26 minute read

Escravidão—Ajuste com a história

Next Article
Espraiação

Espraiação

O recente debate sobre o pedido de desculpas e de indemnização sobre a escravidão, ainda recentemente aflorada por Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, leva-nos a divulgar um texto sobre o assunto, publicado no jornal OBSERVADOR (Portugal) a 12 de junho de 2020. É seu autor, o jornalista José Carlos Fernandes.

O texto foi originalmente publicado a 5 de novembro de 2017 e republicado a 12 de junho de 2020, a propósito da vandalização da estátua do Padre António Vieira que se verificou em Lisboa.

Advertisement

No passado dia 5 de oútúbro (2017), o grúpo Descolonizando tentoúprotestar–apesardaoposiçao de úma contramanifestaçao de extrema direita – contra a receminaúgúrada estatúa do Padre Antonio Vieira no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, alegando qúe o Padre Antonio Vieira era úm “escravagista selectivo”. A súa argúmentaçao, porem, era de escopo mais amplo: apontava tambem o dedo a Igreja Catolica e a Portúgal, como responsaveis pelo infortúnio dos milhoes de africanos levados cúlpas de ambito generico qúe tem vindo a ser assacadas a Portúgal e aospaíseseúropeúsnoqúerespeitaaescravatúra.

A cultura do ajuste de contas com a história

Nos últimos anos tem ganho difúsaoaideiadoajústedecontascom a Historia: úm povo oú úm grúpo etnico qúe se ve a si mesmo como bom,jústoeisentodepecado,lembra a oútro qúe, em tempos, os antepassados do segúndo roúbaram, mataram, escravizaram oú oprimiram os antepassados do primeiro. Apoiados núma matematica simplistaetantomaisfantasiosaqúanto mais remotos forem os eventos emcaúsa,osdescendentesdosjústos apresentam aos descendentes dos facínoras úma conta detalhada dosdanosmateriaisemoraissofridos, com as necessarias correçoes paraainflaçao.

Em 2014-15, qúando as finanças gregas a beira da bancarrota abriam noticiarios, a Grecia entendeú qúe ao governo alemao faltava aútoridademoralparaimporaosgregos medidas dúras e reformas impopúlares,comocontrapartidapelo

Se na Eúropa este desenterrar de contas antigas nao e freqúente e nao costúma recúar mais longe do qúe a II Gúerra Múndial, ha pelo múndo qúem se qúeixe sistematicamentedeagravosbemmaisantigos.

Uma das qúestoes levantadas mais amiúde, sobretúdo a partir do início do secúlo XXI, e a das reparaçoes pela escravatúra. Embora a escravatúra seja úma pratica qúe teve,desgraçadamente,ampladifúsao no espaço e no tempo, qúando se fala em “reparaçoes pela escravatúra” presúme-se aútomaticamente qúe os lesados sao países americanos (qúase sempre caribenhos) com forte percentagem de popúlaçao de origem africana, qúe osalvosdospedidosdeindemnizaçao sao países eúropeús e qúe os eventos qúe jústificam o pedido de indemnizaçao tiveram início ha qúatro oú cinco secúlos e estenderam-seateaoiníciodosecúloXIX.

A “açao civilizadora” da Eúropa, qúe dúrante múito tempo foi apresentada, nos discúrsos oficiais e nos manúais escolares, como úm motivo de orgúlho e úm sinal evi- dente da súposta súperioridade da naçao em qúestao, representoú para os oútros povos do múndo, úma catastrofe e levoú doença, escravidao, opressao, prepotencia, húmilhaçoes, maús-tratos, privaçoes, doença e morte a múitas centenas de milhoes de pessoas dúrante secúlos a fio. Ha poúco de qúe os eúropeús possam orgúlhar-se nas súas historias no qúe diz respeito as relaçoes com oútros povos, mas nos países eúropeús com passado colonial continúa a persistir úma aútoimagem fantasiosa e enobrecida do eúropeú como tendo descoberto novos múndos e tendo desempenhado úma benigna missao civilizadora júnto dos “descobertos”.

Em Portúgal, a múndividencia patrioteira incúlcada pelo Estado Novo amainoú apos 1974, mas tem vindo progressivamente a reemergir e a permear os mais anodinos livrosde divúlgaçao historica (leiase, por exemplo, As batalhas qúe múdaram Portúgal, de Súsana Lima). Entre as particúlaridades da imagemqúeosportúgúesestemde si mesmos e da súa historia esta a ilúsao de qúe a súa colonizaçao foi particúlarmente benevola e qúe o seú racismo foi atenúado, face aos oútroscolonizadoreseúropeús.

Na forma como se posicionam face a Historia nacional, os eúropeús dividem-se, genericamente, entre os qúe sentem inchar o peito com orgúlho(maisconotadoscomideologiasdedireita)eosqúesaoatormentados pela cúlpa (os do sector ideologicamente mais a esqúerda), sendo ambos os extremos poúco permeaveis a sensatez e a raciona- lidade. Qúando em Fevereiro passado, núma visita a Argelia, o (entao) candidato presidencial frances Emmanúel Macron declaroúser“inadmissívelfazeraglorificaçao da colonizaçao” e condenoú esta “como úm acto de barbarie”, despertoú a indignaçao dos francesesmaisconservadores.

Ha qúem entenda qúe nao basta qúe a historia da expansao eúropeiasejapúblicamentereconhecida como “úm acto de barbarie”: e necessarioqúeosperpetradores(isto e, os seús descendentes) peçam descúlpa formalmente as vítimas (isto e, aos seús descendentes), removam o enviesamento patrioteiro dosmanúaisescolareseergammemoriais qúe recordem as malfeitorias passadas. Ha qúem va bem mais longe e entenda qúe estes actos de contriçao sao meramente simbolicos e qúe a mais elementar jústiça reqúer qúe o ajúste de contas seja efetivo e material. Foi assim qúe, em Oútúbro de 2014, os representantes de 15 naçoes caribenhas decidiram formalizar úm pedido de indemnizaçao dirigido a varios países eúropeús, qúe consideram responsaveis pelotrafico de escravos qúe, entre o início do secúlo XVI e o início do secúlo XIX, arrancoú12.5milhoesdeafricanos as súas terras natais e oslevoú paraoNovoMúndo.

Tráfico de escravos com origem em África.

De acordo com o website Slavevoyages, no intervalo de tempo entre ofinaldoImperioRomanoeofinal dosecúloXIX,otraficotransatlanticoterasidoeqúivalenteasomados traficos para todos os oútros destinos–emboraaespessúradassetas no mapa veicúle informaçao qúe súgere esmagadora preponderanciadotraficotransatlantico Destes 12,5 milhoes, estima-se qúe 5,5 milhoes terao tido como destinoaspossessoesinglesasnasCaraíbas,qúecorrespondem,aproximadamente,aoconjúntodepaísesqúe hoje forma a CARICOM (Caribbean Common Market and Commúnity): Antígúa e Barbúda, Bahamas, Barbados, Belize (as antigas Hondúras Britanicas), Dominica (nao confúndir com a República Dominicana),

Granada, Gúiana (a antiga Gúiana Britanica), Haiti, Jamaica, Montserrat, Santa Lúcia, Sao Cristovao e Neves (oú Saint Kitts and Nevis), Sao Vicente e Granadinas, Súriname (a antiga Gúiana Holandesa) e Trinidad e Tobago. Foi da CARICOM, oú, mais precisamente, da ComissaodeIndemnizaçoesdaCARICOM (CARICOM Reparations Commission oú CRC), qúe partiú a iniciativa de apresentar o pedido formal deindemnizaçaoa setepaíseseúropeús:Dinamarca,Espanha, França, Holanda, Norúega, Portúgal,ReinoUnidoeSúecia.

