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Coruja Folhetim Acadêmico de Letras ANO III - Nº 02 - 1º SEMESTRE 2017



Coruja Folhetim Acadêmico de Letras ANO III - Nº 02 - 1º SEMESTRE 2017



Coruja Folhetim Acadêmico de Letras PERIÓDICO ORGANIZADO POR ESTUDANTES DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM LETRAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO



Coruja Folhetim Acadêmico de Letras PERIÓDICO ORGANIZADO POR ESTUDANTES DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM LETRAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Centro de Educação e Humanidades - Instituto de Letras REITOR Ruy Garcia Marques VICE-REITORA Maria Georgina Muniz Washington DIRETORA DO INSTITUTO DE LETRAS Magali dos Santos Moura VICE-DIRETORA DO INSTITUTO DE LETRAS Márcia Regina de Faria da Silva


EXPEDIENTE

IDENTIDADE VISUAL Fernanda Lacombe Jhonatan Andreas Thamires Malheiros

PROJETO GRÁFICO Janaina Holovatuk

FOTO DE CAPA

Fernanda Lacombe

DIAGRAMAÇÃO

Janaina Holovatuk

EDITORAS-CHEFE Islaine Lemos Fernanda Lacombe

CORPO EDITORIAL Ariane Mello Camille Labanca Letícia Capuano Mariana Teixeira Marianna Esteves Paloma Araújo

CONSULTOR ACADÊMICO Professor Dr. Davi Pinho

REVISÃO

Isabela Lisboa Iuri Pavan Maíra Moura Mariana Oliveira Mônica da Silva Rayanne Cholbi Sara Martins Thamires Ramos

CONSELHO EDITORIAL Adriana Jordão (FL/UFRJ), Ana Cristina Chiara (ILE/UERJ), Andrea Wérkema (ILE/UERJ), Ebal Bolacio (ILE/UERJ), Fernanda Cavalcanti (ILE/UERJ), Fernanda Medeiros (ILE/UERJ), Gustavo Bernardo Krause (ILE/UERJ), Gustavo Fujarra Carmona (Universidade de Nice, França), Ieda Magri (ILE/UERJ), Leonardo Davino (ILE/UERJ), Magali Moura (ILE/UERJ), Maria Alice Antunes (ILE/UERJ), Maria Aparecida Salgueiro (ILE/UERJ), Maria Conceição Monteiro (ILE/ UERJ), Nabil Araújo (ILE/UERJ), Phellipe Marcel (ILE/UERJ), Roberto Acízelo (ILE/UERJ) e Rodrigo Campos (ILE/UERJ). Publicação semestral dos graduandos de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524, 11° andar, Maracanã, Rio de Janeiro / RJ CORUJA ON-LINE facebook.com/corujafale • issuu.com/corujafale • coruja.fale@gmail.com IMPRESSÃO Gráfica UERJ DISTRIBUIÇÃO EXCLUSIVA NO BRASIL (UNIVERSIDADES) Corpo editorial TIRAGEM 100 exemplares Os textos publicados neste periódico são de inteira responsabilidade de seus autores.

Coruja: FALe. Estudantes do curso de Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nova edição, Ano 3, n. 02. Rio de Janeiro, 2017. Semestral ISSN: 2525-6947 1. Letras - Periódico


SUMÁRIO

EDITORIAL: O ANO QUE (AINDA) NÃO TERMINOU.................................................................................09 Coruja/FALe

ARTIGOS ANÁLISE DA PALAVRA CONVENTO NA PEÇA HAMLET PELA SEMÂNTICA LEXICAL...................11 Carlos Henrique Lima de Souza A FEMINIST READING OF SUSAN SWAN’S THE MAN DOLL.............................................................18 Eduardo de Souza Saraiva NOVAS CRIAÇÕES DE PALAVRAS DE SARAMANDAIA ASSOCIADAS AO ENSINO.............................23 Ivana Matias Nascimento e Lívia Flôres EXISTÊNCIA E LINGUAGEM: HEIDEGGER E SARTRE EM A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR...........................................................................................................................................31 Jade Suelen Silva Vaz O POETA E A SOCIEDADE DITATORIAL: UMA LUTA POR MEIO DA POESIA................................ 37 Jéssica Caroline Pessoa dos Santos EURYDICE CANTA E PENÉLOPE TECE SUA NARRATIVA: RELAÇÕES DE PODER NO ROMANCE A ODISSEIA DE PENÉLOPE DE MARGARET ATWOOD E NO POEMA ORPHEUS 1................................................................................................................................................ 43 Jessyca Santiago ADOLFO CAMINHA EM BOM-CRIOULO: UM QUESTIONAMENTO............................................ 48 Laíza Cândido dos Santos Martins de Souza ESCRITA E REESCRITA TEXTUAL: A IMPORTÂNCIA DA REFACÇÃO NO ENSINO MÉDIO.....54 Marcus Garcia de Sene OS GÊNEROS TEXTUAIS E A SISTEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA....60 Igor Pereira Gonçalves e Maria Mariana Lima Castro OS RIOS: NAVEGANDO ENTRE O FLUIR DE GUIMARÃES ROSA E MIA COUTO...................... 65 Mislene das Neves Firmino


RESENHAS ENTRE A ÁGUA E A VIDA....................................................................................................................... 73 Jade Suelen Silva Vaz ALBERTO CAEIRO: VER PARA PENSAR SEM PEN(S)AR....................................................................75 Marcus Garcia de Sene A LEVEZA DO SER LÉSBICO: AMORA E A NATURALIDADE DA RELAÇÃO LESBOAFETIVA... 77 Ornella Erdós Dapuzzo AMOR DE PERDIÇÃO E CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO: O TRÁGICO E O RISÍVEL REVELANDO A HIPOCRISIA SOCIAL.................................................................................................. 79 Thainá Amador de Lira

CONTOS FAUSTINO................................................................................................................................................. 82 Suzana Marly da Costa Magalhães PELA ÚLTIMA VEZ.................................................................................................................................. 85 Thamires Ramos Gonçalves O GRANDE ACHADO DA INTERNET.................................................................................................. 88 Viviane Roux


EDITORIAL

O ANO QUE (AINDA) NÃO TERMINOU Não. Este editorial não irá tratar de 1968, ou do livro de Zuenir Ventura. Vinte e oito anos após sua publicação, pedimos emprestado o título para falar de um ano mais próximo, e que, para os alunos da UERJ, ainda está longe de acabar. Ao que tudo indica, 2016 será mais um ano malfadado nos anais da história. O mesmo Brasil que viu encerrarem-se os pouco mais de treze anos de governo PT e o golpe que deu início ao tão questionável governo de Michel Temer, foi expectador da eleição de Donald Trump a presidente da maior potência bélica da atualidade. E se internacionalismo soa abstrato, a realidade local não oferece menos elementos palpáveis para a assustadora guinada mundial que nossa geração testemunha: após uma greve de cinco meses, a UERJ concluiu o primeiro semestre letivo de 2016, não do modo que desejava, mas como foi possível. Jogamos fora o calendário de 2016 e abrimos o de 2017, mas o contexto não se mostrou tão distinto: com as aulas adiadas pela terceira semana consecutiva, o segundo semestre de 2016 não começará nem em janeiro de 2017. Sabe-se lá quando. Este pode não parecer um editorial típico. Talvez alguns leitores estejam se perguntando quando falaremos dos artigos, dos contos e dos poemas desta publicação. E eles estão aqui. Mas enquanto a realidade nos exigir tomada de posição, golpe não pode ser chamado de impeachment e a crise do Estado – ou melhor, o projeto de desmonte do Estado – não pode ser ignorada. “UERJ resiste”. Todos nos ouvem bradar. Resiste porque não há outra opção. Fazer parte da UERJ é ser lembrado, todos os dias, todos os minutos, que a sociedade em que vivemos não é justa. E que as mudanças não são necessárias – são urgentes. Com muito esforço, é lançado mais um número do Coruja. E fazemos isso com muito prazer, com uma felicidade imensa e um orgulho de saber que estamos resistindo, insistindo em existir, apesar de tudo que nossos governantes nos querem impor e que devolvemos em trabalho, dedicado e sério, como é da tradição de Letras na UERJ, pois sabemos que somos nós a universidade de excelência. Agradecemos ao Instituto de Letras por acreditar neste projeto, a toda a comunidade que acreditou e participou da sua elaboração e a todos os alunos que enviaram seus trabalhos. Por último, mas não menos importante, um agradecimento ao corpo editorial da publicação, que se esforça sempre para manter o trabalho de altíssima qualidade em tempos de crise. Que estas páginas sirvam de inspiração para muitos outros, uerjianos ou não, para que também resistam à barbárie dos dias de hoje. 2017 já começou, e não temos outra opção além de lutar para que o ano seja como nós queremos.

Muita força e esperança para todos. A UERJ vive em resistência. Coruja/FALe



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ANÁLISE DA PALAVRA CONVENTO NA PEÇA HAMLET PELA SEMÂNTICA LEXICAL CARLOS HENRIQUE LIMA DE SOUZA 1

RESUMO Este trabalho tem como objetivo analisar, a partir da cena do convento na peça Hamlet – escrita por William Shakespeare em 1601 –, a polissemia contida na palavra “convento” (nunnery), com base em seus sentidos denotativo e conotativo – este representando o bordel. Para tal, realizou-se uma pesquisa qualitativa e, tendo como base as teorias da semântica lexical de hiperonímia e hiponímia, adotaram-se como hiperônimos casas de reclusão religiosas, a fim de examinar a possibilidade de polissemia em outras casas e o cunho obsceno dessa alteração de significado. Em seguida, analisamos as funções exercidas pelas mulheres na igreja católica, a fim de verificar os casos de polissemia com sentido obsceno. Por último, tomamos como semas os significados dos verbos principais contidos nos fragmentos da fala do personagem Hamlet na cena (“conceber”, “casar”, “dançar”, “menear”, “ciciar” e “pintar”), para elucidar se têm maior congruência com uma freira ou com uma prostituta.

PALAVRAS-CHAVE | Semântica lexical, polissemia, Hamlet, convento.

1  Graduando em Letras (Português/Inglês) - UVA


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INTRODUÇÃO De acordo com Gerd Bornheim (2009), o sentido essencialmente religioso que nutria a cena medieval havia evaporado; por isso, no teatro elisabetano, não existiam as máquinas utilizadas pelos gregos em seu teatro para fazer com que os atores levitassem e representassem os deuses. Conforme Bradley (2009), nas chamadas dark plays (Hamlet, Otelo, Rei Lear e Macbeth), o herói é responsável por seus atos, ou seja, tudo o que acontece na peça é de responsabilidade de atos humanos. Por isso, nada é mais apropriado, nesse sentido, do que as palavras, e era por meio delas que William Shakespeare conduzia seu público e seus atores. Portanto, a não compreensão das palavras em todos os seus sentidos prejudica a entendimento de suas obras. [...] quando um crítico encara uma peça de modo grandioso, como filósofo, historiador de ideias ou de literatura, ele pode dizer praticamente qualquer coisa a seu respeito, segundo suas próprias simpatias e pressuposições. Porém há um controle simples: podemos examinar a estrutura da peça em todos os seus detalhes; se a interpretação que oferecemos implica na afirmação de que a peça foi desenhada de forma imperfeita, então ou o dramatista não realizou muito bem o seu trabalho ou o crítico fracassou no seu... Se tivermos confiança no dramatista, se considerarmos a forma de sua peça, pacientemente e com alguma imaginação, como provavelmente a melhor expressão do que ele quereria dizer, então estaremos dando-nos a melhor oportunidade de apreciar devidamente o impacto que ele estava tentando causar no público para o qual estava escrevendo (KITTO apud HELIODORA, 2009, p. 176).

Logo, tudo que devemos saber sobre a peça está contida nela, por isso tomamos como base para nossa análise o que o texto nos oferece, ou seja, o que Shakespeare escreveu, pois como dramaturgo sabia condicionar seu público não somente pelos olhos, mas também pelas palavras. Em Hamlet, há muitas metáforas e palavras usadas fora de seu sentido original (denotativo). Uma delas encontra-se na chamada “cena

do convento”, em que ocorre o primeiro dos dois encontros entre Hamlet e Ofélia. Essa cena, de acordo com Jenkins (2001, p. 137, tradução nossa), “tem suas origens nas versões antigas da história de Hamlet [...] quando Hamlet finge ser louco, a fim de testar a genuinidade de sua loucura do rei utiliza a bela mulher para tentar seus encantos sobre ele”.2 O impacto dramático da cena do convento é muito grande; e maior ainda, pois ela é mais artisticamente preparada para isso. Notavelmente, até que ela ocorra, quase no meio da peça, nós nunca somos autorizados a ver Hamlet e Ofélia se encontrem, ainda que saibamos que devem. Este longo adiamento nos mantém em suspense, enquanto tudo está sendo feito para aumentar a nossa curiosidade e garantir que, quando se encontrarem, o encontro terá o efeito máximo3 (JENKINS, 2001, p. 138, tradução nossa).

Na cena, Ofélia, que está sendo utilizada como isca para provar que Hamlet – como acreditava Polônio, pai dela – estava louco por amor, vai devolver os presentes que o príncipe havia lhe dado por ordem de seu pai. Contudo, ele percebe que se trata de uma armadilha e manda a jovem ir para um convento cinco vezes; essa palavra, “convento”, tinha, no entanto, dois significados: o de comunidade religiosa e o de bordel. A partir disso, este trabalho tem como objetivo analisar, adotando como base as teorias da semântica lexical e o texto da peça, qual dos dois significados prevalece. Visa-se a contribuir para a maior compreensão da obra, uma vez que essa cena, crucial para a trama, é a mais importante da personagem Ofélia.

2  The nunnery scene has its origin in the early versions of the Hamlet story [...] when Hamlet pretends to be mad, in order to test the genuineness the king employs a beautiful woman to try her charms upon him. 3  The dramatic impact of the nunnery scene is very great; and the more so since it is most artfully prepared for. Remarkably enough, until it occurs, almost at the middle of the play, we are never allowed to see Hamlet and Ofelia meet, though we have known they must. This long deferment holds us in suspense, while everything is being done to enhance our curiosity and ensure that, when they meet, their encounter will have the maximum effect.


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O diálogo com Ofélia apenas traz à superfície o que estava na mente de Hamlet”, uma vez que o príncipe declara o que fará: matar Cláudio, seu tio, que casou com Gertrudes, sua mãe, um mês após a morte do rei Hamlet, seu pai, ao dizer “daqueles que já estão casados, todos, menos um, viverão; os restantes ficarão como estão” (JENKINS 1982, p. 150).

EMBASAMENTO TEÓRICO O significado de uma palavra pode ser classificado como denotativo e/ou conotativo. O primeiro é o do dicionário4, o sentido base da palavra; de acordo com Lyons (1977, p. 171), “pela denotação de um lexema entender-se-á a relação existente entre esse lexema, e as pessoas, lugares, propriedades, processos e actividades exteriores ao sistema linguístico”. O significado conotativo, por sua vez, é o sentido interpretativo da palavra e, como afirma Marques (1990, p. 62), os valores de significado que elas adquirem no contexto ou situação de uso: combinatória linguística, circunstâncias e finalidades, funções e intenções de seu emprego, fatores intersubjetivos no ato de comunicação.

Segundo Alstom (1971, p. 35, tradução nossa), “uma palavra ter certo significado é fazer certa contribuição para alguma propriedade semântica apropriada das frases em que ocorre, uma propriedade que pode duplicar o significado da sentença”5. O verbete do dicionário irá presumivelmente especificar a parte da palavra e, assim, determinar as suas 4  Um modelo à maneira de dicionário deveria contemplar, para a definição de um termo (e do conceito correspondente), apenas aquelas propriedades necessárias e suficientes para distinguir esse conceito dos outros; em outros termos, deveria conter somente aquelas propriedades que Kant já definira como analíticas (analítico sendo o juízo a priori em que o conceito que funciona como predicado pode ser haurido da definição do sujeito). Propriedades analíticas de cão seriam, pois, ANIMAL, MAMÍFERO E CANÍDEO (com base nas quais um cão é distinguível de um gato e é logicamente incerto e semanticamente impróprio afirmar a existência de algo que é um cão, mas não é um animal). (ECO, 2013, p. 13, grifo do autor). 5  For a word to have a certain meaning is for it to make a certain contribution to some appropriate semantic property of sentences in which it occurs, a property that we may dub ‘sentence meaning’.

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compatibilidades gramaticais em termos da melhor gramática para o idioma. (Se uma palavra pode figurar em diferentes tipos de discurso isso vai imediatamente dar origem a mais de um verbete para ela, e pelas nossas propostas de sentido levá-lo em consideração, em seguida, classificá-la como ambígua desde o início.) Em seguida, o dicionário irá ou poderá especificar uma definição ou citação lexical para o significado da palavra6 (WIGGINS, 1971, p. 126, tradução nossa).

Quando ocorre esse fenômeno de uma palavra ter um significado conotativo e outro denotativo, se diz que há polissemia. Essa duplicidade de significados torna difícil a compreensão de uma determinada palavra, uma vez que nem sempre o sentido denotativo prevalece. Ulmann descreve o surgimento do sentido conotativo como evolução semântica, e, de todas as causas destacadas pelo autor para que esse fato ocorra, a causa que melhor se enquadra para nossa pesquisa é a histórica, pois [interfere] no processo civilizatório e linguístico, através do intenso progresso material e científico, bem-estar material e pluralidade cultural. Nomes referentes a objetos, instituições, ideias, conceitos científicos passam a ter novos referentes (apud MARQUES, 1990, p. 66).

Para maior compreensão e aprimoramento da análise realizada sobre o que Shakespeare quis insinuar com a palavra “convento” na “cena do convento”, podemos destacar as relações dos conceitos de hiperônimo e hipônimo com suas disposições hierárquicas para tal estudo, uma vez que os hiperônimos, de acordo com Ribeiro (2012, p. 390), “são os termos cuja significação inclui o sentido (ou os sentidos) de um ou de diversos outros termos chamados hipônimos”, o que, segundo Ilari e Geraldi (1985, p. 52), são as relações que intercorrem entre expressões com sentido mais específico e expressões genéricas. 6  A dictionary entry will presumably specify the part of the word and thereby determine its grammatical compatibilities in terms of the best grammar for the language. (If a Word can figure as different kinds of speech this will immediately give rise to more than one entry for it, and by our proposals for sense counting it will then rate as ambiguous from the outset.) Next, the dictionary will or may specify a definiens or lexical citation for the meaning to the word.


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Os termos ‘hiponímia’ e ‘hiperonímia’ se referem à relação da inclusão semântica que existe entre um termo mais geral, como o pássaro e um mais específico como canário. Terminologicamente falando, o termo mais geral é o ‘hiperônimo’ (às vezes ‘hiperonímia’) ou termo superordenado. Os termos mais específicos são ‘hipônimos’ ou termos subordinados7 (GEERAERTS, 2010, p. 82, tradução nossa).

Também utilizaremos o conceito de análise componencial ou sêmica, que diz respeito a conjuntos de lexemas analisados semanticamente na composição do significado (LYONS, 1977), para realizar as tais disposições sêmicas. Tal análise [...] ordena de maneira mais explícita os conteúdos focalizados dentro de um campo lexical, pondo à mostra o que esses itens lexicais têm em comum, bem como aquilo que faz a especificidades de uns e outros. [...] A análise em termos de “presença (+) / ausência (-) ” dos traços distintivos é na verdade um expediente útil para introduzirmos categorias em grandes linhas, mas deve ser refinada com a ajuda de ferramentas descritivas aptas ao processamento contínuo (OLIVEIRA, 2003, p. 119).

METODOLOGIA

O interesse por esse estudo surgiu na tentativa de comprovar através da semântica lexical que, na obra Hamlet, na chamada cena do convento (III.i), Hamlet, o príncipe da Dinamarca, dirige-se à Ofélia mandando-a ir para um convento, palavra que, na época, era polissêmica, sendo, portanto, uma pesquisa com contribuição qualitativa, pois é baseada pelo objeto.

Enquanto procedimento, este trabalho será realizado por meio da análise dos lexemas de campo semântico da palavra “convento” utilizando a análise componencial e hiperônimos e hipônimos da palavra para a obtenção do resultado que demonstra que, no século em que a peça foi escrita, Hamlet refere-se à Ofélia mandando-a ir para um prostíbulo, de onde foram retirados os dados para a análise. 7  The terms ‘hyponymy’ and ‘hyperonymy’ both refer to the relationship of semantic inclusion that holds between a more general term such as Bird and a more specific one such as finch. Terminologically speaking, the more general term is the ‘hyperonym’ (sometimes ‘hypernym’) or superordinate term. The more specific terms, the ‘hyponym’ or the subordinate term.

A primeira etapa de nossa pesquisa consiste em analisar os hipônimos relacionados ao hiperônimo “casas de reclusão religiosas”, verificando em qual deles havia polissemia8. Em seguida, utilizamos as funções que as mulheres exercem na igreja católica, a fim de investigar em qual havia polissemia com sentido obsceno. A propriedade figura em “abadessa”, “freira”, “madre” e “noviça”, contudo apenas nas duas primeiras nota-se a obscenidade9. Para tal, utilizaremos os seguintes fragmentos da fala de Hamlet na cena do convento: Entra para um convento. Por que desejarias conceber pecadores? Eu próprio sou passavelmente honesto; mais poderia ainda assim acusar-me a mim mesmo de tais coisas, que seria melhor que minha mãe não me tivesse concebido. Sou muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais erros ao meu alcance do que pensamentos para expressá-los, imaginação para dar-lhes forma, ou tempo para cometê-los. O que podem fazer sujeitos como eu arrastar-se entre o céu e a terra? Somos todos uns rematados velhacos; não acredites em nenhum de nós. Entra para um convento. [...] Se casares, dar-te- ei está praga como dote: seja casta como gelo, pura como a neve, não escaparás à calúnia. Entra para um convento, adeus. Ou se tiveres mesmo casar, casa-te com um tolo; pois os homens de juízo sabem muito bem que monstros vós fazei deles. Para um convento, vai - e depressa; adeus. (III.i)

Por último, tomamos como semas os significados dos verbos principais contidos nos fragmentos da fala do personagem Hamle​t na cena10 (“casar”11, “conceber”12, “dançar”13, “menear”14, “ci8  Tabela 1. 9  Tabela 2. 10  Tabela 3. 11 Casar v. (1192) 1 t.d. bit. Int. e pron. unir (-se) por matrimônio [...] 12 Conceber v. (sXIII) 1 t.d., t.i.int. Ficar prenhe, ser fecundado (por); engravidar (de) [...] 2. Dar à luz; parir, gerar [...] 13 Dançar v. (sXIV) 1 int. movimentar o corpo, obedecendo a um determinado ritmo musical como forma de expressão subjetiva ou dramática 2 t.d. executar os movimentos próprios de (determinada modalidade de dança); bailar [...] 3 int. p. ext. ir de um lado a outro desordenadamente [...] 14 Menear v. (1562-1575) 1 t.d. e pron. mover (-se) alternadamente de um lado para outro; balançar (-se), oscilar (-se)1.1 t.d. e pron. movimentar (-se), mexer (-se) [o corpo ou uma parte


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ciar”15e “pintar”16) para elucidar se têm maior congruência com uma freira ou com uma prostituta. Tenho ouvido também falar muito como vos pintais Deus vos deu uma face e vós vos fabricais outra; dançais, meneais, ciciais, arremedando as criaturas de Deus, e mostrais vosso impudor como se fosse inocência. Vamos, basta; foi isso que me fez louco. Digote: não haverá mais casamentos. Daqueles que já estão casados, todos, menos um, viverão; os restantes ficarão como estão. Para um convento, vai. (III.i)

ANÁLISE DE DADOS Percebemos que, de todas as casas de reclusão religiosas (abadia, mosteiro, monastério, priorado e convento), apenas a última apresentava um sentido polissêmico de “casa de má reputação” 17 de acordo com o The Oxford English Dictionary (OED) (1933 p. 264, tradução nossa). O dicionário também apresenta um exemplo retirado do livro Mad Lover, escrito por Fletcher em 1617 (data bem próxima à de Hamlet): “Há um velho convento nas proximidades. O que é isso? Uma casa obscena” (IV.ii)18 (1933, p. 264, tradução nossa). Segundo Williams (2006, p. 219, tradução nossa), “muito antes da Reforma19, a ligação teria sido inevitável para o londrino”20. Tabela 1 CASAS RELIGIOSAS DE RECLUSÃO ABADIA

MONGES

FREIRAS

POLISSEMIA

+

+

-

do corpo]; bambolear (-se) 2 pron. pôr-se em movimento; mexer-se, agitar-se [...] 15 Ciciar v. (1712) 1 int. produzir ruído fraco e contínuo; sibilar levemente [...] 3 t.d. int. dizer em voz baixa; sussurrar, murmurar [...] 16  Pintar v. (sXIII) [...] 16. t.d e pron. aplicar (-se) produtos de cosmética no rosto [...] 16.1 t.d. e pron. pintar (-se) qualquer parte do corpo, esp. para fins festivos ou ritualísticos [...] 17  House of Ill fame 18  Theres an old Nunnerie at hand. What’s that? A bawdy – house 19  Sobre a Reforma ver Kermode (2004) capítulo 1 Reformation and the Sucession Problem. 20  Long before the Reformation, the equation would have been inescapable for the Londoner

CASAS RELIGIOSAS DE RECLUSÃO MOSTEIRO MONASTÉRIO PRIORADO CONVENTO

15

MONGES

FREIRAS

POLISSEMIA

+ + +

+ +

+

+21

Ao analisarmos o campo semântico da palavra “convento”, verificamos que as palavras “abadessa” e “freira” tinham um sentido obsceno na época. Esses sentidos são, respectivamente, “a dona de um bordel”22, conforme o Grouse Dictionary of Vulgar Tongue – citado por OED – (2003, tradução nossa), e “uma cortesã”23, segundo o OED (1933. p. 262, tradução nossa). O dicionário ainda apresenta um exemplo utilizando os dois termos retirado do livro Lame Lover, escrito por Samuel Foote em 1770: “Uma abadessa, bem conhecida na cidade, com uma pequena freira inteligente em sua suíte”24 (1933, p. 262, tradução nossa). Essa frase pode ser entendida como: “uma dona de bordel bem conhecida, com uma pequena cortesã esperta em sua suíte”. Tabela 2

ABADESSA PRIORESA MADRE FREIRA NOVIÇA

POLISSEMIA + + + +

SENTIDO OBSCENO + + -

Os verbos “casar” e “conceber” estão diretamente ligados, pois o casamento envolve relações sexuais que são necessárias para a mulher conceber. O Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009) apresenta o seguinte exemplo: “Concebeu sete filhos em um período de nove anos”, ou seja, engravidou sete vezes em nove anos. “Dançar” e “menear” também se referem à mesma ação: mexer o corpo em determinado ritmo. Porém, na definição de “menear”, encontramos “bambolear”, que é definido como “mover21  De acorco com Ayto (1991) no século XVII, monges também eram aceitos em conventos 22  the mistress of a brothel 23  A courtesan 24  An Abbess, well known about town, with a smart little nun in her suíte


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se mexendo os quadris”; ao verificarmos o verbo “rebolar”, encontramos a seguinte definição: “[...] 3 mexer (-se) de um lado pra outro, saracotear(se), bambolear(-se), balançar(-se)”. O dicionário registra estes possíveis usos: “As mulatas rebolavam o corpo” e “rebolam-se as mulheres a dançar”. Já para “ciciar”, o dicionário traz o exemplo “ciciar confidências”, e em “sussurrar”, sinônimo de “ciciar”, encontramos ainda “sussurrou-lhe palavras de amor”. Para “pintar”, temos “pintouse toda para encontrar o namorado”. Portanto, percebemos que, com tais exemplos, o significado conotativo prevalece. Tabela 3

UNE-SE POR É FECUNDADA MATRIMÔNIO FREIRA PROSTITUTA +/+/-

[...] está claro que se uma análise componencial tivesse êxito em também incluir, entre as componentes semânticas de um lexema, precisas seleções de contexto (no interior do enunciado), ou de circunstância (fora do enunciado), ter-se- ia uma teoria semântica capaz de abarcar precisas situações sintáticas. Ao mesmo tempo, o enunciado, na sua dimensão sintática, surgiria como função dos significados das unidades que o compõem (ECO, 2010, p. 61).

Esperamos com nossa pesquisa ter contribuído para o enriquecimento dos estudos já tão extensos sobre a obra e ter demonstrado como a semântica lexical pode auxiliar tanto nos estudos de crítica e interpretação literária quanto em traduções.

