Corpo Transitivo #2

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assexualidade, representatividade, resistência, empoderamento, socialização, intersexualidade &+

2ª edição

Belém (PA)




Projeto gráfico e diagramação: Lucas Wilm Revisão editorial: Zhumar de Nazaré Colaboradores: Ádria Azevedo, Alexandre Felipe de Oliveira, Beatriz Paiva, Carla Luã Eloi, Davi Miranda, Filipe Punhagui, Haru, Igor Sammy, Karen Priscila L. dos Anjos, Maria Lidia Ferreira Lima, Suelen Moraes, Tarsila Amoras, Victória Costa


/ E D I T O R I A L / Começamos a fanzine com o objetivo de falar sobre temáticas LGBTs (agora expandido para LGBTQIA+) e, por um tempo, conseguimos seguir esse propósito, mas foi na roda Negritudes & LGBT, realizada na Esamaz no dia 6 de maio de 2016, que observamos o Projeto se estender para questões maiores, as quais, a princípio, não tinham necessariamente a ver conosco, LGBTs. Porém, numa segunda olhada, dessa vez mais atenciosa e menos “umbiguista”, notamos como nossas demandas enquanto minorias estão totalmente interligadas. Assim, pudemos colocar em prática um conceito que surgiu com as feministas negras, a interseccionalidade, para compreender a estrutura das opressões de forma que todas partem do mesmo lugar e se misturam. Uma mulher lésbica negra, por exemplo, não vai sofrer apenas racismo num dia, lesbofobia no outro e machismo no final de semana; ela enfrentará todas essas opressões juntas e ao mesmo tempo em diferentes níveis e situações. Nossas rodas foram uma experiência de grande aprendizado. Não esperávamos a repercussão que elas tiverem, bem acima da nossa expectativa. Emocionamonos em vários momentos e vibramos com a participação expressiva do público. Nossos convidados, sempre tão solícitos, contribuíram de maneira excelente. Falas críticas, reflexivas e inspiradoras nos surpreenderam. Por isso, estamos com o sentimento de ter realizado um bom trabalho com a primeira edição e as rodas, o que nos garante ânimo para continuar o Projeto satisfatoriamente, e, dessa vez, ampliar nosso alcance no que diz respeito aos temas. Somos ainda uma fanzine LGBTQIA+, não teria como deixar de sermos, já que todos os integrantes estão em algum lugar nessa sigla. No entanto, pensamos que é o momento ideal para ampliar os assuntos que publicamos na fanzine ou divulgamos na fanpage. Queremos ser um meio para que qualquer pessoa incluída em alguma minoria social possa se expressar e se manifestar nesse espaço. Acreditamos que todo corpo é transitivo em algum aspecto; estamos em constante transformação física, emocional e social. Somos moldados numa cultura ocidental com muitas questões ainda problemáticas que precisam de resoluções. Estamos aqui para dar esses passos de bebê com vontade de mudar pelo menos alguma coisa, a menor que seja, para um mundo melhor, com mais compreensão, aceitação, amor e liberdade.


O ACE da questão

● O que é assexualidade ou ACE? Não é celibato ou abstinência sexual. Sendo tão válida quanto as várias outras orientações sexuais, a assexualidade, abreviada como ACE pela pronuncia em inglês, se caracteriza pela falta do desejo da prática sexual e, diferente do que possam pensar, pessoas que se identificam assim não são doentes; elas inclusive podem sentir o desejo físico causado pela libido e praticar masturbação, somente não sentem o desejo da prática sexual com outra pessoa. Infelizmente, na sociedade em que vivemos tende-se a ter uma visão patologizante para tudo que difere dos padrões heteronormativos impostos, inclusive na hipersexualização que é ensinada e veiculada para todos desde cedo.

Mas, como ter um relacionamento sem sexo? Assim como assexualidade é um oposto às pessoas que sentem desejo pela prática sexual, temos também o oposto da atração romântica, que neste caso seria a arromanticidade. A pessoa arromântica não sente atração por um relacionamento romântico, podendo podem sentir o desejo pela prática sexual ou não. Entretanto, consegue estabelecer outros vínculos afetivos de modo fraternal. Seja assexual ou alossexual (pessoas que sentem o desejo da prática sexual), todos podem ter uma atração romântica, que pode ser heterorromântica, homorromântica, birromântica, panromântica, etc...


Igor Sammy, Acadêmico de Jogos Digitais e Psicologia - Belém (PA)

● O que são esses aspectos dentro da área cinza? As pessoas que se identificam como pertencentes à “área cinza” do aspecto ACE (Gray asexuality) podem sentir atração pela prática sexual, contudo necessitam de um envolvimento afetivo específico para despertarem ocasionalmente a vontade de fazer sexo. Demissexualidade – Para sentir atração sexual é necessário formar um vínculo afetivo, uma intimidade. Exatamente por isso pessoas que são heterossexuais, homossexuais, pansexuais, lésbicas podem ser demi. (Ex: Demi-heterossexual). Já na Gray romanticidade precisamos compreender de uma maneira que, para haver atrações românticas, são necessários vínculos afetivos específicos. Demirromanticidade – Para conseguir se apaixonar é necessário formar

um vínculo afetivo muito forte. Todos podem ter essas designações e sentir atração sexual mesmo sendo de dentro do ACE, por isso pertencem ao cinza (Gray). Cito aqui apenas algumas breves informações sobre assexualidade e arromanticidade, juntamente com o aspecto Gray. Infelizmente temos ainda pouco material traduzido, porém, para mais desconstruções: Em português: - assexualidade.org/ - sobreocinza.wordpress.com/2014/05/22/oque-e-ser-demissexual/ Em inglês: - asexuality.org/en/ - asexualityarchive.com/


Ilustrações: Beatriz Paiva, 19 anos, mulher lesbica, Belém (PA). Cursa o 3° semestre de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem na UNAMA e administra a página facebook.com/paginabeatrizpaiva. Poesia: Tarsila Amoras, 18 anos, mulher negra e bissexual, Belém (PA). Cursa Pedagogia na UFPA e gerencia a página Leramoras no Facebook facebook.com/ Leramoras e o blog leramoras.blogspot.com.



