georges stobbaerts
tenchi tessen
arte e movimento
georges stobbaerts
tenchi tessen arte e movimento
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TENCHI TESSEN, ARTE E MOVIMENTO © Georges Stobbaerts, 2000
Tradução: Ana Oliveira Miguel Raposo Organização e fixação de texto: Sebastiana Fadda
Edição com o apoio de:
Fátima Patriarca
Ten Chi International Associação Portuguesa de Tenchi Tessen
Fotografias: Claude Demoustier Gonçalo Martins
Contactos:
[pp. 10, 22, 26, 61, 71, 76, 95]
Honbu Dojo Ten Chi
Cristóvão
Rua Moinho do Gato - Várzea de Sintra - 2710-661 Sintra
[p. 56]
Tel: 219 233 827 - E-mail: budokanportugal@mail.telepac.pt
Ilustrações: Sílvia Suñe
Projecto Gráfico: Alexandra Paulino
1ª Edição — Janeiro de 2002 Lisboa — Portugal
Coordenação de Produção: Vera Bettencourt Triacção, Publicidade, Arquitectura e Promoções, Lda.
Depósito Legal ISBN 972-95475-3-X
Impressão: Guide, Artes Gráficas, Lda.
3
Aos meus Mestres Aos meus filhos Magali e Eric A todos os meus Aos meus alunos
4
Agradeço a Ana Oliveira, Miguel Raposo, Maria Manuel Albuquerque, Silvia Suñe, Sebastiana Fadda, Fátima Patriarca, Vera Bettencourt e Claude Demoustier, a ajuda e conforto que, incessantemente, me ofereceram. E a Maria Augusta de Vasconcellos o sorriso nos momentos difíceis. Todos compreenderam que o movimento contém a essência da Arte e que, no gesto de segurar o tessen (leque), seguimos o princípio wu wei (da não-afirmação). O leque move-se e imobiliza-se, em função da acção e da não acção. É colhendo a essência das dez mil coisas, como dizem os mestres orientais, é conhecendo a natureza e as suas transformações, é sabendo que o imutável está sempre em movimento, que a beleza do gesto se forma. As artes do movimento são místicas e subtis, baseiam-se na fusão espiritual e não no esforço artificial. Todos compreenderam também que a serenidade interior constitui o guia do Tenchi Tessen. Georges Stobbaerts
índice
5
7
Prefácio
11
Introdução
15
primeira parte ALGUMAS RECORDAÇÕES
57
terceira parte TENCHI TESSEN — PRÁTICA
59
i
A preparação psíco-física
63
ii
Os educativos
67
iii
Os temas e a reflexão simbólica
17
i
Um olhar sobre o passado
23
ii
A ponte e a Via
72
Glossário
27
iii
Para onde foram os samurais
77
Bibliografia
37
segunda parte
79
apêndices
CRIAÇÃO DO TENCHI TESSEN
81
i
O leque — resumo histórico
39
i
O que é o Tenchi Tessen
87
ii
O leque no Japão
45
ii
Dojo — local de prática
95
iii
Tenchi Tessen — Ilustrações
47
iii
Segurar o Tessen
6
prefácio
7
O grande mestre de Artes Marciais Georges Stobbaerts, que
leque, e representa o sopro de vida, que anima e cria harmonia. É ao
durante anos transmitiu fielmente a técnica e o espírito do Aikido
mesmo tempo o instrumento humano por excelência, que quando
de Mestre Ueshiba, é em si mesmo um cadinho em que se cruzam
se abre exibe a multiplicidade dos possíveis, e quando se fecha os
fortes influências orientais e ocidentais: Artes marciais do Kerala, na
reconduz à unidade.
Índia do Sul, sufis marroquinos e andaluzes, feérico flamengo espanhol,
Esta dança hierática é uma arte do movimento que se situa no
rigor e riqueza das danças hindus, despojamento espiritual das disci-
instante presente. Não aspira a ser um espectáculo para outros, mas
plinas japonesas. Neste Athanor, foi sendo elaborada, pouco a pouco,
uma prática para si. É também uma coreografia colectiva em que se
uma quinta-essência do Zen, do Yoga e do espírito do Budo, uma
manifestam pólos opostos como a criatividade e a receptividade, a
arte do movimento altamente simbólica onde o leque substituiu o
firmeza e a doçura, a tenra fragilidade do bambu e o relâmpago ful-
sabre: o Tenchi Tessen.
gurante do gesto perfeito. É com admiração e regozijo que assistimos
Em japonês, Ten Chi significa o par primordial Céu-Terra, entre
ao nascimento desta nova arte tradicional que sugere tantas figuras
os quais se ergue o homem, separando-os e unindo-os, simultanea-
emblemáticas. Ela unifica, de forma feliz e com igual lealdade, o
mente, pela sua verticalidade e a sua posição central. Tessen significa
Corpo e a Consciência. Tara Michael Investigadora do Centre National de Recherche Scientifique, França
8
9
Tenchi Tessen
E uma manhã levanta-se o vento O grande vento, o vento do largo Que quebra todas as nuvens, Que limpa a atmosfera E que torna tudo mais luminoso. Então encontra-se a coragem, a esperança.
Várzea de Sintra, 1997
10
introdução
11
Criei o Tenchi Tessen baseando-me nas Artes Marciais. Fruto de uma longa gestação, foi inspirado pela prática das Artes do Bu-
definição, formada por três étimos japoneses, aponta para o equilíbrio, a compreensão, a disponibilidade e a abertura:
do japonês no seu sentido clássico, em particular pelo Iai-do e pelo
Ten: Céu
Aikido, mas também pelo Yoga e pelo Zen, que foram o suporte
Antes de falar sobre o aspecto técnico do Tenchi Tessen, é
primordial. O Tenchi Tessen é uma arte do movimento, em contínua
Chi: Terra
Tessen: Leque
necessário conhecer um dos princípios fundamentais da cultura oriental.
formação. Como qualquer outra arte do mesmo género, que apela
Para o Oriente, o universo é bipolar. É constituído por duas
à liberdade e mantém uma procura permanente, não pode fixar-se
entidades que se opõem e interpenetram, que estão em constante
num quadro rígido. O Tenchi Tessen pode ser também uma propos-
equilíbrio dinâmico; uma não existe sem a outra, permanecendo
ta de arte da vida dentro do verdadeiro espírito de A-himsa, de não
equivalentes. Estes dois pólos são representados pelo Yin e pelo Yang,
violência. A não violência implica o conceito de não discriminação.
cuja grafia pode ser Yin /Yang. O Yang, a polaridade activa, simboliza
O grupo de praticantes desta arte junta pessoas de vários horizontes,
o princípio masculino, ou seja o Céu, o Sol, o Homem, a Mente; o
desde conceituados professores do Budo a homens e mulheres de
Yin, a polaridade receptiva, simboliza a polaridade feminina, ou seja
todas as origens e profissões.
a Terra, a Lua, a Mulher, o Corpo.
Nos seus pressupostos teóricos, o Tenchi Tessen resulta do
O Tenchi Tessen, na sua prática, procura a união e harmonia
estudo de vários aspectos da filosofia e da cultura orientais e oci-
destes dois elementos por meio do não conflito e do diálogo. Não
dentais, pois ele aspira a ser como que uma ponte entre o Oriente e
há combate, existe pergunta/resposta, daí o aspecto comunicativo
o Ocidente. Fundada em valores espirituais de tradição universal,
desta arte do movimento.
nasceu uma nova abordagem corporal que permite aumentar a
Através das técnicas, o praticante procura a harmonia e a união
flexibilidade do corpo, desenvolvendo e fazendo circular as energias
do corpo e do espírito, tentando tornar-se por meio do Leque, que
em completa harmonia.
representa a simbólica do sopro da vida, a ligação entre a Terra e o
O aspecto que nos leva a considerar esta disciplina como uma
Céu. O praticante está à escuta do seu corpo e, liberto de todas as
arte de viver é, em primeiro lugar, o conhecimento de si-próprio e a
tensões, apaziguando o espírito, dá livre curso ao movimento que
comunicação com os outros e com o mundo que nos rodeia. A própria
harmoniza as energias, sendo solicitado a comunicar com o outro
introdução
segundo o princípio bipolar, e a estar à escuta do corpo do outro.
e é essencial para a descoberta e o apaziguamento das flutuações
Durante a prática e segundo o princípio da pergunta/respos-
mentais. Ela vai permitir receber o movimento sem apreensão, pois
ta, um dos parceiros é Yang e o outro é Yin, estado que se modifica
existindo comunicação pode-se, em seguida, oferecer a resposta com
no instante seguinte através da alternância no movimento. Vai criar-
autenticidade e sinceridade.
-se assim um equilíbrio dinâmico entre os dois parceiros, à imagem
O objectivo dos movimentos é criar, a dois, uma técnica que,
do equilíbrio cósmico. A respiração é um elo importante entre eles,
por meio da prática constante, se torne cada vez mais harmoniosa
12
e bela, à semelhança da patine que o tempo deposita num objecto antigo, conferindo-lhe um estado de alma. É aquilo a que os japoneses chamam de Ki mochi. O Tenchi Tessen convida o praticante a habitar um espaço preciso e a descobrir o seu esquema corporal, ensinando-o a sentir o mundo que o rodeia, sem perder a consciência da presença dos outros praticantes. Então, o praticante torna-se UM com tudo o que o rodeia, num estado de união e fusão. As formas desta arte, apesar da dificuldade de execução, são propositadamente despojadas, a fim de se alcançar a quintessência do gesto. As várias maneiras de se deslocar, de andar, fazem parte da técnica do Tenchi Tessen. Como em todos os movimentos, as ancas, koshi, por estarem localizadas na região do Seika Tanden, lugar que é o centro de gravidade, são continuamente solicitadas e é a partir deste ponto que tudo se articula. Associados ao relaxamento muscular, os movimentos tornam-se, ao mesmo tempo, fluídos e dinâmicos, permitindo trabalhar segundo vários ritmos, jo, ha, ku, ou seja, respectivamente, lento, médio e rápido. Os educativos são exercícios preliminares que vão educar o corpo, de forma a que as ancas se tornem mais móveis e fortes, ajudando o praticante a descobrir e a reforçar o seu centro de graviA dança
dade, de modo a assegurar a sua postura, permitindo-lhe deslocar-
dos derviches
-se livremente no espaço combinando velocidade e estabilidade,
rodopiadores
à semelhança dos derviches rodopiadores.
introdução
Embora o Tenchi Tessen seja mais uma arte de viver do que
Quando se fala da beleza do movimento, fala-se daquela beleza
uma Arte Marcial propriamente dita, guarda certas características
que dá acesso a um mundo novo, beleza infinita que se exprime em
desta última. O praticante não se focaliza no combate, mas mantém
todo o Universo. Os mestres do movimento dizem que a verdadeira
algumas atitudes inerentes a este: o espírito de vigilância, Zanshin,
essência da beleza é a alegria de em tudo a descobrir. A beleza do
e, principalmente, o empenho que esta arte exige, de modo a alcançar
Tenchi Tessen é alegria, e é na prática que acedemos a essa alegria
a intensidade e o nível de prática requeridos. Um dos primeiros
inefável da beleza cósmica.
13
objectivos é atingido quando se aprende a executar o movimento sem pensar.
A procura da beleza nos movimentos do Tenchi Tessen é um pouco a que Zeami Motokiyo definiu como a procura da flor1. Ela
Da mesma maneira que o artista, confiante na sua intuição,
passa pelo corpo, mas também ultrapassa o próprio corpo. A metáfo-
sempre procura a beleza, a harmonia e a fluidez dos seus movimen-
ra deste poeta do movimento toca o absoluto quando afirma: esta
tos, o praticante de Tenchi Tessen tem a preocupação constante de
flor é por vezes “insólita” ou “fascinante”, logo, se estiole ou murche2.
progredir. É por isso que ele necessita, primeiro, de dominar os prin-
Dito por outras palavras, a arte do movimento é a expressão
cípios e as técnicas de base, antes de se entregar à inspiração e à
simbólica da vida pelo movimento rítmico do corpo e repousa sobre
improvisação. É aqui que a Arte Marcial tem um grande interesse,
o postulado de que a vida se estiola progressivamente, com o correr
pois exige rigor na sua prática. À semelhança do calígrafo ou do
do tempo, mas, mesmo sabendo que as formas desaparecem, a vida
pintor que exercita a mão para encontrar a unidade com o seu pin-
continua. Era a isto que Zeami se referia quando dizia: Antes de mais,
cel, à semelhança do actor que trabalha a sua voz e o seu gesto, o
que fique bem claro que o hara, a flor do Nô, floresce no decorrer das
praticante do Tenchi Tessen deve educar o seu corpo e o seu sopro.
atitudes e movimentos mutáveis3. Zeami fala do corpo como de uma
Uma vez o corpo educado, é importante mantê-lo relaxado, de modo
flor efémera, um obstáculo a transpor antes que possa desabrochar
a permitir a livre circulação das energias, forma de encontrar a
a imortal flor da beleza do movimento. Esta seria a perpétua renovação
inspiração que consentirá a evolução do movimento. Tudo isto é
que constitui a própria vida da beleza do movimento, a sua flor
conseguido por uma repetição incansável, tal como o músico repete
imperecível.
a mesma partitura.
O movimento belo é uma flor que mal desabrocha, murcha,
O Tenchi Tessen desenvolve a concentração do gesto, a noção
renasce sem cessar e vive eternamente. O mesmo espírito anima o
de espaço, e leva a uma espontaneidade e liberdade de expressão
Tenchi Tessen: o gesto cria-se e destrói-se incessantemente, o
que desenvolvem a flexibilidade e abertura de espírito no praticante.
movimento encerra a procura, a procura é o caminho.
O resultado é semelhante ao proporcionado pela filosofia do Ten-
Outro poeta, não do movimento, mas da arte da vida, conse-
Chi-Jin, baseada na união Céu-Terra-Homem, ou então, pela noção
guiu formular uma metáfora significativa acerca da procura e da Via.
de Katsujinnoken, ou seja, dar a vida com o sabre, embora aqui o
Trata-se de Khalil Gibran, que descreve o processo e o percurso da
sabre seja substituído pelo leque.
seguinte maneira:
introdução
A minha alma e eu fomos banhar-nos no mar largo. Chegados à praia, pusemo-nos à procura de um lugar escondido e isolado. Mas
realista que volta as costas a tudo o que não pode abarcar e que se preocupa com detalhes. Continuámos então. No meio das rochas, num sítio cheio de
no nosso caminho vimos um homem sentado numa rocha cinzenta, segurando um saco e deitando pitadas de sal no mar.
ervas daninhas, vimos um homem com a cabeça enterrada na areia. Então eu disse à minha alma: — Podemos tomar banho aqui;
— É o pessimista — disse a minha alma — deixemos este lugar; 14
não nos podemos banhar aqui.
ele não nos pode ver.
Continuámos a andar até que encontrámos um braço de mar.
— Não — respondeu a minha alma — é o pior de todos. É um
Aí vimos, de pé numa rocha branca, um homem que segurava uma
puritano. Uma grande tristeza invadiu o rosto da minha alma e
caixa facetada da qual tirava açúcar que deitava ao mar.
impregnou a sua voz. — Vamo-nos embora — disse ela — pois não há lugar escondido
— Este é o optimista — disse a minha alma — e ele também não deve ver os nossos corpos nus. Continuámos o nosso caminho; numa praia vimos um homem a apanhar os peixes mortos e a devolvê-los, com ternura, ao mar.
e isolado onde nos possamos banhar. Não deixarei o vento levantar os meus cabelos dourados, nem o ar pôr a nu o meu peito branco, nem a luz desvendar a minha nudez sagrada. E, posto isto, deixámos este mar e partimos à procura de um
— Não podemos tomar banho ao pé dele — disse a minha alma — é o filantropo cheio de humanidade.
outro ainda maior.4
E continuámos o nosso caminho. Chegámos a um lugar onde um homem desenhava a sua sombra na areia. As ondas vinham e apagavam-na. Mas ele redesenhava-a sempre. — É o místico — disse a minha alma — deixemo-lo. E continuámos o nosso caminho até uma baía tranquila; vimos um homem a apanhar a espuma com uma concha e a deitá-la num vaso de alabastro. — É o idealista — disse a minha alma — ele não merece ver a nossa nudez. E continuámos a andar. De repente ouvimos uma voz a gritar: — É o mar, o mar profundo; o mar imenso e poderoso. 1
Zeami Motokiyo, cit in Amien Godel, Le Maître No, Paris, ed. Albin Michel, Collection Question de, 1989, cap. Fushikaden: La transmission de la fleur, p. 84.
costas para o mar e com uma concha encostada ao ouvido para
2
Ibid, cap. Kakyo: Le miroir de la fleur, pp. 90/91.
escutar o murmúrio do mar.
3
Ibid, cap. Shikado: La voie qui mène à la fleur, p. 93.
4
Khalil Gibran, Le Fou, Paris, ed. Asfar, Coll Littérature, 1987, pp. 48-49
Chegados ao sítio de onde vinha a voz, vimos um homem, de
E a minha alma disse: — Continuemos o nosso caminho; é o
primeira parte
algumas recordaçþes
16
I
um olhar sobre o passado O sufi andaluz começava sempre o dia dirigindo-se ao céu: “Faz-me entrar, Senhor, nas profundezas do oceano da tua Unidade infinita” Poeta anónimo 17
Como um grande fluxo de mar vindo do oceano infinito para as margens do nosso mundo finito, há lugares que gozam de uma poderosa capacidade de invocação, de um poder que faz sonhar com paisagens impossíveis e estranhas sociedades. Eles falam à nossa imaginação e convidam-nos à viagem. De pai belga e mãe espanhola, nasci na África do Norte, terra ao mesmo tempo África e Oriente, que foi para mim um lugar mágico, entre o esplendor do sol e os jardins frescos onde cantam repuxos. A minha infância foi nos pátios onde primavam os arabescos, nos mercados barulhentos sob as estrelas, também na quente penumbra dos souks acompanhada por silhuetas cobertas de algodões multicolores. Eu diria, hoje, que Marrocos é a grande capital do Sul, por estar situado no cruzamento de três mundos: o deserto, a montanha e as planícies atlânticas. Esta localização privilegiada está na origem da minha procura. Lembro-me ainda, quando com a família fugíamos do calor do verão para uma morada secundária, de como era agradável quando o sol estava no zénite e a sua luz se derramava na cidade, numa abundância excessiva, sobre as paredes brancas de Casablanca. Saíamos, percorrendo a estrada com alegria. A maior parte dos
Ilustração árabe
habitantes escapava-se para os frescos vales fora da cidade, outros
mostrando a dança extática
iam para o Alto Atlas, no Djebel Toubkal, onde os cumes chegam a
e cósmica
mais de 4000 metros de altitude, passando pela linda cidade de
dos derviches.
um olhar sobre o passado
Marrakech, paraíso de verdura louvado já na metade do século XII
curiosamente, num rio, na propriedade onde passávamos a maior
pelos viajantes ocidentais:
parte dos fins-de-semana, situada num laranjal à beira do Oum-El-
Ó cidade real de Marrakech
Rbia, que nasce nas altas montanhas do Atlas marroquino. Era lá que
Tão conhecida
o meu barco me esperava. Precipitava-me para ele logo que podia,
Do sítio onde os seus raios se extinguem
para o fazer deslizar na água, subindo a corrente o mais possível para
O teu palácio magnífico
me deixar levar, desta vez no sentido inverso, à procura de águas
Ultrapassa em esplendor e em sumptuosidade
mais rápidas. De tempos a tempos, acostava a pequenas ilhas para
Todas as cortes reais!
mergulhar, com o arrojo da juventude, nos turbilhões perigosos em
O teu pomar de Messena tão ricamente plantado
que me deixava ir até ao fundo para, em seguida, vir à superfície.
De árvores agradáveis a um e outro,
Fazia-o, é claro, às escondidas de meus pais.
18
De laranjeiras e limoeiros
Gloriosos dias de Verão em que o sol africano derramava a luz
Sem contar os outros frutos
e o calor de um céu sem nuvens. Tudo isto me era muito próximo e
De azeitonas e tâmaras
sobretudo muito caro. Era o meu jardim secreto. Rio espantoso de
É um jardim cheio de delícias
realidade, poderei esquecê-lo algum dia? As forças da natureza eram
Nessas terras, história e literatura andam de braço dado. A
sublimes e sem eu saber escutava uma linguagem secreta, como num
norte de Marrakech estende-se a região de Aglumat, para onde foi
sonho. Não escrevi nada sobre os tempos da minha juventude, mas
exilado o príncipe e poeta El M’Hamid Ren Abdar, da cidade de Sevilha.
eles estão no meu coração, como que fechados em todo o meu ser.
Nós dirigíamo-nos para a cidade de Azemur, na direcção da cidade
Os sufis marroquinos dizem: Quando o coração chora o que
de Mogador, hoje chamada Essaouira. Construída no século XIII pelos
perdeu, o espírito ri pelo que achou. Será que já compreendi que a
grandes arquitectos vindos da Europa, Essaouira surge entre dunas
vida que há em mim não me pertence? Ela faz parte do todo, eu fui
e ondas vivas, espantosa cidade de sonho, hesitante entre o Oriente
criado para ela, serei eu consciente disto todos os dias?
e o Ocidente; os navegadores portugueses que partiram à conquista
Foi o meu período líquido, que continuou mais tarde no mar
de novos mundos marcaram a costa atlântica com fortalezas e
alto. Arthur Rimbaud, no seu poema L’Éternité, soube descrever o
cisternas, e é por uma dessas fortalezas que é conhecida e visitada
anseio de plenitude ligado à extensão marinha:
nos nossos dias. Foi no meio destas visões de história viva que passei a minha
Elle est retrouvée Quoi, l’éternité
juventude. Elas não são apenas convites ao devaneio, mas sim temas
C’est la mer allée
de meditação muito ricos para o conhecimento das civilizações que
Avec le soleil 1
terminam um ciclo e permitem uma melhor compreensão do presente.
De marinheiro de água doce tornei-me marinheiro com um
Os meus primeiros passos no estudo do movimento deram-se,
veleiro maior e descobri três coisas: o homem, a liberdade e a luz.
um olhar sobre o passado
Os meus primeiros contactos com o mar são já longínquos,
Eu procurava a natureza, o ar livre, o largo, a floresta, o céu azul.
mas ainda hoje não posso viver longe dele. O espantoso sortilégio
Ansiava pelos grandes espaços ainda não manchados pelo orgulho
da vela é o impulsionar-se assim, sem finalidade, sem esforço, sem
e pela avidez dos homens.
nenhuma intervenção mecânica, unicamente com um pedaço de
O ambiente natural em que estava inserido foi, creio, favorável
pano. Mais tarde, quando ensinava Aikido, solicitava os meus alunos
ao desenvolvimento do meu eu. Alguns versos de Kipling que aprendi
para corrigirem as suas posições baseando-me na lição que tinha
nesse período vinham muitas vezes à minha memória quando fundei,
aprendido no mar: “Não esqueçam que para fazer avançar um veleiro,
em diferentes países, Dojos que tive que abandonar em seguida, como
é preciso colocar a vela correctamente no sentido do vento!”.
tive de abandonar alunos que ainda guardo no meu coração. Ainda
19
A vela é uma excelente escola de previsão, prudência e domínio.
não tinha lido a Vida de Milarepa2, cuja extraordinária experiência
Conheci um grande marinheiro, Bernard de Moitessier, que foi o
chega às mesmas conclusões, e que me impressionou anos mais tarde,
primeiro navegador solitário a fazer a volta ao mundo sem escala,
mas nunca esqueci estes versos do poeta inglês:
passando pelo Cabo Horn na rota mais perigosa, uma estreia na época.