DÁ À LUZ +/-

Sendo assim, os resultados de nossa análise e os das de Bloom (2004), Mourthé (2007) e Williams (2006) confluem. Porém, alguns teóricos vão de encontro a essa possibilidade ao afirmarem que esse sentido não tem muita relevância no contexto da cena, como é o caso de Thompson e Taylor (2006) e Jenkins (2001).25

CONSIDERAÇÕES FINAIS Não temos a intenção de afirmar que tal interpretação seja de fato a correta, mas sim de comprovar que a possibilidade existe, então é pertinente levá-la em consideração. Concordamos com Jackendoff (2013, p. 140) quando este diz que “não há uma linha definida entre estudar o significado das palavras e a forma como o significado das palavras se compõe no significado das sentenças. É necessário manter ambos em mente”. Sugerimos para a continuação do estudo uma análise semiológica, tendo como base o contexto da obra e as circunstâncias em que Hamlet diz “Vai para um convento”, que não podem ser analisados pela análise componencial. 25  Nesse caso, entendemos que as freiras sussurram as orações; já as prostitutas, obscenidades para conquistar os clientes.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALSTOM, William P. “How does one tell whether a word has one, several or many meanings?”. In: STEINBERG, Danny D.; JAKOBOVITS, Leon A. Semantics: an interdisciplinary reader in philosophy, linguistics and psychology. Cambridge: Cambridge University Press, 1971. AYTO, John. Dictionary of word origins. New York: Arcade Publishing, 1991. BLOOM, Harold. Hamlet: poema ilimitado. Tradução José Roberto O’Shea e Ana Amélia de Queiroz. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004. ECO, Umberto. As formas do conteúdo. Tradução Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2010. ______. Da árvore ao labirinto: estudos sobre o signo e a interpretação. Tradução Maurício Santana Dias. Rio de Janeiro: Record, 2015. GEERAERTS, Dirk. Theories of lexical semantics. New York: Oxford University Press, 2010. HELIODORA, Barbara. Falando de Shakespeare. São Paulo: Perspectiva, 2009.


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HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. JENKINS, Harold. “Hamlet and Ophelia”. In: HONNINGMAN, Ernest. Structural Problems in Shakespeare: Lectures and Essays by Harold Jenkins. Singapore: The Arden Shakespeare, 2001. ILARI, Rodolfo; GERALDI, João Semântica. São Paulo: Ática, 1985.

Wanderley.

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CORUJA | A FEMINIST READING OF SUSAN SWAN’S THE MAN DOLL

A FEMINIST READING OF SUSAN SWAN’S THE MAN DOLL EDUARDO DE SOUZA SARAIVA 1

RESUMO O objetivo do presente trabalho é o de apresentar a análise feita a partir do texto The Man Doll, de Susan Swan, dando enfoque em como a autora aborda a questão do feminismo no contexto do conto. The Man Doll traz a posição da protagonista Tina e de sua amiga Elizabeth, em uma sociedade futurista na qual a sexualidade, as questões de gênero e a utilização do corpo para proporcionar prazer são abordadas, além da subversão de papéis entre homens e mulheres.

PALAVRAS-CHAVE | Feminismo, gênero, sexualidade, literatura canadense, Susan Swan. ABSTRACT This study aims to present the analysis of the text “The Man Doll”, by Susan Swan, by focusing on how the author addresses the issue of feminism in the context of the short story. The text “The Man Doll” brings the position of the protagonist, Tina, and her friend Elizabeth in a futuristic society in which sexuality, gender issues and the use of the body to provide pleasure are addressed, including subversion of roles between men and women.

KEY-WORDS | Feminism, gender, sexuality, Canadian Literature, Susan Swan.

1  Graduando em Letras (Português/Inglês) - FURG


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INTRODUCTION Susan Swan is a Canadian novelist, journalist and critic. Some of Swan’s literary works include: Unfit for Paradise (1982), The Biggest Modern Woman in the World (1983), Stupid Boys Are Good to Relax With (1996), What Casanova Told Me (2010) and her latest novel The Western light: A novel (2012). She is also known as a writer of both short stories and novels. In her texts she approaches themes such as gender, feminism, (de) construction of the body, sexuality, etc. As pointed out by Susana Bornéo Funck (1994): “Susan Swan belongs to a generation of writers whose experimental, innovative fiction has proved vital in the contemporary project of de/re/constructing narrative practice” (FUNCK, 1994: 139). Teresa Heffernan (1992) in her study mentions that: Susan Swan, as a feminist writing a postmodern work, foregrounds this point of contention in her biographical, genealogical, historical, and fictional texts. She plays with the peculiar ironies that emerge from the tensions between a particularly masculine postmodernist obsession with unforging an identity (that the male writer was busy forging from the Romantic through to the Modernist period) and the feminist concern with recovering and constructing female subjects. Her work generates questions about the relationship between the author and her subject, about the production of history, about the importance of private versus public documentation, about the function of intertexuality, and about the relationship between narratives and reality (HEFFERNAN, 1992, p. 24).

Susan Swan, within the context of her literary works, empowers those who still are in a lower position in society. She also brings to the surface a discussion about the aspects of feminism by giving voice to the women so they can speak for themselves. In this essay we are going to analyze the short story The Man Doll, by problematizing some aspects which are present in the text, such as: gender, sexuality and feminism.

ANALISYS OF THE SHORT STORY THE MAN DOLL The Man Doll tells the story of Manny – a male doll which was created by Tina, a bio-

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medical engineer. She constructed the doll in order to give it to her friend Elizabeth due to the fact that she was complaining about the male sex, and Tina did not want to hear her litany about men anymore, as we can see: I made the doll for Elizabeth. I wanted to build a surrogate toy that would satisfy my friend so completely I would never have to listen to her litany of grievances against the male sex again (SWAN, 1999, p. 377).

From the beginning of the text, readers start to have the first clues how the doll was brought up to life. All procedure was in secret, and whenever Tina needed a limb or an organ, she took it from the Cosmetic Clinic where she worked. Piece by piece she made the doll perfectly as it was human and nobody could see the difference between her doll and a human being because Tina’s goal was that the doll was flawless. It is relevant to mention that the doll had a brain, the most expensive part of it, and maybe that was what differentiated Manny from the other dolls, as it goes: “The Space Force Bank agreed to simulate the doll’s computer brain from mine for $1,500.” (SWAN, 1999, p. 377). He had a consciousness, he was able to think. In Swan’s story she uses the post-modern myth of symbiote to construct the narrative. According to Donna Haraway (1991): “A cyborg is cybernetic organism, a hybrid of machine and organism, a creature of social reality as well as a creature of fiction.” (HARAWAY, 1991, p. 149). The doll was created to fulfill Elizabeth’s lack of emotional and sexual desires and in a certain sense Tina’s feeling as well because she not only made the doll look like her, but also kept it for herself. In the moment Manny was fully complete, Tina’s initial desire to give the doll to Elizabeth disappears and she falls in love for her creation. Tina started to experience a life that maybe she did not have before. Having in mind that Susan Swan is a feminist and she writes about it, we can see how feminism is present in the short story. Gender issues can be pointed out from the experience between Manny and Tina and later on with Elizabeth, and also regarding the purpose of


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creating the doll. When Tina was constructing the symbiote, her intention was to mix both sides of human male and female in one. From a human male perspective, she wanted the doll to be virile, and from a human female point of view she expected an emotional support, as it follows: I wanted a deluxe model that would combine the virility component of human male with the intuitive powers of the female. In short, I wanted a Pleasure Boy whose programming emphasized the ability to give emotional support (SWAN, 1999, p. 377).

These are the roles that men and women should play in society, as Teresa Lauretis (1987) points out: “gender is sociocultural construct, a system of representation which assigns meaning (identity, value, prestige, location in kinship, status in the social hierarchy, etc.).” (LAURESTIS, 1987, p. 5). Being a man means to have power, strength, virility and sexual appealing, and being a woman means to have emotions, fragility and sexual repression. In a feminine perspective we can see a fracture with the standards of society due to the fact that Manny was playing roles which were historically associated to women, for example, the doll was responsible for cooking their meal (inside) a place in which women should stay, while the woman was responsible for providing money (outside) a place for men. Tina was wondering how Manny would face life inside a house, considering his programmed needs. In the private life the doll was performing as a woman: when Tina left the house to work, Manny stayed at home as a housekeeper. We can see here an inversion of a social representation of gender in which the woman had the money and with it comes the power and the man was taking care of the home. Swan problematizes this issue of what the male and female roles are by showing Tina’s and Manny’s behavior. The turning point in the narrative comes when Tina decides to give the opportunity for Manny to explore a social life in which the doll was able to interact with other people and have social experiences, as we can observe: “I decided it was time to give Manny some social

experiences, so I asked Elizabeth to the flat for a meal.” (SWAN, 1999, p. 377). At this point the doll starts to embrace his new position in society, a place in which he could interact with other people and dolls. By performing this new role, Manny realizes that he could be much more than just a Pleasure Boy. The sexual issue is also present in the short story. The reason for Tina’s construction of the doll was to provide a sexual partner for her friend. Although there were the dolls called Pleasure Boys and Pleasure Girls, Tina wanted a different model, a model that would combine a male and female personality. Susan Swan shows how the body is used for pleasure. As women they had the same right as men in terms of sexual freedom. They were able to create a doll that was designed for it. Judith Butler (1990) argues that: “the culturally constructed body will then be liberated and open future of cultural possibilities” (BUTLER, 1990, p. 93). In a world free of prejudice against women they would be able to use their body as they wanted and not have their sexuality repressed. Susan Swan problematizes the issue of a patriarchal society when she brings to the narrative the inversion of roles: women performing as men and men performing as women. Swan wants to show how the world is still a place run by males. Swan criticizes the way women are treated: they have to stay at home in a domestic space serving their husbands. In that sense, Tina is a character who breaks the barrier because she constructed a doll and by doing it she shed light on the issue of gender switching the male and female roles. Manny’s full transformation occurs when he decides to leave Elizabeth to become a spokesman for a political lobby of humans and symbiotes. The doll embraces an attitude which was expected for a man, he was acting in social circles, and he was using the power that comes with politics to make his voice be heard for humans, for dolls, for everybody. Manny was fighting in order to guarantee his and the other dolls’ rights as well as human rights. A possible reading of Manny’s action could be that women started a new movement to show


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that they deserve equal rights, they were human beings as well and they should not be discriminated for the simple fact that they were women. In some passages of the text we can see this moment of awareness and understanding that something was wrong, as it follows: “Why are we discriminated against Manny” (SWAN, 1999: 382) and “Symbiotes are humans too” (SWAN, 1999, p. 383). Susan Swan shows within the context of a literary work how she was able to shed light in gender’s issues. By showing characters as Manny, Tina and Elizabeth, Swan was capable to construct a narrative that represented a world in which men were central figures and women were in a low position. The actions performed in the narrative intended to highlight political and sociological struggles and also open a discussion about gender issues, especially discrimination against women. In the short story The Man Doll, Swan problematizes the issue of a woman being as free as a man regarding an open sexual life and also a political life. As women they had the same right to be in politics and/or use their bodies for pleasure. Throughout the actions and discourse of the characters, Swan shows a woman who is questioning this masculine world and becoming aware of her independence and more consciousness about her place in society. As pointed out by Eugene Benson and L. W. Conolly (2005): “[…] Susan Swan challenged male attitudes to women’s sexuality by creating female protagonists who seek sex for its own sake.” (BENSON; CONOLLY, 2005, p. 484).

CONCLUSION

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the same level as men. As women they were able to experience pleasure using their body, they were also able to experiment a sexual life with different partners if they wanted to. By bringing this inversion of roles in which man performs as woman and woman performs as man, Susan Swan sheds light on the gender issue. Manny was created to give sexual and emotional support as mentioned earlier, but the actions of the doll showed that he was more than just a doll for pleasure and he could think for himself and decide his own way of living. The doll itself and the doll’s action could be seen as metaphor for the feminist movement where women start to embrace a new attitude and their values. As the dolls were asking for respect and fighting for their rights, women were as well. Susan Swan is a writer whose literary works are important for the studies of the gender field. She writes about and for women giving voice and space in the context of her texts. As mentioned by Teresa Heffernan (1992): Swan employs intertextuality as a means of acknowledging the inevitable influence of historical and literary representations of the subject on her own work and then uses parody as a method of offering a critique of the process by which these representations are constructed (HEFFERNAN, 1992, p. 31).

Swan problematizes the issues of masculine and feminine and by writing texts and constructing characters which speak to the readers and make them think about the issues present in the text.

Susan Swan in her text exposes how society is still a place ruled by a masculine view. Through the narrative and discourse, Swan problematizes the issue of gender and how far is the distance between women and men in society regarding roles, rights and freedom. Swan also highlights the importance of the literary text for feminist studies and critics in a gender perspective.

REFERENCES

By constructing characters as Tina, we can see women start a movement in which they could break the chains and be free, they could be at

FUNCK, Susana Bórneo. “Susan Swan and the female grotesque”. In: Canadian Studies: a journal of English language, literatures in English and

BENSON, Eugene; CONOLLY, L. W. Encyclopedia of post-colonial literatures in English. Canada: Routledge, 2005. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.


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cultural studies, Florianópolis, n. 31, p.139-150. HARAWAY, Donna. Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991. HEFFERNAN, Teresa. Tracing the travesty: constructing the female subject in Susan Swan’s The Biggest Modern Woman of the World. Canadian Literature, n. 133, p. 24-37, 1992. LAURETIS, Teresa de. “The technology of gender”. In: ______. Technologies of Gender. Bloomington: Indiana UP, 1987. p. 1-30. SWAN, Susan. “The Man doll”. In: SULLIVAN, Rosemary. The Oxford Book of stories by canadian women. Canada: Oxford University Press, 1999. p. 377-384.


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NOVAS CRIAÇÕES DE PALAVRAS DE SARAMANDAIA ASSOCIADAS AO ENSINO IVANA MATIAS NASCIMENTO 1 LÍVIA FLÔRES 1

RESUMO Escolhemos a telenovela Saramandaia, exibida em 1976 e, pela segunda vez, como remake em 2013, e juntamos com o conceito de neologismo apresentado na mesma para escrever nosso artigo. Baseando-se em teóricos linguísticos como Martelotta, Alves, Labov e Saussure, nosso artigo consiste em pesquisar novas formas de ensinar no processo de formação de palavras, mostrando em sala de aula como o ambiente externo pode influenciar na língua e na evolução do português.

PALAVRAS-CHAVE | Telenovela, neologismo, ensino.

1  Graduandas em Letras (Português/Inglês) — UVA Professora orientadora: Sabine Mendes Moura


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INTRODUÇÃO

O interesse por esta pesquisa surge a partir de nossa experiência como professoras e da existência do estigma de que os alunos não sabem falar segundo a gramática, sendo que esse trabalho ajudaria a desmistificar isso. Os estudos da possibilidade da lenta introdução das novas palavras da novela Saramandaia poderiam ajudar os alunos a escreverem melhor, pois existe o pensamento que diz que a melhor forma de aprender gramática é “fazendo gramática”. Este estudo também poderia encorajar os alunos a aprenderem a gramática de uma melhor forma, de um jeito mais livre, solto, mostrando que poderiam “criá-la”, auxiliando no processo de aprendizado. Os estudantes veriam as palavras em sua forma normal e suas possíveis transformações, veriam as palavras do português tradicional e os exemplos da novela Saramandaia com seu possível progresso da língua. Também observariam as palavras no português padrão “culto” e as palavras novas, como da novela, e assim seriam capazes de identificar possíveis transformações na língua portuguesa ao longo dos tempos. Essas aulas mostrariam aos alunos não só a parte criativa dessas novas construções de palavras, mas também o uso de sufixos, prefixos, palavras primitivas, entre outras classes gramaticais, apontando que elas muitas vezes possuem os mesmos radicais, prefixos e sufixos das mesmas palavras no português tradicional. Devemos lembrar, no entanto, que as palavras retiradas da novela e analisadas foram inventadas provavelmente por Dias Gomes, que como dramaturgo, possuía o conhecimento na norma culta e padrão da língua, além de ter sido membro da Academia Brasileira de Letras. Portanto, os vocábulos por ele formulados, embora criativos e seguindo uma lógica bastante coerente, não são oriundos de uma fonte verdadeiramente popular, o que não inferioriza o trabalho de nenhuma forma, já que o que pretendemos é demonstrar o processo de criação de novas palavras, ou neologismos. Queremos elucidar como esse processo têm uma raiz nos vocábulos já existentes da língua portuguesa, e que, sendo criações de uma pessoa de origem “culta”, ou de uma pessoa de origem popular, todas pro-

vavelmente seguiriam o mesmo processo vindo dos sufixos, prefixos e radicais já existentes no nosso vocabulário tradicional.

REVISÃO DE LITERATURA Segundo Martelotta (2008, p.15): “O termo linguagem apresenta mais de um sentido. Ele é mais comumente empregado para referir-se a qualquer processo de comunicação”. Esse artigo toma essa máxima como verdade e tem por interesse investigar e comprovar que a linguagem representa qualquer processo de comunicação, não somente a linguagem da modalidade padrão da língua portuguesa. Um novo processo de comunicação utilizando novas palavras, como por exemplo inventadas em um meio fictício, como meio de estudo da língua portuguesa com alunos em sala de aula a fim de facilitar o aprendizado, poderia mostrar que “possíveis” modificações podem acontecer, e demonstraremos isso utilizando como exemplo a pesquisa sobre essas novas palavras. Elas foram pesquisadas na novela da Rede Globo, Saramandaia, e, assim como diz Martelotta (2008, p.15), podem fazer parte do termo linguagem, que pode se referir a qualquer processo de comunicação. Ainda segundo Martelotta (2008, p.16), “O linguista é um estudioso dos processos através dos quais essas várias línguas refletem, em sua estrutura, aspectos universais essencialmente humanos”. Poderíamos aplicar ao ensino de nossos alunos essa questão da definição e função do linguista também. Assim, estaríamos pesquisando com nossos alunos e observando novas formas do uso do português com essas novas palavras que poderiam ser introduzidas na língua portuguesa oficial, ajudando os estudantes a desenvolverem uma maior habilidade, um maior aprendizado e talvez até maior descontração na hora de aprender. É importante registrar que nossas vidas, em função da evolução cultural, mudam com o tempo. Assim, a língua acaba sofrendo mudanças decorrentes de modificações nas estruturas sociais e políticas. Podemos perceber isso com facilidade no vocabulário. Palavras referentes a objetos que não são mais utilizados desaparecem como: mata-borrão, por exemplo. Por outro lado, termos novos aparecem para designar novas atividades ou novos aparelhos surgem com o desenvolvimento cultural ou tecnológico: é ocaso de uma série


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de termos utilizados na área de computação, como scanner, software, pen drive, entre outros. Desse modo, podemos dizer que as línguas variam e mudam ao sabor dos fenômenos de natureza sociocultural que caracterizam a vida na sociedade... Necessidade de se buscar novas expressões para designar novos objetos, novos conceitos ou novas formas de relação social (MARTELOTTA, 2008, p. 17).

A linguagem está relacionada à maneira como interagimos com os nossos semelhantes, refletindo tendências de comportamento delimitadas socialmente. É isso que o seguinte artigo tem por mostrar: a linguagem reflete tendências de comportamentos sociais, como influência de uma novela, por exemplo. Pode ser influenciada por gírias da moda da época, ou seja, palavras que funcionem melhor atualmente para expressar algo que não pode ser expressado pelo português tradicional. A linguagem sempre está sendo influenciada por fatores externos, como criações e até mesmo influências socioculturais. Essas novas palavras pesquisadas na novela Saramandaia podem ensinar isso aos alunos em sala de aula, pois elas demonstram como a língua pode ser influenciada por fatores externos, como uma novela, por exemplo. O parâmetro mais adotado para a consideração do caráter inovador dessas palavras, denominadas neologismos, tem sido o do corpus de exclusão lexicográfico, constituído por um conjunto de dicionários que atua como filtro para a determinação, ou não, do caráter neológico da unidade lexical sob análise (ALVES, 2007, p. 78).

Ou seja, existem várias pesquisas a respeito do assunto, como o nosso trabalho. O caráter inovador dos neologismos já é aprovados ou reprovados por dicionários que funcionam como filtros. Esse tipo de demonstração de pesquisa seria muito útil aos nossos alunos, que estariam aprendendo que o português continua se modificando, que é uma língua em evolução. As relações entre neologia e morfologia têm sido muito estudadas. Os dados da Base de Neologismos do Português Brasileiro Contemporâneo, relativos ao período entre janeiro de 1993 e dezembro de 2000, mostram que os estrangeirismos correspondem a 17% dos neologismos coletados e os restantes 83%

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são representados por vernáculos: fonológico (2%), derivados prefixais (30%), derivados sufixais (10%), compostos (22%), compostos sintagmáticos (13%), semânticos (4%), truncações (2%), outros processos como formações de siglas e reduções (2%) (ALVES, 2007, p. 79).

Como mostraremos a seguir em nossas análises, os derivados prefixais, sufixais, entre outros, são modificações que são formadas nesses neologismos e já existem pesquisas muito sedimentadas a respeito dessas mudanças. Mostraremos exemplos dessas relações entre neologia e morfologia com as palavras do português padrão e os neologismos de Saramandaia. Demonstraremos como realmente existe uma forte ligação entre morfologia e neologia no que se diz às suas semelhanças e diferenças entre as palavras padrão do português comum e suas respectivas palavras similares em Saramandaia. No âmbito da língua portuguesa, morfologia é a parte da gramática que estuda as palavras observadas isoladamente. É o estudo da estrutura e formação das palavras, suas flexões e sua classificação. A esses elementos que formam a palavra dá-se o nome de elementos mórficos ou morfemas: radical, desinência, afixos. Mostraremos em nossas análises o quão semelhantes são essas novas palavras de Saramandaia, são às palavras do português comum, e muitas vezes até expressam seu significado melhor do que elas. [...] os processos de mudanças contemporâneas que ocorrem na comunidade de fala são primordiais na Sociolinguística. Comunidade de fala para esse modelo teórico-metodológico não é entendida como um grupo de pessoas que falam exatamente igual, mas que compartilham traços linguísticos que distinguem seu grupo de outros; comunicam relativamente mais entre si do que com os outros e, principalmente compartilham normas e atitudes diante do uso da linguagem (LABOV, 1972).

A análise sociolinguística passa então a ser orientada para as variações sistemáticas, inerentes ao seu objeto de estudo, a comunidade de fala, concebidas como uma heterogeneidade estruturada. Não existe, portanto, um caos linguístico, cujo processamento, análise e sistematização sejam impossíveis de serem percebidos Há, pelo contrário, um sistema (uma organização)


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por trás da heterogeneidade da língua falada. Labov demonstrou que a mudança linguística é impossível de ser compreendida fora da vida social da comunidade em que ela se reproduz, pois pressões sociais são exercidas constantemente sobre a língua e é isso que demonstra o nosso trabalho, como as pressões e costumes externos influenciam a língua, que não há um caos nisso, mas diferentemente: há uma organização. Esse estudo das criações de novas palavras da língua portuguesa está inserido em duas áreas de conhecimento reconhecidas que estudamos: língua e fala. Poderíamos ensinar aos nossos alunos como as palavras são introduzidas no nosso vocabulário, e como a fala (no caso como exemplo, as novas palavras de Saramandaia) podem modificar nossos hábitos linguísticos. É ouvindo os outros que aprendemos a língua (langue) materna; ela se deposita em nosso cérebro somente após inúmeras experiências. Com esse conceito sendo aplicado mais vezes nas aulas dos professores de português, poderíamos fazer os alunos observarem mais isso, influenciar para que observem a evolução da língua, não só nos dias de hoje, como em tempos passados e possivelmente em tempos futuros. Para Saussure (1969, p.28), “[...] o objeto de estudos da linguística é a língua e não a fala”. Não só o objeto de estudo deve ser a língua, como a fala também, pois a língua pode ser muito influenciada pela fala. Nosso objeto de estudo, que são as novas criações de palavras como em Saramandaia, existem na fala (Parole-dicotomia de Saussure), porém podem muito bem ir para a língua sistemática (Langue-dicotomia de Saussure), para o dicionário num futuro não muito distante. A variação mostra o caráter adaptativo da língua como código de comunicação. Em sua teorização, Saussure também efetua uma separação entre língua e fala. Assim, para ele a língua possui homogeneidade e não varia entre os sujeitos de um grupo linguístico-social, estando capacitada a ser o objeto do estudo linguístico. Já a fala, para Saussure, é um ato individual, e está sujeito a fatores externos, muitos desses não linguísticos e, portanto, não passíveis de análise científica. Consideramos em nosso trabalho que a fala é individual, mas que, mesmo sujeita a fato-

res externos, não deixa de ser passível de análise científica, tendo às vezes, maior influência no processo de modificação na língua. Em nossos estudos de Linguística Aplicada foi aprendido algo muito importante que se encaixa no objetivo que esse artigo deseja chegar: O ativismo político, que deveria ser mais incentivado entre os professores em geral. Não só o incentivo por parte da escola, como a demonstração de ser um ativista político por parte dos docentes. Este artigo tem por interesse investigar as novas formas de estudos a serem feitas com os alunos por seguir a orientação ativista política que os professores em sala de aula deveriam ter para com seus alunos; na medida em que se preocupam não só com os saberes que têm por obrigação passar em sala de aula, mas também tentar direcionar o conhecimento do aluno para algo mais abrangente, num contexto mais amplo e produtivo para o mesmo. O professor ativista político amplia seus estudos para além das fronteiras do ensino e aprendizagem e passa a englobar questões de política e planejamento educacional. Marcos Bagno (1999, p. 36), outro escritor mencionado em Linguística Aplicada, no texto Preconceito Linguístico, menciona que: Se tantas pessoas inteligentes e cultas continuam achando que “não sabem português” ou que “português é muito difícil” é porque esta disciplina fascinante foi transformada numa “ciência esotérica”, numa “doutrina cabalística” que somente alguns “iluminados” (os gramáticos tradicionalistas!) conseguem dominar completamente. Eles continuam insistindo em nos fazer decorar coisas que ninguém mais usa (fósseis gramaticais!), e a nos convencer de que só eles podem salvar a língua portuguesa da “decadência” e da “corrupção”.

Também queremos compartilhar esse pensamento de Bagno quando ele afirma que muitas pessoas, até inteligentes, se dizem não saber português, ou que é muito difícil; porém o autor menciona que essas afirmações são difundidas talvez por essa disciplina ter sido passada erroneamente para os brasileiros, e gostaríamos de desmistificar isso com os nossos alunos, mostrando a eles que não somente os gramáticos tradicionalistas conseguem dominá-lo, como eles também poderão, se forem ensinados de outra ma-


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neira. Preocupamo-nos não só com o que eles vão aprender, mas também em como vão aprender.

METODOLOGIA Este artigo propõe a demonstração de uma pesquisa qualitativa que pretende analisar as palavras novas da novela Saramandaia ligadas ao ensino de língua portuguesa. Vamos investigar o uso de palavras novas, como as criadas na novela Saramandaia, numa nova proposta de ensino da língua portuguesa em sala de aula para entender como a criação de novas palavras pode ajudar no entendimento dos alunos com a construção de palavras com prefixos, sufixos e significados novos e como a criação de novas palavras pode incentivar os alunos a entenderem melhor o processo de formação de palavra, incentivando-os a aprenderem o português de forma divertida.

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nossos alunos de forma criativa, para eles entenderem fora do contexto do português formal, como esses processos ocorrem. Além de ensinarmos melhor, de forma prática, os conceitos e o uso de sufixos, prefixos, advérbios, palavras primitivas, etc, demonstramos no quadro de análise também, como novos radicais, palavras primitivas e substantivos podem ser formados, afinal as palavras são novas e poderiam muito bem inventar novos radicais, sufixos, substantivos etc., algo para acrescentar a nossa língua portuguesa. Assim como dito por Alves (2007), os neologismos são formados em 83% e são representados por vernáculos: fonológico, derivados prefixais, derivados sufixais, compostos, compostos sintagmáticos e semânticos. Os neologismos de Saramandaia se assemelham muito as palavras do português padrão. E observa-se, assim, que os neologismos formados por processos morfológicos e estudados no âmbito da Morfologia Derivacional são os mais produtivos.

Palavras como prafrentemente, pratrasmente, providenciamentos, desapetrechada, escrupulice e desnamorar, serão algumas palavras retiradas da novela Saramandaia para análise. A A fala é um ato individual, e está sujeita fim de pesquisar em como essas palavras pode- a fatores externos, muitos desses não linguístiriam demonstrar o uso do processo de formação cos e, portanto, não passíveis de análise científide palavras na matéria de português, e como es- ca. Como demonstrado em nossa análise, ela não sas palavras poderiam incentivar o aluno brasilei- só é influenciada externamente, como também ro a olhar com criatividade para como as palavras pode influenciar internamente na língua, devido usadas no cotidiano podem ter sido formadas, as suas comparações (semelhanças e diferenças) vendo com outros olhos o processo de criação de entre o português clássico. vocábulos que pode ser divertido e útil em PALAVRA sala para uma aula diPALAVRA NOVA PREFIXO SUFIXO DESINÊNCIA PRIMITIVA ferente e inovadora.

ANÁLISE DE DADOS Análise dos neologismos de Saramandaia comparando-os aos afixos do português padrão, suas singularidades e diferenças. Exemplificando com algumas palavras, podemos ver como o processo de construção de palavras pode ser feito e podemos demonstrar isso aos

Desnamorar des namora Prafrentemente pra frente Providenciamentos providência Avistamento a vista Desengordar des engorda Desaforenta des “aforenta” Aindamente Ainda (advérbio) Desmemoriamento des memoria Desmudar des muda Encachacista en cachacista Pecadismo pecad Deverasmente de veras (verdade) Treschapada tres (novo) “chapada”

mente mento mento mente mento ismo mente -

r s r r -


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PREFIXO

PALAVRA PRIMITIVA

-

Ingrati (com i)

Emergenciamento Segundamente Espionice

-

Merecedente Mesmamente Pratrasmente

-

emergência segunda espionice (novo) merece ( novo) mesma tras

PALAVRA NOVA Ingratitude

-

Nesta outra parte da análise, observaremos algumas construções novas de palavras, comparando-as aos seus respectivos significados no português padrão. Possivelmente, algumas delas poderiam até estar em nosso português brasileiro, visto que algumas até expressam melhor o significado do que aquelas que estão em nosso português tradicional. Isso mostra que há uma “ordem no caos” assim como dito por Labov (1972) e que ao longo dos anos, novas palavras são formadas para atender às necessidades da população assim como diz Martelotta (2008), quando afirma que “a língua pode sofrer mudanças de acordo com as modificações nas estruturas sociais, políticas pela necessidade de se buscar novas expressões para designar novos objetos, novos conceitos ou novas formas de relação social.”. • Admirância – admiração enfática, com bastante sustância. Admiração – A admiração é a palavra que expressa a consideração especial que se sente ou tem com alguém ou algo, por afeto ou pelas qualidades que apresentam. (A palavra Admirância, em comparação com admiração, possui mais efeito, tem um poder mais enfático de expressar o que se pensa.) • Avistamento – compromisso de assuntar com alguém olho no olho. Não existe expressão semelhante a essa no vocabulário, a não ser que seja composta. Ex: olhar fixamente. Portanto, essa palavra poderia existir no vocabulário brasileiro oficial, pois expressa algo melhor, ou de forma mais objetiva, que outras expressões semelhantes.