A REPRESENTATIVIDADE LGBTQI+ NA LITERATURA DE JOVENS ADULTOS

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diálogo sobre a representatividade de minorias na literatura jovem adulta está sendo amplamente discutido em nível internacional. Nos últimos anos, o movimento dos escritores tem sido pela inclusão de personagens LGBTQI+; autores mundialmente famosos e influentes como John Green (autor de A Culpa É das Estrelas e coautor de Will & Will) já estão incluindo mais personagens homossexuais; até J.K. Rowling, famosa pela série Harry Potter, já admitiu aos fãs que o diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore, era homossexual. Nos EUA, o movimento literário We Need Diverse Books foi o principal precursor desse debate sobre diversidade na literatura, principalmente na literatura juvenil, a qual é frequentemente censurada pelo governo americano e pelas livrarias locais por colocarem assuntos “fortes demais” para os jovens em suas obras, temas como abuso sexual, homossexualidade e povos indígenas são constantemente proibidos de serem vendidos em algumas livrarias e

bibliotecas e essa sanção acaba restringindo o alcance de livros que abordem essas temáticas e desestimulando que os autores escrevam sobre elas. No Brasil, vários escritores se uniram para criar um movimento chamado Manifesto Irradiativo¹, no qual eles assinaram uma carta aberta para sensibilizar os outros autores a escrever livros com mais representatividade. No ano passado, promoveram um evento literário para falar sobre a inclusão de personagens mais diversos e condizentes com a realidade brasileira. Os autores que idealizaram esse movimento literário nacional foram Jim Anotsu, autor de Rani e o Sino da Divisão, conhecido pelas suas protagonistas negras; e Alliah, autora de diversos contos com protagonistas homossexuais e se identifica como “pessoa trans de gênero fluido, queer, escritora e artista visual”. PORQUE pessoas homossexuais, homorromânticas, bissexuais, birromânticas, panssexuais, panr-


Maria Lidia Ferreira Lima, Estudante de Psicologia da UNAMA - Belém (PA)

românticas, demissexuais, demirromânticas, assexuais, arromânticas, e queer merecem espaço na literatura especulativa nacional como personagens, escritores, ilustradores, editores, e demais profissionais do mercado editorial. (Manifesto Irradiativo, 2015) O Brasil está iniciando esse debate sobre representatividade em seus livros, porém assim como o próprio mercado brasileiro de literatura juvenil ainda é

muito novo e está em frase de crescimento, é comum encontrarmos livros escritos por brasileiros que nem ao menos se passam no nosso país. Parece que ainda estamos construindo nossa própria identidade como indústria literária e cabe a nós, leitores, aos críticos e editores que trabalham nesse mercado exigir e incentivar em seus autores conteúdos que prezem pela diversidade, pela representatividade e, sim, pela discussão de temas difíceis de maneira responsável e acessível aos jovens.

“CABE A NÓS, LEITORES, AOS CRÍTICOS E EDITORES QUE TRABALHAM NESSE MERCADO EXIGIR E INCENTIVAR EM SEUS AUTORES CONTEÚDOS QUE PREZEM PELA DIVERSIDADE, PELA REPRESENTATIVIDADE E, SIM, PELA DISCUSSÃO DE TEMAS DIFÍCEIS DE MANEIRA RESPONSÁVEL E ACESSÍVEL AOS JOVENS”

¹Acesse a página do Manifesto Irradiativo e participe do movimento também: manifestoirradiativo.wordpress.com/.


CHAMADO PARA RESISTÊNCIA TRANS*

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er trans* é uma linha tênue entre resistir e desistir. No Brasil é sinônimo de luta constante. Acordar, levantar da cama e sair de casa é sinal de resistência. A comunidade do homem-branco-classe-média-hetero-cis sabota nossa existência. Desejam e atuam para nos calar e nos invisibilizar. Como não temos um minuto de paz, não devemos dar-lhes sequer um segundo de silêncio. Que possamos unir nossas vozes e resistir contra a sociedade que cobre os olhos para nossas necessidades.

Filipe Punhagui, Membro do IBRAT - Instituto Brasileiro de Transmasculinidades - São Paulo (SP)


CARTA DE UM FARSANTE

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ou gaga, disfarço todos os dias, falando pausadamente e evitando conversas prolongadas e discussões, mesmo adorando conversar. Sou humana, tento disfarçar não ferindo outros animais, nem fazendo maldades e nem julgando as pessoas, mesmo as que me fazem mal. Sou poeta, tento disfarçar trabalhando em um emprego considerado digno, mesmo escrevendo em qualquer papel em branco. Sou mulher, meus pais me incentivaram ao estudo para que eu obtivesse respeito e conquistasse minha independência e, talvez, com a inteligência, conseguisse disfarçar que sou mulher. Sou gorda, tento disfarçar usando roupas largas que não marcam minhas gorduras e entrando em dietas radicais constantemente, mesmo que isso me provoque bulimia. Sou negra, meus pais me incentivaram aos estudos para que eu obtivesse respeito e conquistasse minha independência e, talvez, com a inteligência, conseguisse disfarçar que sou negra. Sou assexual, ninguém sabe, porque disfarço bem, falando sempre de assuntos de sexo, mesmo que me incomodem. Sou homoafetiva, ninguém sabe, porque disfarço bem, fingindo que me interesso pelo sexo oposto, mesmo que não me interesse. Sou transgênero, tento disfarçar usando saias, vestidos e mantendo os cabelos alisados e longos, mesmo que me sinta terrível. Sou vítima de abuso sexual, ninguém sabe, porque disfarço, fingindo que acho graça em piadas de estupro, mesmo que quando chegue em casa, chore sozinha no banheiro. Sou estatística, isso não posso disfarçar. Sou mais um caso de suicídio, porque disfarcei tanto o que sou, que, simplesmente, não valia mais a pena “ser”. Carla Luã Eloi, Produtora Cultural, Escritora, Dramaturga e Roteirista Miracema (RJ)


