Corda Nº1 (Versão Impressão)

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Setembro 2009



Corpo Editorial: Francisco Rocha Luís Piteira Carlos Trancoso João Gaspar Carlos Ribeiro Maria Fernandes Design Gráfico: Filipa Freitas Apoio: AEFAUP Tiragem: 150 exemplares

cORDA

“elemento utilizado para unir e ligar vontades, opiniões, acontecimentos, conhecimentos. Ideias.”


Entrevista ao Professor Sérgio Fernandez

Sérgio Fernandez. Uma vida dividida entre os Bairros da Revolução de Abril e a elaboração das bases de exercício de Projecto de 1º Ano, que são hoje uma referência nacional.

Relativamente ao guião da entrevista proposta, julgo necessário desfazer alguns equívocos que poderiam afectar as minhas respostas. Não creio que a minha vida, por muito que isso correspondesse a uma imagem, digamos, rentável, se divida entre os Bairros da Revolução de Abril e as bases de exercício de Projecto (depreendo que o exercício inicial) do 1º Ano, nem me parece minimamente fundamentado poder dizer-se que são uma referência nacional. Não diminuo a extraordinária importância que, para mim e para muitos outros – alguns até docentes do 1º ano – teve a experiência profissional e de cidadania no período pós 25 de Abril, como não recuso aquilo que considero ser acertado no tipo de exercício referido.

Arq. Sérgio Fernandez, qual a ligação provável entre a arquitectura que tem projectado e a maneira como pensou os exercícios de projecto? A arquitectura a que estou ligado,

quer, se trate de habitação económica, de habitação unifamiliar ou colectiva para a classe média, intervenções em patri-mónio de valor histórico reconhecido, equipamentos, espaços urbanos, etc., tem sempre como objectivo essencial a criação de espaços de uso qualificados, em simultâneo com a potenciação dos valores essenciais dos sítios onde se intervém. Os exercícios de Projecto do I ano (cuja autoria pertence a um colectivo que foi estabelecendo sólidas relações ao longo do tempo) são dirigidos no sentido clarificar a importância daqueles valores, ao mesmo tempo que procuram proporcionar aos estudantes uma ampla utensilagem na abordagem dos diversos problemas e, ainda, a pertinência de um permanente questionamento das soluções possíveis.

Porque razão existem opiniões que acusam o programa de projecto I da FAUP de algum autismo teórico, quando se mostra um enorme conhecedor desta área?

Não me reconheço como tendo uma profunda formação teórica., como não reconheço o “autismo” apontado na questão. Desde há muito que o ensino de Projecto I vem tendo, para além de

finalização, etc.. Que, acima de tudo, procura fazer-nos pensar e adquirir conhecimento. Será que, neste contexto, fará então sentido, por exemplo, tentar elaborar autênticos projectos de execução, com quase tudo discriminado, e acarretando um esforço hercúleo, em propostas projectuais elaboradas durante os dois ou três primeiros anos de curso? Mas todos os anos, alguns alunos procuram marcar a diferença desta forma ou de outras semelhantes. E o mais curioso é que isto nem sequer é exigido pelos docentes: na verdade, se formos completamente objectivos, aperceber-nos-emos de que o que estes procuram é fazer-nos ver determinados problemas e possibilidades de solução (em suma, que aprendamos alguma coisa), e não que desenhemos irrepreensível e totalmente um edifício em todas as suas componentes. Na verdade, estou convencido de que parte sobretudo dos alunos, em muitas situações (mas não todas, disso não haja dúvidas), a tendência para puxar o esforço físico e psicológico para além do razoável, na tentativa de se superar (e superar os outros), e apresentar volumes de trabalho verdadeiramente impensáveis. Não se fique, após isto, com a ideia que procuro incitar ao ócio e ao desleixo. O brio no trabalho e no estudo, e a vontade de ser melhor são para mim valores fundamentais. Simplesmente, não consigo deixar de pensar