• Desapetrechada – aquele que fica sem os seus apetrechos. tude Como falar algo assim (novo) usando vocabulários mento vindos do Aurélio? mente Essa palavra poderia ser falada na linguagem oral, ou seja, na Fala (de Saussure) em dente alguma conversa inmente formal. A melhor definição seria “estou sem mente meus apetrechos”. Não seria melhor “desapetrechada”? Não nos apeguemos a palavras feias ou ridículas aparentemente. Nossas palavras tão utilizadas comumente em nosso vocabulário podem ter parecido assim um dia antes de serem comuns na Língua (de Saussure), ou no sistema.

SUFIXO

DESINÊNCIA

• Desnamorar – Ato de retomar à condição de solteirice. Não seria mais simples do que “terminar um namoro”? Ou “ficar solteiro de novo”? Por que ela não poderia ter um estudo maior na Langue de Saussure e vir realmente a tornar-se parte da Língua(sistema) tão estudado pelo cientista? • Pratrasmente – Por que não falar pratrasmente? Ele já une a palavra trás, a preposição ‘pra’ (para a) e o sufixo ‘-mente’, traduzindo bem melhor o que a pessoa quer dizer. Apresenta uma proposição reduzida ‘pra’ (para a), e o sufixo ‘-mente’, o que ainda nos ajudaria em uma aula de prefixos, sufixos, ou seja, construção de palavras, facilitando a aula e o aprendizado dos alunos. • Segundamente – É bem claro o que a palavra quer dizer “Na segunda vez”, aglutinando essas três palavras e formando uma só, facilitando o entendimento e a escrita. • Aindamente – Juntando o advérbio ainda com o sufixo “mente”, temos aindamente, que significa que algo ainda não aconteceu. Essa forma aglutinada facilitaria o entendimento dos alunos na hora de aprender a classe gramatical dos advérbios, porque ilustraria o advérbio na prática. Além da possibilidade


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de mostrar também o uso dos sufixos (mente) na prática. Essas aulas não serviriam de base para o aluno aprender esses conceitos, pois eles precisam aprendê-los separadamente, mas ilustrariam como esses conceitos são e poderiam ser utilizados na prática. Acreditamos que em uma aula criativa e sem preconceitos, eles poderiam aprender bem mais.

CONCLUSÃO Este trabalho não se trata de um projeto em busca de respostas definitivas. Demonstramos que a língua portuguesa pode ser ensinada de forma diferente nas escolas. Demonstraremos então, um possível plano de aula onde colocaríamos em prática nosso propósito. Demonstraremos aos alunos o processo de formação de palavras associados ao neologismo e a criatividade das palavras de Saramandaia, comparando-os com o português comum. Exemplificando um possível processo de evolução da língua, onde mostraríamos aos alunos que eles também podem fazer gramática. É muito importante que os estudantes conheçam e acompanhem a evolução da língua portuguesa no Brasil e todas as influências que fazem e que podem um dia, fazer parte dela. É importante que os alunos tenham uma noção maior de como o português é formado e influenciado e que a língua não para de evoluir. Com esse objetivo, colocamos em prática esse conceito, os discentes veriam os radicais de algumas palavras novas, e veriam como realmente são parecidos com algumas palavras já usadas, fazendo-os perceber a evolução e a semelhança que elas têm. Algumas delas ainda podem expressar melhor o conceito proposto dos que as já usadas. Acreditamos ainda que poderíamos ensinar melhor o processo de formação de palavras, visto que poderia aumentar o interesse dos alunos por aprender dessa forma, colocando-os num contexto prático, demonstrando a influência que a língua recebe do ambiente externo, cultural e social. Os advérbios também aparecem muito, o que poderia nos ajudar a ensinar um melhor conceito dessa classe gramatical também. Mostraríamos aos alunos quantas palavras podem surgir usando o mesmo radical ou sufixo ajudando-os assim a terem menos preconceito com novas formas de falar, vocabulários novos e regionalismos.

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Temos notado ultimamente um preconceito no aprendizado da gramática, da norma padrão da língua. Como se ela não fosse tão útil como antigamente. Isso talvez aconteça, ou pelo menos tenha uma certa influência, pelo uso dos mesmos métodos tradicionais de ensino serem ensinados aos alunos nas escolas. Talvez se renovássemos os métodos, ou se tivéssemos um objetivo mais abrangente ao ensinarmos o português, ele fosse mais divertido e mais interessante aos alunos. Além de ser mais útil, pois perceberiam que eles mesmos modificam o português através das novas palavras e, da evolução da língua, e aprenderiam de forma mais lúdica e interessante, a fim de que percebam melhor como acontece o processo de formação de sua própria língua. Não queremos incentivar desvarios no português com essas novas palavras, nem pretendemos defender que elas sejam realmente inseridas na língua portuguesa na prática. Este projeto é só uma nova forma de demonstrar o processo de evolução da língua e de ensinarmos os mesmos conceitos de forma diferente, instigando a capacidade do aluno de querer conhecer melhor o processo da formação de sua própria língua.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAGNO, Carlos. Preconceito Linguístico. São Paulo: Loyola, 1999. p.36. ISQUERDO, Aparecida Negri; ALVES, Ieda Maria. (Orgs.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande /São Paulo: EDUFMS/Humanitas, 2007. LABOV, William (1972). Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. ______. Padrões Sociolinguísticos. Tradução Marcos Bagno, Marta Scherre e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008. MARTELOTTA, Mário Eduardo. Manual Linguística. São Paulo: Contexto, 2009.

de

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1969.


CORUJA | NOVAS CRIAÇÕES DE PALAVRAS DE SARAMANDAIA ASSOCIADAS AO ENSINO

ERRATA DA AUTORA Onde se lê “Segundo Alves (2007, p. 78)”, lê-se “Segundo Alves e Isquerdo (2007, p. 78)”. Onde se lê “Para Alves (2007, p. 79)”, lê-se “Para Alves e Isquerdo (2007, p. 79)”. Onde se lê “Alves (2007)”, lê-se “Alves e Isquerdo (2007)”. Onde se lê “MARTELOTTA, Mário Eduardo. Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2009”, lê-se “MARTELOTTA, Mário Eduardo. Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2008”.


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EXISTÊNCIA E LINGUAGEM: HEIDEGGER E SARTRE EM A PAIXÃO SEGUNDO G.H., DE CLARICE LISPECTOR JADE SUELEN SILVA VAZ 1

RESUMO Clarice Lispector, em suas obras, desenvolve uma linguagem que permite a discussão acerca do “eu” e o seu “existir”. Destarte, é interessante frisar os traços de epifania, fenômeno comum nas obras clariceanas, a desorganização mental, o viver, a probabilidade, o medo (do viver e do entender) e, principalmente, os questionamentos filosóficos e sociais desenvolvidos ao longo do livro A paixão segundo G.H. Por conta disso, tratar-se-á desta temática com base teórica em Martin Heidegger: a doutrina filosófica, a verdade, o meio, a subjetividade humana, e o seu desdobramento tipológico, ou seja, o pensamento de Jean-Paul Sartre e a corrente existencialista, no qual há a prevalência da existência em relação à essência do ser.

PALAVRAS-CHAVE | Metafísica, existência, filosofia, literatura brasileira, Clarice Lispector.

1  Graduanda em Letras (Português/Literaturas) - UFRRJ


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A RECEPÇÃO DE HEIDEGGER E SARTRE EM CLARICE A paixão segundo G.H., de 1964, obra-

prima da escritora Clarice Lispector (1920-1977), narrada em primeira pessoa, faz uma interpelação sobre o ser. A narradora-personagem mergulha em si mesma a partir de situações pragmáticas que, aparentemente, são superficiais, como o encontro com a barata. Segundo a autora, o livro tem uma curiosidade envolvida, conforme o seu biógrafo, Benjamin Moser, expõe: Pouco depois de dar vazão a esse temor, porém, ela produziu, num rápido jorro, no final de 1963, um dos grandes romances do século XX. “É curioso”, ela registrou sobre aquela época, “porque eu estava na pior das situações, tanto sentimental como de família, tudo complicado, e escrevi A paixão…, que não tem nada a ver com isso” (MOSER, 2009, p. 232).

A narradora-personagem, G.H., é enigmática e tenta se descobrir por meio de uma barata (medo do novo) e do silêncio, gerando análises da própria realidade. A procura da identidade é fundamental para observar a primazia de A paixão segundo G.H.: “estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.” (LISPECTOR, 2009, p. 9). A princípio, há o confronto com aquilo que se viveu, isto é, a negação e o afastamento da desorganização profunda (LISPECTOR, 2009, p. 9). Ao confirmar o que foi vivido, afirma-se a não só existência de um fato, mas também da própria personagem. Para desvendar a escultora e o conjunto da obra, é interessante perspectivá-la a partir da Filosofia da existência, de Heidegger (1889-1976), filósofo alemão, baseada na fenomenologia hermenêutica e na ontologia. As duas abordagens desenvolvem, respectivamente, o estudo naquilo em que o ser venha a parecer e no sentido de sua abrangência, opondo-se à tradição metafísica de orientação teológica, cuja atribuição existencial é divina. A filosofia contemporânea – principalmente a fenomenologia – tem tratado esta questão como o fundamento do ser: a identidade é o que permite ao sujeito tomar consciência de sua existência, o que se dá através da tomada de consciência de seu corpo (um estar-aí no espaço tempo), de seu saber (seus conhe-

cimentos sobre o mundo), de seus julgamentos (suas crenças), de suas ações (seu poder fazer). A identidade implica, então a tomada de consciência de si mesmo (CHARAUDEAU, 2009, p. 309).

Ademais, a ótica de Jean-Paul Sartre (1905-1980), quanto ao sujeito consciente e à responsabilidade ética e moral2 contribuirá de modo explicitador, na medida em que o filósofo francês expõe sobre a liberdade para optar ou não para se fazer algo (SARTRE, 1987, p. 9). Sartre funda a corrente filosófica existencialista, para expor que a existência prevalece a essência (SARTRE, 1987, p. 3), no qual nem Deus nem a natureza humana existe, ou melhor, “O indivíduo faz a si mesmo.” (MARQUES, 1998, p. 77).

FATORES LITERÁRIOS E LINGUÍSTICOS Literariamente, A paixão segundo G.H. tem uma distância com a narrativa tradicional, na medida em que o foco narrativo é, conforme diz o professor e crítico literário Lorival Holanda3, uma aventura interna, desta forma, o que ele chama de “épico-órfico”. Sendo assim, Clarice desenvolve um instrumento de busca pela identidade, tornando a obra uma espécie “reveladora” daquilo que o leitor é na sua relação intrínseca, que influencia externamente, desvendando-o. O discurso clariceano induz à percepção daquilo que Patrick Charaudeau dialoga em seus escritos sobre identidade e discurso: “o da existência de um sujeito, o qual se constrói através de sua identidade discursiva, que, no entanto, nada seria sem a identidade social a partir da qual se definir” (CHARAUDEAU, 2009, p. 309). Desta forma, pressupõe-se e subentende-se que a relação de G.H. com a barata é estabelecida pelo que ele 2  Entende-se por ética, neste contexto, as escolhas que o indivíduo faz, cujos impactos são internos e externos e moral por costumes adquiridos por meio da cultura em que o sujeito está inserido. 3  Em comemoração aos cinquenta anos de publicação de A paixão segundo G.H., no dia 01 de outubro de 2014, no programa Opinião de Pernambuco, o professor e crítico literário Lorival Holanda, a presidenta da Academia Pernambucana de Letras, Fátima Quintas, e a cineasta Geórgia Alves são convidados para articular sobre os aspectos recorrentes na(s) obra(s) de Clarice Lispector.


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chama de princípio de alteridade, o autoconhecimento (G.H.) a partir do conhecimento do outro (barata), por mais que este seja um animal. O diferente desencadeia o estereótipo e o preconceito, mas, na obra, percebe-se que a vontade se sobrepõe a tais aspectos. O leitor (ou a segunda pessoa com quem G.H. dialoga) é convidado a participar de sua reflexão ao longo da narrativa. O vocativo “meu amor”, que aparece vinte e uma vezes ao longo do romance, realça essa interação: “A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primeiramente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.” (LISPECTOR, 2009, p. 60). É, portanto, um convite à subjetividade da narradora-personagem. Contudo, infere-se que não há só uma indução à abstração de G.H., mas também o ledor, tornando a obra de cunho universal. A marca da linguagem expõe a experiência que Clarice propõe. Ao se ater a essa forma de expressão do pensamento, a escritora permite a interação com o “traduzir o desconhecido para uma língua que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais.” (LISPECTOR, 2009, p. 19), para relacionar a linguagem ao inconsciente, o que não se percebe ontologicamente: “A linguagem é a casa do ser. É nessa morada que habita o homem.” (HEIDEGGER apud REALE; ANTISERI, 1991, p. 591). Nesta perspectiva literária, a linguagem diz mais do que se almeja. Quando Clarice expõe a questão do sentido, esta faz a interseção com as sensações e aquilo que foi dito pela personagem G.H ao longo da narrativa. A partir dessa confluência, compreende-se o átimo político dentro do romance, pois o estilo tem como finalidade a desestabilização por meio da locução. Eu tenho à medida que designo e este é o esplendor de se ter linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou buscar – e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço (LISPECTOR, 2009, p. 176).

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DESCOBERTA E PROCURA DA EXISTÊNCIA E DA IDENTIDADE Na primeira página de A paixão segundo G.H., a narradora-personagem descreve a procura de modo impreciso, mas crucial para uma introdução cuja narração se volta para o “eu”, para a existência: “Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi.” (LISPECTOR, 2009, p. 9). Depreende-se também, analisando o trecho anterior, a negação do que ela viveu, repudiando a libertação da Vontade de vida, termo schopenhaueriano que define aquilo que impulsiona ao querer viver. Heidegger, em Ser e tempo, define o que não pode ser definido: o ser e a sua relação com o mundo interior e exterior (HEIDEGGER, 2009, p. 15). G.H., assim como o filósofo alemão, destaca o sentido do ser, seus questionamentos: No questionado reside, pois, o perguntado, enquanto o que propriamente alcança, aquilo em que o questionamento alcança sua meta. Como atitude de um ente, de quem questiona, o questionador possui em si mesmo um modo próprio de ser. Pode-se empreender um questionamento com “um simples questionário” ou como o desenvolvimento explícito de uma questão (HEIDEGGER, 2009, p. 30-31).

A personagem atinge um grau de pensamento transcendental, o qual permite questionar uma observação minuciosa de um “olho”, metáfora para o cérebro e os aspectos racionais e irracionais ali presentes que refletem a verdade da subjetividade: Minha pergunta, se havia, não era: “que sou”, mas “entre quais eu sou”. Meu ciclo era completo: o que eu vivia no presente já se condicionava para que eu pudesse posteriormente me entender. Um olho vigiava a minha vida. A esse olho ora provavelmente eu chamava de verdade, ora de moral, ora de lei humana, ora de Deus, ora de mim. Eu vivia mais dentro de um espelho. Dois minutos depois de nascer eu já havia perdido as minhas origens (LISPECTOR, 2009, p. 27).

Já em Sartre, o ser é a afirmação da existência, ou seja, o indivíduo é “o centro da filosofia sartriana, pois a existência precede a existência”


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(MARQUES, 1998, p. 77). Logo, os filósofos e a escritora, por assim dizer, partem da ótica ontológica, comum na obra de Heidegger, isto é, há a reflexão aprofundada quanto ao sentido do ser. Clarice indaga indiretamente, confrontando a perda da essência “Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais.” (LISPECTOR, 2009, p. 9) e da descoberta da existência/ identidade no momento em que G.H, no dia anterior, entra no quarto da empregada: “Naquela manhã, antes de entrar no quarto, o que era eu?” (LISPECTOR, 2009, p. 22). Os pontos fundamentais do ser (Heidegger), da existência (Sartre) e da descoberta (Lispector) implicam na epistemologia da narradora-personagem. Na condição feminina em que se encontra, G.H. é “o que se chama de pessoa realizada.” (LISPECTOR, 2009, p. 25), “Para uma mulher essa reputação é socialmente muito...” (LISPECTOR, 2009, p. 25), mas ao perceber o seu estado, manifestou o questionamento enquanto ser humano e também a respeito de ser do sexo feminino, sua marginalidade em uma sociedade patriarcal. Porém, no que se refere a homens e mulheres, o que era G.H.? Uma facilitadora para dons, aquela que admira ambos os lados: E quanto a homens e mulheres, que era eu? Sempre tive uma admiração extremamente afetuosa por hábitos e jeitos masculinos, e sem urgência tinha o prazer de ser feminina, ser feminina também foi um dom. Só tive a facilidade dos dons, e não o espanto das vocações – é isso? (LISPECTOR, 2009, p. 28)

Segundo Heidegger, “O conceito de ‘ser’ é o mais obscuro.” (HEIDEGGER, 2009, p. 29), e tal obscuridade encontra-se na obra clariceana de 1964. Deparando-se com a barata, a protagonista confronta tanto com a ausência de luz do guarda-roupa quanto à luminosidade do quarto, o que não era esperado por G.H. (LISPECTOR, 2009, p. 46). Falta clareza no ser por conta de seu caráter confuso, na sua indefinição do que não pode ser definido: Ao deambular em seu apartamento, G.H., ao passar do lado social e familiar ao obscuro e marginal, qual seja, o quarto de empregada, é presa de violento sentimento de estranheza ao deter-se à diante da barata esmagada num acesso frenético (NUNES, 2004, p. 296).

G.H. escreve sua relação com Deus em praticamente toda a narrativa. Ela existe porque ele assim o permite, apesar de não conhecer a sua presença (LISPECTOR, 2009, p. 17). Deus, de modo íntimo, organiza a vida desta personagem. Ela, que tem um fascínio por arrumação, organiza a sua existência por meio do que é conhecido, mas acontece justamente o contrário, pois o prazer e a liberdade a impulsionaram ao desconhecido. Depois da inclinação pela barata, pede perdão à mão que segura: “- Perdoa eu te dar isto, mão que seguro, não quero o que vi” (LISPECTOR, 2009, p. 56).

SILÊNCIO Expõe-se o silêncio como aquilo que “nunca soube” (LISPECTOR, 2009, p. 23), aliando-o ao mistério do eu a ser descoberto em justaposição com o medo do mau gosto. Além disso, torna-se evidente a explicação do verbo “viver” como exercício de coragem, sendo que a narradora desmistifica esse conceito e diz “[...] viver não é coragem, saber que se vive é a coragem e ou dizer que na minha fotografia eu via O mistério” (LISPECTOR, 2009, p.23). Há uma imagem estática assim como o silêncio, mesmo que a protagonista tente gritar: “Grite, ordenei-me quieta. ‘Grite’, repeti-me inutilmente com um suspiro de profunda quietude” (LISPECTOR, 2009, p. 61). O processo do silenciamento em A paixão segundo G.H. introduz à personagem a reflexão sobre a sua vida e a da empregada, Janair: “Nada, nada só que meus nervos estavam agora acordados – meus nervos que haviam sido tranqüilos ou apenas amarrados? Meu silêncio ou uma voz alta que é muda?” (LISPECTOR, 2009, p. 43) e “Meu mal-estar era de algum modo divertido: é que nunca antes me ocorrera que na mudez de Janair, pudesse ter havido uma censura à minha vida, que devia ter sido chamada para seu silêncio de “uma vida de homens”? Como julgar ela?”. (LISPECTOR, 2009, p. 39). Tem-se, ainda nesse âmbito, o questionamento do apagamento do outro, neste caso, o apagamento de uma identidade gerada pela diferença de classe social e etnia. Percebe-se, no caso de Janair, a influência da posição social da narradora-personagem no que diz respeito à inexistência da empregada, o


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que gerou ódio por parte desse ser ignorado tanto por sua patroa quanto pela sociedade. Compreende-se, a partir desse aspecto político como instrumento denúncia da realidade, que há um desvio da não existência da empregada, ou seja, a metafísica não se distancia do real:

A musa moderna verá mais coisas com um olhar mais elevado e mais amplo. Sentirá que tudo na criação não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz (HUGO, 2002, p. 26).

De súbito, dessa vez com mal-estar real, deixei finalmente vir a mim uma sensação que durante seis meses, por negligência e desinteresse, eu não me deixara ter a dor do silencioso ódio daquela mulher. O que me surpreendia é que era uma espécie de ódio insano, o pior ódio: o indiferente. Não um ódio que me individualizasse mas apenas a falta de misericórdia. Não, nem ao menos ódio (LISPECTOR, 2009, p. 40).

Experimentar, eis a experiência com a barata. Intertextualizando com Sartre, em A Náusea (1938), pode-se considerar o inseto como metáfora da angústia que o filósofo francês faz menção. Por isso, quando a narradora-personagem tenta racionalizar seu nojo pelo animal, ela questiona e faz comparação com o sugar do leite materno, ato comum associado à massa branca que saía da barata, para controlar os impactos dessa mudança violenta (LISPECTOR, 2009, p. 164). A angústia é o corpo tentando reagir por meio de sua linguagem (funcionamento) própria.

A BARATA E O GROTESCO A barata representa o vivo, o existente, além da contraposição do instinto animalesco, isto é, conforme Clarice diz, que “Quem não gosta de bicho é porque não aceita a sua animalidade.” O sublime contrapõe o grotesco. Antes do início da epifania (a sedução e repulsa pela barata), a vida de G.H. tinha a regularidade conformada. Subentende-se, então, que o envolvimento com o inseto, o ato de comer sua matéria branca, faz a reafirmação da existência dela, pois a seduz (LISPECTOR, 2009, p. 59) de modo singular: atraindo-a para o inferno, para a alegria de Sabá e de lidar com o feio e a violência que resistira a sua vida inteira. Já que para Sartre não há a existência de Deus, G.H. tem a liberdade, mesmo querendo segurar a mão Dele, de inclinar-se pelo não habitual, a barata. Quando eu ficava sozinha não havia uma queda, havia apenas um grau a menos daquilo que eu era com os outros, e isso sempre foi a minha maturidade e a minha saúde. E a minha espécie de beleza. Só meus retratos é que fotografavam o abismo? Um abismo (LISPECTOR, 2009, p. 25).

Clarice, pensando pela ótica de Victor Hugo, é a musa moderna, pois utiliza elementos do grotesco da realidade para enfatizar a natureza egoísta e os paradoxos das ações humanas. A musa é sujeito e objeto de sua escrita, expõe suas experiências e rompe com o arquétipo de mulher idealizada, intocável, diferentemente do estilo de época, o Romantismo:

Por fim, depreende-se que a arte promove o deslocamento do eu aparente para o essencial. A natureza mundo, mesmo com as morais convencionais estabelecidas pelas sociedades, “aleatória e sem sentido” (MOSER, 2009, p. 59), é a contraposição e, momentaneamente, correlação entre humano e inumano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999. FILHO, Jairo Justino da Silva. A consciência em crise na narrativa de Clarice Lispector: leitura de A paixão segundo G.H. Recife: O autor, 2010. FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Tradução Walderedo Ismael de Oliveiro. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. GUEDES, Helena Cirelli. A alteridade em Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado em Estudos Literários. Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, 2014. LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. MACEDO, Éder. Dos limites da existência: o


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existencialismo em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado em Letras/Literatura Brasileira. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2014. MARQUES, IH. Sartre e o Existencialismo. Metanoia, São João del-Rei, n. 1, p. 75-80, jul.1998. MONTI, Tony. Sim e não – o ritmo binário em A paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. MOSER, Benjamin. Clarice. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Metanoia, São João del-Rei, n. 1, p. 75-80, jul.1998. NUNES, Benedito. “A narração desarvorada”. In: INSTITUTO MOREIRA SALES. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, n. 17/18, p. 292301, dez. 2004. PIETROLUONGO, Márcia (Org.). O trabalho da tradução. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. p. 309-326. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. São Paulo: Paulus, 1991. SANT’ANNA, A. R. de. O lado poético da ciência. (Entrevista concedida a Carla Almeida). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 13 (suplemento), p. 213-22, out. 2006. SCHOPENHAUER, Artur. O mundo como vontade e representação, tomo II: complementos. Tradução do alemão Eduardo Ribeiro da Fonseca. Curitiba: Ed. UFPR, 2014. SKEIKA, Jhony Adélio. Uma linguagem (escrita) esquizofrênica: a experimentação de A paixão segundo G.H., de Clarice. Ponta Grossa, 2012. VICTOR, Hugo. Do grotesco ao sublime. Tradução do prefácio Cromwell, tradução e notas Célia Berrettini. São Paulo: Perspectiva, 2007. VOLOBUEF, Karin. Victor Hugo e o grotesco em Notre-Dame de Paris. L’ettres Francaise, n. 5, p. 25-34, 2003.


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O POETA E A SOCIEDADE DITATORIAL: UMA LUTA POR MEIO DA POESIA JÉSSICA CAROLINE PESSOA DOS SANTOS 1

RESUMO O presente artigo objetiva analisar a posição do poeta na sociedade ocidental por meio de uma perspectiva diacrônica. Primeiramente, na Grécia Antiga, utilizando como base a obra de Platão: A República, que por meio dos diálogos socráticos ajuda a compreender como o poeta era visto na Antiguidade, e, em um segundo momento, fazendo referência a Dante Alighieri, um dos principais poetas da época, na Idade Média e no Renascimento. Apresentando um novo papel para poesia: a capacidade de romper barreiras e libertar políticas ditatoriais. É nesse contexto que, mais tarde, surge a poetisa russa Anna Akhmátova, que tenta, com sua poesia, dar voz à Rússia ferida, vítima de uma ditadura cruel, período conhecido como Revolução Russa.

PALAVRAS-CHAVE | Poesia, ditadura, Anna Akhmátova.

1  Graduanda em Letras (Português/Espanhol) — UERJ


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A relação do poeta com a sociedade é um elo antigo, haja vista que a poesia sempre desempenhou um importante papel na comunicação humana.

nuir o papel do poeta dentro dela, transmitindo uma ideia claudicante e enganadora da realidade, como podemos perceber nesse trecho de A República:

Capacidade de proferir sentimentos, pensamentos, sonhos, ideologias que perpassam épocas, a poesia é uma das melhores maneiras que o ser humano encontrou para expressar essas potencialidades. Sua atribuição se faz presente desde a Antiguidade Clássica, tendo em Homero, autor de Ilíada e Odisseia, seu principal representante.

A poesia mimética, dizíamos nós, imita homens entregues a ações forçadas ou voluntárias, e que, em consequência de as terem praticado, pensam ser felizes ou infelizes, afligindo-se ou regozijando-se em todas essas circunstâncias (PLATÃO, 2005, p. 271). .

Entretanto, essa relação nunca foi harmoniosa, uma vez que alguns filósofos, como Sócrates (469 a.C. - 399 a.C.), consideravam que os poetas faziam proposições falsas, construindo um imaginário incorreto nos indivíduos acerca de diversas questões, dentre as quais estão as histórias de lutas e guerras que envolviam a genealogia dos deuses, muitas vezes contadas para crianças. Temas como a mansão de Hades e outros lugares sombrios são retratados nas obras dos poetas de sua época segundo os diálogos presentes na obra A República de Platão. Essas temáticas poderiam, fortemente, convencer a população de que os deuses são os verdadeiros causadores do mal, sobretudo, os mais jovens. Além disso, ao longo da obra, a concepção de mimese é atribuída à natureza de diversas artes, tais como a pintura e a poesia. Na origem (séc. IV a.C.), o termo “mimese podia corresponder a ‘imitação’, ‘sugestão’, ‘expressão’, todas referentes a uma única noção, a de fazer ou criar alguma coisa que se assemelha a qualquer outra coisa” (LUCAS, 1990, p. 259). Por meio de metáforas, sobretudo a da cama, Platão enuncia diversos argumentos, nos quais afirma que a realidade revelada pelo artista é uma mera imitação da aparência já criada, primeiramente, por Deus. É, portanto, uma produção inverossímil que não retrata uma realidade autêntica, sendo apenas uma representação daquilo que já foi criado. Por isso, pode-se perceber que a notável visão platônica de representação poética dentro da sociedade configura uma tentativa de dimi-

Representando assim, uma das primeiras tentativas de censura à poesia e a expulsão dos poetas das cidades, visto que para Platão, os mesmos instaurariam um mau governo e destruiriam a verossimilhança, por serem apenas meros encantamentos imitativos. Aqui está o que tínhamos a dizer, ao lembrarmos de novo a poesia, por, justificadamente, excluirmos da cidade uma arte desta espécie [...] se a poesia imitativa voltada para o prazer tiver argumentos para provar que deve estar presente numa cidade bem governada, a receberemos com gesto, pois temos consciência do encantamento que sobre nós exerce; mas seria impiedade trair o que julgamos ser verdadeiro (COELHO, 2008, p. 274).