Defende a CRC qúe a escravatúra “contribúiú para úm legado dúradoúroenegativoderacismoestrútúralqúecondúziúaosúbdesenvolvimento” da regiao do Caribe, pelo qúeexigeaospaísesesclavagistaso cúmprimento de úm programa (poúco congrúente) de 10 pontos: “1)Apresentaçaoformaldedescúlpas, 2) Repatriamento, 3)Plano de desenvolvimentodospovosindígenas, 4) Institúiçoes cúltúrais, 5) Crisedesaúdepública,6)Erradicaçao da iliteracia, 7) Programa do conhecimento africano, 8) Reabilitaçao psicologica, 9) Transferencia de tecnologia, 10) Anúlaçao de dívidas”.

O assúnto caúsoú algúma agitaçao qúando da apresentaçao formal do pedido, em oútúbro de 2014, foi rapidamente esqúecido, mas reemergiú em setembro de 2015, por ocasiao de úma visita oficial do (entao) Primeiro-Ministro britanicoDavidCameronaJamaica.

A polemica foi apimentada pelo factodeCameronterremotoslaços familiares com Sir James Dúff

(1814-79), proprietario de úma plantaçao de cana-de-açúcar na Jamaica,assenteemtrabalhoescravo.QúandoaGra-Bretanhaaboliúa escravatúraem1833,naseqúencia de revoltas de escravos na Jamaica em1831,indemnizoúosproprietariosdeescravospelaperdadepropriedade”decorrentedanovalei,o qúe implicoú pagar 20 milhoes de libras(40%doorçamento deEstado) a 3000 proprietarios de escravos – pela “perda” dos seús 202 escravos, o antepassado de David Cameron recebeú 4100 libras (3 milhoesdelibrasapreçosdehoje); o Bispo de Exeter recebeú 12.700 libras pela “perda” de 665 escravos.

Aos olhos de hoje pode parecer de úmaironia crúel qúe os aútores da iniqúidade – os proprietarios de escravos – tenham lúcrado com a aboliçao da escravatúra e qúe as vítimasdainiqúidade–osescravos – tenham tidode contentar-se com a recompensa da liberdade. Esta flagrante injústiça – aos olhos de hoje–temsidoúmdosargúmentos esgrimidos pelos descendentes de escravosdasCaraíbasparaapoiara súapretensaoaúmaindemnizaçao.

Cortadores de cana-de-açúcar, Jamaica. c. 1880: qúase meio secúlo apos a aboliçao da escravatúra, o qúe teria múdado na pratica nas condiçoes de vida dos escravos libertadoseseúsdescendentes?

Algúma argúmentaçao a favor das indemnizaçoes recorre a analogia com os tres mil milhoesde marcos pagos pela Alemanha ao Estado de Israel, medianteúm acordoassinado em 1952, relativo ao trabalho escravo, a persegúiçao de júdeús e a apropriaçao de bens de júdeús peloregimenazi.Aqúestaofoireaberta ja no secúlo XXI, nomeadamente atraves do Ministro das Finanças Israelita, qúe, em 2009, declaroú qúe seria necessario úm pagamento extra entre 450 e 1000 milhoes de eúros, em favor dossobreviventesdoscamposdeconcentraçao – úma reclamaçao qúe, súrgindo 57 anos depois do acordo qúe, súpostamente, teria liqúidado o terrível debito alemao, parece extemporanea.

A culpa intergeracional nunca prescreve?

Terra núlliús: Viagem aos antípodas, úm livro de Sven Lindqvist, datado de 2005 e públicado em

2015 em Portúgal pela Tinta-daChina, traz contribútos relevantes paraodebatedacúlpadoOcidente e das indemnizaçoes. Embora esteja públicado na colecçao de literatúra de viagem dirigida por Carlos Vaz Marqúes e tenha por pretexto úma viagem pela Aústralia, as paisagens e costúmes pitorescos cedem neste livro o primeiro plano a denúncia da forma iníqúa como os brancos trataram os aborígenes aústralianos. Enqúanto o trafico negreiro teve lúgar ha úns secúlos, osaborígenesforamvítimasdepolíticas genocidas e discriminatorias pelosecúloXXdentro–eocasodo raptodecriançasmestiças,súbtraídas as famílias aborígenes pelo Estado aústraliano, qúe prossegúiú ate1969.Soapartirdofinaldosecúlo XX o Estado aústraliano admitiú cúlpas, nomeadamente atraves da institúiçao de úm National Sorrow Day, qúe evoca as injústiças cometidas contra os aborígenes. Algúnspolíticosaústralianos,como o primeiro-ministro John Howard (1996-2007), recúsaram-se, todavia, a pedir descúlpas formalmente no Parlamento, argúmentando qúe tal presúmiria a existencia de “cúlpaintergeracional”.

Lindqvist, qúe acredita na cúlpa intergeracional, defende qúe, para qúe o arrependimento seja sincero e conseqúente, nao basta dizer “Compreendoqúeerrei;lamentote -lofeito;prometonaovoltarafazelo”. Para ele, a reconciliaçao com o passadoexigeqúesevamaislonge: “Reconhecemos abertamente o qúe os nossos antecessores fizeram de errado e qúe beneficiamos desses erros; pedimos perdao as vítimas dos delitos e aos seús descendentes; prometemos compensar, de acordo com as nossas possibilidades, as vítimas pelos efeitos remanescentesdosdelitos”.

Comoargúmentoemfavordacúlpa intergeracional, Lindqvist, qúe e súeco, narra úm episodio pessoal, qúando foi confrontado, na Norúega, com a colaboraçao dispensada pela Súecia a Alemanha nazi. Sentindo-se desconfortavel perante a acúsaçao dos norúegúeses, Lindqvist ensaioú mentalmente úma resposta–“Naoecorretocúlparos filhos por açoes cometidas pelos pais.Cadanovageraçaonascelivre decúlpa”–masacaboúporadmitir qúe “nao [e] realmente verdade. A dívidapúblicapassadegeraçaoem geraçao. O mesmo acontece com a riqúeza nacional […] Tinha nascido rico so pelo facto de ter nascido súeco. Nao era por merito proprio qúe vivia melhor qúe úm congoles oúúmindonesio.[…]Aoreceberos benefícios de ser súeco, como poderianegarasdesvantagens?”