que, a partir de um certo estrato, a quantidade de trabalho pode ter um carácter contraproducente, tanto ao nível pessoal como ao nível academicoprofissional. Ao nível pessoal, as muitas horas gastas a “trabalhar” (curioso como na nossa faculdade se usa muito mais regularmente este termo do que “estudar”) podem tornar-se, a certo ponto, prejudiciais ao equilíbrio psicológico do indivíduo (e casos clínicos já os houve). E ao nível da aprendizagem da arquitectura, que, aqui, é o mais nos interessa, a excessiva absorção em temas muito fechados dentro da esfera da disciplina pode impedir o desenvolvimento de uma cultura em sentido mais lato, e de uma consciência pessoal e social mais aprofundada. Componentes de carácter que considero essenciais num arquitecto, que por princípio deverá ser um profissional com uma formação abrangente e generalista. Sistematicamente aproveitar uma tarde livre para trabalhar na proposta para Projecto, ao invés de a aproveitar para espairecer, ler um bom romance, dar uma saltada ao cinema, ou comprar um novo álbum de música não me parece uma boa opção no longo prazo. Que não sejamos, de modo algum, a Cigarra da fábula, mas que não tentemos, igualmente, ser uma Formiga irrepreensível.


velhos, nunca está completamente fechada. Habituados como estamos aos métodos do ensino secundário, com matérias muito bem delimitadas (e às vezes, muito formatadas), elementos de avaliação muito específicos e classificações muito objectivas, sentimo-nos muitas vezes um pouco perdidos nos primeiros contactos com a subjectividade e necessidade de exploração pessoal que são inerentes à arquitectura. Além disso, o impulso para o estudo abnegado com que alguns de nós ainda vêm dos anos do secundário (necessário para a obtenção das altas médias de acesso a faculdades como a nossa) automaticamente impele-nos a um esforço adicional, pela necessidade que sentimos de “mostrar serviço”. Com a diferença de que agora, acabadinhos de entrar na faculdade, e devido à novidade constante e vastidão de abordagens presente nas matérias e nos métodos de trabalho, não sabemos bem onde parar; não sabemos ainda distinguir com clareza o que é relevante do acessório. A relatividade das avaliações também contribui para gerar no aluno uma certa insegurança quanto à qualidade e (demasiado frequentemente) quanto à quantidade de trabalho produzido. É certo que a arquitectura é um campo do conhecimento que não pode ser regido por regras fixas, completamente objec-

tivas e cientificamente articuladas. A subjectividade e variedade interpretativas são factores impossíveis de ignorar neste nosso campo. Igualmente, a crítica comparada de trabalhos de estudantes é um método pedagógico cuja essencialidade nem se discute. Contudo, muitas vezes, entre os alunos, tende-se a encarar a situação como uma competição desenfreada, em que para vingar é necessário, sem contemplações, produzir mais trabalho que o colega do lado... ainda que muitas vezes isso não reflicta uma real melhoria do conteúdo de uma investigação teórica, ou da qualidade de uma proposta projectual. Isto leva-me a uma outra faceta desta problemática, que me parece surgir recorrentemente, (particularmente à cadeira de Projecto) que é a incapacidade que temos de, por vezes, encarar um exercício académico... como tal. Entusiasmarmo-nos com uma proposta projectual é óptimo: dá-nos satisfação pelo trabalho produzido, leva-nos a querer introduzir novos temas e problemas. No entanto, devemos ter sempre os pés assentes na terra, e lembrarmonos que, enquanto estudantes, se trata simplesmente de mais um exercício: com um enunciado, pretendendo responder a um número limitado de problemas, com elementos específicos a ser entregues, com datas-limite de

uma componente essencialmente prática, uma componente que sempre prefiro designar de “informação teórica”, uma vez que julgo desajustada, para estudantes em fase inicial e sem referências fundamentais, uma abordagem puramente teórica e, como consequência, de carácter abstratizante.

Mas a “cidade” parece um exercício bastente complexo... Espera mesmo que os alunos completamente verdes distingam claramente os conceitos “urbanos” que estão em jogo?