MULTIPLICANDO LESBIANIDADES algumas provocações para pensar diferente¹

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e modo geral, quando pensamos em mulheres lésbicas, muitas vezes somos levados a concordar com imagens e estereótipos construídos historicamente a respeito das relações entre mulheres. Boa parte destas imagens podem ser descritas por meio das nominações: sapatão, caminhoneira, sapatilha, fancha, lady, perua, boy, putão, mulher-macho, butche/femme, e tantos outros termos utilizados pelo senso comum. Apresento neste texto algumas provocações para pensar de forma diferente o que entendemos como sexualidade, gênero e subjetividade, a partir da consideração de múltiplas experiências de lesbianidade. Muitos dos termos citados acima são utilizados até hoje de forma pejorativa, ou seja, com a intenção de ofender, humilhar ou menosprezar as lesbianidades. Embora possamos reconhecer que em nossas práticas cotidianas temos a possibilidade de mudar o sentido que atribuímos a estes termos (a história dos Movimentos Sociais LGBT, feminista

e negro nos mostra isto muito bem), o que chama a atenção é que muitos deles fazem referência a um esquema pressuposto que liga sexo/gênero/práticas sexuais/desejo. Assim, de acordo com esta visão padronizada, um corpo com uma vagina seria obrigatoriamente do gênero feminino e, portanto, uma mulher que teria práticas heterossexuais que por sua vez fariam referência ao desejo direcionado ao gênero masculino, considerado seu oposto. Certamente, embaralhar este esquema pressuposto é algo que pode causar muita confusão na forma como estamos acostumadas/ os a pensar. Por que isto acontece? Autorxs como Michel Foucault e Judith Butler vão nos dizer que isto ocorre principalmente porque na forma como pensamos sobre sexualidade e gênero também estão envolvidas em relações de poder. Isto significa dizer que a sexualidade e o gênero não dizem respeito apenas a uma experiência individual das pessoas e de seus corpos. As noções que temos


Karen Priscila Lima dos Anjos, Mestre em Psicologia (UFPA) - Belém (PA)

sobre sexualidade e gênero, portanto, nossa forma de agir e pensar sobre estes temas, são construídas a todo momento por meio de uma série de relações entre os diferentes grupos de pessoas, entre as pessoas e as instituições, entre as pessoas e as normas sociais, entre as pessoas e as formas de saber considerado científico ou não e, finalmente, na forma como cada um/uma de nós constrói para si as relações entre todas estas coisas. Para a forma como relacionamos tudo isto chamamos de processo de subjetivação, que é a forma como nos construímos enquanto sujeitos em um duplo sentido: como nos sujeitamos às normas sociais impostas e como nos sujeitamos a nós mesmos pela obrigação de manter sempre a mesma identidade ao longo do tempo; mas também como podemos ser ativos neste processo e nos (re) inventar. Estxs autorxs vão dizer que tanto a sexualidade quanto o gênero estão enlaçados em relações de poder diversas que tentam padronizar a forma como

nos construímos como sujeitos, a partir do pressuposto de que existe uma sexualidade considerada “normal” (a heterossexualidade). E como em nossa sociedade a sexualidade possui uma relação fundamental com aquilo que somos enquanto sujeitos, o controle da sexualidade e do gênero se mostra uma forma muito importante de regular o que fazemos com nossas vidas. Este debate sobre sujeitos, subjetividade ou processos de subjetivação é particularmente interessante para os saberes psi (psiquiatria, psicologia e psicanálise). Em grande parte, só foi possível para a psicologia surgir como uma disciplina científica a partir do surgimento de uma subjetividade com determinados atributos: coerência interna, persistência ao longo do tempo, unidade, estabilidade. Boa parte dos conceitos fundamentais para as teorias psicológicas estão baseadas nestas concepções. Entretanto, cada vez mais estamos vendo surgir estudos que mostram que a forma como pensamos as características da subjeti-


vidade estão desde o início articuladas com a forma como pensamos e agimos em relação a sexualidade e gênero. Não se pode pensar nestas questões de forma separada. Especialmente porque muitas vezes estas noções e as normas sociais construídas são capazes de causar sofrimento psíquico. Neste sentido, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) publicou a Resolução 01/99 que é um documento que versa sobre a forma de atuação de todas/os as/os psicólogas/os em relação ao tema da homossexualidade e deixa explícito que esta não é “desvio nem doença nem perversão”. Dessa forma, a atuação das/dos psicólogas/os deve ser direcionada para o enfrentamento do sofrimento causado pelo preconceito e discriminação que, infelizmente, ainda existem em relação à homossexualidade. Uma das principais características dos trabalhos dxs autorxs citadxs é assumir que, já que estas noções que pa-