Lindqvist faz úm breve inventario de reivindicaçoes de indemnizaçoes pelo múndo fora: úmas mais proximas no tempo, como as das múlheres asiaticas recrútadas para os bordeis das tropas japonesas oú as das vítimas do Holocaústo. Oútrasmaisremotas,comoasdopovo HererodaNamíbia,qúefoialvodas políticas genocidas da colonizaçao alema, dos países africanos “de ondeosescravoseramretirados”,dos índiosnorte-americanosespoliados dassúas terras, oúdos negros norte-americanos.

Hereros aprisionados pelos alemaes: a taxa de mortalidade nos campos de concentraçao criados pelosalemaesnaNamíbiafoide45 -74%

E ainda a dos “60 milhoes de negros do Brasil [qúe] exigiram, em 1995, seis mil milhoes de dolares de indemnizaçao por escravatúra” (o valor da indemnizaçao e extraordinariamente modesto, mas o número de negros brasileiros esta claramente inflacionado, sendo provavel qúe diga maioritariamenterespeitoaos“pardos”).

Opedidodeindemnizaçaopelotrafico negreiro feito pela CARICOM insere-se nesta tendencia, mas algúns dos raciocínios qúe lhe estao súbjacentes levantam serias reservas–algúmasdasqúaisseaplicam tambem para oútros ajústes de contascomahistoria.

O qúe fazem a Dinamarca, a Súecia e a Norúega na lista dos países esclavagistas?

Embora tal esteja hoje úm poúco esqúecido, a Dinamarca possúiú, dúrante algúns anos, úm peqúeno imperio colonial, qúe inclúiú úns fortes e entrepostos na Costa do Oúro(noqúeehojeoGana)eúmas minúscúlaspossessoesnasAntilhas (as pomposamente intitúladas Indias Ocidentais Dinamarqúesas: Sao Tomas e Sao Joao, hoje parte das Ilhas Virgens, sob administraçao norte-americana) e tal deú-lhe o ensejo para participar no trafico negreiro,estimando-seqúeosnavios dinamarqúeses tenham transportadoúmtotalde100.000escravos (o qúe representa menos de 1% do total de africanos levados paraasAmericas).

Qúanto a Súecia, deteve, episodica- mente, em meados do secúlo XVII, úns fortes e entrepostos na Costa doOúroe,entre1784e1878,ailha de Sao Bartolomeú, nas Antilhas, e dúrante ambos os períodos a Súeciacontribúiú,aindaqúemúitomodestamente, para o trafico transatlanticodeescravos.

MaisdifíciledescortinarasresponsabilidadesdaNorúega:entre1524 e 1814, a Norúega e a Dinamarca estiveram únidas núma monarqúia dúal, mas os norúegúeses podem alegarqúetambemelesforamvítimas, dúrante secúlos, do domínio dinamarqúes, nao existindo seqúer como reino entre 1536 e 1660 (digamosqúeaNorúegaesteve,em relaçao a Súecia, na mesma sitúaçao em qúe Portúgal esteve em relaçao a Espanha entre 1580 e 1640). Para mais, mal consegúiú libertar-sedaDinamarca,em1814, a Norúega caiú sob o domínio da Súecia. Portanto, em vez de pagar indemnizaçoes, os norúegúeses poderaocandidatar-se a recebe-las dos seús dois vizinhos. E difícil afastarasúspeitadeqúeaNorúega esta na lista apenas porqúe e úm paísricoecomtradiçaodegenerosidadenaajúdahúmanitaria.

Por que razão são os países de destino dos escravos e não os países de origem a reclamar uma indemnização?

Na verdade, os países de origem ja tinham apresentado úm pedido de indemnizaçao,atravesdaComissao de Indemnizaçoes e Reposiçao da Verdade do Múndo Africano (African World Reparations and Repatriation Trúth Commission), qúe, em 1999, exigiú o pagamento de 777 bilioes de dolares no prazo deqúatroanos–paraqúesepercebaainsensatezdestepedido,devera atentar-se em qúe, em 2014, o PIB portúgúes foi de 173 mil milhoesdeeúros(195milmilhoesde dolares) e o PIB de toda a Uniao Eúropeia foide 13 bilioesde eúros (19bilioesdedolares).

Núma perspectiva cínica, os países eúropeúspoderiamalegarqúe,disfrútando os habitantes da CARICOMdecondiçoesdevida(aferidas emtermosdePIBpercapita,esperança media de vida, mortalidade infantil,etc.)súperiores,emmedia, as qúe hoje se registam nos países africanosdeondeproveioparteda súa popúlaçao, o trafico negreiro transatlantico prestoú úm serviço, senao as súas vítimas diretas, pelo menosaosseúsdescendentes.

Pela mesma razao, se se efetivasse o programa de repatriamento (ponto 5 no programa de exigenciasdaCARICOM)dehabitantesde ascendencia africana das Caraíbas para Africa, teria provavelmente múitopoúcoscandidatos.

Os valores de indemnização pedidos são razoáveis?

Se os 777 bilioes calcúlados pela Comissao de Indemnizaçoes e Re- posiçaodaVerdadedoMúndoAfricano parecem descabelados, SandewHira,directordoInternational Institúte for Scientific Research, com sede em Amesterdao, e coeditordeúmaseriedelivrosintitúlada Decolonizing the mind (qúe rejeita a ciencia búrgúesa e eúrocentrica e pretende súbstitúi-la por úm conhecimento “de inspiraçao indígena”), apresentaúm valor ainda mais astronomico para as indemnizaçoesapagarpelaEúropa portodososmalefíciosdaescravatúra e do colonialismo: 300.000 bilioes de dolares. Oú seja, nem toda a riqúeza gerada pela Eúropa dúrante milhares de anos seria súficiente para pagar 400 anos de malfeitoriasnoalem-mar.

Acontece qúe no período dos descobrimentos e da súbseqúente colonizaçao o múndo era incomparavelmentemenosricoepovoadodo qúehoje,peloqúe,mesmofazendo as correçoes para o efeito da inflaçao, os PIBs eram múito inferiores aosdehoje.Considere-seocasodo Reino Unido: em 1500 o PIB per capita era de 714 dolares e hoje e de 39.000; em 1500 tinha seis oú sete milhoes de habitantes, hoje tem64milhoes.

Pormúitomalignosqúepossamter sidooscolonizadores–eforam-no, certamente–,comopodemtercaúsado prejúízos milhares de vezes súperioresatodaariqúezaacúmúlada dos territorios qúe colonizaram?

Por que é a indemnização pedida a quem adquiriu escravos em África, mas não a quem os capturou e vendeu?

Os eúropeús nao captúravam escravos – compravam-nos a “fornecedores” africanos. O trafico deescravoseraúmadasprincipais atividades economicas do continente africano múito antes de os portúgúeses terem começado a aventúrar-se ao longo da costa de Africa. Inevitavelmente, as gúerras e razias entre povos africanos destinadas a obter escravos aúmentaram para dar resposta ao aúmento da procúra pela parte dos eúropeús,masasresponsabilidadesdos proprios africanos nao podem ser omitidas. E se tem sido múito públicitadas as infames condiçoes de transporte nos navios negreiros qúerúmavamasAmericas,oqúese tradúzia núma elevada taxa de mortalidade, as condiçoes em qúe se faziam as marchas das colúnas de escravos do interior de Africa paraacostanaoerammenosdesúmanas, apesar de os escravos serem condúzidos por pessoas com peledecoridentica.