O exercício da “cidade”, nunca teve como objectivo propôr ou resolver questões urbanas; o que ele pretende é, em primeiro lugar, conferir a cada aluno a possibilidade de “construir” uma proposta sua para a organização de espaços diferenciados, e reconhecer neles os valores da relação, da composição, das dimensões, de escala e de como isso se reflecte no carácter das soluções que, em sequência, se vão consolidando. Duvido que sejam óbvias as parecenças formais dos últimos exercícios com qualquer dos projectos em que tenha estado envolvido. Por outro lado reconheço poder existir nesses exercícios uma certa contenção formal, uma provável presença do senso comum

e repúdio pelo carácter exibicionista de certas arquitecturas em vigor. A tradição histórica do norte, talvez mais do que o espírito que se atribui à “Escola do Porto” alicerçam, porventura, essas opções. Haverá que encontrar um caminho onde o que se ganha em segurança não se perca no suscitar da imaginação.

São óbvias algumas parecenças formais que se vão repetindo todos os anos entre os últimos exercícios de projecto, e alguma habitação social da sua autoria. O exercício propõe formas? Nesse sentido o que é “habitação” e “habitação social”?

Não reconheço, em nenhum exercício, a proposta apriorística de formas. Do mesmo modo não considero pertinente, em termos disciplinares, a divisão entre habitação e habitação social; será sempre a qualidade da Arquitectura (com A grande, como é costume dizerse) que está em causa.

O texto é um elemento com pouca importância no Projecto I? De que forma é que isso se pode coordenar com a participação de alguns alunos em pu-


Entre a cigarra e a formiga por Carlos Ribeiro

blicações como esta, quando deci-dem opinar sobre o projecto de arquitectura, na sua forma mais física?

Ao longo dos anos, a expressão escrita, na cadeira de Projecto I, não foi capaz de impor-se como elemento de relevo insubstituível; creio que a existência de outras cadeiras, como a de Teoria Geral de Organização no Espaço, vieram, de certo modo, suprir esse inconveniente, ao qual, mesmo assim, se tem procurado dar a necessária atenção. A capacidade de expressão de cada estudante do 1º ano,através da linguagem escrita, pode e deve fomentar-se, quer no âmbito da pedagogia, quer no âmbito de iniciativas como a da publicação que agora é lançada.

É conhecido que ao longo do curso a questão do orçamento é pouco acautelada... Se no primeiro ano se entende, pela complexidade acrescida que traria, é possível que se estenda a ausência desse tema do orçamento pelos outros anos? Não estou seguro de que os problemas dos custos decorrentes das soluções arquitectónicas propostas, não mereçam qualquer atenção. Haverá, no mínimo, uma questão de equilíbrio que estará

presente em todas as propostas; a sua ponderação e a análise da sua possível exiquibilidade poderão aproximá-las do que possam ser as implicações de uma hipotética acção real. Creio que é na fase final do curso, onde a utensilagem estará, já, adquirida, que esse tipo de problemas poderá ganhar justificada relevância.

Um aluno em estágio no seu escritório pode ser menos interessante por isso (de não controlar bem o orçamento)? Ou a independência profissional que isso lhe daria pode até trazer alguma ausência de qualidade nas primeiras obras?

Um aluno estagiário, dependendo do tipo de projectos a que venha a estar ligado, e, consequentemente, da capacidade de acção que possa ter num escritório, é – e por isso é que se chama estagiário – normalmente enquadrado numa equipa que, sem lhe cortar a criatividade, o integra na procura de soluções consensuais; não reconheço, em consequência, a possibilidade de existência dos problemas apontados.

O volume de trabalho é uma das características que marcam, em geral, um curso de arquitectura. Qualquer indivíduo que considere enveredar por uma actividade criativa deste tipo deverá mentalizar-se, à partida, que lhe serão exigidas capacidade de trabalho, entrega e por vezes até sacrifício; são componentes que ocupam um espaço (com alguma importância) no contexto pedagógico do curso. É, em parte, esta uma das razões porque o desenvolvimento de actividade neste campo exige do (futuro) arquitecto um gosto verdadeiro pela disciplina; alguns dirão até que “paixão” é essencial. Em maior ou menor grau, o que é certo é que tem de existir um interesse com alguma profundidade. Há, no entanto, situações que nos fazem indagar se, por vezes, o “trabalho” não se sobrepõe à “arquitectura”. Em todos os anos lectivos elas acontecem e, com maior ou menor incidência, todos as experimentamos, especialmente na cadeira de Projecto. A vontade de ser melhor que os outros, de ter uma bela nota na pauta, de receber o respeito dos pares e dos professores, leva-nos frequentemente a procurar ter “algo mais” que os outros. Simplesmente, essa marca de distinção não se revela muitas vezes num acréscimo de qualidade do material