“ESTAS NOÇÕES QUE PARECEM HOJE PARA NÓS COMO ‘NATURAIS’ OU ‘SEM HISTÓRIA’ FORAM CONSTRUÍDAS, ENTÃO ELAS PODEM SER TAMBÉM DESCONSTRUÍDAS”

recem hoje para nós como “naturais” ou “sem história” foram construídas, então elas podem ser também desconstruídas. Assim, um passo muito importante neste processo de enfrentamento é desconstruir as normas sociais que aprisionam as múltiplas maneiras pelas quais podemos nos relacionar com nossos corpos e nos inventar como sujeitos. Em relação às diferentes experiências de lesbianidades, podemos visualizar que existem múltiplas maneiras de relações entre mulheres, seus corpos e desejos: mulheres que assumem uma identidade lésbica e se relacionam com homens e mulheres; mulheres que se relacionam com mulheres apenas sexualmente (sem relacionamentos afetivos duradouros); mulheres que se amam e escolhem assumir o compromisso de um casamento; mulheres que em seu modo de ser assumem uma postura considerada “masculina” e outras que se sentem bem se vestindo e agindo de maneira considerada socialmente como “feminina”. Desse modo, não se pode dizer que exista uma única forma de identidade lésbica nem que todas as mulheres com experiências de lesbianidade tenham obrigação de se adequar aos padrões e estereótipos existentes. Ao refletir sobre estas questões nos tornamos capazes de questionar aquilo


que nos foi ensinado a respeito de como devemos ser e agir de modo mais amplo. Falar sobre sexualidade e gênero mostra como podemos inventar novas formas de relações sociais, relações de poder e relações conosco e nossos corpos. Ao mesmo tempo, vamos nos dando conta de que essas divisões dos seres humanos entre “feminino” e “masculino”, “heterossexual” e “homossexual”, “caminhoneira” e “lésbica feminina”, também são divisões construídas historicamente. A

Psicologia Social Crítica se empenha em questionar estas divisões que buscam aprisionar a complexidade do ser humano. Admitindo que tudo o que fazemos, falamos e pensamos possui algum nível de relação com a sexualidade, o gênero e a nossa subjetividade, acredito que uma boa forma de começar a desconstrução de normas é se permitir pensar de forma diferente sobre estas questões. Que tal tentar?

¹ Este texto apresenta de forma simplificada alguns debates encontrados em minha dissertação de mestrado, sobre o jogo performativo de gênero de mulheres atravessadas em seus processos de subjetivação por múltiplas experiências de lesbianidade. As idéias expostas estão fundamentadas, principalmente, na leitura dos livros: História da Sexualidade I: a vontade de saber, de Michel Foucault, e Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, de Judith Butler. A Resolução 01/99 pode ser encontrada no site do Conselho Federal de Psicologia.


Sou intersexo. Invisibilizado, mutilado, maltratado, padronizado. Eu não sou hermafrodita. Meu nome é outro e meus pais também. Mudam meu nome, meus pais, meu gênero, meu corpo, minha vida. Consertam o que não era defeito. Se o corpo é meu, cadê meus direitos? Quero me amar. Quero decidir. Eu quero ser do jeito que eu nasci. Eu existo, resisto, persisto. Nos livros de biologia eu não existo. Na faculdade de medicina, eu sou algum tipo de anomalia.

[Bandeira brasileira do orgulho Intersexo]


Haru, VJ/DJ, Rio de Janeiro (RJ)

“Seu bebê tem pênis ou vagina?” “Útero? Ovários? Testículos?” “Conserta logo isso, menino! Ou será menina?” “Mas menina não tem barba.” “E menino não tem seio.” “Eu corrigi errado? E o seu defeito?” “XX ou XY?” “XXY é aberração, o meu deus não deixa não.” “Toma logo as vitaminas menina, pra ver se fica feminina.” “Consertaram como homem? Não chora, tu num é sujeito macho?! Ou será que eu precipitado, consertei errado?” “Eu só queria ajudar, pra não traumatizar outras criancinhas. A minha? Traumatizada, tadinha. Mas assim é mais bonitinha.” Sou humano, intersexo, real, não igual. Eu sou (per)feito de amor, e é mais forte que você.


O conjunto dos meios de comunicação de massa, como jornais, revistas, TV, rádio e parte da internet chamase mídia e é um local de construção de sentidos. Com a ajuda da mídia, formamos conhecimento sobre o mundo e a realidade em que vivemos. Outras instituições com esse papel são a educação formal, a religião e mesmo a família. Isso não quer dizer que sejamos espectadores passivos e acríticos do que é veiculado. Mas o que a mídia nos apresenta não é apenas consequência das representações coletivas de determinados locais e épocas, como também uma reelaboração dessas representações, que podem influenciar a apreensão da realidade. Por definição, mídia é mediação. Para exemplificar, podemos citar o jornalismo: é impossível que as notícias sejam espelhos fiéis da realidade. Elas são apenas recortes de um todo, determinados por inúmeros fatores, como os valores daquela sociedade, a subjeti-

vidade do jornalista e o modo como o processo produtivo das redações se estrutura, que determina o que é noticiável ou que fontes serão ouvidas. Heteronormatividade Ao reproduzir valores socialmente partilhados, a grande mídia tende a reforçar aqueles que são dominantes na sociedade, contribuindo para a manutenção do status quo. No campo da sexualidade, o valor reforçado é a heteronormatividade, padrão que define que a orientação heterossexual é a única considerada normal e válida, que determina que deve haver uma “coerência natural” entre genitália e identidade de gênero, que hierarquiza os sujeitos de acordo com seu gênero e sexualidade e que regula os arranjos afetivos e familiares. Sob essa perspectiva, só são valorizadas pessoas heterossexuais, cisgêneras,


suficientemente masculinas ou femininas (de acordo com o sexo designado ao nascer) e que se casem com fins reprodutivos. É um valor que organiza o mundo ocidental, resultado de discursos também produzidos e reproduzidos pela mídia. Não é difícil perceber essa padronização. Peças publicitárias do Dia dos Namorados, por exemplo, raramente estampam casais homoafetivos. Além da inclusão da diversidade sexual na publicidade ser algo bem recente, empresas que ousam nesse sentido costumam ser duramente criticadas. Basta lembrarmos que a campanha do Boticário de 2015 alusiva à data foi denunciada ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e que, esse ano, uma pastora evangélica incentivou o boicote à C&A por causa de uma campanha que brinca com os gêneros, mostrando homens e mulheres trocando de roupas entre si. Telenovelas Não é possível negar a relevância que as novelas têm para a população brasileira. Para além do entretenimento, elas podem influenciar comportamentos e levar à discussão de temas relevantes, como violência doméstica, tráfico de pessoas e LGBTfobia.