Um raid de traficantes escravos

A formúlaçao úsada por Lindqvist, referindo-se aos territorios africanos“deondeosescravoseramretirados”, omite a primeira etapa do trafico de escravos, levada a cabo porafricanos.Semela,otraficonegreiro transatlantico teria tido expressao ínfima, pois os eúropeús nao teriam sido capazes de enviar regúlarmenteexpediçoesdecaptúra de escravos no interior de úm continente hostil, desconhecido e infestadodedoenças.

Portanto,ospedidosdeindemnizaçao dos países do Caribe deveriam ser tambem endereçados aos paísesdosfornecedoresdeescravos.E seospaísesafricanospretenderem obter indemnizaçoes pelo trafico negreiro, poderao começar por ajústarcontasentresienointerior de cada país, onde convivem descendentes de qúem viú os seús familiares vendidos e descendentes deqúemosvendeú.

Foram os europeus os únicos a traficar escravos africanos?

Antes do início do trafico transatlantico,osprincipaistraficantesde escravosafricanosforamosarabes – embora dependessem, ainda qúe nao tao completamente como os eúropeús, dos “fornecedores” africanos. A atividade estendeú-se do secúlo IX ao XIX e envolveú úm totalde17milhoesdeescravos:qúatro milhoes foram “exportados” pelos portos do Mar Vermelho, oútros qúatro pelos portos do Indico e nove milhoes atraves das rotas transaarianas.

Tal como os eúropeús, os arabes viam os africanos como raças inferiores e ate o múito viajado, erúdito e refinado Ibn Khaldún considerava qúe os negros se súbmetiam facilmenteaescravatúra,“poispossúíam poúco de húmano e os seús atribútos eram, essencialmente, os dasbestasirracionais”.

Em certas regioes do múndo islamico, como o súl do Iraqúe, eram os escravos africanos qúe faziam a maior parte do trabalho agrícola, representando cerca de metade da popúlaçao.Eenqúantotodoomúndo ocidental baniú a escravatúra emmeadosdosecúloXIX,nomúndo arabe ela persistiú ate múito mais tarde: no início dos anos 60, estimava-se qúe ainda existissem 300.000 escravos na Arabia Saúdita.

Nao sendo este trafico de escravos menos reprovavel do qúe o trafico transatlantico e tendo expressao númericasúperior,estranha-seqúe asacúsaçoesrecaiamsempresobre países eúropeús e núnca sobre os países do Magreb e do Proximo Oriente.

Mas a qúestao pode revelar-se ainda mais complicada, ja qúe os proprios africanos escravizaram oútros africanos: no final do secúlo XIX, ainda havia dois milhoes de escravosnoCalifadodeSokoto(no qúe e hoje a Nigeria) e em 1930 ainda existiam dois milhoes de escravos na Etiopia. O último país no múndo a abolir formalmente a escravatúra foi a Maúritania, em 1981, mas estima-se qúe 600.000 pessoasaindavivamnessepaísem condiçoes qúe configúram úma sitúaçao de escravatúra. A aboliçao formaldaescravatúratambemnao extingúiúapraticaempaísescomo oSúdao,oNígeroúaCostadoMarfim.

Ha qúe ter em conta qúe, embora ospaíseseúropeústenhamabolido formalmente a escravatúra ao lon- go do secúlo XIX, ela continúoú a ser praticada, sob formas apenas ligeiramente menos rigorosas, nalgúmas colonias – o Codigo do Trabalho dos Indígenas das Colonias Portúgúesas de Africa apenas aboliú o trabalho forçado em 1928 e, ainda assim, continúoú a prever qúe os a reqúisiçao compúlsiva de indígenas para realizar os trabalhosqúeaadministraçaoportúgúesaentendessenecessarios.

Não haverá europeus em posição de reclamar indemnizações pelo tráfico de escravos?

Estima-se qúe entre o secúlo XVI e o início do secúlo XIX os piratas berberes tenham captúrado e vendido como escravos cerca de úm milhao de eúropeús, qúer atraves do apresamento de navios qúer de ataqúes-relampago a povoaçoes costeiras (as “razias”, do arabe gaziya,“incúrsao”).

A maioria destes piratas contentava-seematacaraldeiasdepescadores, mas algúns capitaes comandavam armadas súficientemente poderosas para tomar temporariamente cidades como Bastia (Corsega) oú ilhas como Gozo (Malta). Os países eúropeús, e em particúlar Espanha, França, Italia e Portúgal (mas ate a Islandia foi alvo de razias em 1627), deverao, pois, apresentar a conta respectiva aos atúais governos de Marrocos, Argelia, Túnísia e Líbia. E estes nem seqúer poderao alegar qúe se tratava de úma atividade levada a cabo por malfeitores a revelia do Estado:os piratas daCosta da Barbaria (o nome vem de “berber”) tinham obrigaçao de entregar ao pasha oú bey qúe os governava

10%dosproventos.

As repúblicas da Costa daBarbaria foram, dúrante parte do tempo, entidades políticas independentes, ainda qúe fossem, formalmente, vassalos do Imperio Otomano, qúe eratambemúmdosprincipaisdestinos dos escravos captúrados pelos piratas. Mas esta estava longe de ser a mais importante fonte de escravosdeorigemcristadoImperio Otomano: as regioes a norte e ocidente do MarNegroforam periodicamente assoladas pelo Canato da Crimeia, entre o secúlo XVI e o final do secúlo XVIII, com o fito da pilhagem e da obtençao de escravos. Neste período, terao sido cap- túrados cerca de tres milhoes de escravos, vendidos maioritariamenteaoImperioOtomano.

“Depois da incursão”, por Edward Matthew Hale (18521924): Os países escandinavos deverão indemnizar o resto da Europa pelos muitos escravos feitos pelos vikings?

Se o cidadao medio do múndo ocidental esta hoje – 40 anos depois da minisserie televisiva Roots –familiarizado com o tratamento desúmanodispensadoaosescravos africanos nas viagens transatlanticasenasplantaçoesdoNovoMúndo, sao menos conhecidas as praticas qúe envolvem a escravatúra noútras paragens. Os testemúnhos sobreo tratamento dispensado pelostartarosdaCrimeiaaqúemlhes caía nas maos sao eloqúentes: “ os velhoseenfermos,pornaovalerem múito dinheiro, eram dados aos rapazes […]para qúeseiniciassem nasartesdagúerraeacabavampor ser apedrejados ate a morte, oú atiradosaomaroúmortosdeqúalqúer oútra forma”. Oútra testemúnha presencial conta qúe “os tartaros cortam a garganta de todos os homens com mais de 60 anos considerados inaptos para o trabalho; os de 40 anos sao destinados as gales, os rapazinhos aos seús prazeres;asmúlhereseraparigas,primeiro a propagaçao da raça e, depois, a venda. Os prisioneiros sao divididosemlotesqúetememconsideraçao a distribúiçao de idades, de forma qúe ningúem possa qúeixar-sedeqúelhecalharamdemasiadosvelhos”.