Na Idade Média (séc. V ao séc. XV), o surgimento das relações de vassalagem e suserania proporcionou uma maior dependência hierárquica entre as classes sociais vigentes na época. No campo literário, não foi diferente. A poesia medieval era feita por trovadores e eram recitadas em língua galaico-portuguesa para um público aristocrático definido. Em posição servil, o poeta recitava para o seu senhor em formas de cantigas. A poesia trovadoresca era escrita com o máximo rigor métrico para conferir ritmo ao ser recitada. O poeta não tinha liberdade ao compor, pois devia seguir um tom que fosse o mais rítmico possível para ser recitado nos jograis nas feiras e castelos. Quanto ao tema, o amor era o principal das cantigas, mas não era um amor comum, e sim, um amor cortês, dedicado a uma mulher casada com um senhor de terras. Essa prática se refere à coita amorosa do trovador, que sofre por não poder ter a amada. O sofrimento era a essência do mundo medieval, pois se acreditava que essa


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era a principal maneira de se achegar a Deus. No que se refere às cantigas, elas podem ser divididas em cantigas de amor e cantigas de amigo. As cantigas de amor são aquelas em que o eu-lírico é masculino e recita para sua amada, uma mulher idealizada e inalcançável. Já nas cantigas de amigo, o eu-lírico é feminino, mesmo sendo escritas por homens, estas são poemas que revelam o encontro entre os dois, como amantes. Com isso, há outro ponto interessante que revela a posição da mulher no universo medieval, um ser desprovido de qualquer liberdade, em um mundo comandado por homens. Nas cantigas de escárnio se criticava indiretamente alguma pessoa e, nas de maldizer, era feita uma crítica mais direta, com palavras mais duras. A prática de escrever cantigas era tão comum no mundo medieval que até os reis as compunham, no caso da Península Ibérica, D. Dinis era o seu principal representante, como visto na cantiga de amigo As flores de verde pinho: Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! Ai Deus, e u é? Ai flores, ai flores do verde ramo, se sabedes novas do meu amado! Ai Deus, e u é? [...] E eu bem vos digo que é viv’e sano e seerá vosc’ant’o prazo passado: Ai Deus, e u é?

A referida cantiga apresenta um eu-lírico feminino que aguarda seu amigo, o qual sente a sua falta. Assim, conversa com a natureza, as flores de verde pino, enquanto espera o seu amado. A métrica paralelística e os temas rigorosamente definidos juntamente com a voz feminina escrita por homens configuram uma época em que poeta não tinha liberdade de expressão, tendo que obedecer às leis de um homem hierarquizado e desprovido de qualquer ascensão social. Em meados dos séculos XV e XVI, intensificou-se, na Europa, a produção artística e científica ao molde de conceitos greco-romanos. Esse período ficou conhecido como Renascimento, no qual imperava o pensamento antropocêntrico,

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que se opunha ao pensamento teocêntrico medieval. A conquista marítima nos séculos anteriores proporcionou a ascensão de uma nova classe social: os mecenas. Estes dispunham de condições financeiras para investir na produção artística de escultores, pintores, músicos, arquitetos, escritores, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, dentre outros. A Península Itálica foi a que mais cresceu nesse período. Diversos poetas surgiram nessa época, dentre eles, Dante Alighieri (1265-1321), que escrevia em língua italiana, num tempo em que o latim ainda era a forma mais utilizada. Nascido em Florença, apaixonou-se por Beatriz, nome dado à mulher que amava, sendo ela o principal tema de suas obras, tais como Vita Nuova. Além de poeta, Dante era extremamente comprometido com a política. Como era da baixa nobreza e a favor do poder papal, pertencia aos guelfos que faziam oposição à alta nobreza guibelina. Participou de diversas tentativas de tomadas de poder contra os guibelinos e, em decorrência de uma eleição, na qual se disputava o poder, a cidade de Florença foi dividida em dois partidos: os Brancos e os Pretos. Quando os Pretos tomaram o poder, acusaram Dante de ter se aproveitado do dinheiro público e, então, ele foi condenado ao exílio, além de ser condenado a pagar uma elevada multa em dinheiro. Por não pagar a multa, mesmo com o argumento de sua rica contribuição poética, Dante não pôde mais retornar a Florença, tendo que ser exilado para não acabar morto. É em seu exílio que começa a sua principal obra, a “Comédia”, depois passando a se intitular A Divina Comédia, poema constituído por 100 cantos, divididos em três livros: Inferno, Purgatório e Paraíso. Sendo considerado como um dos principais poetas da literatura mundial, Dante é até hoje lembrado, por exemplo, por Anna Akhmátova, poeta russa do século XX, que dedica a ele um poema. Escrito em 1936, ele permite a compreensão da condição de exílio, na qual a autora também se encontrava:


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DANTE Nem morto ele voltou à sua antiga , Florença. Ao deixá-la, não olhou para trás. É para ele que canto esta canção. Uma tocha. Noite. Último abraço. Seu destino selvagem geme porta afora. Quando esteve no Inferno, amaldiçoou esta cidade, mas não se esqueceu dela ao chegar ao Paraíso. Mas não foi ele quem andou, com pés descalços, vestido de saco e com uma vela acesa, pelas ruas da Florença bem-amada, mesquinha e infiel, que ele tanto desejou [...]

Anna Akhmátova, principal representante do acmeísmo, um movimento literário modernista russo que apresenta uma linguagem simples, clara e usual, viveu em plena época stalinista, uma época de repressão ditatorial. Até o final do século XIX, a Rússia era de base semifeudal sob o regime do czarismo. Devido às péssimas condições de vida e à forte crise econômica, nasceu um movimento de descontentamento pelo sistema por parte da população. Desde 1905, a Rússia tinha entrado em conflito armado contra o Japão, em razão de algumas terras. Com a derrota daquele, uma enorme crise econômica assolou o país. Essas medidas culminaram em uma revolta popular, em 1905, na cidade de São Petersburgo, onde manifestantes pacíficos marcharam até o palácio de inverno, para apresentar uma petição ao czar Nicolau II, mas foram fortemente reprimidos pela polícia okhrana, polícia secreta do regime tzarista russo. Em decorrência disso, surgiram dois grupos políticos: os mencheviques (que acreditavam que, implementando medidas de desenvolvimento capitalistas, poder-se-ia chegar ao socialismo igualitário) e os bolcheviques (que acreditavam que era possível começar uma lógica socialista sem o desenvolvimento capitalista). Em 1917, os mencheviques tomaram o poder da Rússia, retirando a supremacia do czar. Dentre suas principais medidas, estava estabelecer o desenvolvimento da economia capitalista no país, entretanto, o grupo não alcançou êxito e, pela manutenção do país na

Primeira Guerra Mundial, acabou gerando duras críticas do partido opositor. Por isso, em novembro do mesmo ano, os bolcheviques, liderados por Lênin, tomaram o poder. O governo de Lênin (1917-1924) colocou em prática uma série de medidas econômicas, dentre elas o NEP (Nova Política Econômica), medidas de cunho capitalista dentro do socialismo russo, e também a formação da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), uma união de antigas áreas comandadas pelo czar e que, nesse momento, compartilharia um mesmo pensamento socialista. Com sua subida ao poder, Lênin reprimia qualquer um que fosse contra suas medidas, e isso foi intensificado logo após a sua morte, com a ascensão de Stálin ao poder. O campo literário sofreu com a atuação da mão repressora, tanto que vários poetas morreram nesse período, dentre eles, Vladimir Mayakovsky, que se suicidou. A declaração do escritor Isaak Báhel demonstra como era o clima na época: “A única explicação para o suicídio de Maiakóvski foi ele ter chegado à conclusão, de que era impossível trabalhar nas condições criadas pelo regime soviético” (COELHO, 2008, p. 157). Foi nesse universo opressor que surgiram inúmeras prisões e fuzilamentos, dentre os quais estavam vários amigos poetas de Anna e Nikolai Gumilev, um influente poeta da época, e o estudante de história Lev Gumilev, respectivamente o primeiro marido e o filho de Anna Akhmátova. Em um ato de desespero, ela escreve uma carta a Stálin rogando pela liberdade de sua família. Devido a sua intervenção e aos contatos que ela tinha no mundo intelectual, conseguiu a liberdade de ambos. Mesmo com a relação conturbada entre eles, Anna sentiu-se aliviada por estarem livres. Vítima das traições de seu marido, Anna se refugiava na casa de seus amigos, em Moscou, sentindo-se, por isso, como uma exilada. Em razão de vários problemas, sua saúde foi ficando comprometida. Após a prisão do reitor da Universidade de Leningrado, Anna dá uma declaração de que qualquer um pode ser preso, na Rússia, sem nenhum motivo.

No seu quarto ano do curso de História,


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Liev foi novamente preso e condenado a dez anos de prisão. No retorno a Leningrado, Anna esperava na fila juntamente com outras mães para obter notícias de seu filho e, enquanto aguardava, escreveu Réquiem, uma coletânea de poemas.

VII O VEREDICTO E a pétrea palavra caiu sobre o meu peito ainda vivo. Pouco importa: estava pronta. Dou um jeito de agüentar.

Essa obra estabeleceu-se como um marco da história da literatura russa, tornando-se, assim, a porta-voz de tantas mães, pais, filhos e familiares que estavam sofrendo ao ver seus entes queridos presos.

Hoje, tenho muito o que fazer: devo matar a memória até o fim. Minha alma vai ter de virar pedra. Terei de reaprender a viver.

Seus versos configuram uma linguagem clara de metro regular, influenciada por Dante, Maiakóvski, Púchkin, que exprimem um sofrimento, em seu prólogo, causado pelo regime opressor que, por onde passava, deixava rastros de sangue.

Senão… o ardente ruído do verão é como uma festa debaixo da janela. Há muito tempo eu esperava por este dia brilhante, esta casa vazia. (22 de junho de 1939, Casa Fontanka)

Por meio de sua obra, é demonstrado como a força de sua poesia pode abrigar todo o sofrimento que pairava em seu país, nação essa que vivia sob tamanha crueldade humana, levando o eu-lírico a gritar, representando o grito preso na garganta da população russa: V. Há dezessete meses eu grito, Te chamo para casa. Joguei-me aos pés do carrasco, Meu filho e meu terror. Tudo turvou-se para sempre, Não posso mais distinguir Quem é homem ou fera e quanto A pena me cabe esperar. Há somente flores de pó, E o tilintar do turíbulo e rastros, Algures, para lugar nenhum.

Demonstrando, ainda, uma mãe desesperada que conversa com a Morte: Direto nos olhos fita-me E ameaça de uma morte próxima, A enorme estrela.

Mesmo com a intensa dor, Anna se manteve firme, não abandonando seu país, criando coragem e força para prosseguir lutando contra a condenação de seu filho:

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É como se ela fosse escolhida para representar aquele país junto à força que a poesia possui em traduzir os mais profundos sentimentos humanos, quando a voz não pode falar e os olhos não podem mais chorar. Assim é a poesia, uma arma poderosa contra poderes opressores, um alimento para a alma e uma voz que conduz à luta e que traduz não só o sofrimento individual, mas universal.

Epílogo Aprendi como os rostos se abatem, E sob a pálpebra espreita o medo, E como a dor se grava sobre as faces Duras páginas de escrita cuneiforme [...] Não rezo só por mim [...] Não as esquecerei em nova desgraça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AKHMÁTOVA, Anna. Réquiem. Tradução Aurora Bernardini e Hadasa Cytrynowicz. São Paulo: Art Editora LTDA, 1991. ALIGHIERI, Dante. “Inferno”. In: ______. A divina comédia. Disponível em: <http://www. stelle.com.br/index.html>.


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COELHO, Lauro Machado. Anna, a voz da Rússia. São Paulo: Algol, 2008. LEWIS, Richard Baldwin. Dante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. MARTENS, Ludo. Stalin, um novo olhar. Tradução Pedro Castro e Pedro Castilho. Rio de Janeiro: Revan, 2003. PIPES, Richard. História Concisa da Revolução Russa. Rio de janeiro: BestBolso, 2008. PLATÃO. A República. Tradução Heloisa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005. TORRES, Alexandre Pinheiro. Antologia da Poesia Trovadoresca Galego-portuguesa (Séc. XII – XIV). Porto: Lello & Irmão, 1977.


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EURYDICE CANTA E PENÉLOPE TECE SUA NARRATIVA: RELAÇÕES DE PODER NO ROMANCE A ODISSEIA DE PENÉLOPE DE MARGARET ATWOOD E NO POEMA ORPHEUS 1 JESSYCA SANTIAGO 1

RESUMO Este artigo objetiva expor e discutir as relações de poder em duas obras da escritora canadense Margaret Atwood, o romance A Odisseia de Penélope e o primeiro poema do ciclo de Orfeu, Orpheus 1, em análise comparativa com o Mito de Orfeu e a Odisseia de Homero. Com essa análise pretende-se questionar e discutir as relações de poder existentes nos discursos dos cânones literários e suas releituras e como esta nova perspectiva lançada influencia na reconstrução dos valores existentes nestas obras.

PALAVRAS-CHAVE | Relações de poder, cânone literário, Margaret Atwood.

1  Graduanda em Letras (Inglês-Literaturas) - UERJ


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INTRODUÇÃO Margaret Atwood, nascida em 1939, é uma escritora e poetisa contemporânea. Grande nome da literatura internacional, ganhou vários prêmios por suas obras como: Book Prizer e o Governor General’s Award. Dentre outros trabalhos que revisitam os clássicos da Literatura Clássica sob uma nova perspectiva, podemos citar o ciclo de poemas Orpheus, que consiste em três poemas recontando o mito de Orfeu sob o olhar de Eurydice e o romance A odisseia de Penélope, publicada no Brasil pela Companhia das Letras em 2005. Embora vários de seus trabalhos abordem assuntos referentes à opressão contra a mulher, Atwood não se considera uma escritora feminista, pois diz que escreve sobre esses assuntos de forma inconsciente. Outro tema recorrente em seus trabalhos refere-se às questões ambientais e o embate entre as forças da natureza e a vontade de dominar da espécie humana. Em seu poema The Moment, o eu lírico personifica a voz da própria natureza perante o sentimento de superioridade e dominação humana e diz: “We never belonged to you/You never found us. / It was always the other way round” (ATWOOD, 1976, versos 16-18). Somos, a todo o momento, apresentados a esse confronto e questionamento sobre valores sociais e culturais perpetuados não só em cânones literários, mas também no contexto social atual.

EURYDICE CANTA Atwood, em seu ciclo de poemas recontando o mito de Orfeu, nos apresenta os acontecimentos sob a perspectiva de Eurydice, na qual o poeta não é o marido apaixonado que desce ao Hades em busca de sua amada por amor puro e sublime, mas sim porque não admite a perda de algo que acredita ser seu, e por isso a sua frustração em não conseguir recuperar a sua posse: “Though I knew how this failure/ Would hurt you, I had to/ Fold like a gray moth and let go” (ATWOOD, 1976, versos 35-37). Analisaremos aqui detalhadamente o primeiro poema do ciclo de Orfeu Orpheus 1. Ao dar voz à Eurydice, esta passa de um ser completa-

mente passivo para um ser com vontades e desejos. Passamos de uma história vista por muitos como uma história de amor para uma história de dominação. Nietzsche diz em sua epígrafe 6 que “todo impulso ambiciona dominar” (NIETZSCHE, 2005, p.13), e, logo na primeira estrofe do poema, nos deparamos com a imagem de Orfeu puxando Eurydice de volta à vida, sem questionar se esta seria sua vontade, o que se esclarece na estrofe seguinte quando ela diz: “The return/ To time was not my choice” (ATWOOD, 1976, versos 7-8). Eurydice simplesmente não tinha escolha, a ela não foi dado esse direito. Durante todo o poema Orpheus 1 nos deparamos com palavras opressivas em relação à Eurydice como leash, rope, obedient. O eu lírico diz: “You had your old leash/ With you, love you might call it, /And your flesh voice” (ATWOOD, 1976, versos 14-16) e nesses versos vemos sendo posto em dúvida o amor de Orfeu pela esposa, o poder que ele exerce sobre ela e a sua voz como mais um instrumento utilizado para exercer esse domínio. Nos versos 21 e 22, Eurydice diz “I was your hallucination, listening/ And floral, and you were singing me” (ATWOOD, 1976, versos 21-22). Segundo Junito Brandão, em seu livro Mitologia Grega (Vol. II), “Orfeu era filho da mais importante das nove musas e Apolo, e sua maestria na cítara e sua voz acalmavam as feras selvagens e era tido como ‘educador da humanidade’”. Assim sendo, seria um herói de origem divina com uma habilidade inerente à sua natureza heroica, que parte em sua jornada em busca da amada esposa descendo até o Hades para buscá-la, mas sem conseguir completar sua missão, pois descumpriu o aviso de Hades e Perséfone e olhou para trás. Ao retornar para o mundo dos vivos e recusar as investidas das mênades, por ser fiel à esposa, é esquartejado. Ao compararmos então o mito com a versão apresentada pelo poema de Atwood, temos uma subversão dos valores presentes no primeiro. É apresentado todo um questionamento em torno desses valores o que nos leva a refletir e olhar para a narrativa sob uma nova perspectiva: Orfeu não usa mais seu canto para acalmar as feras e sim para dominar Eurydice; não desce ao Hades para recuperar a amada esposa e sim para


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reaver sua posse; não é mais a perda da amada que o faz triste e sim o sentimento de falha. É interessante notar que Atwood ao dar voz à Eurydice não muda a ordem do mito nem os fatos ocorridos: Orfeu desce ao Hades em busca da esposa, falha e retorna sem ela. No último verso do poema Orpheus 1 ainda temos uma possível menção a uma das vertentes do mito que diz, após ser esquartejado pelas mênades, a cabeça de Orfeu cai rio abaixo chamando por Eurydice e o seu eco é repetido pelas margens do rio “You could not believe I was more than your echo” (ATWOOD, 1976, verso 38). Eurydice não é mais o eco de Orfeu porque ela “ganhou” voz através de Atwood.

PENÉLOPE TECE SUA NARRATIVA O poema épico A Odisseia, atribuído a Homero, conta os feitos heroicos de Odisseu e sua longa e perigosa viagem de retorno para sua amada terra Ítaca e para a esposa Penélope após longos anos de ausência. O poeta começa por evocar a musa para que o inspire a cantar os grandes feitos de Odisseu: “Musa reconta-me os feitos do herói astucioso que muito/Peregrinou dês que desfez as muralhas sagradas de Troia” (HOMERO, 2011, Canto I, versos 1-2). Segundo Junito Brandão, em seu livro Mitologia Grega (Vol. III), o herói é um ser de origem divina com virtudes inerentes à sua condição e natureza, o que o predispõe a gestos gloriosos e grandes feitos heroicos, que, após passar por ritos iniciáticos, inicia suas aventuras até atingir prodígios sobrenaturais e alcançar um triunfo decisivo e assim regressar para casa proporcionando feitos inesquecíveis a seus irmãos. O ideal de mulher seria: “não é o de que estuda e ‘participa’, mas aquele traçado com gulosa satisfação machista” (BRANDÃO, 1987). Sendo assim coube a Penélope o papel de esposa fiel e paciente sempre à espera do retorno do amado esposo durante vinte anos, resistindo às investidas dos inúmeros pretendentes que queriam obter sua mão e os bens do rei ausente. Levando em consideração que toda obra literária está inserida em um contexto sociocultural de sua época, este pode refletir relações

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existentes naquela sociedade, Mirele Carolina, em seu artigo Uma Leitura do Processo de Formação do Cânone Literário: O Relativismo e sua Pretensão à Universalidade, diz: Retomando as produções da Antiguidade Clássica, por exemplo, percebe se que os grandes heróis das obras literárias, aqueles que surpreendem o público com seus ensinamentos, são homens fortes, brancos e belos. A figura da mulher nessa literatura sempre aparece como secundária, a esposa benevolente ou a filha escravizada, preparada para o casamento (BRANDÃO, 1987).

Sendo assim, a figura de esposa fiel e paciente estaria dentro do esperado para uma mulher para o contexto sociocultural da época. No entanto, através de Margaret Atwood, Penélope pode tecer sua odisseia: “Agora que todos os outros perderam o fôlego, é a minha vez de fazer o relato. Devo isso a mim mesma (…). Portanto vou tecer minha própria narrativa. A dificuldade é não ter boca pela qual falar” (ATWOOD, 2005). Mirele Carolina em seu artigo O Relativismo e a Pretensão à Universalidade fala sobre o que ela chama de atrofiamento das vozes femininas na literatura. Diz que isso é por causa de condições impostas pela ideologia patriarcal, cujo mérito é reproduzir um discurso masculino dominante. Após muitos séculos, Penélope pode contar sua versão dos fatos e ser ouvida. E conta sua versão dos fatos de uma forma que não é esperada de uma esposa benevolente e submissa: muitas vezes, é uma voz irônica que revela com um humor ácido seu desagrado perante fatos ocorridos. Sobre o episódio em que Circe transforma os marinheiros de Odisseu em porcos, ela diz: “Odisseu residia numa ilha encantada, como hóspedes de uma deusa, diziam alguns; ela transformara seus marinheiros em porcos – e não havia nenhuma proeza nisso em minha opinião” (ATWOOD, 2005). Ou ainda quando fala sobre os cânticos de exaltação a Odisseu feito pelos menestréis: “Desnecessário dizer que os menestréis abordavam os temas e os complementavam consideravelmente. Sempre cantavam a versão mais nobre na minha frente” (ATWOOD, 2005).


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Ao descrever Odisseu, o herói valente dos mil estratagemas, ela desmitifica completamente a visão do herói apresentado por Homero na Odisseia e a descrição de Junito Brandão citada anteriormente. Sobre Odisseu, Penélope diz: Ele sempre foi muito convincente. Muita gente acreditava que sua versão dos acontecimentos era verdadeira, com monstros de um olho só. Até eu acreditava nele, de vez em quando. Sabia que era ardiloso e que mentia, mas não imaginava que fosse capaz de me enganar e de me contar mentiras (ATWOOD, 2005).

Sendo assim, a imagem de herói de feitos sobre-humanos é questionada. O herói nobre passa a ser um falastrão que impõe sua versão dos fatos como verdade, e, como Nietzsche diz em epígrafe 6, “vontade de verdade” esconde “vontade de poder”. Ao legitimar sua visão da realidade, detém o poder, o reconhecimento de seus feitos e sua imagem como herói. Na versão de Penélope, Odisseu não só é ardiloso, mas também mente e, possivelmente, exagera os fatos e não cometeu os feitos heroicos que conta: “Odisseu enfrentara um gigante de um olho só segundo alguns; nada disso, foi só um taberneiro caolho, disse outro” (ATWOOD, 2005). A voz de Penélope é irônica e não se conforma com a imagem de esposa paciente e obediente; está cansada de esperar e não quer servir como modelo de mulher benevolente para o sofrimento de outras mulheres. Não fui fiel? Não esperei e esperei, apesar da tentação – quase compulsão de desistir? E o que me restou, quando a versão oficial se consolidou? Ser uma lenda edificante. Um chicote para fustigar outras mulheres. Por que não podem ser todas tão circunspectas, confiáveis e sofredoras como eu? Era essa a abordagem que adotavam os cantores e rapsodos. Não sigam o meu exemplo, sinto vontade de gritar no ouvido de vocês – sim, no de vocês! Mas quando tento gritar, pareço uma coruja (ATWOOD, 2005).

Atwood não só desmitifica a imagem de Odisseu como herói de feitos honoráveis como também desmancha a imagem de esposa paciente de Penélope e deixa claro que ela não estava satisfeita com os fatos ocorridos, e que ao contrário da imagem que foi edificada no cânone

literário ela não quer ser relacionada com essa imagem. Mas não tem voz para falar, em uma alusão a Atena, a deusa protetora de Odisseu, ela diz que parece uma coruja. A voz dela é calada pela voz da sabedoria do senso comum, é calada pela imagem que prevaleceu no cânone literário, na Odisseia de Homero. No romance narrado por Penélope, ela ainda sugere que sabia de todo o plano de Atena com Odisseu para reaver o reino. A protagonista é esperta o suficiente para entender o que está acontecendo e, assim como Odisseu, é capaz de planejar e executar seus próprios estratagemas, nada passa despercebido por ela por mais que tentem iludi-la. Ela não apenas sabe, como acha graça da situação demonstrando quase um ar de superioridade: As canções dizem que não percebi nada, pois Atena desviara minha atenção. Quem acreditar nisso acredita em qualquer absurdo. Na verdade, dei as costas aos dois para disfarçar meu riso silencioso, provocado pelo êxito de meu estratagema (ATWOOD, 2005).

CONCLUSÃO Assim como no ciclo de poemas sobre o mito de Orfeu, a narrativa de Penélope não muda a ordem nem os acontecimentos. Margaret Atwood lança um novo olhar e uma nova perspectiva sob dois clássicos da literatura, o Mito de Orfeu e a Odisseia de Homero, pertencentes ao cânone literário ocidental que por séculos propagou uma série de valores enraizados na sociedade. Ela questiona, critica e nos leva a refletir sobre essas ideias por um ângulo diferente, lançando uma nova luz a clássicos conhecidos e legitimados pela sociedade como cânones literários, “literatura de valor”. Mirele Carolina Werneque diz em seu artigo O Cânone Literário e a Pretensão a Universalidade: Nesse sentido a releitura de obras canonizadas a partir de teorias que valorizem a mulher, o negro, e o ex-colonizado, teorias que critiquem as convenções sociais que pregam pelo paternalismo e pelo eurocentrismo problematizando a realidade é capaz de suscitar a curiosidade do público em questionar pilares que sustentam a história da literatura tradicional (MIRELE, 2008).

É esse novo olhar, esse questionamento,


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essa desconstrução de um discurso dominante e elitizado que como educadores devemos proporcionar a nossos alunos, sem excluir uma obra ou outra. Devemos ajudar nossos alunos a desenvolverem uma capacidade de análise crítica para não aceitarem valores estabelecidos como “verdades absolutas”, afinal, como Nietzsche diz, não há verdades absolutas e metafísicas: o que há são interpretações acerca do que chamamos de “realidade”. O que conhecemos por cânone contém valores que ajudaram a construir a história da literatura. O fato de conseguirmos fazer com que as pessoas consigam levantar questionamentos e reflexões, concordando ou discordando acerca do que ali se encontra é um grande avanço para desconstruirmos e refletirmos sobre esse discurso dominante presente nas obras e entendermos como funcionou e funciona a sociedade em que as obras estão inseridas.

ANEXO Orpheus 1 1. You walked in front of me, 2. pulling me back out 3.to the green light that had once 4. grown fangs and killed me. 5. I was obedient, but 6. numb, like an arm 7. gone to sleep; the return 8. to time was not my choice. 9. By then I was used to silence. 10. Though something stretched between us 11. like a whisper, like a rope: 12. my former name, 13. drawn tight. 14. You had your old leash 15. with you, love you might call it,. 16. and your flesh voice. 17. Before your eyes you held steady 18. the image of what you wanted 19. to become: living again. 20. It was this hope of yours that kept me following. 21. I was your hallucination, listening 22. and floral, and you were singing me: 23. already new skin was forming on me 24. within the luminous misty shroud 25. of my other body; already 26. there was dirt on my hands and I was thirsty.

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27.I could see only the outline 28. of your head and shoulders, 29. black against the cave mouth, 30. and so could not see your face 31. at all, when you turned 32. and called to me because you had 33. already lost me. The last 34. I saw of you was a dark oval. 35. Though I knew how this failure 36. would hurt you, I had to 37. fold like a gray moth and let go. 38. You could not believe I was more than your echo. (ATWOOD, 1987)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ATWOOD, Margaret. A Odisseia de Penélope. Companhia das Letras, 2005. ATWOOD, Margaret. Orpheus 1.1976. ATWOOD, Margaret. Selected Poems II. 1976-1986. Vol. 2. ATWOOD, Margaret. Mariner Books. 1987. ATWOOD, Margaret. “The Moment”. In: ______. Selected Poems I. Houghton Mifflin: 1976. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Vol. II. Editora Vozes, 1987. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Vol. III. Editora Vozes, 1987. HOMERO. Odisseia. Tradução Carlos Alberto Nunes. Saraiva: 2011. JACOMEL, Mirele Carolina Werneque. Uma Leitura do Processo de Formação do Cânone Literário: O Relativismo e a Pretensão à Universalidade. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 18, n. 5/6, p. 461-473, mai/jun. 2008. NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Companhia das Letras, 2005.


CORUJA | ADOLFO CAMINHA EM BOM-CRIOULO: UM QUESTIONAMENTO

ADOLFO CAMINHA EM BOM-CRIOULO: UM QUESTIONAMENTO LAÍZA CÂNDIDO DOS SANTOS MARTINS DE SOUZA 1

RESUMO A partir da leitura da obra Bom-Crioulo (1895), de Adolfo Caminha (18671897), e, posteriormente, de artigos relacionados à mesma, inquieteime com o equívoco de comparar o autor com sua obra. Desse modo, Caminha seria o próprio “Bom-Crioulo”, ou seja, homossexual, com todas as suas características, ambições e inquietações? Assim, por meio de um diálogo do presente livro com outros textos, procurarei elucidar que o mesmo evoca aspectos da sociedade em que viveu Caminha, bem como eventos e hábitos ocorridos no Brasil e em Portugal relacionados ao Exército e à Marinha, da qual “Caminha era um oficial naval na ativa entre os anos 1886 e 1889 [...]” (HOWES, 2005). Com isso, Bom-Crioulo não deve ser considerado uma autobiografia do autor, mas, sim, uma reflexão crítica e naturalista do Brasil antes e durante a abolição da escravatura.