Em sua dissertação de mestrado, o jornalista Welton Trindade analisou os efeitos de personagens LGBTs nas novelas para a opinião pública. Para ele, LGBTs nos folhetins televisivos possibilitam que os espectadores “convivam” com lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Dessa forma, o público pode conhecer essa realidade, deixar de estranhá-la e possivelmente desenvolver atitude mais positiva com o segmento. A avaliação otimista de Welton não é consenso entre especialistas e militantes. Porém, é inegável que a quantidade de personagens LGBTs nas telenovelas aumentou ao longo do tempo e também que deixou de ter uma representação unicamente caricata, destinada ao riso. O tão esperado beijo gay finalmente foi ao ar em 2014 entre Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso), na novela Amor à Vida. Apesar de ter sido basicamente apenas um selinho, gerou revolta nos setores mais conservadores – embora, no geral, a reação do público tenha sido positiva. Enquanto isso, casais heterossexuais protagonizam tórridas cenas de sexo com frequência, sem o mesmo frisson. Apesar dos avanços, ainda há um padrão dos LGBTs aceitáveis nas novelas. O beijo de um casal de lésbicas idosas vividas por Fernanda Montenegro e


Personagens ainda são “higienizados”

Nathalia Timberg no primeiro capítulo de Babilônia não teve a mesma aceitação que o de Félix e Niko, ou mesmo o de Giovanna Antonelli e Tainá Müller na novela Em Família. A jornalista Fernanda Nascimento avalia que ainda há prevalência de personagens gays, em relação aos outros segmentos da “sopa de letrinhas”, e que eles são preferencialmente brancos, de classe média e heteronormativos. Para ela, há pouca visibilidade de transexuais, travestis e bissexuais. Já as lésbicas têm a sexualidade mais regulada, aparecendo em geral como lesbian chic, a serviço do fetiche masculino, com pouco espaço para as mais masculinizadas. Tudo muito “higienizado”, nas conclusões de Fernanda em sua dissertação de mestrado, que deu origem ao livro Bicha (nem tão) Má – LGBTs em Novelas.

Mesmo com essas ressalvas, a autora também acredita que a presença da temática nos folhetins pode ser educativa para a população. Notícias Voltando ao jornalismo, também é possível perceber nele a tendência à reafirmação da heteronormatividade, matriz que determina a visibilidade/ invisibilidade e representação da diversidade sexual no meio noticioso hegemônico. As narrativas jornalísticas tendem ao estereótipo, para ser consumidas e compreendidas pelo maior número de leitores. Vicente Darde afirma que as representações de LGBTs nos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, alvos de sua tese de doutorado, ten-


dem ao reforço de um padrão entendido como heterossexual, como o casamento monogâmico com filhos, excluindo outras vivências. Seria uma tentativa de “normalizar” o público LGBT, que deve ser mais parecido possível com o que é valorizado socialmente – que viva em conformidade com o gênero atribuído ao nascimento, em união estável, com discrição e boa condição econômica. Para além disso, são apenas os “exóticos”, uma minoria que não representaria a população LGBT como um todo. Uma premissa, aliás, muito parecida com o que diz Bolsonaro ao diferenciar pessoas LGBTs de militantes LGBTs. A ideia subjacente é que, para ser aceito, só sendo “limpinho” e “domesticado”. Assim como nas novelas, existe também no jornalismo predominância da representação do homem cisgênero gay branco e de classe média, em detrimento das demais identidades. Carlos Alberto de Carvalho observou isso de forma clara, no livro Jornalismo, Homofobia e Relações de Gênero, fruto de sua tese de doutorado: matérias com personagens que seguiam esse padrão eram revestidas de aceitação e respeito. Já aos LGBTs negros e periféricos, era reservado o escárnio. Uma outra estereotipia frequente está nas coberturas das paradas do Orgulho LGBT,

que frequentemente enfatizam a festa, o glamour e o pink money, mas que pouco ressaltam seu real propósito, a luta por direitos. Por outro lado, o jornalismo tem também o potencial de dar voz à real diversidade e visibilizar todas as vivências de gênero e sexualidade, mesmo as consideradas mais “desviantes”, contribuindo para torná-las mais aceitas e compreensíveis para a sociedade. Parece haver um progresso nesse sentido na grande mídia, para quem LGBTs costumavam ser ou invisíveis ou marginalizados, relegados às páginas policiais ou relacionados à ideia de “peste gay”, em referência à Aids. Hoje, ainda que de forma heteronormativa, já exibem alguma aceitação.

“HOJE, AINDA QUE DE FORMA HETERONORMATIVA, JÁ EXIBEM ALGUMA ACEITAÇÃO” Mas, talvez, os maiores potenciais para a visibilidade da diversidade estejam no jornalismo produzido pela comunicação pública, como o existente na Empresa Brasileira de Comunicação (EBC); nas narrativas contra hegemônicas da chamada mídia independente, como do coletivo Jornalistas Livres


ou da agência de reportagem Pública; e no próprio jornalismo especializado dos sites voltados à pauta LGBT - que, infelizmente, muitas vezes podem ser chamados de imprensa gay, tal a prevalência do G da sigla LGBT em seu foco. Militância Nos Estados Unidos, a Gay and Lesbian Alliance Against Defamation – GLAAD (em tradução livre, Aliança Gay e Lésbica contra a Difamação) é uma instituição que monitora a mídia do país em relação à representação da população LGBT e exerce um papel de ativismo. Algumas das atividades desenvolvidas pela GLAAD são o levantamento de personagens LGBTs na ficção; a avaliação das coberturas noticiosas e, quando necessário, diálogo com os veículos de comunicação ou mesmo boicote nos casos extremos; e treinamentos sobre como se relacionar com a imprensa para porta-vozes de organizações LGBT. De acordo com o jornalista Luiz Henrique Coletto, que pesquisou, no seu mestrado, a relação entre movimen-