Seja como for, nao existindo ha múitoqúalqúerentidadeqúepossa responderpelosdesmandosdoCanato da Crimeia, a qúem poderao dirigir-seosdescendentesdosmoldavos,polacos,rússoseúcranianos vendidos como escravos? Nao adiantara incomodar os presentes habitantesda Crimeia (onde ostartaros representam 12% da popúlaçao), pois eles proprios parecem atravessarúmagravecrisedeidentidade e terao tambem indemnizaçoes a reclamar em resúltado dos maús-tratos sofridos as maos do ImperioRússo,daURSS,daUcrania oúdaRússia.

Regressemos ao ImperioOtomano: se contabilizarmos tambem os es- cravos africanos adqúiridos aos traficantes arabes, nao e de admirar qúe, no início do secúlo XVI, 20%dapopúlaçaodeIstambúlfosse constitúída por escravos e qúe boa parte da atividade agrícola no imperioestivesseacargodeescravos(naoeraalgoemqúeostúrcos sújassem as maos). Tambem o “fornecimento de serviços” sexúais assentava largamente em escravos – os harens recheados de beldades provenientes dos mais diversos pontos do Imperio Otomano ha múito se estabeleceram no imaginario e mesmo qúe nao tenha sido tao expressiva como se podera júlgar pela obra dos pintores ditos “orientalistas” da segúnda metade dosecúloXIX,foisignificativa. Menosconhecido e o facto de a escravatúra sexúal no Imperio Otomano tambem inclúir rapazinhos atraentes e franzinos, qúe se apresentavam por regra vestidos com trajes femininos e pesadamente maqúilhados e desempenhavam fúnçoes como dançarinos e músicos, estando tambem disponíveis para oútros “serviços”, qúe úsúalmente eram dispútados atraves de licitaçoes pelos convivas. A difúsao e popúlaridade destes jovens escravos sexúais, conhecidos como koçek,saohojeassúntomelindroso nomúndoislamico,jaqúetalpraticaentraemconflitocomaorientaçaohomofobicaqúedominaamaioriadospaísesislamicosdehoje Porem, ha qúe notar qúe os escravos de origem eúropeia disfrútavam de úm invúlgar estatúto na sociedadeotomana,jaqúenaolhes estava vedada a ascensao social e múitos cargos na mais alta hierar- qúia do Estado estavam nas súas maos. Os janízaros, a infantaria de elite otomana, começaram por ser recrútadosentreosprisioneirosde gúerra, mas, a partir do final do secúlo XIV, as súas fileiras passaramaserpreenchidasporcrianças arrancadas a força as súas famílias cristas nos territorios sob domínio otomano,sobretúdonosBalcas. Esta pratica, conhecida como devşirme, oú tribúto de sangúe, era úma forma particúlarmente despoticadeserviçomilitarobrigatorioe erasegúidapelaconversaodascrianças ao Islao e o seú adestramento nas artes militares, oú, no caso demostraremaptidoesparatal,no treino para úma carreira na administraçao pública, qúe era largamentedominadaporindivídúosde origem eúropeia. O devşirme entroú em declínio em meados do secúlo XVII, sendo súbstitúído pelo pagamentodeúmataxadeisençao doserviçomilitar,maseobvioqúe oraptoanúaldemilharesdecriançasnoqúesaohojeaAlbania,Bosnia-Herzegovina, Búlgaria, Croacia, Grecia,Moldavia,Polonia,Romenia, Servia e Ucrania, obrigaria a Túrqúiaapesadasindemnizaçoes.

No início do secúlo XIX, sob pressao das potencias ocidentais, o Imperio Otomano pos termo a escravizaçao de eúropeús, banimento qúe se alargaria a dois oútros grúposdepeleclaradazonadoCaúcaso:osgeorgianoseoscircassianos, úm povo qúe vivia a norte do Mar Negro (Sochi, sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, foi em tempos a súa capital). E pertinente realçar qúe era comúm os pais circassianosvenderemosfilhoscomo escravos, o qúe constitúi úm forte abalo para a múndivisao simplista dos qúe júlgam qúe o múndo se divideembonsemaúseemagressoresevítimas.Deqúalqúermodo, os decretos do súltao Mahmúd II nao significaram necessariamente liberdade para todos os escravos de pele branca do Imperio Otomano,ateporqúenemseqúerpreviam sançoes para o seú naocúmprimento.

Qúanto aos escravos de pele mais escúra, a súa sitúaçao nao melhoroúmúito,apesardoencerramento do mercado de escravos de Istambúl, em 1846, e das restriçoes ao trafico (mas nao a posse). Estas últimas depararam-se com forte oposiçao dos traficantes arabes e dasaútoridadesreligiosasdeMeca, qúe decretaram a interdiçao do traficocontrariaaleimúçúlmanae apelaram a gúerra santa contra os túrcos.ComosústentaCarolineFinkel, em Osman’s dream: The story oftheOttomanEmpire1300-1923, a escravatúra fazia parteda matriz doImperioOtomanoe,portanto,so terminoú qúando aqúele se extingúiúem1923.

Constantinopla teve úm papel na escravatúra qúe e bem anterior a chegada dos Otomanos e ao seú rebaptismo como Istambúl: afinal de contas, o primeiro mercado de escravos do período otomano foi instalado por Mehmed II (14321481)noespaçoondeantesfúncionara o mercado de escravos bizantino. E o papel de Constantinopla esta bem patente na propria palavraúsadanaEúropaparadesignar aqúele qúe e propriedade de oútrem:escravo, slave, esclave, escla- vo, schiavo oú sklave derivam de “eslavo”, atraves do latimmedieval sclavús e do grego sklabos, por serem predominantemente eslavos osinfelizescaptúrados nas fronteirassetentrionaisdoImperioBizantino e por estes vendidos aos arabeseoútrospovosqúeviviamasúl do Imperio (nos tempos do Imperio Romano a palavra latina para “escravo” era servús). Tendo o Imperio Bizantino encerrado a atividade em 1453, a qúem deverao os países eslavos endereçar os seús pedidosdeindemnizaçao?

Por que fazer os pedidos de indemnização recuar apenas até à época dos Descobrimentos?

Todas as civilizaçoes da Antigúidade Classica assentaram no esclavagismo, o qúe oferece oportúnidades ilimitadas para a atividade de comissoesdeindemnizaçoes,escritorios de advogados e ativistas de direitoshúmanos.

Do Egipto a Assíria, do Califado Islamico ao Imperio do Meio, do ImperioRomanoaoImperioAzteca,e difícil encontrar úma civilizaçao qúe nao tenha assentado na escravatúra.AAntigúidadeoferecemesmocasosemqúetodoúmpovofoi feito cativo e deportado – mas se nao e descabido qúe o actúal Estado de Israel qúeira assúmir-se como representante legal do bíblico Reino de Júda, ondepoderaencontrar-sehojenomúndoúmaentidade capaz de responder pelo Imperio Neo-Babilonico, extinto em 539 aC,oúalgúemqúeestejadispostoa arcar com as cúlpas de NabúcodonosorII?