produzido, mas sim num aumento desmesurado na quantidade de elementos apresentados (sejam desenhos, texto, fotos, maquetas...). Quantos, de entre nós, consciente ou inconscientemente, não fizeram no primeiro ano apenas mais umas folhitas de processo para aumentar o “maço”? Ou, no segundo, numa entrega, decidiram acrescentar mais três ou quartos cortes do que o normal, ou fazer tramas de 1 mm? Ou, no terceiro, optaram por fazer a pormenorização construtiva de duas ou três fachadas do edifício, quando a ficha de entrega especificava apenas uma? Quantas horas não perdemos às vezes a desenvolver soluções pouco pensadas e cheias de problemas, apenas porque achámos mais importante passar imediatamente à acção, em vez de inicialmente, com calma, lhes dar alguma reflexão? A partir de que ponto o “trabalho” pode deixar de ter um valor realmente operativo? O assunto poderá talvez ser primeiramente abordado pela questão dos “limites” ao trabalho produzido. Qual o volume de trabalho que é necessário/ expectável para a elaboração de uma resposta positiva (com qualidade) a um exercício proposto? Esta é uma questão que se depara com frequência, certamente, aos alunos dos primeiros anos do curso, e que, mesmo para os mais


arquitectónicos, modelos cá de cima. (7 - da sua penthouse , do seu centro de interpretação da paisagem)

Exige-se que a produção da nossa escola, por maioria de razão, prime por uma sugestão activa, que se forme pelas reais exigências e não pelo senso académico, exige-se o lugar do experimentalismo, que responda a necessidades reais, mas que trilhem também os novos caminhos da disciplina. Volto a um assunto encerrado para pedir licença, porque isto que digo é também o elogio da escola que critico, porque próxima, porque passional, porque, ainda que alargada tem essa capacidade portuguesa e louca de fazer uma Casa.

Enquanto aluno, gostaria de ter uma disciplina chamada “Teoria da Arquitectura”?

Porque, enquanto aluno não tive essa possibilidade e porque enquanto arquitecto e docente claramente senti a sua necessidade, sempre me interessou especialmente essa matéria, que vi magistralmente consignada na cadeira de TGOE, concebida, no seu início, pelo grande pedagogo que foi o Professor Fernando Távora.

Para se ser um Teórico de Arquitectura tem que se construir antes? Um Teórico de Arquitectura é um Arquitecto?

Sinceramente Não considero absolutamente essencial que um qualificado teórico de Arquitectura seja autor de Projectos – há vários, mesmo na nossa escola. Considero, talvez mais natural, desejável e possível que as duas vertentes em causa se complementem, valorizandose mutuamente.

Porto, 22 de Setembro de 2009


A arquitectura é um corpo em contínua metamorfose. Plástico, anguloso, ansioso. Conforme as mãos que o tocam ou o sentido impresso nesse toque, descobre-se um novo ângulo, uma reentrância escondida onde se gera calmamente toda uma nova estrutura para carregar, iluminada, a nova ideia. Encontrandoa, por acaso, no gosto específico de um seu praticante, ou na perspectiva mal apercebida da habitual rua, ganha-selhe o jeito desse toque. No entanto, afastados ainda da sua compreensão, o toque concretiza-se em afagos que pouco fazem na forma total e mágica. Subitamente chegados, nessas carícias, à aprendizagem da arquitectura, é num estado de incompreensão e poder que olhamos as nossas próprias mãos. Se de início o corpo estranho parece apenas tornar-se longilíneo e estruturado, regrado e explícito, mal as mãos o cavam ignorantemente encontram um material incompreensível e frio. Algures entre a mão que segura a bola mágica e a que rompendo o movimento encontra o centro racional e estático, alguém segura o restante corpo em equilíbrio numa inexplicável dança de aprendiz e mestre. O princípio neste caso não é o verbo, mas o seu equivalente em arquitectura, o traço. E o traço indomado tende a seguir rente à imaginação. Alguém segura a mão entretanto e lhe explica, reagindo aos solavancos do caminho, que a arquitectura responde