PALAVRAS-CHAVE | Adolfo Caminha, homossexual, Marinha, reflexão crítica.

1  Graduanda em Letras (Português/ Inglês) – FFP/UERJ


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A OBRA Uma vez escrito em 1895, Bom-Crioulo é considerado o primeiro grande romance a tratar da homossexualidade por um viés extremamente naturalista. Na presente obra, dividida em doze capítulos, Adolfo Caminha chama a atenção pela “clareza das descrições” (HOWES, 2005, p. 172), como também ao discutir a pederastia entre dois oficias da Marinha do Brasil: Amaro, o BomCrioulo - puro negro, hercúleo e escravo fugido –, o qual seduz Aleixo – um grumete branco de quinze anos -, que se rende aos desejos daquele, uma vez que lhe protege contra os outros oficias do navio e lhe dá uma moradia – um quartinho na pensão de D. Carolina, localizado na Rua da Misericórdia, Rio de Janeiro. Contemporâneo do Naturalismo no Brasil, Adolfo Caminha escreve em “câmera-lenta, visto que a tese adotada reclamava a disposição silogística da narrativa” (MIYUKI, 2013) em que os capítulos iniciais funcionam como premissas da conclusão do “último ato”: - Sou eu mesmo, rugiu Bom Crioulo, sou eu mesmo! Pensavas que era só meter-te com a portuguesa, hein? [...] E apertava bruscamente o outro, sacudindo -o como se o quisesse atirar ao chão [...] Aleixo passava nos braços de dois marinheiros, levado como um fardo, o corpo mole, a cabeça pendida pra trás, roxo [...] (CAMINHA, 2002).

Segundo Robert Howes (2005, p. 172), “Numa carta para Sabino Batista datada em 31 de outubro de 1894, Caminha escreveu que seu livro estava no prelo e devia aparecer em dezembro”, todavia, muitos acreditavam que a demora na publicação de Bom Crioulo, que só fora publicado em novembro de 1895, era por motivos pessoais ou talvez por medo da repercussão que tal assunto fosse causar, uma vez que no ano anterior havia publicado A Normalista (1893), romance de cunho regionalista que “foi baseado num escândalo real em Fortaleza e trata da sedução duma moça pelo seu tutor” (HOWES, 2005, p. 176). Entretanto, como “autor marginalizado e pobre” (MENDES, 2012, p. 4), Caminha destilava duras críticas quanto ao sistema literário, sobretudo no Rio de Janeiro, na década de 1890, afir-

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mando que o público em sua maioria era analfabeto, e também pelos preços abusivos cobrados pelas editoras. Quem sabe por isso, Caminha tenha se demorado mais a publicar sua mais ousada obra. Logo, penso ser errônea a ligação feita entre a história do livro e a história/ vida do autor, uma vez que o discurso literário usado por Caminha tem muito do que presenciara na Marinha. Assim, baseando-me nos escritos de Robert Howes (2005), Mendes (2012) e Antoine Compagnon (2010), buscarei dialogar juntamente ao livro Bom-Crioulo algumas “suposições” levantadas por aqueles que tiveram a oportunidade de ler a obra, e que, por conseguinte, criticaram a posição do autor, bem como a maneira pela qual ele abordou a homossexualidade. Todavia, concordo com o próprio Caminha (1896, p.41) quando ele defende o seu romance com relação à Marinha: “no caráter de oficial de marinha, vi os episódios acidentais que descrevo a bordo”.

NATURALISMO OU MODERNISMO? Após a publicação do “surpreendente Bom-Crioulo” (MENDES, 2012, p. 3), Caminha se destaca, em parte, como um dos maiores escritores naturalistas do Brasil, juntamente com Aluísio Azevedo (1857-1913). Todavia, a própria ideia do Naturalismo não era bem quista pela crítica conservadora, e, sobretudo, pelas universidades; uma vez que a presente estética defendia o comportamento do homem como resultado do meio em que vivia, pontuando suas taras sexuais e chamando atenção para seu lado animalesco. Logo, assim como Caminha, outros escritores ditos canônicos, tais como Raul Pompéia – com O Ateneu, em 1888 -, e o próprio Aluísio Azevedo eram criticados por desenvolverem essa tendência, entendida talvez, como deveras moderna – em oposição ao conservadorismo da época -, por apresentar uma inovação em seus temas; bem como sua forma de descrever hábitos que anteriormente eram ignorados. Contudo, o que se objetivava, na maioria das vezes, era exatamente fazer críticas ou denúncias de questões que de fato foram ignoradas durante muito tempo por aqueles que se debruçavam em construir romances idealizados ou cheios de sentimentalismo. Nas palavras de Caminha (1999, p.


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68), citado por Mendes (2012, p. 6): “Condena o ‘misticismo literário e religioso’ dos tempos, que ele associa ao romantismo e às tribos dos simbolistas e dos decadentistas, chamados por ele de ‘bando de niilistas de nova espécie’”.

presos: um rapazinho magro, muito amarelo [...], outro regulando a mesma idade, mas um pouco moreno [...]; e um primeira-classe, negro alto [...] VINHAM EM FERROS [...] - Vinte e cinco... (chibatadas), ordenou o comandante.

Portanto, Adolfo Caminha ganha evidência por inovar e revolucionar no campo literário, sobretudo pela escolha dos temas transgressivos de seus três únicos romances: A Normalista (1893), Bom-Crioulo (1895) e Tentação (1897). Contudo, o segundo destes chamou mais atenção, sobretudo por suas cenas explícitas, e que, por conseguinte, segundo Howes (2005, p. 175), “Magalhães e Veríssimo sugeriram que Bom Crioulo refletia a experiência pessoal do seu autor [...]”.

Assim, como dito anteriormente, os escritores do Naturalismo não buscavam a idealização da sociedade em que viviam; “por outro lado, o artista não pode eximir-se à influência do meio em que vive, aos costumes do tempo, ao estado dos espíritos” (QUEIROZ, 1871). Portanto, não há porque se pensar Bom Crioulo como uma autobiografia de Adolfo Caminha unicamente pelo fato do mesmo abordar o tema da homossexualidade, ou até pelos castigos dentro do navio.

Ter a intenção do autor como ponto de partida para interpretar uma obra literária teve início no século XIX, segundo afirma Compagnon (2010, p. 49), e que na época constituiu grande conflito entre os antigos e os modernos, uma vez que estes defendiam a nova crítica, enquanto aqueles, a história literária. Uma vez que “a vantagem principal da identificação do sentido à intenção é a de resolver o problema da interpretação literária: se sabemos o que o autor quis dizer [...], não é preciso interpretar o texto” (COMPAGNON, 2010, p. 49). Assim, quando há o foco na intenção ou biografia do autor, perde-se o que é mais importante: a crítica literária pessoal. Desse modo, seria um equívoco pensar que a obra reflete a experiência de Adolfo Caminha.

TRANSGRESSÃO

Entretanto, se ao que Magalhães e Veríssimo chamam de ”experiência pessoal do autor” forem “as práticas dos castigos de chibata” à que Caminha assistiu quando cadete, nada mais natural, uma vez que Adolfo Caminha protestava e, logo, era contra esse tipo de “conserto” aplicado aos marinheiros, que na sua maioria eram negros. Esse tema é abordado logo no primeiro capítulo de Bom-Crioulo (CAMINHA, 2002, p. 1517, grifo meu): Com pouco estava tudo pronto, marinheiros e oficiais – aqueles alinhados a dois de fundo [...] - Os presos..., fez o comandante, sem se alterar, dando um puxão na manga da farda. [...] E tinha (guardião Agostinho) sempre esta frase na ponta da língua: - Navio de guerra sem chibata é pior que escuna mercante... Chegam os

Por meio da leitura de artigos a respeito da vida e da obra de Adolfo Caminha, indagueime com o fato de na maioria das vezes ele ser “apontado” como homossexual, ou defensor dos direitos desta minoria, principalmente após a publicação de Bom-Crioulo. Dessa forma, e quanto a outros escritos que datam de 1885 ou 1888, e abordam casos de transgressão? Então, ao escrever Um Homem Gasto (1885), Ferreira Leal retratava sua experiência como viciado em drogas ilícitas, além do desejo de suicidar-se? Assim como Aluísio Azevedo, em O Cortiço (1890), que destaca o cotidiano de três personagens ditos “à margem da sociedade”, como um jovem efeminado, um velho sujo e uma prostituta lésbica agressiva (HOWES, 2005, p. 176). Quem seria ele destes três? Como se percebe na datação, ambas as obras são anteriores a Bom-Crioulo, assim como os demais romances de Adolfo Caminha. Logo, pode-se pensar em possíveis influências, pois, além das experiências vividas pelo autor, é possível que Caminha tenha lido tais obras de seus contemporâneos. Ainda que escrita em 1871, a 4ª Conferência de Eça de Queirós - A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte muito acrescenta ao que se buscava com o Naturalismo no Brasil, e muitos não compreendiam: “E assim, a arte decai no drama, na poesia, na pintura [...] Dir-se-á que por falta de gosto: mas o gosto está mais educado que nunca. Também não é por falta de estudo: sabe-se mais que nunca” (QUEIROZ, 1980, grifo meu).


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Assim, o que se vê é, na verdade, o gosto de Caminha e de outros escritores por assuntos transgressivos. Todavia, segundo Robert Howes (2005): Caminha enfatizou a seriedade do trabalho, apontando os seus antecedentes literários e científicos e baseou o seu apelo à legitimidade sobre as obras dos médicos contemporâneos especializados em homossexualidade.

Ou seja, a obra Bom-Crioulo deve ser entendida como um estudo aprofundado das questões relativas à homossexualidade e a suposta abolição da escravatura. Assim, casos em que o ser humano é visto segundo sua natureza, sua real história. Contudo, quando se pensa no determinismo há que se refletir: será mesmo o ambiente um condicionante para a transgressão da vida das pessoas, ou; é possível que o ambiente determine as ações dos seres humanos?

MARINHA DO BRASIL (1886-1889) Visto que não há indício algum de que Adolfo Caminha era ou defendia os direitos dos homossexuais, o que poderia tê-lo inspirado? Howes (2005) aponta que Caminha foi um oficial naval na ativa entre 1886 e 1889, e que durante esse período dois eventos relacionados aos oficiais da Marinha do Brasil e do Exército lisbonense foram noticiados nos jornais. É evidente que assim como os demais marinheiros, Adolfo Caminha também tivera conhecimento desses incidentes. Todavia, o que noto é a semelhança das descrições, tanto das personagens, quanto do desenrolar da narrativa com os eventos jornalísticos a que Caminha teve acesso. A primeira evidência de que Adolfo Caminha pode ter pensado em escrever Bom-Crioulo a partir das experiências vividas no Rio de Janeiro, é a de que uma das reportagens fala da morte de um grumete de 16 anos, em 1888, na Rua da Misericórdia (HOWES, 2005, p. 177); rua esta retratada no romance, e que serve de pano de fundo para o desenrolar da trama entre as três personagens, assim como o momento da morte de Aleixo, também este um grumete. Howes (2005, p. 177) pontua que Caminha encontrava-se no Rio naquela época, e que possivelmente teve conhecimento

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do caso, uma vez que este era marcado por brigas de rua “entre a polícia e os marinheiros”; aspecto este retratado na obra Bom-Crioulo. Segundo os que defendiam a mimesis, e apoiavam-se na Poética de Aristóteles, “a literatura imitava o mundo”, além disso, o próprio Aristóteles define a mimesis como uma aprendizagem, a qual “desde a infância, os homens têm inscrita em sua natureza, [...] uma tendência à mimeisthai [imitar ou representar]” (COMPAGNON, 2010, p. 124). Portanto, o fato de Caminha ter talvez refletido esse evento em seu romance, não caracteriza uma cópia ou uma réplica; mas “um conhecimento próprio do homem, a maneira pela qual ele constrói, habita o mundo” (COMPAGNON, 2010, p. 124). A fim de reiterar a afirmação de Adolfo Caminha quanto a um estudo aprofundado das questões humanas, destaco como oportuno o outro evento noticiado no ano de 1886, este, porém, em Portugal. Segundo o jornal Diário de Notícias, de Lisboa e a revista Novidades de mesma capital, um cadete da Escola do Exército assassinou seu colega em uma rua próxima a escola em Lisboa (HOWES, 2005, p. 177). Contudo, devo pontuar o fato de que o assassino foi absolvido, num primeiro momento, visto que seu advogado argumentou que o mesmo sofrera um ataque epiléptico no momento do assassinato, e que por isso, não poderia ser acusado. Assim, percebe-se a influência das teorias científicas relacionadas a assuntos judiciais, e que, por conseguinte, terão amplo espaço no campo literário. É o que se nota em Bom-Crioulo, que por muitos pode ser considerado inocente, ou até digno de pena, uma vez que não se sabe se sua motivação para matar Aleixo foi uma crise de ciúmes, por saber que este estava envolvido com uma mulher; ou por uma mistura de “loucura e perda de razão” (HOWES, 2005, p. 179), tal como se vê no seguinte trecho de Bom-Crioulo (CAMINHA, 2002, p. 114): “[...] todo ele vibrava, todo ele tremia, como um epiléptico [...] transfigurava-se, enlouquecia de ódio, espumava de cólera, de raiva, de ciúme!”. Logo, ainda que o assassino português supostamente não sofresse dessa doença, destaco a importância que Caminha, “como bom se-


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guidor de Darwin” (MENDES, 2012, p. 6), coloca no avanço dos estudos relacionados ao homem, uma vez que defendia a objetividade quando ao tratar das funções corporais, ou seja, entender que o ciúme, por exemplo, é algo tão natural quanto ir ao banheiro. Além disso, mesmo que os jornais portugueses não tenham se atentado à relação homossexual entre os oficiais da escola, Adolfo Caminha a fim de “naturalizar” essa nova concepção de casal, centraliza o tema da homossexualidade, e deixa de lado as questões a respeito da escravidão, e reserva apenas um capítulo para retratar os maus tratos dos negros.

(IN) CONCLUSÕES Por muito tempo, a insinuante obra de Adolfo Caminha foi ignorada. Todavia, a partir da década de 1940, passou a ter espaço como leitura obrigatória, e como consequência, foi engavetada na escola literária do Naturalismo, juntamente a outro inovador livro, O Cortiço. Até os dias atuais, Bom-Crioulo é interpretado como uma confissão de seu autor; ou como uma releitura dos clássicos trágicos, tal como descrito na Poética, de Aristóteles, em que sua estrutura e o desenrolar da narrativa são semelhantes à de uma tragédia. Muito se especula a respeito da intenção do autor para ter escrito sobre uma relação homoafetiva entre dois homens; contudo, a partir da reflexão de Émile Benveniste, em A Natureza dos Pronomes (1956), corroboro minha tese de que “o autor cede, pois, o lugar principal à escritura, ao texto, ou ainda, ao ‘escriptor’, que não é jamais senão um ‘sujeito’ no sentido gramatical ou lingüístico, um ser de papel, não uma ‘pessoa’ no sentido psicológico [...]” (Grifo meu). Assim, o que se perde aos olhos dos críticos e da sociedade, é a infinidade de referências destacadas (ou não) por Adolfo Caminha. Tal como a violência sofrida pelos não brancos - que são ignorados pela população brasileira, a qual estava obstinada com a imigração portuguesa -, vê-se também, a representação da tragédia do próprio autor-crítico, que estava “preso entre a admiração da sua geração pela cultura europeia e a consciência das implicações perigosas para seu próprio país” (HOWES, 2005, p. 187).

Logo, procurei questionar e refletir acerca de comentários da obra Bom-Crioulo, os quais entendo como equivocados, uma vez que Adolfo Caminha reserva cerca de dois capítulos para descrever a rotina dos oficias da Marinha, e consequentemente, denuncia o que de pior acontecia aos que desobedeciam às ordens dos superiores. Além disso, acredito ser a intenção do autor a última explicação a se recorrer, a fim de deduzir o sentido original do texto, tal como nos esclarece Compagnon (2010, p. 51, grifo meu): “Enfim, último elo do novo sistema que se deduz inteiramente da morte do autor; o leitor, e não o autor é o lugar onde a unidade do texto se produz, no seu destino, não na sua origem [...]”. Desse modo, ainda baseando-me em Howes (2005), ratifico a tese de que entendendo a obra Bom-Crioulo tal como uma tragédia, concluo que, ao contrário daqueles que defendiam a estética romântica, e assim, esperavam talvez um final feliz; a presente história pode ser lida como um romance homoafetivo, a qual retrata “a tragédia da população não-branca do Brasil” (HOWES, 2005, p.186) ignorada pela elite branca, desse modo, uma história real, e não poetizada. Talvez, por isso, tenha sido tão mal recebida pelos críticos portugueses, contrastando com a recepção de O Barão de Lavos (1898), de Abel Botelho, a qual teve um desfecho tradicional e pudico. Por consequência, entendo a tragédia final da obra, também como a tragédia do próprio Adolfo Caminha, uma vez que mesmo retratando o caso de assassinato em Portugal, o autor se depara com a influente cultura europeia em meio a sua geração, além da ingenuidade da população brasileira frente a importantes decisões. Portanto, se para Valentim Magalhães a obra Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha talvez não possa ser considerada como literatura, uma vez que é ambígua, e não destaca nenhuma mensagem específica; defendo eu que “esta é uma das suas virtudes como obra de literatura” (HOWES, 2005, p. 187), um texto para pensar, refletir, e não somente “um livro travesso, alegre, patusco, contando cenas de alcova ou de bordel” (HOWES, 2005, p. 173), tal como quisera o próprio Valentim Magalhães.


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Logo, o que Adolfo Caminha tentara mostrar era que a literatura tinha muito valor, exigia esforço e disciplina, ou seja, não poderia ser vista somente como um dom, mas sim como a relação entre dedicação e trabalho. Assim, retratar a realidade do que presenciou entre os anos de 1886 e 1889, na Marinha e na sociedade brasileira, constituía um dever para o autor, uma vez que a denúncia dos fatos fazia-se urgente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMINHA, Adolfo. Bom-Crioulo. São Paulo: Martin Claret, 2002. COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum. Tradução Cleonice Mourão e Consuelo Santiago. Minas Gerais: Ed. UFMG, 2010. QUEIROZ, José Maria Eça De. “4ª Conferência De Eça De Queirós – A Literatura Nova Ou O Realismo Como Nova Expressão De Arte (1871)”. In: REIS, Carlos. As Conferências do Casino. Lisboa: Alfa, 1980. MENDES, Leonardo Pinto. O crítico Adolfo Caminha e as batalhas pelo reconhecimento literário. São Paulo: Fronteiraz, 2012. p. 1-10. HOWES, Robert. Raça e sexualidade transgressiva em Bom-Crioulo de Adolfo Caminha. Graphos, João Pessoa, v. 7, n. 2/1, p. 171-190, 2005.

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ESCRITA E REESCRITA TEXTUAL: A IMPORTÂNCIA DA REFACÇÃO NO ENSINO MÉDIO MARCUS GARCIA DE SENE 1

RESUMO Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o processo de produção textual dos alunos do ensino médio da Escola Estadual Professor Chaves (Uberaba/MG). Objetivou-se, a partir de uma oficina realizada no contra turno com alunos do ensino médio, aprimorar as competências linguísticas dos alunos no que diz respeito à produção textual. Para isso, apresentamos a importância da reescrita como intervenção pedagógica, pois a partir dela os alunos podem refletir sobre sua própria escrita, tornando-se críticos e interlocutores de suas próprias produções. Com isso, constatou-se que os discentes aprimoraram sua linguagem mediante a superação das dificuldades, além de quebrar paradigmas de que o texto é algo acabado em si.

PALAVRAS-CHAVE | Produção textual, reescrita, ensino médio.

1  Graduando em Letras (Português/Inglês) – UFTM


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INTRODUÇÃO Sabe-se, por experiência, que o trabalho com a escrita e reescrita, enquanto processo contínuo e processual, nem sempre tem valor reconhecido nas escolas de todo o Brasil. A partir disso, ressalta-se que a importância do seu ensino, sobretudo nos últimos anos, tem aumentado significativamente, justificando-se, como apontam as pesquisas, nos baixos níveis de desempenho linguístico dos alunos no que diz respeito às competências que são, diariamente, exigidas pela sociedade letrada. Nota-se que a exigência de leitores e escritores proficientes na sua língua materna é imensa e, como já tratado por vários autores, isso vem da imposição feita diariamente pelos mais variados tipos de concursos, nos quais a produção escrita é de caráter classificatório e eliminatório. Percebe-se que as aulas de língua portuguesa ainda continuam presas ao seu enfoque de ensinar regras gramaticais próprias da norma culta e às atividades de identificação e classificação dos elementos e estruturas da língua, centradas no conhecimento do “certo-errado”. Com isso, Geraldi (1993, p.135) destaca a importância do ensino do texto, pois “como ponto de partida de todo processo de ensino-aprendizado da língua é no texto que a língua se revela em sua totalidade”. Entre as atividades que valorizam o papel do sujeito na sociedade, temos a produção textual, visto que é a partir de enunciados escritos que o sujeito interage na sociedade, expondo seu posicionamento e agindo sobre o mundo (FUZA e MENEGASSI, 2007). O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), no ano de 2003, já apontou que grande parte dos estudantes brasileiros está adentrando no Ensino Fundamental sem ter desenvolvido corretamente competências e habilidades básicas de leitura, fazendo com que, consequentemente, o trabalho com a escrita seja afetado. Este trabalho é complexo e merece atenção, a leitura é ferramenta importantíssima para desenvolvimento de uma escrita elaborada. A partir disso, autores como Sousa (2008), Guedes (2009) e Koch e Elias (2011) apontam a importância do retorno ao texto, conhecido

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como reescrita textual, para formação do aluno que busca se tornar um escritor competente independentemente do gênero. Assim, o aluno consegue refletir, com ajuda do professor, sobre seus próprios desvios e, a partir deles, superá -los. Esta prática, como já apontado em inúmeros trabalhos, garante um melhor desempenho nas suas próximas produções. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997, p. 48) reconhecem que: Um escritor competente é, também, capaz de olhar para o próprio texto como um objeto e verificar se está confuso, ambíguo, redundante, obscuro ou incompleto. Ou seja: é capaz de revisá-lo e reescrevê-lo até considerá-lo satisfatório para o momento. É, ainda, um leitor competente, capaz de recorrer, com sucesso, a outros textos quando precisa utilizar fontes escritas para a sua própria produção.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCN) já destacam que, com advento das pesquisas na área de aprendizagem da escrita, o processo de produção textual é contínuo que envolve processos paralelos diferentes. Destaca-se, também, que a escrita se adquire através de muita leitura, desmistificando, desta forma, que escrever muito é sinal de escrever bem. Embora venham crescendo os trabalhos que apontam a reescrita textual como intervenção pedagógica, podemos assegurar que grande parte dos professores não veem o texto como um processo contínuo, isto é, solicita-se que o aluno produza um texto e, após sua correção, os professores abrem mão do processo de reescrita, fazendo com que os alunos acreditem que é dever do professor verificar seus desvios e que o texto não tem objetivo. Considerando a importância de uma intervenção transformadora e analisando dificuldades reveladas nas suas produções escritas que denunciam as grandes falhas na formação de alunos críticos e redigem com proficiência, pelo menos, minimamente aceitável, é que desenvolvemos com os alunos do ensino médio da Escola Estadual Professor Chaves a partir do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência


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uma oficina sobre produção textual que tinha como objetivo, promover inicialmente a leitura de textos que serviram de base para futuras produções e, em seguida, oportunizar um ambiente em que o aluno produza seu texto em qualquer gênero textual, respeitando o emprego da norma culta e das convenções da escrita, como a construção de textos com coesão e coerência, boa articulação das ideias, dentre outros. Para tal, proporemos aos alunos atividades em que o aluno irá ler, escrever, refletir, analisar e reescrever seu texto, a fim de que ele se aproprie das operações da refacção, o que lhe permitirá, como aluno prestes a concluir a educação básica, produzir bons textos, em que revele sua opinião de forma crítica e seja capaz de defendê-la de forma consistente.

A IMPORTÂNCIA DA REESCRITA/REFACÇÃO COMO INTERVENÇÃO PEDAGÓGICA O trabalho com a leitura e produção de texto está prevista nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNs) e tornouse ferramenta indispensável para ensino de língua materna nas aulas de Língua Portuguesa. Tal documento postula ainda que o trabalho com a produção textual deve ter como finalidade formar escritores competentes e também produtores de textos coesos e eficazes (BRASIL, 1997, p. 47). Entende-se por escritores competentes aqueles que são capazes de selecionar o gênero a ser utilizado tendo em vista sua necessidade discursiva. A produção textual aliada à leitura, como apontado acima, é uma das atividades principais para desenvolver a expressão escrita dos alunos nas aulas de língua materna. O ensino da escrita, mesmo que visto de forma equivocada por grande parte dos professores, percorre ou deveria percorrer todo o período escolar do estudante, a começar pelas séries iniciais. Após os alunos entenderem e reconhecerem a grafia, o alfabeto e associar símbolos a sons e significados temos, desta forma, o ensino da escrita visto a partir da produção textual. Considerar o texto, como propõe Beaugrande e Dressler (1997), um evento comunicativo no qual convergem ações de natureza linguística, cognitiva e social, e fundamentarmos um trabalho de escrita e reescrita na teoria da Linguística

Textual (ADAM, 2008), significa propor aos alunos a oportunidade da construção de textos bem redigidos, no que se refere a contemplar todos os fatores de textualidade, especialmente a coesão e coerência, além da apropriação dos recursos e convenções da escrita, em um processo de construção desses conhecimentos, por meio da vivência da produção, revisão e refacção de textos. Esse trabalho possibilitará aos alunos desenvolverem progressivamente a habilidade de produzir e revisar seus próprios trabalhos em todos os aspectos necessários, até que sua produção escrita esteja, pelo menos, minimamente satisfatória. Paralelo a isso, percebe-se a dificuldade dos professores de Português de concentrar sua interferência pedagógica e seu trabalho docente nas aulas de leitura e produção de textos, em especial nos textos argumentativos. Isso é compreensível, uma vez que a realização de um trabalho dessa natureza exige do próprio professor competência e habilidade de um leitor/escritor em constante exercício, que saiba empregar adequadamente os recursos da língua, mas também seja capaz de assumir posições e defender consistentemente seus pontos de vista sobre os temas. Entretanto, sabe-se que o Brasil não é um país de leitores, nem de produtores de texto. Assim, o trabalho com a reescrita tem sido proposto no país, desde a década de 1990, devido a algumas discussões que têm crescido no contexto escolar de todo Brasil, no que se refere ao fato de o estudante/produtor de textos de ensino médio ter extrema dificuldade para escrever. Na maioria das vezes, esse aluno (re)produz em sua escrita diversas frases de senso comum, clichês ou copia trechos de textos lidos anteriormente — o que leva também ao aumento da prática de plágio no ensino médio. Segundo os PCN: A refacção faz parte do processo de escrita [ela] é a profunda reestruturação do texto (...) os procedimentos de refacção começam de maneira externa, pela mediação do professor que elabora os instrumentos e organiza as atividades que permitem aos alunos sair do complexo (o texto), ir ao simples (questões a serem estudadas) e retornar ao complexo (...). Por meio dessas práticas mediadas, os alunos se apropriam das habilidades necessárias à autocorreção (BRASIL, 1988, p. 77-78).


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A partir da reescrita textual, o professor pode atuar como um mediador entre texto e o aluno. Através desta intervenção, o professor pode fazer apontamento através de um bilhete no final de seu texto em que o aluno poderá refletir sobre seu próprio texto e seus próprios desvios. Este trabalho permite o amadurecimento do produtor do texto, fazendo com que este reconheça que a reescrita é uma intervenção pedagógica que poderá auxiliá-lo na construção de textos coerentes e coesos. O estudante que reescreve o texto consegue ver sua própria escrita como um trabalho que exige esforço.

algumas turmas da Escola Estadual Professor Chaves, onde desenvolvemos nossas atividades do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Nessas primeiras oficinas, tínhamos como ideia inicial trabalhar apenas alguma forma de desenvolver com os alunos suas competências e habilidades para produções textuais, aliado às necessidades da professora em ensinar os gêneros textuais e as inúmeras dificuldades dos alunos em produção textual, revelada na avaliação diagnóstica que realizamos. Essa diagnose foi realizada a partir de uma proposta de redação que fizemos aos alunos.

Cabe, ainda, explicitar sobre qual conceito de reescrita que iremos nos atentar para intervir pedagogicamente no texto do aluno. Considerase, aqui, a reescrita como uma atividade contínua realizada pelo professor e o aluno. Para isso, parte-se da leitura da primeira versão do texto escrito para realizar um trabalho de reflexão interativa sobre o texto do discente. Atentar-se-á a aspectos interno e externo, bem como, a variedade padrão da língua que produzirá, consequentemente, a escrita de uma nova versão do texto.

Depois que eles escreveram, nós recolhemos os textos deles e os analisamos. Como as lacunas em relação à escrita e à tessitura de textos eram muitas, selecionamos alguns dos principais problemas e dificuldades para, em seguida, propor atividades em que os alunos teriam que escrever e, depois rever seus textos, para reescrevê-los. Além disso, elaboramos e propusemos atividades que visavam fazer com que os alunos prestassem atenção aos desvios em relação à norma culta e às convenções da escrita e, ainda, que os corrigissem.