Se podes ver destruir a obra da tua vida
Ele foi meu aluno e ficou dois anos amarrado no porto de Casablanca,
e, sem uma palavra,
vivendo no barco que ele mesmo tinha desenhado. Sempre muito
começares a reconstruir,
imaginativo, tinha uma bicicleta que montava e desmontava de cada
então serás um homem, meu filho.
vez que queria ir ter connosco ao Dojo. Muitas vezes trocámos
Depois veio a descoberta do mergulho submarino. O contacto
opiniões sobre os movimentos do mar e os movimentos do Aikido.
com as profundezas foi mais sério do que as minhas primeiras
Na aparência, dir-se-ia que não há nenhuma relação entre os dois,
experiências fluviais. Lembro-me que gostava de perguntar às criaturas
mas é uma verdade aparente, pois aprendi muito com Moitessier.
marinhas, talvez espantadas por encontrarem um bípede no seu meio,
Sempre disponível para a grande aventura, mas para uma aventura
quando nos encontrávamos frente a frente, como poderiam elas
pensada, controlada, ele costumava repetir as palavras do grande
imaginar a intensidade do sol? Saberiam que existia uma superfície
marinheiro Nelson, safety first, ou seja, primeiro a segurança.
acima delas? Por mim, ia meditando nas palavras de Djalal-Od-Dim-
Eram os anos 60, e nessa época o meu amor pela vela e pelas
Rumi3:
artes japonesas era enorme, mas os valores correntes estavam bem
Como chegar à pérola,
longe das minhas aspirações. A noção de que para ser alguém era
olhando simplesmente o mar?
preciso ter êxito estava radicada nos nossos educadores e na sociedade
O encontro apaixonante com os padres do deserto, sobretudo
em geral. Ganhar dinheiro, alcançar altos cargos. Parecer era mais
dominicanos e muçulmanos, permitiu-me estabelecer relações entre
importante do que ser. Mas era minha convicção que o hábito não
vários pensamentos, encontrar elos e reconhecer divergências,
faz o monge, nem pode ser o nosso cartão de visita.
imaginar uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. Aprendi a relativizar
Era também a época em que eu queria e devia mudar o mundo.
a visão do mundo. Se houvesse apenas um mundo, haveria só pessoas
um olhar sobre o passado
sem rosto. Se todos os homens se parecessem, os seus rostos teriam
lismo. A sua poesia, ou considerada como tal pelo Ocidente, é, aos
todos a mesma máscara, e isso seria terrível. As diferenças entre os
olhos do Oriente, uma forma de expressão simbólica, uma das muitas
povos são indispensáveis para a riqueza de toda a humanidade. Os
maneiras de traduzir o pensamento e a concepção das coisas.
homens, infinitamente variados e com pontos de vista também
O Oriente exprime-se muitas vezes pela imagem. Contudo, a
diversificados, têm a necessidade de se completarem através das
falta aparente de racionalismo não significa que se abandone ao irra-
diferenças do outro.
cional. Todo o pensamento oriental assenta na veracidade dos fenó-
20
As ciências que hoje se interessam pelo estudo do movimento,
menos que se desenrolam no universo. Os fenómenos podem ser in-
e que vêem o corpo como uma unidade e o movimento como uma
terpretados de maneiras diferentes, mas eles não permanecem imutá-
expressão são para mim já qualquer coisa de maravilhoso. É um
veis e guardam ao mesmo tempo um valor de eternidade. Muda o
grande avanço na compreensão humana. Contudo, os investigado-
observador e a perspectiva, não o objecto observado e a sua natureza.
res deveriam ir mais longe e estudar a tradição oriental, que tem há
A compreensão do além fronteiras é uma necessidade essen-
milénios uma visão do homem na sua globalidade.
cial, que não deve ser satisfeita de um modo superficial, pois ela é
Cultivar a diferença não é a vocação universal do homem? A
um complemento que nos pode ajudar numa prática objectiva e
diferença constitui o património e a fecundidade da verdadeira natu-
espiritual, onde cada um pode trazer ao outro o contributo da sua
reza humana, mas é basicamente um gesto de amor e de respeito. É
unicidade. Devemos esperar dos outros o que não podemos esperar
o que é diferente do meu ser — o índio da Amazónia, o negro de uma
de nós próprios. Certos cientistas do movimento deveriam meditar
tribo longínqua ou ainda o chinês dos confins da China — que me
mais vezes e com maior atenção sobre o assunto. A sinceridade dos
atrai, e não um outro eu, parecido comigo sob todos os pontos de
diálogos que encontrei em Marrocos entre os sufis muçulmanos e
vista. O despertar ou o exacerbar da xenofobia é sempre gerado pelo
estes investigadores espirituais ocidentais era invulgar, aí reinava um
desrespeito da diferença.
espírito universal e um respeito mútuo no sentido mais lato do termo.
Frequentemente os meios científicos mostram-se cépticos
O sufismo depende de uma Revelação e uma das suas crenças
perante certos conceitos orientais, subestimando o facto de nem
baseia-se no princípio de que se o tempo e o lugar se prestam, não
sempre serem empíricos, mas sim fundamentados em experiências
é proibido colher flores num jardim que não seja o seu. A tolerância
testadas ao longo de milénios. Houve épocas em que as teorias vindas
dos sufis muçulmanos é pouco conhecida nos meios ocidentais, pouco
do Oriente foram criticadas, outras em que eram vistas como qualquer
ou mal informados a seu respeito. Mas poucos seres poderiam ter
coisa de exótico, outras ainda em que a sua recuperação obedeceu
uma atitude mais tolerante do que Mahomé, o profeta do Islão,
à volubilidade da moda. Trata-se, porém, de conceitos que estão
quando convida a procurar o saber até na China.
muito próximos da natureza, possuindo uma estrutura própria que
A necessidade de ir para além das divergências de cada origi-
se apoia solidamente na observação. O seu lirismo não leva a uma
nalidade é inseparável da procura da Unidade, do mesmo modo que
falta de rigor interno que rege o seu raciocínio, ele não exclui o rea-
a Universalidade aumenta, se estiver próxima da Unidade.
um olhar sobre o passado
Em Marrocos aprendi a empregar o meu corpo na sua unidade. A natureza e a espiritualidade que aí encontrei fizeram-me com-
que me tinham ensinado no ocidente foi nos mosteiros Zen, na posição de sentado...
preender que não se deveria usar o corpo como uma máquina, a
No combate, o estado de vigília não é nem concentrado nem
mente de um lado e o corpo de outro, separados como se fossem
disperso. É preciso adquirir uma neutralidade interior de onde pos-
duas partes independentes e pertencessem a dois entes distintos.
sam brotar a disponibilidade e a rapidez da reacção, que permitem
Essa descoberta foi determinante para a minha formação nas ar-
lançar o nosso movimento com o corpo e com o espírito. Os nossos
tes do Budo.
mestres ensinaram-nos que é preciso a atitude de quem escuta música,
21
Nos anos 60, o Judo, que na Europa estava ainda no início da
sem que o eu intervenha. Só então o organismo está apto a captar.
sua divulgação, não era considerado um desporto nem tinha finali-
Aprendi também que não nos devemos deixar atrair pelos resul-
dades de competição, mas ensinava uma filosofia e praticávamo-lo
tados brilhantes da técnica, pois ela tem o seu reverso. A execução
nesse estado de espírito, que nada tinha a ver com o que existe hoje
perfeita de um movimento pode esconder uma presunção egocên-
em dia. O Judo tornou-se uma luta. O medo de perder, sabe-se bem,
trica, e a proeza técnica pode ser uma manifestação de orgulho: pode
gera a violência. Tendo-o compreendido, apesar de ser na época um
julgar-se ter já compreendido tudo, quando de facto se está apenas
dos professores mais jovens da Bélgica, procurei no Judo o espírito
no princípio. Esta atitude interior incorrecta esvazia a habilidade
sem nunca o encontrar. Tinha já ensinado na Alemanha, em Aix-la-
adquirida da sua substância, tornando-se a arte do movimento um
-Chapelle, em Marrocos, passando pelos Dojos japoneses, designa-
procedimento, uma simulação que os verdadeiros mestres do movi-
damente o Kodokan e a Universidade de Tenri, considerada como a
mento descobrem depressa.
Meca do Judo. A abordagem, que se desviava dos aspectos filosóficos,
Hoje há dois caminhos nas Artes Marciais. O primeiro dirige-
era decepcionante. Então voltei-me para o Aikido, cuja beleza já me
-se para o desporto, passando pelos Jogos Olímpicos: Pesos e Halteres,
tinha atraído, e para o Kendo e o Iai-do, sob a direcção do mestre
Luta, Boxe, Judo, Karate, e disciplinas similares (quem sabe se um dia
Nakakura, o maior mestre japonês da época, por me parecer serem
também o Aikido será contemplado), mas este caminho despojou o
as artes que melhor protegiam a essência do Budo. Participei em
sentido primordial do movimento. O outro caminho é o do movimento
muitos campeonatos da Europa e do Mundo (entre eles no 1º Cam-
indiviso, onde o principal adversário é o próprio praticante.
peonato do Mundo de Kendo que houve em Tokyo em 1970) e, como membro fundador da Federação Internacional de Kendo, tive o privilégio de ensinar no Dojo Aikikai de Osaka. As belas teorias cuja aplicação procurava no país do sol nas-
1
O Dr. Rogério Martins traduziu assim este fragmento: ”Está recuperada/ O quê? — A eternidade/ É a luz do Sol/ com o mar misturada.”
2
Milarepa ou Jetsun-Kahbum, Vie de Jetsun Milarepa, Paris, Editado pelo Dr. EvansWentz do Jesus College Oxford, 1975.
3
Djalal-Od Dim, Rumi (1207-1273) é considerado o maior poeta místico do Irão. A sua imensa obra é quase tão lida e meditada como o próprio Alcorão. Este grande pensador era também um grande visionário. Fundou a ordem dos Derviches Rodopiadores. O seu filho, Sultan Valad, sucede-lhe e é com ele que esta ordem se institucionaliza.
cente — Amor, Harmonia, vitória da Paz — foram rapidamente esquecidas para dar lugar às tensões engendradas pela ideia de vencer a todo o preço. O único lugar no Japão onde encontrei a realização do
22
II
a ponte e a via
Em Marrocos verão o natural que está sempre mascarado nas nossas terras e sentirão além disso a preciosa e rara influência do Sol, que dá a tudo uma vida penetrante. Delacroix
23
Quando queremos relembrar certas épocas importantes da
a atitude construtivamente crítica dos místicos, que as religiões esta-
nossa vida os pensamentos aceleram-se e depois acalmam-se, pouco
belecidas evitam, pois eles perturbam o que está institucionalizado.
a pouco, e param, como se parássemos o nosso automóvel à beira
Marrocos é para mim, na espiral dos meus sessenta anos, a
de um caminho. Os pensamentos confundem-se. Há-os solitários,
lembrança de numerosos outros rostos que não posso esquecer.
sonhadores, efémeros nas tensões da batalha que por vezes desfi-
É a lembrança daqueles de quem gosto e que são mais do que eles
gura a vida.
imaginam… Hassan, o seu irmão Alaoui M’Barek, a quem eu chama-
Porquê falar mais uma vez de Marrocos? Porquê esta para-
va “o gato”, o meu amigo de infância Jaffar Sebti, Kamal, Ben Ali,
gem? Talvez porque a paragem é uma maneira de nos observarmos
Claude Durix e tantos outros… muitos dos quais me ajudaram e
hoje, de nos vermos de fora e de, como nos poços da nossas recor-
ensinaram na sua procura sincera.
dações, a que atiramos uma pedrinha, distinguir os dias de vida e por vezes os de vazio.
O Dojo de Casablanca teve grande importância e não posso falar do Tenchi Tessen sem o referir. Neste Dojo, cristãos, muçulma-
Fui educado num mundo ocidental cristão, que me levou ao
nos, judeus e sufistas viviam em completa harmonia. Este lugar é
conhecimento de prestigiados padres dominicanos, como o padre
ainda hoje uma recordação maravilhosa para muitos praticantes.
Avril, que foi mais tarde um grande pregador em Notre Dame de
Aprendemos juntos que o homem nasceu para descobrir a sua
Paris; depois o padre Ecremente; o padre Taillez, que se tornou bispo
verdadeira natureza e foi na prática do movimento que alguns
em Marrocos; e o padre Beguin, que fez Yoga comigo e a quem eu
tomaram consciência das bases fundamentais do Ser. Todos sabía-
chamava “o místico do deserto”, por dominar não só o árabe como
mos que o grande dever da nossa escola era respeitar a natureza dos
diferentes dialectos marroquinos, e ter sabido penetrar profundamente
outros. Não existia uma regra moral, o que por vezes não acontece
no espírito dos sábios muçulmanos.
em certas escolas. Todos sabíamos que as regras das convenções
Estes homens deram-me uma visão religiosa ampla, oposta
sociais, necessárias em qualquer grupo, só têm um valor relativo no
às visões estreitas que tantas vezes serviram à conquista e ao domí-
plano da realização humana ou espiritual. Ninguém devia impor ao
nio dos povos. A religião dita “oficial” não tem a exclusividade dos
outro comportamentos que obstassem ao seu desenvolvimento.
sentimentos interiores, seja ela cristã, muçulmana, budista ou hindu.
No mundo árabe o saber é considerado como um tesouro que
Falta-nos, por vezes, um certo recuo face à nossa própria cultura, ou
se recebe e que se transmite. Etimologicamente, transmitir deriva
a ponte e a via
do latim tradere, ou seja trazer e, por extensão, trazer do passado,
partilhou connosco os ensinamentos da filosofia Samkhya; de um
conceito que logo implica a transmissão do passado, ou seja, da
pintor japonês que aos setenta anos aprendeu a pintar cavalos e
tradição. Contudo, tradição não significa rigidez, e é uma palavra
queria terminar a sua vida a viajar pelo mundo e a ensinar a sua
que se aplica tanto a uma maneira de pensar como a uma maneira
pintura às crianças; do rabino que veio um dia cantar à escola e fez
de agir.
vibrar as vidraças.
24
A tradição, apesar de ser uma herança do passado, contra-
Outras visitas houve, que guardo ainda na memória. Primeiro,
riamente à opinião de alguns, também implica evolução. Haverá
os célebres Kendokas e os campeões de Judo de apetite feroz, a se-
sempre os partidários da evolução e os conservadores, mas cada
guir vieram os especialistas de Aikido: o experiente Kobayashi; o
indivíduo deve ter a liberdade de desenvolver os conceitos adop-
mais jovem Masamichi Noro, com os seus belos movimentos, que
tados, o que por vezes se torna uma carga difícil de suportar. No
mais tarde fundou o Kinomichi, cansado como eu da orientação das
mundo oriental, mais do que no mundo ocidental, é com grande
Artes do Budo. Houve também momentos de recolhimento e de
respeito que se escuta uma pessoa digna de ser escutada.
convívio, partilhados nas Sesshin de Zen, e outros, nas cerimónias
Há lugares onde o Sopro do Espírito marca a nossa vida. O Dojo
solenes como as Kagami Biraki.
de Casablanca foi para mim um desses lugares. O trabalho aí desen-
Como descrever este passado, estas vivências, estas amiza-
volvido foi apaixonante. Eu esperava os alunos à hora do Muezzin,
des numa escola onde ensina o presente? E onde, como dizia Krishna-
quando o seu canto, da torre da mesquita, acordava a cidade para a
murti: o vento do deserto varre o rasto do viajante; só se imprime o
oração. É impossível esquecer a prática das artes marciais ao nascer
passo presente, o passado e o futuro da areia são alisados pelo vento3.
do Sol, durante anos e anos, terminada sempre pela meditação,
Afinal podemos lembrar apenas o que nos é exterior, como num
com todos unidos pelo mesmo ideal. Seguiam-se diariamente o
mapa de lembranças onde só tivéssemos percorrido alguns cami-
célebre chá marroquino com menta, preparado pelo aluno mais jo-
nhos... Mas há sempre, dizem os indianos, um fio condutor que guia
vem, e as alegrias das discussões apaixonadas, que só terminavam
o nosso destino. Da nossa própria procura interior através dos labi-
à hora em que cada um ia para o trabalho.
rintos da vida fica esse fio invisível e subtil que nos segue no mais
Como esquecer também pessoas espantosas, como Sterky
íntimo do nosso coração. Estamos sós, mas sempre acompanhados.
que, com setenta e três anos e tendo sido submetido a duas trepa-
As recordações são um pouco como as pedrinhas da fábula
nações, praticava todos os dias? As suas palavras eram sempre um
do Pequeno Polegar de Charles Pérrault: elas marcam o caminho
hino à vida.
percorrido. O trajecto exterior pode ser assinalado, mas a experiência 1
E como esquecer as visitas de Léopold Senghor , poeta e homem 2
interior opõe resistências ao acto da comunicação. E esse é o verda-
de estado; de Mestre Deshimaru , monge Zen que no início da sua
deiro livro que jamais escreveremos. O essencial só pode ser perce-
estadia na Europa veio pela primeira vez a Marrocos e ficou admirado
bido pelos outros através de uma grande sensibilidade, pois a ver-
por ninguém reparar no seu traje; do eminente swami Punjaji, que
dadeira experiência situa-se para além dos encontros das paixões
a ponte e a via
humanas, numa visão do mundo que por vezes toca o real, que está
Com efeito, a educação e a cultura são os pilares mais sólidos
para além da linguagem, das palavras, e que talvez só exista no
da liberdade do homem. Disciplina, criatividade, amor pela natureza
silêncio.
e pela vida são sempre a finalidade de qualquer educação, mas uma
Obrigado, Marrocos. Aprendi muito de ti.
cultura partilhada, de que advém uma grande riqueza, é sem dúvida a base de uma realização espiritual. 25
O estudo das Artes Marciais, numa visão correcta, pode ser
Encontro com o Oriente
uma educação eficaz. Mas o que se passa hoje? Em 1964, numa final dos Jogos Olímpicos, o campeão japonês
O tempo vivido em Marrocos não foi a única experiência
T. Soné foi batido pelo holandês A. Geesink, para espanto geral do
marcante da minha formação. A China e a Índia estiveram sempre
público que assistiu, consternado, ao inacreditável. Os japoneses
presentes na minha prática, apesar dos meus mestres japoneses só
eram vencidos no seu próprio terreno. Foi um choque rude para um
se lhes referirem vagamente, sobretudo através dos grandes princí-
país que se gabava de ter elevado as artes guerreiras ao nível de
pios do Yin/Yang, que lhes serviam, muitas vezes, de dialéctica:
uma filosofia. Os meus amigos japoneses estavam perplexos.
Nada é absolutamente Yin nem absolutamente Yang
Já nessa altura pude reparar que no Japão o culto da força
Nada é neutro ou perfeitamente equilibrado
prevalecia sobre o do espírito, mas havia felizes excepções. Muito
Há sempre e em tudo, excesso de Yin ou de Yang
antes dos Jogos Olímpicos o meu mestre de Judo, Kenshiro Abé6,
O Yin repele o Yang; o Yang repele o Yin
dizia: Se o músculo fizer lei, vai criar-se sobretudo a ilusão. Que aconteceu à Via? Como explicar o seu espírito?
Tudo o que começa tem um fim Tudo o que tem um fim tem um reverso.
4
Nos meus movimentos tentava pôr em prática todos estes
Para tal é necessário recuar no tempo. O poeta Tokoma fornece as indicações para uma correcta compreensão:
princípios, tal como uma criança que tudo quer descobrir, mas isso
... é mergulhando a mão na água,
não foi suficiente. Queria ir mais longe. A minha pesquisa tornava-
no meio das ervas aquáticas,
se, pouco a pouco, uma ponte entre o Oriente e o Ocidente. Esta
que eu apreendo o espírito do charco...
diligência não podia ter um sentido único... tantas vezes o erro do principiante! Lembro-me ainda das palavras de Paul Claudel5, quando era embaixador no Japão: A permuta só conhece duas línguas Universais. Uma, fácil, como uma queda repetitiva, produz o ruído caótico de uma guerra. Outra, rara, difícil e sempre renovada, devota-se à criação cultural.
a ponte e a via
26
1
Léopold Senghor (Léopold Sedar), poeta senegalês de língua francesa. Antigo presidente do Senegal. Desde 1969 é membro do Instituto de França (Academia das Ciências Morais e Politicas, 1969).
2
Taisen Deshimaru (1914-1982), monge japonês, foi discípulo do Mestre Kôdô Sawaki (1880-1965). Taisen Deshimaru chega a Paris em 1967. Publica o seu primeiro livro Vrai Zen em 1969. Cria a Associação Zen d’Europe em 1970, que em seguida se tornou a Association Zen Internationale. Visita pela primeira vez a África, a convite do Budo Club du Marroc, em 1968, e, nos anos 70, a convite do Budokan de Cascais, visita Portugal, também pela primeira vez, e realiza vários sesshin nesta escola.
3
René Fouéré, Krishnamurti ou La Révolution du Réel, Paris, ed. Le Courier du Livre, 1969, p.144.
4
J. Lavier, La Bio-energétique chinoise, Paris, ed. Libraire Maloine S.A., 1964.
5
Paul Claudel (1868-1955), poeta e dramaturgo francês.
6
Grande mestre de Judo, Kenshiro Abé (1915 -1987) recebeu aos 14 anos o seu primeiro cinto negro, atribuído pela célebre Dai-Nippon Butokukai, que foi a primeira instituição de Artes Marciais oficialmente instituída no Japão, em 1895.
III
para onde foram os samurais Sobre cada espinho da silva, brilha uma gota de orvalho Matsuo Bashô1 27
Um imenso edifício com um telhado ultra moderno, que se
exército privado, cujos efectivos, uma vintena de homens, tinham
assemelha a um templo, ergue-se para o céu de Tóquio: o Budokan.
resolvido restaurar os valores do Bushido japonês. A 25 de Novembro
Os gritos, kiai, ressoavam e respondiam como que em eco
de 1970, depois de um discurso aos jovens recrutas das Forças Na-
aos murmúrios da cidade. Este imenso espaço, que pode receber
cionais de Defesa, que não o levaram a sério, Mishima suicidou-se,
milhares de visitantes, estava a abarrotar. O Budokan festejava um
segundo o espectacular ritual seppuku: abriu o ventre, a seguir um
momento importante na história do sabre japonês: os primeiros
assistente cortou-lhe a cabeça com um golpe de sabre, que repetiu
campeonatos do mundo de Kendo, em 1970. Orientais e ocidentais
mais de sete vezes. O Ministro da Defesa estava presente e demitiu-
defrontavam-se com dureza. Nessa altura eu era membro fundador
-se pouco tempo depois. O acto extremo do autor, chocante aos
da Federação Internacional de Kendo. Para cúmulo e, devo confes-
nossos olhos, impressionou os japoneses; muitos reagiram suici-
sar, sem me ter dado conta, venci um campeão japonês 7º Dan em
dando-se, mas a imprensa foi muito discreta a este respeito.
Nagoya. A N.H.K. (Televisão Nacional Japonesa) ofereceu-me logo
Mishima comportava-se como se o Japão não tivesse mudado profundamente nos últimos cem anos. Foi um gesto nobre, mas é
uma estadia no Japão. Durante estes campeonatos conheci, depois de um combate de treino, uma celebridade japonesa, Yukio Mishima, muito insigne, vestido inteiramente de branco e com uma armadura que o meu 2
mestre de sabre, Nakakura Sensei , achava muito ostensiva.
preciso admitir que a sua última vontade foi fazer reviver o ultra nacionalismo dos anos trinta. O espírito dos samurais não desapareceu inteiramente da mentalidade japonesa, adaptou-se à vida moderna. Notei muitas
Quando levantámos as nossas máscaras, com o rosto coberto
vezes, nas altas esferas das Artes Marciais, uma atitude à qual não
de suor, Mishima fez-me um sorriso rasgado e ofereceu-me o seu
posso aderir. Lembro uma noite em que uma dezena de budokas se
hachimaki. Tomei chá com ele, falámos de Marrocos e ele ficou muito
reuniu para festejar uma vitória e, depois da ceia, tendo saboreado
intrigado com o reino marroquino onde, no meu Dojo, se pratica-
um excelente saké, o mais velho dos praticantes tomou a palavra.
vam Artes Marciais e meditação Zen em conjunto com sufis muçul-
Fez-se silêncio. Sob o efeito do álcool e do fumo dos cigarros, disse:
manos. Fiquei muito impressionado quando, pouco tempo depois,
“Não esqueçamos que somos budokas e que, se o Imperador nos
soube da sua morte.
chamar, saberemos todos morrer, do primeiro ao último, para que se
Escritor famoso e contestado, Mishima tinha formado um
realize o Hakko-Ichin”.
para onde foram os samurais
No Japão o mestre tem uma tal autoridade que nós, aqui, nem
não são eleitos pelo povo.
sequer imaginamos. No Oriente, na época do Confucionismo, em que
9. Os soberanos são divindades visíveis.
reinava o ju, a figura de um mestre do Budismo, que fazia a iniciação
10. A arte de governar o país e as orações dirigidas aos deuses durante
ao saber da transcendência, aparecia rodeada de uma auréola. Não surpreende que uma máxima japonesa diga: O teu pai e a tua mãe
as cerimónias shintô, são uma e mesma coisa. 11. Os soberanos oferecem orações a Amaterasu-ô-mi-kami para o
28
são como o Céu e a Terra. Mas o teu mestre é como o Sol.
As Artes Marciais, do ponto de vista exaltado do Yamato3
bem estar do povo, especialmente durante as festas que estão relacionadas com a agricultura.
Damashi , o espírito das virtudes guerreiras do povo japonês, não
12. As regiões não submetidas ao Imperador são infelizes. As guer-
têm nada de universal. Aos que seguem a via do Budo, lembro a am-
ras antigas e as recentes contra a China e a Rússia têm como fina-
biguidade das duas orientações: uma que segue a religião Shintoísta,
lidade o bem estar do povo.
outra que advoga uma visão mística da raça japonesa e um culto de
13. Imperador e povo são unos.
fidelidade ao Imperador. Quando seguimos até ao fim uma escola de
14. A lealdade para com o soberano (chugi) é o fundamento da moral
Budo, coloca-se-nos um problema de opção, especialmente se diri-
japonesa (o Chu para com a família imperial é mais importante
gimos uma escola na Europa...
que qualquer giri).