to LGBT e mídia nos Estados Unidos e no Brasil, a GLAAD conquistou um espaço considerável no campo midiático no país, diferente do Brasil, que parece ainda estabelecer essa relação tão importante de forma tímida e não sistemática. Uma iniciativa foi o Manual de Comunicação LGBT, lançado em 2010 pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), com o objetivo de orientar comunicadores sobre a diversidade sexual. A publicação esclarece, por exemplo, a distinção entre orientação sexual e identidade de gênero e a inadequação do termo “opção sexual” ou do uso de artigos e pronomes masculinos para se referir a travestis. Uma ação importante, mas que precisa de divulgação permanente. Assim, cabe aos profissionais de comunicação aprender sobre essas questões, às empresas midiáticas estar atentas à diversidade, ao poder público agir para coibir abusos – e, principalmente, a nós, LGBTs, lutar para que os sentidos construídos sobre nós na mídia sejam cada vez mais inclusivos.

Ádria Azevedo, Graduanda de Jornalismo na UFPA e criadora do paradiversidade.com.br - Belém (PA)


#MigaApenasPare

Estar em alguma minoria não te dá liberdade para reproduzir outras opressões. Chega de gays misóginos, feministas transfóbicas, lésbicas bifóbicas, homens trans machistas e etc, etc, etc. Vamos exercitar a empatia, que tal?


CACHOS R

evi cachos na minha cabeça depois de 8 anos. Alisei meu cabelo na véspera de completar 15 anos; como um “presente”, teria o alívio de não ter mais que lidar com tanta complicação na hora de me arrumar pra sair. Amava meus cachos, mas, na época, disseram ser o único jeito pra “domar meu cabelo”. O que eu não sabia é que muita coisa além do meu cabelo estava sendo domada no meio de todo aquele processo químico. Ser elogiada na escola, mais aceita, com o estilo parecido com as demais adolescentes com quem lidava no dia a dia passou a ser uma boa ideia, com o tempo. De alguma forma, eu já tinha a certeza de que ia abandonar o alisamento algum dia, nem que fosse quando engravidasse (rs), mas me cansei da química muito mais cedo do que imaginava. Comuniquei a minha cabeleireira, ainda retoquei a raiz por mais uma vez, mas desisti de refazer isso pouquíssimo tempo depois. Comecei a ler mais profundamente sobre transição capilar, cabelos crespos, entrei em grupos, sites, páginas. Até que, muito mais do que dicas e fórmulas, me deparei com ex-

periências de pessoas. Várias. Um universo em que cada membro se acolhe e se apoia, conta suas histórias e é nelas que a gente consegue ter base e força pra seguir o nosso caminho e escolher a forma de fazê-lo. Olhava depoimentos das pessoas que faziam o BC (Big Chop – corte de toda a parte com química do cabelo) como verdadeiras corajosas e, o melhor: estavam muito satisfeitas, sentindo-se ótimas. Queria esperar meu cabelo crescer mais, mas a ansiedade por vê-lo natural e a crescente falta de paciência pra lidar com mais de uma textura de cabelo fizeram com que, com um ano da vez que fizera o último alisamento, eu ligasse para a minha cabeleireira e marcasse o corte. Transição capilar não é uma questão apenas estética, ao meu ver. É uma questão igualmente histórica, social e mexe muito mais com nossa percepção de nós mesmxs do que imaginamos. É maravilhoso. Além de tudo, notamos também como as pessoas ao nosso redor lidam com essas transformações. Tive perto de mim o pessoal que deu e continua dando a maior força


Victória Costa, Realizadora audiovisual e publicitária - Belém (PA)

desde o momento em que contei sobre a decisão de retornar aos cachos. Comemoram e realmente apoiam. Mas devemos saber também que tem aqueles que “preferem como era antes”, que geralmente não comentam, mas dão a entender de diversas formas, inclusive com esse silêncio. Outros estranham, dizem/acham que o cabelo está bagunçado, ou coisas do tipo. Inclusive é muito frequente essa não-aceitação em ambientes de trabalho, onde o cabelo afro às vezes é visto como um não-social/não-arrumado. Tudo isso faz parte do costume com os padrões de beleza

que foram estabelecidos e continuamos perpetuando ainda que sem perceber, por vezes. O importante é sabermos que cada um de nós sabe o que é melhor pra si. Algumas pessoas saem da prisão do alisamento, chapinha e afins, passam pela transição capilar e acabam caindo na prisão de uma busca eterna por “cachos perfeitos”. Na metade da minha transição, quando reparei que tinha duas ou três texturas diferentes no meu cabelo, desisti de olhar imagens de cabelos cacheados e tentar adivinhar como o meu seria. Passei então a tentar ser pa-


ciente e esperar pra ver. Até hoje, quando me perguntam se vou deixar crescer muito, se vou pintar, se vou fazer dread locks, apenas digo que tô esperando a vontade dele e como ele vai querer ficar. Quase um ano depois, ainda tô redescobrindo e reconhecendo meus fios e as maneiras de lidar melhor com eles, não apenas esteticamente. Esse não é um discurso para que todas as pessoas com cabelos afro, a partir de agora, devam se submeter ao seu cabelo natural. É um depoimento para pregar a liberdade que cada um deve ter pra usar seus fios da maneira que se sentir bem, que é o que importa. Discutir negritude tem sido cada vez mais frequente e todo mundo só