Por mais eficazes e criativas que sejam as metodologias e as abordagens que estão sendo utilizadas nas aulas de Redação, sabe-se, por experiência, que tais práticas não têm sido produtivas, em grande maioria, no sentido de fazer com que o estudante/produtor de textos alcance essa proficiência almejada na escrita. Portanto, reitera-se a importância da reescrita, que tem se revelado uma boa alternativa no ensino aprendizagem da produção de textos, afinal esse processo assume, na escola, um espaço privilegiado, visto que permite ao professor ofertar possibilidades diferenciadas para o estudante refletir sobre a sua própria produção, por meio do exercício da escrita e refacção de seus próprios textos. Assim, a ausência de atividades que oportunizem, ao aluno, esse trabalho com a reescrita, os altos índices de trechos copiados de outros textos e os problemas graves em relação ao emprego das convenções da escrita, justificam o objetivo deste trabalho.

Desta vez, procedeu-se da mesma forma, mas acrescentou-se uma atividade sugerida por Ruiz (2003), segundo a qual as correções são feitas de forma textual- interativa, por meio de bilhetes escritos na própria folha em que o aluno produziu seu texto, os quais, além de apontar problemas e sugerir a sua resolução, incentivam e encorajam os alunos para o processo de reescrita o qual Ruiz propôs em seu livro Como corrigir redação na escola (2003). Esses bilhetes, assim, podem constituir um espaço para o elogio, para cobrar do aluno algum aspecto mais global do seu texto, dentre outros. Segundo Ruiz (2010), utilizando-se dessa estratégia:

METODOLOGIA A ideia do trabalho com a reescrita surgiu devido a uma oficina que já realizávamos em

O professor toma como objeto de discurso de sua correção não mais o modo de dizer do aluno [...], mas também o dizer desse aluno, ou a atitude comportamental (não verbal) desse aluno refletida pelo seu dizer (ou seu não dizer), a propósito da correção do professor; ou, ainda, a própria tarefa interventiva que ele mesmo, professor, está realizando no momento (RUIZ, 2010, p. 56-57).

Realizou-se, também, encontro com os alunos, além do horário das oficinas, para dar-


CORUJA | ESCRITA E REESCRITA TEXTUAL: A IMPORTÂNCIA DA REFACÇÃO NO ENSINO MÉDIO

lhes atendimento individual ou em pequenos grupos, para esclarecer todas as dúvidas que forem surgindo, especialmente em relação às orientações que lhes dermos e dos questionamentos que lhes fizermos em termos do emprego inadequado de alguma forma linguística, da indicação de trechos incoerentes em seus trechos, por meio dos bilhetes que lhes escrevermos, ao analisar as suas redações.

RESULTADOS Como resultado, constatou-se, integralmente, a necessidade do professor desempenhar a função mediadora desencadeando, desta forma, ações pedagógicas interativas com produtividade. Na oficina, podemos constar grandes lacunas no texto dos alunos que participaram. Após as primeiras produções, separaram-se alguns minutos de cada aula para comentarmos, de forma geral, sobre os desvios mais recorrentes dos alunos. Com o andamento da oficina, tivemos resultados satisfatórios, uma vez que a maioria dos discentes envolveu-se nos processos de rescrita e reescrita passando a refletir sobre a construção de seu próprio texto. Ainda, conscientizou-se que o trabalho com a produção textual é contínuo e exige mais prática do que inspiração. Destacamos, ainda, que o fato de trabalharmos com orientações individuais e com bilhetes interativos no fim do texto dos alunos como propõe Ruiz (2010), contribuiu para que os alunos nos procurassem com finalidade de encontrar, desta forma, direcionamentos para melhorias necessárias para suas futuras produções. Embora tivessem resultados positivos, sabe-se, por experiência, que ainda existem muitos desafios a serem superados, visto que grande parte dos alunos possuem grandes desvios no processo de reescrita. A partir desses desvios, notamos, no contexto escolar, textos imaturos e improvisados. Discute-se, ainda, a necessidade do trabalho com leitura para, junto com o processo de reescrita, enriquece o conhecimento prévio dos alunos.

tal forma que ele passe a ver, no seu trabalho, o que antes não via. Esse processo de construção e reconstrução respeita o caráter processual da produção textual, deslocando o foco do ensino de língua materna de um trabalho com a nomenclatura, com as formas da norma culta, para um trabalho que pretende desenvolver a competência discursiva do aluno, apontando-lhe as inadequações de seu texto, para que ele se aproprie das formas e convenções da escrita. Mas o processo de reescrita leva o aluno para muito além disso, pois, a reescrita não pode se limitar ao trabalho de retirada de impurezas do texto. Trata-se, assim, de um recurso que possibilita o desenvolvimento das habilidades de construção de textos, levando-se em conta todos os fatores de textualidade. Apesar de ter sido um trabalho de curta duração, já sentimos o entusiasmo dos alunos, por estarem experimentando um processo diferente daqueles aos quais estavam acostumados e que faz com que reflitam acerca do que escreveram, façam uma avaliação e procedam à reestruturação de seu texto, em todos os aspectos que se fizerem necessários, sempre sob a orientação do professor. Por fim, a nossa experiência foi boa e proveitosa, desta forma temos certeza de que estamos no caminho certo e que nosso trabalho poderá contribuir muito com o desenvolvimento da competência em produção de textos dos alunos da escola em que desenvolvemos nossas atividades do PIBID/UFTM, além de nos possibilitar a vivência de estratégias metodológicas inovadoras que de fato promovam os alunos.

REFERÊNCIAS BIBLIORÁFICAS ADAM, J. M. A linguística textual: introdução à análise textual dos discursos. São Paulo: Cortez, 2008. BEAUGRANDE, R. de; DRESSLER, W. U. Introducción a la linguística del texto. Barcelona: Ariel, 1997.

CONCLUSÃO

RUIZ, E. M. S. D. Como se corrige redação na escola. Campinas: Mercado de Letras, 2001.

A reescritura textual na escola faz com que o aluno dialogue com o seu próprio texto, de

GERALDI, J.W. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1993.


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CITELLI, B. (org.) Aprender e ensinar com textos de alunos. São Paulo: Cortez, 1997, p. 17-24. BRASIL, SEF. Parâmetros curriculares nacionais: Língua Portuguesa - 1º e 2º ciclos. Brasília: SEF, 1997. BRASIL, SEF. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa - 5ª a 8ª série. Brasília: SEF, 1998.

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CORUJA | OS GÊNEROS TEXTUAIS E A SISTEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

OS GÊNEROS TEXTUAIS E A SISTEMATIZAÇÃO DO ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA IGOR PEREIRA GONÇALVES 1 MARIA MARIANA LIMA CASTRO 1

RESUMO Este artigo tem por objetivo trazer uma reflexão acerca do ensino de língua portuguesa. Para isso, o uso dos gêneros textuais surge como excelente ferramenta para que se explore e se reflita sobre a língua, proporcionando ao aluno maior êxito no que diz respeito ao seu aprendizado. Entretanto, observa-se que esse uso em sala de aula revela uma prática esvaziada de sentido, pois não há um estudo sistematizado sobre o mesmo. Para isso, apresentaremos uma proposta de ensino a partir da metodologia de projetos, utilizada nas classes de alfabetização e letramento do Programa de Alfabetização, Documentação e Informação (Proalfa) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

PALAVRAS-CHAVE | Ensino, gêneros textuais, língua portuguesa.

1  Graduandos em Letras (Português/Literaturas) - UERJ


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INTRODUÇÃO

do campo da Morfologia e da Sintaxe.

É possível perceber que o ensino de língua portuguesa ainda apresenta diversos aspectos que o tornam, na maior parte das vezes, confuso e distante da realidade linguística daqueles que a “aprendem”.

Isso nos faz lembrar Freire (1987): “Não basta saber ler mecanicamente ‘Eva viu a uva’. É necessário compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir uvas e quem lucra com esse trabalho”.

Um dos principais pontos é o uso do texto em sala de aula. Este seria, a princípio, o veículo primeiro com o qual seria ensinada a língua portuguesa nas escolas. É o que bem ressaltam os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1998): “Cabe, portanto, à escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los”.

Observamos, assim, que o aspecto discursivo do texto deve também ser valorizado em sala de aula. Só assim será possível levar os alunos a desenvolverem a capacidade de desvendar o que se encontra por trás do texto, quais ideologias podem estar implícitas, quais elementos podem revelar certa intertextualidade.

O que vemos na prática, porém, é um ensino que, muitas vezes, foge dessa proposta. São práticas que parecem desvalorizar o trabalho com o texto, tendo-o apenas como um objeto a ser decodificado. Isso faz com que outros aspectos textuais deixem de ser analisados. Tais aspectos seriam de grande valia para que o aluno de fato compreenda o funcionamento da língua. Sobre isso, Kleiman (2000) ressalta que a escola, geralmente, privilegia a leitura a partir de duas óticas: ou como decodificação ou como avaliação. A concepção de leitura como decodificação, muitas vezes camuflada nos livros como “interpretação textual”, exige apenas que o aluno responda a perguntas sobre elementos que já estão explícitos nos textos, não exigindo grande esforço linguístico. A leitura concebida como método avaliativo, por sua vez, busca saber se o aluno “entendeu” o que está escrito, se consegue ler em voz alta. Isso revela uma atitude inibidora e autoritária, na qual não se dá ao educando a oportunidade de refletir sobre o que está lendo. Outro fato que também contribui para o esvaziamento de sentido do ensino de língua portuguesa é o constante uso de frases descontextualizadas, utilizadas no ensino de morfossintaxe. Essas frases, muitas vezes aleatórias, mostram-se apenas como um artifício para que o aluno realize atividades mecânicas de determinados elementos

Por si só, os exemplos anteriores poderiam ilustrar o que procuramos defender neste trabalho: a escola parece ainda se encontrar presa a uma visão tradicional do ensino de língua.

UMA PROPOSTA REFLEXIVA DE ENSINO DA LÍNGUA Frente a esse cenário, encontramos o Programa de Alfabetização, Documentação e Informação (Proalfa), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Existente desde 1995, tem como objetivo contribuir para que todos tenham acesso à leitura e à escrita. O projeto possui classes de alfabetização e letramento, formadas por alunos da terceira idade e, em sua maioria, mulheres provenientes das classes populares. Os professores que atuam nesse espaço são bolsistas das graduações em Letras, Pedagogia e Matemática, que recebem supervisão e formação docente. O Proalfa se diferencia da escola convencional, primeiramente, pelo fato de basear-se numa educação não formal (GOHN, 2006), ou seja, os alunos podem frequentar o programa pelo período que quiserem, tendo assim, o tempo que necessitarem para consolidar seu aprendizado acerca dos conteúdos apresentados nas aulas. Além disso, os alunos não são submetidos a testes de desempenho, já que não há uma seriação das turmas.

O ensino de leitura e escrita no Proalfa é


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direcionado para que o aluno analise e reflita sobre os textos apresentados. Tem-se, com isso, o intuito de que o estudante de fato se aproprie da língua, utilizando-a em suas diversas situações comunicativas. O programa possui quatro turmas, e o ensino da leitura e da escrita é sempre realizado a partir de um gênero textual específico. Com isso, os alunos têm a oportunidade de ler diversos textos de um mesmo gênero. Só a partir daí, as características desse serão apontadas. O que nos parece é que a escola convencional segue o caminho inverso. Primeiro são apresentadas as características do gênero textual para, em seguida, apresentar o texto. Além disso, geralmente, é proposto que o aluno escreva um texto deste mesmo gênero “estudado” em um espaço de tempo que não permite um real aprendizado acerca dos elementos que o compõem. O Proalfa organiza os seus conteúdos por meio de uma metodologia de projeto de trabalho (HERNÁNDEZ, 1998). Escolhe-se anualmente um tema geral, com dois módulos, um para cada semestre do ano letivo. O tema anual é o ponto de partida para que cada turma desenvolva seu trabalho didático-pedagógico. Essa proposta visa que o aluno, após um longo período de contato com um gênero textual, sua análise e reprodução, desenvolva um produto final. O resultado deste é apresentado na culminância do projeto, revelando o quanto o aluno pôde aprender sobre o tema proposto. Isso proporcionaria o que Schneuwly et al. (2004) propõe: “ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação comunicativa”. Dentro do projeto de trabalho, o aluno poderá desenvolver um estudo sistemático sobre um determinado gênero. Isso o auxiliaria a observar e refletir acerca dos gêneros e suas características: conteúdo temático, estilo e construção composicional (PCNLP, 1998).

PRODUÇÃO E REVISÃO TEXTUAL

No projeto proposto, preza-se, também, pela revisão textual. No início do estudo de um gênero, é proposto que o aluno produza um texto sobre o mesmo. À medida que diferentes textos desse gênero circulem nas aulas, o estudante poderá perceber seus aspectos e, assim, revisar o seu texto. Dentro da revisão textual, este poderá, também, adequar seu texto à modalidade escrita. Com isso, perceberá as marcas de oralidade em suas produções, observando, a partir dessa análise, que o texto oral se difere do escrito. Isso possibilitará ao aluno perceber a complexidade desta. [...] Já que a passagem da fala para a escrita não se dá naturalmente no plano dos processos de textualização. Trata-se de um processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem compreendidos da relação oralidade-escrita (MARCUSCHI, 2001, p. 46).

Para melhor exemplificar esse processo, relataremos o trabalho do segundo semestre de 2015 no programa. O tema anual foi nomeado de Asas de papel: o direito à Literatura. No primeiro módulo, intitulado Um dedo de prosa, trabalhou-se com os textos em prosa. Já no segundo módulo, O (re)verso da vida, foram abordados os textos poéticos. Uma das principais dificuldades apresentadas pelos alunos no início do módulo foi escrever dentro da estrutura do poema, ou seja, textos escritos em versos. Quanto ao conteúdo, foi preciso uma intensa abordagem da linguagem poética, imersa pela diversidade de figuras de linguagem. Inicialmente, os alunos apresentavam narrativas sem estrutura ou conteúdo poético, posto que a poesia não lhes era um gênero familiar. Após as revisões, nas quais se abordavam as características da poesia — como, por exemplo, as figuras de linguagem, os versos e os temas abordados — os alunos começaram a apresentar conteúdo poético em seus textos. O próximo passo foi ajustar os textos na estrutura da poesia em versos. Para que esse as-


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pecto fosse mais bem compreendido, os professores tiveram que chamar a atenção para o fato de que os versos são características particulares da poesia e que, portanto, devem ser elementos presentes na estrutura desse gênero. Todo o trabalho de revisão foi realizado a partir das produções dos alunos, comparando -as entre si e com poesias de outros autores. No processo eram feitas perguntas que permitissem aos alunos observarem se os seus textos possuíam todas as características do gênero poesia. Outra parte do desenvolvimento do trabalho foi uma proposta de correio poético, no qual os alunos trocavam cartas com poesias autônomas e/ou dos poetas aos quais estavam estudando nas aulas. Nessa dinâmica de produção textual, observou-se que estes possuíam dificuldade em compreender as metáforas presentes na poesia. Para melhor compreensão da metáfora, figura de linguagem muito presente no gênero poético, os professores desenvolveram aulas utilizando o livro Mania de explicação, de Adriana Falcão e, em paralelo a essa obra, o uso do dicionário. Para essas aulas, os professores entregaram aos alunos as palavras presentes no livro e pediram que eles procurassem tal palavra no dicionário e encontrassem seu significado na linguagem denotativa. Em seguida, o professor lia o significado dessa palavra segundo o livro Mania de explicação, cuja linguagem, apresentada nas explicações das palavras, é conotativa. Esse processo possibilitou aos alunos entenderem que a linguagem do gênero poético é conotativa, manifestada através das metáforas presentes no contexto das poesias. Além disso, traçaram um paralelo entre a linguagem do dicionário e a linguagem destas. Como atividade para sistematização dos conteúdos apresentados, foi proposto aos alunos que criassem metáforas para as mesmas palavras do livro. Em seguida, na turma que desenvolvia seu projeto a partir das poesias de Manoel de Barros, foi proposto que desenvolvessem uma releitura do poema, sem título, iniciado com o verso: “O rio que fazia uma volta”, visto que a poesia se

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compõe com uma metáfora de uma enseada. Um produto final dessa atividade foi: “Eram luas de vidro que causavam / encantamento nos meninos. / Passou um adulto e disse:/ Essas luas de vidro se chamam/bolinhas de gude. / Não eram mais luas de vidro que encantavam os meninos. / Eram bolinhas de gude. / Acho que o nome empobreceu a imagem”. Já na turma em que o trabalho desenvolvido abordava as poesias de Carlos Drummond de Andrade, a atividade proposta, posterior ao livro Mania de explicação, foi a partir da poesia Fim de feira, do mesmo poeta. Com isso, os alunos tiveram mais facilidade para interpretação das poesias sociais do autor, além de criarem autonomamente poesias no mesmo estilo. Concluindo-se, portanto, um trabalho de interpretação de textos do gênero poético, baseado em leituras de um livro que usava a mesma linguagem metafórica, entretanto, a linguagem presente neste era pertencente a uma estrutura do gênero ao qual, essencialmente, utiliza-se a linguagem denotativa. O processo desse trabalho desenvolvido com esse grupo não estava preocupado em nomear ou decodificar os textos apresentados, mas sim em construir conhecimento, já que os gêneros possuem estrutura e linguagem que o configuram. Entretanto, quando depararam-se com a poesia e sua linguagem híbrida, precisaram entender quais foram os mecanismos linguísticos utilizados para a construção do sentido desses textos. É oportuno lembrar também que os textos foram apresentados de modo espontâneo para os alunos, não sendo definidos os objetivos antes da primeira leitura. Tal mecanismo foi importante para o desenvolvimento dessas atividades, dado que foi necessário, primeiro, o entendimento completo do texto e do gênero, para, então, propor a construção de outros textos.

O TEXTO ORAL E O ESCRITO Através do estudo da poesia, os alunos puderam perceber que há textos escritos que


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permitem marcas de oralidade, sem que descaracterizem o gênero, como é o caso de algumas poesias. É o caso de Manoel de Barros, que ao escrever o verbo voar em suas poesias sempre o apresenta como “avoar”, apontando a marca da oralidade na escrita.

BRASIL, Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: Língua Portuguesa. Brasília, 1998.

Ao observar tais marcas, puderam analisar que os registros orais nesses textos não são escolhas aleatórias. Não poderiam, portanto, serem consideradas um “erro”, mas uma marca estilística.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

Na poesia de Drummond, Cidadezinha qualquer, o poeta escolhe a expressão “Eta vida besta, meu Deus! ”para concluir a poesia. Vemos aqui, a característica oral sendo apresentada, não apenas na estrutura da palavra, mas na apresentação de uma expressão regional.

CONCLUSÃO Essas análises linguísticas são possíveis a partir das sequências didáticas adotadas pelo professor da turma e como o mesmo orienta o estudo. Entretanto, o aluno como falante e dominante da língua que utiliza, consegue apreender algumas características nos primeiros momentos em contato com o texto. Já os aspectos mais particulares do gênero, o aluno só entenderá depois que estiver mais familiarizado com o mesmo. Além disso, é interessante observar que os estudantes, ao compreenderem a função dos diversos gêneros textuais, percebem que não só a grafia das palavras muda no oral e no escrito, mas também as estruturas dos textos. Acreditamos, portanto, que o êxito da aprendizagem desses alunos acontece porque ao longo do estudo os gêneros são explorados a partir da imersão nos textos, nos temas, na estrutura e estilística dos mesmos, gerando melhor compreensão e até encantamento ao descobrir como a língua se apresenta de diferentes maneiras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 1996.

FALCÃO, Adriana. Mania de explicação. Ilustrações Mariana Massarani. São Paulo: Moderna, 2001.

GOHN, Maria da Glória. “Educação não-formal, participação da sociedade civil e estruturas colegiadas nas escolas”. In: Ensaio: aval. pol. públ. Educ., Rio de Janeiro, v. 14, n. 50, p. 27-38, jan./ mar. 2006. HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: Projetos de trabalho. Porto Alegre: ArtMed, 1998. KLEIMAN, Ângela. “A concepção escolar da leitura”. In: ______. Oficina de leitura: Teoria e Prática. Campinas: Pontes, 2000. BARROS, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 2001. SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros Orais e Escritos na Escola. Tradução Roxane Rojo e Glaís Sales. São Paulo: Mercado das Letras, 2004.


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OS RIOS: NAVEGANDO ENTRE O FLUIR DE GUIMARÃES ROSA E MIA COUTO MISLENE DAS NEVES FIRMINO 1

RESUMO O presente trabalho visa estabelecer uma rede de comparações e análises que aproximam – e, de certa forma, até distanciam – os contos A Terceira margem do rio e Nas águas do tempo, de João Guimarães Rosa e Mia Couto, respectivamente. Os escritos, apesar de distantes numa perspectiva temporal, interligam-se por meio de um rio fluido: é através da intensificação da memória e da ressignificação da tradição oral, traços muito frequentes nas obras dos dois escritores, que algo se perpetua nesse processo literário singular – o encantamento e o fantástico constituem, como marca fundamental e intrínseca, um escrever que vai muito além da literatura regionalista. É possível, portanto, por meio de arcabouços teóricos, legitimar e esclarecer as linhas que se cruzam ou que se distanciam nos contos escolhidos, produzidos pelo escritor brasileiro e pelo moçambicano.

PALAVRAS-CHAVE | Rios, João Guimarães Rosa, Mia Couto, literatura comparada.

1  Graduanda em Letras (Português/Literaturas) - UERJ


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Eis o que aprendi nesses vales onde se afundam os poentes: afinal, tudo são luzes e a gente se acende é nos outros. A vida é um fogo, nós somos suas breves incandescências. (Mia Couto)

INTRODUÇÃO Dois escritores, duas nacionalidades, duas temporalidades, duas escritas, uma língua: inefável riqueza. Debruçar-se sobre a escrita de João Guimarães Rosa e Mia Couto, e, além disso, pretender clarificar os encontros possíveis entre estes é, sem dúvida, sentir o arrepio do desconhecido concomitante ao peso da responsabilidade intrínseca ao fazer literário e acadêmico: “carece de ter coragem. Carece de ter muita coragem [...]” (ROSA, 2015, p. 99). João Guimarães Rosa, médico e diplomata, nascido em Cordisburgo (interior de Minas Gerais), em 1908, tornou-se um dos mestres da literatura brasileira – e não seria exagero dizer, da literatura mundial. Situada historiograficamente na chamada Geração de 45, a obra roseana é, por vezes, classificada rasamente como uma escrita regionalista. Entretanto, o seu fazer literário vai além dos traçados regionalistas, que poderiam ser caracterizados por três aspectos: I) a linguagem utilizada durante toda a obra era representativa do sertão; II) somente nos diálogos é que a linguagem sertaneja aparecia; e, ainda, III) a linguagem utilizada na obra não se aproximava em momento algum do sertanejo e, então, a ligação criada entre o universo urbano do escritor e o universo rural era concretizada através da ambientação narrativa. Entretanto, ao leitor assíduo de Grande Sertão: veredas e Sagarana, por exemplo, é evidente que o poliglota mineiro transpassa esses limites meramente classificadores e de função didática mais objetiva: a prosa poética de Rosa (que também fazia poesia em poemas, vale dizer) reinventa a linguagem de forma atenta e mágica, recria e transforma significações cristalizadas e convida o leitor a uma travessia essencialmente perigosa: a busca e o encontro de si próprio. Conscientizada do risco evidente de entregar-me ao anacronismo (entre tantos outros perigos, claro), ainda assim proponho um para-

lelo discursivo entre o (en)cantador Rosa e nosso contemporâneo Mia Couto. Nascido em 1955, no interior de Moçambique, o biólogo e professor apresenta um fazer literário que dialoga abertamente com o processo poético do brasileiro. Em intervenção realizada em Belo Horizonte2 no ano de 2007, o moçambicano evidencia que as confluências entre os dois transpassam a utilização da língua em comum, proveniente de nossa herança histórica e cultural: a presença colonial de Portugal e seu legado principal – a língua portuguesa. As tessituras literárias criadas por esses artesãos das palavras logicamente insere-se em contextos sociais e políticos distintos, temporalmente e geograficamente; contudo, de forma peculiar, aproxima-se. Tanto Guimarães Rosa quanto Mia Couto fazem da tradição oral e popular alicerce para a caracterização de uma escrita revolucionária, ideológica e política, uma escrita de resistência (não que discorressem sobre esses temas abertamente, mas, observando os constructos que serão aqui devidamente analisados, torna-se possível essa leitura crítica acerca dos dois escritores).

OS RIOS PERPÉTUOS A evolução dos estudos referentes à literatura comparada nos prescreve que cabe ao historiador literário as tarefas, segundo Louis Paul Betz, de: [...] investigar como as nações aprenderam umas com as outras, como elas se elogiam e criticam, se aceitam e se rejeitam, se imitam ou distorcem, se entendem ou interpretam mal, como elas abrem os corações ou se fecham umas às outras, mostrar que as individualidades, como períodos inteiros, não são mais do que elos de uma cadeia longa e multifilamentada que liga passado a presente, nação a nação, homem a homem – estas, em termos gerais, são as tarefas de história da literatura comparada (COUTINHO & CARVALHAL, 2011, p. 63).

Assim, dentre tantas responsabilidades, a análise literária comparativa assume o compro2  Intervenção realizada na Universidade de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil, em 2007.


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misso de, necessariamente, ir além da literatura, buscando elos linguísticos (aproximando-se até, nesse sentido, do exercício filológico), pontes sociais, culturais e históricas entre diferentes nações – não mais somente os “gênios individuais” da literatura são levados em conta, mas, sim, o que estes representam e apresentam da cultura popular ou erudita da qual fazem parte. É a partir do estudo literário comparativo, germinado fortemente na Alemanha durante o século XVIII, que vemos o surgimento, de fato, das literaturas nacionais, com suas peculiaridades limítrofes, mas não isoladas, nunca puramente originais (como poderíamos considerar a embrionária literatura grega, por exemplo). Entretanto, se há similaridades entre escritas literárias provenientes de diferentes regiões e, ainda, de temporalidades diversas, há então algo próprio do fazer literário, algo do maravilhoso, algo que merece estudo e aprofundamento, capaz de transpassar o ideal mimético ou o conceito tangencial de cópia, pura e simplesmente. Nesse sentido, debruço-me aqui sobre dois contos: A terceira margem do rio e Nas águas do tempo, de João Guimarães Rosa e Mia Couto, respectivamente. O primeiro, publicado em Primeiras Estórias (1962), pode ser considerado como o conto mais famoso do escritor mineiro, talvez por conter um desfecho e uma narrativa muito abertos, passíveis de inúmeras análises e interpretações. Com um enredo que nos perfila o de dentro, Rosa narra a travessia que é buscar a si próprio e a compreensão do outro, através dos mistérios impostos pelo rio, tão perpétuo. Em A terceira margem do rio, vemos a figura masculina, o pai, mandar construir uma canoa para, então, isolarse do convívio familiar e mundano – sem explicações, sem justificativas, sem falas –, passando a habitar a terceira margem: o meio do rio. A estrutura familiar (una, como no princípio da narrativa) esfacela-se ao longo dos anos; somente o filho, narrador da estória, permanece na casa de infância e, ao tentar estabelecer contato uma vez mais com seu progenitor, propõe assumir seu lugar na canoa. O desfecho do conto, entretanto, é a chave para incontáveis leituras: o narrador, temendo o mistério do desconhecido e o compromisso da hereditariedade, foge.

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Nas águas do tempo, de Mia Couto, é o conto que dá início ao livro Estórias abensonhadas, publicado pela primeira vez em 1994. O relato memorial, narrado em primeira pessoa sob a perspectiva do neto, evoca a infância vivenciada em contato direto com o avô, que o leva a passear no grande lago, contrariando os desejos da figura feminina, a mãe. Nesse espaço, dá-se o maravilhoso: o avô enxerga e faz contato com o além, com o mundo dos não vivos, aquilo que o narrador ainda não consegue ver. Na terceira viagem (número cabalístico, aliás) o mais velho proporciona, de fato, a transmissão cultural de tradição oral ao mais novo, ligada à ancestralidade, responsabilidade que o narrador aceita e também transfere a seu filho, como descrito no encerramento da narrativa.

LITERATURA DO RESISTIR: AS ESTÓRIAS Para adentrar o universo das interpretações iniciais, urge contextualizar os momentos políticos e históricos vivenciados pelas respectivas escritas do brasileiro e do moçambicano. Pensando, a título de exemplo, no documentário Língua: vidas em português (2002), dirigido por Victor Lopes, vemos uma pequena amostra sobre como as línguas são capazes de oferecer um traço fundador que não se compra: a identidade. E, aqui, falamos no nível social, político e nacional, mas também a nível minucioso, individual, caracterizador daquele que se propõe a falar, como daquilo que se fala. Nesse sentido, a língua que nos une a Moçambique adquire peso e importância discutível: se por um lado o passado colonizador nos oferece irmandade, sob outro ponto de vista vemos diferenças linguísticas e culturais que, de fato, nos identificam como nações muito distantes (para além da lonjura física). Em Moçambique, o português, apesar de ser considerado como língua oficial, é falado somente por cerca de 40% da população; além disso, os habitantes da nação ainda são predominantemente do campo. Embora contextualizadas em períodos e regiões distintas, a literatura produzida por Rosa e Couto aproximam-se na tentativa incessante de (re)contar ou (re)fazer a História sob o ponto


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de vista dos esquecidos, das minorias e dos que estavam à margem quando o viés europeizante era concretizado (seja na literatura, nas artes e nos costumes de maneira geral).

daquilo que é narrado; a história é pessoal, vivenciada de perto pelo narrador, que participa e está atento, de olhos bem abertos para tudo o que acontece(u).