Para vos dar uma ideia da síntese moderna do Bushido e do
15. A lealdade não consiste apenas em actos de coragem durante a
Shintô, eis alguns extractos do Kokutai No Hongi, documento que
guerra: a lealdade é sinónimo de respeito aos pais, de união entre
contém arquétipos relativos ao carácter sagrado da cultura japone-
irmãos, de paz entre casais, de fidelidade para com os amigos, de
sa, à conduta e ao dever de gratidão:
sobriedade, de bondade, de assiduidade no trabalho; ela é a prática
1. Os Imperadores do Japão descendem da Deusa Solar Amaterasu-
das virtudes, a promotora do bem estar da sociedade, o respeito
ô-mi-kami. 2. O Japão foi sempre governado pela mesma dinastia. 3. O Japão é um país único no mundo, sem igual. 4. Todos os soberanos e a Deusa do Japão formam uma única entidade. 5. A Deusa Amaterasu-ô-mi-kami reside no espelho metálico do Templo de Ise. 6. Os três símbolos do poder Imperial (espelho, sabre e jóia) foram entregues aos Imperadores pela Deusa Amaterasu-ô-mi-kami.
pelas leis, o desejo de desenvolver a indústria e o comércio. Tudo está incluído na lealdade para com o Imperador.
São verdadeiros dogmas, que se inserem na prática do Bushido japonês e de alguns dirigentes. Para mim havia soado a hora da verdade: queria um só tecto, mas sem o Imperador. Curiosamente o seu filho, que na altura era príncipe, entregou-me uma magnífica maquete do palácio Kinkaduji com uma bandeira de ouro. É altura de abordar um aspecto bem conhecido da civilização
7. A arte de governar o país é uma obra divina (matsurigoto).
japonesa e cujas manifestações são por vezes tão brutais e espec-
8. Os soberanos do Japão são diferentes dos das outras nações, porque
taculares que nos fazem pensar serem a essência deste povo. Contudo,
para onde foram os samurais
essa é apenas uma das suas facetas, pois sabemo-lo rico noutras
que ainda hoje é visível nos negócios ou mesmo nas famílias. Até nas
coisas. Refiro-me ao heroísmo guerreiro dos samurais. A história do
Artes Marciais a delegação do poder continua a ser um facto que
Japão, no seu conjunto, desenrola-se em torno de duas atitudes:
escapa à maior parte dos estrangeiros.
uma de abertura ao mundo e outra em que tudo muda com o tinir
O código do Bushido, a Via dos Bushi, antigamente chamado Kyuba-no-michi, ou seja, a via do arco e do cavalo, é um conjunto
das armas.
29
Em 1185, com a chegada de Kamakura, a tão sensível arte
codificado de ensinamentos e atitudes face à vida. Trata-se de uma
dos períodos de Asuka, de Nara e de Heian, quer dizer a idade da
herança do período movimentado acima referido, mas no século XIII
madeira e dos tons pastel, viu chegar a idade do ferro e dos cavalos.
o seu sentido era ainda restricto. Segundo o escritor G. B. Sanson o
A força e a morte apareceram então. É opinião de L. Warner que
nome Bushi-Do é recente5 e, segundo Chamberlain, “nenhum dicio-
“nenhum outro período da história japonesa oferece um exemplo de
nário japonês ou estrangeiro o menciona antes de 1900”6.
uma mudança tão rápida como o que marca a passagem do este-
Muitos praticantes das Artes Marciais não sabem que a pala-
ticismo decadente do século XII para o tempo viril e impetuoso dos
vra Budo, embora impregnada do conceito de dever para com os su-
4
Kamakura” . Temos o direito de nos interrogar sobre onde se situa o ver-
periores, que remonta a tempos imemoriais, acaba por ser relativamente moderna.
dadeiro Japão? Na época anterior ao Kamakura ou naquela poste-
Documentos antigos indicam-nos que os japoneses estavam
rior? Estamos na presença de dois rostos do Japão, mas também é
sempre em guerra. A submissão ao seu senhor era total, e advém
verdade que depois do ano de 1185, com excepção de alguns raros
do sistema patriarcal consagrado pelo feudalismo. As noções são
e breves períodos, os militares exerceram sempre o controle efectivo.
simples, pois os samurais não fazem especulações filosóficas. Ba-
É curioso constatar que, no conjunto da história do Japão, não houve
seiam-se no conceito de giri, a justa razão, e no conceito de chugi,
predominância de um sobre o outro, mas sim uma alternância dos
que significa lealdade. A base do Bushido e da economia assenta
dois aspectos: por um lado a procura da serenidade, do requinte, do
nestes dois conceitos.
belo, da não violência; por outro as guerras intestinas contínuas, a
No entanto, com o tempo, desenvolveu-se uma mística do
violência, por vezes a barbárie até ao suicídio. Tudo isto revela a
sentimento, como, por exemplo, a noção de ninjo, de piedade e
complexidade da personalidade japonesa através dos séculos.
respeito. Os laços que ligavam estes samurais aos filósofos nacio-
A esta época remonta a formulação do conceito de direito:
nais foram em primeiro lugar, é preciso não esquecer, as doutrinas
só o Imperador gozava de verdadeiros direitos, direitos que, para
de Confúcio (551-479 a.c.) e de Mencio (372-289 a.c.), numa época
todos os japoneses, lhe vinham do Céu. Esta visão influenciou de tal
em que na China se dava mais importância à piedade filial do que
modo a administração feudal que houve leis que não chegaram a
à obediência aos chefes e ao soberano.
ser publicadas e permaneceram secretas. No final da época Kamakura (1333) chegou-se a um extremismo
Os ideais do verdadeiro samurai eram chi, a sabedoria, jin, a disponibilidade, e yu, a coragem. Sabedoria não era sinónimo do
para onde foram os samurais
saber, mas sim uma ética no seu mais alto expoente, razão pela
ver sangue e a não deixar transparecer qualquer emoção. No In-
qual se deu a junção com o Budismo Zen. Só entre o séc. XV e XVI,
verno, não se podiam aproximar do fogo que aquecia a casa, e
o samurai se iniciou no arranjo floral e na cerimónia do chá, pois
quando regressavam serviam-lhes arroz cor de sangue, tingido
raramente pousava o sabre, que estava sempre a seu lado como um
com o sumo de ameixas salgadas...
ser amado.
A descrição de outras provas, por vezes diabólicas, a que os
30
A temeridade era mal vista. Um verdadeiro Bushi não se lançava
samurais se submetiam, permite-nos compreender a sua atitude
na acção de cabeça baixa, pois a verdadeira coragem consiste em
destemida perante a morte. Aprendiam as Artes Marciais e estuda-
viver quando é justo viver e morrer quando é justo morrer.
vam os clássicos chineses desde muito cedo. O pequeno sabre que
Os samurais eram admirados por todos porque sabiam escrever
traziam à cintura não era um brinquedo e aprendiam a servir-se
um poema antes de morrer. A cerimónia do seppuku, impropriamen-
dele, sacrificando as suas vidas, se o código de honra da sua casta
te chamada harakiri, e praticada em casos limites como o de salva-
assim o ordenasse. Não podiam ler romances, nem assistir a peças
guardar a honra, é um cerimonial complicado, com um ritual em que
de teatro popular, que fizessem apelo a paixões e emoções. Quan-
o menor detalhe tem as suas regras.
do passavam da infância à adolescência deixavam de estar subme-
O futuro samurai tinha uma educação rigorosa. A criança não
tidos à vigilância dos que os rodeavam, e tinham liberdade de acção
podia mostrar muito afecto pelos seus pais; não podia ter atitudes
de acordo com a sua maturidade. Tinham consciência de que uma
sentimentais e ainda menos chorar.
ofensa grave nunca seria inteiramente perdoada, e de que uma
Hagino, um japonês descendente de samurais que foi meu
censura era pior do que a morte. A sua palavra era sagrada, e deviam
aluno de Aikido, contou-me em 1968 que o tempo das carícias
ser Bushi-ni-ichigon, guerreiros de uma só palavra, enquanto ser
maternais foi breve para ele. Era engenheiro electrónico e director
Bushi-no-nigon, guerreiros com mais do que uma palavra, significava
de uma empresa japonesa de televisões. Quando o pai organizou a
a morte.
cerimónia da atribuição do hakama segundo as regras dos samu-
Outra coisa que os samurais deviam ignorar completamente
rais, Hagino teve que reprimir desde logo as suas manifestações de
era o uso do dinheiro. Este ideal, limitado mas não desprovido de
afecto. Passou a ser-lhe interdito o prazer do devaneio, o de nada
nobreza, inspirou aventuras cheias de actos de coragem comoventes
fazer, o do conforto, tendo mesmo como almofada um entrançado
e terríficos, como, por exemplo, a história dos quarenta e sete Ronins,
de lâminas de bambu. Ensinaram-lhe que o dever é o único guia e
os samurais sem mestre.
que a morte tem pouca importância.
O meu mestre de Kendo e de Iai-do, Nakakura, levou-me a vi-
Os aprendizes de samurai passavam por provas muito duras,
sitar a casa do chefe destes quarenta e sete samurais, numa peque-
como, por exemplo, a da atribuição do katana, o sabre. Os jovens
na cidade perto da actual Kobé. Um descendente da família Ochmio
rapazes tinham que se acostumar a dormir num cemitério e, durante
Kunamoshi ofereceu, para o Dojo que eu dirigia em Casablanca, uma
as execuções por decapitação a que assistiam, eram obrigados a
telha desta casa, mas um aluno meu, autor de livros sobre Zen, apro-
para onde foram os samurais
priou-se dela... Fomos em seguida fazer uma cerimónia no templo
Kira que, receando uma revolta, reforçou a guarda do seu castelo.
e queimar incenso no túmulo dos Ronins. A sua história é represen-
Oishi reuniu os samurais mais fiéis e juraram vingar o seu senhor.
tada no teatro de Chushingua desde 1748. A terrífica aventura é
Todos arranjaram uma nova profissão — lenhadores, forjadores,
contada em onze actos, a sessão dura um dia e a sala tem normal-
comerciantes — para poderem conhecer e estudar as defesas do castelo
mente a lotação esgotada. Em resumo, a história reza o seguinte:
de Kira, até nele poderem entrar. Oishi passou a vaguear pelos 31
Em 1701 o Shogum Tokugawa encarregou dois nobres da sua
albergues mal frequentados e a levar uma vida de deboche, chegando
corte de receber os representantes do imperador: Naganori Asano,
mesmo a repudiar a sua esposa, que ignorava o seu projecto de
senhor de Ako, e Sakyo Date, senhor de Yoshida. O Shogum designou
vingança. Ao fim de dois anos, Kira mandou um dos seus fiéis espiar Oishi,
o seu camareiro Yoshinaka Kira para dirigir a etiqueta desta cerimónia, mas o camareiro era invejoso e desprezou os dois jovens senhores. Sakyo Date ofereceu presentes sumptuosos a Yoshinaka Kira.
mas este continuava a fazer o papel de bêbado, o que descansou Kira, que reduziu a segurança à entrada do seu castelo.
Asano, mais simples, ofereceu um presente mais modesto mas com
Chegara o momento, a hora de vingar e salvar a honra de Asano.
Ki mochi, ou seja, com estado de alma. O camareiro não compre-endeu
Oishi convocou os quarenta e oito Ronins ainda fiéis, mas faltou um
esta intenção e, a partir desse dia, tratou mal Asano que, com
que, tendo sido proibido pela sua familia de se vingar, preferiu suicidar-
sabedoria e modéstia, se dominou e aceitou com condescendência os
se...
reparos do outro. Mas Kira interpretou esta atitude como sendo de
Uma noite, valendo-se da reduzida segurança do castelo e sabendo que Kira tinha organizado uma recepção, aproveitaram o
medo e a situação piorou. Chegou o dia da recepção e, perante todos os nobres da corte,
momento. Divididos em dois grupos, passaram ao ataque, neu-
Kira insultou Asano que, não podendo suportar esta injustiça,
tralizaram a guarda e encontraram Kira, que se tinha escondido num
desembainhou a sua katana e feriu Kira no rosto. Era proibido
canto do castelo. Os quarenta e sete Ronins ordenaram-lhe que
desembainhar o sabre no palácio do Shogum. Asano conhecia essa
executasse o seppuku, mas ele, apavorado, tentou fugir. Oishi não
regra e, segundo o código de honra do Bushido, preferiu perder a vida
hesitou em matá-lo com o sabre que tinha servido para o suicídio do
a perder a honra. Foi condenado pelo Shogum a fazer seppuku, as
seu mestre e a seguir todos concordaram em colocar a cabeça de Kira
suas terras foram confiscadas e os seus fiéis samurais foram dispersos,
sobre o túmulo de Asano. Segundo o código de honra do Bushido a vingança era interdita.
tornando-se Ronins. Asano cumpriu a cerimónia do seppuku com uma coragem
Portanto, os quarenta e sete Ronins decidiram fazer seppuku, cortando
exemplar, que comoveu a assembleia; depois de ter cravado o sabre
o ventre. Foram enterrados no cemitério de Senga-kugi. Só o mais
no abdómen, cortou a garganta.
novo foi poupado, para que pudesse contar esta aventura depois da
O chefe dos quarenta e sete samurais, Yoshitica Oishi, soube que o seu senhor tinha sido injustamente julgado por causa
de
morte dos seus companheiros.
Hoje, cerca de três séculos volvidos, os japoneses levam as
para onde foram os samurais
crianças ao cemitério onde estão enterrados os quarenta e sete Ronins
poema de Wou-Men:
para lhes dar uma lição de coragem, yu, e de sabedoria, chi. À entrada
Durante trinta anos procurei o perito do sabre.
do cemitério encontra-se uma inscrição significativa: “O gesto dos
Quantas vezes caíram as folhas
quarenta e sete Ronins só pode honrar as futuras gerações da nossa
e os ramos deram botões.
Nação”.
Desde que um dia vi os pessegueiros em flor,
32
Para alguns esta atitude pode revelar uma alma generosa, ao
desde aí e até hoje
mesmo tempo sensível e viril, mas seguir esta via é como andar na
nunca mais duvidei.7
corda do funâmbulo, em que uma inépcia pode desencadear a vio-
Comecei a perceber que a procura interior através das Artes
lência e a injustiça. A perseguição do ideal deve ser feita a partir
Marciais era complexa, e que alguns dos antigos samurais eram
do interior, depois de se ter reconhecido que, através dos séculos,
adeptos do Zen, que os libertava de preocupações dualistas como
muitos foram heróis e muitos foram os que trouxeram má fama a
perder ou ganhar, vencer ou morrer, medo ou cólera, e que lhes per-
esta via, a via do Budo.
mitia ter a atitude certa, espontânea, verdadeira e sem intervenção
Neste capítulo quis mostrar como é difícil seguir a via dos Bushi.
da consciência. Quando se atinge um certo grau na prática das Artes
Sendo hoje as artes do Budo praticadas apenas pelo seu lado des-
Marciais, para continuar a progredir devemos libertar-nos dos cons-
portivo, não se correrá o risco de abafar a sua essência, que se en-
trangimentos interiores que embaraçam a nossa mente.
contra para além do Budo? E como transmitir essa essência, adoptando uma forma mais adaptada aos heróis de hoje? Por altura dos meus vinte cinco anos encontrava-me perante o véu da incompreensão que, em tantos domínios, separa o Oriente
O Zen vive-se, não se explica. Nos Estados Unidos, perto de São Francisco, fui a um mosteiro Zen. O mestre Shunryu Suzuki8 falou-me da dificuldade de definir o Zen no Ocidente, e contou-me esta história:
do Ocidente. Depois veio um raio de Sol, o Zen e o Yoga, que pouco
Um dia, um mestre de Zen foi aos Estados Unidos. Em Boston
a pouco tornaram a prática mais clara, através do conhecimento da
foi convidado pela elite intelectual que, para o receber, tinha alugado
profundidade do Ser, que só pode levar a uma Unidade, único garante
uma das maiores salas da cidade. Pediram-lhe para fazer uma
da compreensão mútua que ilumina o Caminho.
conferência. A sala estava cheia e o mestre aceitou. À hora prevista,
No meio das Artes Marciais, no Japão, descobri uma mecani-
o mestre apareceu no palco e pôs-se na posição zazen em cima da
zação do gesto, por vezes dentro de um espírito nacionalista, bem
mesa que lhe estava reservada. Completamente imóvel, pôs-se a
longe do espírito ecuménico que eu procurava. Mas, no fundo, que
meditar, perante o silêncio gelado da assistência. Ao fim de uma hora
procurava eu? Só hoje sou capaz de o dizer: procurava a libertação
perante uma sala tensa, o mestre saiu da imobilidade, juntou as mãos,
de uma força criadora através da espiritualidade, que, porventura,
fez gasho (saudação), e disse: — Acabou a primeira lição. Dirigiu-se
não soube encontrar na religião ou na psicologia da minha época.
à saída e foi-se embora.
A minha experiência assemelha-se àquela que vem descrita num
De facto, o Zen vive-se, não se explica. Não é uma religião. É
para onde foram os samurais
uma atitude interior, uma maneira de viver, difícil de apreender por
dão um passo atrás no momento em que deviam avançar, mesmo
quem o não pratica. É a arte de ver a sua própria natureza.
quando procuram essa verdade. São eles que muitas vezes provocam
A escola budista Mahayana, de que deriva o T’Chang na
conflitos num grupo que trabalha com sinceridade.
China e o Zen no Japão, lembra-nos que o homem tem um véu que
O ramo florido da ameixoeira
esconde a sua verdadeira natureza. Esta permite-lhe identificar-se
dá o seu perfume a quem o quebrou.9
com o Universo, e faz dele um ser perfeito, longe da porta aferrolhada
Foi em Kyoto que encontrei a calma e a beleza que tinha perdido
do pensamento agitado, das especulações intelectuais e da prisão
em Tokyo. Se em Tokyo achei a multidão extenuante, Kyoto fez-me
de uma maneira de pensar racional, que o impede de ver claro.
descobrir uma outra face do Japão. Nas pequenas ruas transversais,
33
No Zen a lógica não existe. Existe o satori, que é a reintegra-
existiam verdadeiros mercados que me lembravam Marrocos. No
ção perfeita da consciência no Universo, forma de chegar a um co-
Verão, ripas de bambu, ainda hoje, protegem o transeunte, que con-
nhecimento simples, concreto, perfeito e verdadeiro, que, quando
tinua a usar o traje nacional mais do que o ocidental. Dos artesãos
acontece, é a iluminação. O homem comunica com o Universo. Ele
que há gerações fabricam leques ou trabalham a laca, emanava uma
É. Aqui, não existe diferença entre o sujeito que descobre e o objec-
calma, enquanto gueishas encantadoras, com os seus cabelos alisa-
to descoberto. O homem encontra a sua verdadeira natureza e,
dos com óleo de camélia, fazendo lembrar porcelana, cruzavam-se
como dizem os mestres, reencontra a sua condição normal. Isto é
comigo arrastando as suas sandálias. Eu passava despercebido ves-
desconcertante e inconcebível para o homem dito normal... e ain-
tindo o meu hakama, o meu keikogi e as minhas guettas nos pés.
da por cima ocidental. Por isso, quem empreende esta busca tem de
Lembro-me de parar um instante junto a um grupo de crianças, de
aprofundar o conhecimento, avançando com paciência e persis-
kimonos floridos, que partilhavam açúcar de cevada ou chá verde.
tência por um caminho cheio de armadilhas, e preparando-se para
Mais longe, numa pequena ponte abraçando um rio, tintureiros mo-
as decepções, como quando “uma mosca ataca um sabre”.
lhavam os seus panos, e na margem flutuavam ao vento as sedas
Cada um encontra um dia o mestre que devia encontrar. O co-
multicolores. E ainda os fûros (banhos termais) públicos, de onde
nhecimento não se assimila através de alguns estudos gestuais ou
saíam velhos e jovens vestidos com yukatas de cores diferentes, e
de palavras dispersas, como se fossem receitas de cozinha. A reali-
grandes sorrisos, inclinando-se respeitosamente sempre que se
zação interior envolve-nos, compromete todo o nosso ser. Nesta
cruzavam com conhecidos. Um bonzo passava olhando em frente.
procura, acontece o que se chama ponto zero, ou seja, um período
Fazia um calor tropical, quase húmido. Estava à porta de uns fabri-
de infusão a seguir ao qual, pouco a pouco, começa uma evolução
cantes de bokken (sabre de madeira), pai e filho, cujo endereço me
imperceptível.
tinha sido dado em Tokyo, e que são únicos no Japão. Tinha três ho-
Nem sempre podemos exprimir o que sentimos: estamos sós, é a travessia do deserto. Quantos alunos conheço que vivem na fronteira da verdadeira Via, da harmonia, e que, recusando a verdade,
ras, antes de uma cerimónia do chá, para escolher um bokken correspondente ao meu tamanho, ao meu peso e à minha experiência. Kyoto é na verdade um outro mundo: os elementos que a
para onde foram os samurais
compõem misturam-se, entrelaçam-se e acabam na verdura, como
fia humana.
num sonho. “Não te apresses”, parece sussurrar-nos o espírito da
No Japão, o Zen compreende três grupos: Rinzai, Sôto e Oba-
cidade. Antes de penetrar nos mistérios de Kyoto tudo parece no seu
ku, cujos princípios são idênticos embora a sua história seja diferente.
lugar e enquadrado do modo mais natural. Foi aqui que o Budismo
O primeiro chegou ao Japão em 1191 com o monge japonês Eisaï
japonês se expandiu, foi neste lugar que as artes e a cultura encon-
(1141-1215), que tinha ido instruir-se na China. O segundo foi fun-
traram o seu terreno de eleição. No Japão a beleza esconde-se. É
dado por Dôgen (1200-1253), que também tinha sido discípulo
iniciática, ou é merecida ou não o é. Depende da intuição de cada
de grandes mestres chineses da escola T’Chang. O terceiro foi funda-
um. Tal como no amor, o belo que se revela belo ao primeiro olhar
do no Japão em meados do séc. XVII, durante o período Tokugawa
é vulgar. Com certeza que a beleza não está ausente das grandes
(1644), por um mestre pintor chinês chamado Hsunen (1601-1668),
cidades cheias de gente: ela aparece nos jardins, nos templos ao
que se tornou superior do mosteiro de Obaku-san, o primeiro que
canto de uma rua, numa casa onde o requinte vindo de outras para-
visitei no Japão.
34
gens realiza a harmonia perfeita entre o homem e o cosmos, crian-
O Zen é um ensinamento oral em que a intuição é mais im-
do um verdadeiro oásis de paz. A beleza é um instante presente, é
portante do que os textos. Akira Sato10, o arquitecto paisagista,
como uma palavra murmurada ao nosso ouvido, longe da agitação
mestre de jardins e monge Zen, que em 1968 me foi visitar a Marro-
da circulação da multidão japonesa, tão frenética como a das for-
cos, convidou-me para, juntamente com o meu aluno Hagino, irmos
migas no seu trabalho.
ao Japão a fim de visitar alguns templos célebres, e quis apresen-
A visão da beleza que poderíamos qualificar de romântica está baseada na intuição, não no intelecto, e pode ser definida como: Shumi: o gosto
Kokoro: o coração
Satori: a iluminação
A beleza escondida que encontrei através do seu hermetismo
tar-me ao seu mestre, pois eu tinha o desejo de fazermos sesshin com os monges. Aceitei de boa vontade, tanto mais que o meu Dojo em Casablanca tinha sido o primeiro de toda a África a praticar Zazen. Akira disse-me:
e da sua espiritualidade, foi a que me levou à China e, mais tarde, à
Sei que no Japão não falam muito dos chineses, mas o Zen deve
Índia. Mas o caminho que escolhemos depende das finalidades a
muito a Lao-Tsé11. Este grande sábio meditava muitas vezes em plena
que nos propomos.
natureza, nos bosques, à beira de lagos e rios. É o seu pensamento
Os objectivos que persigo impedem-me de me fixar em qual-
que está na origem da minha especialidade de paisagista. A beleza
quer forma particular. Decepcionado por alguns depositários da Via
dos jardins é eficaz para que possamos encon-trar a nossa natureza
das Artes Marciais, encontrei-me entre duas paredes... Voltei-me
fundamental e aprofundar as virtudes espirituais, que são os
para o Zen para encontrar uma resposta que, na sua essência, tivesse
ensinamentos sistemáticos, os métodos dos
um alto valor Universal. Já sabia que o Zen tem a preocupação de
como um praticante de Zen, não é?
livros. A natureza é
evitar as complicações filosóficas, de ir directamente aos conceitos,
Akira Sato era de baixa estatura, e vestia sempre fato cinzento,
às práticas mais simples, e de afirmar, antes de tudo, uma filoso-
camisa branca e uma bonita gravata. Trazia um pequeno leque
para onde foram os samurais
à cintura, para refrescar o rosto de vez em quando. Oferecia-me
cia. Disse-lhe que gostava sempre de o escutar, pois para mim ele
sempre o chá segundo as regras do cerimonial Cha-no-yu, e eu
representava um movimento como o Kokyu-nage do Aikido, mas que
assistia, sempre maravilhado ao ritual dos gestos onde tudo é
isso não explicava o Zen, e naquele momento eu andava à procura
simples, puro, mas extremamente preciso, como um kata de sabre
de explicações. Akira comentou:
que pretenda produzir um sentimento delicado e sóbrio. De cada
Não se pode explicar o Zen, porque é inexprimível. É por isso
vez aprendia a escutar a canção deliciosa da água a ferver. É preciso
que o levo a ver jardins, templos, pois a natureza faz melhor do que
ter o espírito muito vivo para compreender, comentava o meu amigo,
explicar: ela inspira-nos uma compreensão pessoal. Só isso é verdade.
que há qualquer coisa de intuitivo... O chá, diz um sábio chinês, é
Exprimi mais uma dúvida. Uma vez que o Zen não se explica,
uma via directa. Gostava que sentisse isso, para esquecer as desilusões
deveria eu renunciar a compreendê-lo. Ele fixou-me gravemente com
do Budo japonês, tão militarista. A seguir recitou-me lentamente um
os seus pequenos olhos penetrantes. E, com um meio sorriso, das
35
12
poema de Dogen , numa mistura de francês e inglês, com sotaque
suas palavras, mais uma vez, brotou a força da sabedoria:
japonês:
A compreendê-lo não, pelo contrário. A que vos seja explicado,
Meia noite
sim... O Zen é a doutrina do pensamento transmitida pelo pensamento.