“ME RECONHECER ENQUANTO NEGRA E PROCURAR SABER MAIS DA MINHA RAIZ, QUEM EU SOU E TOMAR MINHAS LUTAS NESSE SENTIDO PASSOU A SER DIÁRIO”

tem a ganhar com isso. Reconhecer-me enquanto negra e procurar saber mais da minha raiz, quem eu sou e tomar minhas lutas nesse sentido passou a ser diário. Inclusive descobri aqui mesmo onde moro um grupo que discute a cultura afro para além do cabelo: estilo, músicas, danças, etc. Geralmente são grupos super abertos e que estão sempre disponíveis pra dar dicas e mesmo se reunir pra conversar sobre todo esse universo. Quando falamos de transição capilar, talvez se pareça com tantas outras transições sociais/estéticas/físicas pelas quais podemos passar no decorrer da vida. Dessa forma, acho que, ainda que em maior ou em menor grau, podem

ser comparáveis. Ao tomar a decisão de transicionarmos de um estado para o outro, nos deparamos com o olhar dx outrx, mas com um autoconhecimento muito mais forte. Todo dia aprendo mais, me desconstruo mais e vejo que temos que olhar para os lados, pra observar e pra ajudar axs outrxs e a nós mesmxs. Enquanto negrx, as lutas se potencializam. Tenho que lutar enquanto mulher e enquanto negra, apoiar a luta de quem é LGBT e negrx, a luta de quem é pobre e negrx e toda uma gama de lutas que pouco ou ainda desconheço, mas que é importante ter contato. Nossas lutas não param, mas para termos mais força nelas, temos que nos (re)conhecer e nos unir.


O PRECONCEITO DE CADA DIA. AMÉM.

E

u nasci. E me disseram que ser gay era feio. E eu acreditei. Com o tempo, fizeram-me acreditar que ser diferente era pecado. Mas se Deus está dizendo, quem sou eu pra discordar? Em meio a risadas debochadas, olhares julgadores e dedos apontados, eu cresci. Cresci tendo vergonha de mim (Adler e o meu sentimento de inferioridade). Mas chega um momento que você cansa de ser expectador e quer ser coadjuvante. Coadjuvante não: PROTAGONISTA . E aí você se liberta, solta o REICH que está dentro de você e faz o seu próprio espetáculo. E há quem com-

pra o ingresso errado e critica o que está assistindo. Mas a vida é assim, tem gente que te vaia e tem gente que te aplaude. Eu sinceramente gostaria de terminar este texto dizendo que, igual a uma peça de teatro, tudo deu certo no final, as cortinas se fecharam e todos foram felizes pra sempre. FIM. Fim? Hã? Por quê? O preconceito acabou? Não, meus caros, ele só foi repaginado. Sabe quando você é convidado pra uma festa chique e antes vai no cabeleireiro fazer unha, o penteado, sobrancelha, massagem, depilação holandesa e yôga, e sai deslumbrante? Pois bem, o preconceito está assim, escondido dentro


Alexandre Felipe de Oliveira, Analista financeiro e militante de esquerda São José do Rio Preto (SP) de uma bolsa Louis Vuitton falsificada. Tem frases preconceituosas que hoje em dia me incomodam muito como: “Tá na Bíblia: Deus fez o homem e a mulher.”, “Homem não chora.”, “Fulano foi pro lado errado da vida porque quis”. “Os negros têm preconceito dos próprios negros”, “Não tenho preconceito, mas dois homens se beijando é um absurdo. O que vou explicar pros meus filhos?”, “Vai tomar no cu!” (Como se não fosse bom). De boa, o mundo pedindo SOCORRO e tem gente preocupado por que dou a bunda??? Sem contar nas mortes que ocorrem por não aceitarem o diferente. Será que é tão diferente as-

sim? O que tem de mim no outro que eu rejeito tanto? Por que o afeto afeta tanto? O que as pessoas escondem dentro de si que faz com que tenham a necessidade de julgar? Não sei. A única coisa que tenho certeza é que sou GAY com ORGULHO e que resolvi AMAR. O grande Albert Einstein uma vez disse: “Só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é viver como se os milagres não existissem. A segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre.” Eu, Alexandre Felipe de Oliveira, escolhi viver a segunda maneira . E que a vida seja leve.


N

os anos de 1949 era lançado um dos livros mais importantes para as teóricas de gênero, o famoso “Segundo Sexo”, da autora Simone de Beauvoir, o qual apresenta uma discussão importante para o feminismo. A principal proposta da autora era a de repensar o “ser mulher” e ressignificá-lo. Ao desnaturalizá-lo com a famosa frase: “Não se nasce mulher, torna-se”, Beauvoir assinala o ser mulher como um processo social e cultural, que é aprendido a partir de estereótipos impostos através de valores historicamente construídos, indicando que a biologia não seria o destino de gênero. O movimento feminista da segunda onda (dos anos 60 e 70), influenciado pela discussão de Beauvoir, procurou compreender as raízes da dominação masculina, afirmando então que a so-

cialização é diferenciada de acordo com o sexo/gênero da pessoa. Essa reflexão foi importante para se contrapor a uma visão determinista que entende gênero como sendo determinado através do sexo. Assim, a discussão pautava-se na diferença entre homens e mulheres, não se trabalhando sobre diferenças intragênero, de modo que não se pautou as identidades de gênero. Conforme o debate que se iniciava no âmbito das discussões feministas de gênero, os seres inteligíveis são inicialmente assinalados como macho e fêmea, sendo reconhecidos como homem ou mulher apenas a partir do processo de socialização. Isso significa que a socialização seria o fator que atribuiria aos seres características masculinas ou femininas e que dentro deste conjunto de características estaria também um


conjunto de comportamentos normatizados que garantem a dominação de um grupo sobre o outro. Segundo as ciências sociais, socialização é um processo em que os indivíduos aprendem, em diferentes instâncias da vida social (piadas, escola, igreja, música, cinema, televisão, família, etc.), uma série de padrões culturais e sociais da sociedade ou grupo

“MAS SERÁ QUE ENTENDER QUE NASCER MACHO E SER SOCIALIZADO COMO HOMEM INDICA UM CARÁTER DETERMINISTA COMO TEM SIDO COLOCADO EM ALGUNS DEBATES? SERÁ QUE ELE É HOMOGÊNEO? SERÁ QUE NÃO APRESENTA FALHAS?”