Construções

Ao sol com ironia

por Maria João Fernandes

por João Gaspar

a necessidades reais, e cresce sobre essas mesmas necessidades em estruturas racionais e de exigências práticas muito específicas. Como se aprende algo assim? Como se realiza e se cria, num gigante quadro de infinitas dimensões, não a lírica harmonia do templo grego mas a casa real, o edifício completo e funcional (maldito!), minucioso e traiçoeiro, claro e rígido? Senhor menino, e o cliente o que vai pedir? Oscilando - pois que pode um primeiro ano contra pilhas de teoria e milhares de construções? - é nestas dúvidas, nas primeiras, que surge uma revelação extraordinária! O que se faz aqui não é arquitectura, é pedagogia, é caminho para. Pois então que olhar dirigir aos exercícios que resvalam incompreensíveis e novos das mãos dos mestres? Subitamente um de nós atira, como uma pedra a um charco, uma utopia, uma megalomania, uma sedução própria de quem idolatra sem compreender. Alguns aplausos. Segundo acto: num crescendo, declarase uma resolução exacta, escrava apenas da necessidade, da funcionalidade, dos sistemas construtivos e das possibilidades físicas, baseado nos cálculos e na observação de exemplos científica e historicamente comprovados. Um silêncio. Pois que ninguém pode neste primeiro tempo, neste arrancar primitivo, proclamar estas prosas da razão. Por um motivo muito simples: falta de

Salvo o carácter sensorial deste excerto, sentimental até, desprovido de qualquer base científica ou sequer mais profunda reflexão disciplinar, apenas um texto fiado sob a forma de aprender e ensinar arquitectura, por um novato, em jeito de queixa, porque lhe dói.

o objecto da sua proposição: Uma lá longe, longe realidade que não cabe nas horas da Via Panorâmica do tipo, do modelo, do método, da metodologia, da morfologia, do processo, da Entrega das horas da Via Panorâmica do tipo, do método…

O comentário de desconforto e de incompreensão que deixo, parte da minha experiência nesta escola e dirigem-se a ela. Não porque que sejam os únicos estados de espírito que ela me desperta, mas porque são os que aqui cabem, registo-os face às exigências que o facto arquitectónico1 representa em mim2. De concreto, além dos riscos é pouco simpático adiantar aqui quaisquer comentários, assim as incompetências localizadas, as competências irreconhecidas que me pesam4 ficam por agora perdoadas.

Com algum amargo encontro nesta Via uma fobia ao berço, à memória de um exaltado, daqui já meio pitoresco, SAAL Norte, algures nos cromossomas das nossas familiares torres à beira-rio. De um despropositado ‘’arquitecto – mão do povo’’ fizemos sobrar um mero artista frustrado indefinido, mais ou menos indiferente e muito marginal, longe, longe dessa cidade, outrora sua prancheta.

(6 - desse passado recente)

(1 - construção mental que em grande parte devo a esta escola) (2 - moço do quarto ano) (3 - pouco)

Com impaciência atesto a passividade de uma escola à mesma. À muito de bases, mas só e das mesmas bases, do mesmo resultado, da mesma maneira de fazer. Estou um pouco dominado pela minha memória recente 4, isto é, pela bandeira de fazer o mesmo5 um ‘’pouquinho’’ melhor. (4 - acabo de ser aluno do 3º ano) (5 - que o mercado)

Se estivesse nesses dias mal dispostos6 hiperbolizava com a sensação de uma falsa ‘grande maneira’ com que aqui se projecta, que perdeu