O ar está calmo, sereno
I shin den Shin (da minha alma à tua alma). É por um esforço intuitivo
A água como um espelho,
e pessoal. Procure em si e sorria... como Buda.
A chuva chegou e partiu, o sol subiu ao seu trono. O calor
A Lua, Luz no ar, Luz na água
reconfortava-me. Se a luz era autoritária, ela deixava, contudo, viver
Por todo o lado pura.
as inumeráveis luzes que me rodeavam. Os pequenos trevos tímidos
Oh, pura, transparente
e os íris azuis pontilhavam o jardim. Uma esperança... Estavamos longe de tudo, no espaço e mais ainda no tempo.
Uma barca vagueia.
Depois acrescentou: Compreendeu, Sensei? Respondi-lhe que talvez devesse entender que, para continuar a Via começada, era preciso que estivesse mais sereno, puro, desapegado de tudo, livre, e que o caminho devia ser transparente como a paisagem que Dogen descreve. Akira recitou, então, outro poema de Yamada Mumon: As sombras dos bambus passam sobre os passeios Mas não levantam nenhuma poeira; A luz da Lua penetra até ao fundo da água Mas não deixa lá nenhuma marca.
Logo a seguir, perguntou-me se o conhecia. Claro que o conhe-
Sorri. Foi a última vez que encontrei Akira Sato.
para onde foram os samurais
1
Matsuo Bashô (1644-1694). Poeta e religioso Zen, foi um dos principais escritores do género poético haiku. O haiku, segundo Sousa Braga, é um poema breve de três versos (de 5-7-5 sílabas) e é o resultado da lenta depuração que a poesia japonesa sofreu ao longo de séculos. Soji, Sokan e Moritake, no séc. XVI, conferiram-lhe individualidade. Mas foi sobretudo com Bashô que o haiku adquiriu a textura mais cristalina.” (Matsuo Bashô, O Gosto Solitário do Orvalho, antologia poética, versão de Jorge de Sousa Braga, Lisboa, ed. Assírio e Alvim, 1986, p.12). Bashô que, em 1684 inicia uma vida errante foi também autor de alguns diários de viagens: O Caminho Estreito para o Longínquo Norte, O leque Circular e O Deserto.
2
Kiyoshi Nakakura (1910-2000) nasceu em Kagoshima e iniciou a prática do Budo muito cedo, dedicando-se sobretudo ao Iai-do e ao Kendo. Casou-se com a Srª Matsuko, filha de Morihei Ueshiba, fundador do Aikido, de quem se tornou filho adoptivo com o nome de Morihiro Ueshiba. Atingiu os graus de 9º Dan, Hanshi de Kendo e 9º Dan, Hanshi de Iai-do. Abandonou o Kobukan Dojo por razões pessoais. Foi um dos grandes e prestigiados mestres de Kendo e de Iai-Do do Japão.
3
O Yamato-Damashi, ou espírito do Yamato, foi a expressão utilizada sobretudo antes e durante a Segunda Guerra Mundial para tudo o que o Japão podia conter de força, de espírito, de coragem e de capacidade de devoção e entrega à pátria e ao imperador.
4
L. Warner, Art of Japan, Inglaterra, ed. University Harvard, 1958, p.38.
5
G. B. Samson, A Short Cultural History, New York, 1943.
6
B.H. Chamberlain, Moeurs et Coutumes du Japon, Tradução de Marc Logé, da 5ª edição já revista e aumentada pelo autor, Paris, 1931 .
7
Wou-Men, Passe sans Porte ( Wou-Men Kouan), traduzido por Masumi Shibata, Paris, ed. Villain et Belhomme, 1973.
8
Shunryu Suzuki (1904-1971), monge japonês do Soto Zen, chega aos Estados Unidos em 1959, para aí desenvolver o Soto Zen. Rapidamente atrai numerosos discípulos e funda um centro em S.Francisco e em Tassajara, local onde abre o “Zen Moutain Center”, o primeiro mosteiro zen do mundo ocidental. Sucede-lhe um dos seus discípulos americanos, Richard Baker. Shunryu Suzuki escreve um pequeno livro Esprit Zen, Esprit Neuf que é uma pérola para todos aqueles que se interessam pelo Zen. Esta obra é uma compilação de várias conversas e entrevistas entre ele e os seus discípulos. Shunryu Suzuki, Esprit Zen, Esprit Neuf, Évereux, ed. Point, Inédit Sagesses, 1976.
9
Matsuo Bashô (ver nota 1)
36
10 Akira Sato, presidente da Associação dos Arquitectos Paisagistas do Japão e praticante Zen. 11 Lao-Tsé ou Lao Tzu terá vivido na primeira metade do séc.VI a.c., sendo mais velho duas gerações do que Confúcio. A obra Tao Te King (O Livro da Via e da Virtude), atribuído a Lao Tsé, é, por isso, considerado pela tradição como o mais antigo livro da filosofia chinesa. No entanto, sabe-se hoje, que é uma obra bastante posterior, talvez do séc. III a.c.. A ligação entre as ideias do verdadeiro Lao Tsé e do livro que associamos ao seu nome é difícil de estabelecer, mas é de admitir que esta obra tenha conservado, ainda sob a forma original, alguns dos seus ensinamentos. 12 Dôgen Zenji (1200-1253). V. Jacques Brosse, Zen et Occident, Paris, ed Albin Michel, 1992.
segunda parte
criação do tenchi tessen
38
I
o que é o tenchi tessen?
39
Antes de responder à pergunta que dá o título a este capítulo,
estão divididos em vários grupos: a maioria escolheu a via da com-
julgo oportuno retomar brevemente a já referida questão acerca das
petição, que, na minha opinião, conduz muitas vezes a vitórias
artes do movimento como prática que não pode estar desligada da
efémeras; outros escolheram a auto defesa; outros ainda, mais
espiritualidade.
próximos da Via do Samurai, preocupam-se sobretudo com a estra-
No livro O gesto criador e o Aikido, os autores interrogam-se
tégia do combate. Todos esses praticantes foram mal dirigidos, foi-lhes ensinada
sugerindo uma dicotomia radical: O que é o espaço, para o desportista? Um mundo neutro e sem
uma técnica, em detrimento da arte da procura interior. Na trans-
energia, um lugar de treino no qual reina a clorofila. Ele trabalha um
missão de conhecimentos do que, por definição, seria a Unidade,
corpo mecânico, de cuja higiene cuida, e, tal como a arte apenas
caiu-se no velho erro ocidental de separar o corpo e o espírito.
preocupada com as leis da estética, poderia ver o seu corpo,
Um dos sintomas evidentes dessa fractura é o desaparecimento
consagrado ao rendimento, de outro modo que não fosse o de um
ou a escassez dos Dojos, ou seja, dos lugares de treino do corpo e do
fresco ornamental no frontão dos estádios?
1
espírito, suplantados pelos ginásios onde normalmente se treina
Esta oposição entre a arte e o desporto não é uma tese de-
apenas o corpo. Basta entrar num ginásio para nos apercebermos
fensável. Marcada por uma compreensão caricatural da arte, a
de que a espiritualidade ou está ausente ou é, na maior parte das
afirmação deixa porém antever um drama em que muitos pratican-
vezes, abordada sem critério. Teremos compreendido o verdadeiro
tes estão mergulhados.
caminho do Do, a mensagem de amor através do conhecimento de
As novas abordagens em relação ao corpo são como uma luz
si próprio? Como compreender que o Aikido (e da mesma forma as
nas trevas. Psicólogos, grupos de teatro, médicos, dão-se conta de
outras Artes Marciais e do movimento), criado como uma arte espi-
que qualquer coisa ficou esquecida e que o corpo tem uma outra
ritual, possa hoje estar inscrito no comité olímpico como um des-
dimensão, mais próxima do que antes se chamava espírito. Se a
porto? Alguns dos meus velhos mestres devem dar voltas no túmulo.
junção entre movimento e espiritualidade já está em curso, parece
Habituado a trabalhar dentro de um outro espírito e decepcionado
ainda longe de estar feita, e a reacção, quando queremos aprofun-
com esta degradação, mantive-me na via da não dualidade.
dar a arte do movimento, costuma ser a da perplexidade. Hoje em dia uma grande parte dos praticantes de Artes Marciais
Que podemos encontrar no Ocidente em relação às Vias orientais, que são arte do movimento? Podemos encontrar uma opção
o que é o tenchi tessen?
simplesmente física, condicionada pela habitual divisa mens sana in corpore sanum, que ignora por completo a espiritualidade e que
Auguste Rodin, nas suas conversas com Paul Gsell, quando se referia aos oficiantes da beleza, dizia:
adultera inclusivamente a original anima sana in corpore sanum.
Começo a compreender, isto é, dei-me ao trabalho por uma
Podemos encontrar também a opção oposta, a via mística, de
coisa. Qualquer um que compreende uma coisa, compreende geral-
inspiração judaico-cristã, reservada aos que se retiram do mundo e
mente todas as coisas, pois tudo obedece às mesmas leis. Aprendi a
desprezam profundamente o corpo.
escultura e sabia que era algo de grandioso. Lembro-me de que, na
40
O investigador que, sem rejeitar o corpo e sem querer fugir do mundo, aspira a uma espiritualidade, depara-se com um muro de incompreensão. No que diz mais especificamente respeito ao Tenchi Tessen,
Sucessão de Cristo, particularmente no terceiro livro, usei a palavra “escultura” em vez de “Deus” e isso era perfeitamente certo.2
Na procura da arte do movimento é verdade que o corpo e o espírito estão misturados como o sal e a água do mar.
devo confessar que, quando me perguntam o que é, fico sem voz.
No Tenchi Tessen, os preliminares, como, por exemplo, o trovão,
É-me difícil delimitar a minha pesquisa estando eu ainda no prin-
os oito ventos, o infinito e a espiral, ou temas como o pássaro, a roda
cípio. Sei que poderia dizer o que não é, e isso não seria fugir à per-
e Nataraja, o deus dançarino, são movimentos que devem ser
gunta, tanto mais que o meu objectivo é concretizar, através da nossa
executados a partir do interior, como uma expressão universal, pois
escola, a diferença entre o estudo mecanicista do movimento e o
são o conjunto de todas as vibrações da natureza, por mais subtis
movimento criador.
que sejam. São vibrações primeiro percebidas intuitivamente e
Como em todas as artes, em particular nas artes ditas “marciais”, a ruptura deu-se devido a essa diferença. Com mais de trinta anos
depois conscientemente, para a seguir se exteriorizarem no gesto, acompanhado por vezes por sons emitidos durante a expiração.
de prática afastada do conformismo japonês, conformismo por
Os movimentos do Tenchi Tessen propõem a recriação de um
vezes esclerosado com problemas hierárquicos hoje sem grande
micro-cosmos animado sempre pela acção unificadora do sopro. O
significado, o Tenchi Tessen nasceu de experiências diversificadas
sopro é a vida e é também o movimento, movimento que é a própria
como o Aikido, o Judo, o Yoga, o Zen e a antropologia teatral. É a
Vida, o seu centro, centro onde não há limites.
escolha de uma escola onde a forma se move e o gesto se harmoniza.
Às vezes falo em técnica do movimento, mas quando digo isso
Os movimentos desenvolvem-se em espiral, em curva ou em
não me refiro a recursos ou expedientes formais. Quero dizer que o
círculo, requerem um trabalho incansável e cheio de emboscadas,
movimento deve ser preciso, com uma linha de expressão exacta,
desde o sentir ao ter consciência, a ponto de os poder demonstrar e
resultante de treino e domínio. É a escrita do corpo em movimento,
viver. Contudo, antes de prosseguir falando do caminho percorrido
onde a técnica se transforma em movimento, pois o espírito já não
e a percorrer, queria que parássemos um instante, no ponto em que
se inquieta, o corpo já não está tenso e assim todo o ser se manifesta.
se cruzam os caminhos dos que procuram o mistério do movimento.
Como antecipado rapidamente na introdução, ao criar o Tenchi
Este ponto de intercepção é o da vida criativa.
Tessen, escolhi um nome de origem chinesa, que para mim traduz
o que é o tenchi tessen?
profundamente a arte do movimento que pratico: Ten, Céu; Chi,
O movimento da mente e o seu funcionamento
Terra; Tessen, Leque, que simboliza o sopro. Na prática do Tenchi Tessen procurar-se-á sempre a harmonia
É preciso saber distinguir a mente da consciência do ser, ainda
destes três elementos, pondo sempre a nossa maior atenção na
que as duas sejam apenas uma e a mesma coisa. Através da procura
execução do movimento no seu mais alto grau, pois ele deve incarnar
interior na arte do movimento, damo-nos conta de que a mente é
o UM e o MÚLTIPLO. Para isto é, evidentemente, necessária uma
uma parte da consciência indivisa. Esta é neutra e não se identifica
compreensão da unidade da vida, pois tantas vezes o homem fica
com os movimentos da mente, é o fundo da nossa personalidade
prisioneiro do seu pequeno eu e, portanto, dos seus limites pessoais.
aparente. Esta consciência do ser é indefinível, e a procura demons-
No estudo do Tenchi Tessen é conveniente aprender a ultra-
tra que, quando transcende as funções psicológicas, não tem limi-
passar os limites psicológicos do ego. É aqui que começa a medi-
tes porque não tem forma, e não tendo forma não pode ser agarrada.
tação. Dou uma grande importância ao fundamento silencioso, ou
A mente funciona geralmente de uma maneira dualista — sim/
seja à meditação, pois estas duas disciplinas são complementares.
não, bem/mal, faço/não faço, e assim por diante — o que gera por
No silêncio e na meditação haverá uma transformação progressiva,
vezes eternos problemas que se repetem. Só depois de um verda-
durante a qual a nossa consciência pessoal se irá separar dos seus
deiro discernimento a mente pára de vagabundear. A consciência
condicionamentos, para ficar finalmente disponível para a unidade
certa assemelha-se ao espaço vazio e silencioso. Tal como ele a
universal, formando a realidade última dos seres e das coisas. A
mente dissolve-se no silêncio de ser, silêncio que não é ausência mas,
realidade, porém, não é senão a própria essência do movimento: esta
pelo contrário, plenitude.
41
realidade é ela mesmo movimento de pura criação, e é aqui que as
O estudo do Tenchi Tessen deve, através dos seus movimentos,
relações do homem entre terra e céu representam uma arte de viver
eliminar este jogo psíquico dos opostos dualistas, que são a principal
que pode ser a base espiritual do Tenchi Tessen.
causa de um movimento mal executado, pois os opostos geram a
Nas técnicas do Tenchi Tessen é o nosso interior que rege o
divisão do gesto e afastam-no da sua unidade. Para a tradição indiana,
movimento. É o que eu chamo movimento habitado pela cons-
a mente funciona segundo três modos que, na minha opinião, se
ciência interior, onde existe o domínio de vibrações e de ritmos
reflectem muitas vezes na execução de um gesto:
esparsos, o que dá a possibilidade de captar as sensações virgens e
• o primeiro é o funcionamento em que o espírito está agi-
de as modelar, como um escultor. Trata-se de um processo que exige
tado, extrovertido e turbulento, que encontra a sua expressão no
uma grande atenção.
egoísmo, na paixão, na brutalidade;
Na procura da forma, há uma educação da mente ou da força
• o segundo é o que torna o espírito pesado, inerte, preguiço-
que a acciona e, para o efeito, é útil conhecer os seus mecanismos.
so, pouco evoluído, ou seja, quando a psique é abafada pela matéria; • o terceiro é o que torna a mente calma, leve, estável, clara; é o estado ideal para a prática, porque nos torna disponíveis, o que
o que é o tenchi tessen?
também pode ser alcançado pela própria prática, mas para isso é
tradições? Depois de uma pausa, ele respondeu: No vosso país, na
necessário um desenvolvimento da atenção e da quietude.
Europa, vocês comem frutos exóticos, frutos vindos de diferentes
Em relação ao último ponto, é necessário esclarecer que se
origens, bananas, pêras, laranjas, ananás. Têm o direito de se ali-
fizermos um esforço demasiado voluntarioso para estarmos aten-
mentarem de todas as tradições, sendo claro que a banana nunca se
tos sem nos descontrairmos, vamos criar tensões. O movimento
tornará uma maçã e vice versa. Estes dois frutos não se guerreiam.
crispa-se e o sopro não flui. Se, pelo contrário, nos descontrairmos
As verdadeiras tradições não são contraditórias na sua essência.
42
sem aumentar a atenção, caímos na inércia. As nossas acções devem
Não será o mesmo com a música?
ser feitas sem implicações emotivas e sem interesse pessoal, na
A música para o Tenchi Tessen deveria partir de um idêntico
pureza e na positividade dos nossos pensamentos. Assim o movimento virá do centro, pois mobiliza a atenção num gesto único, puro, que é também um movimento unificador.
impulso, de uma explosão criadora. As experiências que realizámos com músicos provaram que quando os movimentos do Tenchi Tessen e a música são praticados numa comunhão mútua e sincera tornam-se indissociáveis, pois praticantes e músicos têm a mesma finalidade, não seguem cami-
A música e o Tenchi Tessen
nhos paralelos, e por isso manifestam-se no instante presente. O aparecimento da música nasceu de uma necessidade de
Uma pergunta me fazem frequentemente: porquê música no
fusão do movimento com o som. Werkmeister3 dizia: O Universo
Tenchi Tessen? E que música? Não é fácil responder quando o inter-
inteiro reflecte a harmonia da criação, esta harmonia está na origem
locutor é um melómano ou um musicólogo. A pergunta poderia ser
da música. Os movimentos que trabalhamos são sempre executados
colocada da seguinte maneira: qual é o papel da música na prática
com a finalidade de ir ao fundo das coisas.
do Tenchi Tessen?
Não é o som o espelho desta harmonia universal?
Há muitas opiniões sobre a relação da música com o movi-
Não sendo o Tenchi Tessen uma dança, os seus movimentos
mento. Na dança, por exemplo, os coreógrafos e os grandes bai-
harmonizam-se perfeitamente com a música, pois dirigem-se aos
larinos têm muitas vezes pontos de vista diferentes. Para uns a
limites do corpo, do gesto, e a música vai no sentido do desabrochar
música pode ser um apoio rítmico, no conceito de uma unidade de
do som. Se esta fusão se der no mesmo instante, toca-se o absoluto.
medida; outros, pelo contrário, interpretam a música com o corpo,
Contudo, se por vezes o som é necessário para que o movimento se
procurando o que o compositor quis transmitir; outros ainda vão
apoie nele, o silêncio é também a música do movimento. Vêm-me à
mais longe, para além da obra musical.
memória as palavras de Isadora Duncan: Sempre predisse que viria
Não partilho estes pontos de vista, e eles lembram-me uma pergunta sobre as diferentes correntes espirituais que fizeram um dia a um sábio oriental: Pode viver-se de acordo com várias
um grande artista que reunisse estes dois dons — saber escrever música e poder dançá-la.
Eu não sei compor música, mas penso que os movimentos do
o que é o tenchi tessen?
Tenchi Tessen passam pela intuição do corpo, e uma música que não
tencia ao mundo exterior. Que prova mais peremptória!
tenha a mesma finalidade torna-se um mal entendido. Na nossa
A música do Tenchi Tessen é a imagem do verdadeiro praticante
cultura, de que a música faz parte, por vezes desenvolvem-se as
e, para concluir, se me permitem cito esta metáfora que vem da Índia:
formas e os meios, pondo de lado as artes do movimento, que não
Aquele que procura verdadeiramente é como uma harpa de três cordas.
fazem parte da cultura. Refiro-me à cultura mais profunda, intuitiva,
Há a corda física, harmonizada pela prática e pelo respeito das leis
pré-expressiva, que é a base e o fundamento dessas formas e desses
e ritmos profundos da Natureza, enquanto a corda emocional e a
meios, pois ela vai à fonte da vida, da forma em movimento.
corda mental são harmonizadas pelo silêncio interior. Como a harpa
43
Como toda a arte que manifesta beleza, é também através de
é um instrumento nas mãos do artista, aquele cujo corpo se faz harpa
sinais exteriores e de processos que lhe são próprios que a arte capta,
torna-se instrumento das mãos divinas. A vida inteira de quem procura
para se apropriar deles e para os idealizar, os eflúvios estranhos e
torna-se então uma obra constante, os seus gestos exprimem os
maravilhosos do mundo que nos rodeia, bem como os sentimentos
movimentos e os ritmos de uma sinfonia cósmica de que ele é uma
mais íntimos e os pensamentos mais profundos. A arte aparece-nos
nota singular ligada ao que o rodeia. Não virão a música e a arte do
por vezes como imaterial, subjectiva.
movimento das mesmas profundezas?
Quando um praticante dá ao seu movimento a expressão máxima, esta emana do mais profundo do seu ser e ele realiza uma síntese harmoniosa entre a matéria e o espírito, síntese de dois
O movimento do pincel
aspectos de uma mesma realidade. À semelhança do pintor que fixa lentamente na tela o sonho da sua imaginação, do escultor que
O movimento do pincel é uma fonte do gesto e do movimento
desbasta o bloco de pedra e lhe dá o último acabamento, do poeta
exterior. O mestre e pintor chinês Zhang compreendeu-o muito bem
que encontra apoio num determinado sentido das palavras e do
ao escrever: É preciso transmitir à mão o que o coração apreendeu.
músico que trabalha com sonoridades que se desvanecem logo que
São palavras que trazem à memória as lembranças de um
são emitidas ou ouvidas, o praticante de Tenchi Tessen cria um movi-
encontro com outro artista que se dedicava à mesma arte com o
mento de que só ficará a lembrança fugaz de um instante, como
mesmo espírito.
acontece com o bailarino.
Entrei num atelier onde o cheiro característico das tintas de
E, já que falamos de coisas imateriais, dirijo-me aos materia-
óleo enchia o espaço silencioso. Aproximei-me com cuidado, evitan-
listas convictos. Beethoven compôs as suas obras-primas quando já
do derrubar as numerosas telas que enchiam a sala iluminada pela
estava completamente surdo, separado de todos os barulhos do
luz imaterial das janelas sem cortinas. O homem parecia estar sentado
exterior. Ele costumava explicar que ouvia os acordes indizíveis da
defronte do cavalete desde sempre, e capaz de aí ficar até ao fim dos
sua alma, no fundo do seu ser, muito melhor do que ouvia antes. Ele
tempos. No seu trabalho não havia nem precipitação, nem hesitação.
equilibrava as massas sonoras e dele jorrava uma música que per-
Durante uns momentos, apesar da minha presença, ele criou e cobriu
o que é o tenchi tessen?
de tinta fresca uma tela branca, com as cores predilectas que só ele
com o estado de espírito. O perigo das artes do movimento — cali-
sabia misturar, especialmente os verdes e as cores da floresta no
grafia, dança, Tenchi Tessen, etc. — é o de negligenciar a vertente
Outono. Enquanto pintava, o seu rosto de olhos azuis permanecia
interior para se ocupar de problemas técnicos e formais, que não
impassível, mas o seu pincel saltitava em diferentes direcções e
são mais do que aparências de arte.
parecia estar directamente ligado ao mais profundo do seu ser.
O Tenchi Tessen, como já referido, é o fruto de uma experiência
Voltou-se de repente, esboçou um sorriso tímido sob a barba
nas artes em geral, elaborada em domínios diversificados como a
branca, poisou o pincel e a paleta e apanhou maquinalmente um
mitologia indiana, a filosofia chinesa, as artes marciais, a icono-
dos seus muitos cachimbos. Num movimento de hesitação, voltou a
grafia, o yoga ou o teatro. Domínios diferentes mas que têm um
poisá-lo e sentou-me nos seus joelhos.
ponto em comum: uma dimensão cósmica.