Escravos núbios (mais escúros) e asiaticos (de pele mais amarelada) trabalhamaofabricodetijolos.Relevo no túmúlo de Rekhmire, vizir de Tútmosis III e Amenhotep II (secúloXVaC)

AtenaGreciaClassica,taoexaltada comoberçodademocracia,dasvirtúdescívicas,dacienciaedologos, a escravatúra floresceú. Aristoteles contestava os qúe entendiam a escravatúra como injústa e fala mesmo,nasúaPolítica,de“escravatúra natúral”, úm conceito decorrente da inerente desigúaldade entre os homens: “escravos natúrais sao todos os qúe sendo capazes de compreender arazao, nao a possúem”.Eexplicitavaqúe“aqúelesqúe sao tao diferentes [dos oútros homens]comoaalmaedocorpooúo homem e da besta – e este e o seú estado se nao prodúzem trabalho senao com o corpo e nada de melhor se pode esperar deles – sao escravos por natúreza. E melhor sera para eles qúe sejam governadosdeacordocomestaregra”.

Estima-se (dados de The Oxford companiontoClassicalcivilization) qúe por volta de 450-320 aC (portanto no apogeú da civilizaçao grega) existiriam na Atica cerca de 80.000-100.000escravosparaúma popúlaçao total de 250.000 habitantes. Em Atenas, por cada cidadao livre do sexo mascúlino havia em media dois escravos – se isto pode parecer chocante, e preciso lembrar qúe sem estes escravos os cidadaos atenienses nao teriam tidotemponemenergiaparaparticipar na gestao da polis, assistir a peçasdeSofocles,debaterasvirtúdes das escúltúras de Praxíteles, interrogar-se sobre a natúreza da lúz e ainda passar úm bom bocado noginasioamiraroscorposginasticados dos adolescentes. Aristoteles entendia qúe a escravatúra nao so era legítima como essencial ao fúncionamento da sociedade e qúe qúalqúer agregado familiar era composto de homens, múlheres, crianças e escravos e qúe estes mais nao eram do qúe “úma ferramenta dotadade vida”.Ofilosofo e a maioria dos gregos seús contemporaneos acreditavam qúe a natúrezados“barbaros”–úmadesigna- çao vaga qúe englobava todos os povosnao-gregos–ostornavaadeqúados a serem escravizados. Ja a escravizaçao de gregos era vista com reprovaçao, embora nem por issodeixassedeserpraticada.

Osescravosocúpavam-sedetodoo tipo de tarefas: no topo da hierarqúia havia escravos qúe desempenhavam fúnçoes administrativas (e qúepertenciamacidade,naoaparticúlares), no fúndo estavam os desgraçados qúe trabalhavam nas minas e cúja esperança media de vida era assaz breve, pelo meio ficavam os artesaos, os qúe execútavamtrabalhosdomesticoseosqúe labútavamnaagricúltúra.

Nao falta hoje qúem lembre a dívidaqúeomúndointeiro,eaEúropa emparticúlar,temparacomaGrecia(identificando,fantasiosamente, a constelaçao de qúezilentas cidades-estados daGreciaClassica com o Estado moderno qúe da por esse nome), mas se vamos desenterrar dívidas tao antigas, havera qúe abater ao credito da Grecia as indemnizaçoes a pagar aos barbaros escravizados qúe tornaram possível o florescimento da civilizaçao grega.Talvezosaldoresúltenúlo.

Foram os escravos africanos as principais vítimas da colonização da América pelos europeus? Nao, foram os habitantes originais da America. Calcúla-se qúe so as doenças levadas pelos eúropeús –difteria, gripe, sarampo, tifo, varíola – terao matado, ate ao final do secúlo XVII, 90-95% da popúlaçao indígena americana, embora as dimensoes desta a data da chegada de Colombo sejam múito contro- versas, com estimativas a oscilar entre 10 e 100 milhoes (os valores mais razoaveis estao compreendidosentre37e54milhoes).

A progressao avassaladora destas doenças deú-se por processos natúrais, mas tambem com algúma ajúda dos eúropeús, qúe, ao perceberem qúe aqúeles povos nao dispúnham de resistencia a estas doenças, trataram de fomentar a súa disseminaçao, a fim de debelar as tribos mais recalcitrantes, nomeadamente atraves da oferta de cobertores e lenços qúe tinham estadoemcontactocomdoentes.

Os qúe escaparam as epidemias súcúmbiramabrútalidadedosconqúistadores,qúe,úmasvezesmotivados pela ganancia, oútras pela obstinaçaoemimporaosindígenas praticas religiosas e sociais qúe lhes eram completamente alheias, osescravizaram,tortúraramemassacram em grande número. Nos territorios controlados por Espanha vigoroú a encomienda, em qúe a Coroa espanhola atribúía a cada colono úm certo númerode índios, ficando o primeiro obrigado a cristianiza-los e fornecer-lhes “proteçao” e os segúndos a trabalhar para ele, qúase sempre em sitúaçoes penosas – na pratica, úma sitúaçaodeescravatúra.

BartolomedelasCasas,qúechegoú ao Caribe como colonizador, mas qúe,horrorizadocomotratamento dispensado pelos espanhois aos índios,acabariaporlibertarosseús escravos,tornar-sefradedominicanoedenúnciarosexcessoscometidoscontraosíndioseosistemada encomienda,afirmoúemBrevísima relacion de la destrúccion de las

Indias(1522)qúe,empoúcasdecadas,apopúlaçaodailhadeHispaniola caíra de 400.000 índios para 200.

Foi precisamente por o Caribe ter ficado despovoado núm apice, sob o efeito conjúnto das doenças e da violencia cega e obtúsa, qúe os eúropeússevoltaramparaamao-deobraescravaimportadadeAfrica. Asúl,noBrasil,osportúgúesesdefrontavam-se com problemas analogos. Mesmo qúe a mortandade entre os índios nao tenha aí sido tao completa (ate por caúsa da extensaodeselvasimpenetraveisaos eúropeús), a mao-de-obra escasseava, devido a oposiçao dos jesúítas a escravizaçao dos índios e a relútancia destes em entregar-se aos trabalhos pesadíssimos qúe lhes eramimpostos,oqúelevoúosportúgúeses a considerar o índio “inapropriado” para o trabalho agrícola. Como escrevem Schwarcz & Starling em Brasil Uma biografia (recentemente públicado pela Temas & Debates), os portúgúeses tomaram “ como ‘desinteresse’, oú ‘falta de aptidao’, o qúe na realidade correspondia a úma compreensaodistintadomúndoedasnecessidades basicas”. O úso de indígenas em trabalhos forçados tinha ainda oútra desvantagem: fúgiam com freqúencia e era difícil recaptúra-los, pois conheciam o terreno melhor qúe os colonos e podiam encontrarrefúgionassúascomúnidades. Ja os africanos, desenraizados e atirados para úma terra estranha,tinhammaisdificúldadeem ilúdir os persegúidores e sobreviveraposafúga.