Dessa liberdade de 74, do ‘’sair à rua’’ tangente à renuncia da profissão, teremos que fazer chegar um nadinha de honestidade à nossa classe, para podermos tirar o arquitecto do seu altar7 e admitirmos a sua propensão social, a sua inevitabilidade social, que lhe exige, cientificamente, que se informe sobre, que se forme sobre e que aja sobre a realidade, em tempo real, na rua, no bairro, na cidade, no dormitório. E exige-se que as suas formas se formem daí, dessa mítica relação com a vida. Não-tão-novos, ainda estranhos, contextos que teimamos em olhar cá de cima, não aceitaram os nossos não-tão-contemporâneos artefactos


Sonho, experiência e concretização por Luís Piteira

Cidades Utópicas. Relatos dessas cidades. É nesse paraíso Alicista que cada um dos alunos das Faculdades de Arquitectura, quero acreditar, vive. A cada quantificação do trabalho, a cada avaliação, mais ou menos relativizada, a cada luta pela hegemonia dentro da turma, esse Sonho, que tenho como essencial, sofre a brutal opressão da competitividade. Quando faço um desenho nunca penso na utilidade de cada conjunto de sinais que vou marcando, fixo-me antes no objecto que com o grau próprio de nebulosidade vai oferecendo a mim próprio essa dicotomia entre prazer e dor que, num equilíbrio imoral, se esforça por ser comunicativa. Aquando da avaliação final de Projecto II, confessava à Professora Madalena Silva, e ao mestre impressionante que o Manecas (Manel ou Manuel Montenegro, assim se costuma dar à preferência) consegue ser, que não estava ali para concorrer no mesmo estruturalismo ateu que na FAUP se tem vindo a impôr, vou-me apercebendo, para colmatar essa suposta subtracção das Belas Artes e a adição dessa imposição empreendedorista bolonhesa. Expressei-o na palavra “sonho”, nessa simplicidade. Dá a impressão que já ninguém arrisca nada. E o plano de estudos segue esse comodismo insólito. Apercebo-me, a esta altura do texto, que aparente-

mente estou a tentar culpa-bilizar um sistema. Pois não estou! Estou antes a tentar entender por-que terá a noção de concretização do projecto (concretização “empresarial”) superado o valor do Sonho de cada um que luta não com uma responsabilidade capital mas com uma responsabilidade académica! Há dias via, mentalmente, a Miró com os lábios vermelhos sobre o Palco, solitária. Esse palco que se maximizava da sua escala de maqueta, para a dimensão do sonho real transmitia despreocupadamente essa capacidade surrealista, não quantificavél, não medível, não provável da Arquitectura enquanto pedagogia. Uma pedagogia de conjunto, não individualizada em nenhum de nós, nem no pretenso arquitecto, nem na pretensa sensualidade da actriz. A persistência em relação a esse sonho, a utopia que a Cidade Académica pode oferecer e que talvez seja na vida real mais difícil de concretizar, é a única maneira de impulsionar carreiras (penso que é isso que querem dizer com o palavrão escabroso do “empreendedorismo”), tentando escapar a essa experiência não temporal mas personalizada que agora se atribui aos pseudo-mestres, esses bastante diferentes do Manecas, do Carlos Ramos ou do Távora, que detêm o monopólio do mundo arquitectónico.

conhecimento. Mas onde está o livro, com as suas exactas soluções, com os seus equilíbrios em fórmulas perenes? Não existe, aqui, dizem-nos. Por força de ser da disciplina. Então qual é a solução? A plateia detém-se. Existe uma para cada um dos aprendizes, mas o seu trabalho, avaliado e árduo, sob o olhar do mestre idiossincrático, por que linhas se há-de coser? Uns dizem-lhe: constrói este projecto e verás. Mas a construção que se pretende não é a das soluções apresentadas mas sim a do arquitecto, e aqui tremem as celebradas convicções. Onde andam as certezas, neste jogo de construído e construção, ninguém aponta. O que se forma é uma mente e um espírito, razão e sentimento, utopia e cliente. Se o equilíbrio advém deste impasse onde o real e o imaginário se detêm numa guerra fria, se é talvez uma provocação consciente, um método, ninguém o pode garantir ao iniciado. Permanece numa bruma sem interpretação possível, a pergunta palpitante persegue cada esforço de aprendizagem. A espera sossegada imagina a chegada de novas escadas para espreitar o tal corpo dentro do qual agora permanece o principiante, incrédulo ou maravilhado.