44
Foi assim que conheci o meu avô. Morreu como um grande
O itinerário do Tenchi Tessen só pode ser traçado percorrendo
pintor, frente ao seu cavalete, ao assinar a sua última obra, no meio
essas disciplinas, entendendo-as como um caminho global e visan-
das cores de Outono. Para a minha irmã e para mim ele foi sempre
do atingir o equilíbrio. Tal método pode parecer demasiado empírico
o “avô cachimbo”.
aos olhos ocidentais, mas o Oriente vê nesta procura uma prática
Muito mais tarde na região de Kyoto, no Japão, peguei pela primeira vez num pincel para caligrafia (burashi) e pensei nele ao
ligada às artes, cujos fundamentos se enraízam nas mais antigas tradições.
perguntar-me que elo poderia ligar os artistas europeus com os orientais. O meu Mestre, talvez adivinhando os meus pensamentos, lembrou-me que era preciso que eu inspirasse e expirasse mais
Sabemos que, para que um movimento seja autêntico, deve estar para além dos automatismos e dos condicionamentos que impedem a espontaneidade criativa. Este processo deve ser ensinado e dado a conhecer aos praticantes.
lentamente, pois os meus gestos eram bruscos demais e que eu me
Uns escolheram o pincel, outros o sabre, eu escolhi o leque.
devia concentrar exclusivamente na fonte profunda do ser que existe dentro de mim mesmo. Deste modo o acto de pintar encontraria a sua plenitude e espontaneidade. Se respeitarmos estes verdadeiros preliminares, a caligrafia toma relevo; de outro modo, torna-se inerte. O traçado do pincel é como que uma projecção do espírito — por vezes o pincel apenas aflora a folha branca, outras vezes esmaga-
1
Georges Brunon e Pierre Molinari, Le Geste Créateur et l’Aikido, Mayenne, ed. Du Rocher, 1980, p. 53.
2
Auguste Rodin, L’Art (entretiens réunis para Paul Gsell), Lausanne, ed. Merunod, 1953, p.96.
3
Andreas Werkmeister, Musiktheoretiker, ed. Herman A.W, 1951.
-se contra ela — então o traço é sem retorno nem hesitação, como uma estrela cadente na noite. Para o mestre de caligrafia, a postura deve estar em harmonia
II
dojo — local de prática No ponto do mundo que rodeia o ponto de repouso está a dança. T. S. Eliot 45
O Dojo é um local de prática onde o vazio é habitado pelo instante presente. No silêncio do Dojo a grande tela branca está estendida no chão. Vestindo o keikogi e o hakama brancos, o praticante está de pé e começa a rodar com o seu leque vermelho. O ritmo é lento e leve como uma boa respiração. Os gestos, primeiro arredondados, desenrolam-se em grandes espirais, como se quisessem domesticar, docemente, o espaço. O movimento prolonga-se espontaneamente
Uma aula de
e forma um todo.
Tenchi Tessen
Os movimentos do Tenchi Tessen, como os do pincel na arte
no Dojo Ten Chi
da caligrafia, são vigorosos e firmes, partem da base para chegar ao cimo. Há neles a consciência da gravidade, que está ligada à consciência do eixo. O movimento parte do centro sem hesitar, pois o equilíbrio é obtido pelo movimento periférico que gira em volta
o canto do pássaro e das rãs que vivem no pequeno lago do Dojo. Esses movimentos são a passagem obrigatória para escalar a montanha. E contudo um olhar sobre o passado...
do eixo imóvel. A dança dos movimentos começa e continua, sem sabermos distinguir se é o leque que dança ou se é o corpo do praticante que o faz. Mas é um ritmo que pode ser lido no espaço do
O Homem sob o Céu e a noção de Ma
Dojo, uma vez deixado vazio. O som do sopro do praticante assemelha-se ao vento da pri-
Chegará um dia em que o movimento (técnica) e a estabili-
mavera que aflora as folhas dos bambus como numa carícia. De
dade, a arte e a sabedoria, harmonizar-se-ão, mas antes disso quanto
súbito, um kiai, o grito que se manifesta quando o movimento está
trabalho incansável teremos pela frente, como num combate contra
no apogeu. O movimento desaparece para logo renascer; este é o
nós próprios. O Dojo é um dos locais eleitos para esse tipo de com-
movimento do instante.
bate, ou seja, para o conhecimento e a aceitação de si próprio e dos
O espaço e o céu ainda vibram! À volta é o silêncio que sublinha
outros, num processo de integração em evolução permanente.
dojo — local de prática
A imagem do Homem sob o Céu é elucidativa a esse respeito,
O sentido dos movimentos do Tenchi Tessen não é a realização
e torna-se evidente nos ideogramas das línguas chinesa, ren, e
rígida ou mecânica de um gesto, mas sim o desenvolvimento, através
japonesa, jin. Primeiro o homem tomou consciência da sua vertica-
da prática, de uma nova sensibilidade em relação à terra e ao céu,
lidade e, segundo a tradição oriental, situou-se entre Céu e Terra.
ao espaço e à energia cósmica. O coração do movimento é calor,
Observou, acima dele, um mundo impalpável e inacessível e, sob os
abertura ao outro, escuta na estabilidade, num silêncio interior.
46
seus pés, um mundo compacto, bem sólido e ao alcance imediato
O único objectivo no gesto é estar presente: simplesmente
da sua mão. Nasceram assim os dois termos chineses T’ien, céu, e
estar no movimento. É por o gesto estar numa presença que ele é
Ti, solo ou terra, e o homem em movimento encontra-se entre esses
sem ruptura e que a sensação se abre ao espaço na relação Céu/ Terra.
dois elementos.
Trata-se de uma sensação que não pode ser percebida pelo intelecto,
Na prática do Tenchi Tessen há uma realização da união en-
mas que aparece com a prática e ressoa para além da prática.
tre o que está em cima e o que está em baixo, união que religa a
Iki é o estado espiritual que dá vida às técnicas e que pode
aspiração do homem em direcção ao céu e o seu enraizamento na
estender-se quer a significados específicos, como sopro e espírito,
terra: não esqueçamos que uma flor privada das suas raízes e da
quer a referentes mais amplos, como seja um modo de vida artístico.
luz não pode desabrochar.
Na arte do movimento não é suficiente uma sucessão de
Pela presença do gesto e da estabilidade na deslocação, o movi-
belas posturas. É necessário que as posturas e os movimentos se
mento pode ser, simultaneamente, aberto, fechado e móvel. Daí nasce
encontrem impregnados de ki, de energia vital, respondendo a um
a verdadeira fluidez, na qual a leveza não é flutuação e aquilo que
ritmo global a que os praticantes das Artes Marciais no Japão cha-
nos rodeia não é peso.
mam ma. O ma é o intervalo de espaço ou de tempo entre cada postura e a sua evolução, ou entre uma postura e a postura seguinte. Contudo, não é um espaço ou um tempo gratuito ou desnecessário, mas antes um transporte artístico do espaço-tempo. Apesar de a definição não ser clara nem muito lógica, é de facto qualquer coisa que diz respeito à sensibilidade ao movimento do ponto de vista corporal e estético. Os mestres do movimento declaram que há um ma que pode ser ensinado e outro que não é transmissível”. O ritmo pode ser
ensinado, mas o grau não. Morihei Ueshiba, fundador do Aikido, costumava repetir: Sigam os movimentos do vosso coração. Esta afirmação simples exprime todo o ideal de beleza que só se atinge O Dojo Ten Chi
depois de muitos anos de estudo e de prática incansável.
III
segurar o tessen O coração de acordo com a intenção
A mão de acordo com o pé
A intenção de acordo com o sopro
O cotovelo de acordo com o joelho
O sopro de acordo com a energia.
O ombro de acordo com a anca.1
47
Na iconografia hindu, o leque é um dos atributos de Vishnou; é um símbolo de sacrifício ritual, pois serve para atiçar o fogo e, pela mesma razão, é atribuído também a Agni. É, ainda, o estandarte de Vâyu, personificação do Sopro Cósmico e intermediário entre o Céu e a Terra, espaço que enche o sopro, ki. Vâyu, considerado o deus do vento, penetra, quebra e purifica e está em relação com as direcções do espaço e com os ventos. O leque é o emblema da dignidade régia na África e na Ásia, enquanto que na Europa o flabellum das cerimónias romanas era utilizado, na igreja primitiva, para celebrar o ofício divino. Entre os taoistas, o leque parece relacionar-se com a ave, como instrumento de libertação da forma, como símbolo do voo para o país dos imortais. Nesta tradição mencionam-se leques que produzem o fogo e o apagam e que são capazes de gerar o vento e a chuva. Ghung-li Ch’uan, o primeiro dos oito imortais, segundo a mitologia chinesa, é sempre representado com um leque, com o qual, diz a lenda, pode ressuscitar os mortos. O Tessen é o utensílio. Ele torna-se objecto da nossa meditação, desde que a nossa mão prolongue o nosso coração. As nossas duas mãos simbolizam a unidade que deve existir na nossa mente. Para Annick de Souzenelle2 o verbo hebreu yada, conhecer, tem como raiz yad, a mão, à qual se junta ayin, o olho. Poderíamos dizer que a mão está dotada de visão e o olho, de uma certa forma, de tacto. Visão e tacto levam ao conhecimento que liberta.
segurar o tessen
Agarrar o Tessen exige sensibilidade e força. Para que a mão
do artista. Isto faz-me pensar num dos meus amigos cirurgiões, que
possa segurar convenientemente o leque é preciso que o corpo esteja
me disse: Haverá uma melhor precisão no acto cirúrgico quando na
numa posição correcta de equilíbrio. Nas aulas costumo repetir que,
universidade ensinarem a postura.
para segurar bem o Tessen, é preciso que os pés estejam bem assentes na terra!
Para o artista chinês, a disposição mental precede o gesto do pintor e o pincel prolonga-o. Em relação ao corpo fala-se do braço
48
Antes de chegar a uma verdadeira simbiose com o Tessen, o
inteiro, do punho vazio, da acção de cada dedo e assim por diante.
praticante deve tomar consciência do espaço que o rodeia, a fim de
Tal como nos movimentos do pincel e nas Artes Marciais, no
poder alargar o seu esquema corporal para além do próprio Tessen.
Tessen há formas de ataque distintas, a que se chamam perguntas.
O objecto deixa de ser um utensílio para se tornar uma excres-
Há, entre outros, o ataque frontal, o ataque oblíquo, o de contra
cência dos dedos, ou melhor, o seu prolongamento natural, tal como
pêlo, ou seja em sentido contrário ao dos pelos do pincel, o de
o pincel para o pintor ou o martelo para o escultor. O instrumento
pêlo deitado, pressionando e aliviando, em movimento ondulado,
deve incorporar-se para fazer a Unidade.
em cadência sincopada.
A procura do modo de segurar o Tessen, tal como a de segurar
Quando se faz um traço, pensamos na dança, na música. Não
o pincel na caligrafia chinesa, é subtil, e toca directamente o corpo
é uma linha feita automaticamente. Com o seu ataque, o seu impulso, a sua amplitude e o seu soltar, ele incarna ao mesmo tempo a forma e o volume, a tonalidade e o ritmo. A unidade Mão-Tessen representa a Energia e, através dela, a verdadeira natureza do Homem. Haverá aí o Ser profundo, essa realidade já existente que ainda não atingiu a plenitude, mas o seu movimento vai nessa direcção.
O Tenchi Tessen e a sua simbólica Face aos inúmeros caminhos que nos são oferecidos para progredir na Via, o investigador sincero corre o risco de se perder. O Tenchi Tessen pode ser, para ele, um meio de encontrar os marcos do seu percurso. Quando, no decorrer da prática, convido os alunos a reflectir sobre as técnicas e os símbolos que as acompanham, alguns deles
segurar o tessen
podem sentir uma certa perplexidade perante a insistência cíclica
o cheio depende do vazio. O ser é o não ser?
da recomendação. Os símbolos, ou os princípios, nunca devem ser
Na arte do Tenchi Tessen o vazio não é conceptualizável, ele
examinados a partir de um mesmo nível. O percurso interior deve
foge e, regra geral, é rejeitado. Contudo, como é que uma arte do
ser sempre evolutivo na medida em que o Tenchi Tessen é considerado
movimento pode levar-nos às reflexões acerca do vazio? Talvez a aceitação do conceito seja facilitada pela observação
um Do, uma Via.
49
É pela prática que o símbolo se revela. Quando o véu cai, o
do próprio corpo que possuímos: se o considerarmos micro-fisica-
centro do movimento oferece a sua jóia e cada um recebe-a conforme
mente, do ponto de vista da sua estrutura atómica, ele seria carac-
a sua capacidade. Esta jóia depende da qualidade do instante, da
terizado por incríveis vazios entre as partículas que lhe fariam per-
presença, da não dispersão.
der a sua substância, a sua permanência, embora ao nosso olhar
Sabemos que a psique não é estática, que tem os seus ritmos,
continue permanente.
as suas estações. A sua apreensão comporta movimentos de abertura
No movimento o símbolo pode incitar-nos a compreender
e de fecho. Só o acesso ao sopro permite atingir um equilíbrio, sempre
primeiro a impermanência, pois cada gesto ou o próprio movimen-
frágil durante a sua existência. A estabilidade manifesta-se quando
to, sendo aparentemente o mesmo, esconde o vazio, e quando existe
a mente está apaziguada; ela permite a passagem para a outra
o vazio existe o não ser. O movimento é ir em direcção à nascente, a Via é isso e só a
margem, que é um para além de várias alternâncias. Lao Tsé bem soube apontá-las:
podemos compreender por meio de um jogo contínuo desta alter-
Trinta raios convergem para o meio
nância que tanto nos atira para o informe, o vazio, como para o que
mas é o vazio do centro
tem uma forma, o que é palpável.
que faz avançar o carro.
E, um outro poeta diz:
Molda-se a argila para fazer vasos,
O si-mesmo é também o outro.
Mas é do vazio interno
O outro é também o si-mesmo.
Que depende o seu uso.
Que o outro e o si-mesmo deixem de se opor.
Portas e janelas rasgam uma casa,
Aí, está o eixo do Tao, a via do meio.
É ainda o vazio Que a torna habitável. O ser dá possibilidades, Mas é pelo não ser que as utilizamos.3
1
Segundo os mestres do movimento, estas seis concordâncias determinam o movimento correcto.
2
Annick de Souzenelle, Le Symbolisme du Corps Humain, St. Jean de Braye, ed. Dangles, 1986.
3
Lao Tsé, Tao Te King, Paris, Alban Michel-Spiritualités vivantes, 1984.
O texto citado define as afirmações pela alternância entre duas evidências. No movimento, habituamo-nos a ver o exterior, ou seja o cheio, e Lao Tsé ensina que os cheios só existem pelos vazios, que
segurar o tessen
Estudo do Mestre Uemura-Shigeru
Karaté Tradicional Em geral, rotação horizontal das ancas na direcção da flecha. 1
A análise elaborada pelo Mestre Uemura-Shigeru , que proce-
Sincronização de todas as partes do corpo utilizando o deslocamento
deu à caracterização das diferentes artes marciais, fornece escla-
do centro de gravidade. Utilização de todo o peso nos golpes, os pés
recimentos determinantes para a compreensão do movimento
estão, relativamente, fixos: importância dada à estabilidade.
50
Ponto positivo: suficiente eficácia a curto prazo em relação
fundamental do Tenchi Tessen.
ao Tai-Chi-Chuan. Técnica relativamente simples com pouca importância dada aos músculos das costas. Ponto negativo: exige uma grande rotação das ancas. A falta de pedagogia ou treino consciente para a explosão, que deve ser procurada através da sensação, torna o movimento ineficaz. Portanto, é necessário tempo para adquirir. Tai-Chi-Chuan Em regra, o ombro avança ligeiramente para a frente; o peito é reentrado e as costas são alargadas. O modo de produzir energia, Fa-Jin, é o seguinte: a energia, Qi, inspirada é relaxada de uma só vez, Karaté Tradicional
Tai-Chi-Chuan
Hsing-I-Chuan
originando uma compressão para explodir. Esta explosão faz rodar o principal centro energético situado no ventre. A força do Jin é libertada e atravessa as costas e o ombro para chegar ao murro. Os centros energéticos dos joelhos, tornozelos e nuca rodam sincronizados com o centro energético do ventre. O queixo levanta-se ligeiramente, como complemento desta forma particular. O tronco torna-se um êmbolo. Ponto positivo: uma percentagem importante de explosão. Ponto negativo: é um processo lento. Hsing-I-Chuan Mesmo sem a deslocação à frente, o golpe do pé que está atrás produz a potência explosiva. O braço está em extensão e a força brota
Boxe Chinês do Norte
Boxe Chinês do Sul
Pa Kua
do ombro. Torna-se como uma lança. Mantendo os pés em direcção
segurar o tessen
ao interior, o Fa-Jin (produzir energia) torna-se possível.
rotação para a direita e aproxima-se, até metade da distância, do
Ponto positivo: para a explosão do centro de energia, Tan dien,
objecto que está em frente. A força da inércia não deve ser bloqueada
e em relação com o Tai-Chi-Chuan, utiliza-se o sistema muscular,
através de uma paragem brusca e o movimento deve ser deixado
tornando o movimento mais rápido.
rodar. É também preciso adicionar uma rotação para a esquerda no
Ponto negativo: obtém-se menos potência do que no Tai-Chi-
antebraço, o que vai permitir percorrer o resto da distância até ao 51
Chuan.
objecto. O gesto deve ser efectuado com a mão aberta, pois o punho
Boxe Chinês do Norte Golpe de perfil na técnica de base Oi-Zuki, em oposição à posição San-Chi do boxe do Sul. Ponto positivo: grande potência de frente, utilização do
fechado não pode produzir a força ideal. Há uma razão que justifica a posição da mão aberta no boxe do Pa Kua: os cinco dedos afastados e a utilização do movimento de cada um dos dedos permitem duplicar a potência da força da espiral. Para o busto e para as duas pernas utiliza-se a mesma técnica
comprimento do braço a 100%. Ponto negativo: vulnerabilidade lateral.
de produzir um movimento de duas espirais cruzadas e orientadas na mesma direcção. Ponto positivo: o sistema de combate deste tipo de boxe foi
Boxe Chinês do Sul Peito ligeiramente arqueado, costas bem direitas. A força é
muito bem estudado no que diz respeito ao contra ataque ou à
produzida por uma contracção muscular de modo a exercer uma
projecção. A esquiva no Aikido parece-se muito com a do Pa Kua,
compressão do Qi, originando a sua explosão. Pouca rotação horizon-
mas com uma diferença principal: no Pa Kua o busto está à frente
tal das ancas. Os músculos das costas são utilizados como potentes
ou atrás de modo a dar peso ao corpo a fim de o desequilibrar; no
molas. Os dois pés deslizam, naturalmente, para a frente.
Aikido o busto deve estar direito, pois dá-se mais importância a esta
Ponto positivo: podem adicionar-se as forças musculares.
posição para o movimento do Qi. Ponto negativo: 80% das técnicas de golpe são efectuadas
Ponto negativo: a rentabilidade compressão/explosão é menor.
com as mãos abertas e, no caso de não se saber bater com a mão Pa Kua A técnica de golpe do Pa Kua utiliza a força produzida a partir
aberta, não há potência em relação aos outros tipos de boxe que facilitam a prática utilizando a rotação das ancas.
de um movimento em espiral, uma rotação ou uma torção. É necessário esclarecer que o movimento é composto por duplas espirais cruzadas e orientadas na mesma direcção. Este movimento paradoxal permite produzir a força com uma grande energia potencial. Conforme aparece no desenho, o braço direito efectua uma
1
Uemura-Shigeru, révue Arts Martiaux, nº 45, Juin/Juillet, Paris, 2000, p. 42.
terceira parte
tenchi tessen — pråtica
58
I
a preparação psico-física
59
Sabemos que o corpo e o psiquismo no homem vivo são in-
necessite de esforço, logo, de energia, esta deverá surgir do meio
separáveis. A energia anima tanto as funções vegetativas do corpo
do corpo, local onde se situa o centro de gravidade. É também ne-
como o seu sistema de relação. É a circulação equilibrada da ener-
cessário aprender a descontrair os ombros e os braços, de modo a
gia que, geralmente, reflecte o estado de saúde do indivíduo.
permitir que as mãos adquiram uma sensibilidade adequada.
Insistindo uma vez mais na respiração, é da profunda expiração,
A preparação do Tenchi Tessen é uma ponte entre o corpo e a
localizada no baixo ventre, que depende a descoberta do centro de
mente. É um pressuposto bem distante da concepção ocidental
1
gravidade através do corpo: a secreta flor de ouro dos chineses, o ki,
predominante, que entende a preparação, ou aquecimento, como
a energia.
uma prática puramente física ou um conjunto de exercícios mecâ-
A preparação do Tenchi Tessen desenvolve-se no silêncio. O
nicos. Contudo, aqueles que persistirem acabarão por constatar um
silêncio e o esforço são as dimensões naturais tanto do repouso co-
melhoramento do seu estado físico e mental. A respiração e o gesto
mo da actividade. Esta preparação, quando banhada no silêncio e
tornam-se mais fluídos e harmoniosos, o estado de espírito modi-
regida pelo esforço, conduz sempre a uma purificação da actividade
fica-se e torna-se mais vivo, a capacidade de concentração aumenta
mental. Deste modo a nossa prática torna-se a expressão correcta
e o praticante sente-se mais habitado no seu corpo.
da nossa inserção no cosmos. O silêncio é nudez do ser, abertura à vibração do todo. O
Durante a prática devemos utilizar o corpo como um arco, os movimentos do leque são as flechas e o nosso eu profundo é o alvo.
silêncio não é ausência de barulho, é a possibilidade dada ao corpo de reencontrar a sua condição justa, o seu centro. Mergulhado na experiência interior, o silêncio é também o veículo natural da
A abertura do tessen
comunicação, mas o significado principal da prática do silêncio é concentrar-se aqui e agora, no instante presente. O silêncio é o meio mais poderoso e natural de alargamento do campo da consciência, e não é por acaso que aqueles que meditam o respeitam.
A primeira forma da técnica de abertura/golpe do tessen utiliza a força produzida a partir de um movimento em espiral2. Como já referido, o movimento do tessen é composto por
Durante a preparação, um dos objectivos é o de modificar a
duas espirais cruzadas que se completam e orientam na mesma
fonte das nossas informações sensoriais e, assim que um gesto
direcção e, durante a abertura do leque, a força de inércia não deve
a preparação psico-física
ser bloqueada, antes deve ser utilizada e deixada rodar.
Movimentos de base
Neste movimento respeita-se o princípio Sei-Tai, o do corpo equilibrado. O olhar deve estar no plano horizontal. É importante
Os movimentos de base do Tenchi Tessen inspiram-se nos
desenvolver a percepção horizontal, pois ela dá-nos uma visão global
elementos da natureza, como por exemplo o Sol e a Lua, e nas no-
do nosso corpo no espaço. A base desta postura é a verticalidade do
ções de espaço e de tempo, como por exemplo a saudação às oito
busto e a horizontalidade do braço direito, que segura o tessen. Esse
direcções do espaço.
60
braço segue uma ligeira rotação para a direita, numa espiral interna,
Sabemos, graças às ciências humanas em geral e à psicologia
e o cotovelo é reentrado. É um movimento paradoxal, da esquerda
em especial, que a identificação do homem com as coisas que o
para a direita, que arrasta o fluxo de energia interna para o exterior,
rodeiam está profundamente ligada ao conhecimento da sua vida,
produzindo uma força inesperada no impacto, ou seja na abertura,
o que lhe permite tomar consciência de que ele é um dos elemento
favorecendo a livre circulação do Ki no corpo. Quanto ao braço
do Universo, mas não o único. Essa consciência reflecte-se nas suas
esquerdo, colocado atrás, encontra-se em extensão, com a mão
aspirações mais secretas e profundas.
estendida, os dedos juntos e a palma dirigida para a Terra. A função do braço esquerdo é a de suporte para a suspensão e o equilíbrio.