Rosa, inserido num contexto de intensa industrialização brasileira e observando a investida de uniformização da cultura, se propõe a escrever, principalmente em Primeiras Estórias, sobre os marginalizados, os loucos, as crianças, os pobres e as mulheres. Sua escrita funciona como unificadora do universo erudito e do sertão, apropriação de raízes requintadas mescladas aos traços predominantemente orais, mostrando, assim, o quanto a cultura brasileira era disforme, plural e multifacetada, contrariando as visões centralizadoras da época.

Além disso, como relato memorial, as duas obras fundamentam-se no recurso mnemônico, e o tempo da narrativa, assim, é construído através das lembranças, nem sempre ordenadas e puramente lógicas. Nesse sentido, o fazer literário dos dois escritores mergulha no universo do maravilhoso, que concebe duas acepções principais: I) insólito seria o que escapa ao curso ordinário das coisas e do humano; e II) o maravilhoso que coincide com o sobrenatural (aquilo que não tem explicação racional ou lógica) (SILVA, 2011). Entretanto, é preciso pensar a questão cultural intrínseca e que faz germinar as próprias narrativas: nem sempre nossa visão condiz – e considera natural – aquilo que é externo. No caso, as culturas bantas (retratadas Nas águas do tempo, de Mia Couto), segundo Ana Cláudia da Silva (2011, p. 55), “o que para nós surge como algo sobrenatural, está para eles em consonância com o repertório cultural com que buscam explicar a realidade” .

Mia Couto, por sua vez, assume a responsabilidade de recriar a identidade moçambicana através da língua. A independência de Moçambique como colônia, acontecida tardiamente, só em 1975, e o período tenebroso que se sucedeu – conseguida a independência de Portugal, a nação sofre, por longos 17 anos, com uma guerra civil que desolaria os habitantes – foram acontecimentos que certamente influenciaram a escrita de Mia. Os contos presentes no livro Estórias abensonhadas –trabalharemos o primeiro deles – supostamente teriam sido escritos em 1992, logo após o acordo de paz entre a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e a Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), as duas forças que se digladiaram por duros anos, ser firmado. É possível, a partir dessas observações, notar o caráter esperançoso presente na obra: divergindo de seus outros romances, a escrita de Mia surge como uma tentativa de reconstruir o país – devastado desde a origem pelo colonialismo e, posteriormente, pela guerra civil.

TRAVESSIA COMUM A construção de ambas as narrativas se faz por meio de narradores autodiegéticos, ou seja, que participam das estórias como personagens principais e as narram ao ouvinte. Esse recurso não é escolhido e utilizado de maneira aleatória (como todos os elementos da boa literatura, aliás), pelo contrário: a escolha desses narradores oferece ao leitor a legitimidade e a confiança

Elemento comum aos dois contos é o uso predominante de personagens sem nome. Isso seria justificado pela representação e força que cada um destes adquire durante os relatos: os personagens simbolizam “entidades”, adquirem peso somente através da figura que representam dentro da estrutura familiar (mãe, avô, neto, filho etc.). Em A terceira margem do rio, por exemplo: Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal (ROSA, 2001).

Entretanto, se há um espaço de encontro obviamente acolhido pelos dois escritores, este é marcado pelo rio, tão perpétuo. Carvalho (2012) denomina esse espaço como o entrelugar, aquilo que permite um movimento de passagem, possibilitando a abertura do espaço ao hibridismo cultural, construído através do reconhecimento da diferença. Os rios são o entrelugar onde há o


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confronto entre o tradicional e o moderno, real e irreal, bem ou mal. São eles que abrem a possibilidade para o diálogo com outras culturas, são as fronteiras entre o eu (conhecido) e o Outro (desconhecido) – nessa dualidade e enfrentamento dá-se a aura do mistério e do maravilhoso. É interessante observar também que, apesar do rio ser comumente um lugar relacionado à travessia (cruza-se um rio visando chegar à outra margem ou a determinado lugar), nas duas narrativas é apresentado como um lugar de travessia em busca de si próprio ou de encontro com o Outro (ligado à transcendência e ao mundo desconhecido, o além-vida).

e dura – representação que contradiz, ou mesmo soma, ao ideal feminino representado, por exemplo, no Romantismo. Por outro lado, os personagens masculinos são os híbridos, aqueles capazes de fazer frutificar mudanças. É aqui, portanto, que encontramos novamente a carnavalização presente nas duas obras ou, pelo menos, parte dela (só como meio de mais uma exemplificação), a inversão de papéis e as inúmeras alegorias surgem como forma de também contestar aquilo que vige por meio da (re)criação de um universo mágico, onde tudo nos parece possível (se, obviamente, o pacto ficcional é aceito e perpetuado desde o princípio).

A carnavalização, conceito proposto por Mikhail Bakhtin, também está inserida no cerne da escrita moçambicana e brasileira. Vemos, nos dois contos, variadas alegorias, elementos simbólicos, como Nas águas do tempo, as diversas alusões ao ideal de rito, que seria consumado através do sacrifício (representado pelo abandono da individualidade e aceitação do compromisso coletivo):

Imergir ao universo roseano é, com certeza, aprender a (re)descobrir-se durante a travessia, isso é o que nos ensina Riobaldo e Diadorim em Grande Sertão: veredas, maior romance da nossa literatura, talvez. Mas, para adentrar com coragem em sua literatura, precisamos ter consciência do que o sertão de Rosa representa ou, pelo menos, proporciona aos viajantes, os leitores. “Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso [...]” (ROSA, 2015, p. 33), é nesse espaço sem margens que se dá a travessia, onde o encontro do eu com o Outro torna-se possível e necessário. Na literatura, o sertão (ou ser tão) é transportado entre mares para Moçambique, onde Mia Couto não só reescreve as estórias de Rosa, mas propõe releituras, criando beleza também.

Entrávamos no barquinho, nossos pés pareciam bater na barriga de um tambor. A canoa solavanqueava, ensonada. Antes de partir, o velho se debruçava sobre um dos lados e recolhia uma aguinha com sua mão em concha, E eu lhe imitava. – Sempre em favor da água, nunca esqueça! Era sua advertência. Tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça. Não se pode contrariar os espíritos que fluem (COUTO, 2012).

No trecho acima, as imagens construídas através do “tambor”, a aura do sonho (produzida pela neblina ou serração presente no lago) e as instruções de como se deve agir (além, é claro, do conselho urgente: “tirar água no sentido contrário ao da corrente pode trazer desgraça”), passadas por meio da tradição oral, sempre do mais velho ao mais novo, não só sugerem como comprovam o trajeto ritualístico pelo qual o jovem narrador perpassa durante o conto. Além disso, há uma inversão de papeis em se tratando da representação feminina: a mãe, nesse universo do maravilhoso, é tida como chefe de família, regedora da casa, adquire o simbolismo da ordem e da manutenção familiar, rígida

Essa influência literária, mas intrinsecamente cultural, que os brasileiros oferecem aos moçambicanos (e angolanos), seria justificada pelo próprio Mia Couto, por questões históricas: haveria, portanto, o que ele denomina como uma “predisposição orgânica” agindo sobre a escrita produzida nesses países. O passado colonial, as questões relacionadas à independência dos portugueses, tanto cultural quanto política e econômica, vieram a fundamentar o fazer literário desses povos e, nesse sentido, a escrita de Guimarães fornecia um aparato de grande força para a legitimação da cultura moçambicana e angolana. O que esses escritores precisavam fazer era transportar esse sertão para suas respectivas savanas, adaptando a literatura à língua local, colorindo a escrita com os sabores reais dos povos que ali viviam. E isso, de fato, é feito com proprie-


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dade e excelência por Mia Couto, assim como por José Luandino Vieira, grande escritor angolano. Retornando à análise dos contos, vemos ainda mais traços comuns entre Nas águas do tempo e A terceira margem do rio: os dois contos trabalham com constantes dualidades; pelo jogo dos contrários é que se faz a beleza criadora do entendimento e da aprendizagem (já nos ensinava Bachelard a esse respeito). Imagens contrárias justapostas abrem caminho para o sensível e o não limite da travessia; ora, é o próprio sertão em si mesmo, infinito de possibilidades, urgente de coragem, “viver é muito perigoso [...]” (ROSA, 2015, p. 26). O jogo entre memória coletiva e individual, o papel do indivíduo versus o caráter de coletividade dos personagens – as ações tomadas pelo pai em A terceira margem do rio, por exemplo, interferem em toda a estrutura familiar; o filho, por sua vez, como representante da espécie, poderia ocupar o lugar do pai na canoa, mas como mero indivíduo, não, já que não consegue aceitar o peso da individualidade –, a continuidade (eternidade do rio, o espaço flutuante) e a descontinuidade (historicidade do homem, a terra firme), o rio da vida (a lembrança, o rememoramento, aletheia) em contraposição ao rio da morte (o esquecimento, lethes), entre tantos outros antagonismos, vemos o fluir do rio, perpétuo, enquanto o narrador é um homem sem filhos (ainda em Guimarães Rosa). Para atravessar ou mergulhar na terceira margem do entendimento, os narradores fazem uso, como já dito, do recurso mnemônico: a memória é a chave para a compreensão (não só dos contos em si, mas de um reconhecimento dessas culturas rurais): o passado serve como referência, para conduzir as atitudes e para entender, explicar os fenômenos, sempre através dos mitos. O tempo funciona não só como fio condutor das narrativas, mas como tema estruturador das obras; é ele que faz compreender o passado e garante a continuidade do presente. Através da imagem do rio, caracterizador, ao mesmo tempo, da ideia temporal perpétua (daí a repetição, no desfecho de A terceira margem do rio, “nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio a dentro – o rio”) e também do en-

contro com o misterioso, o desconhecido, o alémvida. Para Guimarães, o “rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade” (LORENZ, 1973). A memória, traço elementar para essas sociedades, portanto, só pode ser perpetuada e revitalizada por meio da tradição oral. É através do exercício de contar (já praticamente ausente em nossa modernidade líquida, descrita minuciosamente por Bauman e Benjamin, que trabalha também a simbólica e real morte do narrador) que vemos o passado ancestral permanecer e, além disso, uma garantia de futuro, com a hereditariedade. Aqui, tem-se, novamente, a oposição clara entre tradição oral (popular) e a erudita (representada pela escrita): o conhecimento desses povos, predominantemente rurais, dá-se por meio da experiência, das estórias escutadas na infância, não aprendidas nos livros ou na Academia. Esse aprendizado, entretanto, exige entrega e dedicação de todos os envolvidos no ritual de perpetuação dos costumes (no caso dos contos, a relação entre filho/pai e neto/avô). Ao contrário de A terceira margem do rio, em Nas águas do tempo vemos essa relação interpessoal estreitar-se; a ligação entre os dois personagens é íntima, verdadeira e baseia-se nos diálogos constantes. Já em A terceira margem do rio, a distância que separa o filho do pai é maior que a impossibilidade de contato, tornando irrealizável a existência forte de coragem que faria o filho assumir o lugar na canoa, perpetuando uma tradição familiar, ancestral, hereditária. O que o filho possivelmente compreende, e daí sua fuga, é que a canoa é a perfeita representação de um caixão; assumi-la é um ato solitário, gratuito e intransferível. Ocupar o lugar do pai seria morrer, mesmo que apenas simbolicamente; para o universo mundano, seria encarar a terceira margem, o rio que flui em si mesmo. Assim, vemos também nos dois contos a presença da transculturação, o confronto com o dessemelhante, a mistura entre diferentes culturas. Aqui, não tratamos da cultura imposta pelo colonizador, comum em ambas as histórias nacionais, mas do apropriar-se do alheio misturando-o às cores próprias e pessoais, recriando, dessa forma, o existir e o resistir.


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DESSEMELHANÇAS Se por ora apresentamos diversos traços comuns entre as duas narrativas, cabe ao exercício crítico denunciar também as divergências (embora eu prefira o termo singularidade) entre as escritas. O ideal de literatura como representação da sociedade claramente já foi discorrido e contestado por muitos teóricos e filósofos da linguagem, entretanto, o pressuposto de que todo fazer literário – querendo ou não – está inserido em um espaço/tempo, cronológico, histórico (e, portanto, político e social) não é passível de discussões. Logo, mesmo que a literatura não vise, a princípio, representar uma sociedade ou o real (vide o ideal de arte mimético tanto contestado por Aristóteles) acaba por inserir-se numa lógica cronológica e espacial – mesmo que para contradizê-la ou contestá-la. É nesse sentido que esclarecemos o desfecho contrastante das narrativas: se em A terceira margem do rio o filho foge assustado e em pânico, em Nas águas do tempo vemos um narrador já mais velho, apresentando a seu filho as mesmas tradições ensinas pelo avô. O que justificaria essa divergência crucial para as estórias seria o hibridismo cultural, ou seja, a representação da morte é que torna os desfechos diversos: se, para a sociedade brasileira, morrer ainda possui simbolização obscura ou misteriosa demais, a ponto de criarmos receio do desconhecido, nas culturas bantas (retratadas em Nas águas do tempo) a marcação de tempo não está ligada a um sistema de contagem cronológico, mas sim a eventos cotidianos, como o amanhecer, a hora do sol quente, a ordenha (visão ligada à existência de uma população predominantemente rural). A importância dos antepassados para essa cultura os situa sempre em viva e estreita correlação com a vida atual de seus descendentes; as ações presentes direcionam-se para o passado com a finalidade de garantir o futuro. A ideia, portanto, é de um tempo cíclico ou espiralado, marcado por rituais, que seriam a tentativa de perpetuar a existência do grupo. A própria preservação dos valores tradicionais das culturas bantas configura-se, pois, como estratégia de resistência política. Vale di-

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zer que, mesmo após a independência colonial, alguns rituais religiosos eram proibidos em Moçambique pela Frente de Libertação Nacional, a fim de tentar unificar ou elevar algumas práticas culturais sobre outras. Um último detalhe a ser discutido é como a tradição oral surge nos determinados autores: para Moçambique (e Mia Couto) é uma marca do presente (já que a sociedade da qual se fala ainda é predominantemente rural), em Guimarães Rosa, a tradição oral é tratada como resquício do passado, devido à intensa industrialização brasileira.

CONCLUSÃO O presente trabalho visou demonstrar, utilizando suportes teóricos e analíticos, o quanto a literatura de Mia Couto aproxima-se da magia poética criada por João Guimarães Rosa. Tornaram-se explícitas as apropriações e proximidades entre A terceira margem do rio e Nas águas do tempo; consideramos as narrativas maravilhosas como frutos de um mesmo entendimento e busca: são literaturas de resistência que causam no leitor a insatisfação criadora de atravessar um caminho à procura de si próprio e do Outro (que não deixa de ser nós mesmos, “je est um autre”, para citar Rimbaud). É essa busca, portanto, incessante e intransferível, que, acreditamos, faz valer a literatura como força de entendimento e de constante travessia, é a entrega pessoal à terceira margem que mantém a voz dos ancestrais e dos esquecidos viva, é à entrega de inteireza feita por Guimarães e Mia que agradecemos e nos entregamos, com todos os sentidos, já que a linguagem é ainda insuficiente para todo o sentir – tão fluido e perpétuo quanto os rios.

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o outro lado das palavras e dos sonhos. Via Atlântica, São Paulo, n. 9, jun. 2006. SILVA, Ana Cláudia da. Um mergulho “Nas águas do tempo”, de Mia Couto. Vertentes e Interfaces I: Estudos Literários e Comparados, Vitória da Conquista, v. 3, n. 2, p. 53-64, jul/dez 2011. SILVA, Avani Souza. Guimarães Rosa e Mia Couto: breves diálogos. Cadernos Cespuc, Belo Horizonte, n. 19, p. 20-29, 2010.


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ENTRE A ÁGUA E A VIDA JADE SUELEN SILVA VAZ 1

RESENHA LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rocco. Rio de Janeiro, 1998. partir do livro Água viva, de Clarice Lispector, de 1973, observase a profundidade das particularidades humanas. Desta forma, a autora desenvolve o romance (“um romance sem romance”, conforme Lúcia Helena), escrito em primeira pessoa, a princípio, por meio de duas temáticas paradoxais, cuja primazia é a existência: racionalidade e loucura. Torna-se explícito, também, as interligações desenvolvidas ao longo da obra – a arte visual, a literatura, a física e a biologia – que demonstram a versatilidade de estruturas entre realidade, pensamento e planeta.

A

1  Graduanda em Letras (Português/Literaturas) - UFRRJ


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Nascimento, crescimento, liberdade e sentimento do mundo: interpretações fundamentais apresentadas de modo em que o verbo “ser” se funde com o pertencimento do “instante-já”, isto é, o presente (ligação entre passado e futuro) que se apossa do lado material do indivíduo. O ser racional tenta não ceder aos instintos animalescos, o que é imprescindível, quando a temática, esta fundamental, é o estar no mundo. Clarice transforma sua narrativa poética na própria loucura, assunto do qual poucos se atrevem a discorrer, pois as diversas temáticas, ao longo dos parágrafos, criam uma conexão, então, metafísica. Segundo a escritora, cada respiração é a reafirmação da vida e dos sentidos como forma de não compensação do todo, assim como a pintura e a literatura são paliativos para explicação e fuga da realidade, campos da exteriorização humana. Já a física e biologia, partes associadas à materialidade e imaterialidade, foram esmiuçadas de maneira cautelosa por causa da delicadeza do tempo (quarta dimensão), consciente (extremo cuja percepção está evidente), o inconsciente (o que está por além do pensamento) e a animalidade (fator relacionado aos instintos naturais maléficos em busca de proteção). Questionar a existência por elementos reais, naturais e psicológicos: o bicho, a gruta e a placenta. O primeiro é o fragmento temeroso do indivíduo, aquele que instiga a sobrevivência. Já o segundo, metáfora da mente sonhadora e espantosa, manifesta as sensações reprimidas. O terceiro, este o nascer do mundo, trata-se da necessidade de preparo e fortificação para a vida, analisando a origem conforme influência dos seres. Além disso, Lispector salienta a fragilidade e a incógnita corporal, conteúdos coibidos abordados com profundidade no século XX. A epifania clariceana, conceito fundamental cuja revelação da realidade é associada a mudanças significativas, volta-se para a “coisa” ou o “it”, mesmo que se afaste da lógica, do senso comum. O “eu”, então, se descobre na verdade da solidão, no contato com o místico; se configura, no monólogo interior direto, na dor daquilo que é necessário à vida: mergulhar no interior de cada ser, filosofar. O fluxo da consciência, en-

quanto técnica literária modernista de transcrição do pensamento do “eu”, proporciona a fusão do tempo, momento (s) e ideia (s). Ou seja, a ficção torna-se elemento de materialização o qual a essência é o universo psíquico. Clarice Lispector se atenta às discussões intrínsecas e contemporâneas de sua época, o que a transmuta em uma notável observadora do tempo e da vida em variados prismas. Explana, com rigor filosófico, as interseções entre passado, presente e futuro, destacando não somente importância da história, no sentido de tempo, e da natureza, mas também dos fenômenos psíquicos relativos aos seres humanos.


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ALBERTO CAEIRO: VER PARA PENSAR SEM PEN(S)AR MARCUS GARCIA DE SENE 1

RESENHA CHRIST, Isabelle M. ‘Alberto Caeiro: ver para pensar sem pen(s)ar’. In: O marrare. Revista da Pós-graduação em Literatura Portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto de Letras da UERJ. Número 11, ano 9, 2º semestre de 2009, p. 82-89. Disponível em: <www.omarrare.uerj.br/numero11/ pdfs/isabelle.pdf>. obra a ser resenhada é um artigo intitulado “Alberto Caeiro: ver para pensar sem pen(s)ar”, elaborado por Isabelle Meire Christ. No preâmbulo de sua obra, Christ comenta um pouco sobre sua paixão pela obra do ortônimo Ferna ndo Pessoa e seus heterônimos e, ainda, aponta questões relevantes para a tessitura do artigo, que tem como objetivo o estudo do heterônimo Alberto Caeiro.

A

Sustentada pelas palavras de José Gil, a autora fala um pouco sobre esses heterônimos de Fernando Pessoa. Aponta, por meio de uma citação de Gil, a distinção entre o Pessoa ortônima e seus heterônimos. Em seguida, chama os heterônimos de Pessoa, de uma maneira geral, de “dobras” do modo de ser e existir, e assegura que eles estão além de seus autores, são seres “autônomos”. Ainda pautada nos estudos de José Gil, Christ registra que Caeiro é considerado o mestre dos heterônimos justamente por conseguir perceber a singularidade das coisas apenas com seu modo de ver, que é sempre neutro. Essa afirmação está sustentada, como mostrou a autora, em estudos do filósofo Gilles Deleuze.

1  Graduanda em Letras (Português/Literaturas) - UFRRJ


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Dessa maneira, Christ aponta sobre o surgimento de Alberto Caeiro, que se atribui autor do poema “O guardador de rebanhos”. De acordo com Gil, a autora assegura que não existe uma origem absoluta desse heterônimo de Pessoa. Segundo ela, Caeiro se dá a partir de múltiplos elementos em convergência. Ao passo que a autora mostra, por meio de versos do poema, que traços do mestre Caeiro já preexistiam de alguma forma na poesia. Sendo assim, concorda, de acordo com que propõe Gil, que Caeiro surgiu no decurso de um processo de construção. A autora fala um pouco das convergências dos três planos em que Caeiro está alocado, e que, também, transforma em um só plano de convergência. Para esse plano, a autora usa a definição de Gil que detalha sobre o quão natural é a escrita e que esta se aproxima do vento. Ainda, na mesma seção, Christ fala que todos os outros heterônimos de Pessoa advêm de Caeiro, que surgiu no meio, numa convergência de elementos que se cruzam em um só plano. A seção 2 do artigo de Christ é totalmente destinada a Caeiro e à ampliação de seus sentidos. Para isso, ela aponta que o poeta sempre viu as coisas da natureza como diferentes, mas, sobretudo, necessárias. Caeiro tem uma visão natural das coisas, segundo a autora, o poeta ainda fala da natureza como uma espécie de ética, pois para ele, que vive a vida espontaneamente e naturalmente, o existir e o ver seriam uma maneira ética. Nota-se, como bem propôs a autora, que o poeta não acrescenta imaginação à natureza, muito pelo contrário, Caeiro é conhecido por ver as coisas como elas realmente são, sem clichês. Christ exemplifica, com auxilio de versos dos poemas de Caeiro, muito bem a questão da naturalidade com que o mestre Caeiro lida na sua linguagem. Afinal, a autora esclarece que, para o mestre, as metáforas desgastadas nos impedem de ver as coisas na sua nudez, na sua simplicidade. Para fechar essa sessão, ainda pautado nos estudos de Gil, a autora fala sobre a visão puramente objetiva do poeta que permite que ele veja as coisas diferentes umas das outras.

Na seção 3, a autora fala sobre a mistura de sensação e pensamentos em Alberto Caeiro e em seus heterônimos. Christ aponta Caeiro como o verdadeiro argonauta das sensações verdadeiras e descobridor da natureza. Pois o mestre propõe uma forma diferente de pensar, como mostra a autora, para ele o pensar envolve todos os sentidos ampliados e destituídos de significações. Devido a esse fator, nota-se, nos outros heterônimos, essa dificuldade em sentir e ver as coisas como faz o mestre Caeiro. A partir disso, Christ assegura que este é um dos motivos por que temos vários heterônimos de Pessoa, e até mesmo seu ortônimo, presos num desejo de unidade, numa busca implacável pelo seu eu. Aponta, ainda, que o Pessoa ortônimo está sempre dividido em pensamento e sensações, diferente de Caeiro, que vive essa osmose pensamento-sensação. Adiante, a autora detalha ainda mais essa diferença entre Caeiro e Pessoa. Pois o primeiro basta existir para estar completo, Caeiro não vive numa divisão de “eus”, diferentemente de Pessoa, que vive dividido entre sentir, então pensa e acaba vivendo a dor da fragmentação do seu próprio eu. Conclui-se, dessa forma, que Alberto Caeiro é considerado o mestre pelo simples fato de propor uma nova forma de pensamento, sensações e pensamentos aliados. Christ aponta, ainda sobre a liberdade de Caeiro em não opor o pensamento à sensação. Nele, essa relação se dá, justamente e diferentemente dos outros, por osmose. Sendo assim, a autora justifica, também, a afirmação de que os outros heterônimos derivem dele. Essa liberdade presente em Caeiro justifica a influência dele nos outros heterônimos de Pessoa. A obra se faz expressamente recomendável aos alunos que estudam a literatura portuguesa. A autora, com sua linguagem simples e didática, teve sucesso com seu propósito de exemplificar o motivo pelo qual Caeiro é considerado o mestre dentre os heterônimos. Além de, sem dúvidas, deixar claro a distinção e a relevância desse heterônimo para a poesia pessoana.


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A LEVEZA DO SER LÉSBICO: AMORA E A NATURALIDADE DA RELAÇÃO LESBOAFETIVA ORNELLA ERDÓS DAPUZZO 1

RESENHA POLESSO, Natalia Borges. Amora. Não Editora. Porto Alegre, 2015. (...) e se não me convenço todos os dias que te amo pelo que tu é, corro o risco de parar de sentir. É esse o risco que tu quer? Eu não sabia. Desculpa. As coisas se profanam. (Natalia Polesso)

ratar de relações que fogem ao padrão heteronormativo é um trabalho que se faz atravessado por diferentes perspectivas de análise (relações de gênero, orientação sexual, formação do núcleo familiar etc.). Muitos autores, ao se disporem a apresentar um formato de afetividade que rompa com as noções pré-estabelecidas pela sociedade judaico-cristã de normalidade sexual, eventualmente colocam a nós, leitores, diante de violações vividas pelas personagens que se identificam enquanto homossexuais (disfarce da identidade, heterossexualidade compulsória, estupro corretivo etc.). Em se tratando de dar ênfase às relações lésbicas, muitas das vezes há uma tentativa de suavizar ou turvar essas relações, seja por meio de uma construção linguística ambígua, seja por meio de ações explícitas de correção das orientações sexuais homocentradas, não sendo o ocorrente nos contos que aqui serão referidos.

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Natalia Borges Polesso, escritora e doutoranda da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), apresenta uma obra cujas personagens principais se assumem e se asseguram enquanto mulheres homossexuais. É através de termos, organizações textuais, toques e olhares diferenciados que as personagens são construídas e se constituem através das relações que acionam umas com as outras.

1  Graduanda em Letras (Português/Inglês) – FURG


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Dividido em duas partes distintas, intituladas a) grandes e sumarentas e b) pequenas e ácidas, a obra nos apresenta trinta e três contos nos quais é possível concordar que a temática norteadora nada mais é do que a apresentação de vivências e experiências que permeiam as rotinas de mulheres que tem, por preferência e amor, relações com pessoas do mesmo sexo. A autora discorre a respeito de tramas e clichês ocorrentes nos grupos lésbicos, conferindo uma identidade coletiva de destaque ao grupo, ainda que possam apresentar algumas variações (idade, formato de relacionamento, classe social, etc.). Além disso, por meio de um tom muitas vezes teatral, somos postos diante de narrativas que buscam tematizar, de forma irônica, as formas de fuga ou anulação da opressão, como no conto Flor, flores, ferro retorcido, no qual a personagem (Florlinda) é apontada pela vizinhança enquanto uma pessoa que possui a doença “machorra”. É a partir deste termo que a ação visa se desencadear, uma vez que o vocábulo é questionado por uma criança que não compreende como é possível que Florlinda esteja doente se aparenta estar tão saudável. A criança se faz extremamente importante na narrativa, pois é por meio da pureza do seu olhar que ocorrerá o esvaziamento da repressão e do juízo negativo à relação lésbica. Outro elemento passível de reflexão é a presença de uma pluralidade etária nas relações lesboafetivas. A autora não restringe sua construção unicamente em um nicho de mulheres jovens, lançando à narrativa diferentes tipos de envolvimentos e problematizações distintas. No caso das personagens cujas idades já são avançadas, temos o conto As tias, no qual nos deparamos com Leci e Alvina, duas mulheres que vivem juntas por sessenta anos desde que deixaram o convento. A partir da diegese em questão, passamos a refletir sobre os olhares já tão estruturados de negação à relação homossexual entre mulheres mais velhas. Em outro conto, intitulado Profanação, temos um exemplo da possível aspiração da autora à escrita da segunda parte da obra (pequenas e ácidas). O conto em questão é traçado a partir de um processo de reflexão da narradora,

dando um caráter mais emotivo ao discurso e, ao mesmo tempo, de um suposto diálogo insinuando que sua interlocutora se encontra no mesmo espaço, ainda que não haja evidências da presença física desta. Com construções narrativas de extremo fluxo psicológico, os contos finais nos oferecem um uma visão muito mais ontológica, uma vez que somos imersos no campo da ponderação do “ser”, neste caso o “ser lésbico”. São resultados do processo de memória (em Memória), questionamentos (em Valsa), descrições de sentimentos (em Sono), desejos (em Punhos) e suposições existencialistas das narradoras (em Bocejo), distintamente da parte inicial do livro que é majoritariamente construído a partir das ações e relações entre diferentes personagens. Por fim, vale salientar que, com o intuito de tornar essas imagens construções naturais tais quais qualquer outra relação tradicional, Natalia Polesso desenvolve contos em que o amor não é o único mote a ser narrado. Em muitos momentos ficamos frente a temáticas que são, nada mais, que apenas banalizações da vida cotidiana, com conflitos psicológicos, abandonos, dúvidas de si, descobertas e honestidade. Em suma, somos colocados frente a um conjunto de contos que além de demonstrar características afetivas e sexuais ocorrentes entre mulheres, é constituído de um teor político porquanto nega a imagem protagonista a qualquer homem que eventualmente possa aparecer. Amora, livro publicado pela editora “Não Editora” no ano de 2015, pode ser considerado um dos poucos livros de nosso acervo contemporâneo que trata das relações lésbicas e das mulheres de forma natural. Não estamos lidando com narrativas que versam sobre a finalidade de prazer do homem. Não estamos diante do processo de fetichização e objetificação do corpo lésbico, haja vista que é um livro que, por sua espontaneidade, quebra com as construções sociais de celebração ao e regozijo do falo.


