização coletiva das(os) psicólogas(os) hospitalares levou a autarquia ao reconhecimento da necessidade de criar o Grupo
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de Trabalho da Psicologia Hospitalar, que veio a se tornar comissão logo depois”, conta Reinaldo da Silva Júnior, conselheiro secretário. Na sua opinião ficou patente e explícito para toda a categoria a união de esforços das comissões ao mesmo tempo que se fazia imperativo a criação de uma relacionada ao trabalho nos hospitais. Em todas as alternativas e Procedimentos Operacionais Padrão (POPs) o conceito de humanização da assistência foi o balizador. Como um dos exemplos mais relevantes é possível citar a mobilização do CRP-MG junto à Assembleia Legislativa de Minas Gerais, com a participação de outros conselhos profissionais e de movimentos sociais para a adoção de medidas protetivas de saúde das pessoas em situação de rua, que já vinham sendo afetadas por cortes em políticas públicas, em especial nas áreas de Saúde e Assistência Social. “Somos a profissão das inquietudes, da ousadia, da mobilização, face às condições sociais e políticas no nosso país, por entendermos que existe uma correlação dialética entre a realidade social e a subjetividade humana, na qual a precarização da vida, das condições de trabalho, o adoecimento psíquico das(os) profissionais de saúde e da população de uma forma geral, põem em risco a vivência efetiva dos direitos humanos”, assinala Suellen Fraga, conselheira vice-presidenta do CRP-MG, ressaltando o quanto “as práticas políticas atuais têm prescindido o estado de direito, a participação dos cidadãos nas instituições e espaços públicos”. Lourdes Machado realça que a Psicologia lutou e permanece lutando contra as ações governamentais que desconsideram a gravidade da pandemia e que ao mesmo tempo seguem destruindo as políticas públicas. “Temos que lembrar a todo momento que ética e política são indissociáveis da prática profissional da(o) psicóloga(o). Existimos para encontrar caminhos que nos permita viver melhor, com mais dignidade, com segurança, educação, saúde. Este é o maior compromisso do coletivo. Nossas ações voltadas para a categoria têm como norte a preocupação de dar respaldo para o trabalho com segurança, sem fugir de sua responsabilidade ética de cuidar das pessoas”, conclui.
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Pesquisa
O perfil da(o)
Psicóloga(o) em Minas Gerais
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Participe da pesquisa e colabore ativamente para que o CRP-MG compreenda melhor o perfil da(o) psicóloga(o) mineira(o).
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