Na interdependência e aliança com as forças naturais, o homem sente-se regenerado e as suas energias mudam, revita-
Por vezes, são necessários anos de prática para se compreen-
lizando o seu corpo e agindo no seu psiquismo. Outro elemento
der esta postura e impregnar-se dos seus eixos precisos. Neste livro
importante é a consciência do ritmo respiratório, à imagem do fluxo
podemos dar apenas algumas indicações, pois a verdadeira descrição
e refluxo do mar.
só pode ser feita pelo kuden, a transmissão da linguagem do corpo,
A canalização da energia interna nos movimentos de base,
que é também uma transmissão oral, e pelo hiden, que é o ensino
provocada pela respiração diafragmática, aumenta o vigor do
essencial, apoiado numa prática consistente.
praticante, habilitando-o a responder corporal e psiquicamente aos vários exercícios que compõem uma aula de Tenchi Tessen. Tais movimentos contribuem para reencontrar os gestos do quotidiano, frequentemente esquecidos, devido ao ritmo da vida moderna. Da dinâmica deste conjunto de movimentos brota um ambiente propício à serena comunhão do corpo e do espírito, baseada no respeito mútuo existente no seio do grupo de praticantes de Tenchi Tessen. Esta comunhão, por sua vez, estende-se a tudo aquilo que os rodeia. Segue-se uma rápida exposição sobre o simbolismo dos dois
Tessen
elementos naturais de base, a Lua e o Sol.
a preparação psico-física
A Lua A lua é por excelência o astro dos ritmos da vida: nasce, cresce, mingua, morre durante três noites e depois renasce. O seu símbolismo alarga-se a tudo o que ela controla ou parece controlar: as águas, a fertilidade, o ciclo feminino e, por fim, o tempo. 61
Neste movimento, o praticante avança a perna esquerda dobrando-a, e a perna direita encontra-se estendida, a bacia ligeiramente virada para a frente. A mão esquerda repousa na coxa esquerda, com o braço direito ele descreve um meio círculo, de frente para trás, abrindo o tessen. O peso do corpo segue o movimento do braço direito, numa alternância de cheio/vazio. O Sol No Taihinya Upanishad aparece a afirmação: Aquele que reside no homem e reside no Sol é um só 3. Foi nesse estado de espírito que
surgiu este movimento. Na sua simbólica e na mitologia, o Sol foi sempre o distribuidor da luz e da vida; para muitas culturas antigas, ele representa a verdade, o olho único e todo poderoso da justiça e da igualdade, a fonte de liberdade, de compaixão e de iluminação. A chama olímpica que é levada por um antigo atleta até ao novo local da realização dos jogos é símbolo e vestígio do culto solar. O Sol esteve sempre enraizado, por vezes sem que se saiba, em numerosas artes, para além do tempo e do espaço. Neste exercício o praticante, em simultâneo com a abertura do tessen, desliza o pé direito à frente, a partir do seu centro e em direcção a uma circunferência imaginária, descrevendo progressivamente um círculo e sem perder o centro desse mesmo círculo. A construção do círculo é feita em 16 tempos, no sentido dos ponteiros do relógio e, com efeito, o praticante desenha um Sol com o seu movimento.
1
Lu Tsou, Le Secret de la Fleur d’Or, Paris, ed. Librairie de Médicis, 1982.
2
Nas artes marciais mais conhecidas, este movimento pode aparentar-se com a arte chinesa do Pa Kua aprofundada no estudo do Mestre Uemura-Shigeru. V. Infra, p. 51.
3
E. Marcault (tradução), Neuf Upanishad, Paris, ed. Adyar, 1923, p.118.
62
II
os educativos
63
No Tenchi Tessen, os educativos, ou taiso, são movimentos
Garuda
que se destinam a uma preparação respiratória associada ao movi-
Na mitologia indiana, Garuda é uma ave fabulosa que simboliza
mento, que ultrapassa uma simples preparação física. Estes exer-
a palavra solta, e representa os ensinos esotéricos dos Védas. Um
cícios podem ser considerados como uma sinfonia de movimentos
hino destes textos sagrados é associado a essa imagem:
— flexíveis, fluidos, em espiral — executados com o tessen, e visam
Rodeados de vento, os ascetas vestem-se de andrajos castanhos.
uma educação corporal.
Seguem o arrebatamento do vento,
A riqueza gestual destes educativos prepara o praticante para
Assim que os deuses entraram neles.1
a execução de outras técnicas, como por exemplo os temas e os kata.
A águia, a que pode ser comparada Garuda, é a rainha das aves,
Trata-se de uma série de exercícios que ultrapassam as figuras codi-
emblema da vitória, triunfo do Espírito sobre o intelecto. Para o Budo,
ficadas, ajudam à compreensão corporal, abrem a porta à libertação
a visão da águia simboliza a visão penetrante: Ver tudo e não estar
do corpo, ao seu desabrochar, e permitem o despertar e a expres -
em parte alguma. A visão interior é importante e, no início da prática,
são das pulsões corporais sãs, geradoras do equilíbrio interior.
representa para o praticante o modo de desmascarar as armadilhas do ego ou questões como: Quais os objectivos da prática? Onde está
O Trovão
o meu centro?
O primeiro movimento é o acolher do sopro, que se transforma
Aristóteles fala da visão extraordinária da águia que olha o Sol
em trovão. Executa-se nas oito direcções do espaço, tornando-nos
de frente. O sentido dado pelo filósofo foi mais tarde alargado a
disponíveis para cada uma delas. A inspiração e a expiração liga-
Cristo, que era a águia capaz de olhar o Pai de frente. Na psicologia
das ao relaxamento muscular no centro do corpo implicam a ideia
junguiana, a história de Afrodite e de Psique2 exprime a importância
de acolher as oito direcções, tal como a respiração fisiológica que
de ter uma visão mais larga perante a vida, logo, maiores possibili-
tudo penetra, segundo as necessidades do organismo. O intelecto
dades que serão função da nossa própria visão. É um meio de se
ou a vontade consciente não devem interferir na acção, pois isso
inserir na acção de um espaço-tempo mais aberto: um centro que
impediria de imediato o jogo subtil das interacções, o equilíbrio per-
se torna um lar adquire uma direcção cósmica e as acções do homem
feito dos sopros. O dom do inconsciente é o abandono em cada uma
tornam-se sagradas.
das direcções.
os educativos
O Cavaleiro
dos pés é bastante maior, mas a tomada de consciência da postura
Um cavaleiro é aquele que domina a sua montada.
é indispensável para compreender a execução da postura do cava-
O que significa que é indispensável estar primeiro no coração,
leiro do Tenchi Tessen. Ainda, sem deslocar os ombros e, principal-
em seguida, no corpo. Antes de executar este educativo, devemos estudar a postura
mente, sem arquear o peito, levar os braços um pouco atrás e relaxar os cotovelos; as mãos apoiam-se nas coxas; virar as palmas das mãos
64
do cavaleiro na sua fase estática. Nela encontra-se uma semelhan-
para baixo desenvolve a tomada de consciência da Terra.
ça com uma postura presente na arte chinesa do Tai-Chi-Chuan.
Quanto à respiração, inspiração, expiração e pausas respira-
Apesar das diferenças de execução no Tenchi Tessen, existem pontos
tórias têm respectivamente a duração máxima de 15 segundos, de
comuns: o peito não deve estar arqueado, a cabeça e a nuca devem
modo a executar uma respiração completa, ou mais de uma, por
estar direitas e no alinhamento da coluna vertebral.
minuto. O diafragma deve estar relaxado e a respiração deve ser len-
A posição do cavaleiro é uma postura de meditação respiratória,
ta. A língua encostada ao palato neutraliza a vaga dos pensamentos.
como uma asana do Yoga. A sua fase estática tem a duração de 3 a
Com a prática desta postura, a parte inferior do corpo torna-
10 minutos, exige resistência física sem forçar, e é alcançada como
-se sólida e equilibrada; a energia dos quatro membros do corpo e
segue: pés juntos; virar as pontas dos pés para o exterior; passar o
da totalidade do corpo aumenta e transforma-se; o sopro, Ki, torna-
peso do corpo para as pontas dos pés e virar os calcanhares para o
-se substancial.
exterior; em seguida, rodar as pontas dos pés para o exterior de modo
De modo a compreender a execução deste educativo é neces-
a que os pés fiquem paralelos; o afastamento dos pés ultrapassa
sário reter duas particularidades: o exercício, no momento em que
ligeiramente a largura dos ombros. Neste educativo o afastamento
se abre o leque, reproduz o movimento do arqueiro ao estender o seu arco; a cabeça roda uma vez para a direita e volta logo de seguida à posição inicial, sendo este movimento da cabeça acompanhado pela intenção no olhar. Em relação a esta postura, há algumas observações que merecem ser assinaladas: a) existe o estiramento lateral do braço direito, do tórax, dos ombros e da cintura escapular, que são zonas de importantes pontos de acupunctura; b) é estimulada a circulação do sangue na bacia e no tórax, o que contribui para a eliminação das dores nos ombros e na nuca; c) a inspiração acompanha o primeiro e o segundo momento do exercício; em seguida dá-se a pausa respiratória, após o que, na
os educativos
expiração, o braço baixa ao nível do ombro e abre-se o tessen; por
que o labirinto só considera as dificuldades no percurso centrípeto,
último, segue outra pausa respiratória e executa-se o movimento de
é também necessário considerar o desenrolamento centrífugo da
rodar a cabeça;
espiral com o seu sentido de desenvolvimento, de evolução, onde a
d) o voltar à posição inicial é acompanhado por uma inspiração.
própria espiral simbolizaria a viagem da alma após a morte.
Quanto à circulação da energia, salientam-se algumas carac-
Para despertar o corpo para a espiral, é oportuno partir da 65
terísticas:
compreensão do círculo. A sugestão que costumo dar aos meus alu-
a) a força sai da coluna vertebral; as pernas seguem a anca, koshi, ao executar os dois movimentos em semi-círculo;
nos é a de desenharem círculos com o corpo, sendo esses o começo da espiral.
b) quando o movimento parece ter terminado, a energia não é interrompida, ela segue a espiral e a intenção é contínua;
No movimento, a espiral liga sem ruptura o real ao imaginário. Fazer a espiral com a compreensão do seu símbolo quer dizer que
c) o praticante deve ser flexível e duro, flexível como o bambu
podemos viver a espiral com o corpo. Compreenderemos então que
e duro como o aço. Ele deve compreender a noção de estender-se e
não se trata apenas de uma consideração do espírito, mas antes de
desdobrar-se à semelhança do leque e, em seguida, de juntar-se e
uma fonte dinâmica: o corpo físico e a mente encontrar-se-ão
fechar-se a fim de alcançar a subtileza;
energeticamente modificados e ter-se-á adquirido uma maior
d) a não interrupção da energia e a intenção contínua são
consciência das relações que unem o corpo e o espaço.
válidas para todos os movimentos do Tenchi Tessen. A Espiral No Tenchi Tessen, a noção da espiral é imprescindível, e surgiu de forma natural, no meu estudo do movimento ligado às artes do Budo, principalmente o Aikido. A noção de eixo do mundo, ou eixo cósmico, que se ergue no centro do Universo, está muito divulgada. O diagrama do Universo é muitas vezes representado na forma de uma montanha cósmica de formas geométricas e simétricas em relação a este eixo, como
No centro do
por exemplo o monte Meru, na Índia. O ponto onde o eixo do mundo
furacão, a calma.
3
trespassa a base da montanha encontra-se, segundo Cook , no centro de uma espiral lisa, que representa o caminho de iniciação que
1
Maurice Cocagnac, Les Racines de l’Âme Indienne, Paris, ed. Armand Collin, 1984, p.189.
leva ao centro. É convicção do autor que o simbolismo da espiral es-
2
Carl Gustav Jung, L’Homme et ses Symboles, Paris, ed. Robert Laffont, 1964.
teja muito próximo do simbolismo do labirinto: Da mesma maneira
3
Theodoro Andrea Cook, The Curve of Life, New York, Dover Publications Inc., 1979.
66
III
os temas e a reflexão simbólica
67
— Deveis manter o equilíbrio sobre a vossa perna direita, como
consciente libertou-se. Agora podeis preocupar-vos com a colocação
se eu varresse a vossa perna esquerda. A perna direita deve inclinar-
do vosso corpo em relação ao corpo do parceiro. É o momento de
se para retomar outra gravidade, como se o pé direito esmagasse o
trabalhar com mais intenção, de modo a reforçar a relação com o
chão. Deste modo a perna direita fica por um breve instante enraizada
outro, mas isso levará tempo, talvez quatrocentos
na terra, de modo a assumir uma outra atitude.
anos! É ali que tudo começa. Primeiro, os vossos comandos nervosos
— O Mestre julga que é fácil preocuparmo-nos com várias coisas ao mesmo tempo? Pensar no equilíbrio, no tessen, na respiração e ainda continuar a controlar a distância do parceiro?
vão parecer mudar de origem e ganhar
e cinquenta
uma nova qualidade de
integração. — É uma forma de passagem?
— Só conseguireis realizar este movimento corrigindo um
— Se quiserem, é. Passa-se de um movimento analítico a uma
elemento de cada vez e após numerosas repetições. Será preciso
acção global. É belo. É como quando se termina uma escultura. E,
esperar, ter paciência e uma dose de esforço adequado, onde todos
para quem observa do exterior, o movimento dá uma impressão de
estes elementos se integrem numa coordenação global. Nessa altura,
harmonia, de espontaneidade que brota de si mesmo. Mas o verdadeiro
chamarei a isso movimento.
ensino só começa a partir de uma boa execução do movimento.
— Esse movimento tem um nome? — Para simplificar, vou servir-me de uma imagem que conhecem. Fechem os olhos e pensem no deus Shiva da mitologia indiana, na
No nosso quotidiano estamos rodeados por símbolos e, na
sua forma de dançarino, Nataraja. Quando o vosso parceiro abrir o
maior parte das vezes, não temos consciência disso. Por exemplo,
tessen, não tenham medo do contacto. Inclinem a perna esquerda
as letras e as palavras são símbolos que os nossos pensamentos e
conforme as indicações já dadas, sigam o movimento e deixem agir.
ideias revestem a fim de transpor o passo de uma expressão virada
Deste modo, passareis de um conjunto de movimentos analíticos a
para o mundo exterior.
uma acção global. — Sim, começamos a sentir o movimento. A imagem de Nataraja ajuda. — Ao terem corporizado a imagem de Nataraja, a atenção
Os temas na arte do Tenchi Tessen, são como símbolos, dos quais apreendemos um certo nível; depois, o próprio símbolo, conduzido pela compreensão do utilizador, escala outros níveis. As emoções, vividas no corpo, são forças violentas e nem
os temas e a reflexão simbólica
sempre temos a noção do impacto que elas têm no corpo e na mente.
O encontro é um dos temas importantes do Tenchi Tessen. Se
Esta simbólica, que encontramos nas expressões da linguagem
no seio da nossa Terra a existência de um organismo vivo exige que
corrente, tem na nossa vida um peso maior do que admitiríamos.
ele se relacione com outros organismos, os seres humanos têm
No entanto, esse mesmo simbolismo pode ajudar-nos a compreender
particular necessidade de estabelecer constantes relações com os
o nosso inconsciente. Ao passar pelo estado da reflexão, vemos
seus semelhantes e, por consequência, dependem da sua faculdade
claramente que as ideias não têm forma intrínseca, apesar de o
de comunicação, que se encontra extremamente desenvolvida.
68
símbolo lhes atribuir uma.
A aptidão para comunicar existe também no mundo animal,
Corpo e mente são dependentes, interdependentes e inter-
onde é frequente a utilização de uma espécie de código linguístico
activos. É o que ilustra a utilização dos símbolos. A título exem-
para as trocas entre indivíduos de uma mesma espécie. Quando se
plificativo, vejamos como é que se cria o som ou a melodia. A melodia
fala da linguagem entende-se, geralmente, uma comunicação fun-
depende do instrumento, do gesto, do movimento e da respiração
dada na emissão de sons — a própria etimologia da palavra, deri-
do instrumentista. Nenhum dos três elementos pode produzir,
vada do latim lingua, o indica, fixando-se sobretudo num dos ele-
isoladamente, uma melodia ou um som, e cada um depende do jogo
mentos que compõem os órgãos fonatórios, a língua — mas existem
de interacção com os outros.
outras linguagens, gestuais e codificadas, como as utilizadas por
Aprender uma técnica do Tenchi Tessen e compreender a interconexão corpo-mente-som ou palavra não é fácil. É necessário que
surdo-mudos, por certos profissionais (guardas de trânsito, por exemplo) ou por algumas tribos.
a linguagem não seja redutível a uma troca de palavras com o
A educação dos jovens animais, assim como a das crianças e
outro, e o mesmo se aplica aos nossos discursos interiores, quer
dos adultos da espécie humana, repousa na imitação de gestos e
sejam elaborados em voz alta ou mentalmente.
comportamentos complexos. A palavra educação, do latim educare,
Compreender um tema e o seu símbolo é tomar consciência
significa conduzir para fora. Uma verdadeira educação processa-se
das suas interacções. Cada movimento possui um segredo que é
fora da matriz psíquica da família, a fim de encontrar o seu lugar
necessário decifrar e, através da prática incansável, tentam-se ul-
num meio mais vasto.
trapassar os limites da nossa compreensão. Quando se executa um tema a dois ou individualmente, desenha-se com o corpo uma forma que pode ser simbólica e onde
Posta esta premissa em relação ao tema o encontro, é necessário compreender que a comunicação com o tessen exerce-se a três níveis: o da informação, o do psiquismo e o da acção.
participam a respiração, a mente e a vivência de cada um, que reli-
• A informação deve ser memorizada. Exteriormente, ela diz
gam os vários aspectos de nós mesmos com a fonte de Energia que
respeito à maneira como se deve responder aos acontecimentos
os cria e suporta.
físicos; interiormente, aos sentimentos e pulsões biológicas. • Pela palavra psiquismo, entendo a força unificadora que
O Encontro
aproxima os membros de uma comunidade. É o que mantém a coesão
os temas e a reflexão simbólica
no interior do campo psíco-activo. É também tomar consciência da
a filosofia da pessoa deve estar contida naquela mútua interrogação.
nossa própria unidade.
(...)
• A acção é o gesto adequado. A relação entre interiorização
O tempo das pessoas é infinitamente raro e vazio em com-
e acção é um tema central na arte do movimento. O movimento, o
paração com o tempo das coisas. Vivemos adormecidos num mundo
gesto correcto é, pois, ter plena consciência na acção.
em sono. Mas quando um “tu” murmura ao nosso ouvido é o safanão 69
O movimento designado como o encontro deve ser efectuado
que sacode as pessoas: o eu desperta pela graça do “tu”. A eficácia
num espírito de cooperação e em harmonia com o que nos rodeia.
espiritual de duas consciências simultâneas, reunidas na consciência
Poderia o nosso movimento fundar-se no Grande Sopro, no Ki, ou
do seu encontro, escapa de súbito à viscosa e contínua causalidade
no Divino? O místico Mestre Eckhart dizia “o fundamento divino”.
das coisas. O encontro cria-nos: nada éramos — ou apenas coisas —
Sem estes três níveis de comunicação o encontro torna-se um gesto
antes de ser reunidos. (...)
sem alma.
Ao próprio nível da linguagem, Martin Buber mostra-nos as
O encontro contempla um ser na sua relação com o outro e
duas nascentes da palavra que, evidentemente, são as duas nascentes
pode ser efectuado de várias maneiras, podendo ser abordado
do pensamento: de um lado as coisas e de outro as pessoas, o isso e
por diferentes perspectivas. Do ponto de vista filosófico, Gaston
o tu. Mas as milhares de nascentes murmurantes que nos chegam
Bachelar, na sua apresentação de Martin Buber, conduz-nos mara-
das coisas não são mais do que afluentes da nascente central que
vilhosamente:
nos chega do tu.
Um ser existe pelo mundo que te é desconhecido e, de repente, num encontro, antes de o conhecer, tu reconhece-lo.
Que me importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra se eu estou sem amor e sem lar! É preciso ser dois — ou pelo menos ter sido
Na noite estabelece-se um diálogo que, devido a uma certa
dois — para compreender um céu azul, para revelar uma aurora! As
entoação, empenha a fundo as pessoas: “És tu, Miguel?” E a voz
coisas infinitas como o céu, a floresta e a luz só encontram o seu
responde: “És tu, Joana”. Ninguém sente a necessidade de responder:
nome num coração amante. E o sopro das planícies, na sua doçura e
“sim sou eu”. Porque se o eu interrogado transcendesse a interrogação,
na sua palpitação, é, antes de tudo, o eco de um suspiro enternecido.
se se esquivasse à graça infinita do encontro, cairia no monólogo ou
Deste modo, a alma humana, rica de um amor eleito, anima as
na confissão, naquilo que louva ou no que lamenta, na insípida
grandes coisas antes das pequenas. Ela trata por tu o Universo assim
narrativa dos desejos e das penas. Diria aquilo que era antes de dizer
que sentiu a embriaguês humana do tu (...). É aqui que intervém a
aquilo que é, diria aquilo que é antes de dizer aquilo em que, pelo
mais preciosa categoria buberiana: a reciprocidade. Nunca
encontro, se tornou.
encontramos esta reciprocidade no eixo do eu-isso. Ela só aparece,
O instante da pessoa humana totalmente privado deste vector de futuro que a simpatia acaba de lançar, esse instante perderia a sua força, seria amolecido e amortecido. Segundo Martin Buber, toda
verdadeiramente, no eixo em que o eu-tu oscila ou vibra.1
O Pássaro A vertente simbólica de o pássaro revela uma abertura ao es-
os temas e a reflexão simbólica
paço, ao sopro. À semelhança da cabeleira dos Upanishad (pre-
esquerdo levantado, agarrando um tambor, damura, na mão direita
sente também no caractere chinês Do) e do cavaleiro que cavalga o
superior, e uma chama, a do conhecimento, na mão esquerda supe-
vento, a ave é aquela que celebra as núpcias entre Céu e Terra, entre
rior. As duas outras mãos fazem o gesto de ausência de medo (a mão
o que está em cima e o que está em baixo.
direita) e o de apontar o solo (a mão esquerda). Uma serpente está
Este tema estimula a ascenção do homem para que ele reen-
enrolada à volta do braço direito da frente. Uma pele de tigre cinge-
contre o seu estado original: a ave, desdobrando o seu voo em toda
-lhe os rins, ondas do Ganges são representadas escorrendo da
liberdade, abrindo as suas asas e sorrindo à gravidade, convida o
cabeça. O seu rolo de cabelo na nuca, mukuta, está ornamentado
homem a levantar a cabeça em direcção aos céus.
com a imagem da lua. Usa brincos de homem e de mulher a fim de
70
mostrar a ambiguidade da sua natureza. Os seus braços, pernas e Nataraja Nataraja é uma forma de Shiva representando uma dança que produz um ritmo capaz de criar o mundo fenoménico. Dan-
tornozelos estão ornamentados de pulseiras. Esta imagem está frequentemente envolvida por um halo de chamas, jvala-tiruvâshi, significando que ele queima os seus desejos pelo fogo.
çando, ele esmaga o anão Mulayaka, que simboliza a ignorância
A dança de Nataraja faz estremecer todo o cosmos. Os três
humana. Nataraja tem quatro braços, e é representado com o pé
mundos — o céu, a terra e os infernos — são abalados. Todo o acto puro, que apenas exprime o poderoso instinto de vida, assemelha-se a uma força cega que varre tudo à sua passagem. Contudo, não é a vontade de Shiva que dança, mas a sua natureza. Aos olhos dos homens, preciosa é a felicidade prudente de manter o confortável status quo, e natural é a mágoa diante das obras da morte. Somos uma energia em acção dentro da rede da grande mestra da ilusão, Maya, que faz balbuciar e oscilar a criação. Quem se preocuparia, sem sucumbir à loucura, de incriminar o sol pelo seu ardor? Aqui ele aquece, ali calcina, por toda a parte ilumina. E Nataraja dança.
A dança criadora de Nataraja
1
Gaston Bachelar, La Poétique de l’Espace, Paris, ed. P.U.F., 1981.
glossário Notas: Sânscrito Japonês Chinês
(sâns.) (jap.) (chin.)
72
Agni (sâns.)
samurai e é constituído pelo conjunto dos princípios espirituais e
Na mitologia indiana, Agni é o deus do fogo. É uma das grandes
morais que guiavam a vida dos cavaleiros japoneses de outrora.
divindades dos Védas. Segundo a tradição védica, o fogo não se
Actualmente o conjunto das várias Artes Marciais é designado
limita ao elemento físico designado por esse nome, mas também
pelo termo Budo.
representa o príncípio de vida, de calor, de consciência que se oculta
Budoka (jap.)
em todos os seres.
Praticante de Budo.
A-himsa (sâns.)
Bushi (jap.)
Termo que se refere à noção de não violência. É um dos cinco eternos
O guerreiro, aquele que cumpre o código de honra dos samurais.
princípios éticos que as Leis de Manu dizem ser obrigatórios para
Bushido (jap.)
todas as castas do povo indiano, particularmente, para os brâmanes.
Código de honra dos samurais. Literalmente, via dos guerreiros
Aikido (jap.)
(bushi). Este termo designa as qualidades físicas e morais que de-
Ai: harmonia; Ki: energia; Do: via. Significa via de realização física,
vem ser o apanágio dos bushi.
mental e espiritual pela união harmoniosa da energia/espírito.
Cha-no-yu (jap.)
Esta via, embora assente em princípios milenários, foi estruturada
Cerimónia do chá. Literalmente, a água quente para preparar a
e codificada recentemente, tornando-se numa das mais novas Artes
emulsão de pó de chá verde (macha, cha) e designando, por ex-
do Budo. O seu fundador foi Morihei Ueshiba (1880-1969).
tensão, um grupo de pessoas reunidas em torno de uma chávena
Asana (sâns.)
de chá, num pavilhão caracterizado pela elegância sóbria. A ceri-
Termo associado à prática do yoga e que significa postura. Segun-
mónia do chá foi estritamente codificada a partir do séc. XVI.
do o yoga, a postura deve satisfazer duas exigências: ser estável e
Dan (jap.)
agradável e eliminar a agitação corporal de modo a concentrar as
Grau. Este termo é usado no sistema actual de graduações das Artes
energias dispersas.