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AMOR DE PERDIÇÃO E CORAÇÃO, CABEÇA E ESTÔMAGO: O TRÁGICO E O RISÍVEL REVELANDO A HIPOCRISIA SOCIAL THAINÁ AMADOR DE LIRA 1

RESENHA CASTELO BRANCO, Camilo. Amor de Perdição. Editora Ática. São Paulo, 1996. & CASTELO BRANCO, Camilo. Coração, cabeça e estômago. Martins Fontes. São Paulo, 2003. amilo Castelo Branco (1825-1890) foi um importante escritor português do século XIX, um dos primeiros a viver exclusivamente da escrita, tendo escrito mais de uma centena de livros, sendo, dessa forma, uma grande referência do romantismo português - apesar de sua obra não se restringir a romances, já que foi crítico, cronista, poeta, dramaturgo, tradutor e historiador. Seus livros eram uma espécie de best-seller do seu tempo. Dentre seus inúmeros romances, destaca-se Amor de Perdição que data de 1862, o qual lhe deu, ou, no mínimo, reforçou seu título de autor passional. A esse, costuma-se opor Coração, Cabeça e Estômago, do mesmo ano, em que faz duras críticas ao ultrarromantismo da segunda geração Romântica.

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Representante do segundo Romantismo português, Amor de Perdição foi muito apreciado pelos leitores. Centrado no amor de Simão e Tereza, que era impossível dada a rivalidade de suas famílias, a obra poderia ser considerada uma espécie de “Romeu e Julieta” português já que gira em torno da tragédia de um amor irrealizável que leva os amantes à morte.; passional por excelência, sem mais adentramento crítico. Nesse sentido, é consistente opor a este Coração, Cabeça e Estômago, no qual o amor é revelado como algo inventado: O amor inventou-o depois o estragamento dos bons costumes gregos e romanos”, que não é fundamental à felicidade “algumas vezes interrogava a minha consciência, perguntando-lhe se eu amava Tomázia [...] Ao coração é que tocava o discutirmos semelhantes pontos de pouquíssima importância para o complemento da minha felicidade.” e é volátil: “agora, é mais íntimo e devorante o amor, mais combustível o coração; a chama, batida por variados ventos, ateia-se mais enfurecida e o elemento dos afetos volatiza-se rapidamente.

1  Graduação em Letras (Português/Francês) – UERJ


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Vê-se pelo fim do amor de Paula logo após a fuga por amor, e do amante de Marcolina, que, ao casar, mostrou-se falso. Assim, a obra revela que a desmedida do amor, levada às ultimas instâncias por Simão, Tereza e Mariana, não pode ser verdadeira. O passionalismo é criado e idealizado, e isto percebe-se pelo satanismo fabricado de Silvestre ao desiludir-se amorosamente por sete vezes, mostrando até que ponto o amor romântico é teatral. Essa visão, no entanto, não é digna da genialidade de Camilo Castelo Branco. Nem Amor de Perdição é puramente passional, nem Coração, Cabeça e Estômago é pura crítica ao romance passional. Amor de Perdição vai além: o amor é aqui uma declaração de guerra, de contestação social e insubordinação à hipocrisia. Simão e Tereza, ao lutarem por esse amor, não se submetem às regras sociais e tornam-se revolucionários. Tereza contesta o pai, o representante da lei inflexível, e decidida e disposta a lutar por sua felicidade, não se rende às ordens dele. Simão sempre foi um transgressor, era afeito aos ideais da Revolução Francesa e defendia ferozmente os desvalidos. Torna-se menos agressivo à sociedade ao se apaixonar por Tereza, mas essa também era uma transgressão, já que era um amor proibido. Ao matar Baltazar, Simão chega ao ápice da violação das regras: matar um também burguês ; com isso, Camilo mostra o quanto as leis eram volúveis, o quanto a classe social poderia proteger de qualquer crime. Não se pode matar, a menos que seja algum desvalido, alguém sem status, pois, nesse caso, facilmente se livra da pena. No entanto, matar alguém rico, torna as coisas mais difíceis, mas, ainda assim, Simão, por ser filho do corregedor, teve todas as chances de fugir ou ter a pena amenizada por sua condição social, mas se recusa a participar desse sistema. Simão se rende ao cumprimento da lei, não se entregando ao esquema social, contra o qual luta ferrenhamente. Da mesma maneira, Silvestre, personagem central de Coração, Cabeça e Estômago, também se recusa a mentir em seu favor no tribunal, dizendo ser sua crítica um romance, algo ficcional, para se livrar da acusação; ele aceita as consequências em prol da verdade. A sociedade se mostra hipócrita e o sujeito tem que aprender a conviver no meio, com-

pactuando com seus esquemas, ou estará fadado à desgraça. O excesso de honestidade em Simão o impedia de fazer parte do jogo social e sua integridade se torna uma arma contra ele. Se fosse hipócrita, mentiroso e menos honesto, talvez tivesse uma chance de viver seu amor. Manoel Botelho, seu irmão, por exemplo, mesmo se tornando criminoso, escolheu viver seu amor, e o marido de sua amante continuou sua vida normalmente, prosseguindo em sua faculdade sem peso dramático. Dessa forma, Camilo mostra que nem todo amor era de perdição e o de Simão e Tereza também não precisava ser, porém, dessa forma, o amor se subordinaria às leis sociais injustas e hipócritas, e correria o risco de sucumbir tal qual o de Manoel Botelho que acabou se separando de sua amada. Este escolheu fazer o jogo social, participar de suas hipocrisias e privilégios, de maneira que viveu seu amor até onde pode, e, sendo filho de corregedor, conseguiu ser bemsucedido socialmente após seu crime de amor, ficando vivo para relatar a história. Essa não poderia ser a escolha de Simão: íntegro, transgressor e utópico por excelência. Tereza, diferente de Simão, mentia quando necessário e colocava seu amor acima de tudo, inclusive de sua integridade. Ela era capaz de esperar o tempo que fosse para vivê-lo, mas Simão não aceita fugir, viver o amor escondido ou esperar anos para vivê-lo plenamente; ele não aceita menos do que a utopia de um amor livre e quer ir às últimas consequências, colocando-se em posição de mártir dessa sociedade intransigente que não dá espaço para o amor. Assim como Silvestre, Simão constata esse fato através da razão: “A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder, retraía-se, recriminado pelos ditames da razão”, e entende que foi “um atroz engano” esse encontro, pois é impossível lutar contra as forças da sociedade; então, dada a impossibilidade da felicidade no amor, Simão e Tereza fazem um pacto com a morte, assim, esse amor se eternizaria. Já Silvestre, percebendo que o amor não se sustentava nessa sociedade, resolveu entrar em seu esquema. Quis se casar por interesse com três herdeiras, mas sua pretensão não deu certo. Logo sua honestidade falou mais alto do que a razão que o obrigava a compartilhar da hipocrisia


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social – “estava ou devia estar perdido, porque julguei necessária à vida a hipocrisia cínica”. No entanto, diferente de Simão, Silvestre não desiste de encontrar a felicidade; se não a encontrou nos caminhos do coração nem da cabeça, encontra-a no estômago! Em uma sociedade deteriorada, o amor só pode levar à tragédia ou ao ridículo. A razão só tem fundamento se é pautada nas leis sociais, e, sendo a sociedade degradada, a razão só poderia levar o homem à degradação. Já que nem pelo sentimento nem pela razão se encontra a felicidade, ao homem resta o prazer de comer! Ironicamente, esse prazer que lhe deu tudo o que buscava - uma boa esposa e reconhecimento - o leva à morte. Seria o estômago realmente o melhor caminho? Em Camilo Castelo Branco, tudo é relativizado. Na figura dos desvalidos, Camilo revela mais críticas à sociedade corrompida. A mendiga que entregava as cartas ou o ferreiro que em tudo apoiou Simão eram os únicos a defenderem o amor, uma vez que, como eles, o amor estava à margem da sociedade. Eles são mais sensíveis, não foram corrompidos pelo materialismo, e, portanto, estão fadados a sucumbir pela opressão social. Em Coração, Cabeça e Estômago, Camilo também insere um personagem representante dos desfavorecidos: Marcolina, mulher sofrida e honrada, que era desprezada pela sociedade, em oposição à Paula, que era insensível, volátil e libertina, mas, por ser rica, era mulher respeitada e bem afamada. Revela-se mais uma vez a hipocrisia social. Nas duas obras, Camilo denuncia uma sociedade que vive de aparências, que não vive o que prega, mostrando a necessidade de relativizar os fatos; relativizar todas as verdades desse século tão afeito a elas. Relativizar a concepção de mulher honrada e não honrada, a beleza ideal feminina – através de Tomázia, esposa de Silvestre, a qual estava completamente fora dos padrões estéticos, mas, ainda assim, foi achada bela -, e também relativizar o amor. Em Amor de Perdição, o amor é verdadeiro, o leitor é convencido disso, no entanto, ele não é capaz de resistir às instâncias sociais. Si-

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mão desiste de lutar vendo que só há espaço para hipocrisias e materialismos naquela sociedade. Por mais sincero que fosse seu amor, desiste de lutar, pois “a luta com a desgraça é inútil e eu não posso já lutar” e se nega a esperar dez anos para viver esse amor, como quisera Tereza. Seu amor não era suficientemente capaz de lhe fazer suportar “a índia, a humilhação, a miséria e a indigência”. O amor é então relativizado. Em Coração, Cabeça e Estômago, o autor relativiza tudo o que disse em descrédito do amor e das mulheres todas as sete muito pragmáticas- com a inserção da história de Marcolina. Ele amou e foi amado em pouco tempo de conversa. Ambas as obras possuem críticas em comum à mesma sociedade; critica-se a moral do século XIX, porém por vieses diferentes: a primeira através do trágico e a segunda através do risível. Silvestre, depois de tantas decepções, poderia ser um personagem trágico. No entanto, de tão arruinada, a sociedade se mostra risível. Ao invés de se oporem uma à outra, elas se completam, dando-nos um panorama amplo da sociedade da época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANCO, Camilo Castelo. Amor de Perdição. São Paulo: Editora Ática, 1996. BRANCO, Camilo Castelo. Coração, Cabeça e Estômago. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DAVID, Sérgio Nazar. Mimese e moral em Camilo Castelo Branco. Revista Colóquio/Letras, n. 181, Set. 2012.


CORUJA | FAUSTINO

FAUSTINO SUZANA MARLY DA COSTA MAGALHÃES 1

CONTO lguns haviam dito que desistisse da ideia de ser escritor, que arranjasse um trabalho verdadeiro, útil: médico, advogado, professor, funcionário público. Faustino, já adulto, mas ainda imberbe, nunca desistira. Falava em predestinação, provação, destino...

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Escrevera desde sempre: rimas curtas, rimas raras, falsas rimas, rimas trôpegas, esgarçadas, que ia construindo ao palmilhar as sucessivas gerações da lírica, sozinho, como podia. E prosa também, a sua vocação mais alta. Quanto a isso, tinha convicções próprias, de dizer a verdade sobre o mundo, de verter com força e sinceridade paisagens e homens, de esclarecer as trajetórias e transes, marcando a curva de seus dias, acertos e descaminhos. Quando se sentira pronto, abalara para a grande cidade, deixando para trás, esperançoso, mas aflito, a pequena praça, a casinhola no beco, o baú descascado cheio dos livros que tantas vezes lera, desde menino. Arranjara então empregos mixurucas, chãos de varrer, vidraças a lustrar, pizzas a entregar, até encontrar, depois de um tempo imenso, um requintado café de esquina, recendendo a madeiras nobres, atravancado de estantes de livros e bibelots. Andava-se por dentro dele como em um sonho: grandes zonas de sombra pontilhadas de clareiras de um brilhante tom alaranjado, abertas por bizarros lustres de cristal, para onde eram atraídos os passos e os pensamentos. Eventos importantes eram realizados no café: encontros sociais, vernissages e lançamentos de livros. Faustino se sentia como um nadador prestes a realizar o salto, o mergulho visceral, definitivo, para atingir os índices almejados de excelência e de perfeição. Queria edificar histórias com a marca de sua época, que dissesse algo às pessoas. Uma arte construída com os fragmentos descolados de sua alma doída, do que já compreendera sobre a vida, e que o ancorasse de vez neste mundo, para que pudesse vencer a decadência, a morte, o esquecimento. 1  Graduanda em Letras – UNIRIO


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Mas, como fazer isso, ele não sabia. Tão difícil! Não era rico, não tinha amigos influentes, não estudara nas escolas certas... Espreitava então tudo o que acontecia, capturando frases, rostos, enquanto servia brownies, expressos e waffles com ervas finas, com o intuito de descobrir, enfim, um dia, a vereda estreita e ingrata de acesso à morada da grande arte e da glória do artista.

Uma noite, Faustino reparou em um homem alto e magro sozinho, sentado a um canto.

Os olhos eram oblíquos e claros, de cor indefinida. Vestia um colete e casaco negros e uma blusa branca de seda molenga, que cobria parte dos punhos sobre a mesa. Pousados como um animal modorrento, mas alerta, os dedos espatulados, encolhidos em formato de meia-lua. Quando surpreendeu o olhar de Faustino, sorriu, mostrando os incisivos largos como presas. Apesar disso, o homem era bonito, de uma beleza esquisita, fanada. E estrangeiro, embora não se adivinhasse exatamente de onde vinha. Acostumou-se a ir ali, sempre durante a noite. Pedia uma taça de vinho tinto, que nunca bebia. Lia volumes alentados. Examinava, com vagar, xilogravuras e esboços que tirava de velhas pastas de couro encardido. Conversava com Faustino sobre a grande cidade, sobre sua vida, sem jamais falar de si e do que fazia. Em contrapartida, Faustino lhe contava o que sentia e como vivia. E lhe mostrava seus textos, que o outro lia com cuidado.

Faustino sentiu que finalmente achara alguém que o compreendia.

Numa noite fria de julho, o estranho, Devillier, interpelou-o:

— Há tempos, percebo o quanto deseja ser um grande escritor, e eu, já deve ter notado, tenho grande simpatia pelos artistas, especialmente os ambiciosos e incompreendidos, que se contrapõem à mesquinhez deste mundo em que vivemos...

Fez uma pausa e fixou-o com aqueles olhos estranhos, com a íris estreita, rajada de verde e cinza.

— Você precisa de uma história e de uma maneira de contar que agrade aos homens de hoje. Porque você escreve, não sei se sabe, como se fazia há algum tempo atrás, narrando episódios, buscando exprimir um significado, um sentido para a vida. Atualmente, não se tem certeza sobre o que se diz. Não há mais uma missão para a literatura. O que existe são evocações de atmosferas e sentimentos do autor postos em engrenagens de textos que funcionam sozinhos, sem que o escritor disso se dê conta. Estalou os dedos recurvos, num gesto muito seu, e começou a guardar os pertences que estavam sobre a mesa em uma maleta assemelhada a um estojo de instrumento musical, estreita e de couro rígido. — Contarei a você as histórias de que você precisa. As histórias do seu tempo, e de outras épocas, mas arrumadas de um modo que o escutem. E farei com que o recebam onde interessa. A luz em torno dele então se enfraqueceu e tremulou, como se as lâmpadas do lustre apresentassem algum defeito, e seus olhos se fixaram em Faustino, subitamente fosforescentes e translúcidos.

E assim se fez.


CORUJA | FAUSTINO

Faustino passou a visitá-lo, semanalmente, sempre às noites, em sua casa, em um horário determinado, numa sala quase vazia, na quase penumbra, de altas paredes brancas, cujos lados formavam um pentagrama. Faustino sentava-se ante uma grande mesa de mogno, apinhada de raros e belos objetos da Espanha, Japão, Índia e de outros lugares, de materiais fúlgidos ou opacos, de madrepérola, osso, bronze e prata. E ouvia. Devillier lhe contara histórias em voz monocórdia, grave, rouca. Faustino sentiu-se, em pouco tempo, exausto, dormente. Os ruídos e as lembranças do mundo então o abandonavam, e restava apenas aquela voz sem rosto, plácida e doce. Quando se despediam no portão, nas horas tardias da noite, Faustino lembrava, como em um sonho, do toque de mãos macias e frias em seu rosto, como um afago de pluma, que fazia estremecer e dava cócegas. Depois disso, Faustino escrevia até o alvorecer do dia, as palavras se encadeando em frases, as frases em parágrafos, sussurradas em sua cabeça como em um transe, as páginas se derramando sobre a mesa, espalhando-se no chão do quarto, até a metade da manhã, quando enfim dormia. Durante o dia, não conseguia fazer mais nada, pois perdera as forças, e uma palidez acentuara seus grandes olhos negros, circundados de olheiras. Devillier o apresentou a pessoas importantes, e seus manuscritos percorreram uma trajetória ascendente entre as melhores editoras, sendo disputados por leitores sofisticados e cultos nas livrarias. Escreveu sobre ele, que “construiu um narrador aprisionado por um olhar tortuoso e delirante, que tem mais força do que o reconhecimento referencial, compondo um mundo de linguagem autossuficiente e hermético, para além da relação entre sujeito e objeto.’’ Felizmente, a época de prosperidade coincidiu com a melhora aparente das suas condições de saúde. Com o tempo, a exaustão de seus dias cedeu lugar a uma sensação de grande vitalidade e força, embora tenha passado a ansiar angustiadamente pelo cair da noite. Mesmo às voltas com uma agenda apertada de compromissos sociais e eventos midiáticos, Faustino não sentia cansaço nem fome. Os olhos refulgentes e as mãos crispadas cumprimentavam pessoas. Gargalhava, dizia chistes. Não se inquietava mais por nada, não se entristecia, nem tinha dúvidas sobre si mesmo. Nas poucas horas de solidão e silêncio que lhe restavam, Faustino escrevia. A mesma voz oculta o surpreendia, insistente, levando-o a redigir seus textos. Romances, crônicas, contos, relatos que nada tinham da casinhola do beco, do baú descascado de livros, do menino Faustino. Numa noite, depois de algum tempo, Faustino entrou em sua casa, na antessala atravancada de móveis e enfeites, circundada de muitos espelhos, de diversos tamanhos e formatos, de reflexos embaçados ou nítidos.

E estancou, lívido, hirto. Sentiu uma vertigem. As pernas fraquejaram.

Quando se olhou nos espelhos, não se viu, nem se achou.

O que havia eram somente as cadeiras, os tapetes, os retratos taciturnos e as paisagens nostálgicas que escolhera a dedo...


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PELA ÚLTIMA VEZ THAMIRES RAMOS GONÇALVES 1

CONTO epois de tanto sofrer por Pedro, Victória decide aceitar o seu pedido e encontrá-lo. Seria apenas uma despedida, já que o rapaz se mudaria do país. Muito ambicioso, Pedro sempre procurou o melhor para si e o motivo da sua partida era uma grande oferta de emprego que mudaria sua vida para sempre.

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Chegando ao lugar combinado, Victória logo avistou o homem que a deixava sem fôlego; ele era como uma droga para ela. Parada, perguntava-se como pôde ficar por tanto tempo em abstinência, enquanto reparava naquele belo sorriso que tinha conquistado o seu coração há cinco anos. Muito cavalheiro e elegante, Pedro levantou-se para puxar a cadeira a fim de que Victória se sentasse. Conversaram por horas à luz de velas. Por vezes, o silêncio os envolvia, deixando a moça com um tom avermelhado nas bochechas, o que Pedro sempre amou. Mais tarde, ao abrir os olhos, Victória não conseguia acreditar em tudo o que viveu durante aquela noite. As luzes do quarto estavam apagadas e um silêncio a fazia refletir se tudo aquilo valeria a pena. Mergulhada profundamente em seus pensamentos, lembrava-se de como conhecera Pedro, de todos os encontros às escondidas, já que ele era muito mais velho e, quando o conheceu, era menor de idade. Perdera a virgindade com ele em um desses encontros, numa noite em que seus pais não estavam em casa. Ainda muito pensativa, sentia o calor do corpo de Pedro, que estava bem junto ao seu, observava cada detalhe do seu rosto enquanto ele dormia, e lembrou-se de como era bonito o jeito como aquele homem a encantava. Seus pensamentos foram interrompidos quando Pedro acordou e começou a beijá-la: era inevitável o arrepio que tomava conta do corpo de Victória; sem lutar, se entregava ao amado. Enquanto faziam amor mais uma vez, Pedro dizia que a amava e que queria a companhia dela para sempre. Sem receber nenhuma resposta da moça, disse mais uma vez: 1  Graduanda em Letras (Português/Literaturas) - UERJ


CORUJA | PELA ÚLTIMA VEZ

— Victória? Acompanhe-me, seremos felizes! Agora tudo é diferente, teremos uma vida melhor do que teríamos se tivéssemos casado. Mas Victória sabia que nada daquilo valeria a pena, pois Pedro a machucara demais com todo o orgulho que tinha, sempre colocando a sua vida profissional em primeiro lugar. Deixou uma lágrima ser derramada quando se lembrou de que ele preferiu viajar a negócios no momento em que ela mais precisou do seu apoio: sua mãe havia falecido, e ele sumira. Sem nenhuma compaixão, voltou meses depois. O estado emocional de Victória piorou quando lembrou da traição de Pedro: a menina apaixonada o havia flagrado em sua própria festa de noivado aos beijos com uma das suas melhores amigas. Com uma das mãos, afastou Pedro para longe do seu corpo, dizendo que não poderia fazer aquilo com ela mesma. Começou a se vestir sem querer ouvir o que ele falava. Bateu a porta do quarto e saiu da casa que haviam construído quando planejavam se casar. Pedro não teve coragem de contar, mas planejava pedir perdão à moça e fazer um novo pedido de casamento antes de partir. Ele realmente havia mudado e queria viver uma vida nova com ela. Transtornado pela reação de Victória, deu um soco no espelho, que caiu no chão juntamente com o sangue que escorria das suas mãos. Depois de amarrar um pano na mão machucada, saiu correndo, esperando encontrar Victória ainda por perto. Pegou as chaves em cima da mesa e seguiu em direção à porta. Lá fora caía uma forte chuva e Pedro entrou no carro, saindo em alta velocidade. Com a chuva aumentando, ele não conseguia enxergar muita coisa, quando, de repente, com muita dificuldade, percebeu que havia um movimento bem à sua frente. Já que não tinha como passar, decidiu sair do carro e ver o que estava acontecendo. Não acreditava no que estava vendo. Passando as mãos nos cabelos, tentava manter a calma; poderia ser uma grande coincidência. Não poderia ser o carro dela envolvido naquele terrível acidente. A fim de acabar com todo aquele sofrimento, correu até o carro e logo viu a mulher que ele tanto fez sofrer, tanto fez chorar. Ela agora estava agonizando. Pedro não sabia o que fazer, não tomou nenhuma atitude. Assustado com o que estava vendo, suas lágrimas se confundiam com a água da chuva em seu rosto.

— Victória? — Pergunta ele.

Alguns segundos depois, ela responde com muita dificuldade:

— Pedro, você foi o único homem que eu amei na minha vida, mas entenda uma coisa: eu sei que não conseguiria viver longe de você e ao mesmo tempo o meu orgulho não me deixaria estar contigo. Hoje é o dia em que me livro desta dor, é melhor assim. — Eu te amo, preciso de você! Não fale estas coisas! Hoje eu sei que nada do que busquei é realmente o que quero, eu só quero você, me perdoe!

Quando Pedro ia falar sobre o pedido de casamento, Victória pôs os dedos em seus lábios e disse:

— Deixe-me ir olhando pra você, te levarei comigo. Amo cada parte do seu rosto, do seu corpo, eu te amo.

Depois de dizer isso, Victória se foi para sempre.


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Uma angústia tomou conta de Pedro, que caiu no chão e chorou como jamais chorara. Todos os momentos que viveu junto a ela passaram como flashes em sua mente. Os dias se passaram e Pedro recusou a oferta de emprego; resolveu levar uma vida simples. Tomou uma dura e cruel decisão: jamais permitiria que alguém entrasse em sua vida novamente. Decidiu viver aquela dor e não a compartilharia com ninguém. Este seria o seu castigo.


CORUJA | O GRANDE ACHADO DA INTERNET

O GRANDE ACHADO DA INTERNET VIVIANE ROUX 1

CONTO omprara uma cápsula do tempo ao contrário, viera do futuro ou de outro planeta, uma pistola de laser desfragmentador. Apontado para o alvo, tudo virava nada. Desaparecia. O laser, ou fosse aquilo o que fosse, era transparente, e aquele negócio incrível estava ali, em suas mãos, e ela poderia fazer o que quisesse com ele.

C

Seu primeiro impulso foi virá-lo para a cabeça e “sumir-se a si mesma”, mas, e depois? O que fariam com as suas roupas? Será que alguém acharia seu diário e morreria de rir das suas besteiras? Será que alguém (ELE) notaria que ela desapareceu como pó em nariz de viciado? Então decidiu apagar a sua vida. Chegou a casa e atirou na sua cama e naqueles lençóis que, apesar de constantemente lavados, insistiam em guardar o cheiro dele. Atirou nas suas roupas e só ficou com a que vestia, atirou nos diários e nos cadernos e em todos aqueles sufocantes papéis. Atirou nas fotografias, destruiu o seu passado material e ainda deu tempo de sumir com o cachorro e com o computador, antes que alguém chegasse. Foi tomando gosto pela coisa e, quando viu, estava deitada em um espaço aberto, um andar sem paredes, sem nada. Então, a mãe chegou à casa e, sem entender nada, foi logo perguntando que loucura era aquela, e ela não respondeu. A mulher começou a chorar e a reclamar que não tinham dinheiro, que não poderiam comprar tudo de novo, ela, então, atirou na mãe sem querer. Quando viu o que tinha feito, deu um pulo e saiu correndo. Viu que seu pai chegava de carro com o avô e o irmão pequeno e pensou no que o avô pensaria quando visse que a filha sumiu, junto com a casa e o cachorro, e resolveu atirar no carro. Ficou sem família e começou a chorar, mas cada lágrima que descia era apagada em um tiro e ela pensou que assim apagaria a saudade e a tristeza. Ficou perambulando pela rua e, já que havia apagado tanta coisa, decidiu apagar aqueles meninos que esmolavam e o mendigo que vivia com frio na esquina 112. Apagou o pipoqueiro, porque ele era velho demais para trabalhar, e apagou uma senhora gorda que atravessava a 1  Graduanda em Letras (Português/Literaturas) — UERJ


CORUJA FOLHETIM ACADÊMICO DE LETRAS | UERJ | Ano III - Número 2 | 1º semestre de 2017

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rua, porque ela tinha cara de chata. Apagou o motorista de um carro vermelho, pegou o carro para si e dirigiu, e muito! Conheceu lugares bonitos e até algumas pessoas, só que o vazio de dentro, esse não dava para apagar, afinal, não dá para tornar invisível aquilo que é oco, seco. Não dá para fazer faltar a falta, entende? E ela começou a rememorar tudo o que havia lhe acontecido e pensou que aquele achado fora uma coisa muito ruim; que poder absurdo apagar as coisas! Lembrou que fora ele que fizera achar aquele pacote, fora ele que sumiu com tudo o que ela acreditava, com a cor e a alegria do mundão, fazendo com que ela encomendasse, no e-bay, aquela arma poderosa. E se ela o apagasse? Se se vingasse, se apagasse a casa e o cachorro e a família dele e tudo o que ele gostava? Foi para o seu carro vermelho, que estava cheio de batatas-fritas espalhadas pelo chão, e estacionou na porta do condomínio. Apontou a arma e paf! Foi-se o porteiro, ela entrou. Sentada no quintal, percebeu que a empregada descera com um balde de roupas e apagou a coitada. E, quando o cachorro voltou de um passeio, nem bem abanou o rabo e sumira num instante. E foi à casa dos pais dele, aproveitou que estava todo mundo lá e mirou no teto da casa e acabou com a festa.

Correu para o trabalho do cara e viu que ele estava saindo com o carro, gritou seu nome:

− A-ta-íííí-de!!

− Marina??

− Você... aqui... depois de tudo? Está pronta? Me perdoou?

− Não, nunca!

− Eu... olha, coloca a mão aqui, sente. Tá vendo? Eu descobri que é você, sempre foi... Fiz tantas besteiras, mas nunca, nunca parei de sentir. Eu amo você, sempre amei... Você é a coisa que EU MAIS AMO NO MUNDO!

Então ela deu um sorriso, quase gargalhou, e pimba!

Deu um tiro na própria boca!


II SAPPLI EM BREVE


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