que vivemos. Essa discussão tem sido trabalhada por diferentes vertentes do feminismo, a partir de diferentes perspectivas, mas compreendendo que gênero é algo construído e não algo inato do indivíduo. Algumas cisativistas radicais consideram que este conceito é intransponível e homogêneo descartando todas as subjetividades e recortes a que o sujeito esteja submetido ao longo de sua existência. Mas será que entender que nascer macho e ser socializado como homem indica um caráter determinista como tem sido colocado em alguns debates? Será que ele é homogêneo? Será que não apresenta falhas? Podemos usar como exemplo um homem trans, que tendo nascido sob designação feminina e recebido socialização feminina, contrariando as expectativas da sociedade, não se torna uma mulher, ou seja, ele


foge à regra dessa perspectiva de socialização apresentada pelas cisativistas, pois os saberes sociais a ele repassados não agiram de forma que o tornasse uma figura feminina, já que ao assumir uma transmasculinidade ele desconstrói o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento e constrói uma identidade social masculina. Uma mulher trans, que nasceu sob designação masculina, também foge a esta regra, pois mesmo sem ter sido ensinada a “ser mulher” construiu uma identidade feminina, passando com isso a sofrer as consequências de reivindicar a sua mulheridade em uma sociedade patriarcalista e misógina. No início deste ano, lemos o relato de uma mulher trans que narra que aos seis anos de idade foi flagrada usando uma calcinha e por este motivo foi surrada até ficar inconsciente. Relatos como estes não são incomuns. Muitas mulheres trans tiveram suas infâncias marcadas pela violência de gênero. Pois, ao contrário do que diz a visão cissexista radical, esta não é uma opressão pautada somente pelo sexo de nascimento, mas ao gênero ao qual a pessoa se enquadra e reivindica socialmente. Relatos como estes, desconstroem o mito de que mulheres trans são privilegiadas por não terem sofrido misoginia, pois receberam socialização masculina e, desse

modo, teriam sido ensinadas a dominar e oprimir. Pessoas trans representam a exceção da regra da socialização imposta pelas militâncias cissexistas e demonstram que esta acepção é equivocada e ultrapassada por desconsiderar o fator identitário, os recortes, as vivências e as construções individuais. Mas de que forma pessoas trans fogem à regra da socialização, defendidas por radicais? Durante a infância e adolescência, a pessoa trans já reconhece em si o não pertencimento ao gênero que lhe foi imposto ao nascimento. Inicia-se aí um processo diferenciado de se experimentar a socialização, pois devido ao seu não enquadramento neste gênero, observa-se um movimento contrário a esta socialização, uma “contrasocialização”, ou seja, todos os padrões sociais impostos ao gênero oposto ao que me identifico serão inconscientemente descartados e ao negar essas imposições, eu nego também a socialização. O ato de contestar estes padrões e descartá-los representa uma ruptura com a ideia defendida por essas cisativistas, representa a ruptura com a normatização dos gêneros, representa o descer da casta, renunciar aos privilégios, sofrer marginalização e violência. Beauvoir não fala sobre pessoas trans por não termos visibilidade em sua épo-


ca, mas a partir da sua desnaturalização do gênero se problematiza o cissexismo e várias outras questões de gênero. Sua leitura social se deu em outra época e contexto, por isso um ativismo que se utiliza de uma perspectiva que entendemos ser essencialista para deslegitimar pessoas trans, não é apenas deslegitimar pessoas trans, mas outras mulheridades e masculinidades construídas de diversas formas. A falha está aí; nossas experiências e vivências são diferentes, nossas construções são diferentes, a socialização homogênea não existe, há de se fazer recortes diversos, inclusive em contexto de época, raça e posição econômica. Ao proferir a frase “a socialização não falha” com o objetivo de

deslegitimar a vivência de pessoas trans, estas cisativistas estão deslegitimando o feminismo, pois se algo não é falho, logo não pode ser combatido, os sujeitos do feminismo seriam obedientes e não contestariam a tal socialização; então porque existir feminismo? Somos seres construídos e desconstruídos constantemente; apontar que algo não é falho é pura desonestidade intelectual ou falta de empatia. Afinal, o que pensam essas cisativistas? Pessoas trans não colocam suas vidas em risco ao transicionarem por mero capricho ou porque querem sofrer as mais diversas violências sociais. Transicionamos para termos nossos gêneros respeitados e nossos corpos inteligíveis.

“A FALHA ESTÁ AÍ, NOSSAS EXPERIÊNCIAS E VIVÊNCIAS SÃO DIFERENTES, NOSSAS CONSTRUÇÕES SÃO DIFERENTES, A SOCIALIZAÇÃO HOMOGÊNEA NÃO EXISTE, HÁ DE SE FAZER RECORTES DIVERSOS, INCLUSIVE EM CONTEXTO DE ÉPOCA, RAÇA E POSIÇÃO ECONÔMICA”

Suelen Moraes, Transfeminista - Cachoeira do Sul (RS) Davi Miranda, Coordenador do Coletivo de Homens Trans PA, Blogueiro e Cyberativista nos blogs TransLucido e Interseccionalizando - Belém (PA)


PONT@S Lanço aspas Me devolve silêncio Lanço indagações Me encerra em colchetes Num travessão qualquer minhas chaves tilintam a ausência da fechadura Rodrigo Pedro Casteleira, Professor de filosofia, doutorando em educação Maringá (PR)


#MigaApenasPare

Supor que todo homem negro cisgênero tenha o pênis grande e seja ativo é uma forma de hipersexualizá-lo. Assim como achar que toda mulher negra é fogosa na cama. O racismo aparece de várias formas, inclusive disfarçado de aparante “elogio”.


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