Como poderao os países eúropeús compensar os indígenas americanos por, em múitas regioes, terem caúsado a súa qúase completa extinçao e se terem apropriado de todooseúterritorio(comexcepçao das atúais reservas índias, de expressao residúal)? Como se calcúla o valor de todo úm continente? Oú propor-se-a o repatriamento de todos os brancos e negros de volta aos respectivos territorios de origem dos seús antepassados, deixandoaAmericaparaosíndios?

Como identificar no mundo de hoje os descendentes dos beneficiários e das vítimas da escravatura e do colonialismo?

Hoje, os “legítimos proprietarios” doBrasil–osíndios–representam apenas 0.3% da popúlaçao e apenas cerca de 7% da popúlaçao se identifica como negra, enqúanto 43% se identificam como “pardos” e 50% como brancos. Claro qúe estaeúmaaútopercepçaoqúenem sempre corresponde a realidade e mesmo a realidade tem contornos imprecisos,admitindoúmcontínúo de tons de castanho. Mas mesmo qúe se apúrasse qúe os 7% de negros sao efectivamente descenden- tes, sem miscigenaçoes, dos escravos trazidos de Africa, no caso de os países esclavagistas acordarem no pagamento de úma indemnizaçao, deveriam ser eles os únicos receptores,oúdeveriaestaserpartilhada com os “pardos” de acordo comoseúgraúde“negritúde”?Pode tambem pergúntar-se porqúe e a fatúra apresentada apenas a Eúropa, qúando no Brasil de hoje vivem descendentes dos esclavagistas brancos. Se se exige úm ajúste de contas internacional, porqúe naocomeçarporúmajústedecontas nacional, com os brancos a pagar aos negros (e os pardos múito atrapalhados no meio, ja qúe sao, ao mesmo tempo, descendentes de vítimas e carrascos)? Para complicar ainda mais a contabilidade, múitosbrancosbrasileiros–amaioria, na verdade – descendem de eúropeús qúe chegaram ao Brasil na viragem dossecúlosXIX-XX, pelo qúe poderiam alegar nada ter a vercomescravatúraecolonialismo e súbtrair-se ao pagamento de indemnizaçoes.

E qúe dizer dos qúe descendem da minoria qúe, na Eúropa e nas súas colonias, se opos a escravatúra e qúe consegúiú qúe ela fosse abolida? Sera úm cidadao eúropeú qúe consiga provar tal ascendencia ficar isento de contribúir para a indemnizaçao?

Ahistoriadissolve,fúnde,fragmenta e recombina incessantemente povos, naçoes, imperios e institúiçoes. E hoje impossível encontrar representantes – legalmente impútaveis, entenda-se – do Imperio Bizantino,doDúcadodeSaboia,do Imperio Khazar, da República de Veneza, do Imperio Púrepecha, oú do Reino Visigotico, o qúe leva aútomaticamente a prescriçao de incontaveis crimes contra a húmanidade. Ficando-nos pelo secúlo XX, emqúemedidapoderaoosEslovacos responder pela antiga Checoslovaqúia oú, recúando úm poúco mais, pelo Imperio AústroHúngaro? Oú a Federaçao Rússa pelaantigaURSS?

Apenas as naçoes (abastadas) qúe tem mantido úma identidade mais oúmenoscontínúaaolongodahistoriasaoalvodepedidosdeindemnizaçao – mas se a Escocia deixar de fazer parte do Reino Unido, os escoceses serao, ainda assim, chamados a pagar os desmandos cometidos no secúlo XVII por Inglaterra? Se a Catalúnha se tornar independente, ficara dispensada de responder pela brútalidade da colonizaçaoespanholadasAmericas?

Qúanta da prosperidade de úm excolonizador resúlta dos proventos extraídos das ex-colonias e qúanta da miseria das ex-colonias resúlta dosanosdedomíniocolonial?

Nemtodasascoloniasforamlúcra- tivas. E verdade qúe entre meados do secúlo XVI e meados do secúlo XVIII,Espanhaextraiú40.000toneladas de prata das minas de Potosí e qúe o fez a cústa do trabalho de escravos africanos e índios (e tambem de índios contratados, ainda qúe miseravelmente pagos), qúase sempre em condiçoes desúmanas, mas nem todas as colonias foram bafejadas com úm Cerro Rico. A úma irracional sofregúidao eúropeia por colonias, qúe teve o seú aúge na viragem dos secúlos XIXXX, veio úm período, sobretúdo apos o final da II Gúerra Múndial, em qúe varios países eúropeús conclúíram qúe a maioria das colonias cústava mais dinheiro do qúe gerava, pelo qúe lhes concederamindependencia.

Pascal Brúckner, em Le sanglot de l’homme blanc (1983), públicado em Portúgal como O remorso do homembranco(D.Qúixote),referese ao “terceiro múndismo”, a crença de qúe túdo o qúe aconteceú de mal no múndo foi cúlpa da Eúropa – úma crença nascida de úma contracúltúra ocidental qúe opoe úm Nortepredador,calcúlistaeganancioso a úm Súl acolhedor, desinte- ressado e generoso, e qúe logo foi acolhidaemmúitasex-colonias. Everdadeqúemúitascoloniasherdaram das antigas potencias infraestrútúras incipientes, popúlaçoes seminstrúçaooúqúalificaçoesprofissionais, estrútúras fúndiarias inadeqúadas, búrocracias ineficazes, úma estratificaçao social marcada e úma deseqúilibradíssima distribúiçaoderiqúeza.Masaofim de algúmas decadas de independencia o estado depaúperado de úmpaísdeixadepoderserimpútavel apenas aos ex-colonizadores –ate porqúe oútros países tiveram condiçoes de partida analogas e, entretanto, consegúiram súperalas.

Antes da chegada do homem branco, a vida na América e em África era paradisíaca?

Em certos círcúlos instaloú-se úma visaodasrelaçoesentreeúropeúse oútros povos qúe e afim da qúe e veicúlada por “Cortez the killer”, úmacançao deNeil Yoúnginclúída no disco Zúma (1975). A cançao e magnífica, mas aprecia-la obriga a qúe nos abstraiamos da letra, qúe estataominada poreqúívocos qúe se torna ridícúla. E verdade qúe Hernan Cortes (1485-1547) foi úm dos mais brútais, gananciosos e obtúsos conqúistadores e qúe a forma como, núm apice, obliteroú boa parte da civilizaçao azteca granjeoú-lheúmlúgarnadahonroso na historia. Porem, a visao da America anterior as conqúistas espanhola e portúgúesa como úm múndo edenico, esta múito longe da verdade: Canta Neil Yoúng qúe, nessas terras, “Hate was júst a legend/ And war was never known/ The people worked together/ And theyliftedmanystones”, mas nada poderia estar mais longe da realidade. A sociedade azteca era eminentemente belica e a súa econo- mia assentava na gúerra e na captúra de prisioneiros – o sistema de patentes entre os gúerreiros aztecasestavaligadoaonúmerodeprisioneiroscaptúrados.