Lápis de duas pontas por Carlos Trancoso

O tempo, no sentido em que passa, mais depressa ou mais devagar, transforma não raras vezes a força dos homens. Compreende-se então que, pelo menos a mim que o tempo menos me passou mas mais ainda me tenha afectado, a força já consiga não ser dos homens, mas das figuras dos homens. A “escola do porto” felizmente actualiza-se ao mesmo tempo que respeita o seu honroso passado, sendo que, por vezes, as difíceis adaptações levem a decisões que deturpam os valores a que estão subjacentes. Como aluno posso já com a firmeza mínima necessária comentar os dois primeiros anos do curso de arquitectura da FAUP, focando a componente que a mim me apraz pôr em causa: o desenho (manual) em Projecto. De facto, este é um dos principais valores herdados pela antiga ESBAP, sem que, no entanto, possamos deixar de afirmar que o mesmo valor pertença também a muitas outras escolas do seu tempo. A força sim, não foi a mesma, e continua marcada por duas grandes figuras: o Mestre Carlos Ramos e o Arquitecto Fernando Távora. A respeito disto mesmo, evoco um texto lido no colóquio sobre o Arquitecto Carlos Ramos, promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, em 12 de Fevereiro de 1986, citando apenas o parágrafo que me prendeu o olhar e a mente: “Carlos

Ramos amava abrir caminhos, mais do que indicar caminhos. Lembro-me bem de um comentário que fez a um dos assistentes por usar demasiado do lápis quando corrigia trabalhos de alunos. E não me escuso de referir, a propósito do modo de correcção referido e do seu gosto de abrir caminhos, de um facto que ele contava passado com o Ministro Duarte Pacheco que, quando analisava qualquer projecto pedia um lápis ao autor e fazia as suas correcções. Um dia isso aconteceu com o Mestre: ‘Arquitecto Carlos Ramos empreste-me a sua lapiseira’ ; ‘Sim, Senhor Ministro’. Tirou a lapiseira do bolso interior onde sempre a usava, retirou-lhe calmamente a mina e entregou-a a Duarte Pacheco: ‘Aqui tem, Senhor Ministro’.” Decerto que os tempos eram outros, tempos em que o lápis era azul, mas parece-me que a máxima dos caminhos seja para seguir. O que eu reparo, no entanto, é que, ao longo da minha experiência na FAUP, não raras vezes os meus projectos eram “rabiscados” directamente pelo docente, que, em popa de proceder à correcção, partia do princípio que a mesma devesse, também ela, ser feita com lápis. Felizmente, quando isso me acontecia, as minhas reacções confusas de pupilo verde não duravam muito, sendo que, de facto, esses rabiscos não me diziam nada, estando sim preocupado com

1 In Távora, Fernando. “Evocando Carlos Ramos”. rA (Revista da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto). Número 0

Porto: Edições FAUP, Outubro de 1987: Páginas 75-76

aquilo que o Professor me dizia e com o meu objectivo (livre de formalismos). Que não se interprete esta minha conclusão como uma recusa do desenho (longe disso!), mas sim com uma mais completa percepção do mesmo como ferramenta de busca, e menos de correcção. Faço-o de uma maneira bastante rígida, sem dúvida, mas apenas porque muito já foi dito sobre isso que deve ser lido com mais cuidado, ou com o cuidado suficiente para não cair em falácias de autoridade quando, de facto, se fala nas origens da “Escola do Porto”. Talvez o que eu proponha possa também ser visto como desactualizado, mas o facto é que nos próximos anos que me esperam, o lápis já não actua directamente no monitor do computador, por pena de não aderir a grafite ao vidro, sendo que, a bem ver, continuarei a usar o desenho por fora como esplêndida ferramenta de trabalho e procura.


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