Marciais e só é utilizado a partir da graduação que habilita o pra-
Budo (jap.)
ticante a usar o cinto preto (1º dan).
Substantivo composto pelas palavras Bu: cavaleiro, etimológicamente
Derviche
aquele que pára as lanças, e Do: a via, o caminho. O Budo é a via do
Monge sufista.
glossário
Derviche rodopiador
Hanshi (jap.)
Monge sufista que utiliza a dança e a música como meio de evolu-
Título honorífico dado aos grandes mestres de Artes Marciais. O
ção espiritual.
Hanshi irradia o seu Eu espiritual superior.
Dojo (jap.)
Hara (jap.)
Substantivo japonês formado pelas palavras Dô, derivado do chinês
Literalmente: barriga. Ponto onde se reúne e de onde emerge a energia
Tao, ou seja a Via, e Jo, que designa o lugar reservado à prática de
vital. Isto é, o lugar onde tomamos consciência do equilíbrio estático
várias disciplinas de formação, como o Zazen e algumas Artes
e das possibilidades cinéticas. Este ponto corresponde ao centro
Marciais. A união dos dois lexemas gera o significado lugar onde
anatómico do ser humano, e é, também conhecido por Tan tien;
se pratica a Via.
Tanden; Centrum; Seika no iten.
Flabellum (latim)
Hsing-I-Chuan (chin.)
Grande leque de plumas de pavão ou de folhas de lótus, adapta-
Significa punho do corpo e do espírito. Arte Marcial da Escola de
do a um longo cabo. Era utilizado na antiguidade, preservado
Wushu, que tem a particularidade de pertencer, em simultâneo, aos
como símbolo nos ritos orientais e na liturgia romana durante as
estilos externos (wai chia) e internos (nei chia).
festas solenes.
Iai-Do (jap.)
Hachimaki (jap.)
I (iru): unir-se, universo; Ai (awaresu): união, harmonia; Do: caminho,
Designado também Tenugi, é uma peça de pano, tendo muitas
via. Significa caminho de harmonia com o universo. Arte Marcial que
vezes inscrito o nome do Dojo ou uma caligrafia de um poema. No
utiliza o trabalho com o sabre como prática.
Kendo, o hachimaki é colocado de maneira a proteger a nuca do
Judo (jap.)
atrito provocado pelos cordéis que servem para segurar o men, o
Ju: não resistência; Do: caminho. Arte Marcial moderna estabelecida
capacete. Em outras artes do Budo é utilizado para impedir que a
por Jigoro Kano (1860-1938).
transpiração escorra pelo rosto.
Kagami Biraki (jap.)
Hakama (jap.)
Kagami, significa espelho, no shintoísmo é usado para simbolizar
Traje dos Bushi. O Keiko Hakama era o tipo de traje usado pelos
o nosso espírito; Biraki, significa abrir, como abrir uma porta, ou
cavaleiros. Consiste numa espécie de saia-calça comprida. Também
ainda, partir para abrir, como partir um muro, que se encontra no
marca o compromisso formal do praticante na via do Aiki.
fundo de um túnel, para ver o que está do lado de lá. É a festa tra-
Hakko-Ichin (jap.)
dicional dos dojos japoneses, celebrando o Ano Novo.
“Oito direcções, um só tecto”; expressão atribuida por Nikon Shoki
Karate (jap.)
ao mítico imperador Jinmu, para simbolizar a reunião das tribos que
Kara: vazio; Te: mão; o caminho da mão vazia. Arte Marcial origi-
vieram dar origem ao Japão. Noutras épocas, esta expressão foi usada
nária da ilha de Okinawa no Japão.
73
para justificar o expansionismo japonês.
glossário
Kata (jap.)
por Kan-ami e seu filho Zeami, nos séc. XIV e XV, a pedido do shogun
Este termo significa movimento do actor e ainda é usado no teatro
Ashikaga Yoshimitsu.
Nô e Kabuki. Aplicado às Artes Marciais, designa um conjunto de
Oi-Zuki (jap.)
formas rituais que tem por finalidade pôr em prática os seus princí-
Golpe dado com o punho fechado. Técnica utilizada no Karate.
pios fundamentais. Kata é uma sequência composta de gestos
Qi (chin.)
formalizados e codificados, tendo por base um estado de espírito
Energia (o mesmo que ki em japonês)
orientado para a realização do caminho, da via (do).
Ronin (jap.)
Keikogi (jap.)
Literalmente, o homem que flutua ao sabor do vento. Designava ori-
Traje para a prática do Budo, composto por casaco, calças e cinto,
ginalmente os agricultores que, não tendo terra, trabalhavam em
cuja cor define a graduação do praticante.
terras alheias e em diversos locais. Posteriormente, passou a ser usa-
Kendo (jap.)
do para designar o samurai que, por algum motivo, ficava sem
O caminho da espada. Arte Marcial desenvolvida a partir do kenjutsu.
mestre, sem suzerano.
No Kendo é usado o shinai, espada, formado por quatro pedaços de
Samkhya Yoga (sâns.)
bambu polido e fixos com tiras de couro.
Samkhya significa, literalmente, número, conta. É o mais antigo dos
Kendoka (jap.)
seis principais sistemas (darçana) filosóficos da Índia. Esta escola
Praticante de kendo.
define o conhecimento do ponto de vista metafisico e cosmológico.
Kinomichi (jap.)
Samurai (jap.)
Arte do movimento criada por Masamichi Noro.
Termo derivado de sabuna, que significa, literalmente, estar ao lado.
Kokyu-nage (jap.)
Este termo é usado impropriamente para designar um cavaleiro.
Kokyu, respiração; Nage, projecção. Técnica utilizada no Aikido e
Seika tanden (jap.)
que permite projectar o parceiro através de um movimento suave.
Termo associado ao Hara. Seika, lugar de nascimento, casa natal;
Significa também a força que emana do ki (energia).
Tanden, bacia, fonte de riqueza. Lugar onde aparece a vida.
Naginata (jap.)
Sensei (jap.)
Arma usada no Japão desde o período Heian (794-1184). Espécie
Literalmente, aquele que nasceu antes. Designa o professor.
de foice com um cabo comprido. É uma Arte Marcial, essencial-
Seppuku (jap.)
mente, praticada por mulheres.
Suicídio ritual dos samurais. Ritual de origem chinesa, introduzido
Nô (jap.)
no Japão no séc. XVI, durante uma guerra civil e consiste em pra-
Abreviatura de Sarugaku no Nô. Forma aristocrática de espectáculo
ticar uma incisão ao nível do abdomen, da esquerda para a direita
cantado e dançado, com origem nos dramas de Kagura, de Sarugaku
e, em seguida, subir a ponta do sabre até ao coração.
74
e nas danças populares (dengaku, mai). Esta forma de teatro foi criada
glossário
Sesshin (jap.)
mãos. É uma Arte Marcial chinesa que utiliza o princípio da alternância
Literalmente, recolher, tocar o espírito. Período intensivo de medi-
do cheio/vazio, do Yin/Yang.
tação, com a duração de vários dias.
Taiso (jap.)
Shintô (jap.)
Termo que designa um conjunto de exercícios que prepara o físico,
Literalmente, via/conduta (to ou do) dos deuses (shin ou jin). Se-
a respiração e a mente para um trabalho mais elaborado. No caso do
gundo Delumeau, remete para um conjunto diversificado de crenças,
Tenchi Tessen, prepara o praticante para o trabalho dos temas, kata
de cultos, de concepções do mundo e do universo que prevalecem
e coreografias.
no arquipélago japonês de uma maneira flexível, sem esforço de
Tan dien (jap.) ou Tanden (jap.) ou Tan tien (chin.)
sistematização, desde a antiguidade. Na sua acepção mais antiga,
Campo de cinábrio. Expressão de origem taoista que designa o
exprime o mundo religioso do Japão pré-búdico. Este shintô, de-
ponto de encontro de todas as energias.
nominado puro, original, nacional, e até arcaico, materializou-se
Ten-chi-jin ou Tatsu Jin (jap.)
inicialmente pelos seus lugares de culto — elementos da natureza
Literalmente, homem entre Céu e Terra. Termo que designa o homem
ou simples oratórios temporários desfeitos após cada cerimónia —
realizado.
antes de qualquer espécie de dogma lhe conferir a base ideológica
Upanishad (sâns.)
que não possuía.
Literalmente, aproximação; Upa: perto; Nishad: sentado. Textos
Shiva (sâns.)
anónimos em prosa ou em verso, representando ensaios espontâneos
Na mitologia indiana, é o princípio absoluto, o germe. Totalmente
e audaciosos que visam descobrir a Verdade última. Não podem ser
transcendente enquanto que imutável e pura consciência (brahman).
encerrados num sistema. Os primeiros textos datam do séc. VIII ao
As suas formas são diversas. É, também, o arquétipo do yogui. Na
séc. VII a.c. e na realidade constituem o Védanta, ou seja, o fim do
sua forma de Shiva Nataraja, dançando a dança cósmica, destrói
Véda. Contam-se mais de duzentos textos redigidos em diversas
tudo o que é nocivo e faz renascer o mundo. Significa, também, morte
épocas e o assunto de mais de vinte deles é sobre o yoga como
e renascimento espiritual, e entrada na beatitude.
disciplina autónoma.
Shogun (jap.)
Vâyu (sâns.)
Abreviatura de Sei I Taishogun. Título usado desde o séc. XIII pelos
Literalmente, ar, vento. Na Índia antiga o organismo psicosomá-
generais ou chefes de guerra exercendo, na realidade, poder político,
tico era explicado pelos vâyu (ventos internos). Vâyu é uma espé-
militar e administrativo.
cie de dinamismo interno que é inato e que provém dos efeitos cines-
Souks
tésicos, que têm múltiplas direcções. É a noção de movimento/
Mercado marroquino
ritmo interno. É sinónimo de Prana para designar a energia vital.
Tai-Chi-Chuan ou Tai Quan (chin.)
Véda (sâns.)
Literalmente, técnica de combate da suprema cumeeira com as
Literalmente, ciência, saber. Conjunto de escrituras consideradas
75
glossário
sagradas pela tradição brahmanista. Este conjunto de escrituras é constituído por quatro compilações de natureza semelhante: Rig-véda; Sama-véda; Yajur-véda e Atharva-véda. Vishnou (sâns.) Na mitologia indiana é o deus solar. Corresponde à consciência 76
luminosa e preside à coesão e preservação do universo. Yamato-Damashi (jap.) Termo que designa o espírito das virtudes guerreiras do povo japonês. Yoga (sâns.) A raiz desta palavra é jug, que significa segurar, ligar, manter sob o jugo. O primeiro significado para esta palavra é tiro, parelha. O segundo indica uma disciplina que tem por finalidade dominar os diversos elementos da personalidade. O yoga é um dos seis sistemas (darçana) filosóficos da Índia. Yoguin (sâns.) Adepto da prática do yoga. Yukata (jap.) Tipo de kimono leve, feito de algodão e usado durante as noites quentes de Verão no Japão. Zazen (jap.) Za significa sentado e Zen é a abreviação da palavra zenna, derivada do sânscrito dhyana, que significa meditação. Portanto, prática da meditação na postura sentada. Zen (jap.) Meditação.
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apĂŞndices
80
I
o leque — resumo histórico
81
Pela sua pertinência neste volume, o presente apêndice propõe um resumo histórico sobre o leque. A informação foi retirada da
Na Assíria, o leque de plumas era utilizado, principalmente, durante as cerimónias religiosas.
internet (site: http://perso.wanadoo-fr/éventail/historique.htm), e
Inúmeras esculturas ou obras gráficas que se encontram na
baseia-se nos livros Éventails (Genève, Slatkine, 1987), de Maryse
maior parte dos grandes museus mostram leques fixos, e muitos
Volet e Annette Beentjes, e L’eventail à tous vents (Paris, Louvre des
autores antigos os evocam, especialmente, no teatro. Damos aqui a
Antiquaires, 1989), de Michel Maignan.
descrição de Anthony Rich (Dictionnaire des Antiquités, 1883): Flabellum – leque. Os leques das senhoras gregas e romanas eram feitos de folhas de lótus, de plumas de pavão ou de outro material deste tipo pintado com cores brilhantes. Não se podiam abrir
A Pré-História
ou fechar, como os nossos. Eram direitos e tinham um cabo comprido...
Não possuímos qualquer testemunho sobre a existência do
de qualquer maneira elas serviam-se sempre de um escravo...”
leque na época pré-histórica. Contudo, a semelhança deste uten-
(assinale-se, aqui, que a iconografia, no entanto, nos mostra bastantes
sílio com o afasta-moscas e a sua utilização nas suas variantes rús-
leques individuais!)
ticas, para avivar o fogo, permite-nos pensar que os nossos longínquos antepassados não o ignoraram.
Rich apresenta-nos, segundo uma pintura de Pompeia, um leque de folhas de lótus, e um outro de plumas de pavão, segundo uma pintura de Stabies. Note-se que todos estes leques eram fixos,
A Antiguidade No Egipto, a existência de leques muito antigos está provada
mesmo se os tabulae tenham prefigurado os chamados leques quebrados.
há mais de 5.000 anos. Tratam-se de leques de cerimónia, fixos e de
Certamente, a antiguidade extremo-oriental não ficava atrás.
cabo comprido. No Sudão, foram encontrados leques de plumas de
Contudo, e embora certos textos (não contemporâneos) mencionem
avestruz, com mais de 4.000 anos. O túmulo de Tout-Ank-Amon
a presença de leques há 3.000 anos, a sua existência (primeiro os
continha dois leques fixos, com cabos ricamente revestidos a folha
fixos) só está provada depois de 600 a.c. e, no Japão, depois do séc.
de ouro e pedras preciosas. Infelizmente, as plumas destes leques
III da nossa era. Na China, foram encontrados leques em bambu
desapareceram.
entrançado, datando do séc. II a.c.
o leque — resumo histórico
Império-Baixo e Idade Média Em Roma, Constantinopla e depois Bizâncio, as senhoras continuam, certamente, a usar os leques acima descritos. O leque desempenhava para a igreja católica o mesmo papel litúrgico que os serafins na religião judia. Os flabelli utilizados pare82
cem ter sido feitos ou em plumas fixas a um cabo, ou do tipo cocarde. O Flabellum desaparecerá dos atributos pontificiais. Um destes leques — o Flabellum de Monza (séc. VI) — era, aliás, a reutilização de um objecto que tinha pertencido a uma senhora de reputação duvidosa que, através desta dádiva teria resgatado as suas culpas! Na sociedade civil italiana e, sem dúvida, noutros locais do mediterrâneo, é o leque em forma de bandeira que parece ser o mais divulgado. Durante este tempo, pelo menos desde o séc. IX, o Japão, que de certeza tinha recebido o leque écran da China, inventava o leque de abrir e desenvolvia todo um cerimonial de ética à volta dos Uchiwa, leque rígido, e dos Ogi, leque de abrir. Também outras civilizações ainda desconhecidas na Europa, como a dos Azetecas e a dos Maias tinham conhecido os leques. O Renascimento As viagens marítimas circumplanetárias e a partilha do mundo entre Espanha e Portugal, levarão os soberanos ibéricos a receber de Cristovão Colombo e de Cortês leques de plumas (entre os quais o de Montezuma, que se encontra hoje em Viena) e os navegadores lusitanos a descobrir, no Japão, o leque dobrado. Trazem caixas repletas de leques, que de Lisboa irão chegar à Península Ibérica e a Itália, onde o Renascimento desabrochava, suscitando a inveja dos reis de França. Será Catarina de Médicis, rainha de Leques chineses
França, quem terá introduzido neste país, os primeiros leques dobra-
o leque — resumo histórico
dos. Em Inglaterra, Elisabeth I estimará bastante os leques de todos os tipos, ao ponto de decidir que estes eram o único presente que os seus súbditos lhe poderiam oferecer. É, aliás, nesta época que o nome deste objecto se fixa. A Idade Média tinha conhecido os esmouchoirs, depois os esventours (numa 83
carta de 1384), e Rabelais descrevia ainda “os esventoirs de plumas, de papel, de tela”. Infelizmente, chegaram até nós poucos leques desta época. O séc. XVII Contrariamente ao que poderia imaginar-se, os primeiros países importadores de leques não desenvolveram uma verdadeira actividade criadora. Apesar daquilo que a produção actual poderia fazer crer, Espanha e, principalmente, Portugal não se dedicaram a essa actividade. Foi, sobretudo, em Itália (e paralelamente aos leques écran que continuavam a ser muito apreciados) que se desenvolveu uma produção de qualidade, graças às proezas dos peleiros na obtenção de um pergaminho particularmente fino (velino, feito a partir de pele de vitela), chamado pele de cisne. Rapidamente, os
Leques ocidentais
italianos e os franceses utilizaram esta pele (e muito raramente o
1. giratório, séc. XVI
papel), reproduzindo aí cenas mitológicas ou tiradas da história
2. plissado em roda
antiga, tendo como base quadros de pintores conhecidos.
3. de penas
Célebres gravadores atingiram a sua fama na criação de folhas
4. de grade
de leque: Abraham Bosse, em França, Wenceslas Hollar, em vários
5. com baínha
países. Estas folhas são muitas vezes destinadas aos leques écran
6. com varetas de
fixos, que também serão utilizados nos séculos seguintes, com cabos
madrepérola ou marfim
em madeira e torneados.
7. de penas e decoração de
As armações dos leques dobrados eram, quase sempre, em
madrepérola
marfim pouco decorado, mas cedo, se adicionaram incrustações de
8. pintado
madrepérola ou de conchas. No fim do século, e devido ao progres-
9. indiano
o leque — resumo histórico
so das técnicas, que permitiu construir hastes que comportavam
perfurados e o trabalho de incrustação de madrepérola e conchas
quatro ou cinco pedaços juntos, deu-se o aparecimento das arma-
aperfeiçoou-se. Porém, após a morte de Luís XIV, os temas mitoló-
ções em conchas (eventualmente salpicadas de ouro ou prata com
gicos ou religiosos ficaram menos em voga (pelo menos em França,
decoração à Berain) e em madrepérola.
mas os leques com cenas bíblicas continuaram a ser muito aprecia-
Os leques mais luxuosos recebiam uma armação feita com
dos em países protestantes como a Holanda) e os artesãos aplica-
metais preciosos, mas estas armações foram fundidas para atender
ram o seu grande virtuosismo na elaboração de sumptuosas arma-
a necessidades pecuniárias. Também, muitas outras armações não
ções, com varetas em madrepérola de uma elegância nunca atingida
suportaram o desgaste ao longo dos anos, o que explica que muitas
posteriormente.
84
folhas desta época tenham chegado até nós sob a forma de quadros,
Contudo, a partir de 1760, as armações deixaram de ter tanta
tendo sido compostas em rectângulo, mais ou menos repintadas
importância e tornaram-se esqueleto, as folhas já não eram pintadas
para lhes dar uma forma rectangular.
na íntegra, mas revestidas por cartolinas mais ou menos elaboradas.
As formas e os estilos das folhas dos leques podem variar. Con-
Nas folhas, a pele era cada vez mais substituída pela seda (menos
tudo, nota-se uma predominância de fundos escuros e, frequen-
despendiosa) ou pelo papel serpente dos leques vulgares, e os assun-
temente, o verso das folhas têm ricos ornamentos com motivos
tos, abandonando os grandes temas, privilegiaram as cenas pastorais,
florais, muito parecidos com alguns quadros em voga nessa época.
as evocações do amor e do casamento (gaiolas de pássaros e altares
Por vezes (principalmente em Inglaterra, onde se utilizava uma pele
de amor...), ou então celebravam os principais acontecimentos da
mais grosseira e onde o leque não comportava mais do que uma
crónica: passagem de cometa, modas excentricas, as primeiras subi-
simples folha, esta armação era mesmo chamada à inglesa), o verso
das em balão. Os leques de sistema ou de diferentes mecanismos
da folha era decorado com simples e sinuosas linhas douradas.
desenvolveram-se nessa altura.
No fim do século, e imitando os leques vindo da Ásia, assiste-
Por outro lado, é então que começa a industrialização, com o
-se ao desenvolvimento de uma produção de leques quebrados, fei-
melhoramento dos procedimentos de dobragem da folha e com o
tos em marfim e, muito raramente, em madeira. A minúcia da pintura
desenvolvimento (ao que parece, mais tardio em França do que na
destes leques e a utilização do marfim deram origem ao aparecimento
Inglaterra) dos leques impressos, utilizados como suporte de canções,
de belos objectos.
música e propaganda política. O uso político culminou, é claro, na altura da Revolução Fran-
O séc. XVIII Os leques, à semelhança dos homens, não obedecem às imposições aparentes das mudanças de século! Os primeiros anos do século, até à Regência, foram marcados por uma evolução limitada. Os leques quebrados estavam menos
cesa, que utilizou tanto os leques de formato habitual (expresso em pés e polegadas mesmo depois da aparição do sistema métrico), como os leques gigantes, dos quais raramente se encontra o modelo original, sem ilustrações ou textos políticos.
o leque — resumo histórico
O séc. XIX Embora menos afectados pelos acontecimentos franceses, os
utilização de leques importados, por vezes publicitários ou comemorativos.
outros países seguiram mais ou menos a mesma evolução. O leque conheceu um evidente declínio, ligado às desordens sociais, ao de-
O séc. XX
saparecimento de certos circuitos de produção, à evolução da moda.
O leque, geralmente de tamanho pequeno, quando se adapta-
O tamanho do leque diminuiu e, durante a Restauração, fizeram-se
va à Arte Nova, ou mesmo quando imitava de novo os estilos do pas-
muitos leques quebrados, sobretudo em corno e em marfim, muitas
sado, continuou a ser utilizado ao longo da primeira década. Porém,
vezes pobremente decorados, embora houvesse também verdadeiras
como indicava o Petit echo de la mode, desde 1901 “já não reinava”.
85
preciosidades.
Todavia, conheceu ainda algum sucesso, mesmo que os mode-
Contudo, assistiu-se a uma certa renovação, que, inicialmente,
los realizados nesses anos fossem apresentados por vendedores
se traduziu pela procura dos leques das avós. Como testemunha a
ignorantes como sendo mais antigos. A guerra de 1914-1918 deu-
imprensa da época, no séc. XIX (talvez mais do que no século anterior)
-lhe um golpe fatal, em simultâneo com a emancipação da mulher,
as emoções são transmitidas pela linguagem do leque. O entusias-
que, ao conduzir automóveis, fumar cigarros, trabalhar nas fábricas
mo pelos leques do séc. XVIII favoreceu o retomar dos modelos dessa
ou nos escritórios, já não lhe reconhecia utilidade nem agrado.
época (pelo menos na elegância da execução), antes que a pros-
Claro que a alta costura e o mundo do espectáculo ainda o
peridade do Segundo Império, a cópia dos estilos do passado, o talento
exibiram durante algum tempo, mas era um canto do cisne. Apenas
de grandes fabricantes e dos artesãos de Oise, o interesse de pintores
os leques publicitários se desenvolveram, até perderem terreno com
célebres concorresse para uma verdadeira explosão.
a Segunda Gerra Mundial.
Nos anos 1860-1870 é difícil encontrar uma gravura sobre a
Os leques em celulóide, surgidos no fim do séc. XIX, continua-
moda sem um leque... O melhoramento dos processos industriais
ram também a usar-se, com um fim por vezes publicitário, mas prin-
(litografia, fabrico de armações, etc.) facilitou esse impulso, mas as
cipalmente como acessório para a moda ou como objecto turístico.
mais belas peças renovavam-se com uma qualidade inédita após
Alguns são extremamente interessantes.
um século. É esse, na realidade, o período de ouro do leque, onde
Por último, sobretudo na Ásia e em Espanha, resistem produ-
coexistem a realização de modelos de grande prestígio e a sua difusão
ções geralmente em massa, para uso autóctone ou para turistas, que
junto das classes médias.
obrigam os coleccionadores de leques a recear certos presentes de
No fim do século, as dimensões do leque aumentaram, para
amigos bem intencionados ainda que poupados!
diminuir a seguir, e o leque publicitário adquiriu plenos direitos de
Poderemos acreditar num retorno do leque no século XXI?
cidadania, primeiro sob a forma de leques para o espectáculo, depois
O facto parece pouco provável. No entanto, este objecto soube
para as companhias de caminho de ferro e, por fim, para os hotéis,
tantas vezes fechar-se e esperar o fim da tempestade, que talvez o
casinos e bebidas de toda a espécie. O gosto pelo Japão permitiu a
vejamos abrir-se de novo e retomar a sua conversa ligeira...
o leque — resumo histórico
Versos de circunstância sobre o leque
O leque e as suas partes
À mademoiselle G. M.
Folha — Parte superior do leque constituída por vários materiais
Jadis frôlant avec émoi
(papel, velino, seda, renda,...); é suportada pelas extremidades das
Ton dos de licorne ou de fée,
varetas e por vezes forrado com uma contra folha.
Aile ancienne, donne-moi
Extremidades das varetas — Parte superior das varetas destinada
L’horizon dans une bouffée.
a suportar a folha e que fica escondida quando esta é dobrada.
86
Lâmina — Vareta exterior da armação, de um modo geral, mais sólida À mademoiselle Missia Godebska
que as restantes a fim de as proteger quando o leque está fechado.
Aile que du papier reploie
Varetas — Elementos que constituem a armação, situadas entre as
Bats toute si t’initia
duas lâminas.
Naguère à l’orage et la joie
Eixo Central — Conjunto do eixo, ou parafuso, e seu fecho, que reúne
De son piano Missia.
as varetas e as lâminas na base. Cabeça — Parte da armação onde se fixa o eixo central.
À madame Léopold Dauphin Spirituellement au fin Fond du ciel avec des mains fermes Prise par Madame Dauphin
Folha
Aile du Temps tu te refermes. Extremidades das varetas
Stéphane Mallarmé (1842-1898)
ou parte superior
Lâmina
Varetas
Eixo central
Cabeça
Ii
o leque no japão
87
A origem do leque, como já foi referido, perde-se na noite
fabricar leques; é também essa a razão pela qual os fabricantes
dos tempos, apesar de a tradição mais comunmente aceite atribuir
japoneses adoptam tão frequentemente o nome de Mi-ei-dô como
aos chineses a primazia de ter criado um objecto especial para obter
insígnia das suas lojas.
frescura, ideia que parece datar do ano 1106 a.c. Contudo, se os da-
Outra lenda atribui a inovação do leque a um fabricante que
dos recolhidos por Maryse Volet, já expostos no apêndice anterior,
vivia em Kyoto, na época de Ten-ji (668-672), mas cujo nome não
desmentem esta convicção, é pela importação do País do Meio que
passou à posteridade. Segundo esta lenda o fabricante quis espantar
o leque chega ao País do Sol Nascente.
um morcego que lhe entrara em casa de noite; o animal, aterrorizado,
O leque chinês primitivo não era flexível: a sua forma derivava de uma simples folha de palmeira. Esse leque rígido, feito de penas, era colocado no carro dos antigos imperadores chineses. Da China o uso do leque parece ter passado à Coreia e daqui ao Japão, onde não tardou a entrar na moda e se tornou um acessório indispensável ao traje nacional dos dois sexos. Na região de Shosoin, no Japão, perto do templo Todaji, em Nara, os arqueólogos descobriram, entre outros objectos, um leque do séc. VII. Podemos concluir que o leque era um objecto conhecido nessa época. A invenção do leque de abrir é geralmente atribuída aos japoneses. Uma antiga tradição relata-nos que, em 1184, a viúva de Atsumori se retirou para o templo de Mi-ei-dô, em Kyoto, tornou-se monja e um dia teve ocasião de cuidar do superior do convento, que sofria de febre. Curou-o, diz-se, abanando-o com um papel dobrado em leque e murmurando encantamentos. Parece
Leques de penas
que ainda hoje os bonzos do templo de Mi-ei-dô são exímios em
em brazões japoneses
o leque no japão
atirou-se contra a lâmpada e queimou-se. Quando o fabricante o
terístico do japonês de outrora, quase como um símbolo do país.
apanhou para o deitar fora, viu uma das asas do animal abrir-se.
Desempenhava um papel considerável em quase todas as mani-
Este movimento deu-lhe a ideia de fabricar um leque que se podia
festações da vida japonesa: dava-se como recordação a quem
dobrar e levar escondido na manga. No dia seguinte confeccionou
partia; trocavam-se leques quando da primeira conversação com
o primeiro leque de abrir.
alguém; a recém-casada oferecia ao seu marido, entre outros objec-
88
No entanto, para alguns historiadores, a explicação seria outra:
tos, um leque; no 16º aniversário, quando se atingia a maioridade
o leque de abrir teria a sua origem no Mokkan, tabuinha na qual os
no Japão, ofereciam-se leques, emblema de uma vida próspera. Se
escribas da corte costumavam corrigir as suas notas. Para manter
um ancião chegava aos 77 anos de idade os parentes ofereciam-lhe,
juntas as tabuinhas, os escribas usavam um fio que passava por um
também, leques nos quais tinham inscrito a letra ki, pois os três signos
furo praticado numa das extremidades de cada uma delas. Assim,
que a compõem significam, separadamente, 7, 10, 7, o que perfaz
para encontrar a tabuinha procurada bastava abri-las em leque.
77. O ancião, por sua vez, oferecia aos seus parentes mais chega-
Note-se, no entanto, que o leque rígido chinês, uchiwa em japonês, foi de uso geral no Japão até ao início do séc. XV, época
dos pequenos leques nos quais também traçara a letra ki. A festa dos 77 anos chama-se no Japão ki-ju no ga.
em que o leque de abrir, ôgi, se tornou cada vez mais popular, tanto
Na Europa é usual suspender um ramalhete no topo da casa
entre os humildes como no clã dos nobres e na corte imperial. Che-
acabada de construir; no Japão, em ocasiões semelhantes, atam-se
gou mesmo a substituir a pequena régua, chamada shaku, nas ceri-
na ponta de uma longa vara três leques dispostos em círculo, no topo
mónias oficiais e nas audiências concedidas pelo imperador. Foi
da casa. Os grandes generais japoneses tinham um leque de ferro,
nesta época que também os chineses adoptaram o ôgi.
que utilizavam para transmitir ordens aos seus tenentes; os árbi-
Como já foi referido, o leque tornou-se um objecto usado
tros nos concursos de pólo, da-kyû, ou nas lutas, usavam, como
tanto pelas mulheres como pelos homens. Os cronistas antigos sali-
marca distintiva das suas funções, um leque rígido com a divisa:
entam que Minamoto No Yorimasa escreveu um poema sobre o seu
Isshin, Issei, ou seja, um espírito, uma voz ou, por outras palavras, a
leque, antes de fazer hara kiri ou seppuku, logo a seguir à derrota
decisão do juiz é soberana. Nas cerimónias religiosas, o leque tinha,
na batalha de Ujikawa. O leque foi introduzido no ritual do seppuku
também, o seu lugar marcado. Assim, durante as festas de Isé, em
em substituição da adaga, o sabre pequeno. Durante este ritual, no
honra da deusa do Sol, Amaterasu, cinco grandes leques feitos cada
momento em que o indivíduo estendia a mão para agarrar o leque,
um de seis tábuas de hinoki, que mediam mais ou menos 2 metros,
que se encontrava à sua frente no suporte de madeira, cortavam-
eram transportados em procissão nos arredores dos templos.
-lhe a cabeça.
O leque de abrir desempenha um papel importante nos dis-
No Japão, até 1868 o leque foi usado por toda a gente: desde
tintos divertimentos dos leques flutuantes e no jogo ôgi otoshi,
o imperador, príncipes, nobres e guerreiros até aos mais humildes
assim como, na dança do pinheiro e na dança dos leques. É, aliás, o
comerciantes, camponeses ou criados. Era o atributo mais carac-
acessório mais usado por quase todos os bailarinos japoneses:
o leque no japão
os man-zai e os bailarinos do sam-bagô usam-no regularmente. Desempenha, também, um papel de relevo em muitas histórias ou lendas. À semelhança de muitos objectos que acabam por adquirir um significado simbólico, no Japão, o leque tornou-se símbolo de
Ji-sen: Leque de penas que na arte japonesa se vê frequentemente nas mãos dos guerreiros; tem a forma de um uchiwa. As penas utilizadas são de faisão ou de pavão. Maki uchiwa: 89
prosperidade, logo, do monte Fuji que representa também esta
Leque que pode ser enrolado em volta de uma vara central.
prosperidade. Quando, em 1635, os portugueses receberam auto-
Abrindo as varetas, horizontalmente, em cruz com o cabo, o leque
rização para se estabelecer em Nagasaki, o desenho da sua planta
mantêm-se rígido e pronto a ser utilizado.
urbana tinha a forma de um leque, para simbolizar um acordo de
Mizu uchiwa:
troca sob o signo da mútua prosperidade.
Leques fabricados em Kuku-i. O seu papel impermeável per-
As aya honé, varetas exteriores de um leque de abrir, entre as
mite mergulhá-los na água fresca para baixar a temperatura do ar
quais se agrupam as outras, são levemente encurvadas no interior
que entra em contacto com eles quando se agitam. São lacados e
para manter as outras bem apertadas quando o leque está fechado.
datam do fim do séc. XVII.
Todas as varetas são reunidas por um pedacinho de tubo, kana-mé, ou seja olho de caranguejo, fixado nas duas extremidades por rodelas metálicas. Os japoneses, frequentemente, fabricavam punhais, tan-tô, cuja bainha e cabo imitavam à perfeição um leque fechado. Segue uma lista que indica os nomes e as características de algumas variedades de leques japoneses.
Uchiwa — leques rígidos Gum-bai uchiwa ou Dan-sen ou, ainda, Gum-bai: É uma espécie de abano de couro espesso ou de ferro fixado sobre um pau ou uma barra de ferro, quase sempre lacado e decorado com um motivo representando a Lua, o Sol ou a Estrela Polar. Este leque rígido foi empregado na guerra exclusivamente por ofi-
Uchiwa
ciais de alta patente; era utilizado por eles para transmitir ordens e
O leque rígido na arte
para servir de escudo contra flechas e pedras.
heráldica japonesa
o leque no japão
Hamaguri uchiwa: Leque em forma de concha, hamaguri, de onde deriva o seu
nos pormenores, diferia um pouco do leque do imperador. Ako-ya ôgi:
nome. Foi inventado, segundo consta, por volta de 1800. Na folha
Leque composto de 16 varetas. O pano era igualmente deco-
ostenta pinturas de assuntos diversos. É de madeira de hinoki e
rado com desenhos emblemáticos; longas fitas com nós ornavam as
chama-se também kyo uchiwa.
extremidades dos oya honé e o kanamé.
Yama-to uchiwa:
Gun-sen ou Tes-sen ou Tetsu-sen:
90
Leque de circular com uma folha de papel transparente ornada
Leque de guerra feito de metal, sobretudo de ferro, podendo
de desenhos. Data do fim do séc. XVIII, fabricado em Yama-to.
também ser feito em aço ou em cobre e por vezes em bambu laca-
Shibu uchiwa:
do, mas é um leque de abrir composto de dez varetas. A folha é de
Leques usados na cozinha como abanos para avivar o fogo.
papel espesso, decorada habitualmente com o Sol vermelho de
A folha, muito espessa, está coberta de uma goma extraída do su-
Yama-to (país do Sol nascente) em fundo de ouro de um lado, ao
mo dos frutos verdes do kaki, em japonês shibu, daí o seu nome. Este
passo que o outro ostenta, em fundo azul escuro ou preto, o disco
género de leque foi fabricado pela primeira vez nos finais do séc.
prateado da Lua ou a constelação da Ursa Maior. Esta decoração,
XVIII segundo indicações de um daimyo. A folha, mergulhada no
que se encontra também no gum-bai uchiwa, está no entanto sujeita
shibu, espalha, segundo parece, um cheiro bastante desagradável.
a muitas variações. Os gun-sen eram, ao que parece, utilizados já no séc. XII. Um outro tipo de gun-sen que tem a sua origem no hi-ôgi
Ôgi — leque de abrir
é feito de lamelas em metal muito pesado o que obriga ao uso das duas mãos para o abrir e fechar.
Ako-mé ôgi:
Hi ôgi:
Leque composto de 25 a 39 varetas. É o leque cuja criação é
Leque composto de 23 varetas de madeira de hinoki. É o gé-
atribuída à viúva de Atsumori. Pintado de branco e decorado com
nero de leque usado pela imperatriz do Japão. O pano está orna-
crisântemos, folhas de ameixoeira, tufos de pinho e outros emble-
mentado com pinheiros, ameixoeiras, flores de laranjeira e camélias.
mas de longevidade. Foi utilizado desde o séc. XII e, segundo parece,
Komori:
até à Restauração (1868), pelas damas da corte imperial. Chû-kei: Leque de abrir construído de tal maneira que as varetas de
Literalmente: morcego. É um leque curtíssimo, composto de 12 ou 14 varetas de bambu com uma folha de papel colorido de várias cores. As varetas de guarda são mais largas que as dobras do
guarda estão quebradas na raiz do pano com um certo ângulo
pano.
para o exterior, de modo que o leque fechado tem, mesmo assim, o
Mai-ôgi:
aspecto de um leque parcialmente aberto. Este leque era usado
Leque muito particularmente usado pelos bailarinos japone-
pelo imperador e pelos shogun. Os nobres usavam um chû-kei que,
ses. Tem 10 varetas ligadas por um pedaço de chumbo destinado a
o leque no japão
torná-lo mais pesado na ponta para ser de mais fácil manipulação. Está recoberto por uma folha de papel espesso e monocromo, com as armas daquele perante o qual o bailarino vai exercer a sua arte. Data do início do séc. XVII. Mita ôgi: 91
Enormes leques com mais de 2 metros de altura, compostos de seis tábuas de madeira de hinoki utilizados nas procissões religiosas. Leques parecidos são usados pelos bombeiros de Kyoto. Naka uki: Leque de corte empregado apenas no verão. A sua folha é, habitualmente, decorada de volubilis. Na opinião de alguns, este género de leques de abrir foi utilizado durante as cerimónias da corte desde o séc. VIII, data que invalidaria a história da invenção do leque de abrir pela viúva de Atsumori em 1184. Ri-kyu ôgi: Leque concebido pelo célebre mestre da cerimónia do chá, (cha-jin), Sen no Rikyu (1521-1591). Compunha-se apenas de três varetas de madeira ligadas por uma forte folha de papel decorada com pinturas. Rikyu utilizava este género de leques como bandeja para bolos nas cerimónias do chá. Suyé hiro ôgi: Leques de 15 a 25 varetas, muito flexíveis; as varetas de guarda são estreitas e frequentemente esculpidas. São utilizados, principalmente, pelos bailarinos do teatro Nô.
Ôgi Fantasias heráldicas em leques de abrir
o leque no japão
Tessen, o leque dos samurais O tessen tinha, pois, o seu lugar na panóplia das Artes do Budo, como arma de defesa. Foram escritos grandes feitos dos samurais com os seus leques. 92
Um dos heróis mais lendários do Japão é, sem sombra de dúvida, o princípe Yoshitume do clã dos Minamoto. No Gikeiki ou Crónica de Yoshitsume encontram-se abundantes detalhes sobre a vida deste herói. Um dos episódios importantes da sua vida foi o seu encontro com Benkei. Assim reza a lenda: Benkei era um monge guerreiro de uma estatura imponen- te. Um verdadeiro gigante! A sua arte do Naginata era temível. Tinha feito um voto de contribuir para a reconstrução de um templo e, por isso, tinha tomado a decisão de roubar mil sabres aos transeuntes. Após ter conseguido apropriar-se de novecentos e noventa nove sabres, uma noite colocou-se perto de uma ponte, em Kyoto, à espera da sua última vítima. Na escuridão viu aproximar-se uma silhueta solitária. Era um jovem homem que tocava flauta, Yoshitsune. A cabeça e os ombros cobertos por um
manto de seda, segundo um
costume frequente entre os acólitos dos templos. Primeiro, o monge guerreiro recusou-se a considerar este frágil e efeminado adolescente como um adversário digno dele. Mas, mal começaram a combater, deu-se conta de que Yoshit-sune era um temível lutador, pois tinha aprendido as Artes Marciais com os Tengu, génios místicos que habitavam a floresta. Yoshitsune venceu Benkei com um golpe de leque. Perdido de admiração diante tal demonstração de virtuosismo, Leques de guerra: Gun-Sen ou Tes-sen
Benkei suplicou-lhe que o deixasse ficar com ele e tornou-se o seu mais leal servidor.
Dan-sen ou Gum-bai e Sai-hai
Um outro feito admirável, baseado na história e não na mi-
o leque no japão
tologia, foi o de Takeda Shingen durante uma batalha contra Uyesugi
cada ataque, até que os seus homens chegaram e feriram o cavalo
Kenshin, no início do séc. XVI:
de Kenshin, obrigando-o a retirar-se. Para ele foi uma derrota terrível,
Estes dois homens faziam parte dos maiores combatentes que
pois o seu adversário venceu-o, tendo como única arma um leque.
o Japão tinha conhecido e afrontaram-se em lutas sem piedade.
Quando, mais tarde, os samurais adoptaram o uso do leque,
Shingen e Kenshin eram a expressão viva dos homens de guerra que
só se serviam dele para repelir os adversários considerados inferiores
foram os samurais.
na arte do combate ou na hierarquia social. Pouco a pouco, o leque
93
Hábeis administradores e excelentes comandantes militares,
foi associado às proezas dos mestres do sabre. Com efeito, foram
ambos eram apaixonados pela literatura e pelas Artes Marciais. Tanto
criadas técnicas de combate que transformaram o leque, objecto
um como o outro tinham sido educados por monges. Com efeito,
utilitário e de ornamento, numa arma de defesa. Naturalmente, os
Shingen e Kenshin eram os nomes que tinham recebido quando
homens do sabre associaram-no, nas suas técnicas de combate, ao
entraram para o mosteiro. Na vida, consideravam-se noviços. As suas
sabre curto, no caso de não poderem utilizar o sabre longo, seja por
cabeças estavam sempre rapadas. Kenshin vivia como um monge
o terem perdido em combate ou por as regras da hospitalidade não
budista. Era celibatário e nunca comia carne. Ambos tinham outro
permitirem o uso do sabre num dado local. Neste último caso, o leque
amor comum: o combate. Ao longo de dez anos de incessantes lutas
era utilizado para atingir os pontos vitais do assaltante ou, sim-
que abalaram a província de Kawanakajima, inúmeras batalhas foram
plesmente, para neutralizar os seus ataques, como demonstra uma
travadas entre os dois sem, no entanto, ser possível dar uma clara
história da vida de Araki Matayemon (1601-1638):
vitória a um deles. Durante uma batalha em que os dois exércitos se encontravam
Este mestre da escola Yagyu Shinkage e que morreu muito jovem tinha entre os seus alunos um senhor cuja habilidade
com o sabre
face a face, numa situação de impasse demasiado longa para o gosto
igualava a sua. Cada vez que combatia com os outros alunos superava-
de Kenshin, este decidiu ir ver Shingen. Picou o seu cavalo e, de uma
os, mas nunca conseguiu tocar o seu mestre de sabre. A sua ambição
assentada, entrou no campo do adversário. Encontrou Shingen sentado
era tornar-se o melhor da sua região, mas sabia que, enquanto Araki
numa cadeira diante da sua tenda, estudando manobras militares
Matayemon vivesse, ser-lhe-ia impossível realizar o seu sonho. Era
com um leque na mão. Então, Kenshin lançou o seu cavalo sobre ele,
necessário matá-lo.
afastando os ajudantes de campo. Depois, com o seu sabre
Nas antigas casas japonesas, um sistema de painéis deslizantes
desembainhado ameaçou a cabeça de Shingen e fez-lhe uma pergunta
permitia dividir uma habitação em inúmeras salas. Estes ecrãs, ou
tipicamente Zen: “E agora o que é que tu dizes?” Sem perder a calma,
shoji, eram mantidos no lugar graças aos tatami, tapetes colocados
Shingen respondeu-lhe, também segundo a tradição Zen: “Um floco
no chão. Segundo a tradição, quando um homem de
de neve sobre uma braseira”. Ao ouvir essas palavras Kenshin atacou
inferior era recebido por um senhor, colocava-se à entrada da sala,
com o seu sabre, mas Shingen parou o ataque com um golpe de leque.
no sítio onde se encontrava o primeiro tatami. Aí, de joelhos, devia
Kenshin continuou a atacar, mas Shingen conseguia desviar-se de
saudar o dono da casa, que se encontrava na extremidade oposta.
um nível social
o leque no japão
Procedendo desta maneira, acontecia que, quando o visitante saudava
batalhas mais célebres ou glorificam os guerreiros mais ilustres.
em rei, inclinando-se respeitosamente, a sua cabeça ficava entre os dois painéis, mesmo por cima da calha que permitia fazer deslizar os shoji. Se, nesse momento, alguém os empurrasse com força, podia decapitar a pessoa ajoelhada.
O sabre e o leque O shibu ou senbu representa a arte do leque, o qual é utilizado através de movimentos muitos sofisticados e, à semelhança da
94
Foi essa a ideia que o senhor teve para matar o seu mestre de
dança do sabre, com um fundo musical e poético. Pode-se encon-
armas. Mandou os seus criados lubrificarem as calhas e ordenou-lhes
trar, aqui, semelhanças com o teatro Kabuki, já que o leque é manejado
que ficassem escondidos atrás dos painéis, quando Araki Matayemon
de modo a responder aos humores e solicitações do poeta e do
o viesse visitar, para quando este se inclinasse para o saudar, eles
cantor. Existem centenas de danças diferentes e muitas são coreo-
empurrassem com força os painéis para o assassinar.
grafadas a partir de poemas muito curtos, zekku, outras a partir de
Ao receber o convite para ir ao palácio, Matayemon ficou
poemas mais longos, risshi, koshi e choka. Um certo número de can-
desconfiado. Quando se encontrava à entrada da sala colocou o seu
ções populares, imayou, que datam do período Heian (806-1185),
leque não sobre o tatami, mas na calha dos shoji. Saudou o senhor,
são transformadas numa dança que incorpora a música do biwa,
que fez sinal aos criados, estes empurraram os painéis, mas ao
um instrumento de cordas. A mais recente era Showa assistiu à evo-
deslizarem sobre as calhas foram travados pelo leque aí colocado por
lução do naginata, que introduziu técnicas de um tipo particular de
Araki Matayemon.
lança utilizadas pelas mulheres na arte shibu. A arte de narrar e de cantar com a ajuda do sabre e do tessen
Artes do leque
Cantar poemas e histórias é uma arte muito técnica chamada shigin: o cantor, gindoka, pronuncia as palavras, muito figuradas,
O Kenshibudo
cantando. Hoje os poemas já não são recitados como nos séculos
O Kenshibudo escreve-se com quatro caracteres; o primeiro,
passados. Esta forma artística, que continuamos a encontrar no
ken, significa sabre; o segundo shi, quer dizer poema; o terceiro, bu,
Kenshibudo, foi estabelecida por volta de 1900 por Iwabuchi Shimpu
evoca a dança e o último, do, a Via. O Kenshibudo é uma dança
e Kimura Gakufu.
artística na qual o sabre é o principal elemento de uma coreografia inspirada num poema ou numa história. As origens da dança do sabre kenbu remontam à era de Togukawa (1603-1867). Foi desenvolvida como uma arte muito estética e dirigia-se aos sentimentos profundos dos samurai, para conservar viva neles a disciplina do Budo. Os poemas e as histórias que são a base do kenbu narram as
Iii
tenchi tessen — ilustrações
95
equipamento bรกsico
forma de segurar o tessen
tessen ou leque
96
kimono
vista superior
hakama
tabi
vista lateral
cerimonial
97
preparação
98
preparação
99
preparação
100
preparação
101
preparação
102
passos
103
DESLIZADO
CRUZADO
passos
104
SEMI - CÍRCULO
passos
105
SAMA
CAVALEIRO
passos
106
SENTADO
TURBILHテグ
movimentos de base
107
N
N
1
2
NO
NE
NO
NE
6
7
4
1
5
O
E
O
4
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2 3
8
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SE
5
SE
SO 2
S
S SAUDAÇÃO ÀS
8 DIRECÇÕES
E
movimentos de base
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SAUDAÇÃO ÀS
8 DIRECÇÕES
ABERTURA LATERAL
movimentos de base
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A LUA
movimentos de base
110
MOVIMENTO EM
3 TEMPOS
movimentos de base
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16
15
15
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16
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16 1
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2
3 4
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2
3
3
13
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6 5 1
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4
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6 7
9
4
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10
6 7
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8 O SOL
4
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5
11
10
6 7
9
8
educativos
112
ABERTURA
educativos
113
N
N 2
NO
NE
NO
NE 4
1
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O
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E
O
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6
SO
SE
SE
SO
S
S OS
8 VENTOS
educativos
114
O CAVALEIRO
A ESPIRAL
educativos
115
O INFINITO
educativos
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A ONDA
ISHVARA PRANIDANA
educativos
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GARUDA
temas
118
O RECUO
temas
119
O ENCONTRO
temas
120
O ENCONTRO
ANTECIPAR - SE
temas
121
CORTAR OS VENTOS
temas
122
DESVIAR - SE
temas
123
O PÁSSARO
temas
124
O PÁSSARO
A ESPIRAL
temas
125
A ESPIRAL
temas
126
NATARAJA
saudação ao céu
127
tenchi tessen
arte e movimento
georg es stobbaerts Hanshi, 8Âş Dan Dai Nippon Butoku Kai (Kyoto, JapĂŁo) Fundador do Aikido em Portugal Criador do Tenchi Tessen