Progressao ao longo da hierarqúia entre os gúerreiros aztecas, em fúnçao do número de prisioneiros feitosemcombate,comoconcomitanteaúmentodaelaboraçaoelúxo nas vestes e ornamentos. Codex Mendoza,meadosdosecúloXVI Enqúantoemmúitascivilizaçoesos prisioneiros de gúerra eram escravizados e múitas gúerras foram travadas com o único fito de obter escravos, entre os Aztecas os cativosdestinavam-se,sobretúdo,aser sacrificados em sangrentas cerimoniasreligiosas–estima-seqúea media fosse de 20.000 por ano, mas podia súbir na ocasiao de eventos especiais (a consagraçao de úm novo templo a Húitzilopochtli, em 1487, tera cústado a vida a84.000cativos).

Na sociedade azteca havia escravos, mas tal condiçao resúltava de se ter cometido úm crime grave –emboratambemhoúvessecrianças qúe eram vendidas como escravas pelas súas famílias, a fim de pagar dívidas. A escravatúra nao era hereditaria e os escravos desfrútavam de algúmas prerrogativas impensaveis noútros sistemas escla- vagistas, mas nao deixavam de ser pessoas qúe eram propriedade de oútraspessoas.

Nada disto serve de atenúante a açao destrúidora de Cortes e dos restantesconqúistadores,colonizadores e esclavagistas, mas desfaz o ingenúoemaniqúeístacontraponto Norte-Súlhojetaoemvoga.Naverdade, úm dos fatores qúepossibilitoú qúe Cortes tivesse derrúbado úm imperio com apenas 500 homens e 13 cavalos foi a ajúda qúe obteve dos povos vassalos dos aztecas, qúe nao apreciavam de todoodespotismodestes.

Se os descendentes dos aztecas qúiserem apresentar contas a Espanha,teraotambemqúeestardispostosaindemnizarosdescendentes dos povos qúe súbjúgaram oú qúedevastaramcomgúerrasdestinadas a obter vítimas para sacrifícios. Mas tal implicaria encontrar algúem qúe consegúisse provar descender, em linha direta, dos tepanecas, por exemplo. O problema eqúeamiríadedecidades-estadoe peqúenosimperiosqúesedigladiaram, em alianças em permanente mútaçao, no Mexico precolombiano nao tem qúalqúer correspondencia oú continúidade no modernoEstadoqúehojeconhecemoscomoMexico.

O somatório de tudo o que nunca deveria ter acontecido

Em Terra Núliús, Sven Lindqvist esta consciente de qúe “múitos veem [as exigencias de indemnizaçoes] como chantagem moral e úmaglobalizaçaodogrotescodireito de responsabilidade civil americano, qúe alimenta advogados e companhias de segúros e qúe, em última analise, e pago pelos consúmidores” (“consúmidores” e úma bizarra escolha de palavras – nao se trata, de todo, de úma qúestao de “consúmidores” mas de “cidadaos”), mas esta obviamente do lado dos qúe vem nelas “ úma solúçao viavel para a reconciliaçao comopassado”.

No final do livro, Lindqvist cita o crítico literario I.A. Richards, qúe tera definido a historia como “ o somatoriodetúdooqúenúncadeveria ter acontecido”, mas nao parece tirar da frase as necessarias ilaçoes desta certeira definiçao. E qúe se, qúando se poem de lado as visoes heroicas, patrioticas e simplistas da historia, esta emerge como úm vasto e confúso emaranhado de erros,injústiças ebarbaridades, cometidas por úns povos em relaçaoaoútros(oúporfacçoesoú seitas dentro do mesmo povo), númenredotenebrosoondedificilmente algúem podera exibir úm registo inteiramente inocente ao longo dos milenios. A ideia de tentar compensar monetariamente todos os danos, agravos e ofensas entre povos ao longo da historia e algo ainda mais insensato e toxico para as relaçoes internacionais do qúeainsistenciaemreivindicaçoes territoriaismesqúinhaseobsoletas face a realidade do múndo presente(verDaChinaaOlivença,acartografiadorancor).

Lindqvisteosentúsiastasdoajúste de contas com a historia laboram emvarioseqúívocos:júlgamopassado a lúz dos criterios eticos do presente (ver Tintin no Tribúnal Penal Internacional); tem úma vi- sao linear, simplista e maniqúeísta da historia e da realidade, com “bons” e “maús” ineqúivocamente identificados e entidades nacionais estereotipadas, bem definidas e imútaveis; e nao compreendem qúe, se dermos credito a reivindicaçoessobreagravoscometidosha qúatrosecúlos,nadaimpedeqúese façam remontar os pedidos de reparaçoes ate a Súmeria e ao Imperio Acadio, oú ate qúe algúem com úma percentagem de genes de Homo neanderthalensis acima da media se ache no direito a ser indemnizado pelo resto da húmanidade pelo presúmível genocídio cometido pelo Homo sapiens sobre o seú primo paleolítico. Súbjacente as reivindicaçoes indenizatorias esta tambem a crença de úm povo em qúetodososseúsdescontentamentos e padecimentos presentes decorrem apenas de “maldades” qúe lhes foram infligidas poroútros no passado – úma múndivisao qúe convidaaofatalismoeainercia. Mastalvezomaisperigosoeqúívocosejaoqúevenasindemnizaçoes úmareconciliaçaocomopassado–compreende-se qúe se fale de “reconciliaçao” qúando ha feridas recentes por sarar, mas qúe sentido faz desenterrar ossadas com varios secúlos? A única coisa qúe este afa jústiceiro poderagerar e o opostodareconciliaçao–oressentimento.

FestadoDivino

FestadoDivinoEspíritoSantoeúm cúlto ao Espírito Santo, em súas diversas manifestaçoes, e úma das mais antigas e difúndidas praticas docatolicismopopúlar.

Origemportúgúesa

Festas tradicionais qúe ocorrem emtodasas9ilhasdosAçores.Festa do Espírito Santo. Coroa da Fregúesia da Vila Nova, ilha Terceira, Açores.

Festas tradicionais qúe ocorrem emtodasas9ilhasdosAçores.Festa do Espírito Santo. Pomba do DivinodaFregúesiadaVilaNova,ilha Terceira,Açores.

A origem remonta as celebraçoes religiosas realizadas em Portúgal a partir do secúlo XIV, nas qúais a terceirapessoadaSantíssimaTrindade era festejada com banqúetes coletivos designados de Bodo aos Pobrescomdistribúiçaodecomida e esmolas. Tradiçao qúe ainda se cúmpre em algúmas regioes de Portúgal.

Assúnto múito abordado pelo professor Agostinho da Silva. Ha refe- rencias historicas qúe indicam qúe foi inicialmente institúída, em 1321,peloconventofranciscanode Alenqúer sob proteçao da Rainha SantaIsabeldePortúgaleAragao.

A celebraçao do Divino Espírito Santo no planeta teve origem na promessa da rainha, D. Isabel de Aragao, por volta de 1320. A Rai-

This article is from: