CORUJA_n1, 2016

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Ano II • N. 01 • 1º Semestre de 2016

Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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Periódico organizado por estudantes do curso de Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Centro de Educação e Humanidades - Instituto de Letras Reitor: Ruy Garcia Marques Vice-Reitora: Maria Georgina Muniz Washington Diretora do Instituto de Letras: Magali dos Santos Moura Vice-Diretora do Instituto de Letras: Márcia Regina de Faria da Silva

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EXPEDIENTE Identidade visual: Fernanda Lacombe Jhonatan Andreas Thamires Malheiros

Editoras-executivas: Mariana Teixeira Thayssa Martins Corpo editorial: Ariane Mello Camille Labanca Fernanda Lacombe Islaine Lemos Jhonatan Andreas Nayana Ferraz Paloma de Araújo Thamires Malheiros

Projeto gráfico: Jhonatan Andreas Thamires Malheiros Arte da capa: Mislene das Neves Firmino Diagramação e ediçaõ de arte: Jhonatan Andreas

Consultor acadêmico: Professor Dr. Davi Pinho

Revisão: Andressa Fontes Iuri Pavan Letícia Capuano Maira M. Moura Mariana Oliveira Mariana Teixeira Rayanne Cholbi Sara M. Adelino Thamires Ramos

Diretoras financeiras: Mariana Teixeira Thayssa Martins

Conselho editorial: Adriana Jordão (FL/UFRJ), Ana Cristina Chiara (ILE/UERJ), Andrea Wérkema(ILE/

UERJ), Ebal Bolacio (ILE/UERJ), Fernanda Cavalcanti (ILE/UERJ), Fernanda Medeiros (ILE/UERJ), Gustavo Bernardo Krause (ILE/UERJ), Gustavo Fujarra Carmona (Universidade de Nice, França), Ieda Magri (ILE/UERJ), Leonardo Davino (ILE/UERJ), Magali Moura (ILE/UERJ), Maria Alice Antunes (ILE/UERJ), Maria Aparecida Salgueiro (ILE/UERJ), Maria Conceição Monteiro (ILE/UERJ), Nabil Araújo (ILE/UERJ), Phellipe Marcel (ILE/ UERJ), Roberto Acízelo (ILE/UERJ) e Rodrigo Campos (ILE/UERJ).

Coruja Folhetim Acadêmico de Letras (FALe)

é uma publicação semestral dos graduandos de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rua São Francisco Xavier, 524, 11° andar, Maracanã, Rio de Janeiro (RJ), tel.: (21) 2334-0639 Coruja on-line: http://www.facebook.com/corujafale Matérias, sugestões de pauta, cartas e publicações: coruja.fale@gmail.com Impressão: Gráfica UERJ Distribuição exclusiva no Brasil (universidades): Corpo editorial Tiragem 100 exemplares Os textos publicados neste periódico são de inteira responsabilidade de seus autores. Coruja: FALe. Estudantes do curso de Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nova edição, Ano 2, n. 01. Rio de Janeiro, 2015. ISSN 2525-6947 Semestral

1. Letras - Periódico

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SUMÁRIO EDITORIAL: AOS ESCRITORES, E ANTES DE TUDO, ALUNOS .......................................................... 11 Editores / Paloma de Araújo

ARTIGOS UM SILÊNCIO QUE PRECISA SER DITO: A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA FEMINISTA PÓSCOLONIAL EM UMA VISÃO DISCURSIVA .............................................................................................. 13 Ana Cecília Trindade Rebelo POR UMA POÉTICA CABRALINA: UMA ANÁLISE CENTRADA NA LINGUAGEM DE “EDUCAÇÃO PELA PEDRA” E DE “UMA FACA SÓ LÂMINA” .......................................................... 23 Danielle da Silva Leal VISÕES DA INFÂNCIA EM “O MUNDO”, DE JUAN JOSÉ MILLÁS .................................................... 28 Fabricio da Silva de Oliveira A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO, ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO, NAS CRÔNICAS DE CUERPO Y PRÓTESIS, DE JUAN JOSÉ MILLÁS .......................................................................................................... 31 Fabricio da Silva de Oliveira O RIO COMO SÍMBOLO DA METALINGUAGEM NA OBRA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO ..................................................................................................................................................... 34 Francisco Felipe de Paula Neto A VALORIZAÇÃO DO ENSINO E DA APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA: POR QUEM? PARA QUÊ? PARA QUEM? .......................................................................................................................................... 43 Gilvaneide Viegas de Barros Vasconcelos AS CORES DO CAMALEÃO: A HIBRIDEZ DO GÊNERO CRÔNICA E A PÓS-MODERNIDADE ................................................................................................................................................................................ 56 Iasmin Rocha da Luz Araruna de Oliveira OS GÊNEROS TEXTUAIS NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL ............................. 66 Igor Pereira Gonçalves

O APARECIMENTO DO MITO SEBASTIANISTA EM OBRAS LUSO-BRASILEIRAS .......................... 73 Jéssica Caroline Pessoa dos Santos

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A PARÓDIA COMO MECANISMO DE EVIDENCIAÇÃO DO OUTRO EM RUY DUARTE DE CARVALHO ....................................................................................................................................................... 80 Juliana Campos Alvernaz

A TENSÃO DA ESCRITA EUCLIDIANA E SEUS DESDOBRAMENTOS: DO MESSIANISMO EXACERBADO AO DISCURSO DA RACIONALIDADE .......................................................................... 89 Juliana Barcellos da Silva, Luisa Serrano Lima, Sérgio Eduardo Correa Santos e Tamara de Souza Mendes do Nascimento

[IN]DESCRIÇÃO DE JANE AUSTEN ............................................................................................................. 95 Larissa Pereira de França

NOTA PRELIMINAR: A ANTEVISÃO DO CARÁTER HÍBRIDO NO PENSAMENTO EUCLIDIANO ................................................................................................................................................. 100 Juliana Barcellos da Silva, Luisa Serrano Lima, Sérgio Eduardo Correa Santos e Tamara de Souza Mendes do Nascimento

RELIGIÃO, MITO, DEUSES E ÁFRICA ...................................................................................................... 109 Luiz Henrique Davi de Lemos

MOLL FLANDERS: A PERFORMANCE COMO ARTIFÍCIO PARA A RECONSTRUÇÃO E O RETORNO À MATRIZ ................................................................................................................................... 114 Marcela Santos Brigida

A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DA FIGURA MATERNA EM TRÊS PEÇAS DE SHAKESPEARE: RICARDO III (1592-93), CORIOLANO (1607-8) E O CONTO DE INVERNO (1610-11) ........................ 125 Marcela Santos Brigida

RUÍNA EM A ABÓBADA: POTENCIAL .................................................................................................... 137 Marcelo Alves

O JORNAL: UM OLHAR DIFERENCIADO PARA O COTIDIANO ...................................................... 144 Maria Mariana Lima Castro

JANE EYRE – DO LIVRO PARA A TELA ................................................................................................... 152 Raquel Oliveira Barbosa

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ENTRE O CLARO E O ESCURO: EUCLIDES DA CUNHA CONVIDA REMBRANDT ....................... 156 Juliana Barcellos da Silva, Luisa Serrano Lima, Sérgio Eduardo Correa Santos e Tamara de Souza Mendes do Nascimento

ANAKIN SKYWALKER E DARTH VADER- DOIS NOMES, UM NOVO CONCEITO DE ANTI-HERÓI .............................................................................................................................................. 167 Victoria Barros de Carvalho Silva

TEXTOS LITERÁRIOS

QUANDO FALTOU LUZ - Anderson Câmara (206) A TERCEIRA CASA - Anderson Câmara (207) A PROMESSA - Jéssica Caroline Pessoa dos Santos (208) DOS GÊNEROS - Victor Hugo Cardoso Delmas (210)

O LADRÃO DE ESTRELAS - Lucas Serpa (218) CARTAS - Mariana Oliveira (218) VÁRIAS VIDAS - Mariana Oliveira (219) NOÊMIA - Mariana Oliveira (219) PEQUENOS ESCLARECIMENTOS PÓSTUMOS Mislene das Neves Firmino (220) LUA CRIS - Rafaela Paula (221) SOMBRA DA ÁRVORE DA VIDA - Rafaela Paula (222) TRISTEZA EM POESIA - Rafaela Paula (222) VIRAMUNDO - Pedro Cruz de Aguiar (223) NEGRA - Paulo D’ Anna (223) CULPA ENCARNADA - Pedro Cruz de Aguiar (224) CARNAVAL DE RUA - Pedro Cruz de Aguiar (224) MESA REDONDA DE UMA SEXTA-FEIRA À NOITE - Lucas Serpa (225) QUANDO EU ACORDEI PRA VIDA - Lucas Serpa (225) THINKING THING - Mislene das Neves Firmino (226) NÃO BASTASSE AMAR - Mariana Oliveira (226)

POEMAS ..............................................,.................. 212

PROSA POÉTICA ............................,.................. 227

500 ANOS - Anderson Câmara (212) SOBRE SOLIDÃO - Anderson Câmara (214) NAMORADOS - Anderson Câmara (215) TREM - Anderson Câmara (215) O MEU AMOR POR TI - Fabricio da Silva Oliveira (216) POESIA À SEMELHANÇA DE HOMEM - Fabricio da Silva Oliveira (217) UM PASSO - Pedro Cruz de Aguiar (217)

TRECHOS POÉTICOS - Priscila Mendes Viana (227) XXII - Jhonatan Andreas (228) XXIII - Jhonatan Andreas (228)

CONTOS ................................................................. 181 LEMBRANÇAS DE UMA CASA VELHA - Anderson Câmara (181) HOMER E HAROLDO - Anderson Câmara (182) CENAS - Antonio Severo dos Santos Júnior (186) JÚ NO CARNAVAL 2015 - Daniele Victorino (188) O LEITÃO - Francisco Neto (190) A FEIJOADA DE DOMINGO - Iasmin Rocha da Luz Araruna de Oliveira (193) INDIE ROCK - Lucas Serpa (195) CAT LADY - Maira M. Moura (196) COISAS DE ESCRITORES - Mariana Oliveira (199) PACHORRA - Mariana Oliveira (201) CRÔNICAS ............................................................ 206

NORMAS PARA PUBLICAÇÃO ..................... 229

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EDITORIAL

AOS ESCRITORES, ANTES DE TUDO, ALUNOS. Às vezes tudo o que tinha era um lápis e um papel a mão. E um milhão de coisas na mente. A escrita é refúgio, é afago onde os corações cheios de realidade fazem arte. E é com todo esse peso no nosso punho que muitos vêm trilhar seu caminho na faculdade de Letras - viver e respirar a literatura, se deleitar na troca experiências e pecados no confessionário da escrita. É tentar sobreviver a translação ao “lado b” do ser letrado. Xérox, seminário, bebedouro sem água, estágio com horário que não bate, outra xérox, aluguel, passagem, mais uma xérox, mãe no hospital, prova amanhã, trabalho pra depois de amanhã, mais xérox, 50 redações pra corrigir, trem lotado, miojo com tang pra jantar na república, e por fim, xérox. É tanta realidade que dá até um poema: um poema do fabuloso prosaico universitário. E não, não dá pra se refugiar dessa realidade acadêmica - e nem deveríamos! Tudo isso faz parte do que somos, um pouco de gente, um pouco de arte do dia-a-dia. Fazer da literatura via, da realidade peça de arte, e de nós, artistas da vida. Ao ler um texto de um colega nos identificamos, uma vez que nossas (a)diversidades nos tornam semelhantes, e com elas que nos criamos empatia. Os alunos da Letras vêm de fora com muita energia criativa acumulada, que precisa ser aproveitada em prol de um enriquecimento de todos nós, uma vez que a literatura é o nosso principal legado cultural, onde, através da sua expressão artística literária, nossos alunos-escritores têm a oportunidade de exteriorizar sua criatividade e suas concepções de mundo e valores humanos. Queremos que você FALE! Que mostre o seu lugar dentro da faculdade, deixando claro o seu valor não só como estudante de Letras, mas também como um organismo vivo, que se manisfesta dentro dos espaços acadêmicos para mudar o mundo através de sua arte. E é isso que a revista Coruja:FALE e o evento SAPPLI têm como objetivo: dar a voz aos alunos, através dos alunos - é dizer para esses estudantes-escritores que eles podem ajudar a construir o ambiente acadêmico com a arte produzida por eles, podendo ser apreciada por todos. A Coruja: FALE #1 traz textos produzidos e apresentados por alunos no nosso primeiro evento dedicado à revista, a I SAPPLI (I Semana Acadêmica de Pesquisa e Produção Literária), através de saraus e seminários, nos quais tivemos o prazer de sermos expectadores de amostras de poemas, contos, seminários e palestras de alunos e professores. A #1 é uma porta de entrada à viagem ao “lado b” da graduação em Letras, um viés pelo qual pessoas comuns, que também percorrerem esses corredores cinzas todos os dias e que têm realidades caóticas como a nossa, mostram o seu potencial e a sua arte através da escrita literária. Mostrar que o aluno da Letras tem seu espaço e que quer ser ouvido, principalmente, por outros alunos - é a troca de confissões escondidas que nos esquecemos que tínhamos tanta sede por expressar. É o papel e o lápis que esquecemos no fundo da gaveta, entre as apostilas do semestre e as contas a pagar.

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Artigos Acadêmicos

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UM SILÊNCIO QUE PRECISA SER DITO: A IMPORTÂNCIA DA LITERATURA FEMINISTA PÓS-COLONIAL EM UMA VISÃO DISCURSIVA Ana Cecília Trindade Rebelo (Graduação - UERJ)*

RESUMO Há quem possa falar, e há quem possa ter outros falando em seu nome. Minorias, em geral, são trazidas para o discurso por meio da palavra do outro, tendo um espaço limitado para sua fala ou sendo silenciadas por completo. Mesmo com tais limitações, a língua não deixa de ser vista, na Análise do Discurso, como local de resistência, por menor que seja. Nesse sentido, a literatura pós-colonial é importante na medida em que permite àqueles que foram silenciados reclamar suas vozes ao contar suas histórias em suas próprias palavras. Em relação às mulheres, outros vêm contando suas histórias há séculos. O que se pode observar, especialmente ao lidar com literatura pós-colonial, é que mais e mais autoras oriundas de diferentes minorias estão reivindicando seu espaço discursivo através de narrativas. Cada uma à sua maneira, elas contam histórias que permitem que suas personagens femininas tenham voz e falem sobre o que não poderia ser dito em um contexto outro. Acreditamos que isso é um passo importante para trazer para o debate questões que são desconfortáveis para muitos, mas que precisam ser discutidas. A proposta deste trabalho é trazer uma reflexão sobre a importância de ter alguém narrando sua própria história, além de mostrar os pontos de contato entre a Análise do Discurso de linha francesa, segundo Michel Pêcheux, e os estudos literários pós-coloniais. Para tal, toma-se como material de análise os romances I, Tituba, Black Witch of Salem (CONDÉ, 1992), Sorry (JONES, 2007) e The Buddha in the Attic (OTSUKA, 2012).

Palavras-chave: Análise do discurso. Literatura pós-colonial. Narrativas autodiagéticas. “There is a silence that cannot speak. There is a silence that will not speak.”1 Essas são as palavras de abertura de Obasan (1981, p.1), um romance contemporâneo da escritora canadense Joy Kogawa. O romance lida com a memória, com esquecer e lembrar-se de coisas que ajudaram a formar uma pessoa, e com como alguém pode se (re) formar enquanto sujeito por meio do do uso das palavras. Os romances I, Tituba, Black Witch of Salem (CONDÉ, 1992), Sorry (JONES, 2007), e The Buddha in the Attic (OTSUKA, 2012) também são exemplos de diferentes vertentes de literatura pós-colonial contemporânea, que é a literatura produzida por e sobre sujeitos que advêm de diferentes culturas que * Graduação letras UERJ. E-mail: anacecilia.rebelo@gmail. com 1 Optou-se, no presente trabalho, pela não tradução dos textos literários analisados.

foram colonizadas por nações europeias, ainda que estas sejam tão distintas umas das outras (como é o caso de I, Tituba, do Caribe e Sorry, da Austrália), ou culturas que não foram colonizadas, mas que foram oprimidas por outra dominante e mais poderosa (como é o caso dos imigrantes japoneses nos EUA no início do século XX, retratados em The Buddha in the Attic). Esses três romances foram escolhidos para a discussão do presente artigo por lidarem todos com a questão de dar voz àquelas que têm sido silenciadas através da história: mulheres em geral, e em especial mulheres vindas de grupos minoritários. Por meio das páginas de tais romances, podemos refletir sobre um espectro vasto de questões relacionadas à opressão, ao papel da mulher na sociedade, às relações desiguais entre indivíduos dentro de diferentes grupos sociais, e

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muitas outras situações problemáticas que, ao fim, estão todas relacionadas à questão do poder (ter/ negar/tentar alcançar/tentar manter o poder). Todos esses pontos podem ser discutidos focando em uma relação em particular: a relação entre o silêncio e as palavras. Essa dicotomia vai além de discussões em Música ou Acústica. No campo dos estudos do discurso, ela levanta questões como o que pode ser dito e o que precisa ser silenciado. Ela também se refere a sujeitos: há aqueles a quem é permitido falar e há aqueles a quem é permitido ter alguém para falar em seu lugar. As minorias em geral são trazidas para o discurso através das palavras do outro, tendo espaços muito limitados nos quais podem se manifestar ou sendo totalmente silenciadas. Ainda que haja limites e fronteiras em todo lugar, tanto para as palavras quanto para quem se propõe a empregar tais palavras, a língua é vista na Análise do Discurso como um lugar de resistência, por menor que esta seja. Isso significa que sempre há a possibilidade de que os inúmeros limites sejam modificados, redefinidos, expandidos, de tal forma que novas vozes possam surgir, produzindo discursos diferentes dos majoritários. Nesse sentido, a literatura pós-colonial é extremamente importante ao permitir àqueles que foram silenciados reclamarem suas vozes, ao mesmo tempo em que recontam suas próprias histórias em suas próprias palavras. Essa resistência por meio da língua e esse (re)clamar da sua própria história podem ser observados em I, Tituba, um romance no qual a personagem principal – uma mulher negra de Barbados, vendida como escrava e parte dos julgamentos de bruxaria em Salem, EUA – tem a oportunidade de contar a história de sua vida e o papel que desempenhou em tais eventos a partir de sua própria perspectiva e reflexões, séculos depois de sua morte. Obviamente, isso é feito por intermédio da escrita e das palavras da autora, Maryse Condé, que cria uma personagem ficcional que ecoa as palavras da autora (uma característica do discurso que será explorada adiante neste artigo) – disso não há dúvidas –, mas é preciso reconhecer a importância de ter uma personagem secundária da sociedade da época se apossar •14

da oportunidade de vir à frente como principal e narradora e de trazer um olhar e um discurso diferentes sobre o desenrolar dos acontecimentos. Tituba reflete sobre seu papel na história em diferentes ocasiões ao longo de sua narrativa: I had already regretted having played only a minor role in the whole affair and having had a fate that no one could remember. “Tituba, a slave originating from the West Indies and probably practicing ‘hoodoo.’” A few lines in the many volumes written on the Salem witch trials. Why was I going to be ignored? This question too had crossed my mind. Is it because nobody cares about a Negress and her trials and tribulations? Is that why? I can look for my story among those of the witches of Salem, but it isn’t there. […] But not a word about me. (CONDÉ, 1992, p. 149-150). “And what about me, is there a song for me? A song for Tituba?” He pretended to listen hard, then said: “No, there isn’t!” (CONDÉ, 1992, p. 153). And that is the story of my life. Such a bitter, bitter story. My real story starts where this one leaves off and it has no end. Christopher was wrong or probably he wanted to hurt me – there is a song about Tituba! (CONDÉ, 1992, p. 175).

Em relação à questão do silêncio e das palavras, em se tratando das mulheres em geral, fica claro que elas têm tido suas histórias contadas por outros através dos séculos, sendo vistas como um grupo uniforme (as mulheres) e, dessa forma, sendo duplamente silenciadas – tendo negado o di-

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reito às suas próprias vozes e tendo apagadas as diferenças e particularidades que constituem os muitos grupos distintos entre si aos quais poderíamos fazer referência ao tentar categorizá-las. O que podemos perceber, especialmente ao lidar com literatura pós-colonial (que é o caso deste artigo), é que mais e mais autoras provenientes de diversos espaços minoritários estão reclamando seu espaço discursivo por meio da escrita. Cada uma em seu estilo pessoal, elas contam estórias que permitem que suas personagens femininas tenham uma voz e possam dizer coisas que não poderiam ser ditas em outro contexto. E acreditamos que esse é um passo importante para trazer à tona discussões que são desconfortáveis para muitos, mas que precisam ser debatidas. No presente artigo, focaremos a questão de como narradoras podem recorrer à língua para reconstruir sujeitos previamente silenciados em sujeitos discursivos, tendo a literatura como meio produtivo para alcançar tal objetivo. Para isso, traremos para a discussão conceitos vindos da Análise do Discurso Francesa (AD), de acordo com Michel Pêcheux, assim como conceitos vindos dos Estudos Pós-Coloniais. Os três romances mencionados acima irão prover exemplos para ilustrar tais conceitos. Um objetivo secundário é tentar mostrar um terreno comum entre a AD e estudos literários póscoloniais quanto ao reconhecimento da importância de alguém contar sua própria história, e propor uma reflexão sobre como não deveríamos manter tópicos relevantes para a construção da autoimagem do indivíduo, como os discursos majoritários o fazem. Para começar, apresentamos um conceito muito importante e talvez fundamental para entender a teoria da AD: discurso, o objeto de seus estudos. Discurso é entendido como efeito de produção de sentidos entre interlocutores – como esses sentidos são produzidos e como circulam na sociedade, como o discurso é posto em relação às suas condições de produção e em relação a outros discursos com os quais ele concorda, discorda ou apaga. O discurso é materializado em textos, e, dessa forma,

a língua é o meio pelo qual diferentes efeitos de sentido são produzidos. A língua, como era entendida por Ferdinand de Saussure (considerado o pai da Linguística Moderna), é um sistema formal completo em si mesmo, composto de estruturas que se perpetuam através dos tempos e de regularidades que podem ser observadas, descritas e analisadas. O que é variável, individual e histórico não faria parte da língua, mas da fala, que não poderia ser analisada de acordo com os esquemas linguísticos saussurianos, pois, assim, seria colocada de lado. A AD propõe uma nova maneira de ler o estruturalismo saussuriano, considerando que a língua é relativamente autônoma (e não completamente, como Saussure a entendia) e que há uma relação entre a língua e seu exterior, entre o que é social e o que é histórico. Além de reler o estruturalismo, a AD traz uma nova maneira de ler conceitos vindos de outros campos do conhecimento – da psicanálise, o conceito de sujeito, e do Marxismo, os conceitos de condições de produção, de relações de poder e de força. A AD vai se posicionar entre esses campos de acordo com as perguntas que levanta e tenta responder, considerando que esses campos não possuem fronteiras delimitadas, mas que há deslocamentos entre eles, e que eles se relacionam na constituição do dizer. Diferentemente da sua materialização linguística – o texto –, o discurso não possui um início, um meio, ou um fim. Isso significa que ele não é nem discursivamente homogêneo nem uníssono. É, na verdade, atravessado por muitos outros discursos, e seus efeitos de sentido não estão postos a priori. Nesse sentido, palavras, expressões e proposições não vêm com um sentido já-posto atrelado a elas: a mesma palavra pode produzir um efeito diferente de acordo com quem a enuncia, de que posição discursiva esse sujeito fala, e em que formação discursiva (o que pode e o que deve ser dito em um dado contexto) o sujeito se encontra quando da enunciação. O romance I, Tituba fornece um bom número de exemplos para entender o conceito de discurso.

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Se tomarmos a palavra “witch” (bruxa), por exemplo, podemos observar, ao longo da narrativa, que, de acordo com quem enuncia tal palavra, ela carrega um sentido diferente e se relaciona com diferentes conjuntos de discursos que, por sua vez, irão produzir cadeias diferentes de formulações. Tituba também reflete sobre essa questão, assim como faz em relação ao seu significado, sua parte na história, como apresentado anteriormente. Quando inquirida por Christopher, um líder quilombola, se ela pode torná-lo invencível por meio de seus poderes de feiticeira, ela responde: “Everyone gives that word a different meaning. Everyone believes he can fashion a witch to his way of thinking so that she will satisfy his ambitions, dreams, and desires…” (CONDÉ, 1992, p. 146). Tituba aprendeu com a vida que o que ela entendia pelo termo “bruxa” era muitas vezes totalmente diferente do que o que aqueles ao seu redor entendiam, algo que lhe trazia grande angústia, ainda mais por seu papel naquela sociedade (uma escrava negra, na base da hierarquia social e, assim, sujeita a ser acusada como responsável por toda e qualquer coisa que desse errado). Da maneira como ela entendia seu papel no universo, uma bruxa era alguém que trazia cura e conforto para os outros, e não alguém que fazia o mal. Em mais de uma ocasião na narrativa, ela reflete sobre isso:

He was joking, but it made me think. What is a witch? I noticed that when he said the word, it was marked with disapproval. Why should that be? Why? Isn’t the ability to communicate with the invisible word, to keep constant links with the dead, to care for others and heal, a superior gift of nature that inspires respect, admiration, and gratitude? Consequently, shouldn’t the witch (if that’s what the person who has this gift is to be called) be cherished and revered rather than feared?

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(CONDÉ, 1992, p. 17).

Outro conceito trabalhado na Análise do Discurso Francesa é o de ideologia. Ideologia é entendida, nessa teoria, como um modo de produzir sentidos hegemônicos e, junto com o inconsciente, transforma um indivíduo (um ser empírico) em um sujeito por meio da língua (o assujeitamento), e isso acontece de tal forma que o sujeito se vê como origem de seu discurso (o chamado “esquecimento nº 1”). Mais ainda, ele tem a ilusão de que há uma correspondência direta entre o que ele diz e o que quer dizer, que há “uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo, de tal modo que pensamos que o que dizemos só pode ser dito com aquelas palavras e não outras, que só pode ser assim” (ORLANDI, 2013, p. 35). Essa impressão da realidade do pensamento (o chamado “esquecimento nº 2”) não permite ao sujeito se dar conta de que ao enunciar, ele se encontra inserido em determinada formação discursiva que o domina, que é a matriz da produção de sentidos possíveis para seu enunciado. O segundo romance a ser mencionado, The Buddha in the Attic, de Julie Otsuka, serve como um manual, ilustrando a ideologia em volta do papel da mulher, aqui em uma sociedade japonesa. Ele nos apresenta diversos exemplos de como os discursos circulam no tempo e espaço reforçando posições sociais e discursivas, como uma forma de manter o status quo e a ilusão de transparência de que as coisas são de certa forma porque sempre foram assim:

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We knew how to serve tea and arrange flowers and sit quietly on our flat wide feet for hours, saying absolutely nothing of substance at all. A girl must blend into a room: she must be present without appearing to exist. (OTSUKA, 2012, p. 39, grifo da autora).


Don’t ask him where he’s been or what time he’ll be coming home and make sure he is happy in bed. (OTSUKA, 2012, p. 39, grifo da autora). Some of us preferred our daughters, who were gentle and good, and some of us, like our mothers before us, preferred our sons. […] Because we knew that our daughters would leave us the moment they married, but our sons would provide for us in our old age. (OTSUKA, 2012, p. 63).

Um terceiro conceito a ser mencionado é o de memória discursiva. Ele dialoga com a noção de interdiscurso, na qual todo discurso é constituído de outros enunciados previamente já-ditos que são esquecidos quando da enunciação e que “disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada” (ORLANDI, 2013, p. 31). De acordo com Brandão, “é a memória discursiva que torna possível a toda formação discursiva fazer circular formulações anteriores, já enunciadas” (2013, p. 95). Dessa forma, ela traz historicidade à análise do corpus, contribuindo para uma multiplicidade de sentidos e se distanciando da memória institucional, ou arquivo, a qual é completa em si mesma e datada, apagando qualquer outro sentido possível, causando, assim, um efeito de completude e se apresentando como verdade absoluta e prescritiva. É muito interessante notar que nos três romances selecionados encontramos exemplos dessa memória discursiva que dialoga não com discursos enunciados no momento histórico em que os personagens (supostamente) viveram, mas com discursos previamente enunciados quando da escrita da autora. Nesse sentido, temos um exemplo claro do que Bakhtin (2006) descreveu como fluxo discursivo: para cada enunciado produzido, há algo que veio antes e algo que virá depois, e

todos dialogam entre si. A literatura nos permite ir além das fronteiras do tempo, de tal forma que o passado, o presente e o futuro estão relacionados e influenciam uns aos outros na produção do discurso. É, então, outra forma de dar voz àqueles que foram silenciados no passado, usando as palavras de quem veio posteriormente para contar a história dos silenciados, além de mostrar como a história e os discursos se repetem, como tudo está interligado. Assim, mesmo quando não nos permitem falar, há muitas vozes em nós e ao nosso redor:

I was the last to be taken to the gallows. All around me strange trees were bristling with strange fruit. (CONDÉ, 1992, p. 172, grifo nosso). And what was to stop one of us from walking into a crowded marketplace with a stick of dynamite tied to our waist? Nothing. (OTSUKA, 2012, p. 86, grifo da autora). Because we were stranded together, and because I stuttered, we read. There is no refuge so private, no asylum more sane. There is no facility of voices captured elsewhere so entire and so marvelous. My tongue was lumpish and fixed, but in reading, silent reading, there was a release, a flight, a wheeling off into the blue spaces of exclamatory experience, diffuse and improbable, gloriously homeless. All that was solid melted into air, all that was air reshaped, and gained plausibility. (JONES, 2007, p. 43, grifo nosso).

Na primeira citação, somos imediatamente levados à canção Strange Fruit, imortalizada na voz de Billie Holiday, que também fala do enforcamen-

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to de negros, durante o linchamento de afro-americanos na década de 1930: “Black bodies swinging in the southern breeze/ Strange fruit hanging from the poplar trees”. Na segunda citação, somos levados aos discursos que circulam sobre uma nacionalidade específica ou um grupo específico sempre que uma guerra ou um atentado terrorista acontece. É só trocar o cenário da citação de Segunda Guerra Mundial e os japoneses pelo 11 de setembro e os povos do Oriente Médio (vistos como um grupo único: muçulmanos/árabes). Por fim, a terceira citação aponta para outros dois enunciados: o título de um livro de Marshall Berman, publicado em 1982 (All that is solid melts into air), e uma das falas de Macbeth, na peça homônima escrita por Shakespeare em 1606 (“Into the air; and what seem’d corporal melted/ As breath into the wind” – Ato I, cena III).

As this which now I draw.

Like the iron gate dissolving at the opening to Rebecca, some mind-forged impediment to memory fell away. (JONES, 2007, p. 204, grifo do autor).

Da explicação de alguns conceitos da Análise do Discurso Francesa, e nos voltando para algumas das discussões trazidas pelos estudos pós-coloniais, podemos perceber que há um terreno comum: ambos nos apresentam a ideia de novas formas de leitura, não somente de textos, mas da sociedade, da história, de nós mesmos. A leitura pós-colonial é definida como

Os conceitos de memória discursiva e interdiscurso trazem para os romances a presença de muitas vozes que ou complementam o que está sendo dito, ou trazem a voz de alguém que tem direito à voz de se colocar no lugar daqueles que não podem (ou são proibidos de) falar naquele momento. O romance Sorry ilustra isso diversas vezes, já que Perdita, a personagem principal, e sua mãe Stella recorrem às palavras de Shakespeare para preencher o que elas não podem ou não sabem como expressar. Por exemplo, em uma de suas sessões de terapia (para curar sua gagueira adquirida depois de um trauma), Perdita acessa as memórias bloqueadas do dia fatídico da morte de seu pai enquanto recita Macbeth:

[uma] forma de ler e reler textos tanto de culturas metropolitanas quanto coloniais de forma a chamar a atenção deliberada para os efeitos profundos e inescapáveis da colonização na produção literária; nos relatos antropológicos; nos registros históricos; na escrita administrativa e científica. É uma forma de leitura desconstrutiva [...] que demonstra até que ponto o texto contradiz seus pressupostos subjacentes [...] e revela (muitas vezes de forma involuntária) suas ideologias e processos colonialistas. (ASHCROFT, B.; GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H., 2007, p. 173)2.

Art thou not, fatal vision, sensible To feeling as to sight? Or art thou but A dagger of the mind, a false creation, Proceeding from the heat-oppressed brain? I see thee yet, in form as palpable

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2 No original: “A way of reading and rereading texts of both metropolitan and colonial cultures to draw deliberate attention to the profound and inescapable effects of colonization on literary production; anthropological accounts; historical records; administrative and scientific writing. It is a form of deconstructive reading […] which demonstrates the extent to which the text contradicts its underlying assumptions […] and reveals its (often unwitting) colonialist ideologies and processes.”

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Eles também estão preocupados em problematizar o conceito de sujeito, da construção da identidade – uma questão (da representação do indivíduo) que sempre foi importante na Literatura. Uma afirmação recorrente nos estudos pós-coloniais é de que a identidade não é uma noção fixa e dada, uma ideia essencialista que fixa um “verdadeiro eu” nos indivíduos, que não tem outra opção a não ser se conformar com essa essência (e, dessa forma, apagando e silenciando a possibilidade de produzir resistência e deslocar sentidos homogêneos). A identidade deveria ser trabalhada, ao contrário, como algo que é construído histórica e socialmente, em relação com o outro, sendo, então, possível e passível de ser (re)definida e discutida: “Pois as identidades culturais são sempre uma construção, não são nunca fixas ou essenciais e novas identidades podem se utilizar de novos repertórios” (HALL, 1996, p. 70)3. A Análise do Discurso concorda com tal posicionamento, considerando o sujeito não como um produto (completo, pronto e centrado em si mesmo), mas como um processo (descentrado, cindido), o que leva a refletir sobre os modos de produzir esse sujeito. É importante ressaltar aqui algo previamente mencionado: que o conceito de sujeito na AD não corresponde ao conceito de indivíduo, já que esse último se refere a seres empíricos, e aquele, como explicado anteriormente, às diversas possibilidades de construção de posições de sujeito dentro do discurso. Após explicitar os conceitos-base para o desenvolvimento de nossa discussão, passamos para o ponto principal do artigo: o silêncio. Eni Orlandi, uma das teóricas mais importantes no Brasil no campo da Análise do Discurso Francesa, nos diz que há silêncio nas palavras, e isso significa que “elas são atravessadas de silêncio; elas produzem silêncio; o silêncio fala por elas; elas silenciam” (ORLANDI, 1997, p. 14). Ela então continua a discutir a importância do silêncio como constitutivo do discurso, uma parte fundadora do sentido. Esse não é nosso foco aqui, e sim tentar discutir o quão importante é apontar quando o silenciamento ocor3 No original: “For cultural identities are always a construction, are never fixed or essential and new identities could draw on new repertoires.”

re, como ocorre, e o que pode ser feito para ajudar alguém a reclamar seu direito de produzir sentidos por meio do discurso. Há diferentes formas de silenciar um sujeito, de limitar seus meios de produzir sentidos na cadeia dos discursos. Uma forma de fazer isso é recorrendo à censura: “‘Do not apologize’, they said to us. ‘Speak only English.’ ‘Suppress the urge to bow.’” (OTSUKA, 2012, p. 93), uma passagem que mostra como as mulheres japonesas eram duplamente (ou triplamente) silenciadas (visto que elas já eram silenciadas em sua cultura, como apresentado anteriormente quando da exemplificação de ideologia) depois do ataque a Pearl Harbor em 1942 e o sentimento geral de desconfiança e medo dos americanos em relação àqueles com características japonesas, vistos como traidores em potencial e como uma ameaça à segurança americana em casa. Outra forma é pelo deslocamento, quando um grupo é forçado a deixar sua terra natal devido a guerras, catástrofes, escravidão, trabalhos forçados, entre outras razões e possibilidades, de tal forma que a referência do grupo ao seu passado e a como sua identidade é construída fica perdida. Podemos observar isso na relação entre os filhos das “picture brides” que narram a história em The Buddha in the Attic e sua cultura de origem:

One by one all the old words we had taught them began to disappear from their heads. […] They forgot what to say at the altar to our dead ancestors, who watched over us night and day. […] They spent their days now living in the new language, whose twenty-six letters still eluded us even though we had been in America for years. […] Most of all, they were ashamed of us. (OTSUKA, 2012, p. 72-75).

Mais ainda, outra maneira de silenciar um sujeito é por meio da depreciação cultural, “a opres-

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são consciente e inconsciente da personalidade e da cultura indígena por um modelo racial ou cultural supostamente superior” (ASHCROFT, B.; GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H., 2002, p. 9)4. A passagem a seguir, na qual Tituba descreve como Mrs. Endicott, senhora de seu marido John Indian, a trata na presença de suas amigas brancas (o que não é muito diferente de como ela trata Tituba quando estão sozinhas) nos mostra essa depreciação cultural, já que um escravo é visto pela sociedade dominante como nada mais que um objeto, outra posse em suas terras:

They were talking about me and yet ignoring me. They were striking me off the map of human beings. I was a nonbeing, Invisible. More invisible than the unseen, who at least have powers that everyone fears. Tituba only existed insofar as these women let her exist. It was atrocious. Tituba became ugly, coarse, and inferior because they willed her so. (CONDÉ, 1992, p. 24).

Vale mencionar que, no caso de Tituba, ela de certa forma escolheu esse caminho de ser silenciada, ou de ser reduzida a nada, quando decidiu seguir o homem que amava, John Indian, e ser sua esposa. Antes disso, ela vivia fora dos domínios dos senhores de terra após a morte de seus pais, em uma parte distante de Barbados, livre para ir e vir como bem entendesse (ainda que seja discutível o quão livre ela realmente era, já que ela não interagia com o resto da sociedade enquanto vivendo sozinha em sua cabana). Ela mesma reflete sobre isso:

features, and carriage the good people of Bridgetown mocked were far freer that I was. For the slaves had not chosen their chains. They had not walked of their own accord toward a raging, awe-inspiring sea to give themselves up to the slave dealers and bend their backs to the branding iron. That is exactly what I had done. (CONDÉ, 1992, p. 25).

Levando tais exemplos em consideração, podemos estabelecer outras relações além da mencionada de silêncio e palavras: silenciar e ser silenciado(a). Esquecer e ser esquecido(a). Desaparecer e ser feito(a) desaparecer. Todas estão conectadas, e, de certa forma, um par de ideias gera outro. Isso pode ser visto em Sorry, no qual a pobre Perdita, depois de ter desenvolvido um caso sério de gagueira após a morte traumática de seu pai, percebe que à medida que ela fala menos e menos, devido às dificuldades em tentar articular uma fala clara, ela vai se tornando um não-ser, que não está realmente ali, se desfazendo no plano de fundo da realidade. Mesmo sendo uma criança, ela entende como as palavras nos inscrevem na história, como nós assumimos nossos papéis na sociedade por meio da fala, ou de acordo com a Análise do Discurso, como a língua nos transforma de indivíduos em sujeitos capazes de agir no mundo por intermédio do discurso:

The slaves who flocked off the ships in droves and whose gait, 4 No original: “the conscious and unconscious oppression of the indigenous personality and culture by a supposedly superior racial or cultural model.”

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Because of this affliction I spoke less and less. […] My mother despaired. […] She told me to pull myself together. But somehow, in language at least, I remained pulled apart. I had not until then thought myself so made up by words. I had not known how fundamentally a child might be recreated. (JONES, 2007,


p. 22, grifo nosso). Perhaps now, with her newly ruined speech, she would always be someone, a kind of object, whose face was grabbed, who was assumed to have nothing important to say. (JONES, 2007, p. 121, grifo nosso). Perdita realised that the speechless, the accursed, gradually vanish. She noticed with a kind of fear how frequently she was overlooked, how she was becoming dim and disregarded in the estimations of others. Less than a character in a book. Less than a fiction. (JONES, 2007, p. 158, grifo nosso).

A partir da leitura e discussão dos romances e exemplos apresentados, qual é, então, a importância de se posicionar contra o silenciamento, considerando que, como posto por Orlandi (1997), o silêncio é constitutivo da língua? Por que é importante fazer com que alguém seja ouvido? Como Boehmer (2005, p. 241) nos diz, “[obscuridades] e silêncios irão existir não importando quantas pesquisas sejam dedicadas à tarefa de tornar claro o que é sombrio, ou de dar voz ao que foi silenciado”5. Então por que a questão de falar e ser ouvido é tão presente em estudos e na literatura pós-colonial, assim como nos estudos do discurso? São perguntas que podem nos desencorajar se acreditamos que a dominação cultural é algo do qual não se pode escapar, que de um jeito ou de outro uma pessoa sempre estará sujeita a forças externas de poder que controlam e limitam a sua existência. Ainda que isso seja verdade, não deixa de ser importante criticar essas práticas, que têm sido prejudiciais a determinado grupo através dos tempos, expondo os feitos e erros de tais práticas e gerando uma reflexão sobre suas consequências. Fazer as diferenças, por 5 No original: “Obscurities and silences will exist no matter how much research is devoted to the task of making lucid what is dim, or of giving voice to what was stilled.”

mais vastas que sejam, serem reconhecidas, com o propósito de um dia serem respeitadas, não parece um objetivo insano e inalcançável. A citação abaixo pode trazer mais luz sobre as razões pelas quais o tema do silêncio e das palavras é tão importante:

Campos como os estudos das mulheres e os estudos pós-coloniais surgiram em parte como uma resposta à ausência ou indisponibilidade das perspectivas das mulheres, das minorias raciais, e das culturas ou comunidades marginalizadas em relatos históricos ou anais literários. Essa falta de representação encontra seu paralelo nas esferas política, econômica e legal. Os “outros” do discurso dominante não tem voz nem influência alguma em sua representação; eles são relegados a “serem falados” por aqueles que comandam a autoridade e os meios de dizer. (BAHRI, 2008, p. 204)6.

Uma última pergunta que se coloca é: “Pode a literatura mudar o mundo, ao propiciar um modo eficiente e duradouro das minorias se representarem e assim garantir seus direitos a ter uma voz na sociedade?”. Talvez não. Talvez seja uma tarefa muito grandiosa para qualquer arte, expressão social ou campo de conhecimento tentar, por si só, mudar a ordem das coisas, desconstruir e reconstruir as relações de poder nas sociedades. De todo modo, não é impossível imaginar que, nessa perspectiva de propiciar novos gestos de leitura, novas formas de lidar com o que foi dito e estabelecido, 6 No original: Fields such as women’s studies and postcolonial studies have arisen in part in response to the absence or unavailability of the perspectives of women, racial minorities, and marginalized cultures or communities in historical accounts or literary annals. This lack of representation is paralleled in the political, economic, and legal spheres. Those “other” to the dominant discourse have no voice or say in their portrayal; they are consigned to be “spoken for” by those who command the authority and means to speak.

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isso possa ser mais do que uma tentativa, mas CONDÉ, M. I, Tituba, Black Witch of Salem. Tradução uma maneira produtiva de ajudar alguém (o lei- de Richard Philcox. Charlottesville: University of tor, e também o escritor – por que não?) a revisitar Virginia Press, 1992. sua própria história, a entender e (re)escrever seu HALL, C. Histories, Empires and the Post-Colopassado e, assim, abrir um mundo de possibilidanial Moment. In: CHAMBERS, Iain; CURTI, Linda, des para seu futuro. Ao revisitar, recontar, reformu(Eds.). The Post-Colonial Question: Common Skies, lar o que foi mantido em silêncio, podemos trazer à Divided Horizons. London: Routledge, 1996. p. 65tona para discussão problemas que de outra forma 77. seriam mantidos escondidos. Concordamos com a citação de Boehmer (2005, p. 217): “A palavra escri- HOLIDAY, B. Strange Fruit. Disponível em: <http:// ta, como a zimbabuana Yvonne Vera exorta, abre www.metrolyrics.com/strange-fruit-lyrics-billieum terreno de uma expressão relativamente livre às -holiday.html>. Acesso em: 15 ago. 2015. mulheres, no qual tabus e segredos podem ser libertados”7. Voltando para as primeiras linhas deste JONES, G. Sorry. New York: Europa Editions, 2007. artigo, é uma questão, no fim das contas, de tentar e forçar esse silêncio opressor e sufocante a falar e KOGAWA, J. Obasan. Harmondsworth, Middlesex: deixar que as pessoas falem. Penguin,1981. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

ASHCROFT, B.; GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H. Post ______. Análise de Discurso – princípios & procedimencolonial studies: the key concepts. 2. ed. New York: tos. 11. ed. Campinas: Pontes, 2013. Routledge, 2007. p. 166-175. OTSUKA, J. The Buddha in the Attic. New York: An______. The Empire writes back: Theory and Practice chor Books, 2012. in Post-Colonial Literatures. 2. ed. New York: Routledge, 2002. p. 1-13. BAHRI, D. Feminism in/and postcolonialism. In: LAZARUS, Neil (Ed.). The Cambridge Companion to Postcolonial literary studies. Cambridge: CUP, 2008. p. 199-220. BAKHTIN, M. M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BOEHMER, E. Colonial and Postcolonial Literature: Migrant Metaphors. 2. ed. Oxford: OUP, 2005. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise do discurso. 3. ed. rev. Campinas: Editora da Unicamp, 2012. 7

No original: “The written word, as the Zimbabwean Yvonne Vera urges, opens a terrain of relatively free expression to women, into which taboos and secrets may be released.”

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POR UMA POÉTICA CABRALINA: UMA ANÁLISE CENTRADA NA LINGUAGEM DE “EDUCAÇÃO PELA PEDRA” E DE “UMA FACA SÓ LÂMINA” Danielle da Silva Leal (Graduação ― Uerj)*

RESUMO Este artigo teve como objetivo, à luz dos escritos de João Cabral de Melo Neto, poeta da 3ª geração do Modernismo, discorrer sobre um breve estudo feito a respeito da metalinguagem presente em sua obra. Inicia-se com apresentação do conteúdo específico, apresentando que trataremos da metalinguagem na obra deste autor, porém, destacando dois poemas: Educação pela pedra e Uma faca só lâmina, apontando uma ambientação dos poemas e o que procuramos destacar de cada um deles. Uma reflexão metalinguística e acerca das escolhas lexicais de João Cabral nesses poemas é trilhada ao longo deste artigo, assim como é estabelecida uma relação com os metapoemas.

Palavras-chave: Metalinguagem, Poesia cabralina, Modernismo.

INTRODUÇÃO1

O ponto de partida para a reflexão deste trabalho será um dos eixos principais da poesia de João Cabral de Melo Neto: a metalinguagem. Para tanto, cabe destacar que o poeta, João Cabral de Melo Neto, estreou como escritor em 1942, com o livro A pedra do sonoe daí por diante foi conquistando um grande espaço na literatura brasileira e posteriormente a mundial, devido a sua genialidade na arte de escrever. Dentre outras obras, destacam-se também: Psicologia da composição (1947); O cão sem plumas (1950); O rio (1954); Duas águas (1956); Quaderna (1960); Morte e Vida Severina (1966); A educação pela pedra (1966); A escola das facas (1979), dentre outras. No decorrer de sua vida, o escritor imprimiu seus traços únicos e peculiares, que acentuam em suas obras a objetividade do fazer poético, alinhada aos fatos do cotidiano, fazendo com que, desta forma, a realidade sobressaia sobre a subjetividade que é aliada ao lirismo. Para tal proeza que se

incumbe ao texto, assinala-se, a priori, a análise da poesia de João Cabral ao que se refere aos traços fortes de suas vertentes, a saber, de caráter participativo, a poesia de natureza metalinguística. Em síntese, trata-se da vertente que se volta para a metalinguagem, em que o primado poético é o próprio fazer do texto, assumindo a autêntica acepção do termo poiesis, que remete ao sentido de fazer. E, por outro lado, a outra vertente do autor volta-se para o Nordeste, ao apresentar em sua grande parte, os ensinamentos do cotidiano mesclados à poesia. Tendo como base essa ligação com o cotidiano, tentarei plasmar, ao longo destas linhas, um estudo que reitere a existência de traços do cotidiano, bem como da aguda capacidade linguística do poeta, em dois textos paradigmáticos de sua obra: Educação pela Pedra e Uma faca só lâmina, demarcando, com isso, a potência das linhas poéticas de João Cabral, que mais do que um poeta, foi, praticamente, pioneiro no dissolvimento da subjetividade na poesia brasileira.

* Bacharel em Letras – Português/Literaturas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – Campus Maracanã. E-mail: danielle.sleal@gmail.com.

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AMBIENTAÇÃO DOS POEMAS

PELOS CAMINHOS DA PEDRA

Educação pela pedra marcou positivamente a escrita de João Cabral de Melo Neto. A obra, que contém um poema homônimo, foi lançada em 1966 e enquadra em si uma abordagem acerca da própria operação do fazer poético, acentuando que um poema deve ser construído de modo que tenha a consistência de uma pedra, de forma “seca”, dura, sem abertura ao sentimentalismo, cabendo ao poeta a responsabilidade de lapidá-lo por meio de uma aguda escolha de palavras concretas, sendo a mais literal possível, em detrimento dos termos polissêmicos propícios às ambiguidades.

Na poesia de João Cabral é perceptível uma grande tendência a certo aspecto didático atribuído à pedra, que funciona, aqui, como método que nos traz uma forma de “educação” que aparece com veracidade na construção do poema, possuindo estrutura e linguagem que enaltecem este objeto. Além de demonstrar uma reflexão sobre o fazer da poesia no interior da própria poesia. Vale, neste momento, ressaltar que o poeta não gostava de músicas ou batidas rítmicas, sendo sempre aguçado a buscar somente as palavras e suas precisões de conteúdo.

Uma faca só lâmina (ou: serventia das ideias fixas), de 1955, por sua vez, centraliza-se em três objetos elementares (faca, relógio e bala) que são repetidos exaustivamente ao longo do poema a fim de estabelecer um paralelo entre eles e o fazer poético. Cada uma dessas palavras tem sua função na obra e se entrelaçam para a obtenção de uma pretensão maior. A todo o momento as conceituações dos três objetos em destaque são evidenciadas ao leitor. Para o encaminhamento dessa discussão, não se pode deixar de ressaltar, ainda que em breves linhas, a interessante postulação de Luiz Costa Lima acerca da poesia de João Cabral de Melo Neto. O conceito de antilira é a pedra angular da poesia cabralina, visto que se constrói a partir de certa peculiaridade do poeta: a poesia de Cabral rompe com as amarras da subjetividade exacerbada, a propósito de se concentrar nas malhas estruturais do texto. Na esteira do poema em foco, acentua-se que a pedra e a faca; a bala e o relógio; são destituídos de suas significações denotativas. É atribuído a eles um caráter conotativo, metafórico, agregando-lhes um valor de ensino, corte, ruptura, quebra dos sonhos, corte do exagero de linguagem e do deslocamento metonímico provocado pela imagem do relógio com seu “tic-tac” sendo comparado a um coração, preciso e pulsante.

Nestes escritos, temos uma pedra que não nos apresenta quaisquer tipos de qualidades ou virtudes; é dura e fria; pedra esta que, nas poesias de Cabral, sai da posição de simples objeto, passando a assumir o papel de ser essencial no caminho da escrita da poesia metalinguística de João Cabral. Observa-se que a metalinguagem deste poema também pode ser analisada pela escolha das palavras que o compõem, como por exemplo, os termos “moral”e “economia”, que, quando em contato com o restante dos vocábulos, nos trazem a lume uma linguagem do ensino que, aqui, se converte ao âmbito da poesia através da pedra e de suas particularidades anatômicas:

A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. (MELO NETO, 1997)

Ainda permeando pelos ensinamentos que •24

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esta pedra de João Cabral nos apresenta, podemos analisar nos escritos de Antônio Carlos Secchin (2014, p.242), autor reconhecido na fortuna critica cabralina, que “A educação pela pedra implica a aprendizagem de uma ‘desaprendizagem’ do ‘poético’ (trata-se de uma ‘antilira’), balizada pelo signo-pedra que a condensa.”. Nesse trecho, vemos a posição metalinguística presente nesta pedra de João Cabral, que não possui intenção de trazer sentimentalismo e/ou emoção, mas sim a demonstrar densidade dos objetos, legibilidade e que são palpáveis ao aprendizado do fazer poético.

é a ideia da concisão, da limpeza e dessa forma, por ser de certo modo inovador na linguagem e na sua disposição no poema, chocar o leitor, provocar um estranhamento causado não pela economia da linguagem, mas pelo trabalho feito em cima do texto a fim de torná-lo enxuto e objetivo. Eis, tais traços nas linhas poéticas de Cabral:

Quando aquele que os sofre Trabalha com as palavras, São úteis o relógio, A bala e, mais, a faca...

MECANISMO DOS OBJETOS

... Pois somente essa faca

Os objetos citados possuem papel determinante não só na construção do texto, mas também no entendimento do poema. A bala, por exemplo,é naturalmente atribuída à noção de densidade, concentração; no poema não é diferente, o que diverge são as aplicações desses conceitos e significados. Por ser densa, há uma comparação implícita a capacidade que a linguagem tem de condensamento. Como se pode inferir nos seguintes versos:

Dará a tal operário Olhos mais frescos para O seu vocabulário

E somente essa faca E o exemplo de seu dente Lhe ensinará a obter De um material doente

Assim como uma bala Enterrada no corpo,

O que em todas as facas

Fazendo mais espesso

É a melhor qualidade:

Um dos lados do morto;

A agudeza feroz,

Assim como uma bala

Certa eletricidade,

Do chumbo mais pesado, No músculo de um homem

Mais a violência limpa

Pesando-o mais de um lado. (MELO NETO,1986:187)

Que elas têm, tão exatas,

A faca, objeto cortante, que fere e machuca. No referido poema, seu papel é de cortar palavras, de evitar o exagero da linguagem, o que prevalece

O gosto do deserto, O estilo das facas. (MELO NETO, 1986:196)

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Através desse objeto cortante, dá-se, explicitamente, ao analisar o trecho acima, o eixo temático que percorre o poema: o fazer poético. João Cabral coloca em foco o ato de fazer poesia, de se construir palavra por palavra um poema. Não apenas deixar o sentimento fluir e escrever, o que vai contra o poeta, já que João Cabral não acredita na subjetividade, na inspiração obtida pelo escritor para externar o que sente. O fazer poético é um trabalho em cima das palavras, de seu ordenamento e por meio da disposição que é feita ao longo da obra. Trata-se de um ponto de vista mais objetivo, de tratar a linguagem como objeto para se alcançar seu propósito e transmitir (ou não) alguma ideia. Em linhas gerais, trata-se de um processo que se utiliza a linguagem para explicar acerca de seu próprio funcionamento.

ce uma relação entre esses objetos e as suas conotações (bala comparada ao chumbo, faca relacionada à lâmina e boca e o relógio comparado ao coração) ao explicitar que: O relógio continua sendo o elemento menos forte da série, na medida em que se remete, por metáfora, exclusivamente ao mundo animado, sem apresentar a mesma consistência, mineral-metonímica, de chumbo e lâmina. Ainda: a bala se enfraquecia em contato com o músculo. Ora, o relógio é conotado exatamente por coração: traz em si a metáfora do que deve ser evitado pela bala. Por outro lado, acentua-se, entre esta e a faca, a solidariedade das respectivas representações: já unidas metonimicamente em chumbo/ lâmina, conterão desdobramentos metafóricos (dentes/boca) interligados por nova relação de contiguidade.

E o relógio, que ao marcar o tempo pelo som dos ponteiros, é comparado à batida do coração. Dessa forma, o relógio é o que torna a imagem viva, assim como o coração faz com o ser humano.

Mais cuidado porém Quando for um relógio Com o seu coração Aceso e espasmódico. É preciso cuidado Por que não se acompasse O pulso do relógio Com o pulso do sangue,

E seu cobre tão nítido Não confunda a passada

Além disso, sem a figura do relógio, as imagens não podem ser “projetadas” para o leitor. Assim sendo, ele tem a capacidade de manter o bom funcionamento da escrita, da linguagem, do poema, através dele o que foi e o que será construído pode ser visto como imagem, como um mecanismo vivo. Esses objetos, junto com o relógio, possuem uma relação metafórica que é cara à poesia cabralina, caracterizando os poemas da segunda vertente de João Cabral como metapoemas.Costa Lima (2011, p.47) nos mostra sobre essa comparação dos signos no poema com os sentidos, atribuindo-o a antilira característica de João Cabral:

Com o sangue que bate Já sem morder mais nada. (MELO NETO,1986, p.190)

Antônio Carlos Secchin (2014, p.133) estabele•26

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Em uma “Uma faca só lâmina”, os signos funcionam como simuladores de sentido. No poema lírico por excelência, o sentido se quer sensível; aqui, ele busca


estabelecer-se por um entrelaçamento semanticamente aguçado. Antilira, poesia minoritária. A ausência de melodia no poema cabralino, a inexistência de efeitos sonoros, a quase inexistência de neologismo tem a mesma explicação. Ao mostrar sua intimidade, o poema recusa aceitar o que normalmente se considera razão da poeticidade.

Assim, Cabral nos apresenta um poema ímpar de sua trajetória, com todas as especificidades do poeta, com foco na não subjetividade e na elaboração, palavra por palavra de um poema metalinguístico. Com o auxílio de três objetos que se repetem ao longo do texto, Cabral vai construindo metáforas e alegorias que são comparáveis à própria vida, mas que também perpassam um sentido de sistematizar em sua obra o artifício de se produzir um poema.

tras travessias para o obstáculo: o caminho para a faca adensada em lâmina. Defrontar-se com a pedra e com a lâmina não é, certamente, abolir o espelho (nem cremos que isto seja possível), mas é alterar-lhe o ângulo prefixado pelo conforto da tradição lírica.

Nesse sentido é possível inferir que os caminhos da lâmina e da pedra ao longo do poema supracitado, são como uma forma de passagem diferente da que estava presente na escrita da época é comouma forma de busca por trilhar pelo conhecimento do fazer poético que tanto percorre a obra cabralina.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIMA, Luiz Costa. “A traição consequente ou a poesia de Cabral”. In: -. Lira e Antilira: Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.

CONCLUSÃO

A análise inferida aos poemas de João Cabral apresentou-nos um modelo de poema singular da nossa literatura brasileira. Em Uma faca só lâmina e Educação pela pedra, Cabral faz aguçar os sentidos do leitor e desponta em uma nova vertente: poemas que são feitos para se explicar o trabalho árduo de se fazer poemas. Com toda a complexidade dos poemas apresentados, Cabral lança mão da antilira, revelando traços de objetividade e ao mesmo tempo de sensibilidade, mas sem os tons de melancolia e sentimentalismo exacerbados contidos na poesia lírica. Ao fazer a leitura de Antônio Carlos Secchin (2014, p.242), observa-se que:

___________. Escritos de véspera. Santa Catarina: Editora da UFSC, 2011. NETO, João Cabral de Melo. A educação pela pedra e depois. São Paulo: Nova Fronteira, 1997. _____________. Poesias completas: 1940-1965. 4ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio,1986. SECCHIN, Antônio Carlos. João Cabral: uma fala só lâmina. São Paulo: Cosa Naify, 2014.

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A conquista da pedra, em João Cabral, é solidária de tantas ou-

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VISÕES DA INFÂNCIA EM “O MUNDO”, DE JUAN JOSÉ MILLÁS Fabricio da Silva de Oliveira (Graduação ― UFRJ)

RESUMO Um dos relatos de infância mais frequentes na Espanha contemporânea consiste na história de crianças que viveram os primeiros anos das suas vidas durante o franquismo (1939-1975), e especialmente, no período que se seguiu a Guerra Civil (1936-1939). No seu romance El mundo (2007), o escritor Juan José Millás (1946), escreve uma história ficcionalizada na sua própria infância transcorrida na década de cinquenta. O mencionado romance incorpora elementos autobiográficos (Lejeune), apela à autoficção do narrador autor em primeira pessoa (Alberca, Ponzuelo Yvancos) e questiona permanentemente os limites entre o real e a ficção. O olhar infantil registra um mundo cinzento, em que habitam a família de Juan José (“Juanjo”), os vizinhos e os amigos do bairro. Por um lado, a pobreza caracteriza a vida material, por outro, os medos, a doença, a loucura e a droga fazem a história do romance.

Palavras-chave: Infância. Autobiografia. Autoficção

O romance O Mundo do escritor espanhol Juan José Millás (1946) foi publicado em 2007 e no mesmo ano contemplado com o prêmio Planeta. O escritor, considerado pela crítica como um dos maiores da literatura espanhola contemporânea, é um escritor de romances, novelas, crônicas e criador dos articuentos, um gênero novo, mescla entre o artigo e o conto.

composta por nove filhos, quase que miserável, vai morar em um casebre alugado, localizado num subúrbio da cidade denominado Prosperidad. Porém, prosperidade era aquilo que a família de Juanjo não possuía. A família Millás era considerada a mais pobre da rua Canillas.

tica. Desta forma, confessa o escritor que ao começar a se estudar, lembrou-se de um momento de sua infância junto de seu pai que o impediu de fazer a reportagem, mas o fez escrever um romance: “Não fui capaz de fazer a reportagem, acabava de ser atropelado por um romance” (MILLÁS, 2009).

tada pelo próprio autor como um romance, portanto como uma ficção. O jogo com o nome do autor é uma das características do romance moderno e da literatura hipermoderna. Esta coincidência entre o Juanjo de O Mundo e o autor Juan José Millás levanos a pensar no conceito de auto ficção trabalhado por Manuel Albercae Pozuelo Yvancos.

A narrativa de Millás é uma visão retrospectiva que faz o autor de sua infância e adolescência O Mundo, segundo o próprio autor, nasceu de vivida na década de 50, período do primeiro franuma reportagem solicitada pelo jornal espanhol El quismo. No entanto, não podemos afirmar que O País para ser publicada como uma matéria jornalís- Mundo é uma autobiografia já que a obra é apresen-

Desta maneira, no romance, o personagem protagonista, Juanjo, é nomeado pelo nome do escritor e como este, nasceu em 1946 na cidade de Valência. Quando tinha seis anos de idade, sua família emigra da cidade a Madri em busca de melhores condições de vida. Na cidade de Madri, a família, •28

Nesse contexto, vale destacar que já se tornou comum na literatura espanhola contemporânea, o surgimento de romances autobiográficos e/ou memorialistas que possuem como contexto históricosocial o período da guerra civil espanhola e da pós-

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guerra. Isto porque este período foi marcado pela repressão, pelo medo e silenciamento. Assim, temos como exemplos de relatos que se valeram deste jogo auto ficcional: El cuarto de atrás y Retahílas de Carmen Matín Gaite, La lengua de las mariposas de Manuel Rivas e Autobiografía del general Franco de Manuel Vázquez Montalbán. Os dois primeiros romances assim como O Mundo também trabalham com a visão da infância. Em O Mundo, romance motivador desta pesquisa, a visão do menino Juanjo registra não só o privado, ou seja, aquilo que acontece dentro de sua casa, junto de sua família e consigo mesmo, mas também o público, a vida dos vizinhos e amigos, os momentos na escola, na igreja, isto é, registra a sociedade onde vive e aí, em consequência, faz-se alusões a ditadura franquista. Era de se esperar que Juanjo revelasse ao público, em suas páginas, uma visão ingênua da realidade, uma infância inocente e feliz que atendesse ao estereótipo de infância. Porém, não é isso o que acontece, em O Mundo, através das memórias do Juanjo adulto nota-se que a visão do menino Juanjo registra um mundo de monstros e alucinações. Assim, chegamos à conclusão de que Juanjo é um ser em crise com a realidade em que vive, não só com a realidade exterior marcada pela cruel pobreza enfrentada pela família e pelos castigos físicos sofridos na escola, mas também com a realidade interior, realidade da sua própria existência, dele como um ser num mundo que lhe foi imposto.

existência é precária e a realidade é estéril e mutável. Com isso, para fugir desta existência e realidade precárias, o menino Juanjo recorre a elementos alucinógenos como as drogas (o éter e o cigarro), a doença (segundo o personagem, a febre é o elemento mais alucinógeno que existe) e também a literatura. Diante disso, Juanjo vê o mundo e o interpreta através de suas alucinações. A visão que tem Juanjo das pessoas que vivem ao seu redor, familiares e amigos, não é uma visão realista, mas sim deformada pela alucinação. A mãe de Juanjo, personagem mais próximo do menino e por quem mais sente amor, é também uma personagem que o faz sentir o medo, o pavor. As crises de histeria que a personagem manifesta levam o menino ao pânico. O seu único e melhor amigo, Vitaminas, é um menino portador de uma doença irreversível que cedo o levaria à morte. Em consequência, não podia ir à escola e era rejeitado pelos outros meninos da rua. Vitaminas é um personagem marcado pelo mal, pela rejeição, pela invisibilidade e é com ele que Juanjo se identifica e compartilha momentos de sua infância. A figura do pai de Vitaminas, Mateo, é outra personagem vista pelo menino através de sua alucinação. De acordo com Vitaminas, seu pai não era apenas o dono da venda de secos e molhados, mas também um agente da Interpol disfarçado, isto é, levava uma vida dupla. Logo, Juanjo desejava ser como Mateo, também ter uma vida dupla.

Além do mais, para os meninos, Juanjo e VitaNessas circunstâncias, se muitos meninos no minas, a morte não era o fim da vida, mas a mudanperíodo da infância sonham em ser invisíveis, em ça para o bairro vizinho, o Bairro dos Mortos. Nessa Juanjo a invisibilidade é algo comum. Juanjo não perspectiva, a morte era uma forma de fugir da reaquer ser invisível, ele se sente invisível. Além do lidade tanto que, para não ir mais à escola, o protamais, percebe-se no protagonista um problema de gonista tentou se matar esperando ser infectado por auto aceitação, o menino não se vê como um mem- tétano quando feriu o pé no prego que sustentava o bro da família Millás: “Então pensava em mim mes- seu velho sapato. mo sem nascer, levando uma existência fantasmaA partir destas observações, nota-se no rogórica dentro da família. ” (MILLÁS, 2009:173). mance a presença do monstro diante deste mal-esComo afirma o crítico literário Ayuso, o ques- tar que circunda a infância adolescência de Juanjo. tionamento da realidade é uma constante na narra- Vale destacar que o mal-estar, o sentimento de antiva de Millás. Em Millás, segundo o estudioso, a gustia, de medo e a cruel pobreza vivida pela faCoruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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mília Millás, não se restringe apenas a história do romance, mas eram compartilhados pela população espanhola da pós-guerra civil. O mal-estar na cultura espanhola proveniente dos males da guerra e da pós-guerra persiste até hoje. O monstro aparece no romance também através da doença, outro mal que circunda a vida do protagonista. Isto nos leva a pensar que o mundo de Juanjo é um mundo doente. Nota-se também no romance uma certa tradição barroca através do pessimismo do protagonista para com a vida e a sua relação com a morte. Em um país considerado predominantemente católico, onde a religião cristã possui forte influência sobre a população, percebe-se um ofuscamento da mesma no romance. Deus em O Mundo está distante, como se não existisse, o que é típico do espírito moderno.

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A CONSTRUÇÃO DO SUJEITO, ENTRE A REALIDADE E A FICÇÃO, NAS CRÔNICAS DE CUERPO Y PRÓTESIS, DE JUAN JOSÉ MILLÁS Fabricio da Silva de Oliveira (Graduação – UFRJ)

RESUMO Nas crônicas de Cuerpo y Prótesis (2009) de Juan José Millás (1946), assume a enunciação um cronista situado na fronteira entre literatura e jornalismo, entre o fictício e o acontecimento real. Podemos pensar que “cuerpo” e “prótesis” são metáforas da relação do autor com a escrita tecnológica do eu (Foucault), já que confessa Millás, senti-la, às vezes, como uma prótese sua e outras como ele próprio sendo uma prolongação artificial dela. No último capítulo do livro, “Extremidades”, debruça-se este cronista sobre assuntos da ciência e como uma espécie de “Divulgador Científico”, realiza uma “sobreescrita” com o objetivo de trazer ao conhecimento da massa, temas, muitas vezes, restritos a certos grupos, por meio de uma linguagem subjetiva e mais simples.

Palavras-chave: Construção do sujeito - Corpo e Prótese - Sobreescrita Juan José Millás ou Juanjo, como assim é chamado pelos mais íntimos, é um escritor e cronista espanhol. Considerado pela crítica como um dos maiores da literatura espanhola contemporânea, Millás nasceu em Valência, no ano de 1946. Oriundo de uma família pobre composta por nove filhos, já escreveu no decorrer de sua vida 18 novelas, 12 livros de crônicas e 3 relatos, tendo a sua obra narrativa traduzida em 23 idiomas.

esses textos se caracterizam por algo que é muito típico da crônica, a hibridez de gêneros discursivos, sejam literários, sejam de outros domínios, como a autoficção, a notícia e a reportagem. Diante disto, escolhemos como corpus para a investigação do sujeito enunciativo construído por Millás em suas crônicas o livro Cuerpo y Prótesis publicado no ano 2000. No prólogo do livro comenta o escritor que as crônicas reunidas nesta obra já haviam sido publicadas na coluna que possui no jornal El país, nos jornais do grupo Prensa Ibérica e na revista Fano y El Paseante. Além disso, escreve também que os textos estão organizados como um corpo, inclusive, o título da obra coincide com a última crônica que segundo Millás é a que mais gosta e a que serve para sinalizar sua relação com a escrita, uma relação de dependência, de necessidade e também completude “ (...) às vezes a sinto como uma prótese minha e a vezes como um corpo do qual seria eu não mais que uma prolongação artificial, uma mão mecânica (...)” (MILLÁS, 2000: 18).

Como cronista, tem Juan José Millás uma importante coluna no jornal mais influente da Espanha, El País. Neste meio, Millás publica os seus “articuentos”, que apesar do escritor nomeá-los desta forma, consideramos os textos, neste trabalho, como crônicas, pois são textos curtos publicados em jornais que tratam dos diversos temas da sociedade e dos acontecimentos diários, por meio de uma escrita subjetiva, própria de Millás, e nascem da mescla entre o real e o ficcional. Inclusive, este próprio nome que dá o autor aos seus textos, “articuentos”, nasce desta mescla entre realidade e ficção, jornalismo e literatura já que em “arti” (referência ao gênero arAs crônicas do livro de Millás estão tigo) está a função comentar, informar a realidade, e divididas em quatro partes, ou seja, em quatro em “cuento”, está o ficcional, o inventivo. Ademais, capítulos: Parte I Agujeros, Parte II La espécie, Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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Parte III Construcciones, Parte IV Temperamentos analógicos y Parte V Extremidades. Nestes textos, realiza o cronista uma sobrescrita, quase todos em primeira pessoa, das notícias publicadas nos jornais, isto é dos assuntos da sociedade contemporânea e a partir de uma atitude mais ética e estética escreve também sobre os variados temas da sociedade: históricos, políticos, filosóficos, literários, científicos etc. Isto é, trata tanto de questões atuais como de questões (próteses) que acompanham o homem desde as antigas civilizações e que seguem, até hoje, presentes na atualidade, no mundo pós-moderno. Nessa perspectiva, é importante destacar que não trabalhamos todo o livro, mas, somente seis crônicas do capítulo V “Extremidades”, são elas: “Verano 6”, “Primer amor”, “Un ruido”, “La mano tonta” “¿De dónde? ” e “Cuerpo y prótesis”. A partir de nossas análises, notamos que nestas crônicas, constrói Millás um sujeito ficcionalizado em sua própria figura, isto é, autoficcionalizado, segundo estudos de Manuel Alberca e Ponzuelo Ivancos. Na maioria dos textos, um “eu” assume a enunciação e como uma espécie de divulgador científico, crítico da sociedade comenta sobre os problemas atuais, sobre o fenômeno do pós-humano (Robert Pepperell). Além disso, em alguns aparecem dados autobiográficos do escritor. Inclusive, também em outras crônicas, não só nas selecionadas, parte Millás, como sinaliza Suarez, de um acontecimento familiar ou de algo relacionado à vida do narrador para se centrar numa situação que afeta ao gênero humano. A primeira pessoa é assumida já no prólogo do livro, espaço no qual o escritor reflete sobre a criação da obra e sua relação com a escrita.

corpo e homem, no mundo pós-moderno, a dualidade, o corpo como algo meu, mas que não sou eu. Em “Primer amor” comenta Millás também sobre o corpo, fazendo alusão, agora, a El Mundo, romance autobiográfico escrito em 2007. Nesta crônica, conta o narrador-protagonista que quando menino o seu primeiro amor não foi a sua primeira namorada, mas o braço de madeira que ela carregava no corpo, a sua prótese. Nesta volta ao passado, o narrador realiza uma espécie de profecia, uma anunciação da relação de apego, desejo, da inclinação do homem para a prótese, para máquina, para os avanços científicos-tecnológicos, no futuro.

Já as crônicas “Un ruido”, “La mano tonta” e “¿De dónde? ” tratam de um assunto comum: o transplante da mão de um cadáver em um senhor manco. No início da primeira crônica, “Un ruido”, expressa o narrador o seu repúdio, o sentimento de assombro perante este transplante que para ele não se trata de um avanço médico, mas de um barulho, de uma onomatopeia, de algo que não pode ser real e nas outras crônicas segue criticando de maneira irónica e burlesca os avanços da mão artificial transplantada. É interessante observar o novo discurso do narrador nestes textos, pois se em “Primer amor” a prótese era objeto amado, adorado, aqui é causadora de espanto, medo e repúdio. A última crônica do livro, “Cuerpo y prótesis” que inspirou Juan José Millás a nomear o livro desta forma, é uma reflexão em seis páginas sobre o corpo. Defendendo com muitos argumentos a sua visão sobre o mesmo, para o narrador, o corpo não passa apenas de uma ferramenta, de um objeto que nós, seres humanos, realidades concretas, utilizamos para nos locomover e fazer atividades. Além de um objeto, o corpo é Na crônica “Verano 6” conta o narrador-protatambém para o cronista uma representação do real, gonista sobre o sonho que teve após tirar uma cesta. segundo o narrador ele é limitado, impuro, estraNeste sonho diz que aconteceu uma catástrofe no nho e nos impede de constatar toda a realidade, esmundo onde apenas ele, desfigurado, incorpóreo e tando de acordo, assim, Millás, com as discussões a sua perna existiam. Neste texto, conta o narrador sobre o pós-humano traçadas por David Le Breton a felicidade de sua perna por estar livre, por não ser e Robert Pepperell. mais controlada e poder ter vida própria enquanto ele sentia que algo faltava, até pedi-la permissão Nesse contexto, analisamos especialmente para instalar-se, verbo usado pelo narrador, em sua a presença do monstro na sensação de mal-estar, perna outra vez. Aqui percebemos a concepção de no sentimento de medo e espanto representada no •32

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discurso do narrador causado pelos incontroláveis avanços científicos-tecnológicos que vem modificando não só os corpos e os saberes, mas também as relações humanas. No entanto, é importante destacar que o que aterroriza é o que também, em outros momentos, ao narrador encanta, chamando atenção, assim, para o conflito em que o homem pósmoderno se encontra. A presença do monstro, do narrador que se encontra em conflito, dividido entre o assombro e o encantamento estão de acordo com a recriação da estética conceptista barroca encontrada na escrita de Millás. As crônicas escolhidas apresentam uma linguagem simples, fluente e pouca rebuscada, até porque se dirige ao público em geral, que apesar de distantes do conceptismo barroco espanhol compartilham os diversos recursos literários como a metáfora, a hipérbole, os contrastes, o grotesco, a ironia, o humor, o engenho e o desmembramento das partes. Podemos pensar que o barroco aparece também na concepção da criação do livro já que as palavras que compõem o título “cuerpo” y “prótesis” são metáforas da relação do autor com a escrita tecnológica do eu, já que confessa Millás senti-la, às vezes, como uma prótese sua e outras como ele próprio sendo uma prolongação artificial dela. Não se pode deixar de comentar também que corpo e prótese podem ser entendidos também como metáfora do corpo pós-moderno pois como sinaliza o narrador na frase final da penúltima crônica do livro: todos nós estamos um pouco transplantados, mas precisamos saber onde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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O RIO COMO SÍMBOLO DA METALINGUAGEM NA OBRA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO Francisco Felipe de Paula Neto (Graduação - Estácio de Sá)

RESUMO O presente trabalho tem por fim analisar a importância do rio para a construção da metalinguagem na obra de João Cabral de Melo Neto. Sendo um símbolo que perpassa toda a história da humanidade, o rio, na obra do autor, ganha uma nova dimensão, não desprovida de seus caracteres adquiridos ao longo da construção da cultura humana, mas revestida de um novo olhar que mantém um diálogo crítico com toda a tradição simbólica. O rio, que tem na realidade brasileira uma grande importância, mesmo em seus extensos litorais, corta de ponta a ponta a obra de João Cabral e lhe serve muitas vezes como metáfora para a construção de sua metalinguagem. Não pretendemos, aqui, percorrer todas as margens e afluentes deste tema nas poesias do autor, apenas tentaremos traçar os padrões que o citado símbolo apresenta nessas poesias e como ele interfere na construção da linguagem e da metalinguagem, e também como a metalinguagem ressignifica esse símbolo.

Palavras-chave: Metáfora. Metalinguagem. João Cabral. Rio.

mundo e do ser humano. Um dos pontos repetidamente discutidos pelo poeta é a imagem e simbologia do rio, bem como sua utilização na construção É notório que uma das características princi- poética e na compreensão do estar humano, e justapais do Modernismo é a sua insatisfação com os mente dessa intensa discussão o poeta faz surgir a modelos anteriores e preestabelecidos de poesia. novidade em sua obra. Dentre essas novidades mais Neste sentido, os artistas modernistas sempre tra- aparentes, podemos citar a metamorfização do rio, balharam em função da descoberta e da construção concedendo-lhe muitas vezes aparências e imagens de novas possibilidades formais para a literatura e grotescas mais ligadas à morte, em oposição às condemais artes. Embora a obra da geração de 45, in- cepções clássicas que mais comumente ligavam a clusive a de João Cabral, pareça mais sóbria que a imagem do rio à vida. No entanto, faz-se necessário das gerações anteriores, mormente se comparada ressaltar que as inovações que João Cabral nos aos trabalhos da turma de 22, está longe de abrir mostra não são frutos de um abandono às tradições mão da crítica às formas e concepções anteriores do literárias, mas, antes de tudo, de debates e questionfazer poético. Assim, a obra do autor pernambu- amentos para com elas e, muitas vezes, essas novas cano possui um dinamismo crítico e um princípio possibilidades surgem justamente do seio desses criador que embala a sua poética em diálogos con- diálogos. Ficando assim, para nós, que talvez uma stantes com a tradição literária, em certos momen- de suas maiores batalhas fosse encontrar um faztos elucidando opiniões sobre ela, e em outros lhe er poético que ensinasse e demonstrasse em si os impingindo críticas severas e trazendo à baila novas perigos de “fazeres” acríticos e o contrário como possibilidades de construção poética e de leitura do essencial para a emancipação e autonomia do sujeito, nos revelando, nesse sentido, •34 Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016 INTRODUÇÃO


outras e surpreendentes faces do ser humano, ele vai levando-nos pelas correntezas de seus rios. Assim iremos, ao longo do trabalho, discutir e analisar mais detidamente alguns desses pontos.

A METALINGUAGEM

É ponto pacífico entre os estudos das línguas que a metalinguagem trata de uma autorreferência, mas variações entre as interpretações dos principais autores que trataram desse tema e as diferentes óticas sob as quais ele foi estudado enriqueceram-no suficientemente para que tenhamos diversas possibilidades de enfoque e um número igual de ferramentas para a interpretação da metalinguagem. Nessa miríade de possibilidades escolheu-se trabalhar com o tratamento que Roland Barthes deu à questão. O motivo para a referida escolha encontra-se no relacionamento que o autor francês faz entre metalinguagem e metáfora – voltaremos a esse ponto mais adiante.

sistema. Exemplificando, temos o verso seguinte: “Rios neste discurso”. Podemos concebê-lo em sua totalidade como um sistema de signo (SS), mas também podemos tratar cada uma de suas partes como um SS. Na palavra “discurso” temos seu E (plano de expressão) composto pelos seus fonemas ou grafemas, na ordem em que se sucedem (dis-curso); enquanto o seu C (plano de conteúdo) é formado pela imagem psíquica “evocada” pelo termo grafado ou falado (a representação do objeto discurso); essa “evocação” é atribuída ao plano R (relacional), ou seja, a relação entre C e E, que permitirá que C seja aludido por E. Assim, em “neste discurso” vemos que o processo de significação aponta para o seu próprio C que, por sua vez, é um completo SS a saber o signo que representa o discurso em questão. Outro exemplo mais simples do processo de metalinguagem está nesta frase “na seguinte frase: olhos famintos”. O termo “na seguinte frase” tem seu C formado pelo signo “olhos famintos” (BARTHES, 2006).

A METÁFORA A METALINGUAGEM DE ROLAND BARTHES

Um ponto intrínseco da concepção de Barthes sobre a metalinguagem é a metáfora (BARTHES, Para o autor de “Aula”, a metalinguagem seria 2006), por tratar-se de um fenômeno assimétrico um sistema de signo constituindo um dos elemen- àquele. Se na metalinguagem a fórmula é E R (ERC), tos de outro sistema. Assim, para Barthes, um siste- na metáfora o sistema de signo adicional estará ma de signo é formado por um plano de expressão presente no plano de expressão e será obtido pela E e um plano de conteúdo C. A relação entre esses seguinte fórmula: (ERC) R C. dois elementos forma o processo de significação, o qual ele chama de plano relacional R. Então, um sistema de signos é expresso pela seguinte fórmula: METÁFORA E METALINGUAGEM ERC. (BARTHES, 2006, pg. 95) No caso da metalinguagem, um sistema de signo seria parte integrante de um segundo sistema e faria a vez de seu plano de conteúdo C. Sendo assim expresso: E R (ERC) ou ERC1, onde C1 = ERC2. Nesse caso, temos a significação emanando do processo de relação entre o plano expressivo de um sistema e o próprio processo de significação de outro

Muitas vezes, na obra de João Cabral, a metalinguagem acontece a partir de uma perspectiva metafórica, como exemplo a substituição de substantivos ou verbos ligados ao campo semântico da literatura ou da escrita de forma genérica por expressões que ao rigor denotativo estariam distantes desse campo semântico (da escrita). Alguns exem-

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plos desse procedimento na poesia do autor pernambucano estão no poema “Rios sem discurso”, que no próprio título nos apresenta a característica em questão. O vocábulo “rio”, denotativamente, não apresenta nenhuma ligação semântica aos campos referentes à língua, mas ao ligar-se sintaticamente a outros vocábulos1 adquire em seu próprio plano de expressão o processo de significação dos outros vocábulos. Assim temos a fórmula de Barthes encaixando-se no vocábulo “rio”, pois seu plano de expressão, dentro da sentença (“Rios sem discurso”) é formado pelo processo de significação de “sem discurso”, de “sem” e de “discurso”. É interessante notar que esse processo só pode ocorrer quando se considera a totalidade da sentença e que a palavra “rio”, isoladamente, não seria capaz de compreender os processos de significação de outros signos. No decorrer da poesia, o eu lírico dá especial atenção a essa questão, como veremos mais tarde.

capaz de responder a interpretação relacionada com outros signos, seja em seu plano de expressão ou de conteúdo, o que naturalmente iria alterar as respostas de suas outras partes e da soma de suas partes, conservando a infinitude de possibilidades interpretativas de sua totalidade.

O RIO

Em uma breve perspectiva histórica, vemos o rio como um dos elementos naturais, dentre os quais o homem manteve laços mais estreitos de comunhão, devoção e dependência. Dos rios ao redor do planeta emergiram lendas, de suas águas tirou-se a sobrevivência, nas suas margens imolaram-se oferendas e travaram-se guerras. A proximidade dos rios sempre foi fator decisivo na escolha Voltando à metáfora, podemos dizer que pas- de locais para a permanência do homem, que inicia sa a fazer parte do plano de expressão de “rio” um em suas margens o fim do nomadismo. Da antiguisigno completo que, por sua vez, tem seu próprio dade aos dias atuais, a humanidade se construiu às processo de significação, mas que é também parte margens dos rios que tomaram grande espaço em de outro processo de significação. Com o dito, po- seu imaginário. demos aludir a outros significados que compõem essa metáfora e, nesse caso, possibilitam a metalinguagem. Como vimos, o vocábulo “rio” no contex- O “RIO” E A SIMBOLOGIA MÍSTICA to citado nos permite trazer à tona outro vocábulo, por exemplo, “fala”, se quisermos aludir a seu Na Grécia antiga, onde temos um dos cenáricaráter impermanente ou de fluxo constante. Nesse ponto, a metalinguagem já pode ser percebida, os mais importantes na história da cisma entre o mesmo que intuitivamente, mas na perspectiva de pensamento mítico e o científico, dado o surgimenBarthes temos o que seria o oposto do que acontece to da filosofia, alguns rios eram cultuados como na ocorrência da metáfora, se “rio” é em seu plano deuses, dentre eles o Aquelôo. O professor Junito de expressão constituído pelo signo “fala”, este por (BRANDÃO, 1986) narra o embate de Héracles consua vez em seu plano de conteúdo será formado tra esse deus-rio na disputa por Dejanira. Durante por outro signo, E R (ERC), o que qualificará essa a batalha, o herói teria quebrado um dos chifres de fala, segundo a cadeia sintática na qual se encon- Aquelôo, que havia se metamorfoseado em touro. tra a saber “fala (rio) sem discurso”. Notando que Héracles chegou a enfrentar esse deus-rio, graças a rio foi posto entre parênteses para não se perder de uma promessa feita às margens de outro rio, o Esvista que “fala” é apenas uma das possibilidades de tige. Tratava-se de um rio que pertencia ao submunseu plano de expressão, ou seja, sua metáfora. É de do, era a fronteira última entre o mundo dos vivos suma importância lembrar que o conceito de Ro- e dos mortos, caminho único por onde os espíritos land Barthes mantém a pluralidade do signo e que penetravam no reino de Hades. Na “República”, qualquer parte da sentença “Rios sem discurso” é de Platão, quando ele tenta explicar sua teoria de •36

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transmigração espiritual, diz que, quando os espíritos bebem das águas do rio Estige, se esquecem das vidas passadas, ficando assim prontos para reencarnarem, dando ao rio a significação não apenas de morte, mas também de renascimento. Esse corpus da simbologia do rio (morte/renascimento) foram um dos mais criticados por João Cabral. Na mitologia grega, o rio ainda aparece sob muitas formas distintas, torna-se até mesmo difícil encontrar um herói que em dado momento não tenha um rio passando por sua história.

aras, uma clara relação metonímica que nos indica a localização de um “rio” no rio das capivaras ou Capiberibe. Ainda pode-se aludir aos outros indicados da preposição “em”, e teríamos, para o rio localizado no Capiberibe, as outras gamas da existência como a temporal e a modal. Outra característica importante desse rio que aparece no Capiberibe é que ele surge apenas com um substantivo genérico (rio), fato que faz mais um ponto coincidente entre ele e os outros “rio”(s) que aparecem nas poesias de João Cabral. Assim, parece plausível afirmar que esse rio, que existe dentro do Capiberibe, será experimentado, ou mesmo descoberto pelo autor ao longo de várias poesias.

O RIO E A METALINGUAGEM NA OBRA DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO: SE O RIO DO Outras delimitações se fazem necessárias ao GUIMARÃES TEM TRÊS MARGENS, O DO rio localizado no Capiberibe, o qual chamaremos CABRAL TEM UM RIO INTEIRO. rio*. Entre essas delimitações estão as seguintes notações: Como dissemos, o rio é um dos principais pontos simbólicos na obra do autor pernambucano. Presente em vários de seus poemas e cenário central em “Morte e Vida Severina”, encarnado no nome Capiberibe que irá aparecer em várias outras poesias. O Capiberibe e o Beberibe são os únicos rios na obra do autor que ganharam um nome próprio, o que pode nos levar à seguinte questão: seriam os outros “rios”, os que não tem um nome próprio e são marcados apenas pelo substantivo comum (rio), uma parte ou um aspecto do Capiberibe e do Beberibe? O nome Capiberibe vem do tupi e significa “no rio das capivaras” – aqui temos o primeiro indício de uma relação metonímica. O “no” sendo a contração do artigo “o” mais a preposição “em”, que indica lugar onde, modo, tempo, estado, fim, ou seja, abarca uma grande gama de possibilidades do ser. Ficando apenas com o indicativo de tempo, na absorção do vocábulo tupi pelo português, a raiz Y (rio) ficou ofuscada em seu plano de conteúdo original, embora ainda esteja latente em seu plano de expressão. Essa névoa no plano de conteúdo de “Capiberibe”, que se repetirá em “Beberibe”, nos leva a formar, naturalmente, a seguinte expressão: Rio Capiberibe. Se aludirmos a seu conteúdo ainda na forma tupi, teremos: Rio no rio das capiv-

a) Não há o que nos diga a posição do rio* em relação ao Capiberibe, em outras palavras, quanto ao local, não podemos afirmar que o rio* está dentro, fora, de um lado ou de outro do Capiberibe, nem dar nenhuma indicação do tipo. Para o professor Evanildo Bechara (1999) o “em” é relativo ao grupo preposicional delimitado semanticamente pela imprecisão. Sendo assim, não será possível estabelecer uma regra geral no tocante ao posicionamento do rio*, pois sua marca é justamente a imprecisão. Por outro lado, essa característica semântica parece ser uma das responsáveis pela multiplicidade de significações que o rio* pode tomar, a depender do contexto e da totalidade da poesia onde surgir. Pois, embora a expressão (“rio no rio das capivaras”) nos diga que o rio* está localizado no Capiberibe, não indica o seu posicionamento em relação a este. No entanto, esse posicionamento espacial do rio* em relação ao Capiberibe só irá nos interessar caso seja uma metáfora que represente a metalinguagem.

b) Na própria relação entre rio* e Capiberibe existe um movimento que se assemelha ao movi-

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mento da metalinguagem, segundo o conceito aqui abordado. Assentamos que o rio* está contido no plano de expressão de Capibaribe na forma de Y, assim temos o rio* expresso pelo termo “Rio Capiberibe” que, por sua vez, trata-se de um rio. Naturalmente, o vocábulo não deve ser confundido com o objeto ao qual designa. Não se pretende aqui dizer que o termo Capiberibe (rio) forma uma metalinguagem ao expressar o termo rio* e ele próprio ser nome de um rio, mas atentar para o movimento que se assemelha ao da metalinguagem ao ter em seu plano de conteúdo o mesmo signo que lhe acrescentam na cadeia semântica da sentença. Essa semelhança torna-se mais clara ao comparar uma sentença metalinguística com a sentença Rio Capiberibe: rio no rio das capivaras/ substantivo na oração. Trata-se não de uma semelhança específica, mas de uma semelhança que é intrínseca entre metáfora e metalinguagem, sob a ótica que tratamos aqui. Retomando a fórmula de Barthes, a metáfora é ERC (S1) formando plano de expressão de S2, ou seja, S1-R-C, e a única diferença entre esta fórmula e a da metalinguagem é a posição de S1 que, nesta última figura estará presente no plano de conteúdo S2 = ER (S1). Assim, temos o primeiro indício do “rio” ou rio* como metáfora para a metalinguagem.

rio está presente a verificação de relação metonímica inversa à citada anteriormente. Ou seja, ponderar se o termo rio (substantivo comum) evoca o rio* ou o próprio Capiberibe, por metonímia. Sendo positiva a resposta para a questão anterior, forçosamente teremos uma figura metafórica que poderá ser uma representação de metalinguagem.

ALGUNS ESCLARECIMENTOS

Assentamos até aqui os seguintes pontos: O termo Capiberibe, por indicar um rio e possuir em sua articulação fonética um termo que se refere a rio, carrega em si um processo metafórico; A metalinguagem, na poesia de João Cabral, muitas vezes parte de uma perspectiva metafórica; A presença de uma metáfora, constituída do termo rio ou Capiberibe, é um forte indício de metalinguagem.

Com o material do item acima vamos proceder com uma breve investigação de como se dá a relação entre a metalinguagem e o símbolo “rio” (substantivo comum), rio* e Capiberibe em passagens dos seguintes poemas: “Capibaribe e a leitura”, “Rios sem discurso”, “Os rios de um dia”, “Uma mulher e o Beberibe” (MELO, 1997, pg 221, 21, 22, 10 respecc) A questão da metonímia merece um capítu- tivamente) e alguns trechos de “Morte e Vida Sevelo à parte, porém o presente trabalho não nos per- rina” (MELO,1994). Logo depois encerraremos com mite tempo ou espaço para tal. Então, iremos nos uma análise de “Na morte dos rios” (MELO, 1997). ater apenas ao que for essencial para a investigação principal que procedemos. Como dito acima, o rio* está contido no plano de expressão de Capiberibe OS SÍMBOLOS DOS QUAIS SE REVESTE O e há outro rio contido em seu plano de conteúdo. CAPIBERIBE Dessa forma, a relação metonímica parece se impor a simples presença do nome Capiberibe. Nesse Em “Morte e Vida Severina” (MELO, 1994) ponto descobrimos o primeiro conceito que parece ser uma ferramenta aplicável de forma geral na temos a presença do Capiberibe desde o início da interpretação da poesia de João Cabral. Trata-se obra, embora essa presença seja apenas revelada seguinte questão: tendo o substantivo próprio da na terceira parte da poesia, na qual o narrador Capiberibe a propriedade de anunciar metáfora diz estar perdido, pois o rio que lhe servia de guia e/ou metalinguagem e trazer consigo, por relação (Capiberibe) está seco. Para falar dessa secura, o aumetonímica, os termos rio* e rio (substantivo co- tor, durante a introdução, utiliza o verbo “cortou”. mum), cabe na análise das poesias em que o termo Esse verbo também irá aparecer no poema “Rios •38

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sem discurso”, no seguinte verso: “Quando um rio corta, corta-se de vez” (MELO, 1997, p. 21). Ainda em “Morte e Vida Severina”, o narrador está constantemente cercado pela morte, no entanto, ao deparar-se com o rio, uma coisa curiosa lhe acontece, expressa nestes versos: “Mas não vejo almas aqui/ nem almas mortas nem vivas” (MELO,1994). Se considerarmos que as outras aparições de rios são uma forma de precisar o que é impreciso, teremos o que pode ser uma das formas do “rio no rio das capivaras”, um rio que está localizado no Capiberibe, mas que não compartilha com ele a percepção da vida ou da morte, tão pouco da crença da alma, ou seja, o rio* concebe uma existência desprovida de vida e morte. Porém, não se trata de nenhuma novidade, na história natural, a química e a geologia podem fornecer milhões de anos de existência da qual a morte e a vida não fazem parte. Mas, na poesia em questão, há um elemento crucial que torna maravilhosa essa experiência, a presença do narrador, uma testemunha da existência sem vida ou morte. Aqui surge uma questão: Como pode o narrador presenciar essa existência? Em outras palavras: Como pode o narrador caminhar pelo rio*? Umas das respostas que parecem cabíveis vem do próprio proceder da história natural. Afinal, como pode um cientista contar o que ocorreu há milhões de anos atrás? A resposta: Escrevendo! Forçosamente, voltamos então à metalinguagem. Assim, não parece descabido afirmar que, na poesia de João Cabral, escrever, em dado momento, é testemunhar o que transcende a vida e a morte, ou seja: escrever é narrar o que está além da percepção imediata da realidade, ou até mesmo experimentar o que está além da percepção humana, pois esta é limitada pela vida e pela morte. Alguns aspectos dessa concepção podem ser recortados de modo a se encaixarem na concepção de ciência, pois, por exemplo, a matemática e a astronomia nos dão a conhecer as estrelas que estão fora da nossa capacidade de percepção. Então, parece, entre outras coisas, que o ato de escrever, para o eu lírico das poesias de João Cabral, é uma ação científica, e não podemos dizer filosófica, pois a filosofia guarda-se ao direito de não provar ou aplicar materialmente

suas proposições, enquanto a metalinguagem tem por objeto elementos materiais e concretos, a saber os fones e fonemas, ou mesmo, os grafemas. Então, concluímos que o rio* concede ao Capiberibe significação de metalinguagem que, por sua vez, revela algo de incomum entre a ciência e a poesia de João Cabral.

O BEBERIBE

Para o nome Beberibe, encontramos algumas definições e etimologias controversas, porém uma das possibilidades que se apresentam é de origem tupi e teria o significado de “no rio das arraias”. É no mínimo curioso que se dê o mesmo fenômeno que ocorre com o Capiberibe, ao transpor para o português, língua na qual assume a forma de substantivo próprio, temos a expressão “rio no rio das arraias” (Rio Beberibe). Parece que mais um dos rios de João Cabral possui um rio em si. E igualmente ao rio* (localizado no Capiberibe), o rio que se localiza no Beberibe está marcado pela imprecisão da preposição “em”. Chamaremos esse rio localizado no Beberibe de rio**. Podemos notar que as regras da metalinguagem estabelecidas na discussão sobre o Capiberibe também se anunciam na presença do Beberibe. No poema “Uma mulher e o Beberibe” há uma constante luta do eu lírico para estabelecer alguma ordem ou precisão, no que é por natureza impreciso (rio**) - isto a imprecisão da qual o rio** é notadamente marcado pela preposição “em” e também há uma personificação de algo que nem é vivo e nem morto, mas tenta se definir entre tempo e espaço, como podemos ver nos seguintes versos: “Ela se imove com o andamento da água/ indecisa entre ser tempo ou espaço” (MELO, 1997, p.10). Na segunda parte do poema temos a “chave” para a metalinguagem: “adulto no mangue, imita o imovimento” (MELLO, 1997). Lembremos que nas concepções clássicas de poesia e arte muitas vezes ela é tomada como imitação. Assim podemos ver nesses ver-

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sos a referência e a crítica ao conceito platônico de mimese (imitação), esse contexto suscita a seguinte questão: seria esse adulto o poeta? Estaria ele imitando o “imovimento” como maneira de repensar e criticar os conceitos clássicos de mimeses, imitação e poesia? A presença do rio** não parece mero acaso. Assim como não é mero acaso quando em “Na morte dos rios” o eu lírico cita um rio indefinido pelo artigo “um”: “desde que no alto sertão um rio seca.” (MELO, 1997) Justamente a mesma imprecisão que encontramos no rio* do Capiberibe, na terceira parte de “Morte e Vida Severina”.

tumba.

Já em “Os rios de um dia” (MELO, 1997, p. 2223), surpreendentemente a inquietação do eu lírico é a definição de rio, ou rio*, ou ainda rio**, associada à vida: “para os rios, viver vale se definir/ e definir viver com a língua da água.” (MELO, 1997). E seria sofrível descartar a metalinguagem diante da expressão “língua da água”.

com bocas de homem, para beber a poça

Para corroborar com a afirmação da existência de uma relação intrínseca entre a metalinguagem e o Capiberibe, o Beberibe, o rio*, o rio**, e rio (substantivo comum), aludimos aos primeiros versos de “O Capiberibe e a leitura” (MELO, 1997, p. 221) em que retomamos ao início do presente trabalho, pois, como dissemos, a metalinguagem se dá em uma perspectiva metafórica, pois o eu lírico diz ser o Capiberibe “o jornal”. Eis os versos: “O Capiberibe no Recife/ de todos é o jornal mais livre” (MELO, 1997).

e com bocas de bicho, para mais rendimento

Faz alto à agressão nata: jamais ocupa o rio de ossos de areia, de areia múmia.

2

Desde que no Alto Sertão um rio seca, o homem ocupa logo a múmia esgotada:

que o rio esquece e até a mínima água; com bocas de cacimba, para fazer subir a que dorme em lençóis, em fundas salas;

de seu fossar econômico, de bicho lógico. Verme de rio, ao roer essa areia múmia, o homem adianta os próprios, póstumos. (MELO, 1997, p. 5)

No título do poema, sob uma perspectiva fonética, a contração “dos” pode ser lida como o numeral “dois”, pois fonicamente não há distinção BREVE ANÁLISE DE “NA MORTE DOS RIOS” entre esses vocábulos. Assim, apresenta-se uma das situações demonstradas no trabalho precedente, a saber: a existência de um rio no rio. Além disso, teNa Morte dos Rios mos oculto o fone “i” que enquanto fonema da língua tupi (“Y” significa rio), também está presente de Desde que no Alto Sertão um rio maneira oculta no vocábulo Capiberibe. Desta forseca,

ma, temos no título da poesia a indicação de que na morte há dois rios. Ainda podemos retomar os conceitos de crítica do autor em relação às concepções e de vida e morte. Nos próximos versos continuaremos a espraiar a existência desses rios. Resta-nos

a vegetação em volta, embora de unhas, embora sabres, agressiva,

intratável

faz alto à beira daquele leito

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descobrir que rios são esses. Admitindo a premissa anteriormente explicitada (de que nas poesias de João Cabral os rios são metáforas da metalinguagem), teremos, ao longo da poesia, a tensão entre algumas dualidades, a saber: a oposição terreno e celeste; memória e esquecimento; contemplação e ação; racionalidade e irracionalidade; cessação e perpetuação. As dualidades apresentadas, além de construírem os significados do texto, irão servir como sustentáculos da crítica que o autor faz às concepções clássicas de poesia e de pensamento, e também guiarão a outra perspectiva sobre “morte/ vida”, tema recorrente em sua obra. Há outro ponto importante, na segunda estrofe do poema. O verbo cujo sujeito é “o rio” em “que o rio esquece e até a mínima água” é um verbo próprio da ação humana, sendo vedado ao rio tanto esquecer-se, quanto lembrar-se. Assim, se por um lado temos a personificação do rio, por outro temos a chave que nos leva à metalinguagem, dado que escrever é uma maneira de registro, ou seja, uma maneira de lembrar, de não esquecer. A memória aqui assume um importante papel para a análise devido, principalmente, ao seu aspecto fulcral para a poesia. Lembrando os versos com os quais Dante Alighieri inicia o segundo canto da “Divina Comédia” (apud MANN, 1984):

O dia afastava-se, e a sua luz toldada, Fadigas às criaturas terrenas, poupava Só, eu me prestava a luta sustentar Com o caminho e a compaixão Que minha memória fielmente retratará

Oh musas, oh supremo gênio, auxiliai-me! Oh tu, recordação que gravastes o que vi, Mostra agora, teu nobre espírito

Na poesia de Dante estão encarnadas algumas das concepções clássicas questionadas por Cabral, tais como os conceitos de alma divina, carne mortal e a associação do trabalho intelectual com o caráter celeste, aos quais ele irá opor com as imagens de trabalho braçal e ato irracional como nos versos: “com bocas de cacimba, para fazer subir” e “com bocas de bicho, para mais rendimento”. (MELO, 1997, p. 5)

CONCLUSÃO DA ANÁLISE

A “Divina comédia” mostra na invocação às musas a sua intenção primordial de batalha contra o esquecimento. Na primeira estrofe, ao representar a evasão da luz que, lembremos, simboliza não apenas a racionalidade, mas também o ato contemplativo, evoca, também, o descanso das criaturas terrenas. Essas criaturas são caracterizadas pelo elemento terra, que traz à baila os conceitos de autoctonia, em oposição ao eu lírico que se aproxima do celeste através das divindades que convoca em seu auxílio. Nesta relação criaturas terrenas e descanso x homem divino x trabalho intelectual, vemos a sua metáfora que interpreta o fazer poético clássico. Porém, na poesia de João Cabral, notamos uma relação diferente, enquanto na primeira estrofe ele alude ao movimento dos vegetais que se estancam diante da secura do rio, na segunda ele representa a relação do homem que cava a terra sequioso por encontrar o que o rio deixou para trás, ou seja, o homem se põe a trabalhos braçais indo fundo na terra como bichos na tentativa de lembrar o que o rio esqueceu. Assim, vemos a crítica que João Cabral faz não apenas às concepções clássicas de poesia, mas também ao entendimento sobre o ser humano, que para ele é mais que autóctone, é movimento em busca das profundezas, em busca das raízes, de respostas sobre a própria condição humana, sobre o próprio ser. Essa busca encontra na metáfora dos dois rios as expressões de uma obra que visa renovar-se ante as tradições literárias. Além disso busca comunicar novos sentidos e significados ao homem que antes era celeste e se

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reconhecia em oposição à natureza mundana e agora é mundano e se reconhece na própria natureza terrena, na entrega ao fluxo dos desejos e anseios e na perversão da imagem natural. Dessa forma, experimenta a relembrança do rio que secou, experimenta registrá-lo, pois registrar é vencer a batalha contra o esquecimento, contra a morte do rio. Eis o fluxo que impede a natureza vegetal de continuar seu caminho para dentro do rio, como seria de esperar de suas sementes, pois ali, no leito do rio seco, no alto do incomunicável deserto, há outro rio a correr indomável, há um rio a desafogar da terra o rio que secou, há um rio que em seu movimento/ “imovimento” irracional/científico traz à tona o rio cuja secura seria fatal. Esse rio no rio é o homem na vida que, ao escrever ou falar a sua condição, livra-se da morte, relaxa-se do destino fatal, porém neste mesmo ato de falar adianta não a sua morte como nos mostra a raiz de fatal, mas sim suas falas, memórias e desejos pós-morte.

da morte, para não falar de imortalidade. Se a poesia, por um lado, explora esta existência com um caráter científico, por outro traz das águas profundas e misteriosas amostras e mapas esperando para serem decifrados.

CONCLUSÃO

E-Dicionario de Termos Literários – INICIO. Disponível em: <http://edtl.fcsh.unl.pt/>.

De tudo isso se depreende a firmeza de João Cabral em seu projeto estético-literário que tem uma digna fração baseada na criticidade e que muitas vezes parte de referências clássicas para alcançar a sua poesia, seja se opondo a elas, seja conjugando-as ou mesmo pelos frutos de suas discussões. Muitas vezes esse movimento é um princípio ativo e criador que elabora com singularidade as novas concepções de rio e do fazer poético. Assim, parece adequado afirmar que João Cabral traz em suas poesias novos valores simbólicos para o vocábulo “rio” – quando aparece como substantivo comum indica metalinguagem a partir de uma perspectiva metafórica. Além disso, a confluência do rio e da metalinguagem destroniza a tradicional visão ocidental de vida e morte, pois na poesia do autor pernambucano o rio significa o que está além desses limites. Logo a linguagem empregada pelo autor, o conteúdo versado e o próprio ato de escrever participam de uma existência que está além da vida e

LARA, Glaucia Muniz Proença. A produtividade da noção de isotopia na construção de sentidos do texto. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_108.pdf>.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Elementos da Semiologia. 12 ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, abril de 1999. BRANDÃO, Junito de Sousa. Mitologia Grega. V. 1, 2 e 3. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. C.A. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. V. 1, 2, 3, 4 e 5. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Delta S. A, 1970.

MANN, Thomas. Doutor Fausto. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984. MELO, João Cabral. “João Cabral de Melo Neto – Obra Completa”. Rio de Janeiro: Editora Nova Aquilar S.A, 1994. MELO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997. 1

i

O princípio de isotopia de Greimas: Para a semiótica a significação é construída, entre outras coisas, pela interação entre os signos de uma sentença, e sua concisão ou coerência se dá através do compartilhamento, entre os signos, de certos elementos de um dado campo semântico, o que equivale ao conceito de isotopia: Entende-se isotopia como a interatividade, no decorrer de uma cadeia sintagmática, de classemas que garante ao discurso enunciado a homogeneidade. (GREIMAS, 2008, p. 275-276 apud LARA).

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A VALORIZAÇÃO DO ENSINO E DA APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA: POR QUEM? PARA QUÊ? PARA QUEM? Gilvaneide Viegas de Barros Vasconcelos (Graduação – UCB)

RESUMO Este artigo pretende discutir o processo de ensino e de aprendizagem de língua inglesa em duas escolas da rede privada, localizadas em bairros vizinhos da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de não só fornecer um panorama de como tem sido essa prática nesse contexto, mas também confrontar as divergências encontradas entre ambas as escolas. Além disso, deseja-se questionar o porquê de o valor dado ao ensino e à aprendizagem do idioma ser visto de formas tão díspares nessas instituições, uma vez que estão localizadas em bairros vizinhos. A pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo usou a técnica de observação participante, buscando compreender o fenômeno investigado. Conclui-se que nos processos de ensino e de aprendizagem grandes investimentos não são requeridos para que ocorram adequadamente, assim como também, buscou-se desmistificar a ideia de que a língua estrangeira só é adquirida fora da escola.

Palavras-chave: Ensino e aprendizagem. Língua inglesa. Valorização. INTRODUÇÃO

Este artigo é resultado da primeira experiência pessoal em sala de aula como professora de língua inglesa. Desde então, surgiu a inquietação para questionar e avaliar, na tentativa de compreender as razões que levam instituições, professores e alunos à não valorização do idioma inglês na escola.

meira, percebe-se que, embora ambas estejam localizadas na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, as realidades educacionais, no que tange ao idioma inglês, são bem diferenciadas e que a importância dada à aquisição desse conhecimento é o gerador da desmotivação e do fracasso na primeira e sucesso na segunda.

Este estudo propõe um olhar sobre parte do que já tem sido abordado sobre o tema na intenção No entanto, sabe-se que o tema não é novo e de refletir a tentativa de propor a melhora das práque muitos pesquisadores da área de línguas es- ticas do ensino e da aprendizagem de inglês como trangeiras (LEs) já demonstram preocupações, tais Língua Estrangeira (LE) e, a partir da experiência como os métodos de abordagem (VILAÇA, 2008; pessoal, traça uma comparação entre duas realiPEDREIRO, 2013), a importância das tecnologias dades que pode levar a uma reflexão sobre o fazer como facilitadoras dessa prática (PAIVA, 2008, educacional em LE não só em sala de aula, mas tam2012), a verdadeira finalidade da língua inglesa na bém nos cursos de formação de professores. Penescola (ANJOS, 2009), tempo insuficiente de aula sando nisso, foram levantadas algumas questões: (MÜHLE, 2003) e a língua inglesa na era da globali- Se em uma instituição os métodos adotados e os caminhos percorridos levam ao alcance dos objetivos, zação (LOPES, 2007). por que não se vê o mesmo êxito em outra? O que Contudo, a partir de um segundo contato com leva uma comunidade escolar a valorizar a aquisioutra escola de um bairro diferente, vizinho da prição do inglês e a outra não? O que falta às 43• Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016


instituições, que experimentam do mesmo fracasso no campo, para obterem os mesmos resultados? Embora o assunto em pauta não seja novo e muito material de qualidade já tenha sido publicado, pouco tem sido feito para que o antigo quadro de fracasso na área obtenha melhoras em seu resultado. Podemos constatar esse fato não só na rede pública de ensino, mas também em muitas escolas da rede privada, segundo a revisão de literatura realizada. E hoje, com o advento da “era moderna” em que muito se fala em globalização, multiculturalismo e identidades fragmentadas (HALL, 2006, p. 1-15), novas perspectivas surgem, novas exigências desse mundo globalizado são impostas e, com isso, o alcance da adequação educacional no campo de LE (já tão pesquisado e desejado) tem se tornado ainda mais distante e difícil. A pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo usou a técnica de observação participante, buscando compreender os interesses, atitudes e relações do funcionamento no contexto investigado (BARDIN, 1997).

SOBRE OS MÉTODOS

Uma das primeiras preocupações que tive ao observar a instituição onde a prática do inglês, tanto na perspectiva da escola quanto na dos professores e alunos, não ia bem, foi a de questionar se os métodos adotados eram de fato ideais. Sabe-se que a questão sobre o melhor método para se ensinar uma LE já tem sido discutida desde que há entendimento de que a linguagem é um meio eficaz de conquista e comunicação entre os povos. Afinal, era através da língua que os conquistadores de terras, ao vencer batalhas no passado, estabeleciam comunicação e impunham seus costumes e práticas aos povos conquistados. Desde os tempos mais antigos, os métodos são utilizados para que línguas estrangeiras sejam adotadas como segunda língua.

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Há milhares de anos – cerca de cinco mil anos – já existia o ensino profissional para a aprendizagem das línguas. Primeiramente, ensinava-se uma língua da sua própria civilização, passava-se conhecimento de geração em geração. Logo esse ensino passou a ser, também, o de uma língua estrangeira, em virtude da conquista de povos falantes de outras línguas, da comercialização de mercadorias, entre outras razões. (PEDREIRO, 2013, p. 2)

Na busca por resultados satisfatórios, afirma Vilaça (2008), o conceito de métodos vem sofrendo muitas críticas, pois, dentre as falhas, a característica prescritiva da maioria dos métodos ”engessa” de tal forma o professor, que ele não se sente livre para ser criativo e transitar por outros meios positivos de compartilhar o conhecimento. Não respeitando nem a si próprio, como ser capaz de observar, refletir, inovar e criar, nem as necessidades do seu público-alvo que é sempre diverso, com realidades diferentes que merecem atenção no processo de ensino e de aprendizagem. E, além de método ideal, Vilaça (2008, p.9) também critica o uso do método de forma descontextualizada.

A descontextualização dos métodos é outra crítica que merece destaque. Os métodos, segundo a crítica, ignoram as especificidades e as realidades contextuais, partindo do falso princípio de homogeneidade das salas de aula... em outras palavras, o que seria bom ou bem-sucedido em um contexto seria bom para “todos” os outros.

Por essa razão, Vilaça (2008) e Pedreiro (2013), baseados na história da aplicação de métodos, abordam a questão com o fim de elucidar aos interessados cada um dos métodos existentes para que refli-

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tam sobre os pontos positivos e negativos e achem o melhor caminho, pois conforme Vilaça (2008, p. 1) afirma: “Qualquer pessoa que faça um breve olhar histórico sobre o ensino de línguas estrangeiras perceberá facilmente que a busca por um método perfeito foi durante muito tempo uma obsessão.”.

como o primeiro meio no ensino de línguas. E para mostrar o quão antigo é, o autor apresenta, como informação, a utilização desse modo para ensinar o latim e o grego por meio de textos clássicos. O GT focava na leitura e não havia interesse na oralidade da língua-alvo.

Segundo Vilaça (2008), a palavra método é de origem grega (méthodos) e em sua essência significa “caminho com objetivo” (meta = sucessão, ordenação e hodos = via, caminho). Portanto, se método denota um caminho que leva a um objetivo e, se um dos objetivos da escola, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN – Objetivos gerais do Ensino Médio, parágrafo primeiro, inciso II), é “[...] capacitar o aluno para o conhecimento das formas contemporâneas de linguagem [...]” e, se esse objetivo não está sendo alcançado, é tarefa urgente repensar e buscar o melhor caminho para que o trabalho do profissional de capacitação em LE seja justificado além de, igualmente , a presença dos alunos em sala de aula.

De acordo com Pedreiro (2013), no final século XIX, a necessidade de um ensino de línguas mais eficaz fez com que novos meios fossem pensados e o GT deu lugar aos seus sucessores, já citados acima. Contudo, algumas escolas, como aquela a que nos referimos como a primeira, continuam no passado utilizando como ferramenta um método ultrapassado que descarta totalmente a interação entre aluno-professor, em que o docente continua sendo o centro e o detentor do saber, não considerando os apontamentos dos PCNs e das Leis de Diretrizes e Bases (LDB) que regem o ensino-aprendizagem de LE no Brasil.

Dentre os métodos praticados, o mais antigo é o Método Direto (MD) seguido por Gramática e Tradução (GT), o Áudio Lingual (AL) e a Abordagem Comunicativa, sendo o último considerado por profissionais e alunos como o mais abrangente e adequado. Contudo, não sendo os métodos o principal foco desse trabalho, proponho ao leitor que faça a leitura dos teóricos através das referências apresentadas, em que poderão encontrar as características de cada um. Diante dos conhecimentos adquiridos em relação aos métodos, na primeira instituição, notamos que a influência de um dos mais antigos é predominante. O uso do quadro, a língua estrangeira apresentada e explicada 100% em língua materna (LM) e o foco na gramática indicam a presença do método GT. Conforme Pedreiro (2013), embora autores como Chagas (1979) defendam o MD como sendo o precursor, pois na antiguidade os povos eram expostos à língua de nativos com o objetivo de adquirir essa língua, Brown (1994) indica o método GT

[...] é o professor como centro, o professor decide o que está certo ou errado e é ele quem provê a resposta correta. Não há a interação entre alunos. Nota-se que o que é mesmo primordial nessas aulas é a explicação gramatical baseada na tradução de textos – alunos copiam regras, explicações, exemplos, e depois respondem aos exercícios. As tarefas para casa resultam do que acontece nas aulas: exercícios de gramática e memorização de lista de vocabulário. (PEDREIRO, 2013, p.4)

Já na segunda instituição, onde o resultado do ensino-aprendizagem de inglês é satisfatório, encontramos um método novo, que considera os pontos mais fortes de cada um dos métodos mais conhecidos. É uma espécie de método misto que alguns autores, como Vilaça (2008), têm chamado de “ecletismo”, oriundo de uma fase que denomina “era pós-método”, em que autores e pesqui-

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sadores descontentes com o conceito de métodos admitem a impossibilidade de um meio perfeito que supra todas as necessidades e atinja o centro do alvo. O ecletismo, livre das regras impostas por todos os métodos que limitam professores e alunos, deixa em liberdade as práticas do docente, que passa a valorizar a interação com o aprendente e seus diferentes contextos sociais.

[...] a busca pelo “método perfeito” se transformou na busca de um “método mais adequado”. Essa conclusão conduziu, de certa forma, à defesa do ecletismo no ensino de línguas estrangeiras como forma de liberdade e flexibilidade metodológicas. Deseja-se com isso estabelecer um rompimento com a rigidez imposta por muitos métodos e a valorização dos professores, dos alunos e dos contextos de aprendizagem. (VILAÇA, 2008, p. 10)

Assim como os outros, o ecletismo também é regido por princípios e “[...] visa a possibilitar que o professor faça escolhas metodológicas que sejam mais coerentes e necessárias, tendo em vista o contexto de ensino aprendizagem” (Vilaça, 2008, p. 10). Contudo, é necessário lembrar aqui um ponto importante destacado por Vilaça (2013), “[...] que o ecletismo deve ser compreendido como flexibilidade e não como ausência metodológica”, pois nessa prática que provê um espaço mais justo, livre e interessante para professores e alunos, a prática docente deve estar fundamentada em planejamento prévio e que o foco do ensino seja almejado, perseguido e alcançado. Foi nessa realidade, dentro do ecletismo, que observamos que na metodologia utilizada pela primeira instituição há bastante da Abordagem Comunicativa, fazendo uso de temas com sentido na vida prática dos alunos. Também foi observado que o professor é um guia e não um ditador de regras. Nesta metodologia, pode-se ver atividades em gru•46

po intercala com outros métodos. Em certos momentos, existe a necessidade do método GT e também do MD, que enfatiza o uso da língua-alvo em quase 100% do tempo de aula. Por fim, o professor, quando o assunto em planejamento foi bem trabalhado, conclui a aula no laboratório de informática, onde os alunos têm a oportunidade de ver e ouvir, em língua nativa, considerações sobre o tema, além de usarem jogos e mídias com o fim de demonstrarem o conhecimento adquirido – o que nos remete ao método Áudio-Lingual (AL) que utiliza técnicas de condicionamento segundo a teoria behaviorista. Assim, foi observado, durante o tempo de atuação nessa instituição de ensino, o fato do idioma inglês ser visto como um dos excelentes caminhos que podem levar um cidadão a desenvolver um papel importante dentro de uma sociedade que anseia por mudanças. Observou-se também que, considerando os métodos, é altamente possível fazer a diferença em instituições que estão longe do ideal em LE, pois a utilização do ecletismo não exige recursos tão específicos e especiais ao ponto de impossibilitar seu uso.

AS TECNOLOGIAS COMO FACILITADORAS DO PROCESSO

“O campo de ensino de línguas estrangeiras encontra-se em grande expansão por uma diversidade de fatores, entre eles a globalização, a internet e o mercado de trabalho.”, argumenta Vilaça (2008, p. 12) citando Vilaça (2003). Não só por essas razões, mas também por outras que serão comentadas mais adiante, pode-se perceber que a atualidade requer, com urgência, que professores e alunos inseridos no campo de LE trabalhem no sentido de acompanhar as tendências globais. É neste ponto, portanto, que as facilidades encontradas no uso das tecnologias podem ajudar. Na escola onde se notou grande desinteres-

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se por parte dos alunos e descaso da instituição no que se refere ao inglês, houve a reflexão acerca de um dos motivos para essa desmotivação e o levantamento da questão: será que não seria a falta de dinamismo, quando a aula não utiliza recursos além de quadro, livro e caderno? Os alunos estão inseridos em um momento histórico em que mídias (computadores, tablets, celulares, projetores de vídeo , quadros multimídia, entre outras) estão constantemente presentes e marcantes. Expor esse público a um ambiente que retoma práticas de séculos passados é o mesmo que decretar e pedir desmotivação, desinteresse, desvalorização e fracasso no ensino-aprendizagem da língua inglesa. Conforme Paiva (2008, p. 1)

[...] o homem está irremediavelmente preso às ferramentas tecnológicas em uma relação dialética entre a adesão e a crítica ao novo. O sistema educacional sempre se viu pressionado pela tecnologia, do livro ao computador, e faz parte de sua história um movimento recorrente de rejeição, inserção e normalização.

Paiva (2008), ao fazer uma retrospectiva histórica do uso da tecnologia no ensino de línguas estrangeiras, cita Kelly (1969) que diz:

As máquinas dominam as comunicações no mundo moderno. O ambiente linguístico tem sido recriado artificialmente e o professor e o livro têm sido forçados a se integrarem a esses novos meios de transmissão.” (KELLY, 1969 apud PAIVA, 2008).1

1

A interconectividade das tecnologias digitais têm criado novos contextos de aprendizagem de línguas e novos rótulos têm surgido para o ensino e aprendizagem no contexto digital: Aprendizagem Assistida por Computador; Aprendizagem baseada na Web; Aprendizagem On-line; Aprendizado a Distância; E-learning; aprendizagem Tandem ... Será que estamos educando professores para todos esses ambientes digitais de aprendizagem? (Tradução da autora)

A partir dessa fala, ressalta-se o fato de que essas palavras fazem grande sentido nos dias de hoje, embora tenham sido ditas no final da década de 60 do século passado. Essa passagem nos mostra o atraso que promovemos ao permanecer estáticos diante de procedimentos retrógrados em sala de aula, contribuindo assim para que os objetivos primos da educação em qualquer área sejam inatingíveis. Ainda no sentido de que a tecnologia já é uma realidade na vida moderna e que a escola deve atualizar suas práticas, Paiva (2012) faz as seguintes perguntas: “Estamos educando os professores para essa geração digital de estudantes? “e “Consideramos os novos conhecimentos, que são essencialmente sociais?”. Sua preocupação está no fato de que o ensino-aprendizagem e a língua são processos que estão em constante evolução, devendo acompanhar as transformações sociais que, nos dias atuais, tem acontecido fora da escola com a interconexão das tecnologias digitais. Preocupa também se os cursos de formação de professores, tendo em vista o avanço dessas tecnologias, estão provendo conhecimento necessário para preparar os profissionais que atuam nessa área. The interconnectedness of digital Technologies has created new contexts for language learning and new labels have emerged for teaching and learning in the digital context: Computer Assisted Learning; Webbased Learning; Online Learning; Distance Learning; E-learning; Tandem Learning… Are we educating teachers for all those digital learning environments? (PAIVA, 2012 p.5)1

Apesar de autores como Paiva estarem inquietos, com razão, e voltados para a formação dos professores, assim como para a capacitação desses para o uso das diferentes tecnologias no ensino de LE, lançamos um olhar para o que já tem acontecido no

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campo tecnológico nessas instituições observadas. Em ambas as escolas, as condições desses recursos não são muito diferentes. Ambas possuem laboratórios de informática, que necessitam de agendamento prévio para o uso de material midiático, e as duas possuem em seu corpo docente profissionais que sabem fazer uso desses meios, como também muitos que não sabem e os rejeitam. No entanto, o que se notou, para fim de comparação, é que, na primeira, a necessidade de agendamento no espaço digital, que não se difere da segunda, já é o primeiro empecilho, seguido da insegurança na utilização e na possível perda do domínio sobre os grupos de alunos. Essas razões têm levado o ensino de inglês a ser visto como nada interessante, sem importância e desnecessário, pois, na perspectiva discente, a sua inclusão no currículo escolar não faz sentido, uma vez que não tem suprido seus anseios em relação ao uso do idioma em seus contextos sociais. Dessa forma, a instituição, os professores e os alunos permanecem presos aos meios tradicionais, gerando mais desinteresse e desmotivação. O que tem encorajado os docentes da segunda escola a encararem as dificuldades do uso de tecnologia inserindo esses momentos nos seus planejamentos está além de salários e ambientes adequados. O que os professores têm levado em conta é que, além de tornar a prática educacional atual e, por isso, atrativa para seus alunos, eles acham nesse recurso um meio de tornar seu trabalho mais ágil, produtivo e significativo, pois após o conteúdo trabalhado teoricamente, nada melhor que demonstrá-lo na prática – conforme Cury (2003, p. 57), que corrobora com esse pensamento:

Os professores fascinantes transformam a informação em conhecimento e o conhecimento em experiência. Sabem que apenas a experiência é registrada de maneira privilegiada nos solos da memória, e somente ela cria avenidas na memória capazes

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de transformar a personalidade. Por isso, estão sempre trazendo as informações que transmitem para a experiência de vida.

Profissionais assim demonstram que, mesmo em meio às dificuldades, é possível aliar tecnologia à educação. Basta querer fazer a diferença e se enquadrar num espírito de equipe e organização.

A FINALIDADE DO ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUA INGLESA

As pesquisas no campo de LE no Brasil, infelizmente, têm demonstrado que aprender inglês nas escolas regulares (públicas e muitas privadas) é tarefa difícil e aparentemente impossível. Nesse sentido, Anjos (2008) afirma que “[...] o ensino da língua inglesa nas escolas brasileiras há muito tempo tem sido alvo de críticas, desmerecimento e desperdício”. Como citamos na introdução desta pesquisa, embora não seja um assunto recente, pouco se tem feito para que essa realidade se modifique. Talvez falte a ciência tanto por parte dos profissionais envolvidos com língua inglesa (LI), quanto dos próprios estudantes, da verdadeira finalidade da aquisição do inglês como LE. É a compreensão dessa finalidade que irá justificar a presença do inglês no currículo escolar. (LOPES, 1996). A falta de entendimento dos motivos para ensinar e aprender LI na escola tem levado todos os envolvidos nesse processo a acreditarem e reproduzirem o que Moita Lopes (1996) chama de “mitos”. Dentre eles, a crença de que inglês só é necessário para quem pretende trabalhar com ele e/ou utilizá-lo em viagens internacionais. Mas, com a chegada da internet, o estabelecimento da globalização e o acesso às culturas diferentes muda completamente essa visão antiga que descarta a capacitação do aluno na habilidade comunicativa em LI. Visão que já fora defendida por autores como Lopes (1996, p. 130).

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[...] Só uma pequena minoria da população terá a chance de usar inglês como meio de comunicação oral tanto dentro como fora do país. Além disso, não há empregos (de intérpretes, recepcionistas, etc) suficientes no mercado brasileiro para os quais o desempenho em habilidades orais em LE seja necessário.

Moita Lopes (1996) acompanhou o seu tempo quando justificou o ensino de inglês baseado na leitura, pois na década em que defendeu essa ideia, a realidade social não exigia muito mais do que isso. Contudo, os dias atuais demandam uma nova ordem para o campo de quem ensina e de quem aprende LI, conforme argumenta Anjos (2008 p. 3):

[...] a atual conjuntura mundial requer outra forma de ensino. Hoje em pleno século XXI, com o novo cenário mundial estabelecido, com o advento da internet, com o encontro das culturas, é imprescindível um programa de ensino de línguas dinâmico e envolvente, para o desenvolvimento da competência comunicativa e da consciência intercultural crítica, dentre outras coisas. Dessa forma se estará desenvolvendo conscientemente um ensino que tende a minimizar resultados insatisfatórios.

A atualidade requer cidadãos capacitados para interagir com o mundo quer seja por lazer, quer seja por negócios ou simples conhecimento de novas culturas. O novo cenário mundial, como ilustra Anjos (2008), exige que estejamos aptos a buscar nas diferentes realidades e estilos de vida inovações que farão a diferença nas nossas próprias realidades. Oferecer e possuir conhecimento de mundo significa dar o direito e o privilégio de refletir sobre

realidades e optar em mantê-las ou modificá-las; é fazer com “[...] que o aprendiz possa se inserir e integrar-se em contextos diversos e, consequentemente, acessar o mundo pós-moderno [...]” (ANJOS, 2008, p. 4). E não há como negar que, para que haja essa interação e troca cultural, o inglês é o elo facilitador dessa relação. Diante dessa necessidade, Anjos justifica a nova finalidade do ensino-aprendizagem de LI, que parece ainda obscura para muitos dos envolvidos na área. Ele diz: “Por isso é que o professor e as instituições de ensino precisam entender o mundo, o momento social político e econômico e conduzir o ensino da língua inglesa de acordo com as exigências do hoje [...]” (ANJOS, 2008, p. 3). Tornar nossos alunos cientes da verdadeira finalidade de se aprender inglês atualmente pode ser o que está faltando para que frases como “Inglês não é para mim” e “Inglês não reprova” não sejam mais usadas como justificativa para a manutenção da situação de fracasso, como a encontrada na instituição onde tive a primeira oportunidade como professora de LI. Pois, do contrário, o acesso ao mundo e a todas as boas possibilidades que ele oferece continuará sendo privilégio exclusivo das classes financeiramente mais privilegiadas, como ocorre na segunda escola, onde o inglês é visto como muito importante na formação pessoal. A responsabilidade de mudar a falsa visão de que aprender LI não é necessário e não faz sentido na escola cabe às instituições, aos professores, às famílias e alunos. Está nas mãos dos profissionais de língua estrangeira “[...] mostrar que LE é útil, transforma, faz progredir quem dela se apropria, nos insere no mundo. Ela nos dá base para analisar, compreender, aceitar e participar da vida do outro.” (ANJOS, 2008). Lançar mão dos olhares de diferentes pesquisadores permitiu realizar uma reflexão que, embora a situação de LE no Brasil esteja distante do ideal, as lacunas deixam para nós, professores, portas abertas para que façamos a reavaliação do processo, em busca das inovações necessárias. Sendo assim, ga-

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rante-se o direito da execução plena da cidadania, não só aos socialmente privilegiados, mas a todos os que participam desse processo. Acabando com a conformação imposta há tempos que inglês é para quem pode e que alunos de classes economicamente inferiores não são capazes de aprender LI por uma série de fatores, como aponta Moita Lopes (1996, p. 63), quando levanta uma afirmação de senso comum dentro escolas públicas: “Eles não aprendem português quanto mais inglês”. Nesse capítulo, Moita Lopes demonstra uma preocupação com os julgamentos feitos por alguns dos profissionais de educação da área de LE, em relação à capacidade de aprendizagem dos alunos, e propõe uma reflexão mais fundamentada sobre o que é falta de aptidão.

Entre tantos mitos, cada um merecedor de uma reflexão em separado, vou tentar tratar, como já foi dito, do último da lista, que está relacionado a uma compreensão do que seja aptidão para aprende LEs. (LOPES, 1996, p. 65)

Uma das queixas que o autor traz nesse estudo se relaciona com a falta de preparo dos profissionais desse setor, que seguem reproduzindo uma linha de raciocínio instalada erroneamente tanto do ponto de vista social quanto acadêmico, deixando clara a falta de engajamento de cada um desses docentes em pesquisar, analisar e refletir sobre as reais razões que têm levado o ensino de LI no Brasil ao atual fracasso. A falta de noção da real finalidade de se aprender LI na escola e a crença enraizada de que inglês não é para todos têm sido repassadas, geração após geração, nas escolas de formação de professores, o que consequentemente é transmitido aos alunos que poderão, também, se tornar professores reprodutores do mesmo pensamento, contribuindo para um encadeamento de equívocos. Moita Lopes, citando Soares, lamenta o fato de essa noção ser reproduzida na própria escola “[...] que •50

tem sido descrita como uma escola contra o povo ao invés de uma escola para o povo.”. É grave a ideia de que a própria escola contribui para que alunos realmente sintam que sua linguagem, cultura e história não fazem parte do universo de ensino-aprendizagem ideal. Essa ideia colabora com a falsa crença de que alunos de regiões de classe econômica baixa são de fato deficientes e não são capazes de aprender, roubando-lhes a oportunidade de exercerem suas cidadanias e mudar assim suas realidades. Contudo, Lopes, na tentativa de desconstruir esses mitos, defende a ideia de que a habilidade para aprender línguas pode ser desenvolvida normalmente em sala de aula. Basta que instituições, professores e alunos estejam cientes dos reais objetivos de saber uma LE, que sejam preparados adequadamente para isso e que todos acreditem na eficiência desse processo, pois, segundo o autor, não existe fundamento científico algum “[...] que correlacione aptidão para aprender LEs e classe social” (LOPES, 1996, pág. 75). Além disso, ao disseminar nos meios acadêmicos e escolares os mitos da falta de inteligência, inaptidão e pobreza, alunos que veem seus mestres como detentores do saber, porque sentem a necessidade de um referencial, um porto seguro, acabam por acreditar nessas mensagens e tê-las como verdades absolutas.

O FATOR TEMPO

Continuando no confronto das realidades encontradas nas escolas no campo de LI, ambas situadas na zona oeste do Rio de Janeiro, mas com realidades sociais bem diferentes, percebemos que o valor atribuído ao inglês na escola onde se detectou sucesso é de tal forma que, além do inglês curricular dentro dos padrões, a instituição reconhece a finalidade e o poder social do idioma, oferecendo para aqueles que compartilham da mesma noção três horas a mais (por dia) de contato com a LI.

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Em um caminho oposto ao citado acima, a primeira escola, vítima de fatores sociais e políticos que a limitam, segue com dois tempos semanais de apenas 50 minutos cada um. Realmente, considerando o esforço para adequar os métodos, o uso da tecnologia e administrar bem a finalidade do ensino-aprendizagem de LE, sem o tempo ideal para isso, a tarefa continuará sendo enfadonha e passível de desanimo, descrédito e fracasso. Pois, conforme argumenta Mühle (2003, pág.183), “[..] é humanamente impossível para o professor e os alunos construir conhecimento sendo interrompidos a cada 50 minutos”. E, de acordo com as palavras de uma professora universitária.

“[...] o tempo é o inimigo da liberdade quando se pensa em construir conhecimento. Somos ainda muito disciplinares: queremos construir conhecimento, dando sinal de 50 em 50 minutos.”. (MÜHLE, 2003, p. 183).

Na intenção de organizar a distribuição das disciplinas, o tempo destinado às aulas de inglês, além de insuficiente, fica fragmentado, dificultando a conexão dos conteúdos ministrados em aulas curtas e picadas. Mühle (2003, p. 183) diz que “[...] são questionadas as concepções que defendem que é antipedagógico o professor ficar com os alunos uma manhã inteira ou uma tarde inteira.”. A autora argumenta que antes de iniciar o segundo segmento do Ensino Fundamental não é considerado antipedagógico a permanência dos professores uma manhã ou uma tarde inteira com a mesma turma. O mesmo podemos encontrar nas universidades onde os professores ficam uma noite com a turma e nos cursos de pós-graduação até um dia inteiro construindo conhecimento. Mühle (2003) questiona o porquê dessa prática se modificar justamente na fase em que o aluno mais tem inquietações e quando o espírito argumentador que busca respostas para tudo está aflorando.

Por que exatamente na 5ª série, quando o aluno está desabrochando para a argumentação, em que fervilham os questionamentos, as buscas, quando emerge a vontade de conhecer os porquês, fragmentamos tudo? Por que só se fragmenta os horários entre a 5ª série do Ensino Fundamental e o 3º ano do Ensino Médio? Não é nessa fase que o espírito perquiritório poderia ser aprofundado e amadurecido? (MÜHLE, 2003, p.183)

Um leigo pode até se perguntar se 50 minutos de aula não seria um tempo razoável, no entanto quem vive a experiência em sala de aula sabe que, antes de estar pronto para iniciar os trabalhos com os alunos, muito desses 50 minutos já foram gastos com o deslocamento de uma sala para outra, com chamada, com a seleção do material a ser usado para as diferentes turmas, sem contar que, com a saída de um professor e a entrada de outro, os alunos se agitam, fazendo com que o próximo professor os ajude a encontrar a postura ideal para o início da aula. Perde-se com esses procedimentos grande parte do tempo disponibilizado para a disciplina e, consequentemente, inviabiliza-se boa parte do planejamento idealizado para a capacitação em LI eficaz, conforme afirma Mühle (2003, p. 184):

Quanto tempo o professor gasta inutilmente deslocando-se de sala em sala, fazendo chamada para 20, 30... alunos, tirando livro, guardando livro, pegando caderno, guardando caderno, atendendo um aluno, enquanto os outros não fazem nada. Quinze para meio-dia: o aluno começa a guardar tudo, louco para zarpar da prisão. Tempos atrás, soubemos (não são dados de pesquisa, mas de observações) que se desperdiça 40% de tempo

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em um turno.

Ainda em relação à questão da dificuldade em administrar o curto tempo destinado às aulas de inglês, Mühle (2003) ressalta quão danosa essa prática pode ser, não só para o processo de ensino-aprendizagem da LI, mas também para o profissional que se vê diante de um processo inicia-interrompe-reinicia. O autor, referindo-se ao professor, questiona: “O que se passa na cabeça dele?”.

Talvez para os professores incompetentes essa seja a melhor forma de se manterem até a aposentadoria. Mas aquele profissional que lê, estuda, quer buscar mudança na sua prática, tenta construir conhecimento, dando ao processo um começo, meio e fim e é obrigado a pingar um pouco aqui, um pouco ali? E no dia seguinte precisa começar tudo de novo para trazer os alunos para o processo? (MÜHLE, 2003, p. 184)

O autor faz a comparação desse trabalho interrompido do professor com o realizado pelos computadores e seus programas, que são capazes de executar, encerrar e reiniciar uma tarefa instantaneamente e a qualquer momento, pois são máquinas programadas para isso. Dessa forma, ele lembra: “Esse respeito o ser humano merece, pois não somos computadores.” (MÜHLE, 2003, p.184-185) No entanto, Mühle, apesar do incentivo à ousadia na questão tempo, faz uma alerta: Se for para continuar com a antiga prática, com uma metodologia retrógrada e nada motivadora, o tempo a mais além de não representar ganhos, poderá agravar o desinteresse, “[...], pois se os alunos já não aguentavam uma hora-aula, agora cinco?” (MUHLE, 2003, p. 185). Escolas, como uma dentre as que observei e •52

citei nesse trabalho, que reconhecem o valor do ensino-aprendizagem do inglês, têm dedicado esforços para que esse processo tenha os melhores resultados. A segunda escola observada oferece aos alunos interessados horas a mais de contato com a língua inglesa através de um setor denominado “Extensão em Inglês”. Assim, de acordo com seus interesses, os alunos podem optar por fazê-lo ou não. Considerando que a escola utiliza seu próprio espaço físico e recursos para o funcionamento da Extensão e que o investimento feito pelos pais dos alunos é que possibilita a contratação de professores especializados em LI, acreditamos que a implementação desse sistema em qualquer escola (pública ou privada) não é tão inviável assim. E, pensando na instituição pública, Mühle (2003, p. 184) afirma que “[...] algumas experiências estão sendo realizadas em escolas, onde em uma manhã, por exemplo, os alunos têm ambiente e tempo integral com língua portuguesa, outra manhã, em ambiente propício, matemática...”.

INGLÊS E GLOBALIZAÇÃO

Vivemos em um momento histórico em que a tecnologia, difundida e acessada nos lugares mais inimagináveis do planeta, tem transformado culturas ao ponto de tornar as diversas sociedades, no ponto de vista cultural, livres, conscientes e heterogêneas. E o inglês, segundo Moita Lopes (2007), por meio das tecnologias, ajuda a construir a globalização. A língua inglesa é uma das línguas mais utilizadas nesse canal “[...] possibilitando a comunicação através do globo, como uma língua do conhecimento, da mídia, da Internet, do mercado e do poder.” ( LOPES, 2007, p. 312). No entanto, ao passo que se tem consciência do papel do inglês em tempos híbridos como o que temos vivido, é importante estar atento à finalidade desse conhecimento, para que o foco de se acessar as diversas culturas tenha como objetivo a não alie-

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nação cultural e a contribuição para o crescimento e transformação social. Entender a importância do uso da LI para estabelecer comunicação e estreitar laços entre os povos é essencial para a compreensão de como e porque as culturas se miscigenam e perpassam os indivíduos, contribuindo com suas influências nas transformações sociais. Capacitar a sociedade com essa consciência, através da educação, é afastar preocupações como a destruição da língua nacional, conforme argumenta Moita Lopes (2007, p. 315):

Muitos países (por exemplo: França, Espanha e Brasil) têm procurado estabelecer normas ou leis que barrem o que entendem como destruição de suas línguas nacionais pela invasão do inglês. ...e no Brasil há uma lei em tramitação no Congresso que tem o objetivo de policiar o uso do inglês, pois teme-se a hibridização do português brasileiro pelo inglês [...]

Moita Lopes afirma ainda que no Japão, apesar de discutirem o assunto, não existe nenhuma lei que limite a entrada ou o uso do inglês no país; pelo contrário, o governo reconhece sua importância e “[...] valoriza sobremodo o ensino de inglês na escola.” (LOPES, 2006 p.315), talvez por já compreenderem o real papel dessa língua em suas sociedades e num mundo globalizado. Do ponto de vista da autora desse artigo, não como fonte de pesquisa, mas como uma observação, os países em desenvolvimento, como o Brasil, precisam passar a instruir mais o povo ao invés de proibir e/ou limitar o conhecimento. E a escola, até então, é o ambiente propício para isso. Voltando ao tema da globalização e o inglês como instrumento que a facilita, entendemos que, nesse cenário, a aquisição da LI, que era vista como um símbolo de status social, passou a ser atualmente tão importante quanto saber a língua materna.

Lopes destaca ainda o quão atrasado o Brasil está em relação ao ensino-aprendizagem de inglês ao considerar o que Graddol (2006 apud LOPES, 2007, p. 316) afirma.

Graddol (2006) argumenta, porém, por meio de um modelo da teoria de difusão de inovação, usado na análise de mercado, que o declínio do inglês é iminente porque vai alcançar um estágio de saturação de interesse, da parte do contingente de pessoas que poderiam adotá-lo como língua global. Essa projeção é também decorrente da probabilidade de o uso de inglês passar a ser incluído como uma habilidade básica na escola.

Hoje já muito se ouve falar na ascensão da China no mercado econômico mundial. Com isso, as exigências educacionais já começam a ganhar novo olhar no campo de LE, que passa a ver o inglês como uma língua comum e não mais como um diferencial. [...] é necessário rever os modelos de inglês como língua estrangeira com que operamos, pois a aprendizagem de inglês que era, normalmente, percebida como um índice emblemático de classe social, ou seja, como “uma realização elegante e símbolo de status social” [...] passa a ser entendida, em muitas partes do mundo, como um dos conhecimentos constitutivos da educação básica, juntamente com letramento na língua materna ou oficial, habilidades matemáticas ou numeramento e letramento computacional. (LOPES, 2007, p. 316)

Essa realidade revela um país que tem caminhado a passos lentos em relação à LE e que necessita reformular seus conceitos, caso seu interesse se

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volte para seu crescimento e ascensão em relação ao grupo de países considerados desenvolvidos. Do contrário, conforme afirma Moita Lopes , pelas palavras de Graddol (2006 apud LOPES, 2007), “[...] a vulgarização do inglês vai fazer as classes médias procurarem outra mercadoria linguística (outras línguas estrangeiras) para marcar seu diferencial no mercado [...]”, mantendo a noção enraizada na sociedade de que uma LE plena é privilégio exclusivo das classes dominantes da sociedade que podem pagar para terem esse diferencial. Tradição que tolhe as possibilidades e o direito de que cada cidadão que anseia por um país mais justo faça parte desse mundo global e seja também um dos cidadãos desse novo mundo que traz novos pensamentos, conhecimentos, realidades e inúmeras possibilidades de transformação social.

do e suas transformações, colaborando para o crescimento como cidadãos e como participantes de uma sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É inegável que há um longo caminho a ser percorrido no campo de LE no Brasil, considerando que as mudanças não dependem apenas de instituições, de professores e alunos. Contudo, o professor pode construir conhecimento significativo, quando fica claro para ele e para seus alunos o papel central da educação na vida de cada indivíduo e de que forma ela pode contribuir para que um mundo mais justo seja uma verdade.

Respondendo as questões abordadas neste artigo, percebe-se que a valorização do ensino-aprendizagem de LI tem sido notável na segunda escola, onde se destaca o uso do ecletismo como metodologia de ensino. O esforço, a dedicação e a organização no uso das tecnologias, a conscientização de toda a comunidade escolar sobre a verdadeira finalidade de se saber LI e seu papel num mundo globalizado também é observado. Menciona-se ainda a questão do tempo em que, além das horas do inglês curricular, a escola, reconhecendo a importância desse idioma, oferece três horas a mais por dia aos alunos interessados em aprofundar seus conhecimentos. Ao fazer um levantamento através de pesquisa bibliográfica realizada sobre a verdadeira finalidade do ensino e da aprendizagem de inglês nas escolas, conclui-se que o papel do inglês tem importância fundamental no mundo globalizado. Saber um idioma considerado universal é essencial para que todos tenham o direito e a oportunidade de acessar espaços, culturas e conhecimentos que podem contribuir para uma compreensão de mun•54

Corroborando com o que aponta os PCNs e as Leis de Diretrizes e Bases, que garantem o direito a uma LE para todo cidadão, Anjos (2008) e Moita Lopes (1996, 2007) fundamentam a ideia de que Inglês é para todos. Os autores também reprovaram a antiga noção de que somente as classes sociais consideradas economicamente privilegiadas podem acessar esse conhecimento, pois o direito a este é para todo cidadão. Além disso, esse pensamento pode continuar levando o país a manter a dura realidade educacional no campo de LE que exclui os alunos menos privilegiados, mantendo as diferenças entre as classes sociais e determinando cada vez mais quem continuará a ser comandante e quem continuará a ser comandado.

A partir do primeiro contato com o ensino e aprendizagem de LE que se teve na primeira escola, pôde-se confirmar que realmente há falhas nesse processo e que muito ainda é preciso ser feito para que seus objetivos sejam plenamente alcançados. No entanto, atuando na segunda escola, que, infelizmente, é voltada somente para um público de classe média alta, pôde-se perceber que não é preciso grandes investimentos para que a LI flua adequadamente e também que essas mudanças, apesar de difíceis, são possíveis, desde que sejam considerados os caminhos apontados por pesquisadores e estudiosos da área que muito têm contribuído para que o campo de LEs mude para melhor. E que aprender inglês seja uma realidade da escola e não somente de cursos livres, conforme ressalta Celani

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(1997, p. 159) quando afirma ser “[...] fundamental evitar o fracasso na aprendizagem de línguas na escola, para se acabar, de uma vez por todas, com a falsa ideia de que língua estrangeira só se aprende fora da escola.”. Por fim, deseja-se que os apontamentos feitos nesta pesquisa possam contribuir para uma reflexão sobre um fazer educacional mais consciente e eficaz, capaz de fazer a diferença na vida de cidadãos que podem, devem e irão participar das transformações sociais. Mas que essa participação possa ser positiva e significativa ao ponto de ser atribuída a uma educação de qualidade.

MOITA LOPES, L. P. da. Inglês e Globalização em uma Epistemologia de Fronteira: Ideologia Linguística para TEMPOS HÍBRIDOS. D.E.L.T.A., 2007. p. 309340. MÜHLE, Adelar Renge. Gestão de Ensino e Práticas Pedagógicas. São Paulo: Vozes, 2003. PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira. English Language teaching and learning in the age of Technology. 2012. ______. _____. O uso da tecnologia do ensino de línguas estrangeiras: breve retrospectiva histórica. 2008.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANJOS, Flavius Almeida. Qual a verdadeira finalidade do ensino da língua inglesa na escola. 2008.

VILAÇA, Márcio Luiz Corrêa. Métodos de Ensino de Línguas Estrangeiras: fundamentos, críticas e ecletismo. 2008.

BARDIN, Lawrence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1997. CELANI, Maria Antonieta Alba. Ensino de línguas estrangeiras: Olhando para o futuro. 1997.

Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN – Objetivos gerais do Ensino Médio, parágrafo primeiro, inciso II).

CURY, Augusto Jorge. Pais brilhantes Professores fascinantes. 15. Ed. Rio de janeiro: Sextante, 2003. HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-modernidade. In: ______. __________. A Identidade em Questão. p. 7-22 MOITA LOPES, L. P. da. Oficina de Linguística Aplicada: “Eles não aprendem português quanto mais inglês”. A ideologia da falta de aptidão para aprender línguas estrangeiras em alunos de escola pública. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1996. p. 63-80. MOITA LOPES, L. P. da. Oficina de Linguística Aplicada: A função da aprendizagem de línguas estrangeiras na escola pública. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1996. p. 127-135. Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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AS CORES DO CAMALEÃO: A HIBRIDEZ DO GÊNERO CRÔNICA E A PÓS-MODERNIDADE Iasmin Rocha da Luz Araruna de Oliveira (Graduação ― UERJ)

RESUMO A crônica se situa na fronteira entre o jornalístico e o literário. Nascido na modernidade, este gênero literário assume no mundo pós-moderno, momento em que os indivíduos são cada vez mais bombardeados com informações diversas, o papel de traduzir o instante e o rotineiro, mas também de promover reflexões, o que é feito com maestria por autores como Ruben Braga, Luis Fernando Veríssimo, Lima Barreto e Fernando Sabino.

Palavras-chave: crônica, pós-modernidade, hibridez.

INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo traçar um panorama da crônica como gênero textual e entender como este se relaciona com a pós-modernidade. Para isto, serão realizadas três etapas. A primeira etapa consiste numa definição das características da crônica por meio da comparação de textos de quatro cronistas, dentre eles Fernando Sabino, Lima Barreto, Luis Fernando Veríssimo e Ruben Braga. A segunda etapa está centrada na análise da crônica “A queixa do defunto”, de Lima Barreto. Aspectos como a linguagem, recursos linguísticos, narrador e tema serão colocados em voga. Já a terceira etapa foca nas relações entre o gênero crônica e a pós-modernidade, apresentando de que modo este gênero se insere na sociedade de consumidores e em que pontos ele ratifica os modelos desta sociedade ou os questiona. Para isso, além dos textos dos cronistas apresentados acima, serão utilizados textos teóricos de autores como Zygmunt Bauman, Michel Foucault, Walter Benjamin, Antonio Candido e outros. O título do trabalho se relaciona à capacidade da crônica de congregar em si características diver•56

sas. Assim como camaleão que adquire as cores do meio para se adaptar, a crônica com sua aparente simplicidade se amolda ao cotidiano e traduz o instante, mas também é capaz de rememorar e de sobreviver as adversidades do tempo e do espaço em que se insere.

A CRÔNICA E SEUS PERCURSOS

A crônica é múltipla. Atrás de sua aparente simplicidade, ela esconde uma linha tênue que separa o texto jornalístico do texto literário. Assumindo formas variadas, que vão desde a alegoria à entrevista, a crônica combina gêneros e recria a realidade. Escrita por jornalistas-escritores e originária dos folhetins, ela está presente nas redações dos jornais desde o século XIX e mistura cultura de massa, arte, jornalismo e literatura. Por congregar tantas características diversas, a crônica é um gênero híbrido. Ao mesmo tempo em que se insere no instante, já que sua publicação está vinculada aos jornais diários, que logo serão descartados para dar lugar a novos acontecimentos, a crônica também traz em si arte e memória. É por meio da crônica que o narrador moderno obser-

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va sua realidade e relata informações e vivências. Como um voyeur, o cronista observa e conta acerca do seu cotidiano, situando-se numa fronteira entre o histórico, o referencial e o poético. A crônica, enquanto produto, serve como exemplo para discussão cultural da pós-modernidade e o cronista é um vetor de articulações entre mídia e literatura, num universo permeado pela hibridez. Mesmo fazendo parte da indústria cultural1, a crônica ironiza e se utiliza do humor para iluminar aquilo que é apagado pela mídia. O cronista está também na posição de “historiador. Intérprete que vai apresentar e recriar, com imaginação, um fato, um acontecimento, alguém que narra e que vive sob o primado da narrativa” (BORELLI, 1996, pág. 68). Isto Lima Barreto faz com primazia. Em sua crônica “A polícia suburbana” o autor começa seu texto apresentando um jornal que traz a notícia de que algumas delegacias suburbanas estavam abandonadas. Os comissários das delegacias e os soldados dormiam. Partindo desta observação, o autor, através de seus olhos, mostra ao leitor as suas impressões sobre a falta de policiamento nos subúrbios da primeira república e faz uma crítica ao Estado por meio da ficcionalização de uma situação cotidiana.

Os jornais, com aquele seu louvável bom senso de sempre, aproveitaram a oportunidade para reforçar as suas reclamações contra a falta de policiamento nos subúrbios. Leio sempre essas reclamações e pasmo. Moro nos subúrbios há muitos anos e tenho o hábito de ir para a casa alta noite. Uma vez ou outra, encontro um vigilante noturno, um policial e muito poucas vezes é-me dado ler notícias de crimes nas ruas que atravesso. A impressão que tenho é de que a vida e a propriedade daquelas

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Adorno, em parceria com Horkheimer, disserta sobre o conceito Indústria Cultural num capítulo específico do livro Dialética do Esclarecimento.

paragens estão entregues aos bons sentimentos dos outros e que os pequenos furtos de galinhas e coradouros não exigem um aparelho custoso de patrulhas e apitos. Aquilo lá vai muito bem, todos se entendem livremente e o Estado não precisa intervir corretivamente para fazer respeitar a propriedade alheia (...) (BARRETO, 2013).

Por meio da crônica, Lima Barreto estabelece um diálogo com seus leitores e mostra sua preocupação com questões ligadas à cidadania. Por meio de uma linguagem coloquial, o autor delineia os contornos do Rio de Janeiro suburbano dos primeiros anos da nossa república. O cronista constrói o leitor com quem dialoga, o qual não é mais pertencente às classes burguesas e se identifica com as mazelas sofridas no cotidiano dos desfavorecidos. O cronista articula o individual ao coletivo e, por meio da recriação imaginativa de um fato, provoca no leitor empatia. A situação particular contada pelo escritor causa empatia apenas na medida em que representa situações universais. A crônica de Lima Barreto, embora contada do ponto de vista do narrador-personagem, pois este faz parte da vida suburbana e relata sua experiência, representa toda uma situação social coletiva, que, embora pertença aos primeiros anos da república, ainda se faz presente nos dias atuais, pois as classes desfavorecidas ainda sofrem com interferências negativas do Estado e da polícia. A recomposição da história individual é um modo pelo qual o cronista compõe também a história coletiva, na medida em que estamos ligados a diversas heranças culturais. Segundo Benjamin (apud BORELLI, 1996, pág. 68), ao cronista, além de colecionar os cacos da memória, cabe também o trabalho de se inserir no fluxo insondável das coisas. O cronista é, de certo modo, historiador, intérprete e colecionador. Na crônica “O Padeiro”, de Ruben Braga, o narrador fala sobre a experiência que teve

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quando era rapaz, na qual ele interroga um padeiro acerca do porquê este se referir a si mesmo como ninguém.

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém... Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno (BRAGA, 1989, pág. 64).

O autor discorre sobre um fato do seu passado com o intuito de fazer uma reflexão. No texto, Ruben Braga põe em xeque a falta de identidade daqueles com profissões consideradas simples, os quais, muitas vezes, trabalham à noite para prover o conforto de outros, que recebem o produto de seu trabalho pela manhã. O narrador-personagem faz também um paralelo entre a profissão de padeiro e a de jornalista, o que fica explícito pela comparação figurativa entre o trabalho de ambos: “o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do for•58

no” (BRAGA, 1989, pág. 64). O narrador faz ainda alusão à importância que este dava a si mesmo quando jovem por assinar algo no jornal e mostra, no último parágrafo, como aprendeu uma lição de humildade com o padeiro. Isto convida o leitor a refletir sobre o valor social do trabalho dentro da sociedade e nas relações interpessoais. Por meio do uso da linguagem coloquial, com uma aparência de “bate papo”, e de uma situação corriqueira, Ruben Braga faz com que realidade e ficção se interliguem e com que os personagens façam parte do universo simbólico dos leitores. De acordo com Borelli (1996), uma das características essenciais da crônica diz respeito justamente a essa articulação entre os espaços do cotidiano e os espaços da ficcionalidade. É o uso da linguagem literária do narrador misturada à reflexão sobre a realidade que dá à crônica sua ambiguidade e é justamente isso que imprime beleza a este gênero textual. De acordo com Benjamin (1989), embora narrador seja um nome que soa familiar aos nossos ouvidos, aquele não está presente entre nós na atualidade, na medida em que narrar implica experiência e, para o autor, esta está cada vez mais em vias de se extinguir. Apesar disso, a crônica, gênero nascido na modernidade, pode ser uma via de resgate da experiência, ainda que isto se dê no espaço da tradição. O narrador da modernidade é aquele que, ao invés de partilhar experiências e dar conselhos, relata suas vivências. Suas histórias são o resultado de um novo meio de articulação de experiências, as quais derivam de um requintado trabalho de observação dos acontecimentos. Fernando Sabino, em “A última crônica”, mostra ao leitor o olhar atento do narrador ao que se passa em um boteco na Gávea, no Rio de Janeiro.

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Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentarse, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da hu-


mildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los (SABINO, 1965, pág. 174).

vida pós-moderna e conduz o leitor a uma reflexão.

Começou na mesa do almoço. A família estava comendo — pai, mãe, filho e filha — e de repente a mãe olhou para o lado, sorriu e disse: — Para a minha família, só serve o melhor. Por isso eu sirvo arroz Rizobon. Rende mais e é mais gostoso. O pai virou-se rapidamente na cadeira para ver com quem a mulher estava falando. Não havia ninguém. — O que é isso, Dolores?

O narrador da crônica é o voyeur, o qual conta determinado fato, enquanto um espetáculo ao qual assiste. Fernando Sabino remonta uma situação cotidiana, um momento na vida de uma família num botequim do Rio de Janeiro. O cronista deixa revelar o instante, o presente que tem uma duração curta num espaço de tempo. Essa é mais uma característica da crônica, a efemeridade, a capacidade de relatar acontecimentos fluidos do dia-a-dia. De acordo com Candido (1992), a crônica é filha do jornal e da era das máquinas. Aquela não tem pretensões quanto à durabilidade. Ela é breve e se insere no contexto das informações passageiras. Num mundo saturado de informações como o contemporâneo, a crônica assume o papel de traduzir o instante para, no dia seguinte, ser descartada junto ao jornal. O cronista brinca com o leitor da vida moderna e aciona os mecanismos simbólicos do imaginário coletivo para que esse leitor se identifique com o texto, “por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia” (CANDIDO, 1992, pág. 13). Isso se traduz na crônica “O estranho procedimento de dona Dolores”, de Luis Fernando Veríssimo. Por meio de seu tom bem-humorado e de diálogos que se aproximam da coloquialidade da linguagem oral, Veríssimo explora os males da publicidade e do consumismo na

— Tá doida, mãe? Mas dona Dolores parecia não ouvir. Continuava sorrindo. Dali a pouco levantou-se da mesa e dirigiu-se para a cozinha. Pai e filhos se entreolharam. — Acho que a mamãe pirou de vez. — Brincadeira dela... (VERÍSSIMO, 1994, pág.48)

A crônica dá voz às pequenas coisas da vida e brinca com as situações do cotidiano, tornando-as inusitadas, como no texto de Veríssimo. Visto no instante, esse gênero textual é capaz de durar quando se transforma em livro. A crônica, embora seja um braço do jornal e um ramo da árvore da efemeridade, pode tornar-se imortal. Por ser um gênero que tem como matéria-prima aquilo que é pequeno, transforma a literatura em algo pertencente à intimidade.

Isso se traduz no modo com o a crônica se relaciona com o leitor. Nesse gênero textual, o diálogo com o leitor se faz de modo mais aberto. Em geral, os cronistas utilizam uma linguagem mais coloquial em seus textos e algumas crônicas apre59• Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016


sentem um diálogo direto com o leitor, sem que haja estruturas complexas. A linguagem se torna mais leve e menos hermética, de modo que a lógica argumentativa dê também espaço à poesia. Segundo Candido (1992), num país em que a superioridade intelectual e literária era frequentemente associada à eloquência gramatical e ao requinte da escrita, a crônica transformou a linguagem em algo mais simplificado e natural, atingindo o ponto máximo na contemporaneidade. A busca de uma oralidade na escrita aproximou o leitor do texto, que identifica marcas do seu dia-a-dia nas crônicas. Lima Barreto e Ruben Braga são dois autores que se utilizam frequentemente do narrador em primeira pessoa nas suas crônicas.

Leio sempre essas reclamações e pasmo. Moro nos subúrbios há muitos anos e tenho o hábito de ir para a casa alta noite. Uma vez ou outra, encontro um vigilante noturno, um policial e muito poucas vezes é-me dado ler notícias de crimes nas ruas que atravesso. A impressão que tenho é de que a vida e a propriedade daquelas paragens estão entregues aos bons sentimentos dos outros e que os pequenos furtos de galinhas e coradouros não exigem um aparelho custoso de patrulhas e apitos. (BARRETO, 2013).

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que

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obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo. (BRAGA, 1989, pág. 63).

O uso da primeira pessoa permite a criação de estratégias de aproximação do leitor, como a confissão de determinadas vivências do narrador que comprovam seu conhecimento sobre alguma situação específica. Lima Barreto, na passagem apresentada, fala sobre a situação das delegacias de polícia nos subúrbios e sobre as suas impressões sobre como a paz é mantida sem que haja interferência do aparelho estatal. Já Ruben Braga rememora sua leitura sobre a greve para introduzir ao leitor um acontecimento que se passou em sua vida. Para que o leitor entenda o texto de Braga, é necessário que este ative uma série de conhecimentos prévios, como, por exemplo, o fato de que uma greve é um mecanismo de reivindicação de direitos no campo do trabalho. Partindo disso, pode-se entender em que ponto a crônica dialoga com a ideia de narrador benjaminiano, na medida em que aquela oferece ao leitor uma reflexão, uma experiência compartilhada. A crônica remota a tradição de contar e recontar histórias por meio da poetização do cotidiano. Como uma fronteira de linhas tênues que separa o discurso literário de um produto do desenvolvimento tecnológico e midiático, este gênero literário híbrido chama o leitor para uma conversa, intercambiando conhecimentos. Os cronistas, enquanto narradores da modernidade e da pós-modernidade, apresentam em seus textos rupturas e continuidades das tradições. O escritor, que desempenha diversos ofícios, se compromete em escrever de modo a articular a realidade e a ficcionalidade contidas no imaginário individual e coletivo. Para Borelli (1996), o espaço dos cronistas, a ampliação do sentido do que é o texto literário e a tenção de oferecer novos contornos à história da literatura permitem que se declare, na modernidade, a existência de narradores,

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de tradições e de trocas eventuais de experiência (BORELLI, 1996, págs. 84-85). Diante disso, é na hibridez do gênero da crônica que convivem narradores, literatura, jornalismo, tempos e espaços distintos, instante e memória. Num mundo cercado e dominado pela indústria cultural, em que os cronistas precisam produzir na lógica do mercado, a crônica encontra seu espaço de ambiguidade e conquista cada vez mais leitores e grandes escritores.

buracos da cidade. Quando chega ao céu, o falecido está todo machucado e São Pedro não permite que entre no paraíso, pois acredita que ele tenha participado de uma briga depois de morto. Lima Barreto, ao representar este acontecimento inusitado, mistura o fantástico e ficcional à realidade cotidiana da cidade. O defunto, nomeado Antônio da Conceição, teve uma vida pobre e marginalizada e seu único sonho era poder descansar depois da morte, no entanto, por conta das péssimas condições das ruas do Rio de Janeiro, isso lhe foi negado.

CRÍTICA E HUMOR COLOREM A CRÔNICA: LIMA BARRETO E “A QUEIXA DO DEFUNTO”

Lima Barreto era um escritor comprometido com a defesa dos setores marginalizados pela sociedade brasileira de fins do século XIX e início do século XX. Diferente de outros escritores que foram contaminados pelo clima de euforia da Belle Époque, Lima Barreto fazia críticas ácidas à primeira república e ao tratamento que essa dava às classes populares. Por meio de uma linguagem simples, longe do hermetismo pregado pelos cânones da literatura, este autor retratou o cotidiano de homens oprimidos pelo sistema e procurou mostrar o que havia por trás dos modelos de sociabilidade impostos pelas elites. Na perspectiva de Sevcenko (1985), Lima Barreto procurava “(...) revelar em seus textos um retrato maciço e condensado do presente, carregado do máximo de registros e notações dos vários níveis em que o saber do seu tempo permitia captar e compreender o real” (SEVCENKO, 1983, pág. 161). Na crônica “A queixa do defunto”, Lima Barreto apresenta ao leitor uma situação bastante incomum, o narrador-personagem está morto. O defunto manda uma carta ao prefeito do Distrito Federal, que naquela época era o Rio de Janeiro, queixando-se do fato de que, embora tenha sido um homem modesto e sem máculas, um cidadão exemplar, não conseguiu entrar no céu, devido aos

Foi o que aconteceu comigo e estava certo de ir direitinho para o Céu, quando, por culpa do Senhor e da Repartição que o Senhor dirige, tive que ir para o inferno penar alguns anos ainda. Embora a pena seja leve, eu me amolei, por não ter contribuído para ela de forma alguma. A culpa é da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro que não cumpre os seus deveres, calçando convenientemente as ruas. Vamos ver por quê. Tendo sido enterrado no cemitério de Inhaúma e vindo o meu enterro do Méier, o coche e o acompanhamento tiveram que atravessar em toda a extensão a rua José Bonifácio, em Todos os Santos. Esta rua foi calçada há perto de cinquenta anos a macadame e nunca mais foi o seu calçamento substituído. Há caldeirões de todas as profundidades e largura, por ela afora. Dessa forma, um pobre defunto que vai dentro do caixão em cima de um coche que por ela rola, sofre o diabo (BARRETO, 2013).

O discurso do morto aparece como uma forma

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de expressar as críticas que as populações jogadas à margem gostariam de fazer ao governo e, neste caso, à prefeitura. Lima Barreto utiliza do humor e do tom sarcástico para dialogar com o leitor das classes desfavorecidas e ironiza a situação por meio da fantasia: “De uma feita um até, após um trambolhão do carro mortuário, saltou do esquife, vivinho da silva, tendo ressuscitado com o susto” (BARRETO, 2013). O cronista, por meio das expressões “trambolhão” e “vivinho da silva” dá um tom engraçado e coloquial à queixa do narrador e faz de modo irônico uma crítica às desigualdades sociais. Lima Barreto articula realidade social à ficcionalidade e congrega sua realidade individual, enquanto escritor pertencente às classes populares e preocupado em criticar uma realidade social injusta, a um imaginário coletivo, o que capta a atenção do leitor para a sua crônica. Ao utilizar a forma de uma carta como estrutura textual, o autor dialoga com o leitor e o aproxima do texto. Numa cultura que valoriza o erudito, Lima Barreto se apresenta como uma voz dissonante, já que adota uma estética popular na produção de sua literatura. Na crônica “O Padeiro”, de Ruben Braga, podemos também encontrar essa aproximação com uma linguagem cotidiana e a crítica feita por meio do humor e da vivência pessoal.

história em primeira pessoa após a sua morte. E é por meio da morte que é dada a esses dois narradores a possibilidade de se despir das imposições de comportamento social e de fazer críticas. A voz do defunto denuncia subjetivamente a realidade, na medida em que mostra algumas contradições sociais, como o fato de em vida Antônio da Conceição ter sido um exímio e dedicado lustrador de móveis, mas nuca ter tido seus próprios móveis para lustrar: “Nasci, vivi e morri modestamente, julgando sempre que o meu único dever era ser lustrador de móveis e admitir que os outros os tivessem para eu lustrar e eu não” (BARRETO,2013). Lima Barreto, por meio de seus personagens, adota uma linguagem mais livre e distanciada dos padrões literários eruditos. Esta linguagem coloquial e cheia de ironia se manifesta também quando o narrador faz uma crítica às religiões, que muitas vezes mantinham relações apenas de modo superficial com seus fiéis. Embora Antônio da Conceição fosse um assíduo frequentador da igreja, este não entendia a linguagem arcaica empregada nesta.

Nunca fui ao espiritismo, nunca fui aos ‘bíblias’, nem a feiticeiros, e apesar de ter tido um filho que penou dez anos nas mãos dos médicos, nunca procurei macumbeiros nem médiuns. Vivi uma vida santa e obedecendo às prédicas do Padre André do Santuário do Sagrado Coração de Maria, em Todos os Santos, conquanto as não entendesse bem por serem pronunciadas com toda a eloqüência em galego ou vasconço (BARRETO, 2013).

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando: - Não é ninguém, é o padeiro! (BRAGA, 1989, pág. 63).

Assim como o narrador de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o narrador de Lima Barreto é um defunto-autor que conta sua •62

É interessante como o autor se utiliza de recursos linguísticos para dar sentido ao seu texto e ênfase em sua crítica. Na passagem “Não fui republicano, não fui florianista, não fui custodista, não fui hermista, não me meti em greves, nem coisa algu-

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ma de reivindicações e revoltas, mas morri na santa paz do Senhor quase sem pecados e sem agonia” (BARRETO, 2013), o cronista usa da redundância2 para ligar os fios soltos do texto e para ratificar o fato do narrador ser, aos olhos do governo, um cidadão exemplar, sem envolvimentos políticos e sem histórico de lutas pelos seus direitos. Apesar de ter vivido sua vida de modo pacífico, esperando que a morte o recompensasse, o narrador não atinge o que esperava por culpa da prefeitura. Desse modo, o defunto é uma voz de inconformismo na crônica. O fantástico e o real se entrelaçam para dar vida a um narrador que representa os marginalizados e desprezados pelas elites, mas que possui valores como a honestidade e a modéstia. Num modelo de civilização higiênico, profundamente influenciado pelos valores franceses da Belle Époque, Lima Barreto representa, por meio de Antônio da Conceição, a loucura e a desordem, um mundo velado por trás das aparências burguesas.

divíduos não têm tempo para digerirem e refletirem sobre as informações, já que estas são rapidamente eliminadas e substituídas. Desde seu começo, o livro foi, sobretudo, um diálogo perpétuo entre a narrativa e a experiência humana. Ainda que, diferentemente das histórias contadas pelos narradores benjaminianos, o livro é capaz de estabelecer um vínculo entre leitor e texto literário. Com o advento da imprensa, as narrativas puderam circular sem que fosse necessário um contador de histórias. A experiência coletiva da narração deu lugar à leitura individual. Segundo Bauman (2003), a função do livro na pós-modernidade está associada à emergência do verdadeiro sentido da experiência humana, no entanto, essa função se torna cada vez mais complexa, na medida em que a natureza da experiência é cada vez mais mutável. A vida se fragmentou em acontecimentos episódicos e o tempo, antes linear ou cíclico, se tornou pontilhado3, não há mais conexão entre passado e presente e presente e futuro.

A CRÔNICA NA LÓGICA DO MUNDO DE CONSUMO

Os acontecimentos, noticiados com destaque pela mídia e, simultaneamente, sepultados por ela no esquecimento, criam realmente, por um breve período, seu próprio “público”, por sua vez efêmero, que se dispersa com uma rapidez tão grande quanto aquela em que se constituiu, sem nada acrescentar à sua própria coesão (BAUMAN, 2008, pág. 31).

A sociedade pós-moderna é caracterizada pela liquidez, pois tanto as relações entre as pessoas e os produtos quando a relação entre aquelas e outros indivíduos são marcadas pela ausência de laços sólidos. Na era moderna dos produtores, os bens duráveis eram valorizados. O livro era uma marca de intelectualidade e um objeto de conhecimento ou entretenimento. Já na pós-modernidade, vive-se num mundo marcado pelo excesso de informações. Todos os dias os meios de comunicação bombardeiam as pessoas com notícias que logo serão descartadas para darem lugar à apresentação de novos fatos e acontecimentos. Bauman (2008) chama esse processo de empilhamento vertical. Os in2 A redundância, geralmente, traduz a incapacidade do escritor de sintetizar uma ideia ou conceito. É, então, em geral, algo visto como negativo. No entanto, no caso de Lima Barreto, a redundância é usada como um recurso linguístico de ênfase. O autor a utiliza de modo proposital em seu texto.

É nesse contexto em que se insere a crônica, a qual se faz presente no diálogo com o consumismo. Sendo publicada em jornais, de papel e online, a crônica é um produto da indústria cultural, que visa atrair um público consumidor cada vez maior. Embora seja um gênero híbrido, que traduz não ap3

Tempo pontilhado é um conceito cunhado por Bauman. O autor discute com mais profundidade esse conceito em seu livro Vida para consumo.

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enas o instante, mas também a memória e que mescla o jornalístico ao literário, a crônica “permanece o quanto é possível a constância de um jornal, que já é outro a cada dia” (BORELLI: 1996, 72).

partilhar experiências. A própria organização das obras mostra, com a seleção de determinados textos em detrimento de outros, aquilo que tem valor dentro da experiência e aquilo que não tem.

A crônica está inserida na lógica do consumo e de do(suprimir repetição) descarte, é um gênero efêmero, pois dura o tempo de um jornal. Desse modo, apesar da proposta de reflexão de algum tema feita pelo cronista ao leitor, é difícil que este, de fato, consiga fazer uma pausa e realmente pensar com mais atenção. A atenção do leitor desloca-se com rapidez para outras informações ou manchetes.

Como salienta Benjamin (1989), as narrativas tinham como objetivo dar conselhos que servissem para a coletividade. A crônica, em sua faceta literária, provoca reflexões no leitor a partir do tratamento de assuntos problemáticos. Muitas vezes, utilizando-se da ironia e do humor, este gênero literário faz críticas e coloca em voga questões sociais e psicológicas com as quais o leitor se identifica, o que dá certo sentido à vida.

Além disso, o narrador da crônica releva o instante, o cotidiano em episódios de curta duração que são consumidos imediatamente. Cada texto se distancia dos outros e não há um fio conector que ligue as experiências do passado às experiências do futuro, o tempo da produção e do consumo das crônicas é o tempo pontilhado. Como um gênero advindo dos folhetins e ligado à tradição jornalística, este se torna breve para ser informativo. O leitor lê e pensa por alguns instantes para logo transformar o papel do jornal em lixo.

Uma vez publicada em livro, a crônica assume uma certa reelaboração na medida em que é escolhida pelo Autor (em alguns casos, é outra pessoa quem organiza a coletânea). Além disso, ela se torna mais duradoura, porque os textos que envelheceram devido à sua excessiva circunstancialidade não entram na seleção. (SÁ, 1985, pág. 83.)

(...)muitos pensam que narrativa curta é sinônimo de conto. Acontece que o conto tem uma densidade específica [...] A crônica não tem essa característica. Perdendo a extensão da carta de Caminha, conservou a marca de registro circunstancial feito por um narrador-repórter que relata um fato não mais a um só receptor privilegiado como el-rei D. Manuel, porém a muitos leitores que formam um público determinado. (SÁ, 1985, pág. 7).

Diante disso, a crônica se insere como um gênero híbrido e ambíguo dentro da pós-modernidade. Ao mesmo tempo em que é um dos ramos da produção da cultura de massa, ela poetisa o rotineiro e o banal, bastando-se abrir o jornal para ler histórias que encantam e nos levam a diferentes reflexões. O cronista, situado entre o jornalístico e o literário, insere-se e desvia-se da sociedade de consumo e assume os papéis de escritor, jornalista, historiador e memorialista ao dividir vivências cotidianas com os leitores.

CONCLUSÃO Apesar disso, a crônica pode perder seu caráter transitório se passada para o livro. Seu passado jornalístico dá lugar a um presente literário e este gênero se consolida e se torna capaz de com•64

A análise das crônicas e a articulação deste gênero com a pós-modernidade confirmam sua hibridez.

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A crônica é um gênero escorregadio, que ora tende mais para o jornalístico e ora tende mais para o literário, mesclando características referenciais e poéticas. A análise da crônica de Lima Barreto, que tem como narrador um defunto, nos permitiu ver em que medida a realidade e a ficção estão interligadas. Por meio da ironia e do humor, o autor faz críticas sociais bastante profundas e dialoga com o leitor, levando-o a reflexão. Num mundo em que há um bombardeamento cada vez maior de informações e que no qual o pensamento crítico foi deixado de lado em prol da velocidade dos acontecimentos, talvez a crônica seja um oásis diante do qual podemos nos sentar e analisar a vida, a sociedade ao nosso redor e nós mesmos com mais clareza e atenção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARRETO, Lima. A queixa do defunto. Disponível em: <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/ LimaBarreto/cronicas/indice.htm 2013>. Acesso em: 07 de janeiro de 2015. __________________. A polícia suburbana. Disponível em: <http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/ LimaBarreto/cronicas/indice.htm 2013>. Acesso em: 07 de janeiro de 2015.7

BAUMAN, Zygmunt. Consumismo versus consumo. In: Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

BRAGA, Ruben. O Padeiro. In: Para gostar de ler, vol. I -Crônicas. Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12ª Edição. Editora Ática. São Paulo.1989. p.63 - 64. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Obras escolhidas I. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1989, v.1.

BORELLI, Silvia Helena Simões. Crônicas, cronistas, narradores, narrativas. In: Ação, suspense, emoção. São Paulo: editora da PUC-SP, 1996.

CANDIDO, Antônio. A vida ao rés-do-chão. In: A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas/Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/Fundação da Casa Rui Barbosa, 1992, pág. 13-22. SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ática, 1997. SABINO, Fernando. A última crônica. In: A Companheira de Viagem. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1965, pág. 174. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. VERÍSSIMO, Luis Fernando. O Estranho procedimento de dona Dolores. In: O nariz e outras crônicas. São Paulo: Ática, 1994. p. 48-50).

_______________. O livro no diálogo global entre culturas, em Portella, Eduardo (org.). Reflexões sobre os caminhos do livro. Tradução de Guilherme João de Freitas. São Paulo: UNESCO/Moderna, 2003, pp. 15-33.

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OS GÊNEROS TEXTUAIS NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL Igor Pereira Gonçalves (Graduação ― UERJ)*

RESUMO Este trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão acerca do ensino de gêneros textuais nas séries iniciais do Ensino Fundamental, visto que este período consiste na etapa na qual o aluno terá seu primeiro contato com a leitura enquanto conteúdo sistemático. O trabalho estará dividido em três partes: Primeiramente, apresentaremos a forma com a qual geralmente os gêneros são ensinados nessa etapa de ensino. Em seguida, será apresentada uma reflexão acerca dessa prática de ensino, bem como algumas propostas que visem à maior eficácia dessa prática. Por último, desenvolveremos breves considerações sobre a importância se olhar o ensino de gêneros com maior atenção nas séries iniciais. Palavras-chaves: Ensino; gêneros textuais; leitura.

INTRODUÇÃO1

Percebe-se que nos últimos anos, o trabalho com os gêneros textuais vem ganhando espaço nas práticas de ensino de língua portuguesa. O Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), como ressalta Marcusshi, (2008, p.155), privilegiam o estudo da linguagem enquanto gêneros textuais nas escolas. Seria, portanto, função da escola levar textos encontrados na vida cotidiana para que, através destes, sejam apresentados aos alunos os diferentes padrões sócio-comunicativos, composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos variados dos textos. O ensino da leitura e da escrita seria, a partir dessa perspectiva, o momento no qual os alunos refletiriam, se apropriariam e usariam diversos gêneros textuais, como bem aponta Schneuwly e *

Aluno do 6° período do curso de Licenciatura em Língua Portuguesa e Literaturas; bolsista do Programa de Alfabetização, Informação e Documentação PROALFA/UERJ; professor da rede pública de ensino

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Dolz (2004). A respeito disso, Dell’Isola (2007, p.12) também destaca que, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP), no trabalho com os gêneros textuais em sala de aula é imprescindível combinar “estratégias de decifração com estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação”. Vemos, porém, que o trabalho com os gêneros textuais tem gerado muitos conflitos no que diz respeito às práticas pedagógicas, revelando, muitas vezes, o não saber de como se trabalhar esses conteúdos de forma eficiente, sobretudo nas séries inicias do Ensino Fundamental.

OS GÊNEROS TEXTUAIS NA SALA DE AULA

Antes de darmos continuidade a este artigo, é preciso que retomemos a definição de gênero textual. Para Bakhitin (1992), os gêneros textuais seriam

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“tipos relativamente estáveis de enunciados”, ou seja, ao nos depararmos com determinado gênero textual, seria possível perceber aspectos que o caracterizam, podendo, assim, concluir do que esse texto se trata. Podemos dar como exemplo o momento no qual lemos uma receita. Ao lermos esse gênero, rapidamente saberemos o que é abordado nele: instruções para o preparo de um prato. Por isso, dificilmente confundiremos uma receita com um convite, já que se trata de gêneros diferentes, apresentando, assim, aspectos próprios. Marcuschi (2002, p.19) completa a definição de gêneros textuais sugerindo que “são entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa”. Tal declaração deixa-nos clara a importância dos gêneros textuais, já que nossa comunicação se dá por meio destes, mesmo que não percebamos isso. Vemos, assim, que o falante conhece sua língua, mesmo que muitas vezes pense o contrário. A escola seria, então, o lugar no qual refletiríamos acerca da língua, vendo-a como produtora sentido para a vida e para as relações sociais, além de nos auxiliar no processo de apropriação da língua. Quanto a isso, podemos destacar o que afirma os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP, 1997): “Cabe, portanto, à escola viabilizar o acesso do aluno ao universo dos textos que circulam socialmente, ensinar a produzi-los e a interpretá-los.” Seriam, então, os gêneros textuais, a base com a qual se ensinaria a língua portuguesa. Estando em contato com um determinado tipo de texto, analisando-o e refletindo acerca dele, o aluno deveria ser capaz de interpretá-lo e produzir novos textos, revelando, dessa forma, sua compreensão e apropriação da linguagem. Seguindo essa ideia, o estudo com os gêneros textuais em sala de aula ganhou força nos últimos anos. Mas o que acontece é que o uso dos textos acaba geralmente tendo uma abordagem errônea,

visto que seu uso, muitas vezes é esvaziado de sentido tanto no fazer docente, quanto na construção se sentido da linguagem. Essa abordagem parece se tornar ainda mais problemática nas séries iniciais do Ensino Fundamental, pois os gêneros utilizados são aqueles os quais, aparentemente, o aluno pode rapidamente observar sua estrutura, tendo-os, assim, como “receita” para a elaboração do seu próprio texto. Não seria difícil visitar uma sala desse seguimento e observar que nunca se trabalhou tanto as cartas, as receitas, os anúncios e as listas. Não descartamos aqui a importância de tais gêneros para que os alunos, sobretudo do Ciclo de Alfabetização, construam sua compreensão acerca da leitura e da escrita. O que acontece, porém, é que esses gêneros são utilizados à exaustão, mostrando-nos, muitas vezes, não haver nenhuma finalidade com seu uso senão a da decodificação. Rojo (2004, p.03) chama a atenção para o fato de que a leitura não deve ser enfocada

“apenas como um ato de decodificação, de transposição de um código (escrito) a outro (oral), mas como um ato de cognição, de compreensão, que envolve conhecimento de mundo, conhecimentos de práticas sociais e conhecimentos lingüísticos”.

A decodificação seria, portanto, apenas um dos elementos da compreensão textual. Todavia, com a excessiva valorização da decodificação, que observa, sobretudo, a construção composicional do texto, os outros elementos do estudo dos gêneros, como o conteúdo temático e os estilos, ficam em segundo plano. Tal prática partiria do princípio de que, dominando a estrutura de determinado gênero, o aluno poderia reproduzi-lo novamente. Isso, porém, seria

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uma visão artificial de leitura, ou como bem afirma Geraldi (2004), isso não seria leitura, mas apenas uma simulação da mesma. O trabalho com a leitura de diferentes gêneros textuais deveria, portanto, seguir uma abordagem sistemática, na qual o aluno teria a oportunidade de, como um leitor em formação, observar e refletir acerca dos gêneros e suas características: conteúdo temático, estilo e construção composicional (PCNLP,1997). Isso resultaria em uma não familiarização dos alunos com os diferentes gêneros textuais e seus principais aspectos, além de se esvaziar essa prática do seu sentido. Isso se daria pelo fato de não há espaço para uma abordagem reflexiva em um trabalho no qual se lê um texto com o aluno e logo em seguida, o solicita que escreva um texto do mesmo gênero, sem dar-lhe espaço para análise e reflexão.

OS GÊNEROS LITERÁRIOS

leitura realizadas na sala de aula. Isso se torna problemático, pois os textos literários acabam sendo mutilados em grande parte dos livros didáticos. Basta abrirmos alguns livros didáticos para acharmos em muitos deles diversos fragmentos de textos literários, dos quais surgirão exercícios que apenas proporão ao aluno que identifique palavras de determinada classe gramatical e outras atividades que visem apenas a decodificação, como já comentado anteriormente. Para melhor esclarecimento, podemos trazer como exemplo uma parte do livro Aula de Português: encontro e interação, de Irandé Antunes (2003). Essa parte do livro transcreve uma proposta de atividade apresentada em um livro didático a partir da poesia de Sylvia Orthof, Ave Alegria: “Ave alegria,/ Cheia de graça,/ o amor é contigo,/ bendita é a risada/ e a gargalhada!/ Salve a justiça / e a liberdade!/ Salve a verdade,/ a delicadeza/ e o pão sobre a mesa!/ Abaixo a tristeza!/ Ave alegria!” A autora comenta:

A partir da discussão feita anteriormente, chegamos à seguinte indagação: qual o lugar dos gêneros literários nas salas de aula das séries iniciais do Ensino Fundamental? Uma das respostas cabíveis seria a de que os textos literários ficam à mercê da idéia hedonista que se tem da literatura, ou seja, o discurso do ‘ler por prazer’ (DALVI, 2013).

Na proposta de exploração desse texto, primeiro, a única observação feita era: “Ave=salve (é uma interjeição)”. Não se encontrou outra coisa mais interessante senão indicar a classe gramatical a que pertence a palavra. Segundo: o que se pede ao aluno é o seguinte: “Escreva três substantivos e forme frases com eles. (...) Todos os substantivos vinham dentro de um retângulo, tirando do aluno até mesmo a tarefa de descobrir que palavras seriam essas.

Esse discurso revela-se perigoso. Sabemos que seja verdade que se tenha de alimentar no aluno o prazer de ler, mas também deve-se trabalhar para que este mesmo aluno desenvolva uma prática leitora na qual se possa pensar criticamente, além de desenvolver uma visão estética acerca do mundo que o cerca. Além disso, sabemos que o livro didático parece continuar como a base para o ensino de língua portuguesa e, como bem ressalta Marta Passos Pinheiro (2006) em Letramento literário na escola: um estudo das práticas de leitura literária na formação da comunidade de leitores, acaba guiando as práticas de •68

Antunes propõe diversas intervenções que poderiam ter sido feitas a partir do texto. A primeira delas é levar o aluno a perceber a intertextualidade da poesia com as orações do Pai Nosso e da Ave Maria.

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Em seguida, é proposto que se trabalhe a associação semântica entre as palavras do texto, todas remetendo a um campo semântico positivo (alegria, graça, amor, risada, gargalhada, justiça, liberdade, verdade, delicadeza); além de se observar a densidade da poesia expressa pelo uso apenas de substantivos, sem nenhuma “restrição” adjetival. O que mais nos chama a atenção é o fato de o livro de Irandé Antunes ter sido publicado no ano de 2003, ou seja, doze anos se passaram e as propostas dos livros didáticos parecem não estar muito diferentes dos daquele ano. Podemos notar, ainda, os variados aspectos que podem ser explorado dentro de um texto, o quanto o aluno pode apreender a partir de um pequeno texto, aparentemente “simples”. Outra observação é a proposta que o livro didático faz: escrever frases utilizando-se três substantivos diferentes. Essa foi a única proposta de produção textual derivada da leitura do poema. Para um trabalho sistematizado com o gênero poesia poderia ter sido abordada a estrutura do poema, geralmente escrito em versos, a presença das rimas, o destaque dos pares ou grupos de palavras que rimam entre si. Além disso, deveriam ser levadas outras poesias para que os alunos as lessem e percebessem o que seria recorrente entre todas elas, ou seja, quais os aspectos desses textos os fazem ser chamados de poesia e serem agrupados dentro do mesmo gênero.

Uma proposta de trabalho

É a partir da perspectiva exposta anteriormente que Schneuwly et al. (2004) propõe que os gêneros textuais sejam trabalhados. Para ele, uma das maneiras mais produtivas de se trabalhar os gêneros textuais é na forma de sequências didáticas. A ideia é que não se esgote o estudo de um determinado gênero apenas em uma aula, mas sim

que esse gênero seja explorado e realmente compreendido pelo aluno. Para os autores, o objetivo é “ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação comunicativa”. Pretende-se, dessa forma, que o aluno se aproprie de fato desse gênero textual e com isso, aprimore sua escrita e sua capacidade de leitura. Dentro da sequência didática, os alunos teriam o contato com diversos textos do mesmo gênero, que circulariam na sala durante as aulas. A partir daí se desenvolveria um estudo sistemático, no qual também seria dada ao aluno a oportunidade de contribuir nas aulas, expondo suas percepções acerca dos textos e quais características ele percebeu que permeiam os textos lidos. A partir daí, seria proposto que os alunos escrevessem um primeiro texto dentro do gênero estudado. No decorrer das aulas e das leituras, os alunos perceberiam como esse gênero se organiza e poderiam, assim, revisar e melhorar seus textos. Percebemos, então, que a revisão textual possui grande relevância nesse tipo de trabalho, pois não será o professor que recolherá os textos dos alunos e isoladamente os corrigirá. Serão os próprios alunos que a partir das indagações do professor e das suas próprias observações farão os ajustes necessários nas suas produções. O que encontramos na maioria das vezes nas atividades de produção textual é o inverso do que o autor propõe. Lê-se um texto em sala de aula; propõe-se atividades de identificação e classificação de classes de palavras; atividades de análise sintática em frases sem contexto e, por último, propõe-se ao aluno que escreva um texto a partir do texto estudado. Não podemos esquecer que tudo isso acontece em poucas aulas e, além disso, a correção dos textos produzidos pelos alunos é feita de maneira isolada pelo professor, que, em alguma das aulas seguintes entregará os textos aos seus autores.

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Esses textos geralmente retornam grifados, destacando apenas erros de natureza morfossintática, de concordância e de ortografia, sem revelar grandes preocupações com os aspectos dos gêneros textuais. A partir dessa explanação, podemos retornar à questão do ensino dos gêneros literários na sala de aula. Nota-se que a partir da proposta de Schneuwly esse trabalho apresentaria muito mais eficiência não só na compreensão dos alunos como também na metodologia do professor. Tomemos como exemplo o trabalho com o gênero “receita”. Esse gênero, como já dito anteriormente, deve ser abordado em sala de aula e o aluno tem o direito de aprendê-lo. Mas a forma de abordá-lo pode ser apresentada de forma muito mais reflexiva, oferecendo ao aluno ferramentas que o auxiliem a dominar o gênero e utilizá-lo nas situações sociais. A princípio, o gênero seria abordado a partir da circulação e da leitura de receitas em sala de aula. Essas leituras auxiliariam o os alunos a apreender os padrões gramaticais e a forma sequencial desse determinado gênero:

“É pela leitura, ainda, que apreendemos os padrões gramaticais (morfológicos e sintáticos) peculiares à escrita, que apreendemos as formas de organização sequencial (como começam, continuam e acabam certos textos) e de apresentação (que formas assumem) dos diversos gêneros de textos escritos.” (ANTUNES, 2003)

Percebe-se, portanto, que não é lendo apenas um ou dois textos que o aluno de fato se apropriará do gênero, mesmo que pareça “lógico” demais para ele. Deve-se explorar a forma com a qual a receita se apresenta, na maioria das vezes, divida em “ingredientes” e “modo de preparo”. •70

Além disso, deve-se dar atenção ao fato de os ingredientes geralmente estarem enumerados um abaixo do outro e, também, aos verbos na parte do “modo de preparo”, se apresentado ou na forma imperativa ou no infinito, sempre revelando uma linguagem didática, a qual o leitor deve seguir para que obtenha uma boa execução de sua tarefa. A partir daqui, o texto literário poderia entrar em ação. Já que se estaria trabalhando o gênero “receita” com os alunos, nada melhor que utilizar um texto do mesmo gênero, mas que se apresentasse de forma literária. Por isso, proporíamos o trabalho com o livro Receitas de Olhar, da autora Roseana Murray (1997). No livro, a autora apresenta receitas que são diferentes das de culinária. São receitas em forma de poesia, que também apresentam ingredientes e modo de preparo, mas que abordam conselhos e sugestões para os sentimentos, como, por exemplo, a poesia “Receita contra dor de amor”:

“Chore um mar inteiro / com todos os seus barcos a vela. / Chore o céu e suas estrelas / os seus mistérios o seu silêncio / Chore o equilibrista caminhando / sobre a face de um poema / Chore o sol e a lua / a chuva e o vento / para que uma nova semente/ entre pela janela adentro”

A proposta de escrita a partir das poesias de Receitas de Olhar e de sua comparação com as receitas culinárias apresentaria uma produção dotada de muito mais sentido do que escrever, ou reescrever, receitas que já existam. Escrevendo receitas poéticas, o aluno estaria desenvolvendo sua autonomia enquanto autor, além de estar desenvolvendo sua sensibilidade com a leitura e a produção literária. Podemos ainda ressaltar que, escrevendo receitas poéticas, o aluno estaria refletindo sobre o gênero “receita” e não apenas seguindo um “roteiro” de como se escreve um receita. A proposta de

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produção textual o colocaria a pensar sobre como escreveria uma poesia sem “fugir” do gênero textual o qual comumente diríamos nada ter ver com a mesma: a receita. Dessa forma, os gêneros literários entrariam na sala de aula não apenas nos momentos de leitura a bel prazer, mas também como um conteúdo a ser aprendido e apreendido. Conteúdo não na ideia que a escola geralmente pensa, como algo que deve ser cumprido dentro de determinado tempo, para em seguida ser submetido a avaliações. Pensamos aqui conteúdo como determinada bagagem que o aluno irá adquirir a partir do seu contato com o gênero; do seu olhar atento à estrutura dos textos; da sua reflexão a partir da forma com a qual os textos são construídos tanto no campo do conteúdo linguístico quanto no campo gramatical; da sua produção textual que poderá ser revista à medida que ele for apreendendo sobre o gênero.

desejamos que a partir dessa leitura e principalmente dos textos aqui citados os professores tenham um olhar mais apurado para com seu trabalho e perceba que sua ação docente pode ser apresentada de maneira muito mais reflexiva e aberta às contribuições dos alunos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após toda a discussão desenvolvida até aqui, buscamos agora levantar algumas considerações que contribuam para a conclusão desse artigo. Antes de tudo, destacamos mais uma vez a importância de se oferecer um ensino sistematizado dos gêneros textuais desde as séries iniciais do Ensino Fundamental.

Por isso, defendemos aqui um olhar mais atento à abordagem do texto literário nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Não podemos esperar que o aluno chegue ao segundo seguimento do Ensino Fundamental ou ao Ensino Médio para que tenha um estudo sistematizado dos gêneros textuais, sobretudo os literários.

Sobre isso, afirma Schneuwly et al. (2004): “Para assegurar o domínio dos principais gêneros no final do ensino fundamental, propõe-se uma iniciação precoce, com objetivos adaptados às primeiras etapas”. Só assim, os alunos apresentarão maior maturidade nas etapas seguintes, com um olhar mais apurado para os textos e seu estudo sistemático, além de já ter se apropriado de diversos gêneros literários.

É preciso, pois, que nas séries iniciais do Ensino Fundamental se aborde o estudo sistemático das fábulas, dos contos de fadas, da poesia, da crônica. É preciso, ainda, que se ofereça ao professor a formação e as condições adequadas para que se desenvolva esse trabalho.

É preciso, ainda, rever a forma com a qual a leitura vem sendo tratada na sala de aula. Algumas vezes tida vezes como “perda de tempo”, outras como um ato meramente prazeroso e de “viagem” e, outras ainda, como mero arcabouço do qual se extrairão elementos gramaticais.

Como dito no início desse artigo, o que fica evidente a partir da abordagem inadequada do ensino de gêneros textuais é que geralmente o professor não sabe ao certo como realizar esse trabalho, acabando, muitas vezes, repetindo a forma com a qual aprendeu.

Não podemos esquecer, também, de que leitura e escrita são atividades de interação entre sujeitos (ANTUNES, 2003). Por isso, devemos propor o ato da leitura e da escrita como produtores de sentido para os alunos, ou seja, como algo que terá finalidade e não que apenas ficará entre as quatro paredes da sala de aula.

Ressaltamos, portanto, que esse artigo não tem como objetivo censurar o trabalho dos professores que apresentam uma abordagem errônea do ensino de gêneros textuais. Muito pelo contrário,

Além disso, é preciso fugir das práticas que têm visão fragmentária dos conteúdos em sala aula, principalmente dos literários, pois será o contato

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do aluno com a literatura que lhe proporcionará condições de desenvolver um pensamento crítico e reflexivo acerca da linguagem e da sociedade na qual ele se encontra inserido. Por último, lembramos que a leitura é um bem cultural socialmente construído e, como todo bem cultural, ela é mal distribuída entre a população. Portanto, devemos trabalhar para que a escola, sobretudo a pública, assegure a acesso do aluno a esse bem, para que, apropriando-se dele, produza sentido não só para si, mas apara a sociedade.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MARCUSCHI, Luíz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO, Ana Rachel; BEZERRA, Maria Auxiliadora. (org.) Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro : Lucerna, 2002.

MURRAY, Roseana. Receitas de olhar. São Paulo: FTD, 1997.

PINHEIRO, Marta Passos. Letramento literário na escola: um estudo das práticas de leitura literária na formação da comunidade de leitores. Tese de Doutorado em Educação. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2006.

ROJO, Roxane. Letramento e Capacidades de Leitura para a Cidadania. In: Anais do SEE: CENP, São Paulo, 2004.

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DALVI, Maria Amélia. Literatura na escola: Proposta didático-metodológica. In: DALVI, Maria Amélia, REZENDE, Neide Lúcia, JOVER-FALEIROS, Rita (org.). Leitura de Literatura na Escola. São Paulo: Parábola, 2013.

DELL’ISOLA, Regina Lúcia Péret. Retextualização de Gêneros. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007.

GERALDI. João Wanderley (org.). O Texto na Sala de Aula. 3 ed. São Paulo: Ática, 2004.

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O APARECIMENTO DO MITO SEBASTIANISTA EM OBRAS LUSO-BRASILEIRAS Jéssica Caroline Pessoa dos Santos (Graduação – UERJ)*

RESUMO

Através de uma perspectiva literária, tomam-se como base as seguintes obras portuguesas: “Os Lusíadas” (1572), de Luís Vaz de Camões; “Frei Luís de Sousa” (1844), de Almeida Garrett; “Mensagem” (1934), do escritor português modernista Fernando Pessoa; e também a obra “O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, do brasileiro Ariano Suassuna (1971). As referidas produções relatam símbolos e mitos, por intermédio dos respectivos gêneros épico, dramático e narrativo, sobretudo, o Sebastianista, a crença do retorno triunfante de uma monarquia governada pelo rei D. Sebastião, dando início ao resgate de um futuro glorioso de Portugal em um sonho conhecido como “Quinto Império”. É nesse contexto que o trabalho busca analisar a influência do mito na construção literária luso-brasileira.

Palavras-chave: Literatura. Mito. Sebastianismo.

O NASCIMENTO DO MITO DE CARÁTER MESSIÂNICO 1

pecados de muitos; e aparecerá segunda vez, não para tirar o pecado, mas para trazer salvação aos que o aguardam. ” (Hebreus, 9:28).

A palavra “mito” deriva do grego mythos e significa lenda, narrativa, ação. Desde a Antiguidade Clássica, o termo se refere sempre a uma expressão singular que passa a ser de caráter coletivo, muitas vezes, associado com a divinização de algum personagem importante para aquele povo que o cultua. Assim, fazendo parte da história, da cultura, da religião e até mesmo da literatura desse povo.

O mesmo pode ser presenciado também na difusão do ciclo lendário europeu do rei Artur e, depois, no universo da prosa medieval portuguesa “A demanda do Santo Graal”, em que Galaaz, o mais puro cavalheiro, é revelado como o escolhido para a missão do Graal.

De natureza messiânica, o Sebastianismo remete à história trágica ocorrida no século XVI com o rei D. Sebastião de Portugal e tem origem na teologia judaico-cristã do Antigo Testamento, encontrada na Bíblia. A esperança messiânica aponta para um deus, que ordena perante os homens e o seu mundo. Essa afirmação encontra seu fundamento na profecia messiânica do Novo Testamento, na qual viram em Jesus Cristo a realização da esperança messiânica: “[...] assim também Cristo foi oferecido em sacrifício uma única vez, para tirar os * Graduanda em Letras Português/Espanhol da UERJ (Uni-

No Brasil, a Guerra de Canudos (1896-1897), ocorrida no interior do estado da Bahia, é um bom exemplo de movimento popular de fundo sócio-religioso, que peregrinava pelo sertão do Nordeste (marcado pela seca, fome e miséria), levando mensagens religiosas e conselhos sociais para as populações carentes. Conseguindo uma grande quantidade de seguidores e fortalecendo o “exército’’ da comunidade de Canudos. Sendo assim, pode-se observar que por trás de todos esses mitos criados vem a difusão religiosa por meio do Apocalipse. É nesse sentido, portanto, que nasce o mito Sebastianista em Portugal.

versidade do Estado do Rio de Janeiro).

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A DECORRÊNCIA DO MITO

Conhecido como “o Desejado”, D. Sebastião foi destinado, ainda no ventre da mãe, a ocupar a linha de sucessão do trono português. Era tão desejado pelo fato de seu pai, D. João III, ter morrido com seus irmãos, e ele ser a única salvação naquele momento para impedir uma dominação castelhana.

Ainda em criança, planeava já a conquista de Marrocos, tendo escrito na folha inicial de um missal que os seus preceptores jesuítas lhe deram: “Padres, rezem a Deus para que Ele me faça muito casto e muito zeloso para expandir a Fé em todas as partes do antigo.” O seu grande desejo era de ser um “Capitão de Cristo”. (BOXER, 2002 p. 352)

Esse desejo foi tão intenso que nem sua impotência física, decorrida de uma doença ainda na infância, foi capaz de impedir os seus planos. E, em 1578, parte para o Marrocos, mas tragicamente morre em plena batalha: a de Alcácer Quibir. Mesmo com a derrota, o povo português não teria acreditado em sua morte e, desde então, começam a surgir boatos, intensificados pelas trovas poéticas de cunho profético de um sapateiro-poeta da época: Gonçalo Annes Bandarra, o sapateiro de Troncoso (1500-1556). Como se vê a seguir no terceiro corpo de suas trovas:

Em vós que haveis de ser quinto Depois de morto o segundo, Minhas profecias fundo Co estas letras que aqui pinto.

Pode-se observar uma predestinação do povo português, pois, depois da ocorrência de quatro grandiosos impérios, como o grego, o romano e, por fim, o inglês, Portugal viria a ser o quinto império, e reinaria conforme visto no passado com as conquistas ultramarinas. Quase como um êxtase, a aceitação do povo português processa uma esperança do rei que voltaria para dar vitória a seu povo. Mitos como o de que ele estava escondido em uma caverna, propagaram vários anos de total crença de seu retorno. Nesse contexto, surge o discurso Sebastianista do Padre Antônio Vieira, que atribui a designação de um reino predestinado a Portugal, partindo-se de um comando divino. Ele admite em suas obras, sobretudo em “A chave dos profetas”, que todos os reinos são designados por Deus, embora sejam inferiores. Vieira defende, com abundância de argumentos, sobretudo, bíblicos, que Cristo preside no Quinto Império, depois dos assírios, persas, gregos e romanos, conforme a profecia que se encontra no livro de Daniel. Defende, também, que o quinto seria Portugal, atestando sua grandiosidade e valor simbólico em decorrência da nação portuguesa predestinada.

SEBASTIANISMO NA EPOPEIA DE CAMÕES: OS LUSÍADAS

Luiz Vaz de Camões nasceu em Lisboa, em 1524, iniciando sua produção literária muito cedo e escrevendo nas formas dos gêneros que vigoravam na época renascentista: sonetos, redondilhas, éclogas e, a mais conhecida, a epopeia. Sujeito de características um pouco desagradáveis para a época, Camões foi expulso de sua terra e, estando na Índia, escreve sua principal obra, em 1553: “Os Lusíadas”, só sendo publicada em seu retorno a Portugal, em 1572. A obra é composta de dez cantos, 1.102 estrofes

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e 8.816 versos, que são oitavas decassílabas, sujeitas ao esquema rítmico fixo na oitava rima. O tema é sobre a descoberta do caminho marítimo que Vasco da Gama traçou, descrevendo outros episódios da história do país, glorificando o seu povo e atribuindo características mitológicas advindas de seres e símbolos da Antiguidade greco-romana. Logo no primeiro cântico, pode-se observar a presença da figura ilustre de D. Sebastião, a qual Camões dedica sua obra, na época, ainda muito pequena:

8 Vós, poderoso Rei, cujo alto Império O Sol, logo em nascendo, vê primeiro, Vê-o também no meio do Hemisfério, E quando dece o deixa derradeiro; Vós, que esperamos jugo e vitupério Do torpe Ismaelita cavaleiro,

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Do Turco Oriental e do Gentio

E vós, ó bem nascida segurança Da Lusitana antiga liberdade,

Que inda bebe o licor do santo Rio:

E não menos certíssima esperança

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De aumento da pequena Cristandade;

Inclinai por um pouco a majestade

Vós, ó novo temor da Maura lança,

Que nesse tenro gesto vos contemplo,

Maravilha fatal da nossa idade,

Que já se mostra qual na inteira idade,

Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, Pera do mundo a Deus dar parte grande;

Quando subindo ireis ao eterno templo; Os olhos da real benignidade Ponde no chão: vereis um novo exemplo

7 Vós, tenro e novo ramo florecente De ũa árvore, de Cristo mais amada Que nenhua nascida no Ocidente, Cesárea ou Cristianíssima chamada (Vede-o no vosso escudo, que presente Vos amostra a vitória já passada, Na qual vos deu por armas e deixou As que Ele pera si na Cruz tomou);

De amor dos pátrios feitos valerosos, Em versos divulgado numerosos.

A invocação ao rei Sebastião não é um mero tributo, pois demonstra a oferta sincera de um sujeito patriota que se coloca à disposição da Coroa, representando quase um serviçal. Mesmo não sendo devidamente recompensado, Camões mostrou, através de sua obra, a primeira tentativa literária de colocar Portugal como um povo a frente de todos os outros, demonstrando suas vitórias perante os inimigos. E, também, como

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predestinado, sendo ajudado pelos deuses como Vênus, em “Os Lusíadas”.

agitação). Ora diz: já pensaste bem no mal que estás fazendo? Eu bem sei que a ninguém neste mundo, senão a mim, falas em tais coisas. Falas assim como hoje temos falado. Mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera na sua leal incredulidade, — esses contínuos agouros, em que andas sempre, de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família. Não vês que estás excitando com tudo isso a curiosidade daquela criança, aguçando-lhe o espírito — já tão perspicaz! — A imaginar, a descobrir. Quem sabe se a acreditar nessa prodigiosa desgraça, em que tu mesmo. Tu mesmo. Sim, não crês deveras? Não crês, mas achas não sei que doloroso prazer em ter sempre viva e suspensa essa dúvida fatal. E então considera, vê: se um terror semelhante chega a entrar naquela alma, quem lho há de tirar nunca mais? O que há de ser dela e de nós? Não a perdes, não a matas. Não me matas a minha filha?

SEBASTIANISMO NO GÊNERO DRAMÁTICO: FREI LUÍS DE SOUZA, DE ALMEIDA GARRETT

Precursor do romantismo português, Almeida Garret pautou sua vida e produção literária segundo inquietações políticas que vigorava na época. Com vestígios medievalistas que repercute seu antecessor, Gil Vicente, constrói uma dramaticidade, correlacionando também elementos da vida corriqueira da sociedade da época. Em 1843, o drama “Frei Luís de Souza” apresenta uma tensão burguesa inspirada na história de um episódio matrimonial vivido, no fim do século XVI, por Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir. Depois do desaparecimento do marido, Madalena se apaixona pelo Frei Luís de Sousa (Manuel de Sousa Coutinho, cerca de 1555-1632) e com ele gera uma filha que, no decorrer do drama, morre. No final, há a decorrência de que Madalena teria cometido um crime por não ter sido fiel a seu marido, e de que depois reaparece, separando a vida e o amor do casal para sempre. No diálogo de Madalena com o seu criado, Telmo, D. Sebastião é retratado aqui como um sujeito desgraçado por ter feito tal ação que lhe custou a vida. E o povo mais ainda, por acreditar em tais especulações a respeito de seu retorno.

Contrapondo-se ao que a mãe acredita, a filha, Maria, é a representação do povo Sebastianista, que ainda crê no retorno de seu rei, mesmo sem uma explicação precisa do ocorrido:

— Pois tens: melhor! E és tu o que andas continuamente e quase por acinte a sustentar essa quimera, a levantar esse fantasma, cuja sombra, a mais remota, bastaria para enodoar a pureza daquela inocente, para condenar a eterna desonra a mãe e a filha! (Telmo dá sinais de grande

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— Voz do povo, voz de Deus, minha senhora mãe: eles que andam tão crentes nisto, alguma coisa há de ser. Mas ora o que me dá que pensar é ver que, tirado aqui o meu bom Telmo (chega- se toda para ele, acarinhando o), ninguém nesta casa gosta de


ouvir falar em que escapasse o nosso bravo rei, o nosso santo rei D. Sebastião. O meu pai, que é tão bom português, que não pode sofrer estes castelhanos, e que até, às vezes, dizem que é de mais o que ele faz e o que ele fala. Em ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião. Ninguém tal há de dizer, mas põe-se logo outro, muda de rosto, fica pensativo e carrancudo; parece que o vinha afrontar, se voltasse, o pobre do rei. Ó minha mãe, pois ele não é por D. Filipe; não é, não?

Sendo assim, Garret já afirma uma desmistificação do retorno do rei por parte de alguns personagens ao longo da trama. E também, representantes em como característica peculiar ao fato de todas as personagens, a afirmação de um povo não mais tão crédulo como visto antes, posições coerentes e de uma grande dignidade, fazem parte do enredo, tornando-se até um pouco difícil definir quem é o personagem principal.

O SEBASTIANISMO EM MENSAGEM, DE FERNANDO PESSOA

Fernando Pessoa, principal representante do modernismo português, escreve em 1934, um ano antes de sua morte, “Mensagem”, a única obra publicada em língua portuguesa pelo autor em vida e que, até hoje, é referência em estudos lusitanos sobre a construção da nacionalidade a partir de um diálogo entre história e literatura. A obra modernista relata, por intermédio de símbolos e mitos, sobretudo, do Sebastianista, uma revisão da história portuguesa de resgatar um futuro glorioso de Portugal em um sonho conhecido como “Quinto Império”, ou seja, a volta de uma triunfante monarquia, tomando como exemplos heróis do passado, principalmente do Rei D. Se-

bastião, figura ilustre do povo português. A própria organização de “Mensagem” exemplifica a sua característica patriota, sendo dividida em três partes: “Brasão”, “Mar Português” e “O Encoberto”, cada uma composta por poemas em vozes de diversos personagens. que se transformam em heróis, partindo de uma característica épica. Fernando Pessoa evoca reis, príncipes e pessoas importantes que fizeram parte da fundação da nação portuguesa, divididos em uma simbologia e numerologia esotérica e mística do autor. Por meio da disseminação cultural, Pessoa demonstra ao povo português, através de uma nostalgia, o renascimento de uma nação potente e majestosa. Recebeu influência notória de grandes autores da literatura, como Camões, em “Os Lusíadas’’ e Homero, em “Odisseia”, mesmo nunca tendo colocado as referências em sua obra. Partindo disso, há a ocorrência da afirmação defendida por muitos historiadores de que a referida obra viria para superar Camões, em “Os Lusíadas”. Em um poema intitulado “D. Sebastião”, é deixada bem clara a ideia de que Pessoa tenta trazer um despertar da acomodação em que seu povo se encontra e de que deseja o retorno da luta e navegação portuguesa, como antes:

Louco, sim, louco, porque quis grandeza Qual a Sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que a besta sadia, Cadáver adiado que procria?

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Na primeira estrofe, o sujeito o caracteriza como “louco”; na segunda, faz uma apologia da loucura, um elogio, exortando a que outros deem continuidade dessa loucura, retornando ao mar para retornar a conquista. Já na segunda parte, faz-se um apelo à loucura e à valorização do sonho. Deve, portanto, dar-se asas a uma loucura que deve impulsionar o povo português. Afinal, sem a loucura, o homem não se distingue do animal. É através do sonho da loucura que o homem é capaz de seguir em frente sem temer a própria morte. Valorizando, assim, a loucura do rei tornando-o um exemplo a ser seguido. Assim, o homem deixará de ser um animal sadio ou reprodutor com a morte adivinhada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A repercussão do mito Sebastianista se propagou por obras luso-brasileiras de modo histórico, mas, ao mesmo tempo, atemporal, já que sua história, mesmo com tanto tempo passado, ainda encontra-se como tema de várias obras e pesquisas acadêmicas. Podem-se destacar exemplos presentes que ainda fazem parte da nossa cultura atual: a manifestação popular Cavalgada da Pedra do Reino, inspirada na obra de Ariano Suassuna, que acontece todo ano em Pernambuco e relembra um massacre ocorrido no final do século XIX. Hoje, tombado pelo Instituto do Patrimônio

A INSERÇÃO DO MITO NA LITERATURA BRASILEIRA

O mito Sebastianista, assim como outros, repercutiu em várias obras de diversos países, e o Brasil foi um deles. No “Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”, Ariano Suassuna tenta relatar, por intermédio de personagens-símbolo e mitos, sobretudo, de Antônio Conselheiro e o Sebastianista. É inspirado em um episódio ocorrido no século XIX, num município do sertão brasileiro, onde uma seita, em 1836, tentou fazer ressurgir o rei Dom Sebastião em uma tentativa lendária. O romance é narrado por Dom Pedro Dinis Ferreira-Quadrena, o auto-proclamado “Rei do Quinto Império e do Quinto Naipe, Profeta da Igreja Católico-Serteneja e pretendente ao trono do Império do Brasil”, que tenta a todo custo retomar a monarquia no Brasil. Pode-se ver, então, a tentativa de um fenômeno ainda recorrente e que faz parte da história, não só de Portugal, mas do Brasil. A obra demonstra que esses tipos de incidências messiânicas ainda podem estar presentes no imaginário de um povo, independentemente de sua época. •78

Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a manifestação cultural ainda é uma incidência de como a temporalidade de um mito pode ser de característica atemporal, culminando, assim, na formação cultural e ideológica de um povo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil, 1969.

BOXER, Charles R. O império marítimo português. Rio de Janeiro: companhia das letras, 2002.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Edição comentada. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1980.

GARRETT, Almeida. Frei Luís de Sousa. 19 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.

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MASSAUD, Moisés. A Literatura Portuguesa. 32 ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2002.

PESSOA, Fernando. Mensagem. São Paulo: Abril, 2010.

SUASSUNA. Ariano. Romance D'a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-E – Volta. São Paulo: José Olympio, 2008.

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A PARÓDIA COMO MECANISMO DE EVIDENCIAÇÃO DO OUTRO EM RUY DUARTE DE CARVALHO Juliana Campos Alvernaz (Graduação – UFF)* RESUMO O presente artigo visa refletir sobre o efeito da paródia do gênero policial no romance “Os papéis do inglês” (2000), primeiro volume da trilogia “Os filhos de Próspero”, composta também por “As paisagens propícias” (2005) e “A terceira metade” (2009), de Ruy Duarte de Carvalho. Por meio da comparação com o conto “As águas do Capembáua” (que integra o volume de contos “Como se o mundo não tivesse leste”, de 1977), pretende-se investigar a natureza detetivesca do narrador “d’Os papéis do inglês” e explorar a ideia de que sua configuração se articula ao desenvolvimento de estratégias para a representação de aspectos do pensamento dos pastores Kuvale – interlocutores permanentes do autor, tanto reais quanto ficcionalizados. Palavras-chave: Romance policial. Paródia. Ruy Duarte de Carvalho.

INTRODUÇÃO1

O escritor, antropólogo, poeta e cineasta angolano Ruy Duarte de Carvalho (1941 – 2010) reflete em suas obras um caráter multifacetado, de modo que há um amálgama de discursos dispostos nas narrativas. O autor mescla marcas características da etnografia e antropologia, da linguagem cinematográfica, da ficção e do romance policial e as une em uma obra na qual os gêneros possuem linhas tênues entre si, criando, assim, uma nova categoria ficcional difícil de classificar. Com isso, temos um gênero que se apresenta de forma transgressiva. A partir desse caráter transgressivo, analisarei, reflexivamente, no presente artigo, a abordagem detetivesca do narrador no conto “As águas do Capembáua” (1977) por meio de *

Graduanda em Letras – Português/Literatura na Universidade Federal Fluminense. O presente artigo é um desdobramento da pesquisa de Iniciação Científica financiada pela FAPERJ, sob a orientação da Profª Dr. Anita Martins Rodrigues de Moraes.

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algumas comparações com o romance “Os papéis do Inglês” (2000), que se insere na trilogia “Os filhos de Próspero”, ambos de Ruy Duarte de Carvalho. Além disso, será ressaltado como a inversão do gênero policial estabelece um efeito de evidenciação do “outro” - temática já destacada pelo autor em textos de opinião.

SOBRE AS OBRAS

A narrativa do conto “As águas do Capembáua” se passa no sudoeste de Angola, onde houve eventos simultâneos que incluem a seca, a morte de um líder dos pastores angolanos e a morte de um sul-africano, provocada por uma onça – animal raro na região. Tais acontecimentos incitaram a curiosidade do narrador, que não se sabe se seria o próprio Ruy Duarte de Carvalho, levando-o a investigar essa série de episódios por meio de duas testemunhas, o R. e o José. O conto pode ser considerado uma espécie de embrião para o romance “Os papéis do inglês”,

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que se trata de relatos de viagem escritos pelo narrador-personagem, o qual se divide em dois planos narrativos: a estória da busca do narrador pelos papéis do inglês e a estória, com acréscimos ficcionais, do inglês que fora dono desses papéis, o Archibald Perkings. Dessa forma, o narrador se estabelece como personagem, sendo que as histórias se entrelaçam. É possível aproximar as duas narrativas, o conto e o romance, partindo de aspectos presentes em ambas, próprios da escrita do autor. Dentre os muitos aspectos similares entre as duas obras, destacarei o narrador como sujeito de uma investigação “policial” e o clima de suspense em torno da morte de alguém. Tais traços se verificam na busca dos papéis que poderiam levar a resolver o caso da morte de Archibald Perkings no romance “Os papéis do inglês”. Já no conto “As águas do Capembáua”, é possível observar o interesse do narrador em encontrar respostas para o desencadeamento de ações reconhecidas por ele como anormais, ocorridas no decorrer do enredo, como a morte de Luna, a morte do sul-africano e a seca. A CONFIGURAÇÃO DO NARRADOR

As duas obras analisadas possuem um narrador-personagem que se comporta de diferentes maneiras ao longo da narrativa. Seguindo a tipologia de autores apresentada por Norman Friedman (2002), há a presença de um narrador como testemunha no conto de Ruy Duarte de Carvalho, pois ele não participa da história relatada em si, mas está presente no espaço e busca contatos com os que viveram o caso. “O narrador-testemunha é um personagem em seu próprio direito dentro da história, mais ou menos envolvido na ação, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor em primeira pessoa.” (FRIEDMAN, 2002, p. 175-176). As histórias mais conhecidas de romance policial de enigma, que será tratado melhor mais

à frente, também se enquadram nesse modelo de “narrador-testemunha”, porque é um personagem secundário que narra os acontecimentos que giram em torno do detetive protagonista. Assim como ocorre nos contos do detetive Dupin, de Edgar Allan Poe, que são contados a partir do ponto de vista de um amigo anônimo do detetive. Há, também, os romances de Arthur Conan Doyle, dos quais Watson é o narrador das aventuras de Sherlock Holmes e, por último, o narrador das histórias de Hercule Poirot, personagem criado por Agatha Christie, é o Capitão Hastings, amigo do detetive. Destarte, é possível notar traços do romance policial de enigma na obra duartiana. O romance “Os papéis do inglês” tem um caráter de multiplicidade do discurso e transita entre o “narrador-protagonista” – no plano da narrativa em que o autor viaja “Voltei rápido ao Namibe, para aproveitar os pneus remendados.” (CARVALHO, 2007, p. 26) e a “onisciência seletiva” – plano da narrativa em que o autor narra a história do Perkings, no qual privilegia o pensamento do próprio Perkings “Tem uma arma a seu lado, com um projéctil na câmara, e essa é a única referência precisa que lhe [Perkings] ocorre [...]” (CARVALHO, 2007, p. 81). Embora o narrador se apresente nessas diferentes formas, ele usa a primeira pessoa do singular continuamente.

O ROMANCE DE ENIGMA PRESENCIADO NAS DUAS OBRAS

No conto “As águas do Capembáua”, é evidente a narrativa detetivesca através do interesse do narrador em descobrir os detalhes da morte do sul-africano, como em “Os papéis do Inglês”, no qual há um suspense em torno do suicídio do Perkings e as mortes provocadas por ele. Em “As águas do Capembáua” vemos a estratégia do autor ao abordar os fatos, contando com o testemunho de duas pessoas com posições distintas em relação à morte do sul-africano. Primeiro há os relatos de R.

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e, posteriormente, nos deparamos com o ponto de vista do José, o capataz. Ao passo que no romance temos dois planos narrativos, já supracitados, que se alternam em meio a uma miscelânea de gêneros e vozes. As características do gênero policial diluídas no texto nos direcionam, como leitores, para uma espécie de investigação dentro do próprio romance, este adquirindo, portanto, um efeito de abismo (mise en abyme), no qual o leitor investiga o narrador-personagem, que também investiga outro sujeito, no caso, o Perkings. Outro efeito cascata é a presença de elementos da literatura policial no romance, que pode ser considerado um romance policial. A rua que Perkings mora, por exemplo, é a Baker Street (CARVALHO, 2007, p.199), rua fictícia do detetive Sherlock Holmes, criado por Arthur Conan Doyle. Há, ainda, a referência e menção de vários nomes de escritores e antropólogos que se transformam em personagens no romance. Em vista disso, a intertextualidade é a outra estratégia do autor, uma vez que é possível perceber colagens de seus próprios textos e inserção de textos outros. Como a própria história do inglês, Perkings, derivar da crônica “O branco que odiava as brancas”, de Henrique Galvão. Além disso, encontramos inúmeras referências (Arthur C Doyle, Alves dos Reis, Luiz Simões, Radcliff-Brown, Ernest Hemingway etc), principalmente de Joseph Conrad, em que Ruy Duarte se apropria de trechos da obra de Conrad – sem traduzi-los, em alguns momentos - para localizar seus próprios personagens.

A misty rain settled like silvery dust on clothes, on moustaches; wetted the faces, vanished the flagstones, darkened the walls, dripped from umbrellas…Alvan Hervey, na novela do Conrad (The Return) onde estou a situar o meu Archibald Perkings (…) (CARVALHO, 2007, p. 52)

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A paródia de ficção policial no romance em questão se dá através de sua estrutura. “Os papéis do inglês” possui uma estrutura desencaixada, com quebras de narrativa, e tal estrutura deslocada se opõe ao modelo policial. A subversão também se dá na resolução do mistério, porque no romance policial o elemento principal da narrativa e, também, seu clímax, seria a resolução do mistério. Para Boileau-Narcejac (1991), o desvendamento do desconhecido é imprescindível na narrativa de enigma. Entretanto, no romance de Ruy Duarte de Carvalho, o que deveria ser o clímax da história, isto é, a resolução do mistério – o motivo da ira de Perkings – (CARVALHO, 2007, p. 175 – 177) passa despercebida para o leitor devido à apresentação truncada da narrativa. É possível identificar nas obras de Ruy Duarte de Carvalho os três elementos constitutivos do romance policial, apresentados por Boileau-Narcejac (1991): a vítima, o criminoso e o detetive. Em “As águas do Capembáua” podemos considerar dois planos narrativos em que esses elementos podem ser reconhecidos. No primeiro plano, as vítimas seriam os pastores; os criminosos, os portugueses que instalaram a fazenda para a pecuária empresarial e o detetive seria o Quimbanda. Já no segundo plano temos: o sul-africano como vítima; a onça como criminoso/arma e o detetive, o próprio narrador. Já “n’Os papéis do inglês”, consideraríamos, para a identificação dos três elementos constitutivos da ficção policial, o plano da história do Perkings. Teríamos, dessa forma, o Grego e os animais como vítimas; o criminoso seria o Archibald Perkings e o detetive seria o narrador, que se identifica como o próprio Ruy Duarte de Carvalho. Vale ressaltar que os personagens identificados como vítima, criminoso e detetive, nas duas obras, não se enquadram nos estereótipos que, geralmente, se apresentam numa ficção policial de enigma, visto que nesse gênero há a figura característica do criminoso como alguém com uma inteligência incomum aplicada no crime, o detetive

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é a caricatura de uma pessoa com habilidades dedutivas acima do normal e a vítima, na maioria dos casos, um personagem que corre perigo. Já na ficção duartiana, nota-se o desvio desse paradigma policial.

encontrar uma resposta, ainda que recorra à imaginação. Em “As águas do Capembáua”, essa característica ocorre de modo similar, porque o conto parte do mistério em torno da seca e das mortes acontecidas naquela região de Angola.

Em ambas as obras em estudo, como é próprio do policial, é possível considerar o leitor como “coinvestigador”, assim como sugere Austin Freeman (1862 – 1943).

Todorov (2006) afirma que o romance policial não possui apenas uma história, mas duas. A primeira é a história do crime, na qual os personagens agem, e a segunda a história da investigação, em que os personagens descobrem. No romance de Ruy Duarte de Carvalho, temos, como a história do crime, o suicídio de Perkings e a chacina causada por ele; já como história da investigação, percebemos a viagem do narrador e sua busca pelos papéis do inglês. Enquanto no conto, a primeira história consiste nos eventos ocorridos a partir do deslocamento da Onganda, e a segunda história é a investigação do narrador personagem sobre o ocorrido através de dois testemunhos coletados, o testemunho do R e o do capataz José.

Mas parece certo que Freeman foi o primeiro que compreendeu claramente que o autor policial se dirigia a alguém e organizou sua narrativa para facilitar a tarefa daquele que se tornava o “co-investigador”. (BOILEAUNARCEJAC, 1991, p. 36)

Em vista disso, “Os papéis do inglês” é uma mescla de pastiche e paródia. O pastiche se realiza nas colagens e montagens que o autor faz de seus próprios textos, bem como textos de outros autores. A paródia, de acordo com Linda Hutcheon (1991), consiste em uma “transcontextualização” irônica e inversão estrutural de uma obra ou gênero já existente. Conceituado como um discurso interartístico, a paródia é uma imitação que aborda criativamente a tradição por meio de uma inversão de um texto ou gênero. Dessa maneira, as duas obras em questão, de Ruy Duarte de Carvalho, além de terem algumas partes elaboradas através de colagens, invertem a estrutura do tradicional gênero romance policial de enigma. Nos termos de Fiorin (2004), o texto transita, portanto, entre pastiche e paródia; entre captação e subversão. O romance de enigma, como já se pode inferir pelo nome, tem sempre como ponto de partida um enigma. A motivação do desencadeamento das ações é a investigação e decifração do enigma, ocasionando o fim da narrativa. Em consonância a isso, “Os papéis do Inglês” parte do enigma envolvendo o suicídio do Perkings para, no final,

S. S. Van Dine (1928), escreveu vinte regras que todo escritor de romance policial de respeito deveria “seguir”. Todorov (2006) resume essas regras em apenas oito, pois, segundo ele, são repetitivas. Dentre essas oito regras, a número 5 deve ser destacada aqui. É a seguinte: “Tudo deve explicar-se de modo racional; o fantástico não é admitido” (TODOROV, 2006). Essa é uma das regras que Ruy Duarte de Carvalho subverte em sua narrativa, principalmente no conto ”As águas do Capembáua”, visto que atribui verdade à interpretação dos pastores, a qual envolve a interferência dos ancestrais. É válido ressaltar que o sobrenatural, segundo a visão ocidental da realidade, não coincide com a visão de mundo dos pastores do sul de Angola, porque, para o ocidental, a intervenção divina dos ancestrais se dá por meios sobrenaturais, já para esses pastores não se trata de algo sobrenatural. Em vista dessa problematização em torno da palavra “sobrenatural”, é necessário recorrer ao vocabulário indicado pelo filósofo ganês Kwame Anthony Appiah (1997). Para referir-se às religiões africanas

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que admitem a mediação dos ancestrais, Appiah sugere a expressão “religião tradicional”. Já o que chamaríamos de sobrenatural seria uma “ontologia dos seres invisíveis”. Para compreendermos como se dá a paródia do gênero policial, é necessário apreender que, na lógica ocidental, tudo se explica a partir de uma ciência moderna. Outras explicações num romance policial seriam, portanto, equivocadas.

de forma mais evidente no testemunho informado por José, porque através dele podemos ver o que pastores africanos pensavam sobre os eventos. No final, com a resposta levantada pelo adivinho (Quimbanda), a causa de tudo (seca, morte de Luna e morte do sul-africano) era a mudança do local sagrado, a Onganda. Essa mudança desagradou aos antepassados, de forma que nem o sacrifício de um cabrito acalmaria a ira deles.

Podemos considerar que o próprio narrador comporta a figura do detetive. Outrossim, dentro da história de “As águas do Capembáua” há um personagem, Quimbanda, que possui um trabalho semelhante ao do detetive, pois cabe a ele investigar a razão dos acontecimentos. Nesse caso, o adivinho é o detetive da cultura dos pastores. Em “Os papéis do Inglês”, o detetive é o narrador que parte em busca de respostas.

Sendo assim, a única coisa, segundo o Quimbanda, que deveria acontecer, para voltar a chover, era a morte de um branco: “Do sangue haverá chuva” (CARVALHO, 2003, p. 66). Esse branco, por uma pequena intervenção de José, acabou sendo o sul-africano e não R. Portanto, a inversão do romance policial de enigma no conto se dá, principalmente, no desfecho. Aqui temos, então, uma morte, e é na solução para o mistério, que gira em torno dela, que surge o “sobrenatural”.

Em exemplos clássicos do romance policial de enigma, o enredo consiste, geralmente, em um acontecimento inicial supostamente sobrenatural para, paulatinamente, o sujeito que ocupa a posição de detetive descobrir, ao longo da história, a existência de explicações lógicas e humanas para o mistério. Como acontece em “O cão dos Baskervilles”, de Arthur Conan Doyle, em que os membros da família Baskervilles são mortos supostamente por um terrível “cão diabólico” – com fogo saindo dos olhos e da boca. O personagem Sherlock Holmes, com sua incrível capacidade dedutiva, descobre, no final, que um homem havia matado aquelas pessoas e usava um cão normal, coberto de alguns elementos químicos, para assemelhar-se a um fantasma. No caso do conto “As águas do Capembáua” temos o oposto, sob o ponto de vista do ocidentalizado. Logo no início, sabemos que o sul-africano foi morto por uma onça ao sair na caça da mesma, juntamente com R. No entanto, esses acontecimentos apresentados são incipientes para o narrador, pois ele busca mais explicações para os elementos envolvidos na morte. O desencadeamento das “descobertas” se apresenta •84

A partir do desencadeamento das ações desses dois exemplos de narrativa policial apresentados – “O cão dos Baskerville” e “As águas do Capembáua” –, podemos organizar uma estrutura. No romance tradicional policial, temos: mistério sobrenatural > investigação > solução/explicação lógico-científica. Já no conto de Ruy Duarte, temos: uma morte > investigação > solução/explicação “sobrenatural”. Enquanto no romance “Os papéis do inglês” há a inversão do policial, devido à estrutura desencaixada, a qual viabiliza que a solução do mistério proposto no início fique pouco clara, ou seja, o clímax se torna embaçado e despercebido, em vez de nítido e com destaque. Tendo em vista essa subversão, inferimos a tentativa de Ruy Duarte de colocar o “outro” em evidência, ou seja, atribuir a verdade aos pastores africanos em questão. Posto que no final entendemos que a razão dos acontecimentos estava exatamente na conclusão do adivinho e do seu povo . Essa preocupação do autor em relação ao outro não é inédita, pois podemos observar os mesmos aspectos de evidenciação desse outro em diversas obras e artigos de sua autoria, como o artigo “Tempo de

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ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” existe, antes que haja só o outro... ou pré-manifesto neo-animista” (in “Podemos viver sem o outro?”) e o “Decálogo neoanimista”. Textos que, de certa forma, resumem o projeto de Ruy Duarte de Carvalho como escritor e antropólogo. Para Bakhtin (1981), a paródia pode ser um fim em si mesma ou pode atingir outros propósitos positivos. Sendo assim, o conto “As águas do Capembáua”, de acordo com a reflexão aqui feita, atingiria outros fins, positivos. Tais fins consistem, como supracitado, na possibilidade de perceber a voz, até então silenciada, das sociedades pastoris de Angola, representadas pelos pastores do conto. Isso ocorre por meio da subversão do gênero policial de enigma. Ruy Duarte de Carvalho, portanto, utiliza-se de um gênero ocidental para desconstruir um pensamento de silenciamento ocidental. Assim, como notou a estudiosa Rita Chaves ao ponderar sobre o livro “Desmedida” (2006), do autor angolano, “Ruy Duarte, que não renuncia ao cosmopolitismo, recorre a instrumentos que foram utilizados para estabelecer, reforçar e sacralizar a dominação e os utiliza na direcção contrária” (CHAVES, 2012, p. 148).

A RECORRÊNCIA DO “OUTRO” NO DISCURSO LITERÁRIO E ETNOGRÁFICO DE RUY DUARTE DE CARVALHO

As obras de Ruy Duarte de Carvalho revelam a recorrente presença dos pastores Kuvale, sociedade à qual dedica seus estudos antropológicos, e o massacre desse povo em 1940-1941. Principalmente no livro “Vou lá visitar pastores” é enfatizada a reestruturação dessa sociedade após o extermínio causado pela guerra de 1940-1941. No caso do conto em questão, o autor não especifica o grupo social, apenas diz que são grupos de pastores que também sobrevivem por meio da transumância - prática da atividade pastoril em equilíbrio com o regime das secas e das chuvas, através do nomadismo.

Tanto em “As águas do Campembáua”, quanto em “Os papéis do inglês”, Ruy Duarte de Carvalho busca uma maneira de estabelecer um diálogo cultural através da interação com textos verbais e orais. Além disso, vemos a recorrente representação do “outro”, como o Paulino e o Ganguela do coice, no romance de 2000, e os pastores africanos, no conto de 1977. Em “Os papéis do inglês” (CARVALHO, 2007, p. 51), há uma provocação para escapar da epistemologia ocidental, para algo que vá além do paradigma humanista e evolucionista.

Mas o iluminismo e o evolucionismo estão implícitos em toda a produção ideológica e intelectual que vigora e ainda e sempre omnipresentes e dominantes, cientes já dos seus maiores pecados do passado, na aferição da qualidade dos homens segundo escalas físicas, primeiro, e depois segundo uma hierarquização das culturas, mas a fundamentar o mesmo espírito de império, ainda quando disfarçados de um igualmente abjecto paternalismo que confere a uns o direito de decidir, benemérita e providencialmente, pelos outros e em nome dos outros, os ignorantes e os atrasados, os coitados. E esses uns e outros somos todos nós, uns para os outros e por aí fora e sempre em função do ganho do outro.

Segundo Affonso Romano de Sant’anna (1999, p. 29, grifo do autor), “Na paródia busca-se a fala recalcada do outro”. Esse “outro” sugerido por Sant’anna é sinônimo daquela “voz social ou individual recalcada e que é preciso desentranhar para que se conheça o outro lado da verdade.” (SANT’ANNA, 1999, p. 29), isto é, um “outro” marginalizado. Podemos, assim, estabelecer um

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diálogo com o “outro” proposto por Ruy Duarte no artigo “Tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” existe, antes que haja só o outro... ou prémanifesto neo-animista”, no qual Ruy Duarte de Carvalho (2008) define três diferentes tipos de “outros”.

outros paradigmas igualmente produzidos pelas culturas dos homens, mais a convocação de todos os saberes disponíveis, reconhecidos ou não, inclusive saberes que decorrem de produções humanistas para além daquelas que se situam nos domínios das ciências e das ideologias, como é o caso das sabedorias e das poesias. Os neoanimistas sabem também que a dinâmica transformativa própria da espécie é património da própria espécie e não apenas daqueles que o paradigma humanista produz ou domestica. (CARVALHO, 2009)

O primeiro é o outro, em itálico, que é constituído pelo grupo da ex-metrópole, provenientes de genitores ex-colonizados, e fazem parte as populações nacionais dessas ex-metrópoles. Por causa do fenótipo e cultura são diferentes da massa dominante. A segunda definição é o ‘outro’, entre apóstrofos, pertencente ao grupo do ex-colonizado ocidentalizado, com o qual o Ocidente lida nas ex-colônias. Por último, há o “outro”, entre aspas, propriamente dito. Este integra o grupo que mantém usos, práticas e comportamentos pouco ocidentalizados, isto é, eles não estão inseridos no modo de vida ocidental. Esse último grupo, o “outro”, é o que desperta o interesse do escritor, dentre outras coisas, por ser alvo de pressão ocidentalizante. Com isso, ele escreve o “Decálogo neo-animista” (2009), em que expõe criticamente a nossa forma ocidentalizada de ver o mundo como devedora de uma concepção antropocêntrica. Ele, então, sugere que existam outros paradigmas interessantes além do ocidental e questiona a ideia de humano, proposta por essa matriz para, depois, propor uma recuperação de modos de viver diferentes, que não sejam o que denomina “humanista”.

A intervenção neoanimista, reconhecendo embora que a dinâmica do paradigma humanista se impõe, impôs e imporá a toda a terra habitada e desabitada (…) propõe convocar, para recuperação e adequação ao todo do destino do homem a haver, acções, entendimentos e políticas fundamentados em

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O escritor angolano, como é possível observar no trecho do “Decálogo Neo-animista” acima, propõe que o lugar da literatura no neoanimismo, dentro do próprio paradigma humanista, é recuperar a poesia, visto que há reposição da desvalorização do discurso poético ao longo da história. A poesia, portanto, para ele, tomaria lugar de destaque. Reconheceríamos, também, outros seres equivalentes ao ser humano em detrimento de sua supervalorização. Segundo Ruy Duarte de Carvalho, tal pensamento é mais “humanista” do que o humanismo, que eleva o ser humano como elemento principal da natureza. Nota-se que Ruy Duarte de Carvalho não pretende evidenciar o discurso do “outro”, do qual ele trata, e diminuir todo o discurso ocidental predominante. O autor parece empenhar-se em promover os encontros e a valorização de todas as culturas, seja dentro ou fora do paradigma que ele chama de humanista, ou seja, é preciso haver “a convocação de todos os saberes disponíveis” (CARVALHO, 2008). Assim, como na cena “Como num filme” de “Os papéis do Inglês”, em que esse encontro se faz presente na junção dos diferentes sons – o do inglês e do Ganguela – que produzem a harmonia de uma mesma música.

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de Os papéis do inglês, de Ruy Duarte de Carvalho. In: FOLHA DE SÃO PAULO, 06 de janeiro de 2001.

CONCLUSÃO

Em suma, o empenho de Ruy Duarte de Carvalho em reverter o ofuscamento da cultura das sociedades não ocidentalizadas percorre toda a sua produção. Nas duas obras escolhidas aqui para a reflexão – “Os papéis do Inglês” e “As águas do Capembáua” – esse empenho se dá, além de outras formas, através da paródia do romance policial, gênero de base ocidental. O processo de criação da escrita duartiana, portanto, consiste em brincar com essas estruturas. Adotando a perspectiva de Sant’anna da paródia como busca da fala recalcada do outro, vemos que o escritor angolano percorre o caminho de paródia que culmina no destaque para o “outro”, no caso, os pastores e sua concepção de mundo.

CARVALHO, Ruy Duarte de. Os papéis do inglês. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. _________. As águas do Capembáua. In: Como se o mundo não tivesse leste. Lisboa: Cotovia, 2003. _________. Tempo de ouvir o ‘outro’ enquanto o “outro” existe, antes que haja só o outro... ou pré-manifesto neoanimista. In: Podemos viver sem o outro?. Tinta da China/Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. __________. Decálogo neo-animista. 2009. Disponível em <http://www.buala.org/pt/ruy-duarte-decarvalho/decalogo-neo-animista-ruy-duarte-decarvalho>.

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REIMÃO, Sandra Lucia. O que é romance policial. São •88

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A TENSÃO DA ESCRITA EUCLIDIANA E SEUS DESDOBRAMENTOS: DO MESSIANISMO EXACERBADO AO DISCURSO DA RACIONALIDADE Juliana Barcellos da Silva (Graduação ― UFRJ)1 Luisa Serrano Lima (Graduação ― UFRJ) Sérgio Eduardo Correa Santos (Graduação ― UFRJ) Tamara de Souza Mendes do Nascimento (Graduação ― UFRJ)

RESUMO A presente pesquisa abarca uma leitura que se ocupa da extração do viés messiânico na obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, e sua transposição para outras obras literárias. Posterior a Guerra de Canudos, ocorreram dois eventos que tiveram suas raízes fincadas no espelhamento da luta daquele povo do sertão baiano por seus ideais. O primeiro se deu no sudoeste do Brasil, com a guerra do Contestado (1912 – 1916), e o segundo no sertão cearense, com a guerra do Caldeirão (1936 – 1937). Tais revoltas populares, envoltas no fenômeno messiânico resultaram também em romances de extração histórica: O Bruxo do Contestado (1996), de Godofredo de Oliveira Neto, e Caldeirão (1982), de Cláudio Aguiar. Sendo assim, o romance euclidiano figura como uma obra seminal da literatura brasileira.

Palavras-chave: Messianismo. desdobramentos. tensão.

A presente pesquisa abarca uma leitura que se respalda na extração do viés messiânico em “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e, ainda, na sua transposição para produções literárias posteriores. Considerando o romance euclidiano como obra seminal da literatura brasileira, teceremos uma análise comparativa entre a obra supracitada e os romances: “O bruxo do contestado”, de Godofredo de Oliveira Neto, e “Caldeirão”, de Cláudio Aguiar. Posto isso, a constatação das semelhanças – no que se refere à extração histórica de momentos distintos, mas não díspares quanto aos seus ideais – nos permite, da mesma forma, evidenciar a tensão do sujeito que transborda para a escrita na obra

euclidiana. No que concerne ao fenômeno messiânico, Queiroz postula:

Os Movimentos messiânicos, ou grupos religiosos, são comunidades chefiadas por um Messias visando alcançar ou construir um paraíso terrestre, que significará a salvação e a felicidade neste mundo para os adeptos. (QUEIROZ, 1965:139) E desde que a crença se ativa, dá então

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Graduandos e pesquisadores do Curso de Letras – Português / Literaturas. Orientador: Professor Doutor Godofredo de Oliveira Neto

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lugar ao movimento messiânico, que se destina a consertar aquilo que de errado existe. Estes objetivos, que são políticos, sociais, econômicos (conforme se localizem os erros neste ou naquele setor), devem sempre ser, no entanto, religiosamente alcançados, isto é, por meio de rituais especiais que um enviado divino revela aos homens. (QUEIROZ, 1965:7)

Em um cenário desconfortável para as camadas populares, imersas em revoltas fundiárias e expectadoras de injunções políticas, surgia a figura de um messias ― carismático por excelência e portador de um discurso arrebatadamente sedutor ―, que “só merece este título na medida em que uma coletividade diligente o reconhece como líder” (QUEIROZ, 1965:15) No arraial de Canudos essa figura teve a sua representatividade expressa em Antônio Conselheiro, que se envolvia com as necessidades dos sertanejos, uma vez que declarava ser tal situação resultado do início da implantação do sistema republicano; dedicou-se a encontrar saídas, então, para retirá-los da inércia através de uma estrutura socialmente organizada e logrou, aparentemente, êxito. Esta afirmativa é corroborada pelo impacto que o seu poder de liderança exerceu sobre os sertanejos. Impacto este que em sua funcionalidade poderia ser analisado como uma via de mão dupla, isto é, o taumaturgo do sertão dispensava sobre a multidão que o seguia as suas prédicas abarrotadas de promessas e teor revolucionário; seus seguidores, por sua vez, delegavam a ele a autoridade de um líder, um homem divinamente inspirado para conduzi-los a uma vida justa e igualitária. O narrador euclidiano, observador e crítico do universo sertanejo instaurado em Canudos, analisa esta relação de reciprocidade do homem e de seu meio:

É difícil traçar no fenômeno a linha divisória entre as tendências pessoais e as tendências coletivas: a vida resumida de um homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade... Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e com mais rapidez a segunda; acompanhá-las juntas é observar a mais completa mutualidade de influxos. (CUNHA, 2002:96)

Enviado para Canudos com o intuito de meramente relatar o que viria a ser a última expedição realizada pela tropa militar, Euclides da Cunha se depara com uma república distante da vislumbrada pela concepção de razão estabelecida por intermédio da utopia (juntar palavras)iluminista que era empregada em seu ambiente de burguesia citadina. Momento no qual é possível notar uma espécie de reviravolta de opinião:

Traçou, em Os Sertões, paralelos entre os dois lados do conflito, mergulhados no mesmo fanatismo e misticismo: entre o soldado e o jagunço, entre o litoral e o sertão, entre a República a Canudos. Para ele, o coronel Moreira César, comandante da 3ª expedição, líder epiléptico dos jacobinos, é tão “desequilibrado” quanto Conselheiro, o messias delirante: ambos refletiriam a “instabilidade” dos primórdios da república. (VENTURA, 2003:199)

A escrita, se analisada pelo prisma de um produto da experiência, recebe uma carga de tensão que outrora fora exercida sobre o próprio sujeito, ou seja, o narrador euclidiano: Retomou a história da campanha militar com o enfoque mais amplo do que nos artigos de jornal. Adot-

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ou uma perspectiva ensaística e historiográfica que buscava enfocar os fatores e leis gerais, transformando o tema no que chamou de variante de assunto geral: “Os traços atuais das sub-raças sertanejas no Brasil’. Manteve seu relato sob tensão constante: pelo assunto trágico da narrativa, pelo conflito entre a realidade observada e os modelos evolucionistas e naturalistas que adotava. (VENTURA, 2003:199)

Euclides da Cunha se encontra, portanto, como um receptáculo das impressões mais aterradoras da guerra e diante delas se posiciona como ser já fragmentado.

A personalidade de Euclides inclinava-se naturalmente para os conflitos violentos, para os aflitivos extremos. Foi por isso que as imagens de Antônio Conselheiro e de seus fanáticos, esmagados pelas ‘raças do litoral’, mas resistentes até o último cadáver, entraram de chofre em sua consciência e sua sensibilidade, apoderando-se delas para sempre e exigindo uma expressão igualmente forte, agônica. (BOSI, 1997:309)

A zona limítrofe entre as memórias bélicas e o que é transposto para o campo textual sofre, inevitavelmente, o impacto da tensão. Tensão esta que só é perceptível se o leitor capturar e absorver os meandros do texto euclidiano atrelando, ainda, a sua leitura ao conhecimento da arrecova intelectual e filosófica que o narrador trouxe consigo quando foi enviado para Canudos. Ora, se Euclides da Cunha pendia entre a poética da razão e a racionalidade da arte, o mesmo não podemos conjecturar – que haja uma propensão - sobre o cenário religioso. Era, indubitavelmente, um homem anticlerical. Fato este

que não o impediu de observar e descrever parte da efervescência mística-religiosa da qual emerge o beato:

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas indisciplinas da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. O temperamento mais impressionável apenas fê-lo absorver as crenças ambientes, a princípio numa quase passividade pela própria receptividade mórbida do espírito torturado de reveses, e elas refluíram, depois, mais fortemente, sobre o próprio meio de onde haviam partido, partindo da sua consciência delirante. (CUNHA, 2002:96)

Considerando a existência de uma tensão no texto euclidiano a respeito daquela guerra do interior selvagem com a metrópole civilizada, fazendo com que o narrador de Os Sertões a considerasse uma ‘’coisa monstruosa e ilógica em tudo’’ (CUNHA, 2002:158), postula-se um posicionamento aparentemente dúbio por parte deste em relação à Antônio Conselheiro. Entre o elogio e a injúria, há uma tentativa de administrar o sentido que o fez estar em Canudos e o sentimento reflexivo diante de todo o movimento. Pressupondo, então, não haver ironia por parte do narrador, há claramente um desassossego na escrita euclidiana:

Considerando em torno, o falso apóstolo, que o próprio excesso de subjetivismo predispusera à revolta contra a ordem natural, como que observou a fórmula do próprio delírio. Não era um incompreendi-

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do. A multidão aclamava-o representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou para a demência. No gravitar contínuo para o mínimo de uma curva, para o completo obscurecimento da razão, o meio reagindo por sua vez amparou-o, corrigindo-o, fazendo-o estabelecer encadeamento nunca destruído nas mais exageradas concepções, certa ordem no próprio desvario, coerência indestrutível em todos os atos e disciplina rara em todas as paixões, de sorte que ao atravessar, largos anos, nas práticas ascéticas, o sertão alvorotado, tinha na atitude, na palavra e no gesto, a tranquilidade, a altitude e a resignação soberana de um apóstolo antigo. (CUNHA, 2002:96)

O episódio ocorrido em Canudos, magistralmente delineado por Euclides da Cunha, propagou-se, anos mais tarde, no sudoeste catarinense. O cenário, igualmente montado segundo os princípios do fenômeno messiânico descrito por Queiroz, ficou conhecido como a guerra do Contestado. À frente se encontrava o monge José Maria, figura de liderança responsável pela implantação do movimento que logo, assim como ocorrido no sertão baiano, incomodou – por certa rememoração ao passado – o governo:

fresco, e não por outra razão foi enviado pelo Rio de Janeiro, para conhecimento, o general Mesquita, que se tornara conhecido no território de Antônio Conselheiro. (...) Assim, num conflito recheado de elementos religiosos, ideológicos, sociais e de simples guerra de fronteiras, o vácuo de administração pública e a ausência de uma política social, aliada a uma forte concentração de rendas e de terras, determinaram, por um lado, o recuo a propostas psicorreligiosas e, por outro, o avanço de ideias comportando uma maior distribuição de renda e em sintonia com os movimentos internacionais. (NETO, 2012:140)

Esta citação supramencionada foi retirada do romance O Bruxo do Contestado, de Godofredo de Oliveira Neto, de 1994, que introduziu a guerra do Contestado no cenário da literatura nacional. Tecla, uma narradora pós-moderna, nos encaminha para uma trama de caráter mais ficcional quando cotejada com Os Sertões, com o intuito de nos levar a compreensão de um passado histórico por um viés histórico (estórico). Se o narrador do épico de Canudos foi parte integrante do escritor que auxiliou no registro da História do sertão baiano, o mesmo não se pode dizer da voz de Tecla, diretamente contaminada por esta obra euclidiana, que relata estórias passadas na guerra do Contestado.

Nesse contexto havia ainda, como pano de fundo, a disputa por limites territoriais entre os estados do Paraná e de Santa Cantarina. O governo federal interveio; o gabinete de Hermes da Fonseca olhava com preocupação o crescimento das ideias monarquistas – os fiéis a tinham ressuscitado nos campos do Irani –, e a República se viu ameaçada nos seus princípios mais fundamentais. Ademais, Canudos ainda estava

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Se fosse pra fazer tudo de novo, penso que faria, sonho com um Brasil mais justo. Sempre sonhei com um Contestado nos meus moldes. O problema é que, não me lembro exatamente dos termos do último capítulo de Os Sertões, ainda não existe nada para as loucuras e os crimes das nacionalidades. (NETO, 2012:235)


A história, mais uma vez repete-se: em terras cearenses, no lugar conhecido como Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, no Crato(vírgula) (onde) eclodiu mais um fenômeno social liderado por um Messias. Surgido em 1926, em meio a um contexto migratório demasiadamente evidente, auferiu sua versão ficcionalizada por intermédio da obra do escritor Cláudio Aguiar em 1982. Alocamos este romance como uma produção literária que possui um viés messiânico relevante e que tem a sua base histórica espelhada, também, naquele que foi, possivelmente, o episódio mais sanguinolento de nossa História: a guerra de Canudos. Alguns dos aspectos messiânicos vinculados aos estudos de Queiroz, os quais foram citados no começo desta pesquisa, nos indicam o Beato José Lourenço, afilhado de Padre Cícero, como a figura representante dos ideais messiânicos. O narrador-testemunha relata o fenômeno social recorrente, como sendo uma organização perigosa para a nova ordem governamental, pois praticavam um socialismo/comunismo primitivo em que viviam como auto-suficientes (autossuficientes). Deste modo, a reação dos mais altos degraus da sociedade foi instaurar a guerra; assim como ocorreu em Canudos e no Caldeirão. É difícil, direcionando um olhar atento, não traçar uma linha de junção entre os três movimentos populares mencionados nesta pesquisa, afinal, como pondera o narrador a respeito do tempo e da soma dos sofrimentos que se bastam em cada um dos eventos:

A gente depois que começa a entender melhor as coisas do mundo, aprende que o bom e o ruim passam do mesmo jeito. Nada se agarra ao tempo. Tudo caminha, anda. Até para os que querem enxergar a claridade, tudo passa para o lado da soma dos sofrimentos ou para a diminuição das melhores eras. (AGUIAR, 1982:118)

Em suma, verificou-se no decurso de nossa explanação que o fator messiânico – estruturado pelo sentimento de ausência das camadas populares, a urgência terrena e a figura carismática de um, assim leito pelo povo, líder responsável pelo impulso social – une “Os sertões”, “O bruxo do contestado” e o “Caldeirão”. Projeto arquitetado por Euclides da Cunha, resultado de uma desconstrução de ideologias do próprio autor, a obra euclidiana dissemina o interesse e o caráter relevante desses eventos para a história da nação brasileira.

Criou em Os Sertões, uma tensão constante entre a perspectiva naturalista, que concebe a história a partir do determinismo do meio e da raça, e a construção literária, marcada pelo tom antiépico e pelo fatalismo trágico. Tomou a natureza dos sertões como cenário trágico, cuja vegetação, com galhos secos e contorcidos, permitia antever as cabeças degoladas dos sertanejos. Recriou, pelo ritmo binário e pela sintaxe labiríntica, as oscilações climáticas da caatinga e as formas conturbadas das suas plantas e habitantes. (VENTURA, 2003:201)

A tensão da escrita, oriunda também de uma suposta consideração em relação a Antônio Conselheiro, apresenta um aspecto dúbio, isto é, por inúmeras vezes o discurso do narrador beira entre o louvor e o vitupério. Afinal, “não há nada fixo no universo euclidiano” (MELO E SOUZA, 2002:9). Imprimindo em nós a sensação de estarmos deparados diante do discurso desconsertadamente tenso. Discurso este que se desdobra alocando a escrita para o lugar entre a arte, o místico, e, sobretudo, a racionalidade que figura nitidamente estremecida. E “a sua originalidade do estilo narrativo euclidiano reside, justamente, no intercâmbio dialógico da consciência da razão exercida pelo narrador e da

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experiência da imaginação dramatizada nos refletores ou máscaras narrativas.”. (MELO E SOUZA, 2002:11).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Cláudio. Caldeirão. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1ª. ed. 1982.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Messianismo no brasil e no mundo. São Paulo: Dominus Editora, 1965.

VENTURA, Roberto de. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha – Esboço bibliográfico. Organização de Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2003

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Hucitec, 2010

BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti. A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2000.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2012.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.

CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Ouro Sobre Azul, 2012.

CUNHA, Euclides da. Os sertões. Rio de Janeiro: Aguilar, 2002.

MELO E SOUZA, Ronaldes de. A geopoética de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro. Eduerj, 2002.

OLIVEIRA NETO, Godofredo de. O bruxo do contestado. Rio de Janeiro: Record, 2012. •94

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[IN]DESCRIÇÃO DE JANE AUSTEN Larissa Pereira de França (Graduação ― UERJ)* RESUMO Neste artigo, discutirei brevemente uma latente característica nas obras de Jane Austen, por mim nomeada [in]descrição. Essa característica se constitui de uma apresentação das personagens feita de tal forma que seus perfis são desenhados por elas mesmas durante a narrativa, dispensando a tradicional descrição por parte do narrador. A descrição física é, em Jane Austen, substituída por uma descrição de personalidade que, mais do que descreve, constrói as personagens no imaginário do leitor. Para o desenvolvimento da questão foram utilizados dois romances da autora: Orgulho e Preconceito e Persuasão. Palavras-chave: literatura inglesa. Jane Austen. descrição.

cia dessa descrição – o que chamo de [in]descrição1. O que é e a importância dessa [in]descrição constituem a preocupação deste artigo.

INTRODUÇÃO

Se a um leitor assíduo das obras de Jane Austen é pedido para que trace um perfil de algumas das personagens dos romances Austenianos, com sucesso esse leitor será capaz de fazê-lo. Facilmente, (qualquer) um pode traçar o perfil do Sr. Collins. Um homem pedante, repugnante, bajulador e, como muitos dizem um "mala". Ou da Sra. Bennet. Uma senhora falante, ignorante, fútil e fofoqueira que vive por casar as filhas e não se cansa de reclamar da vida. Ou de Sir Walter Elliot. Um baronete quase falido, porém, prepotente, vaidoso e orgulhoso. Ao refletir, porém, esse leitor percebe que nos perfis que traçou não havia sequer uma característica física. Ele percebe que não sabe a cor dos olhos do Sr. Collins, a estatura da Sra. Bennet ou se Sir Walter Elliot era calvo. Não sabe porque Jane Austen não dá a ele essa informação. No entanto, é capaz de imaginar perfeitamente essas personagens. Isso porque a descrição física e material – preferida pela grande maioria dos escritores – para Jane Austen não aparenta ser o mais importante dentro de uma obra. A autora se destaca, porém, pela ausên-

Desde o início de sua carreira Austen já apresentava essa peculiar característica que foi muito bem recebida pela crítica literária de sua época e posterior. Em The Journal of Sir Walter Scott, em março de 1826, Scott2 diz que "ela [Jane Austen] tinha um talento para descrever os envolvimentos, e sentimentos, e personagens da vida comum, o que é para mim o talento mais maravilhoso que eu já vi [...] Uma pena que uma criatura tão abençoada tenha morrido tão cedo!"3 Outro que identificou, apontou e louvou essa característica da autora foi seu sobrinho James Austen-Leigh quando escreveu o prefácio de The Watsons. Leigh afirma que The Watsons "é rico no poder especial que ela [Austen] possui, de contar a *

Estudante de Licenciatura em Letras - Inglês/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). 1 [in]descrição é um termo criado por mim com o sentido de "não-descrição" e com um objetivo lúdico através da adição do prefixo –in, de sentido negativo. 2 Walter Scott (1771 – 1832). Escocês, autor de romances, poeta e roteirista. Autor de clássicos como Waverley e Ivanhoé, foi o primeiro autor de língua inglesa a fazer fama internacional em vida. 3 Tradução livre do original: "She had a talent for describing the involvements, and feelings, and characters of ordinary life, which is to me the most wonderful I ever met with […] What a pity such a gifted creature died so early!"

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história e revelar as personagens através da conversação ao invés da descrição." 4 Anos mais tarde, em The Novels of Jane Austen, Lewes5 escreve a respeito da declaração de Scott. Lewes declara que: Scott sentiu, mas não definiu a excelência da Srta. Austen. A palavra “descrever” é totalmente mal colocada e enganosa. Ela raramente descreve alguma coisa, e não é feliz quando tenta fazê-lo. Mas, ao invés de descrição, a comum e fácil fonte dos romancistas, ela possui a difícil e rara arte da apresentação dramática: ao invés de nos dizer o que seus personagens são, e o que sentem, ela apresenta as pessoas, e elas se revelam. Nisto talvez ela jamais tenha sido superada, nem mesmo pelo próprio Shakespeare.6 (FALTA REFERÊNCIA)

Lewes apresenta aqui dois diferentes conceitos. Descrição e apresentação dramática. É necessário, primeiramente, entender cada um desses conceitos dentro das obras de Austen.

DESCRIÇÃO

Entende-se por descrição os dados físicos, 4

Tradução livre do original: "it is rich in her especial power of telling the story, and bringing out the characters by conversation rather than by description". 5 George Henry Lewes (1817 – 1878). Crítico literário e teatral e filósofo inglês durante a Era Vitoriana.

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Tradução livre do original: "Scott felt, but did not define, the excellence of Miss Austen. The very word "describing" is altogether misplaced and misleading. She seldom describes anything, and is not felicitous when she attempts it. But instead of description, the common and easy resource of novelists, she has the rare and difficult art of dramatic presentation: instead of telling us what her characters are, and what they feel, she presents the people, and they reveal themselves. In this she has never perhaps been surpassed, not even by Shakespeare himself."

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comportamentais e de personalidade inteiramente entregues ao leitor pelo narrador, não havendo a possibilidade de sua mudança de um leitor a outro. Ao dizer que “Ela raramente descreve alguma coisa”, Lewes nos revela que há sim descrição no texto de Austen, mas não é uma característica predominante. Em Persuasão7 isso ocorre uma única vez quando, ao chegar a Lyme, o grupo viajante conhece os dois amigos de Wentworth:

O Capitão Harville era alto, moreno, de semblante sensível e benevolente; um tanto manco; e de feições grosseiras, e necessitado de saúde, parecia bem mais velho que o Capitão Wentworth. Capitão Benwick parecia e era o mais novo dos três, e, se comparado aos outros dois, baixinho. Tinha um rosto agradável e um ar melancólico [...] apesar de não se igualar ao Capitão Wentworth em suas maneiras, era um perfeito cavalheiro, sincero, impetuoso e prestativo. (FALTA REFERÊNCIA)

O que faz dessa passagem uma descrição é a afirmação feita pelo narrador. A partir do momento em que o narrador afirma que “O capitão Harville era alto, moreno”, essa informação se torna incontestável. Nenhum leitor coerente pode dizer que em sua imaginação Harville é loiro e de baixa estatura. Cabe frisar que a descrição não é necessariamente física, mas toda afirmação feita pelo narrador a respeito da constituição de alguma personagem e/ou cenário. Isso significa que qualquer outro dado que o leitor venha a utilizar para fazer referência a uma personagem e/ou cenário é fruto de um processo de inferência - não de descrição resultado do processo de [in]descrição que será discutido mais à frente. 7

Todas as citações de Persuasão neste artigo são traduções livres minhas.

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Por ser a descrição uma característica incomum nos textos de Austen, pode-se afirmar que quando a autora lança mão dessa técnica, há uma intenção por detrás. No trecho acima destacado há uma descrição comparativa entre os capitães Harville, Wentworth e Benwick: três personagens de grande importância para a trama. Considerando que na trama os protagonistas Anne Elliot e Frederick Wentworth possuem uma história no passado, que durante a narrativa eles estão separados e há a possibilidade de Wentworth estar ou não interessado em Henrietta Musgrove, é necessário que o narrador conquiste a simpatia do leitor para o casal protagonista Anne/Wentworth. A forma que o narrador encontra de fazer isso é exaltando a figura de Wentworth em relação a seus companheiros. Em Orgulho e Preconceito8 há um exemplo de descrição de cenário, o que é raro na obra de Austen. Ele se encontra no segundo e terceiro parágrafos do capítulo quarenta e três.(dois pontos)

O parque era muito extenso e possuía grande variedade de cenários. Eles entraram em um de seus pontos mais baixos, e andaram por algum tempo por um lindo campo, avançando sobre uma larga extensão [...] Eles gradualmente ascenderam meia milha e então acharam-se no topo de uma pequena colina onde o campo terminava e os olhos eram instantaneamente capturados por Pemberley, situada no lado oposto de um vale o qual a estrada rudemente circundava. Era uma construção de pedra, larga, bonita e bem posicionada numa região elevada. Atrás da casa, uma série de altas colinas arborizadas e na frente, um riacho de certa importância natural foi expandido ao máximo, sem parecer arti-

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Todas as citações de Orgulho e Preconceito neste artigo são traduções livres minhas.

ficial. Suas margens não eram nem regulares nem falsamente adornadas. (FALTA REFERÊNCIA)

O que se observa da descrição de Pemberley – entende-se Pemberley como não somente a casa, mas toda a propriedade – é que, mais uma vez, há um propósito para tal. Ao analisar com cuidado a obra como um todo, percebe-se que Darcy é visto negativamente tanto pelas demais personagens quanto pelo leitor até o fim do capítulo quarenta e dois. Do capítulo quarenta e quatro em diante tudo se inverte até que a visão se torne positiva ao final do romance. O momento de transição de opiniões é o capítulo quarenta e três. É depois de conhecer a propriedade de Darcy, ver sua grandiosidade e importância, entrar em sua casa, ver sua irmã e principalmente a maneira como os empregados o veem e o respeitam, que Lizzy e nós leitores somos guiados a pensar diferente sobre ele. Pode-se dizer que na descrição de Pemberley, Austen utiliza um recurso retórico metonímico, uma vez que a descrição física da propriedade de Darcy funciona como revelação do próprio, ou seja, ao descrever Pemberley revela-se quem é Darcy. Tendo em consideração os dois exemplos de descrição discutidos neste capítulo, torna-se claro que os raros momentos descritivos de Austen revelam uma intenção, uma vez que fogem à regra. Dessa forma, diferentemente do que afirma Lewes ao dizer que "Ela raramente descreve alguma coisa, e não é feliz quando tenta fazê-lo", Austen é muito mais que feliz quanto faz descrição, ainda que raramente. APRESENTAÇÃO DRAMÁTICA

Entende-se por apresentação dramática o recurso através do qual uma personagem é apresentada ao leitor pelos olhos de outra (s) e, no decorrer da

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trama, se revela a si própria podendo também sofrer transformações positivas e/ou negativas. Quando Lewes diz que “ao invés de nos dizer o que seus personagens são, e o que sentem, ela apresenta as pessoas, e elas se revelam”, ele se refere ao padrão de apresentação de personagens presente nas obras Austenianas no qual cada personagem é primeiramente apresentada pelo ponto de vista das demais para mais tarde revelar-se a si própria através de suas ações e/ou suas próprias palavras. Essa característica é muito comum em romances de costumes que privilegiam o diálogo em detrimento da narração. É através do diálogo entre as personagens que o leitor as conhece e molda seu caráter, não havendo a necessidade de descrição por parte do narrador. Em alguns momentos a apresentação dramática pode ser confundida com a descrição, uma vez que pode ser feita pelo narrador e não unicamente pelos diálogos entre as personagens. Nesses casos, o que diferencia uma da outra é ponto de vista do qual se fala: a descrição é feita através do ponto de vista do narrador; a apresentação dramática, do ponto de vista de uma ou mais personagens. A título de ilustração, analisaremos as personagens Wentworth de Persuasão e Darcy de Orgulho e Preconceito.

com um coração ainda mais seu do que quando você quase o partiu há oito anos e meio atrás [...] Não amei mais ninguém senão você. Injusto talvez fui, fraco e ressentido eu fui, nunca inconstante. (FALTA REFERÊNCIA)

Com a personagem Darcy não é diferente. Sua primeira aparição no romance é no baile oferecido por Sir William e Lady Lucas quando o narrador nos diz que o cavalheiro "logo chamou a atenção de todos por sua altura, beleza, traços finos e gestos nobres [...] Os cavalheiros o proclamaram um homem fino, as damas o declararam ser mais belo que o Sr.Bingley." (FALTA REFERÊNCIA) No entanto, ainda no mesmo parágrafo o leitor é surpreendido com uma brusca mudança de opinião das personagens a respeito do cavalheiro em questão e é induzido a tirar más conclusões do mesmo:

"E ele foi visto com admiração até metade da noite, até que suas maneiras geraram certo desgosto que inverteu sua maré de popularidade; perceberam que era orgulhoso, mantinha-se afastado de seu grupo e parecia impossível de ser agradado." (FALTA REFERÊNCIA)

A apresentação primária de Wentworth é feita por Sir Walter Elliot em conversa com o Sr. Shepherd a respeito do aluguel de Kellynch Hall. Em meio ao diálogo, Sir Walter diz lembrar que "o Sr. Wentworth era um ninguém, se bem me lembro; não tinha relações." Pouco depois, o leitor recebe informações positivas da personagem através do narrador que, por sua vez, narra o ponto de vista das irmãs Louisa e Henrietta que declaram "o quão encantadas estavam com ele, como elas o achavam o mais belo, o infinitamente mais agradável dos homens de seu convívio." Entretanto, apenas após uma carta escrita pelo próprio Wentworth, o leitor é capaz de definir quem ele é realmente. Ele escreve para Anne:

Podemos claramente perceber que nessas duas passagens a personagem Darcy é apresentada pelo narrador através dos olhos das personagens presentes na cena. Mais uma vez, o leitor só se torna capaz de declarar quem a personagem é em sua essência através de suas próprias palavras. Em conversa com Lizzy, Darcy se abre e explica a si mesmo:

Ofereço-me a você outra vez

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Não posso facilmente me rec-


onciliar comigo mesmo. A lembrança de tudo o que eu disse, da minha conduta, minhas maneiras, minhas expressões durante tudo isso, é agora e tem sido durante muitos meses, dolorosa para mim de forma inexpressível [...] me ensinaram a ser egoísta e insuportável, a não me preocupar com ninguém além do me círculo familiar, a pensar com desprezo no resto do mundo, a desprezar seu bom senso e valores se comparados aos meus. Assim eu fui dos oito aos vinte oito anos; e assim eu, talvez, ainda seria se não fosse por você, querida, amada, Elizabeth! (FALTA REFERÊNCIA)

A partir daí, entender a noção de apresentação dramática se torna muito mais fácil. Tanto Wentworth quanto Darcy, ambos não têm suas descrições prontas e entregues “de bandeja” ao leitor. Nenhum dos dois é descrito. Por outro lado, são apresentados inúmeras vezes por diferentes vieses até que por fim, se revelam a si próprios como realmente são. Isto é, ocorre uma não descrição ou --como prefiro chamar --- uma [in]descrição por parte da autora que, para tal, utiliza-se do recurso da apresentação dramática.

CONCLUSÃO

Entende-se [in]descrição como uma característica que é resultado do processo de utilização do recurso da apresentação dramática. Esse recurso consiste da apresentação das personagens pelo ponto de vista delas próprias, dispensando a tradicional descrição pelo ponto de vista do narrador. Nas obras Austenianas, a [in]descrição é o único motor do imaginário do leitor que se vê livre para inferir e opinar a respeito das personagens e cenário. Entende-se também que tanto a descrição quanto a

[in] descrição presentes nos trabalhos de Jane Austen não são obra da casualidade. A [in]descrição é um padrão; um estilo; uma escolha da autora que diferentemente da descrição direciona seu foco para as personagens em detrimento do cenário; conferindo a elas maior liberdade e autonomia e aproximando-as da realidade. Não é à toa que a obra de Austen é por muitos considerada realista. Com esse estilo, Austen permite ao leitor ousar mais em sua imaginação, surpreender-se com as reviravoltas das personagens que mudam constantemente como todo ser humano e abre brecha para as inúmeras e tão distintas adaptações de suas obras para Teatro, Cinema e Televisão. A [in]descrição é também uma estratégia muito inteligente, pois confere à obra um suspense incomum em histórias de romance gerando no leitor um desejo insaciável de entender cada personagem do romance, tornando-o escravo de sua leitura até o fim.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTA PRELIMINAR: A ANTEVISÃO DO CARÁTER HÍBRIDO NO PENSAMENTO EUCLIDIANO Juliana Barcellos da Silva (Graduação ― UFRJ)1 Luisa Serrano Lima (Graduação ― UFRJ) Sérgio Eduardo Correa Santos (Graduação ― UFRJ) Tamara de Souza Mendes do Nascimento (Graduação ― UFRJ)

RESUMO Na Nota preliminar d’Os Sertões (1902), há um tom confessional que reflete o sentimento de culpa de Euclides da Cunha pela propagação de caráter negativo em relação aos patrícios em alguns trechos da obra, concomitantemente à exaltação da atitude republicana tomada em Canudos. Ademais, durante a guerra, os telegramas – publicados posteriormente em Canudos: Diário de Expedição (1939) – enviados para o governo, a pedido do jornal O Estado de São Paulo, também parecem ser de conteúdo formador à culpabilidade confidenciada pelo autor. Então, para além do sentido a priori de denúncia, esta pesquisa visa trazer à lume o teor de absolvição de Euclides ao expor suas tensões – aspecto mais profundo do indivíduo Euclidiano – que desponta para o hibridismo de Os Sertões em sua completude. Palavras-chave: Euclides. Hibridismo. Tensão.

INTRODUÇÃO A presente pesquisa correlaciona os escritos euclidianos, a saber: Os Sertões (1902) e Canudos: diário de uma expedição (1939) com o objetivo de evidenciar o teor confessional que advém de uma possível culpa do autor ao relatar os desmandos ocorridos durante a Campanha de Canudos. A obra, que se divide em “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”, surgiu como uma tentativa de relatar a Guerra ocorrida no sertão baiano. No entanto, para além desta feição puramente descritiva, Euclides da Cunha construiu a narrativa alicerçando-a sob o sentido de denúncia, como exposto na Nota Preliminar: “este livro,

Antes de chegar à capital baiana, Euclides, munido de um arcabouço ético e intelectual advindo da sua formação republicana, publicava artigos jornalísticos sobre suas impressões no que tange aos acontecimentos do arraial canudense. Entretanto, quando foi enviado como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, para cobrir o que viria a ser a quarta e última expedição no Arraial de Canudos, deparou-se com uma ebulição de informações que o fizeram repensar sobre a postura de republicano convicto que apoiava inteiramente a ação militar. Em um de seus primeiros registros informais, realizados em solo baiano, o autor já apresenta indícios de uma futura mudança de perspectiva em relação à dicotomia litoral versus sertão.

que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade, remorada a sua publicação em virtude de causas que temos por escusado apontar.” (CUNHA, 2009:65) Graduandos e pesquisadores em Letras (Português/Literaturas) 1 •100 Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016


Bahia, 16 de agosto. Ao chegar aqui e assaltado logo por impressões novas e variadas, perturbadoras de um juízo seguro, acredito às vezes, que avaliei imperfeitamente a situação e dominado talvez pela opinião geral entre os que voltavam de Canudos disse também com eles: - Está quase terminada a luta e não fará mais vítimas. (CUNHA, 2003: 46)

Bahia, 20 de agosto. (...) Porque é realmente inevitável esta intercorrência de sensações estranhas e diversas, invadindo de modo irresistível o assunto e progra-

unços em Canudos, acredita-se que outros estejam emboscados nas imediações. A vitória porém, é infalível e próxima. Viva a República!” (CUNHA, 2003: 30)

Monte Santo, outubro 3. Continua a resistência do inimigo que, apertado na igreja nova, não resistirá muito. (...) O batalhão paulista tem acompanhado brilhantemente os esforços heroicos do exército. A vitória é infalível. A República é imortal! (CUNHA, 2003: 112)

A Nota Preliminar se apresenta como uma síntese dessas tensões que permeiam a escrita eu-

clidiana e se manifestam nas diferentes estratégias mas preestabelecidos. narrativas na construção de sentido. Em um discurso desconsertadamente tenso, o autor cantagalense Numa hora assaltam-me, às vezes, as mais desencontradas impressões. transpassa o sentido cerne de denúncia ao se incluir como aqueles “filhos do mesmo solo” que tiveram (CUNHA, 2003: 56) na ação um “papel singular de mercenários inconscientes”. A sua inserção nesse termo como tendo Entretanto, ao se corresponder com o Jor- sido também interesseiro nesse “papel singular” nal pelo qual foi requisitado, o seu posicionamen- foi uma expressão estranhada pelos críticos leitores to voltava a ser de caráter negativo em relação aos da época. Em uma nota à segunda edição, o autor patrícios e de exaltação da atitude republicana. Essa aproveita para tentar justificar o seu uso e a sua peratitude dúbia revela os dois posicionamentos do es- manência na Nota Preliminar defendida por ele: critor, em que cada qual parecia ser regido segundo os âmbitos privado, no caso do diário, e o público, Estranhou-se a expressão. Mas devo moldado pelas expectativas criadas a respeito das mantê-la; mantenho-a. Não tive o notícias a serem mandadas por ele para o litoral. intuito de defender os sertanejos Respaldados por esta assertiva, verifica-se a modporque este livro não é um livro de ulação referente ao discurso de Euclides em seus defesa; é, infelizmente, de ataque. telegramas enviados a São Paulo: Ataque franco e, devo dizê-lo, involuntário (...) obedeci a rigor incoercível da verdade. Ninguém o neBahia, agosto 8 (11h10m) “O Governador Dr. Luís Viana visita neste momento o General Savaget, no Forte de Jequitaia. Embora conste a existência de poucos jag-

gará. (CUNHA, 2011: 588)

Duas conjunturas são importantes dessa nota de edição ressaltar: o uso do infelizmente para contar

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o que seria o intuito do livro, e o uso do termo involuntário que remete à circunstância de encomenda para o surgimento de Os Sertões. Se o pedido fora realizado por um jornal da classe litorânea, era de se esperar que o autor fosse impelido à se manter convicto às suas concepções do que viria ser o arraial canudense. Então, Euclides admite ter sido sim, em alguns pontos, um soldado a atacar Conselheiro e seu grupo tanto que, por isso, diz-se também mercenário, culpado e cúmplice pela propagação do sentimento de repulsa aos sertanejos. Ele parece externar o seu sentimento de remorso diante da desastrosa atuação do exército brasileiro, por contribuir de maneira indireta para a disseminação – com os telegramas, em algumas instâncias em Os Sertões e em alguns artigos - de caráter negativo em relação aos patrícios.

A crítica à República trazia implícita a revisão de suas próprias posições políticas, marcadas pela adesão a um conjunto de crenças científicas e filosóficas, como positivismo e evolucionismo, que se materializam no movimento republicano. Tal revisão resultou de uma longa e sofrida reelaboração. Em que deixava transparecer certa culpa ou remorso pelo silêncio cúmplice a que precisou se submeter. [...] Defrontou-se, no calor da hora, com a impossibilidade de erguer a voz ou de brandir a pena contra os desmandos de um regime político, em que desapareciam os contornos entre heróis e bandidos, entre bárbaros e civilizados. (VENTURA, 2003: 217-218)

Sendo assim, verifica-se que, envolto pelas tensões oriundas da guerra e pela desconstrução de ideologias acentuadas na impossibilidade de racionalizar essas efervescências, o sujeito euclidiano, visivelmente cindido, apresenta um discurso de caráter híbrido em sua obra de 1902, ora sua con•102

sciência pende em defesa dos sertanejos, ao se confrontar, direta ou indiretamente, com a realidade canudense, ora ela parece insistir em permanecer com antigas impressões ideológicas. Essa dubiedade na escrita é o próprio hibridismo d’ Os Sertões que se materializa com artifícios, alguns de razão estratégica, outros despretensiosos, de sua narrativa.

HIBRIDISMO

O hibridismo genuíno na obra de Euclides da Cunha, que deu origem ao tom de confissão e de pedido de desculpas anunciados na nota preliminar, pode ser depreendido no famoso trecho iniciado com a sentença de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Nesse excerto as dubiedades se apresentam para depois ramificarem em recursos linguístico-discursivos (metáfora, ironia, reticências) e em um cientificismo misturado aos encantos da imaginação, que compõem um conjunto de particularidades híbridas no romance euclidiano. Nelas as suas tensões estão expostas e são razão do anúncio feito na Nota Preliminar, na qual o “Denunciemo-lo”, não se torna o único elemento antevisto para os leitores. Em “O Sertanejo”, essa figura do interior baiano é vista e revista, pensada e repensada, entre seus aspectos físicos e psicológicos. O autor sentencia seu “antes de tudo”, pois depois da sentença, que admite serem homens fortes, o que se sucede é uma adjetivação negativa por ser “desgracioso, desengonçado, torto. Hércules Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos.” (CUNHA, 2009: 207-208). Mas uma pausa, após um fluxo intenso de injúria sobre este “homem permanentemente fatigado”, diz-nos iniciando por uma conjunção adversativa, em adversa reflexão, que toda essa aparência ilude. Surge, então, uma reformulação “e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento

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surpreendente de força e agilidade extraordinárias” (CUNHA, 2009: 207-208).

operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea , todos os efeitos do relaxamento habitual do órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.”

Nota-se a profusão, em um único excerto, da dificuldade em se estabelecer apenas uma perspectiva em relação aos sertanejos, vistos como vilões durante a guerra. Alterna-se entre o elogio e vitupério, não pelo trabalho intuitivo nesses dois eixos, mas pela complexidade de falar sobre aqueles indivíduos dada a complexidade do pensar que varia entre uma ponta e outra. E sobre essa base, o hibridismo de Os Sertões se apresenta: dúbio, variando entre um fator e outro.

“O Sertanejo O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivos dos mestiços neurastênicos do

(CUNHA, 2009: 207-208)

litoral. (...) É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, a aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. (...) É o homem permanentemente fatigado. Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e á quietude. Entretanto, toda esta aparência ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-lo desaparecer de improviso. Naquela organização combalida

CIENTIFICISMO

Compreendendo o cientificismo como uma ideologia na qual a superioridade da ciência sobre as formas de compreensão humana é o fator cerne, torna-se possível uma leitura análoga a essa filosofia/postura, em especial do capítulo “A Terra”, da obra de Euclides. Muito se conjecturou e discutiu a respeito da validade de Os Sertões como obra literária devido a sua gama de conteúdos em relação, em especial, às terras baianas. Em um olhar primário, a concepção de que se trata de um artigo científico logo surge nas primeiras páginas. É o momento em que, talvez, esse autor, ao relento do pensamento republicano que aguardava ferozmente o seu relato de geólogo frio e preciso, ainda estava latente. Mas, ainda sim, é possível notar, aos cuidados das minúcias entre uma palavra e outra, uma admiração que observa a seca, a aspereza do clima, a selvageria das águas, mas também “As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de

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relevos estupendos”(CUNHA,2009:87) já no excerto denominado “Primeiras Impressões”.

(CUNHA, 2009: 87)

Em uma nota à segunda edição, o autor de Os Sertões rebate uma crítica feita por José de Campos Novaes em artigo da Revista do Centro de Letras e Artes, de Campinas. Ele revela ter visto, em uma frase de conteúdo científico em relação à formação de cavidades no solo feitas pelas chuvas, segundo Euclides “uma inexatidão e um dos imaginosos traços do meu apedrejado nefelibatismo científico” (CUNHA, 2011: 581). Esse nefelibatismo parece acusar o próprio de não ter sido puramente racional e descritivo, tendo se esquivado da realidade para ceder espaço à traços imaginosos. Assim como em “Um sonho de geólogo”, em que a revelação de “impressões dolorosas” se mistura à referida profissão que não o deixa ser distante de seu estudo científico. A ciência parece sim, contudo, sobressair nos momentos de “A Terra”. Um Euclides firme aparece, surge, mas, às vezes, se expõe em tensão, poético.

(...) O regime desértico ali se firmou, então em flagrante antagonismo com as disposições geográficas: sobre uma escarpa, onde nada recorda as depressões sem escoamento dos desertos clássicos. Acredita-se que a região incipiente ainda está preparando-se para a Vida: líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra. E lutando tenazmente com o flagelar do clima, uma flora de resistência rara por ali entretece a trama das raízes, obstando, em parte, que as torrentes arrebatem todos os princípios exsolvidos – acumulando-os pouco a pouco na conquista da paragem desolada cujos contornos suaviza – sem impedir, contudo, nos estios longos, as insolações inclementes e as águas

Primeiras Impressões

selvagens, degradando o solo.

É uma paragem impressionadora.

Daí a impressão dolorosa que nos domina ao atravessarmos aquele ignoto trecho do sertão – quase um deserto -, quer se aperte entre as dobras de serranias nuas ou se estire, monotonamente, em descampados

As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos, sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores, expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando duramente a cada passo, malcobertos por uma flora tolhiça – dispondo-se em cenários em que ressalta, predominantemente, o aspecto atormentado das paisagens.

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Um sonho de geólogo

grandes... (CUNHA, 2009: 93-94)

METÁFORA E IRONIA

A metáfora constrói-se a partir de imagens díspares que se aproximam através de sua estruturação dentro de uma sentença. Euclides, em muitos momentos do seu polissêmico livro, utiliza-se desse recurso linguístico para edificar e poetizar sua narrativa sobre as cenas estarrecedoras presenciadas durante a desastrosa campanha no sertão

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baiano. No entanto, nos ateremos no excerto intitulado "Higrômetros singulares" com o intuito de exemplificar o conceito proposto. O trecho se inicia com o narrador euclidiano nos colocando a par de uma de suas caminhadas em Canudos e, nesse momento, depara- se com um homem deitado no chão. No início do relato, esse nos é apresentado como um "soldado que descansava", entretanto os acréscimos futuros nos fazem perceber que o "descanso", na verdade, trata-se da morte. Através dessa constatação, notamos alguns detalhes que anteriormente passaram despercebidos, vocábulos como "anfiteatro" e "jardins abandonados" neste momento ganham outra conotação e elevam a narrativa ao nível metafórico de espetáculo. Nesse contexto, o sol poente surge desatando as sombras como um holofote que joga sua luminosidade sobre o corpo do militar, que segundo o narrador “murchara apenas”. A narrativa segue e são introduzidos elementos que aproximam a imagem do soldado morto à figura de Jesus crucificado. Os braços abertos e a face elevada aos céus remetem a Cristo em seu calvário, assim como sua morte foi assistida e acompanhada, a do soldado também é, mas pelos litorâneos, que assistem ao massacre como se assistissem a uma performance teatral. Porém, diferente da figura cristã, o combatente continua o seu descanso há mais de três meses, metaforicamente, crucificado pela seca e pela dificuldade de adaptação ao ambiente árido do sertão baiano. Por esse motivo, "Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado". Fora esquecido e em seu eterno descanso ainda lhe restava a função de higrômetro singular. Outro recurso de efeito argumentativo utilizado por Euclides é a ironia. Toda ela - como um recurso discursivo que ocorre em dado contexto e é criada dada a sua intencionalidade - é uma tomada de posição velada, de posicionamento que não aparece nu. E sua exposição, ou não, está a depender de um monitoramento que force a sua necessidade, ou a maneira na qual se quer atingir algo ou alguém.

N’Os Sertões, a ironia existe nessas, ou em mais, facetas. As expectativas do litoral a respeito dos relatos do autor, não poderiam por ele ser claramente detonadas, afinal, como diz em uma nota à segunda edição: “o livro é, infelizmente, de ataque”. Demos atenção ao pesar do sentimento expresso em “infelizmente”. Mas que, felizmente, não se concretizou ao todo. No mesmo excerto em que se constata a presença da metáfora, pode-se também depreender um caráter irônico na narrativa. Depois de nos depararmos com um soldado que descansava, há uma quebra, um corte, para dizer-nos então, e dizer aos ansiosos republicanos pela leitura na época, que ele “Descansava... havia três meses”. Uma comoção seguida de alerta, que se forrou sob a ironia ao relatar a morte deprimente de um combatente de braços abertos e faces voltadas para o céu, não se configura como um ataque aos sertanejos, é uma crítica sobre os eventos ocorridos em Canudos. O tom dramático das reticências é ainda mais um recurso que se uniu a outros para revelar, a quem via os conselheiristas como desvairados, apenas a cena de um homem morto há três meses.

Higrômetros Singulares Não a observamos através do rigorismo de processos clássicos, mas graças a hidrômetros inesperados e bizarros. Percorrendo certa vez, nos finas de setembro, as cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturnos, encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. Pequenos arbustos, icozeirosvirentes viçando em tufos intermeados de palmatórias de flores rutilantes, davam ao lugar a aparência exata de algum velho jardim em abandono. Ao lado de uma árvore única, uma quixabei-

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ra alta, sobranceando a vegetação

(CUNHA,2009: 105-106-107)

franzina. O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e protegido por ela – braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha da Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que sucumbira em luta corpo a corpo com adversário possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido. Não compartira, por isto, a vala comum de menos de um cevado de fundo em que eram jogados, formando pela última vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O destino que o removera do lar desprotegido fizera-lhe afinal uma concessão: livrara-o da promiscuidade lúgubre de um fosse repugnante; e deixara-o aliali há três meses – braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para o sóis ardentes, para os luares claros,

Em “Estrada para o Céu”, Euclides narra o movimento de cortejo de pessoas em direção ao arraial de Canudos em busca de salvação terrena, que lhes proporcionasse a imediata salvação de suas urgências. “Ingênuos contos sertanejos” davam conta, segundo o autor, de instigar a curiosidade sobre aquele local. A ironia que se ocupa das instâncias de céu e inferno - a começar no próprio subtítulo - alimenta um tom narrativo sarcástico que vislumbra nos rostos daqueles andarilhos “esvaecida a miragem feliz; mas - que - não se despeavam do misticismo lamentável...”. Aqui a ironia, não sintonizada emocionalmente, faz-se dura e desdenhosa com a decisão do povo em chegar àquelas terras para encontrarem “águas barrentas das enchentes”. Crítica há, nesse excerto, aos sertanejos que insistiam em caminhar numa ilusória “estrada para o céu” que lhes laçava à fé e à religiosidade.

para as estrelas fulgurantes... E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme – o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria – lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.

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Estrada para o céu Os ingênuos contos sertanejos desde muito lhes haviam revelado as estradas fascinadoramente traiçoeiras que levam ao Inferno. Canudos, imunda antessala do Paraíso, pobre peristilo dos céus, devia ser assim mesmo – repugnante, aterrador, horrendo ... Entretanto, lá tinham ido, muitos alimentando esperanças singulares. (...) Deparavam o Vaza-Barris seco, ou empanzinado, volvendo apenas águas barrentas das enchentes, entre os flancos entorroados das colinas… Tinham esvaecida a miragem feliz; mas não se despeavam do mistiscismo lamentável. (CUNHA,2009: 308)


Mas esta condensava o obscurantismo de três raças. E cresceu tanto que se projetou na História ...”

RETICÊNCIAS

(CUNHA, 2009: 268)

Partindo da premissa de que as reticências são responsáveis por uma quebra discursiva dentro de um fluxo narrativo, temos na escrita euclidiana exemplos que corroboram para tal afirmativa. Em "Antônio Conselheiro, um documento vivo de atavismo", as reticências aparecem como a representação gráfica do que chamamos de ato reflexivo. Afinal, Euclides constrói a figura de Conselheiro e, ao fim, após uma breve reflexão sobre o que havia escrito anteriormente, sentencia: “A imagem é corretíssima”. Ainda questionando o líder canudense e a força que desempenhou sobre os sertanejos, o autor continua sua estruturação acerca da maneira como esse indivíduo emergiu de forma silenciosa da massa e, mesmo que despretensiosamente, “se projetou na História...". Diante da impossibilidade de uma explicação lógica/científica, finaliza sua descrição com reticências. Reticências que outrora serviram para uma pausa reflexiva, agora surgem como uma parábase permanente tanto para o escritor como para o leitor.

Em suma, como admite o próprio Euclides da Cunha em um caderno íntimo de Lorena, 1902 em Os Sertões “mais facilmente se concebe a coexistência de dois corpos no mesmo espaço que a de dois pensamentos no mesmo cérebro” (CUNHA, 2003:136). E o tom confessional presente na Nota Preliminar esbarra diretamente em um possível sentimento de culpa por parte do literato que se inclui como responsável na realização da campanha. Através de tal confissão, é possível estabelecer que a mesma Nota tem como função antever um pedido de desculpas, mesmo que implícito, que aparece ao fim da narrativa titubeante do livro. Momento no qual o narrador euclidiano sentencia:

Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo (...)

Antônio Conselheiro, documento vivo de atavismo “É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação ética se sublevassem numa anticlinal extraordinária – Antônio Conselheiro

Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos.(CUNHA, 2009:778)

... A imagem é corretíssima”. (CUNHA, 2009: 251)

Como se faz um monstro “O evangelizador surgiu, monstru-

Frente a "fragilidade da palavra humana" para esclarecer esse período histórico nebuloso, o autor encerra o seu discurso com a pergunta que reverberou todo o livro "a quem devemos preciosos esclarecimentos sobre esta fase obscura da nossa história?"

oso, mas autômato. Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BAKTHIN, Mikhael. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Editora Cultrix, 1994. COUTINHO, Afrânio. Introdução à Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1968.

CUNHA, Euclides. Canudos: Diário de uma expedição. 2.ed. Editora Martin Claret Ltda, 2003. São Paulo. ______, Euclides da. Os Sertões: (campanha de Canudos); edição, prefácio, cronologia, notas e índices Leopoldo M. Bernucci - São Paulo: Ateliê Editorial, 4ed, 2009.

HELENA, Lucia. “A Arte Alegórica ou do Engajamento não panfletário”. In: Perspectivas: Ensaios de Teoria e Crítica. Rio de Janeiro: Produção Editorial: P. Lyra, 1984.

LYRA, Pedro. “Consciência e Ingenuidade em Literatura”. In: Literatura e Ideologia: Ensaios de Sociologia da Arte. Petrópolis: Editora Vozes, 1979. p. 133143

SOUZA, Ronaldes de Melo e. A geopoética de Euclides da Cunha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.

VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha – esboço biográfico. Organização de Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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RELIGIÃO, MITO, DEUSES E ÁFRICA Luiz Henrique Davi de Lemos (Graduação – UERJ)1 “A função primária da mitologia e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás” (CAMPBELL, 1997, p. 09).

RESUMO O seguinte estudo tem como objetivo apresentar questões sobre o mito, a religião e os deuses sob a perspectiva da cultura grega em comparação com as culturas africanas, sendo elas a egípcia e iorubá. Abordaremos as semelhanças e diferenças entre elas, dando ênfase na cultura egípcia do período helenístico.

Palavras-chave: Grécia. África. Mitologia. INTRODUÇÃO

Quando se fala em Mundo Antigo, os mais lembrados e fascinantes entre eles, em sua maioria, são os relatos da Grécia e Egito. Talvez esse fascínio por essas culturas esteja em seu aspecto místico. A religião em ambas tinha como objetivo buscar o sentido da vida e sua explicação vinda através dos mitos. A questão da religiosidade entre Grécia e Egito apresentam aspectos semelhantes como também suas divergências. Este trabalho tem como objetivo apresentar a religiosidade na visão grega e na visão egípcia, apontando suas semelhanças e diferenças, enfatizando a questão do mito e da figura dos deuses. Além disso, será exposta a questão mitológica e religiosa da cultura iorubá, considerada uma cultura mais presente em nossos dias, construída no continente africano, assim como a egípcia. Esta é, por muitos, esquecida como parte da África, por ter herdado características fortemente europeias vindas da Grécia no período helenístico, com a expan-

são territorial de Alexandre, o Grande. O objetivo de trazer a cultura iorubá para esta pesquisa é de comparar com essas duas culturas mais antigas e mostrar suas matrizes nos aspectos já citados acima.

A RELIGIÃO

Em geral, a religião emprega um sentido de vida e uma ascensão espiritual na vida do ser humano. De acordo com Brandão (1986) “religião pode, assim, ser definida como o conjunto de atitudes e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependência em relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais”. Cada sociedade tinha seu modo de prática e sua forma de pensar no divino. Há em comum entre as culturas grega e africana a adoração pelos deuses, a execução de rituais e magias. Enquanto não havia uma doutrina, uma prática dogmática na religião dos gregos, para os egípcios havia o sacer-

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Graduando em Letras Português/Grego da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). E-mail: lhenriquelemos@ gmail.com

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dote que regia a questão espiritual da sociedade, inclusive na parte da nobreza, com relação aos faraós e tinham como base o Livro dos Mortos, cujo objetivo era o sujeito conseguir, através de hinos, feitiços, magias contidos nele, paz no paraíso. No Egito, os humanos deveriam passar a seguir ou a fazer alguns preceitos deste Livro para ter tranquilidade após a morte. Na Grécia Antiga, o Hades era o único local para onde iam os mortos, sejam eles bons ou maus.

UMA EXPLICAÇÃO À EXISTÊNCIA DA RELIGIÃO: O MITO E A NATUREZA

Como sabemos e vimos anteriormente, a religião é uma forma de praticar a crença daquilo que convenhamos que nos eleve espiritualmente. É como se fosse uma busca à renovação das nossas forças, da nossa alma. Diferente do cristianismo, os gregos não seguiam uma profecia messiânica, uma regra, um corpo doutrinal. Eles buscavam respostas através dos mitos. Segundo Vernantm (2006), “essas narrativas, esses mythoi, tanto mais familiares quanto foram escutados ao mesmo tempo que se aprendia a falar, contribuem para moldar o quadro mental em que os gregos são muito naturalmente levados a imaginar o divino, a situá-lo, a pensá-lo Assim também eram os egípcios com relação à religião. Além de mitos, os egípcios tinham uma ideia de religião ligada à sua experiência vivida, que eram respostas vindas da natureza, que para eles eram consideradas misteriosas; porém, tendo uma explicação científica que outrora não era ainda reconhecida. E se tratando de natureza, esses dois povos tinham sua formação de divindades ligadas a ela. No Egito, eles tinham como a divindade superior o Sol, enquanto na Grécia existia um deus (Zeus) ligado às forças do trovão.

O MITO DA CRIAÇÃO PELAS DUAS VISÕES

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Outro ponto semelhante entre a Grécia e o Egito é o mito com relação à criação. Tudo surgiu através das divindades superiores que, a partir desse momento, criaram um “clã” de deuses. Portanto, através da criação, surgem também as divindades. Ambas as versões apresentam elementos como o caos, a terra, o céu e o mar. Na versão egípcia, o deus do caos era Num. Desse deus, foi autogerado Atum-Rá, o deus Sol, e junto uma porção de terra para receber o deus, que tinha formato piramidal. A partir de Atum, inicia a criação dos deuses. Ele criou os deuses Shu, representação do ar, que foi expelido, e a deusa Tefnut, representação da umidade do céu, estabelecendo, assim, a primeira tríade dos deuses. De Shu e Tefnut foi gerado o casal Geb e Nut, respectivamente a terra e o céu. Das lágrimas de Atum foi gerado Hórus, a representação do humano na parte terrestre, que é uma divindade ligada aos faraós. De Geb e Nut foram gerados Osíris (o deus da mortalidade), Isis (a deusa do trono), Néftis (a deusa do castelo) e Seth (o deus da natureza). Na versão grega, tudo inicia com Caos, criação espontânea, junto com Gaia, Tártaro e Eros. Do Caos surge Nyx e o Ébero, respectivamente a Noite e o Escuro, de onde o Brilho e a Luz provêm. De Gaia surge Urano e de ambos surgem os Ciclopes, os Hecatónquiros e os doze Titãs, entre eles Têmis (Justiça Divina) e Mnemosine (Memória). Do testículo de Urano nasce Afrodite, deusa do amor e da fertilidade. Além desses surgimentos, ainda surgiram outros seres/divindades provindos desses. Segundo Funari, “as origens são, assim, atribuídas a gerações espontâneas ou à casamentos divinos, de modo a explicar o mundo como um todo, do céu à terra, dos ventos aos impulsos humanos”. Podemos perceber as semelhanças entre o mito da criação desses dois povos havendo algumas diferenças quanto aos deuses e divindades e ao número de fases da criação (a egípcia teve quatro e a grega apenas três). Outro detalhe é a divindade da Terra. Na mitologia grega, Gaia é a divindade da terra, a mãe-Terra assim dita por muitos. Já na

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mitologia egípcia, Geb, figura masculina, é a divindade ligada à Terra, enquanto o céu, no mito grego, era representado por Urano e no egípcio por Nut, divindade feminina. No caso podemos notar que houve uma inversão na questão da sexualidade do céu e da terra.

ANALOGIA DE DEUSES GREGOS E EGÍPCIOS

Ao lidarmos com essas duas mitologias, poderemos observar semelhanças com relação aos deuses. Neste caso, vamos tratar de apenas três deuses de cada mitologia e suas comparações. Comecemos por Zeus e Serápis. Zeus, conhecido como o deus dos deuses, como pai dos imortais e mortais devido à suas várias relações tanto no Olimpo quanto no mundo humano, tem sua proximidade a Serápis apesar deste ser uma junção de Zeus, Osíris e Ápis, estes dois últimos deuses egípcios. Na verdade, Serápis não se compara a Zeus pelos seus arquétipos e características. Essa aproximação entre eles é mais política que mitológica. Essa relação se dá através do helenismo já presente no Egito, no período Ptolomaico, conforme Funari:

“O período ptolomaico (332 - 30 a.C.) e a ocupação romana (30 - 395 d.C.) são ricos, em função do culto à deusa Ísis e ao deus Serápis. O culto ao deus Serápis — um misto de Zeus, Osíris e o Touro Ápis —, profetizado em um sonho de Ptolomeu I, esteve presente no Mediterrâneo e na antiga York (Inglaterra). Serápis pareceu ser uma tentativa de relacionar egípcios e gregos no início do governo ptolomaico” (FUNARI, , p. 13-14).

Em suma, o deus Serápis foi uma forma representativa de mostrar a união e a junção da Grécia e

do Egito no período helenístico. Vale salientar que muito dos nomes de deuses egípcios foram os gregos quem deram. A segunda comparação é entre Deméter e Isis. Ambas têm uma história e arquétipos semelhantes. Carregam em si o sentido da maternidade, da fertilidade. Além disso, Deméter era irmã de Zeus, assim como Isis era de Osíris. As duas têm certa ligação com o mundo dos mortos de modo indireto. Deméter teve sua filha Perséfone raptada por Hades, este fazendo com que ela se torne a rainha do local homônimo ao nome do deus do submundo; Isis tentou resgatar o corpo do seu marido-irmão, querendo dar-lhe uma morte digna, fazendo-o torna-se deus de um submundo. Disso podemos perceber que Osíris e Hades têm uma aproximação pelo fato de serem deuses ligados ao submundo, responsáveis pelo mundo dos mortos, sendo que Osíris é mais responsável ao caminho pelo mundo do que pelo julgamento, sendo responsável por isso o deus Anúbis.

ENTRE DEUSES E ORIXÁS

A questão dos ritos religiosos aos deuses e eles serem associados à natureza são quesitos não somente de um passado antigo, mas também de uma questão que ainda existe. Por estarmos tratando da relação da mitologia grega com mitologia africana, em que o Egito está incluído por ser uma civilização pertencente à África, não podemos deixar de citar outra cultura africana muito presente no século XXI e que carrega em si matrizes gregas: a cultura iorubá. Diferente do Egito, o iorubá pode ter recebido influências da Grécia Antiga, principalmente o caso da relação entre homem e natureza ser divinizado. Outra informação é de que não há uma hierarquização dos orixás, ou seja, não há um panteão desses deuses africanos, assim como existe com os gregos e provavelmente com os egípcios. Em algu-

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mas regiões terão seus orixás dominantes. Os deuses desta cultura são denominados Orixás, e diferente do grego e do egípcio, o processo de divinização dos deuses se deu após a morte de um ser humano, isto é, como se fosse uma canonização, como explica Verger:

“O Orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas (...)” (VERGER, p. 03).

Esse processo de transformação de humano para Orixá, segundo Verger, dá-se em um momento de paixão relacionado aos fenômenos da natureza. Como exemplo dado por ele em “Orixás”, existem duas lendas de Xangô que explicam sua transformação em orixá. Na primeira, após destruir seu castelo e os seus, ele entra em contato com um preparado destinado que provoca o raio. Em outro, ele entra em estado de contrariedade por se sentir abandonado. Portanto, podemos perceber que essa forma de ascensão, transfusão do ser em orixá é próximo do herói grego Héracles, que logo após cumprir os doze trabalhos para os quais foi desafiado por Hera, teve sua glória e ascendeu ao Olimpo. Outro aspecto semelhante é o entheos, que em grego significa “cheio de deus, inspirado por deus ou possuído”. Antigamente, nos rituais dionisíacos, o entheos ocorria quando os praticantes bebiam o vinho, que era a representação do deus Baco/Dioniso. A partir disso, os praticantes se tornavam bacantes por estarem possuídos pelo deus. Outra forma de possessão que ocorria era pela dança, pois, deste •112

modo, as bacantes entravam em frenesi por estarem possuídas pelo deus também. Esse tipo de entheos ocorre com os praticantes da religião iorubá, o candomblé, sendo que eles têm o chamado axé/asé, que é o poder divinizado do orixá obtido em um material, seja oferenda ou objeto, em que o praticante entra em contato com as forças de seu orixá.

CULTURA IORUBÁ E MATRIZES GREGAS (AINDA) PRESENTES

Foi a partir da cultura iorubá que foram sendo fundadas em nosso território as religiões afro-brasileiras. O Brasil herdou essa crença dos escravos africanos através de vossa vinda com o tráfico negreiro, e, a partir desse momento, tornou-se uma religião afro-brasileira. O iorubá iniciou-se primeiramente com o candomblé, mas depois surge o sincretismo, de onde também surgiu a umbanda, sendo a junção da religião iorubá com o catolicismo. É no sincretismo que há uma analogia entre santo e orixá, pois para poderem manter suas crenças, os africanos ligavam um santo a um orixá, assim como Ogum e Oxóssi estavam para São Jorge, Iansã para Santa Bárbara, Iemanjá para Nossa Senhora da Conceição, entre outros.

CONCLUSÃO

Com esse trabalho de pesquisa podemos perceber como as culturas religiosas se aproximam e podem se integrar umas as outras. Quanto a esses surgimentos dessas religiões e início de crenças, podem existir fatos inexplicáveis, mas só os mitos são capazes de explicar o início de uma crença, de onde o divino vem de uma força da natureza, que responde às expectativas do homem. Foi através dessas religiões acima trabalhadas, que o ser humano tinha seu contato maior com as forças naturais e vimos também que ela se torna presente em todas essas que aqui foram vistas. Independente da

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origem ou doutrina da religião, sempre haverá no mundo comparações, analogias e semelhanças que fazem com que elas se encontrem a todo o momento. Esses aspectos são interessantes porque ainda permanecem nos nossos dias, porém com certa mudança ocorrida na forma de ser procedida. Portanto, podemos perceber que através do mito, ligado a, assim considero, por um elemento divino e mítico, é capaz de unir muitas culturas. Ele pode surgir de uma única forma, mas aparecerá de diversas maneiras de acordo com a cultura que usa o mito como forma de explicações da crença e do místico no mundo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega Vol. I. Petrópolis: ed. Vozes. 1986.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: ed. Pensamento, 1997.

FUNARI, Pedro Paulo (org.). As religiões que o mundo esqueceu. Ed. Contexto.

VERGER, Pierre. Orixás.

VERNANT, Jean-Pierre. Mito e Religião na Grécia Antiga. Trad. Joana Angélica D'Ávila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.

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MOLL FLANDERS: A PERFORMANCE COMO ARTIFÍCIO PARA A RECONSTRUÇÃO E O RETORNO À MATRIZ Marcela Santos Brigida (Graduação – UERJ)1

RESUMO “Moll Flanders” (1722) revela a busca de uma mulher esquecida pelo projeto iluminista, por uma narrativa que resgate a sua origem, validando sua capacidade de transgredir os limites que lhe são impostos pela sociedade que não lhe deu lugar. Em seu artigo sobre a obra de Daniel Defoe, Virginia Woolf argumenta que a pobreza e independência de Moll Flanders a forçam a, desde muito cedo, provar o seu direito de existir. Este ensaio defenderá que a inconstância na identidade de Moll Flanders é resultante da busca de criar um mito de origem para si própria. Embora a identidade da protagonista seja forjada pela performance ao longo dos episódios em que assume diferentes papéis, argumentaremos que é a insatisfação com seu desempenho no papel que realmente deseja emular, o de sua mãe enquanto representante do local de origem, que move Moll a buscar sempre o próximo personagem.

Palavras-chave: Daniel Defoe. Figura materna. Performance.

INTRODUÇÃO

que nasceu na prisão de Newgate, e ao longo de uma vida de contínuas peripécias, que durou três vintenas de anos, sem considerarmos sua infância, foi por doze anos prostituta, por doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com o próprio irmão), foi deportada por oito anos para a Virgínia e, enfim, enriqueceu, viveu honestamente e morreu como penitente. Escrito com base em suas próprias memórias. (DEFOE, 2015)

Falstaff. Eu não te empresto nem um níquel furado! Pistola. Então declaro já que o mundo é uma ostra que abrirei com a ponta desta espada. (SHAKESPEARE, 2007:2.2.1-3)

O título completo de “Moll Flanders” (1722), de Daniel Defoe, fornece um resumo – para a sociedade puritana inglesa do século XVIII, escandaloso – muito apropriado e preciso dos eventos que compõem o enredo do romance:

As venturas e desventuras da famosa Moll Flanders & Cia.,

O romance de Defoe surge nas primeiras décadas no século XVIII, um momento em que esse gênero literário se torna uma ferramenta elementar de disseminação de construtos de feminilidade por parte da classe média puritana. Esta, ao ascender à

* Aluna da UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, cursa atualmente o quarto período do curso de Letras com habilitação em Língua Inglesa e suas literaturas.

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proeminência com a revolução cultural e intelectual do projeto iluminista, forjou novos papéis a serem desempenhados por ambos os gêneros, em especial o feminino, construindo uma nova imagem do que significava ser inglês e o ideal do casamento por afinidade supostamente prevalecendo sobre a união por conveniência. Argumentaremos, no entanto, que foi apenas a concepção do que era conveniente que mudou, como nos mostra Sandra Vasconcelos (1995, p. 33): “[...] fidelidade e castidade por parte da mulher passaram a ser exigidas com veemência [...]” . Ademais, a mulher passa a ser objetificada na transação que se tornou a união legal como um produto a ser comercializado e negociado. Ao gênero feminino, apenas uma carreira válida e respeitável era oferecida: a de esposa. As que, por falta de fortuna ou de sorte, não encontravam a estabilidade de um casamento bem-arranjado, tinham que se aventurar nas carreiras da margem da sociedade: as de prostituta ou de ladra. A raison d’être do romance passa a ser a de veicular a imagem da mulher ideal nesse novo panorama: a jovem deveria dominar um conjunto limitado de habilidades, como desenho, dança, música, etiqueta e falar francês , ensinadas nos colégios internos (VASCONCELOS, 1995, p. 33) e, acima disso, deveria ter dinheiro o bastante para interessar seu potencial marido. Nasce assim o germe do anjo do lar, o modelo da feminilidade ideal que viria a reinar na Inglaterra vitoriana. O romance era parte desse projeto cultural de construção de uma nova identidade inglesa: o desvio de padrão (tomando o padrão como a moralidade da classe média, a expressão da sexualidade feminina, e a entrega dessa figura ao prazer configura um dos desvios mais comuns), quando retratado, deveria ser rápida e eficientemente punido, levando a protagonista ao arrependimento e penitência por seus erros. Evidentemente, a concepção da literatura como instrumento didático de repressão de impulsos acaba por forjar uma narrativa que vocaliza justamente os instintos que supostamente visava repreender. Os efeitos da leitura e da instigação da imaginação logo se fizeram sentir e, na segunda metade do século, com o surgimento do romance

gótico, o gênero passou a ser duramente criticado por incentivar pensamentos perniciosos em “jovens influenciáveis” (ERMIDA, 2015, p. 2). Moll Flanders se constitui, por excelência, como um desvio do padrão. Daniel Defoe critica a penitente septuagenária em seu prefácio, em uma espécie de aviso de isenção pelas imoralidades que ela escreveu em seu “diário”. No entanto, o autor, que escreveu um tratado a favor da educação das mulheres (On the Education of Women, 1719), parece contrabandear em seu romance asserções críticas de cunho social e em defesa de mulheres como Moll, não raras na Inglaterra, como esta, na voz de sua personagem: “Deixe que lembrem que o tempo de aflição é o tempo de tentações terríveis, e toda a força para resistir é removida; a pobreza pressiona, a alma se desespera com a angústia, e o que pode ser feito?”1 (DEFOE, 2008, p. 142). O leitor logo percebe que a vida da personagem que dá nome ao romance, tumultuosa desde que foi capaz de se lembrar, tem sua narrativa sempre mediada por duas vozes: a do passado, que, vivendo suas aventuras, está sempre preocupada com a sobrevivência, com o momento imediato e com todos os prazeres e amarguras que estes proporcionam; e a voz do presente, momento da escritura do diário, que olha para trás com uma voz pretensamente puritana, conservadora e penitente, mas, muitas vezes, se mostra amarga quanto ao papel que deve agora desempenhar. Evidências textuais como a citada acima indicam que Moll não se considera merecedora da vergonha que diz sentir e, por vezes, permite ao leitor vislumbrar que, para ela, foi a miséria e não a tentação de um mal inerente à sua posição de mulher imoral, personificado pelas várias referências ao diabo, que a levou a viver da forma como descreve. A camaleoa que cruza a Inglaterra de Colchester a Londres, do sul ao norte, das ilhas britânicas às colônias norte-americanas, parece orgulhosa não só de ter sobrevivido, mas vivido também. Tendo situado o contexto histórico e algumas questões cruciais para o entendimento da nossa 1

Traduções nossas, exceto quando indicado.

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abordagem sobre “Moll Flanders”, voltamos nossas atenções para a questão da performance e da caracterização da relação entre esta e uma construção de retorno à matriz. Embora Moll conceba doze filhos ao longo do romance com seis homens diferentes, o papel da mãe idealizada do projeto iluminista não é um dos muitos que ela parece desempenhar. Em “The Maternal Paradox in Moll Flanders”, Michael Shinagel (1973, p. 406) argumenta: “Se a sua [de Moll] fertilidade está além de qualquer dúvida, sua maternidade obviamente não está; pois o destino de muitos, se não da maioria, dos seus filhos que sobrevivem na narrativa permanece tão enigmático quanto o seu caráter [...]”. Consideramos digno de nota que o crítico construa seu argumento a partir do princípio de que o conceito de “maternidade” é unívoco, isto é, o ideal da nurturing mother, construto que a sociedade ocidental tende a preservar até hoje. Defenderemos, porém, que Moll parece tentar invocar, ao longo de suas “aventuras e desventuras”, o papel mais elementar do seu imaginário: não o da mãe, enquanto construção do projeto iluminista na idade da razão inglesa, mas aquele da sua própria mãe enquanto local de origem. Levamos em consideração a posição de outcast de Moll no contexto da obra de Defoe. Se não existe um lugar para ela no projeto da mulher inglesa idealizada, Moll, incansável, tenta criar um novo mito de origem para si, usando a colcha de retalhos que compõe seu imaginário do que seria sua origem como ponto de partida. Em cada cenário que a protagonista se instala, em cada novo arranjo improvisado para sua sobrevivência e subsistência, Flanders parece recorrer a algum artifício que internalizou a partir do que sabia sobre a mãe, (“de ouvir falar”, ou from hearsay) sua única evidência legitimadora do local de origem. Observamos que, ao se encontrar de fato com a mãe na Virgínia, nem sua busca, nem sua inquietude cessam . A procura de Moll não é por um reencontro, mas por um lugar que possa conquistar e considerar seu. Tal busca a leva a desempenhar diversos papéis ao longo da vida, primariamente os que internalizou a partir do que “ouviu dizer” sobre sua própria mãe, um punhado de informações que acaba por se disso•116

ciar em seu imaginário da figura materna de fato, se tornando uma alegoria para a sua origem e para a narrativa de sua vida. A referência da própria origem impregna cada aventura de Moll, de forma que sua inquietude e recusa em se estabelecer e se acomodar podem ser lidas como uma necessidade de aprimorar sua performance. Se Moll abandona seus filhos com relativa facilidade, é porque, no contexto da sua busca por um novo mito de origem para si, a performance de mãe e esposa é tão descartável quanto qualquer outra. Flanders não sentimentaliza papel algum e a sua busca é incessante: essas formas de identificação (mãe, esposa), mais prestigiadas pela retórica da classe média puritana, as mais legítimas, por assim dizer, são também as mais distantes da sua posição de outcast. Moll domina a performance desses papéis com considerável desembaraço, mas a sua necessidade de experimentar outros permanece. É na subcultura das classes marginais de Londres que a protagonista vem a encontrar um local ao qual possa pertencer. Seu lugar, ela sabe, está sempre à margem. A relação de Moll com os filhos sempre culmina em uma renúncia. O abandono – e a liberdade que ela subsequentemente adquire ao sobreviver a ele – é também o primeiro registro que tem da matriz. Neste ensaio argumentaremos que o paradoxo materno em Moll Flanders se dá não pela forma já defendida por Shinagel, isto é, por meio do seu relacionamento insuficiente com os filhos, mas através da tentativa da protagonista de se reconciliar com esse abandono original e com sua falta de lugar no mundo ao emular, através da performance, as suas próprias construções mentais do que representa sua mater, forjando assim um novo mito de origem para si. Primeiramente, nos debruçaremos sobre a infância de Flanders, destrinchando a relevância da descoberta da performance tão cedo em sua vida e a liberdade decorrente do seu status de outcast. Contrastaremos então a performance de Moll enquanto prostituta, esposa, amante e ladra como possíveis emulações do seu imaginário da matriz, observando que é nos papéis e companhias mais marginalizados pela classe média puritana do século XVIII que Moll encontra mais conforto e

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mais se aproxima de uma existência autônoma. Por fim, analisaremos os dois retornos mais literais à origem na narrativa: o casamento acidental de Moll com o próprio irmão, a viagem para Virgínia e a convivência com a mãe, personificação imperfeita da matriz; e o aprisionamento de Moll na prisão Newgate, local físico de origem. Como foi apontado por Virginia Woolf (1925, p. 339) em seu artigo sobre Defoe em The Common Reader, Moll teve, desde muito cedo, o fardo de provar seu direito de existir e que, ao transgredir as leis vigentes, ainda muito jovem, ela teve dali em diante a liberdade do outcast. À sua maneira, Moll, emulando sua construção do que lhe parece em algum nível familiar, forja um novo mito de origem para si e constrói lugares que pode ocupar, a despeito de sua posição marginalizada.

A PEQUENA GENTLEWOMAN E A DESCOBERTA DA PERFOMANCE

Em “’Onomaphobia’ and Personal Identity in Moll Flanders”, Mary Butler aborda a questão da construção da identidade em “Moll Flanders”, tanto a da protagonista, como a daqueles que a cercam. Notavelmente, Butler argumenta a insistência de Moll de que esse não é seu nome real e que sua busca por anonímia a configuram como uma personagem mais crível em um momento do desenvolvimento do romance na Inglaterra, em que a ficção precisava justificar sua razão de existir por meio do fim de ensinar lições morais. Desta maneira, não basta que a ficção pareça verossímil somente no universo do romance, as personagens precisam transcender as limitações do enredo e atingir o status de seres humanos reais, as narrativas como publicações de seus diários e confissões mais íntimas. A fim de preservar a privacidade das personagens que passam por sua vida, Moll raramente emprega nomes próprios para se referir a elas. Seu método de identificação é nomear as pessoas de acordo com seus papéis sociais. O primeiro desdobramento desta escolha, aponta Butler (1990, p. 378), é que Defoe

“[...] nos alerta para a nossa dependência psicológica do uso do que, esperançosamente, chamamos de nomes próprios [...]” . O segundo, argumentamos, é que a identidade de Moll passa a ser inevitavelmente definida pela sua habilidade de desempenhar diversos papéis de valorações sociais variáveis em busca de um que lhe confira um senso de existência estável na sociedade que, ela descobre, não lhe reserva um lugar, devido ao seu status social de criança abandonada e destituída de fortuna e, evidentemente, por ser mulher. Na cidade de Colchester, aos três anos de idade, Moll é acolhida pela paróquia local e entregue aos cuidados de uma mulher a quem ela vem a se afeiçoar. Nesse ambiente, Moll passa a sua infância com relativa tranquilidade, mas entra em pânico ao atingir a idade em que se faz necessário começar a trabalhar como criada para se sustentar. Não é o trabalho que a repele, mas a ideia do trabalho físico, o status de serviçal. Quando sua tutora questiona: “Mas o quê?', ela disse; 'a menina enlouqueceu? O que você quer ser— uma gentlewoman?'” (DEFOE, 2008, p. 8), a menina diz que sim e acaba se tornando uma espécie de celebridade local, uma pobre e adorável criança que deseja ser uma gentlewoman. As mulheres ricas da cidade e suas filhas passam a visitá-la com frequência e presenteá-la com tecidos, enfeites e até mesmo dinheiro. Com esse novo arranjo, a menina logo se torna capaz de pagar pela sua subsistência por meio das doações dessas famílias e permanece sob os cuidados da sua tutora. Logo, o primeiro papel que aprende a desempenhar é o da pequena gentlewoman, uma entertainer. No entanto, a concepção de gentlewoman de Moll é diferente daquela aceita pela sociedade em que está inserida. Enquanto a menina entende que a palavra se refere a uma mulher capaz de se sustentar de maneira independente, seu meio social associa o termo a uma mulher de origem bem-abastada, o ideal feminino da classe média.

Durante todo esse tempo minha boa tutora, a Sra. Primeira Dama, e todos os outros não me enten-

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deram nem um pouco, porque eles queriam dizer um tipo de coisa com a palavra gentlewoman, e eu queria dizer outra; pois, ai de mim! Tudo que eu entendia por ser uma gentlewoman era poder trabalhar para mim mesma, e receber o bastante para me manter sem aquele terrível pesadelo de me tornar uma criada, enquanto eles queriam dizer “viver bem, rica e abastadamente, e sei lá mais o quê. (DEFOE, 2008, p. 9)

É, então, que Moll percebe, pela primeira vez, a sua capacidade de moldar a realidade a partir da linguagem. Descobre que pode desempenhar um papel diferente daquele originalmente reservado para si. No entanto, os primeiros anos da vida de Flanders trazem mais um processo de aprendizagem elementar para a sua compreensão e desenvoltura na performance. O episódio em Colchester foi fundamental para a formação da concepção que Moll forma de si mesma e dos outros, e para o desenvolvimento do seu senso de não admissão nos construtos estabelecidos pela sociedade para o seu gênero. Até ser confrontada pela definição social do que é uma gentlewoman, Moll não via por que ela própria não poderia ser uma. Após a morte de sua tutora, a jovem é admitida na casa de uma das famílias da cidade que se afeiçoaram a ela. Nesse contexto, passa a trabalhar como ama e a ser chamada de Mrs. Betty (forma genérica para se referir a domésticas nesse período). Moll se apaixona por aquele que é chamado simplesmente de “Irmão Mais Velho”, filho primogênito do casal que a acolheu. Ele a seduz e faz uma promessa de casamento que jamais teve intenção de cumprir. Jovem, inexperiente e com pouca prática em refrear seus impulsos, isto é, ainda ingênua, Moll se entrega. O irmão mais novo, Robin, se apaixona por Mrs. Betty e, sem pedir que ela se deite com ele, pede sua mão em casamento. A partir desse momento, Moll inicia um segundo •118

processo de ressignificação, ainda mais significativo que o anterior. O afeto genuíno de Robin denuncia o interesse meramente sexual do Irmão Mais Velho, que passa a pressioná-la para que aceite o pedido do irmão, podendo ver-se livre de sua incumbência. Tal percepção faz com que Moll adoeça e passe por um período de reconstrução do “eu”. Até ela perceber que o Irmão Mais Velho tinha feito dela sua prostituta, a garota não era capaz de compreender por que não poderia ser sua esposa. Depois que o Irmão Mais Velho impulsiona Moll a romper com a tradição e com as normas sociais, ao entregar-se à sua primeira transgressão, ela percebe que as convenções e expectativas que governam o mundo no qual ela está inserida, mas no qual se constitui permanentemente como uma forasteira, não oferece de fato uma posição legítima que possa ocupar, apresentando um estoque limitado de papéis que pode exercer: pedinte, ama, prostituta. De acordo com uma das irmãs de Robin, Moll (ou Mrs. Betty), jamais poderia ser uma esposa, tendo em vista que não possuía a única coisa que era, de fato, desejada pelos homens ao selecionar uma mulher para o matrimônio, dinheiro (DEFOE, 2008, p. 14). Tendo em vista que o projeto de uma sociedade burguesa e puritana, respeitável e civilizada não atribuiu à Moll um papel satisfatório e um caminho unívoco a seguir, a protagonista se nega a morrer silenciosamente, forjando sua própria linguagem a partir de concepções de moralidade estipuladas por ela própria e particulares ao que lhe apetecesse em cada situação. Tendo Moll sido amaldiçoada ainda no ventre de sua mãe pelo “pior dos demônios, a pobreza”, decidiu não mais esperar pacientemente pela comiseração de camadas mais privilegiadas. Diante do crescente distanciamento do Irmão Mais Velho e de sua própria situação instável na casa, devido à afeição de Robin por ela, prospecto aterrador para outros membros da família, Moll reage e toma as rédeas da situação:

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Eu tive, no entanto, a grande satisfação de ter dito o que pensava com liberdade, e com clareza


sincera, como relatei; e apesar de não ter funcionado da maneira como eu imaginei, ou seja, compeli-lo [o Irmão Mais Velho] a permanecer comigo, retirei dele qualquer possibilidade de me abandonar a não ser por uma franca violação da própria honra. (DEFOE, 2008, p. 37)

Ao encontrar sua própria voz, Moll distingue-se definitivamente da heroína do romance sentimental e expulsa de si tanto a tuberculose que consumiu muitas outras protagonistas transgressoras, quanto seus ideais românticos em relação ao homem que iniciou sua vida afetiva e sexual. Uma vez mais, é através da linguagem e da performance que ela transcende a adversidade: recuperando-se da sua convalescência, Moll seduz a família a não apenas permitir, mas desejar a sua união com Robin em casamento. É por escolha e conveniência que ela se faz uma esposa pela primeira vez, não pela aquiescência aos seus próprios impulsos, nem por afeição genuína. Cada movimento seu torna-se uma jogada estratégica; sua vida, uma partida de xadrez. O casamento representa um meio para seus fins, contrariando as palavras da irmã de Robin e mostrando que, através da linguagem, sua realidade e convenções sociais poderiam ser ignoradas a seu favor. Ao aceitar, por conveniência, um homem que não desejava ou amava, Moll tomou parte na mentalidade da idade da razão, mas sempre em seus próprios termos. Subsequentemente, a protagonista declara que ama ou sente-se atraída pelo Irmão Mais Velho ao longo dos cinco anos que passou com Robin (até a morte do marido). No entanto, a noção de amor ainda parece estranha e incipiente para Moll nesse estágio de sua vida. O Irmão Mais Velho torna-se relevante por tê-la oferecido uma forma de rejeição que abriu seus olhos para a sua condição marginal em uma sociedade que anteriormente parecera muito favorável a ela. Apesar de a decepção ter levado Moll a um estado de depressão e até de convalescência, o tempo que passou isolada no sótão em processo de recuperação

foi também um período de alterações profundas. O Irmão Mais Velho fez com que as expectativas de ser sua esposa parecessem ridículas e, somente diante de uma compreensão tão dolorosa e de um rompimento tão flagrante entre a imagem que fazia de si anteriormente e a que se revelou a partir da sua nova percepção, ela foi capaz de encontrar uma razão para lutar pelo seu direito de existir, enfim plenamente consciente da sua posição como outcast. É a partir desse conhecimento recém-adquirido que Moll pode começar a sua jornada de retorno à matriz, consciente da sua dissociação das categorias oficiais que regulam o comportamento feminino e carecendo de um novo mito de origem que legitime a sua existência.

PROSTITUTA, ESPOSA E LADRA: EMULAÇÕES DO IMAGINÁRIO MATERNO

Assim como a cobiça é a raiz de todo o mal, também a pobreza é, acredito, a pior de todas as armadilhas. (DEFOE, 2008, p. 9)

A partir da primeira experiência de Moll com a performance, desempenhando o papel da pequena gentlewoman, da sua ruptura com a convenção ao se entregar ao Irmão Mais Velho e, consequentemente, ao seu próprio desejo: “As palavras dele, devo confessar, ferveram meu sangue; [...]” (DEFOE, 2008, p. 15), ela afirma, ao mais tarde se apoderar do termo “prostituta” como um dos muitos papéis que ela poderia desempenhar e, por fim, ao manipular a família de Colchester a fim de que esta apoiasse sua união com Robin, Moll reconhece e assume sua posição de outcast. Lembramos aqui as palavras de Virginia Woolf (1923) em Defoe: “A vivacidade da história se deve parcialmente ao fato que, tendo transgredido as leis aceitas numa idade muito tenra, ela [Moll] tem dali em diante a liberdade do outcast. O único evento impossível é que ela se acomode com conforto e segurança [...]”. En-

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tendemos que a transgressão dessas leis simboliza também o início da jornada de Moll em busca da criação de um novo mito de origem para si. Tendo já experimentado o papel de esposa na cidade pequena, transfere-se para Londres consciente do poder que adquiriu ao se tornar uma viúva de “fortuna tolerável”: “Eu estava agora livre no mundo, e sendo ainda jovem e bonita, como todos diziam sobre mim, e, garanto como eu também pensava a meu respeito, e com uma fortuna tolerável no bolso, não estipulei um valor pequeno sobre mim.” (DEFOE, 2008, p. 44). Com essas palavras, lança-se ao mundo e, assim como Pistola, na epígrafe deste estudo, faz dele a sua ostra. A partir do seu primeiro deslocamento para Londres, Moll percebe a relativa facilidade de abandonar um papel antigo para assumir um novo por necessidade ou interesse. Decide ser importante “se casar bem, ou nem casar” (DEFOE, 2008, p. 57). Podemos então traçar resumidamente a série de relacionamentos de Moll e os filhos concebidos em cada contexto. Após a morte de Robin, a família dele assumiu a responsabilidade pela criação dos dois filhos, que foram frutos dessa união. No relacionamento com seu segundo marido, um vendedor de tecidos, ela tem um filho, que morre antes da separação dos dois, resultante da ruína financeira do homem, que foge para a França a fim de evadir seus credores. Moll assume novamente o papel da viúva, sem agora o ser de fato, adotando pela primeira vez a alcunha de Sra. Flanders. Acaba por se casar com o próprio irmão, sem que ambos saibam da identidade um do outro. Em um relacionamento antes desejável, harmonioso e, mais tarde, após a revelação dos laços familiares entre os dois, visto por ela como uma abominação, Moll concebe mais três filhos, dentre os quais um falece. Ao retornar à Inglaterra, acaba se envolvendo com um cavalheiro casado com uma mulher que possui distúrbios mentais não especificados. Nessa relação, desempenha o papel de amante pela primeira vez, assumindo a alcunha de Lady Cleve e concebendo mais três filhos, dos quais somente o primogênito sobrevive. Casa-se novamente na Inglaterra com aquele que viria a ser por ela reconhecido como o único •120

homem que poderia encarar como um igual, Jemy. Após a separação do casal, forçada pela pobreza de ambos, Flanders descobre sua gravidez e concebe mais um filho. Nesse momento delicado, conhece uma certa Sra. B--, embora Moll usualmente se refira a ela como “minha preceptora”. Essa mulher, inicialmente uma parteira e representante de uma espécie de figura materna, é um dos poucos personagens recorrentes ao longo do romance. Assim como Moll, ela apresenta um quadro de evolução nos papéis que desempenha ao longo da narrativa. Flanders é então mãe de dois filhos em seu casamento com um bancário e, no evento da morte do marido, ela já tem 48 anos, idade que encerra tanto sua carreira de esposa quanto a de mãe. Ao longo de sucessivas uniões e separações, Moll aperfeiçoa sua performance de esposa e de amante. Sua retórica evolui; a cada homem que passa por sua vida, ela aprende um novo expediente de manipulação, ou se torna imune a uma nova armadilha. Sua estratégia para sobreviver é sempre evoluir, adaptando-se às adversidades que insistem em cruzar seu caminho. Flanders jamais se entrega ao convencional. Para compreender a conexão entre suas diversas uniões, a facilidade com que abandona seus filhos e os termos – muitas vezes impessoais – em que ela se refere a eles sob o enfoque do retorno à matriz, é preciso lembrar onde a história de Moll se inicia:

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Minha mãe foi condenada por um pequeno furto que mal vale a pena nomear, a saber, tendo tido a oportunidade de pegar três peças de um tecido fino de um certo armarinho em Cheapside. [...] Seja como for, nisso eles todos concordam, que minha mãe invocou a barriga, e estando grávida, sua execução foi adiada por cerca de sete meses; nos quais, o tempo tendo me trazido ao mundo, e estando de pé novamente, ela foi submetida novamente ao seu julgamento anterior, mas obteve o favor de ser transportada para as colônias


americanas, me deixando com cerca de um ano e meio; e em péssimas mãos, pode ter certeza. (DEFOE, 2008, p. 6)

Se entendemos Moll como um indivíduo que usa a performance como seu principal – e muitas vezes único – artifício para sobreviver, é preciso observar o aspecto psicológico de uma personagem que raramente oferece ao leitor evidências de sua subjetividade. A primeira imagem de maternidade que Moll internalizou foi a do abandono e da transgressão. Sua primeira lembrança de fato a remete aos seus 3 anos de idade, quando abandonou um grupo de ciganos que a criava. As imagens que constroem as memórias e imaginário de Moll não oferecem a suposta ligação natural entre mãe e filho presumida pelos construtos da época – e ainda hoje vigentes –, mas um instinto primal de autopreservação diante de uma realidade que não lhe oferecia recursos tanto por conta do seu gênero, quanto por sua posição social, extremamente instável ao longo do romance. Após a morte do bancário, Moll percebe que o papel de esposa se mostra obsoleto na fase em que se encontra. Aos 50 anos, rouba pela primeira vez. Embora Defoe explore a fase deliberadamente fora da lei da vida de Moll, para fazer pregações morais para os seus leitores, e a protagonista atribua seu comportamento às tentações do diabo sofridas sobre aqueles acometidos pela miséria, é neste papel que ela parece se sentir mais confortável. Resgatando seu ideal infantil da gentlewoman como uma mulher que se faz independente por meio do seu próprio trabalho, Flanders parece alcançar, enfim, a identidade que sempre almejou. É desempenhando esse papel, também herdado da sua construção mental da matriz, que ela recebe o nome de Moll Flanders. Ela celebra sua fama e desenvoltura enquanto ladra: “Eu me tornei mais experiente e audaciosa do que nunca, e o sucesso que alcancei tornou meu nome tão famoso quanto qualquer ladrão do meu tipo que tivesse passado por Newgate e pelo Old Bailey.” (DEFOE, 2008, p. 197). O papel de ladra a reaproxima da Sra. B—, sua preceptora, ag-

ora penhorista e envolvida na subcultura londrina de roubo e prostituição, quem a apresenta a outras ladras e com quem divide suas conquistas naquilo que vem a se tornar uma espécie de carreira. A performance de ladra inevitavelmente culminará no retorno ao local de origem, a prisão de Newgate.

CAMINHOS PARA O RETORNO LITERAL À MATRIZ E OS SEUS PROBLEMAS

Argumentamos até este ponto que Moll Flanders constrói uma espécie de identidade fluida por meio do seu domínio sobre a performance e que sua relativa facilidade de descartar um papel obsoleto (e tudo relacionado a este, inclusive, ou principalmente, os filhos) deve-se à sua inquietude diante de uma necessidade interna de forjar um novo mito de origem para si, enquanto figura essencialmente marginalizada pelo projeto iluminista. Sem uma origem definida, tendo como primeira lembrança suas andanças com um grupo de ciganos, Moll não parece pertencer a lugar algum. Isto posto, procura emular nos papéis que desempenha uma espécie de figura materna abstrata e “mitologizada”, facetas da matriz. Flanders sabe que sua mãe era uma ladra, que foi encarcerada na prisão de Newgate e, por estar grávida de Moll, conseguiu que sua pena fosse amenizada da terrível execução para o transporte até a colônia da Virgínia. Flanders está consciente do fato de Newgate ter sido o seu primeiro lar, o primeiro berço e, a partir da sua solidão no mundo, pode também presumir seu status de criança concebida ilegitimamente. Conforme já foi apontado, em seu terceiro casamento, Moll se une ao seu próprio irmão, sem o conhecimento de ambos. A relação incestuosa somente é descoberta por Flanders após sua mudança com o marido para a colônia da Virgínia na América, onde a mãe dele possuía uma grande propriedade rural. Moll se afeiçoa à sogra, inconsciente de que aquela é a mãe que jamais conheceu. Após a mulher falar sobre sua juventude e sobre a forma

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como chegou até a América, a protagonista conclui, enfim, que aquela é sua mãe:

Aquele lugar horrível! Meu sangue se enregela na menção do seu nome; o lugar onde tantos dos meus companheiros foram trancafiados, e de onde foram para a árvore fatal; o lugar onde minha mãe sofreu tão profundamente, onde eu fui trazida ao mundo, e de onde eu não esperava nenhuma redenção que não por uma morte infame: para concluir, o lugar que por tanto tempo me esperou, e o qual com tanta arte e sucesso eu tinha por tanto tempo evitado. (DEFOE, 2008, p. 206)

Então contei a minha própria história, e meu nome, e garanti a ela, com outras provas que ela não poderia negar, que eu não era outra que não a sua própria prole, sua filha, nascida do seu corpo em Newgate; a mesma que a salvou da forca por estar no seu ventre, e a mesma que ela abandonou nas mãos de uns e outros quando foi transportada. (DEFOE, 2008, p. 71)

Moll passa a evitar seu marido, e a mãe a orienta a ignorar a descoberta, chocando a filha-nora, que recusa e, enojada de si própria, dos filhos e do marido, anseia pelo próprio retorno à Inglaterra. Quando, enfim, informa o marido-irmão quanto à condição em que se encontram, o desespero dele é tamanho que tenta pôr fim à própria vida. Flanders consegue retornar à Inglaterra com o apoio da mãe, que promete lhe reservar uma parcela de sua herança. Esse reencontro desastroso e acidental com a mãe não produz efeitos significativos na inquietude ou na facilidade com a qual a protagonista adere a novos papéis. A herança desse retorno se restringe a uma profunda perturbação psicológica por parte de Moll ao sentir que transgrediu um limite que jamais considerou sequer tocar. Isto posto, visamos demonstrar que o papel que Moll tenta emular através da performance não é o da matriz enquanto indivíduo, da mãe literal, mas o da construção mental que tem da figura materna como local de origem. Por conseguinte, uma análise do retorno de Moll à prisão de Newgate faz-se necessária. No evento de seu encarceramento, Moll faz referência à inevitabilidade do seu retorno à Newgate:

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Tal descrição parece sugerir não apenas tal inevitabilidade sob o enfoque da temeridade da protagonista ao se arriscar com tamanha frequência e, muitas vezes, por mera vaidade e não por necessidade, após se tornar uma ladra famosa. A fala de Moll parece sugerir um impulso ou desejo irracional de ser pega. Já foi afirmado por estudiosos que alguns criminosos inconscientemente desejam ser pegos para obterem reconhecimento ou fama (MCCORD, MCCORD e BAILEY, 2011, p. 13), (CHARNEY, 2014). Moll, no entanto, já era notavelmente conhecida no evento de sua prisão, tanto entre outros criminosos, quanto pelo tribunal. Se havia algo em seu inconsciente que a atraía para Newgate, certamente era a busca pelo lugar de origem, pela mater, a matriz. Em sua performance como ladra, Flanders encontra pela primeira vez uma expressão plena da “liberdade do outcast” citada por Wolf. Somente após seu retorno ao local do seu nascimento, seu berço original, ela é capaz de se estabilizar, tanto pela compleição do ciclo, quanto por sua idade já avançada. É em Newgate que vê sua vida ameaçada. Lá reencontra Jemy, um criminoso, um outcast, seu igual. Sua preceptora, antecipando o último papel que Moll vem a desempenhar, torna-se uma penitente e auxilia Flanders e Jemy em sua transferência para a Virgínia, após a protagonista conseguir escapar da condenação à forca. Quando Moll

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pisa em solo americano, o ciclo parece ter se completado: desempenhou todos os papéis sugeridos pelo conhecimento que tinha da matriz. Unida ao homem que amava, torna-se rica novamente, ao receber a herança da mãe com a ajuda de Humphrey, um dos filhos que Flanders concebeu com o irmão. Moll parece finalmente capaz de compartilhar com ele, justamente um dos filhos renegados por ela, um afeto sincero. Arrependida do seu passado, já septuagenária, Moll retorna para a Inglaterra e vive como penitente, contando suas aventuras e desventuras em um longo e detalhado diário. Assumindo o papel final de contadora de histórias, Flanders se apresenta como uma figura controversa à época da publicação do romance e, mesmo hoje, quase trezentos anos mais tarde, suscita questões cruciais sobre a representação da mulher, do feminino e de construtos de gênero.

tal. A fim de melhor conceituar a questão do retorno à matriz, opusemos o reencontro de Moll com sua mãe ao seu retorno à prisão de Newgate, avaliando o peso de cada experiência no comportamento e escolhas da personagem. Procuramos, desta maneira, interpretar aspectos psicológicos de uma personagem que conta com raríssimas expressões da própria subjetividade no discurso, atentando para as contribuições de Defoe para a crítica social dos efeitos aterradores tanto de construtos de gênero que oprimiam a mulher, quanto do projeto cultural de seu tempo como um todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUTLER, M. “Onomaphobia” and Personal Identity in Moll Flanders. Studies in the Novel. v.22. n. 4. Baltimore, 1990. p. 377-391.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio defendemos que Moll Flanders constrói sua identidade a partir da performance com o intento de criar um novo mito de origem para si, emulando diferentes papéis ao longo de sua vida com o fim de se apoderar da narrativa da sua própria existência e retornar ao local de origem. Observamos como o abandono da protagonista pela mãe, assim como seu nascimento na prisão de Newgate, figuram como acontecimentos traumáticos e definidores para Moll, ainda que ela não seja capaz de se lembrar conscientemente deles. Esse conhecimento internalizado de sua posição marginalizada no local de origem molda muitas de suas escolhas ao longo do seu amadurecimento como ser humano, no contexto do romance, e enquanto personagem. Apreciamos a maneira como Moll descobre muito cedo que pode usar a linguagem e a performance como instrumentos de transformação da forma como é percebida pelo meio social, argumentando que o episódio de Colchester configura um momento crucial para a ruptura entre a protagonista de Defoe e a heroína do romance sentimen-

CHARNEY, N. Why So Many Art Forgers Want to Get Caught. Disponível em: <http://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2014/12/whyso-many-art-forgers-want-to-get-caught/383915/> Acesso em: 02/11/2015.

DEFOE, D. Moll Flanders. Gutenberg Project, 2008. 265 p. _____. Moll Flanders. Tradução de Donaldson M. Garschagen. São Paulo: Cosac Naify, 2015. 510p.

ERMIDA, I. Gothic Old and New: Introduction. In: ERMIDA, I. (Ed.). Dracula and the Gothic in Literature, Pop Culture and the Art. Boston: Brill, 2015. p. 1-20.

MCCORD, J. H. W.; MCCORD, S. L.; BAILEY, S. Criminal Law and Procedure for the Paralegal. Boston: Cengage Learning, 2011. 672p.

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SHAKESPEARE, W. As Alegres Matronas de Windsor. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 2007. 129p.

SHINAGEL, M. The Maternal Paradox in Moll Flanders: Craft and Character. In: KELLY, E. (Ed.). Moll Flanders: An Authoritative Text, Backgrounds and Sources, Criticism. Nova York: W. W. Norton, 1973, p. 406-410.

VASCONCELOS, S. The Rise of the Novel and Constructions of Femininity. v.2. São Paulo: Crop, 1995. p. 33-35.

WOOLF, V. Defoe. In: The Common Reader, 1923. Disponível em: <https://ebooks.adelaide.edu. au/w/woolf/virginia/w91c/chapter9.html>. Acesso em: 02/11/2015.

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A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DA FIGURA MATERNA EM TRÊS PEÇAS DE SHAKESPEARE: RICARDO III (1592-93), CORIOLANO (1607-8) E O CONTO DE INVERNO (1610-11) Marcela Santos Brigida (Graduação ― UERJ)1

RESUMO A obra de William Shakespeare prima, dentre outros aspectos, por sua recusa em estabelecer verdades acerca dos fatos humanos. Não existem noções fechadas acerca de grandes temas, por exemplo, o amor, o poder, a família, o feminino, o masculino, entre outros. O drama shakespeariano é absolutamente polifônico, rico em ambiguidades e ambivalências, deixando ao leitor/espectador a tarefa de concluir, definir e circunscrever. Diante desse fato, perguntamo-nos sobre a figura materna e as representações que recebeu em diferentes peças. Examinando textos pertencentes a três gêneros – o drama histórico, a tragédia e o romance – objetivamos perscrutar as personagens maternas e levantar o maior número possível de suas características.

Palavras-chave: William Shakespeare. Retórica. Figura materna.

INTRODUÇÃO

O interesse pela construção das figuras maternas na obra de William Shakespeare tem origem na variedade de representações da mãe nos gêneros dramáticos explorados pelo dramaturgo. No presente estudo, focalizamos a influência da cultura retórica da Inglaterra elisabetana sobre o discurso, a performance e a subjetividade das personagens. Trata-se de um momento histórico em que a língua inglesa sofria transformações profundas, ainda não contando com gramáticas prescritivas ou dicionários definitivos, sendo mais maleável e, portanto, um instrumento riquíssimo para escritores como Shakespeare – que criou muitas palavras do inglês moderno ainda em uso atualmente. Aliada à questão da flexibilidade da linguagem, a posição social da mulher também se encontrava em um mo*

mento de relativa indefinição e transformação. Os construtos de feminilidade que separavam a mulher da esfera pública somente viriam a se solidificar de fato a partir do projeto iluminista, no século XVIII. Isto posto, deparamo-nos com personagens complexas e, à moda shakespeariana, ambivalentes e difíceis de circunscrever:

A restrição das mulheres a esfera privada, doméstica, definida pela sua vocação ‘natural’ como esposas e mães, que viria a se tornar uma característica dominante da modernidade, estava apenas começando no tempo de Shakespeare; e muitas das suas peças têm uma relação apreensiva com as noções emergentes da natureza das mulheres. Mães devotadas são notoriamente difíceis

Graduanda em Letras Inglês/Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

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de encontrar. Há muito mais pais do que mães, e as mães que, de fato, aparecem costumam ser insatisfatórias. Tanto a Sra. Page como a Lady Capuleto escolhem maridos indesejáveis para suas filhas. Gertrudes frustra as esperanças de Hamlet quanto à coroa dinamarquesa. Volúmnia é diretamente responsável pela ruína de seu filho. (RACKIN, 2005:134)

A fim de investigar e verificar a multiplicidade de representações da figura materna, elegemos personagens com diferentes níveis de protagonismo em três peças shakespearianas pertencentes a gêneros distintos. Representando a mãe no drama histórico, gênero profusamente explorado por Shakespeare no início de sua carreira, selecionamos a Duquesa de York, viúva de Ricardo Plantageneta, 3º Duque de York e mãe do Rei Eduardo IV, de George, Duque de Clarence e de Ricardo de Gloucester, mais tarde Ricardo III. Investigaremos a relação entre a subjetividade do eu-retórico de Ricardo e a sua complicada relação com a mãe, que, através da retórica, procura desfazer os laços familiares que a ligam ao filho que detesta, amaldiçoando o mesmo útero que ele culpa por sua deformidade e, consequente, pela sua sede de poder. Abordaremos então a mãe em Coriolano (1607-8), última tragédia de Shakespeare, considerada por Harold Bloom como a peça mais política do dramaturgo (BLOOM, 1999:577). Nessa obra, temos em discussão concepções de Estado, democracia e direito. Inevitavelmente, a retórica – e a discussão acerca dela – se fazem presentes tanto pelo contexto político da peça, quanto pela atuação do protagonista, um homem que tenta renegar a linguagem tanto enquanto discurso persuasivo, quanto como um processo de criação da própria subjetividade e por isso paga o preço de se tornar obsoleto. No alvorecer da república romana, explodem conflitos internos entre plebeus e patrícios e externos, entre romanos e vólcios. Caio Márcio, que mais tarde recebe o agnome Coriolano, guerreiro virtuoso e membro da classe dos patrícios, combate tanto os direitos democráticos dos plebeus, •126

que considera essencialmente inferiores, quanto protege a cidade da invasão inimiga com desenvoltura inigualável. No entanto, essa figura controversa age, nos é revelado, sempre em função de agradar à mãe, Volúmnia. Dela herdou sua paixão pela guerra, suas noções de honra, nobreza e dever, além do desprezo pelo povo. Por não ter absorvido também a eloquência e raciocínio político da mãe, Coriolano é incapaz de reconhecer a própria performance, considerando a identidade marcial que desempenha como sua natureza. Por fim, abordamos a figura materna em O Conto de Inverno (1610-11), uma peça inicialmente agrupada entre as comédias no First Folio, embora o fato de figurar como a última da lista sugira, segundo J.H.P. Pafford, que já em 1623 havia certa hesitação quanto à sua classificação (PAFFORD, 1933:xv–xvii). Em 1875, foi classificada como romance por Edward Dowden (HALLIDAY 1964:419), e no século XX classificada como problem play, uma obra de difícil classificação devido à quebra entre a tragédia dos três primeiros atos e a comédia pastoral e o final feliz dos dois últimos (LAWRENCE, 1931:9-13). A peça principia na Sicília, onde o Rei Leontes pede que seu amigo Políxenes, rei da Boêmia, estenda sua visita. A rainha siciliana, Hermione, em estado avançado de gravidez, acompanha os dois. O marido pede que ela insista e tente persuadir Políxenes a ficar. Eloquente, ela o convence com facilidade e Leontes presume que a aquiescência do rei boêmio à retórica da esposa se deve a um relacionamento adulterino entre os dois. Sua paranoia não pede confirmação. Políxenes deixa a Sicília às pressas para fugir do plano de assassinato de Leontes. Hermione é perseguida e presa pelo marido, mas sua imagem de mulher honesta permanece intocada diante da corte, também não convencida pelo rei. Logo, estudaremos O Conto de Inverno a partir do contraste entre a retórica do rei e da rainha da Sicília, observando os problemas gerados pela linguagem confusa de um homem em posição de poder, tanto enquanto voltada para própria subjetividade – o rei fabrica ficções a respeito de sua relação com a rainha a partir da linguagem e isso tem consequências muito sérias para pessoas inocentes, além de

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um impacto político desolador – como voltada para outro na produção de um discurso persuasivo: Leontes não é um homem eloquente, mesmo antes de sua obsessão com a suposta traição da esposa e sua própria insuficiência o leva a interpretar equivocadamente a linguagem dela.

A CULTURA RETÓRICA DA INGLATERRA DE SHAKESPEARE

A Inglaterra de Shakespeare era herdeira de uma tradição humanista fundamentalmente ligada ao ensino e à prática da retórica. Seu estudo era disciplina elementar do ensino básico nas escolas elisabetanas e jaimescas, instigando nas jovens mentes inglesas desde cedo a arte, expediente ou rotina que seria mais tarde refinada nos corredores e salas de aula de Oxford e Cambridge, aliada ao estudo da literatura latina e da dialética.

A variedade de habilidades composicionais e interpretativas ensinadas na escola ajuda historiadores da atualidade a entender como escritores individuais a usavam em seus propósitos particulares. As formas de leitura da escola e da universidade alertavam os elisabetanos para a forma em que as cartas que eles recebiam ou os discursos que ouviam empregavam técnicas particulares, abrindo mais possibilidades para imitação e variação em sua própria prática de escrita. Essa experiência do diaa-dia de análise e composição afinavam as ferramentas de compreensão que eles levavam para a sua leitura de poemas e ao assistir a peças. (MACK, 2004:3)

O domínio daquela que foi definida por Aristóteles (1998:48) como “a capacidade de desco-

brir o que é adequado a cada caso com o fim de persuadir” não era restrito aos estudos acadêmicos. Tratava-se de, como coloca Peter G. Platt, uma cultura retórica, com presença significativa do emprego persuasivo da linguagem em diferentes segmentos, no discurso político, nos sermões, artes e na escrita do dia a dia, como cartas e narrativas. No entanto, é preciso pensar na retórica não somente como um expediente para construir um discurso eloquente e persuasivo. Para compreender o escopo da sua influência na construção da identidade dos elisabetanos, pensando a retórica como instrumento para criar formulações acerca da própria subjetividade por meio da linguagem, fazemos referência à introdução de Stephen Greenblatt (2005:2) ao seu Renaissance Self-Fashioning: From More to Shakespeare: “talvez a observação mais simples que possamos fazer é que no século XVI parece haver uma autoconsciência intensificada quanto à moldagem da identidade humana como um processo manipulável, ardiloso”. Greenblatt introduz o termo self-fashioning como um processo definidor do início da modernidade: através da linguagem, da retórica, das manifestações artísticas e científicas, o ser humano passa a se tornar mais consciente de si e de sua responsabilidade e liberdade para se constituir através da linguagem, e quando pensamos no status da língua inglesa nesse período, as possibilidades tornam-se quase ilimitadas. Shakespeare parece consciente disso e explora a maleabilidade da linguagem no que Joel Altman chamou de “cultivo moral da ambivalência” (PLATT, 1999:286). Nos palcos, a construção desse eu-retórico encontrava expressão plena na voz de personagens cujas construções e performances eram intrinsicamente ligadas ao seu relacionamento com a linguagem tanto em um nível individual como no social, a habilidade de se relacionar com o mundo exterior a partir da formulação de discursos persuasivos sendo configurada frequentemente como uma questão de conflito. A ambivalência, conceito que define não apenas o caráter de diversos personagens shakespearianos, dos mais canônicos aos mais obscuros, e a própria estrutura do enredo dramático de suas peças, também pode ser aplicada à abordagem do autor

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sobre o eu-retórico. Como uma forma de buscar a verdade ou de forjar uma alternativa a ela, a abordagem retórica à linguagem, parte da identidade da Inglaterra de Shakespeare, foi herdada do resgate feito por Cícero deste expediente, duramente criticado por Platão na antiguidade em diálogos como Górgias e Fedro, onde aponta os aspectos perniciosos de se engajar em um discurso que busca construir a aparência da verdade, e não a verdade de em si. A abordagem de Cícero à retórica celebra, por sua vez, a estratégia do disputatio in utramque partem, a defesa dos dois lados de uma questão, como um expediente que expõe a dificuldade de se estabelecer uma verdade absoluta (PLATT, 1999:286), aspecto palpavelmente explorado por Shakespeare em sua obra dramática.

A TENSÃO PSICOLÓGICA DA DUQUESA DE YORK EM RICARDO III (1592-93)

Em Suffocating Mothers, Janet Adelman considera o solilóquio de Ricardo de Gloucester na segunda cena do terceiro ato de Henrique VI, parte 3 como a primeira vez em que ouvimos em Shakespeare “a voz de uma subjetividade inteiramente desenvolvida” (ADELMAN, 1992:12) e que esta reside na tentativa do personagem de criar um novo mito de origem para si, responsabilizando a origem materna não apenas por sua deformidade, mas por todas as suas ações subsequentes em busca da coroa inglesa em Ricardo III. A Duquesa de York, por sua vez, amaldiçoa o próprio ventre por ter gerado o filho assassino, procurando, na maior parte de suas falas na peça, dissociar-se e renegar o último filho sobrevivente. Já senhor do trono inglês, Ricardo III usa o discurso para desfazer as barreiras impostas pela mãe, afirmando a ela ter herdado “um quê de seu temperamento, que não tolera nem mesmo o tom de reprovação” (SHAKESPEARE, 2007:4.4).

Que ele se apresente como uma voz inegavelmente sedutora levanta questões quanto à sua retórica, especialmente quando consideradas a sua aparência física, por ele próprio definida como repelente ainda em Henrique VI, Parte III e a sua facilidade de envolver com suas palavras personagens até então profundamente avessas à ele. Tendo matado na Guerra das Rosas (1455-85) o Conde de Warwick e o Príncipe Eduardo (filho do rei do Rei Henrique VI), Ricardo é capaz de persuadir a inicialmente hostil Lady Anne – filha e viúva destes, respectivamente – a aceitá-lo como marido na segunda cena do primeiro ato. Já rei, após a morte de Lady Anne e sob a ameaça da vinda do Conde de Richmond – futuro Rei Henrique VII – para reclamar a coroa inglesa, convence a viúva de seu irmão Eduardo IV, a Rainha Elizabeth, a conceder a mão de sua filha em casamento e sobre seu feito exclama: “Fácil de persuadir, a coitada. Mulher superficial e inconstante!” (SHAKESPEARE, 2007:4.4:160). Para compreender a sede de poder de Ricardo e a estratégia por ele adotada para jogar por terra todos os seus obstáculos, observamos dois aspectos da retórica. Em uma primeira instância, Ricardo justifica o seu projeto através de um processo de self-fashioning: cria, através da própria subjetividade, um mito de origem para a sua sede de poder; em segunda instância, Gloucester emprega a retórica enquanto discurso persuasivo para torcer os eventos e conflitos a seu favor. Isto posto, nos debruçamos sobre o trecho final de seu solilóquio na segunda cena do terceiro ato de Henrique VI, Parte III:

Ricardo de Gloucester da Casa de York, mais tarde Rei Ricardo III, representa um dos personagens mais persuasivos do cânone shakespeariano. •128

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GLOUCESTER: Transformarei em céu o belo colo de uma mulher, com ricos ornamentos o corpo cobrirei, e com palavras e olhares renderei damas galantes. Oh pensamentos miseráveis! Fora mais fácil conquistar vinte coroas.


O amor me repudiou ainda no ventre de minha mãe. De medo que eu ficasse sob o seu regimento delicado, peitou a natureza criminosa para que me deixasse o braço seco como galho sem seiva, e uma montanha invejosa no dorso me pusesse, de onde a deformidade zomba à grande do meu corpo, estas pernas me deixasse

Ricardo responsabiliza o ventre materno por sua deformidade e considera ser esta a causa de seu insucesso no amor. Diante da inviabilidade da distração do colo de uma mulher, elege o sonho com a coroa o seu céu. O retorno à matriz de Ricardo faz com que sua busca pelo trono inglês se confunda com sua complexa relação com a mãe, a Duquesa de York. Notavelmente, a Duquesa somente toma o palco na segunda cena do segundo ato, já lamentando a perda do seu filho, Duque de Clarence – supostamente morto a mando do rei, mas na realidade executado por assassinos enviados por Gloucester – e de Eduardo IV, que morre após um longo período convalescendo. Seu primeiro encontro com Ricardo denuncia sua frieza – que não passa despercebida por ele – em relação ao único filho sobrevivente.

desiguais, afastando-me de toda proporção, como ainda informe filho de urso, que à mãe em nada se parece.

DUQUESA – Que Deus te abençoe e ponha docilidade em teu coração; amor, caridade, obediência e lealdade. RICARDO – Amém.

Sou tipo, acaso, para ser amado?

[Levanta-se. À parte:]

Oh monstruosa ilusão, pensar desta arte!

E que me faça morrer bem velhinho. Esta é a parte final de uma bênção materna. Espanta-me que Sua Graça a tenha deixado de fora.

Ora, se a terra só me proporciona a alegria do mando, do domínio,

(SHAKESPEARE, 2007:82:2.2)

de subjugar pessoas bem formadas, seja o meu céu sonhar com a coroa. Enquanto eu tiver vida, puro inferno vai ser o mundo, a menos que a cabeça firmada, assim, neste disforme corpo, me circunde coroa gloriosa. (SHAKESPEARE, 3.2.145-72)

A duquesa se mostra atenta aos ardis do filho, e ela, que questiona: “Por que precisa a calamidade ser cheia de palavras?” (SHAKESPEARE, 2007:147), emprega justamente as palavras para ressignificar sua posição de mãe e romper sua ligação com Ricardo, amaldiçoando o próprio ventre por nele não ter “estrangulado” aquele a quem se refere como “meu filho maldito” (SHAKESPEARE, 2007:148). Se Ricardo produz um discurso acerca da própria subjetividade ao culpar o ventre materno por sua conduta ardilosa e assassina, a Duquesa de York parece percorrer o mesmo caminho para eximir-se

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de responsabilidade sobre as ações de um filho que, segundo ela, sempre rejeitou. Sem perceber, a mãe de Ricardo acaba por validar o argumento do filho de que o amor o repudiara ainda no ventre da mãe. Tais considerações nos levam ao embate final entre mãe e filho. Após este ter assassinado também os filhos de Eduardo IV, a Duquesa oferece a ele a sua “mais pesada praga de mãe”. Ricardo acena mais uma vez para a tensão da identificação – por ela repudiada – entre os dois:

DUQUESA – És meu filho? REI RICARDO – Sim, pelo que agradeço a Deus, ao meu pai e à senhora. DUQUESA – Então com paciência escuta a minha impaciência. REI RICARDO – Madame, eu tenho um quê do seu temperamento, que não tolera nem mesmo o tom de reprovação. DUQUESA – Ah, deixa-me falar. REI RICARDO – Pois fale, mas saiba que não ouvirei. DUQUESA – Serei branda e suave em minhas palavras. REI RICARDO – E breve, minha mãe, pois tenho pressa. DUQUESA – Estás assim tão apressado? Pois eu te esperei nascer, e Deus sabe: em tormento e em agonia. REI RICARDO – E não cheguei eu, enfim, para confortá-la? DUQUESA – Não, pelo crucifixo sagrado, tu sabes muito bem que não: chegaste neste mundo para fazer da terra o meu inferno. Teu nascimento me foi um fardo penoso; tua infância foi teimosa e mal-humorada; como aluno, foste

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alarmante, desesperado, selvagem, furioso; na juventude, foste ousado, corajoso, aventureiro; quando já estavas pessoa formada, te mostraste orgulhoso, dissimulado, fingido, sanguinário; mais brando (e, contudo, mais destrutivo), gentil no odiar. És capaz de citar uma única hora de conforto que tivesse me agraciado com sua companhia? (SHAKESPEARE, 2007:149:4.4)

A crítica da Duquesa à conduta e à “natureza” de Ricardo notavelmente encontra seu ápice em uma crítica direta à habilidade do filho de manipular a linguagem a seu bel-prazer: todos os defeitos de Ricardo culminam no fato de ele ser “dissimulado, fingido (...), gentil no odiar”. Se a Duquesa de York renega o filho e sua retórica, ele se apresenta como a própria personificação, no universo da peça, dos ataques de Platão à retórica e aos sofistas. No entanto, se em Ricardo III uma das faces que a retórica assume é a de uma espécie de expediente de manipulação e falseamento da verdade nas mãos de um tirano sanguinário rumo ao poder, esta não é a sua única expressão. A retórica da Duquesa de York parece confirmar – e até fortalecer – a expressão de subjetividade de Ricardo em Henrique VI, Parte III. Trata-se de uma mãe de três filhos que, através da linguagem, forja uma narrativa da maldição de Ricardo, justificando sua rejeição, e se eximindo dos crimes por ele cometidos. Ricardo, por sua vez, encontra na mãe o local de origem para a sua sede de poder. Diante das versões, como apontou Cícero, e Shakespeare parece reforçar, é difícil eleger uma verdade unívoca.

A FORÇA POLÍTICA DE VOLÚMNIA EM CORIOLANO (1607-8)

Em Coriolano, deparamo-nos com um protagonista cuja rejeição à retórica o leva à própria que-

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da: da perspectiva de ocupar o posto de cônsul ao banimento de Roma. Quando ele se alia ao inimigo Vólcio para se vingar da cidade que o traiu, Volúmnia, sua mãe, é a única capaz de dissuadi-lo do seu intento. A fim de analisar a construção retórica da personagem materna, nos debruçaremos, em especial, sobre a terceira cena do quinto ato, onde a submissão de Coriolano à retórica materna torna-se também a sua condenação. A esse custo, Volúmnia salva Roma da destruição e o nome do filho da desonra definitiva no presente e na posteridade. Em Elizabethan Rhetoric: Theory and Practice, Peter Mack fala sobre a retórica no âmbito da aristocracia militar na Inglaterra de Shakespeare, o que nos permite traçar um paralelo com o contexto da peça:

O sucesso da reforma humanista na educação no início do século XVI pode ser medido pela crescente taxa de participação na universidade. Sob Elizabeth, mesmo membros da aristocracia militar tinham que aprender (e que se apresentar como possuindo) habilidades de apresentar argumentos persuasivos se desejassem ser atendidos em conselhos. Ao estudar o treinamento retórico que pupilos adquiriam na escola e na universidade, aprendemos a competência em leitura e composição que definia a elite elisabetana. (MACK, 2007:3)

Em Coriolano (1607-8), observamos plenamente aquilo que chamamos de construção retórica da figura materna: Volúmnia forja a identidade do filho usando a retórica como instrumento, o que leva Caio Márcio a encarar sua performance de homem militar e de patrício como sua natureza. A figura materna é apresentada desde a primeira cena da peça como a origem da identidade marcial de Coriolano, asserção que ela confirma em sua primeira aparição na peça (1.3) e nas interações diretas com o filho (2.1, 3.2). Embora seja uma mul-

her na república romana (séc. V a.C.), portanto com atuação restrita à esfera doméstica, Volúmnia é capaz de transgredir suas limitações ao reivindicar a tradição militar dos homens de sua família. Embora em Plutarco, fonte principal consultada por Shakespeare para compor a peça, haja menção ao pai de Coriolano – e a proximidade extrema entre mãe e filho seja associada ao fato de Caio Márcio ser órfão de pai –, em Shakespeare, Volúmnia reina absoluta.

Outros homens eram corajosos para conquistar glória, mas Márcio a conquistava para agradar à sua mãe. Que ela o visse ser louvado, vê-lo coroado, e abraça-lo chorando de alegria era a maior honra e felicidade da vida dele. Foi dito que Epaminondas teve os mesmos sentimentos, e que considerou sua maior sorte ter pai e mãe vivos para testemunhar seu sucesso triunfante na Batalha de Leuctra. Ele, no entanto, desfrutou da afeição e do aplauso de ambos os pais, mas Márcio, órfão de pai, cobriu sua mãe com todo o afeto que deveria pertencer a ele, além do quinhão dela. Tão ilimitado era o seu amor por Volúmnia que pelo desejo dela ele se casou, mas continuou a viver na casa da mãe. (PLUTARCO, 2004:324)

Muito cedo, o leitor percebe também a desenvoltura da retórica de Volúmnia enquanto ferramenta de persuasão. Anuncia ter enviado o filho à sua primeira guerra e celebra o sangue por ele derramado em combate. A ação dramática revela que é dela o discurso que ele destila – e que é objeto do ódio e repúdio dos plebeus. Caio Márcio é forjado pela mãe como sua face pública no cenário político de Roma. No entanto, há limitações para o poder da figura materna: ao retornar vitorioso da guerra contra os vólcios em Corioli e Ânzio no início do segundo ato, ela, alinhada aos generais e senadores patrícios, deseja que ele colha os frutos de sua con-

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quista ao assumir o posto de cônsul. Coriolano, por sua vez, não deseja se submeter aos ritos e costumes de uma campanha desta natureza: a tradição exige que ele peça os votos dos plebeus no mercado, mostrando suas feridas de guerra. Embora a mãe o convença a agir contra aquilo que ele chama de sua natureza, ele não se entrega por completo. Caio Márcio Coriolano jamais adere ao mundo retórico que o cerca. Seu único discurso é aquele em que grita comandos no campo de batalha. Rechaça a adulação, despreza falseamentos e discursos grandiosos. A recusa à retórica, no entanto, acaba por isolá-lo até mesmo dos patrícios que o apoiam.

costas o peso da integridade da nação romana que doutrinara o filho a defender. Retorna com uma vitória prenunciada primeiramente por Comínio:

Volúmnia, por sua vez, constrói sua imagem de mãe incontestável, o amor do filho pela guerra e todas as peculiaridades de comportamento que ele assume como sendo naturais através da retórica. A falha de Coriolano está em não reconhecer que aquilo que encara como essência foi também moldado, fashioned, por Volúmnia. A identidade que a mãe forjou para o filho o impactou tão profundamente que ele encara a solicitação dela para que manipule os plebeus por meio de um discurso persuasivo como a expectativa de que traia sua natureza. Pedir votos a eles, mesmo enganando-os, é se rebaixar, reconhecer suas vozes: “Por que me quer suave? Por que falso/ À minha natureza? Diga, antes,/ Que eu faça o meu papel” (SHAKESPEARE, 2005:3.2).

(SHAKESPEARE, 1995:5.1.71-4)

A discrepância entre natureza e performance, assim como o poder da retórica de Volúmnia culminam na terceira cena do quinto ato, onde as forças armadas vólcias lideradas por Coriolano e seu antigo inimigo Túlio Aufídio estão prestes a tomar e incendiar Roma. Por meio da linguagem, Volúmnia persuade o filho a desistir do ataque, de sua vingança contra a cidade que o baniu e, consequentemente, a aceitar a probabilidade de sua própria morte. Tito Lárcio, comandante de Coriolano na guerra, e Menênio, senador de Roma e figura paterna para o protagonista, já haviam efetuado tentativas frustradas de dissuadir o guerreiro de seu ataque contra a cidade-estado, e quando a matriarca se dirige ao acampamento vólcio, carrega nas •132

COMÍNIO – Toda a esperança é vã A não ser que a nobre mãe e a esposa, Que, ao que soube, vão solicitar-lhe Piedade pro país.

E pelo próprio Coriolano, que exclama ao perceber a chegada de sua família ao acampamento: “Serei tentado a quebrar minha jura/ No momento em que a faço? Eu me recuso” (5.3.20-1). Diante da mãe, ele se ajoelha, seguindo a tradição. No entanto, Volúmnia o surpreende pela união do discurso à performance, ela própria se pondo de joelhos diante dele, que reage: “Mas o que é isso? Joelhos, ante o filho repreendido? ” (5.3.57-8). Coriolano ergue-a antes de prosseguir. O filho é incapaz de agir de forma desonrada diante daquela que forjou o homem que se tornou, revelando assim a permanência de suas antigas lealdades. A primeira seção da exortação de Volúmnia é baseada em argumentos racionais que visam convencer Coriolano a ceder à assinatura de um tratado de paz. Em um de seus recursos mais contundentes, ameaça o filho com a fusão da sua própria identidade com a de Roma. A imagem é abominável:

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VOLÚMNIA - Não marcharás para assaltar a pátria Juro que não o farás - senão pisando Sobre o ventre materno que te trouxe A vida que gozas neste mundo.


(SHAKESPEARE, 25)

1995:5.3.22-

A Roma que ele pretende reduzir a cinzas é our dear nurse (traduzido por Bárbara Heliodora como “pátria amada”, mas que carrega no original a conotação da matriz materna com o termo nurse, aplicado à mulher que amamenta o bebê). Volúmnia cobra do filho a gratidão que lhe é devida não apenas por tê-lo trazido ao mundo, mas por moldálo na forma que se tornou sua concepção de identidade. A matriarca prossegue. Ao filho, oferece glória, honra e admiração em ambas as nações caso promova um tratado de paz proveitoso para todos. Não é a essa possibilidade – na qual não parece acreditar – que ele se entrega. Coriolano cede aos afetos e lealdades antigas e mais profundas ao ouvir a mãe acusá-lo de descortesia, ao vê-la questionar sua honestidade sob a ameaça de uma praga divina e pela acusação de ter adotado origens vólcias, renegando a mãe. Pela última vez, Volúmnia apela para os construtos que Coriolano não reconhece como tais, preferindo chamá-los de “minha natureza”, mas que constituem todas as concepções que tem acerca de si próprio. A desonra decorrente da deserção da nação à qual deveria servir e o enfraquecimento da distinção das identidades de Roma e de Volúmnia fazem com que ele retorne ao seu papel anterior, submetendo-se à figura materna. Até mesmo em sua insurreição máxima contra a pátria que o traiu, Coriolano é incapaz de ignorar as fundações sobre as quais sua identidade foi erguida pela mãe, e Volúmnia está plenamente consciente disso. O guerreiro volta a se alinhar com os ideais romanos e por ter decidido não retornar à origem, se constitui como um homem sem pátria que o acolha. Volúmnia, por sua vez, não se pronuncia mais, nem mesmo ao ser recebida com louvores em Roma. Profere suas últimas palavras na fala que resulta na rendição do filho; nem mesmo rubricas indicam seu estado de espírito diante da vitória que conquistou para a cidade ao custo da vida de Coriolano. O silêncio de Volúmnia parece sinalizar a ambivalên-

cia do autor diante da retórica. Shakespeare não circunscreve ou oferece juízo de valor sobre a escolha de Volúmnia ao empregar a mesma linguagem que usou para construir o herói de Roma para defender a cidade dele.

A ELOQUÊNCIA DE HERMIONE EM O CONTO DE INVERNO (1610-11)

Na cena de abertura de O Conto de Inverno (1610-11), os reinos da Sicília e da Boêmia encontram-se em paz, os reis Leontes e Políxenes são como irmãos. Os sicilianos encontram-se em um momento de prosperidade e expectativa em relação ao jovem príncipe Mamillius, o promissor herdeiro do trono. No entanto, a desconfiança de Leontes diante da eloquência de sua esposa, a Rainha Hermione, quando esta, ao seu pedido, convence Políxenes a estender sua estadia na Sicília, traz ruína tanto ao Estado quanto à sua vida pessoal. Analisamos a construção retórica da figura materna nesta obra a partir da performance de Hermione naquela que é também sua primeira aparição na peça, já em estado avançado de gravidez na segunda cena do primeiro ato. Após insistir para que Políxenes permaneça em sua companhia por mais alguns dias, o rei da Sicília percebe que seu empenho não trará frutos. Embora o rei da Boêmia afirme a Leontes que “A língua de ninguém/Neste mundo é capaz de convencer-me/Tão logo quanto a tua”, é somente após a Rainha Hermione pedir, que ele cede. É atendendo ao marido que ela se pronuncia. Leontes exige: “Perdeste a língua, Rainha? Falai”. Diante da primeira fala da rainha, Políxenes ainda não cede, e ela questiona: “Não quereis?”. A resposta do rei indica o enfraquecimento de sua resistência: “Não posso, na verdade”. Hermione percebe sua façanha e termina o discurso com bom humor e leveza característicos:

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HERMIONE – Verdade? Evitais-me em juras fracas;

equilibrada e racional, e pede que sua compostura não seja interpretada como indiferença:

Mas eu, ainda que os astros pretendêsseis

HERMIONE – É influência negativa de algum astro.

Com vossas juras da órbita afastar,

Devo ser paciente, até que o céu

Diria: ‘Senhor, não partais’. Na verdade,

Apresente um aspecto favorável.

Não ireis... o ‘na verdade’ de dama

Meus senhores, não costumo chorar

É tão potente quanto o de senhor.

Como fazem as do meu sexo e, assim,

Persistis em partir? Forçais-me ter-vos

Talvez, a ausência desse orvalho frívolo

Prisioneiro, não hóspede; pagai

Seque totalmente a vossa piedade.

A conta quando fordes, e obrigados

Mas aloja-se em mim a dor honrosa

Poupai. Que dizeis? Prisioneiro ou hóspede?

Que abrasa, e que não pode ser extinta

Pelo vosso terrível ‘na verdade’, Um dos dois sereis.

Pelas lágrimas. Rogo-vos, senhores,

(SHAKESPEARE, 2007:1.2)

Julgai-me com a razão bem instruída

Com facilidade, Hermione convence o rei boêmio a estender sua visita e prossegue conversando com naturalidade. A retórica de sua rainha suscita em Leontes a desconfiança – que rapidamente evolui para certeza – de que há um relacionamento adulterino entre Hermione e Políxenes. Sua primeira reação é questionar a paternidade do Príncipe Mamillius. Reconfortado pela semelhança física do menino consigo, duvida então da legitimidade da criança da qual Hermione está grávida. Logo supõe que todos estão cientes não apenas de sua suspeita, mas da traição de fato e exige que Camilo envenene o rei da Boêmia. Hermione é presa, embora os nobres peçam por ela, com Antígono a igualando à própria castidade (SHAKESPEARE, 2007:75). Diante dos ataques do marido, a rainha permanece •134

Pela bondade, e seja feita, então, A vontade do Rei. (SHAKESPEARE, 2007:2.1)

No contexto da peça, a oratória da rainha, assim como sua facilidade para construir um discurso persuasivo (o qual invariavelmente reflete a verdade), aparece sempre contraposta às fantasias que Leontes fabrica com palavras, ilusões que o conduzem à ruína. O rei apresenta, sobretudo, dificuldade para se comunicar com aqueles que o cercam. Supõe conspirações que não existem e interpreta mal a convalescência do filho, suponho ser ele fruto da vergonha pela desonra de Hermione, quando,

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na realidade, a criança acostumada à presença da mãe definhou diante do sofrimento ao qual ela foi submetida (2.3). No julgamento de Hermione, ela afirma que o rei fala um idioma que ela desconhece (3.2), e é o destino de Leontes – não o dela – que é selado com a leitura do oráculo de Apolo: “Hermione é casta; Políxenes, isento; Camilo, súdito fiel; Leontes, tirano ciumento; a criança inocente, concebida em legitimidade; e o Rei viverá sem herdeiro, se a que foi perdida não for encontrada” (SHAKESPEARE, 2007:3.2). Na mesma cena, chega a notícia da morte de Mamillius, que “temendo a sorte da rainha, foi-se”. No entanto, a tragédia de Leontes não se concretiza. Embora passe 16 anos como penitente, crendo a esposa morta – Hermione “falece” após a notícia sobre a morte do príncipe chegar – e com ínfimas esperanças de reencontrar a filha abandonada em terras estrangeiras, o último ato traz o retorno tanto da Princesa Perdita à Sicília quanto o de Hermione “à vida”. A harmonia entre os reinos também é restaurada com a união da filha de Leontes ao herdeiro do trono de Políxenes, o Príncipe Florizel. Em O Conto de Inverno, Shakespeare retrata a retórica sob uma luz bastante favorável: os discursos da rainha siciliana refletem a sua honestidade interior, ela jamais procura falsear a verdade a partir da linguagem. Leontes, por sua vez, ao fazer um uso equivocado tanto de sua posição de poder, quanto da linguagem, forjando e iludindo-se com inverdades, tentando punir outros por fantasias do seu próprio descontrole emocional, mostra que a retórica, por si só, não é perigosa – é o próprio homem equivocado – ou que visa equivocar – que distorce tanto esse expediente, quanto a realidade que o cerca. Isto é, a retórica não nos afasta da verdade; seres humanos o fazem.

erca da própria subjetividade, quanto voltada para o outro em discursos persuasivos. A performance da Duquesa de York revela uma personagem preocupada em se dissociar de um filho que censura e rejeita, e é através da linguagem que ela busca essa ruptura. Volúmnia, por sua vez, representa a face de uma sociedade que, assim como a da Inglaterra de Shakespeare, mostrava-se incapaz de escapar da retórica: silenciá-la é tornar-se obsoleto. Por fim, vislumbramos em Hermione uma representação positiva da retórica contraposta aos ataques irracionais de Leontes, expoente da incapacidade de compreender essa linguagem. Shakespeare oferece em sua obra uma miríade de visões e abordagens à cultura retórica que o cerca, sem jamais se limitar a juízos de valor unívocos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maneira como Shakespeare retrata as figuras maternas presentes em suas peças está intrinsicamente ligada a relação destas com a retórica, tanto enquanto expediente para elaborar formulações ac-

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RUÍNA EM A ABÓBADA: POTENCIAL Marcelo Alves (Graduação ― UERJ)1

RESUMO Empreendidas aqui análises que aproximam o conto A Abóbada, de Alexandre Herculano, do conceito de ruína, proposto pela teoria do conhecimento segundo os românticos, explicitada em estudos de Walter Benjamin. Verificamos, no fenômeno literário, o estabelecimento de uma educação artística - típica do movimento romântico, sintetizada no gênero em questão -, cujo mote trata de uma construção arquitetônica histórica, o Mosteiro da Batalha. As figuras empíricas apresentadas em A Abóbada legitimam o discurso que contamina a obra: alegorias criadas com o objetivo de constatar que, naquele momento histórico (vitória na Batalha de Aljubarrota), os portugueses erraram: símbolo de glória nacional, O Mosteiro de Santa Maria da Vitória, no entanto, iniciado por um legítimo português, Afonso Domingues, teria como mestre arquiteto um estrangeiro, mestre Ouguet. A presença estrangeira torna-se assinatura do erro e índice para o arruinamento. Tecemos, como acabamento, considerações sobre o tema em face de um gênero de características similares, o épico, crendo na lucidez espontânea da questão ruína.

Palavras-chave: ruína; A Abóbada; romantismo.

Este texto é dedicado àquele que me jogou ao abismo. * Em O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, Benjamim nos diz que o romantismo fundou o conceito de conhecimento sobre a concepção de reflexão. O pensamento reflexivo garantiria a imediatez do conhecimento e uma particular infinitude desse processo. A relação entre o ser e o objeto artístico consiste em iluminação mútua entre esses dois entes, de forma que o ser, sem anteparo, coloca algo de si no objeto por meio de uma análise (crítica), enquanto que o objeto de alguma forma irradia algo de si sobre o ser. *

*

Trata-se, pois, da primeira recepção da filosofia crítica kantiana, cujos fundamentos desenvolverão, em parte, o idealismo alemão: a tarefa kantiana de uma destruição da metafísica foi continuada pelos românticos. Além disso, houve a busca de uma superação do romantismo ao classicismo, que ora imperava na teoria da arte. Instaura-se o problema da arte, esboçado antes por Schiller, em Poesia Ingênua e Sentimental: como compreender as obras modernas por meio de uma teoria nova, uma vez que teoria clássica já não dava mais conta de apreender os fenômenos literários modernos? * A tese de Benjamin, nesse sentido, remonta as origens filosóficas dessa nova teoria. O pensamento desdobrado no conceito de crítica é “linkado” à tarefa de uma teoria do conhecimento da obra de arte

Graduado em Letras – Português/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Bolsista do CNPq.

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em um medium-de e da-reflexão – Reflexionsmedium -, isto é, a crítica seria o acabamento da obra de arte. O estudioso pontua que o medium possui um caráter duplo reflexivo, e o medium-de-reflexão se forma na reflexão de segundo grau (pensar o pensar), pois nele se imprimem dois momentos: autoatividade e conhecimento. A infinitude da reflexão, portanto, é uma infinitude da conexão: totalidade das provas recíprocas. E a poesia universal progressiva, estipulada por Schlegel em Athenäum, torna-se uma teoria do romance, pois não se trata apenas de reunificar todos os gêneros separados da poesia, mas antes mesclar e unir poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia-de-arte e poesia-de-natureza.

* Perceber a obra de arte como um fragmento não significa que houve fracasso. Fracassar é legitimar a arte naquilo que ela NÃO se permite. O idealismo alemão dará conta disto. Schlegel, por exemplo, evidenciará a “assistematicidade” de sua reflexão, denunciando o ideal de sistematicidade ostentado por outras ciências. Tal frieza diante do que a arte acalenta (a vida), não constitui antítese, mas paradoxo: “Era um destes formosíssimos dias de inverno, mais gratos que os do estio, porque são de esperança, e a esperança vale mais do que a realidade;”(HERCULANO, 2013: 342).

* * O romantismo, portanto, inaugurará para as consciências a ideia de que a obra de arte seria um instrumento de crítica e de polêmica a combater qualquer pensamento que se apresente fechado e acabado. Estabeleço um dilema: se procuro seguir à risca a proposição de que as análises feitas por mim servirão nada mais nada menos por esclarecer o conceito de ruína em A Abóbada, provável que eu assassine a obra de arte; por outro lado, se me entrego à obra e deixo-a que me pergunte nas próprias questões, posso ser acusado de antiacademicista, assaz falacioso e enganador das gentes doutas. * Se há uma ciência literária que pretende esgotar a obra de arte, ela o faz por exigência técnica. Outros mecanismos que desmantelam a obra: categorizações e discursos de saberes alheios. Fala-se hoje em interdisciplinaridade. E aqueles que, a todo custo, querem justificar suas análises, delineiam o romantismo pelos vieses dos conhecimentos que brotam e se consolidam no século XVIII, crendo que a arte precisa de validade. Setorizada, segmentada, avessa à vida. O romantismo seria isso? Talvez. A reelaboração, constantes exegeses das singularidades por surgir – ou melhor, construir. Eis aqui uma construção, plena de destroços. •138

(Espelho de todo o mundo circundante, a teoria da obra de arte, assim definida, está em constante devir, em direção a um ideal de poesia. Entretanto, Walter Benjamin esclarece-nos que o desdobramento da reflexão exercida rigorosamente entre os teóricos românticos alemães só atinge o grau máximo de superação metafísica porque houve um pensar sistemático.) * A obra de arte precisa de agonizar, declinar-se ao fracionamento. Isto entendido desestabiliza o sujeito. A trepidação, ao nos descentralizar, atesta a não indiferença para com a arte, visto que ela é vida em perigo. A construção artística – o conto, a Abóbada, o mosteiro da Batalha, “livro de pedra” – é o Outro que dá as mãos a um “Eu” despersonalizado, ou seja, a um Ninguém. É nesta aparente distância que, a um só tempo torna-se insuportável, é admissível entender a vitalidade da naturezaa remexer no memento mori.

* Os raios de sol que se estiram, ao mesmo tempo vívidos e tremeluzentes, por cima da terra, ne-

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gra pela umidade, vão errando pela fauna morta, semelhantes a crianças a folgar na campa que (é mister lembrar), carrega um ai de saudade. O conto sorri assim para nós. E se existe algum dever, é este: que nos tornemos, momentaneamente, campa – enterremos as saudades, os sabores, os saberes, para que a própria obra seja ausente e sejamos a obra. * A História como objeto artístico? A História contamina o objeto artístico, justifica-lhe porque os homens contam e atribuem, às narrativas, valor. A reflexão é o resultado do espelhamento que não haveria. Os homens se olham no espelho; estranham, pois, que se veem outros e assentam as cabeças ao reconhecerem bocas, sinais, gestos: identidade, memória e (azar) história. *

História; devir, fundamentado pelo próprio gesto artístico; outro, signo estrangeiro. * Defendo a falha artística; torno-me, porém, figurativo (neste trecho, apenas) para que o leitor não ache a questão enfadonha demais: nas campas habita a memória dos portugueses, os que viveram decerto, a glória empoeirada. Remexê-la beira ao sacrilégio. Por que, pois, a alegoria? Expô-la como sinal de declínio desperta, nas palavras – Fernando Pessoa, “cadáver adiado que procria”. Ambivalência de ruína – ao mesmo tempo em que o passado é tomado como exercício de identidade nacional, há o prognóstico de potencial. Olhar para a história e aprender com ela é o suprassumo do romantismo. *

Pensar a abertura da obra como anunciadora duma condição: a cegueira que se estabelece na História – e que será por intermédio de um “cego” a indicação do que a História não vê – ou não se deixa enxergar. O cenário, melhor, a ambientação natural parece aludir, com suas imagens, à situação que servirá de alegoria ao conto: a densidade da ruína. Contrasta-se com essa atmosfera o anúncio do fervilhar do povo adentrando a nova igreja – o mosteiro da Batalha. * “Esta instituição eclesiástica, sendo a morada de Deus na terra, é, porém, contaminada por meio do povo: longe de se prestar a ouvir a eventual missa, o povo – composto por pessoas de diversos lugares –, semelhantes a uma serpente gigante, perfura os outeiros a fim de vislumbrar os autos.” Veja-se, portanto, que a cegueira abre a própria cenografia do conto, encapsulada em: natureza, mosteiro e povo. Serão esses os pilares primevos que, nas ações das personas históricas, regularão a intensidade da fragmentação em diversos níveis: sujeito, ancorada pela

Teorizar a fantasia do poeta pressuporia limitar e dividir sua virtude, a atividade e o resultado. Por isso, o fragmento anterior é o melhor que vos posso dar. Se abro mão da obra de arte, significa dizer que ela ainda não está determinada, mas suscita algo a ser dito. E o poeta? Nem existe mais. * Ou está cego. Tola é a ideia de que a vida é apreensível com o sensível. Aristóteles (ou os que o leem) desvirtuou todo o sentido do que é tocar, ver, ouvir. Sustentarão alguns que os sentidos são referenciais; outros, enganosos. A modernidade supera tais categorias, reelaborando-as; o indivíduo é uma parte de si mesmo, destaca-se e retorna à origem do eu não identificável; nem poderia sê-lo. Os sentidos surgem com o nascimento do sujeito. E a arte é antisujeito, seja primitiva ou continuum de primitividade. E é por isso que o indivíduo, mesmo assegurando um todo em si, converte-se em paroxismos perante a misteriosa verdade: há em si uma limitação.

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*

ciais, e mais obreiros desta maravilhosa máquina. Quem de longe olhasse para aquele extenso campo, alastrado de tantos primores de escultura, julgara ver o assento de uma cidade antiquíssima, arrasada pela mão dos homens ou dos séculos, de que só restara em pé um monumento, o mosteiro. E todavia, esses que pareciam restos de uma antiga Balbek não eram senão algumas pedras que faltavam para o acabamento d'um convento de frades dominicanos, o convento de Santa Maria da Victoria, vulgarmente chamado a Batalha!” (HERCULANO, 2013: p.344-5, adaptado)

“No adro do mosteiro de Santa Maria da Vitoria (...) o povo se escoava pelo profundo portal do templo para dentro do recinto sonoro daquela maravilhosa fábrica”. (HERCULANO, 2013:p.343). O todo compartilhado, por meio da comunicação, pode ser recomposto. A linguagem falha e tem a necessidade de aparentar sua eficiência – tornar comum o que não era. A descrição não dá conta, tende mais a pincelar o acabamento da construção do que acertar sua moldura:

“No campo contíguo ao edifício, aqui e acolá, levantavam-se casarias irregulares, algumas fechadas com suas portas, outras apenas cobertas de madeira e abertas para todos os lados a maneira de simples telheiros. As casas fechadas e reparadas contra as injurias do tempo eram as moradas dos mestres e artífices que trabalhavam no edifício: debaixo dos telheiros viam-se, nuns pedras só desbastadas, noutros algumas onde se começavam a divisar lavores, noutros, enfim, pedaços de cantaria, em que os mais hábeis escultores e entalhadores já tinham estampado os primores dos seusdelicados cinzeis. Mas o que punha espanto era a inumerável porção de pedras, lavradas, polidas, e prontas para serem colocadas em seus lugares, que jaziam espalhadas pelo grandíssimo terreiro, que ao redor do edifício se alargava para todos os lados: mainéis rendados, pecas dos fustes, capitéis góticos, laçarias de bandeiras, cordões de arcadas, aí estavam tombados sobre grossas zorras, ou ainda no chão endurecido pelo continuo perpassar de trabalhadores, ofi-

•140

* A citação fracassa duplamente. Deslocada, não é obra de arte; é ilustração, no mínimo, difusa para sussurrar a ruína, potência de A Abóbada. Serve como discurso científico, quase avessa à situação apresentada por Herculano. Cidade arrasada ou cidade-devir? Nenhuma. Entre cidade, a conviverem o orgânico e o inorgânico, o ser vivo e o não-vivo, que compactuam involuntariamente. Entre cidade, espero, soluciona, enquanto descoberta, a forma dos problemas de natureza filosófica. Como, entretanto, sair do tecnicismo especulativo? O conto, ressalto, como reflexão, desautoriza o discurso filosófico, uma vez que a Filosofia não se permitirá, ainda que trate de estéticas, usar estilisticamente a linguagem, a criar n mitos de destruição artística. * A obra de um escritor, segundo Schlegel, só pode ser circunscrita ou na Literatura ou na Filosofia de base histórica. O dilema reduz a obra de arte a um discurso utilitário, pois pesa, à Literatura do século XVIII, certo compromisso com a educação. Nesse sentido, dirão os estudiosos de história portuguesa que:

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“Afonso Domingues, mestre arquiteto, relaciona-se com a ruína em ambivalência, na medida em que, como personagem histórica, traz em si um discurso autorizado que explicita ao leitor onde, na História, os portugueses ‘erraram’. Por não possuirvisão terrena, e sim a visão intuitiva, interior, este homem é capaz de mostrar também as possíveis correções nos caracteres portugueses.”

* Benjamin, contudo, defenderá que a literatura romântica não era somente um esforço de construção de um estandarte estético, mas também o ideal gerado por um problema que, em seu cerne, unifica o pensamento e o sentimento do mundo – agulha que penetra na superfície mundana e atinge a sensibilidade: conexão entre a ideia divina e a profundidade da natureza. * A Batalha já perdida? Não, “pedaços de cantaria”. E Herculano põe em jogo o tempo como o responsável pelo arraso das moradas dos mestres e artífices, trabalhadores no edifício. A obra de arte, ao mesmo tempo em que nasce e inaugura-se, destrói as banalidades e sacrifica seus empreendedores – tipificados na figura de Afonso Domingues. Mas, o que se anuncia como cadáver posto, o criador, percorrerá as linhas da profetização: a obra não retalha a integridade e o ânimo, embora a presença do Outro, com sua obscuridade, tente fazê-lo:

(...) via-se um velho, venerável deaspeto, que parecia embrenhado em profundas meditações. Pendia-lhe sobreo peito uma comprida barba branca: tinha na cabeça uma touca foteada, umgibão escuro vestido, e sobre

ele uma capa curta ao modo antigo. A luz dosolhos tinha-lha de todo apagado a velhice; mas as suas feições revelavam quedentro daqueles membros trémulos e enrugados morava 0um ânimo rico dealto imaginar. (HERCULANO, 2013: p.345)

* Afonso persiste do início ao fim, da situação artística ao argumento histórico. É uma ruína, ortografando, no silêncio obrigatório (determinado por El-rei D. João I) seu ânimo, que lhe permite denunciar a falha, e a concentração do absurdo permitido na obra de arte: ao mesmo tempo, Afonso Domingues e aabóbadasão o ainda não e o nunca mais. Devires não consumidos. * Há, contudo, certa melancolia. A leitura do mundo, feita desta forma, por meio das ruínas, é um apelo – deslealmente iconoclasta -, referendado pelos estudos de Benjamin, sobretudo o mencionado. Sua responsabilidade é retardar os equívocos provenientes de análises meramente filológicas. Não as detém, pois que a inflamação da História, a chaga que cria pequenas feridas repletas de colônias ideológicas (chamemos uma delas de nacionalismo), vem à Batalha: Mestre Ouguet. * Irlandês, mediano em quase tudo, mortificado pelos fatigantes trabalhos em Portugal. Herculano justifica: “para que não lhe acudissem soberbas e veleidades de senhorio e dominação”. Reside o medo do Outro. Medo do conhecido. Cerceamento. A cegueira física de Afonso Domingues é o pressuposto para a nomeação de Ouguet, cuja biografia supõe que esteve em Alcobaça. A personagem, pois, é inserida com suas transparências e é utilizada como bode expiatório para os urros proferidos pelos portugueses à presença estrangeira. Vou além: a exacerbação do discurso sustentado ao longo do conto (de que a permissividade portuguesa à inserção

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de elementos estrangeiros ocasionou o declínio da nação) constitui também o erro civilizatório. * A arte como um saber (latente) e um não-saber (por não possuir princípios). A entrada da Filosofia na Literatura nasce do intuito de que aquela utilize os caroços dessa como argumentos aos postulados filosóficos. Porém, a Filosofia não saberá de arte. O gesto filosófico de encontrar alguma arte que seja o lugar de satisfação para o discurso filosófico oriunda da própria postura burguesa sobre a arte: ela daria algo em troca. A tradição pós-kantiana, a qual estamos inseridos, tenta solucionar a bipartição temporal que se efetua no compasso da crise: ser e pensamento não são proprietários entre si. De fato, o que se estabelece é o saneamento filosófico em relação a arte, pois o que se busca são os seus efeitos. Por isso, no idealismo alemão, muito bem dilatado pelos irmãos Schlegel, e decantado por Walter Benjamin, sobretudo em Origem do drama trágico alemão, o sujeito é ao mesmo tempo o gênio – trabalhador – da arte e, simultaneamente, a própria obra de arte. Não à toa, é feita, primeiramente, a distinção entre filosofia da arte e filosofia-de-arte para, em seguida, a partir da gênese das formas fragmentárias, buscar a conexão necessária da protoforma da filosofia com todas as formas singulares, o que Schlegel denominou de “filosofemas”. * “Menos engenho e mais estudo, eis do que precisamos.” diz mestre Ouguet a El-rei. O perigo. Eis o que acontece: quando lemos um romance histórico ou qualquer obra que ressignifique esta obviedade, diz a tradição que não podemos deixar de pensar na realidade histórica. A obra literária, portanto, nos levaria a pensar em outras realidades. O conhecimento de determinadas disciplinas ajudaria a compreender os vários fatos literários e, para isso, deveríamos recorrer à Linguística, a Estilística, a Psicologia, a Sociologia, a Mitologia, a Religião. •142

* Mas, na linha do idealismo alemão, na proposta de se lidar tête-à-tête com a obra de arte, é preciso aceitar que ela é o seu próprio manual de estética. E tenhamos a consciência de que, nas palavras de Benjamin, a obra de arte ou funda o gênero ou se destaca nele, e nas mais perfeitas, encontram-se as duas coisas. * Evocadas pelo arruinamento. A ruína configurada como mote artístico no conto funciona como monumento e evocação. Lembrado como perdido. Apresentado como esboço (depuração), unidade viva de uma grande individualidade, obra ou autor. Mas não há diferença entre a literatura e o autor, pois expirando a literatura, no ciclo inevitável, expira o autor, e vice-versa. Reciclagem cosmológica que renuncia à exaustividade. Correspondente à ideia moderna de que o inacabado pode ser exposto. * Sendo assim, nunca se construiu o mosteiro da Batalha. E, no entanto, eles existem. “O mito é o nada que é tudo”. Por isso, Afonso Domingues, ao leito, diz: “A abóbada não caiu... a abóbada não cairá”. Restituído, tardiamente, o título de mestre arquiteto, pode continuar sua obra. E a imagem do velho, moldada a partir de seu cadáver, segundo o conto, une-se a um dos ângulos da casa do capítulo. Autor e obra, porco-espinho. * A leitura que frequentemente se faz do gesto é prosaica e maçante: Afonso Domingues, herói nacional. De fato, o excurso de Herculano na sintaxe do mestre arquiteto não foge à questão da nacionalidade. A materialidade do conto, dividida em cinco capítulos, resgata muitos elementos épicos: desde

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os epítetos, os símiles, a voz a priori ausente do autor empírico, as ações, até a obsessão de justificar a obra por meio de registros, documentos, semelhantes a recitações, numa espécie de rememoração consciente, em que o homem demonstra reconhecer em si uma ou várias qualidades como distintivas, porém não definitivas.

de Ouguet. A morte, ou melhor, os objetos mortos são potenciais de novas condições. Quais serão? Deixemo-las para futuros mestre arquitetos, desejosos de construírem seus próprios mosteiros; ou que eles os sejam. Para que haja salvação, é preciso arriscar. E para que haja construção, tem de haver escombros.

* REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A Abóbada não pode fugir da apresentação. Nela, contém uma boa carga do substrato popular. O que se destaca no insumo é o auto de adoração dos reis – composição teatral em que se representam as virtudes e os pecados, anjos, santos e demônios, mesclando elementos cômicos e moralizantes. A arte representativa, no conto, será utilizada também como crítica; redunda: O Diabo, figura representada, com todos os seus adereços (vestido de peles de cabra, com um rabo que lhe arrastava pelo tablado e o seu forcado na mão, muito vistoso e bem-posto) fala! E em seu falar, estimula certa possessão no mestre Ouguet: “O olhar espantado, o escumar, o estorcer os membros e o falar não sei de que feiticeiro, tudo me induz a crer que o demónio se chantou naquele miserável corpo, como vós aventais.” (HERCULANO,2013: p.376). Desse modo, o conto executa um tribunal. Embora, no fim, seja responsável pelo mosteiro da Batalha, Ouguet carrega a ficha suja em terras portuguesas. Pior: pensando na tradição religiosa, o conto quer afirmar o quão diabólico é o estrangeiro.

BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1999. _______________. Origem do drama trágico alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

HERCULANO, Alexandre. Lendas e Narrativas. Disponível em: <http://cdn.luso-livros.net/wp-content/uploads/2014/05/Lendas-e-Narrativas.pdf>. Acesso em: 17/09/2015.

LACOUE-LABARTHE, P; NANCY, J-L.“A exigência fragmentária”. In: Terceira Margem: Revista do programa de pós-graduação em Ciência da Literatura, UFRJ, ano IX, nº10, 2004, p.67.

PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

* Pôr-se à frente, para quem quiser receber a obra. Essa é a essência do épico, presente em A Abóbada. Sujeitos perecem na linearidade, uma escolha estética, uma escolha histórica. Permanecem, porém, enquanto entes, que renunciam a identidade, para metamorfosearem-se em outros, múltiplos e ouriços. A ironia de Ouguet (“Olhem que foi grande perda!”) expressa ao fim, é o avesso daquilo que deveríamos observar na obra: o metabolismo de A Abóbada põe-se à prova da existência na figura

SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1991. _______________. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997.

STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.

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O JORNAL: UM OLHAR DIFERENCIADO PARA O COTIDIANO Maria Mariana Lima Castro (Graduação ― UERJ)1

RESUMO O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta de estudo dos gêneros discursivos da esfera jornalística na Educação de Jovens e Adultos (EJA), bem como desenvolver reflexões acerca da experiên­cia dessa prática vivenciada em um projeto de extensão da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Este trabalho estará dividido em três momentos: primeiramente, faremos uma breve apresentação do Programa de Alfabetização, Documentação e Informação (Proalfa-UERJ), no qual foi desenvolvida essa prática; em seguida, será apresentado o desenvolvimento do projeto didático – O brasileiro é manchete –, no qual foram abordados aspectos específicos dos gêneros jornalísticos e de sua relação com gêneros de outras esferas, como a artística-literária, relacionando-os sempre. Por fim, buscaremos tecer breves considerações em torno dessa experiência e de suas contribuições para o desenvolvimento de práticas de ensino de Língua Portuguesa mais efetivas no que tange a formação do leitor e da produção de texto autônomos.

Palavras chaves: Ensino; gêneros discursivos; produção textual.

INTRODUÇÃO

Sabemos que o jornal é um veículo de informação de massas, mas talvez o que não nos damos conta é que parece não ser bem entendido por grande parte dos leitores enquanto uma esfera que engloba diversos gêneros, cada qual com sua função discursiva específica. Por esse motivo, ele foi o escolhido para ser trabalhado na turma de alfabetização e letramento, UNATI 1, do Programa de Alfabetização, Documentação e Informação (PROALFA- UERJ). Após a proposta do primeiro semestre do projeto, que propunha um estudo acerca da formação das diferentes culturas da humanidade, a turma, no segundo semestre, se viu diante da proposta de se debruçar sobre a vida do homem moderno, e nada mais importante e rico como o jornal, para nos mostrar o cotidiano desse homem. O desafio não é *

só para aquele que aprende, mas para o que ensina. Ao longo do processo pedagógico o professor se surpreende também com as minúcias desse veículo. Os alunos são nossos grandes faróis, que nos apontam qual deve ser o objetivo de nossas aulas, nos alertando de que talvez aquilo que seja óbvio, não é tão claro assim. O aluno da EJA tem características particulares, como todo homem tem. Trazer os gêneros da esfera jornalística para sala de aula nos possibilitou perceber que não é só o homem que possui minúcias, mas também a linguagem que nos compõe. Cada gênero possui características próprias que só são percebidas e entendidas através do contato. Assim também é com nossos alunos, só os conhecemos se estamos em contato e interessados nos detalhes de cada um deles. A proposta pedagógica que adotamos deve ter espaço não só para nosso objeto de estudo, mas, também, para o nosso aluno

Universidade do Estado do Rio de Janeiro- aluna do sexto período de licenciatura em Letras (Português / Literaturas); Bolsista do Programa de Alfabetização, Documentação e Informação- PROALFA/ UERJ.

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que é nosso alvo, é ele quem nos dará a permissão para ensinar-lhe. Sem essa permissão o fazer pedagógico não acontece. O grupo nos permitiu apresentarmos o homem atual e seu modo de expressão no mundo por meio da esfera jornalística, que talvez traduza tão bem a forma de organização humana que por esse motivo não perde a força mesmo em meio ao mundo conectado.

O PROGRAMA

O Programa de Alfabetização, Documentação e Informação (PROALFA) é um programa de extensão da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) atuante desde o ano de 1995. Seu principal objetivo é construir um espaço educativo fundamentado em reflexões, discussões e práticas a respeito do tema alfabetização e letramento, com o intuito de permitir o acesso de todos à leitura e à escrita. No programa atuam estudantes da graduação em Letras, Pedagogia e Matemática, os quais são professores bolsistas. As aulas são divididas em aulas com professores regentes, oficinas de leitura, oficinas de produção de texto e oficinas de matemática. Para a atuação desses bolsistas, o programa oferece reuniões pedagógicas de planejamento e reflexão da prática uma vez por semana e grupos de estudos, também uma vez por semana. O trabalho em sala de aula acontece três vezes por semana, com professores bolsistas regentes e uma vez por semana com cada oficina. O projeto Classes de Alfabetização e Letramento de Jovens e Adultos, em que esse projeto pedagógico foi realizado, propõe uma educação não formal em Língua Portuguesa (leitura e escrita) e Matemática. Tem como público alvo os idosos - em particular essa turma é composta apenas de mulheres - provenientes de classes populares que não tiveram a oportunidade de estudar enquanto

jovens, ou que buscam na educação não formal aperfeiçoamento da leitura e da escrita. A respeito da educação popular Brandão (2008) diz que:

Pretende associar o ser a pessoas do povo, a uma educação que pergunta a essas pessoas quem elas são. Ou seja, uma educação aberta para ouvir o que elas têm a dizer sobre como desejam ser, em qual mundo querem viver, em qual mundo da vida social estão dispostas a serem preparadas para preservar, criar ou transformar. (2008, p.44).

Os alunos que buscam o PROALFA são pessoas que se permitem fazer novas leituras do mundo, mostrando a seus professores os caminhos apontados por Brandão, dando indícios do que ainda querem enxergar no mundo. Nessa proposta, eles não são submetidos a testes de desempenho, mas propõe-se um projeto de trabalho o qual é concluído com um produto final. As aulas das Classes de Alfabetização e Letramento de Jovens e Adultos guiam-se por projetos de trabalho com temas anuais. Esses se dividem em dois módulos, ou seja, em dois semestres. O tema anual do ano de 2014 foi intitulado “Heranças, culturas e identidades: a boniteza de estar no mundo”, tendo como título do segundo semestre “Entrelaçando o passado e o presente, me transformo no agora”. A partir desses temas, as professoras regentes juntamente com a turma chegaram ao tema “O brasileiro é manchete”, para ser trabalhado especificamente pelo grupo. Tal tema culminou no produto final de um jornal produzido pela turma, nomeado posteriormente de “PRONATI”.

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Com a escolha do tema “O brasileiro é manchete”, a turma estudou os gêneros discursivos da esfera jornalística com reflexões que auxiliaram para a formação crítica, e criativa dos alunos. Com isso, os alunos se apropriariam da linguagem jornalística, além de desenvolverem a capacidade de produzir textos de forma autônoma. Isso seria resultado da interação com os gêneros jornalísticos.

Após a pesquisa, iniciamos o estudo dos gêneros discursivos de modo efetivo, baseando-nos no que aponta Bakthin (2003):

Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos que criá-lo pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez a cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível. (p. 283).

O PROJETO DIDÁTICO - “O BRASILEIRO É MANCHETE”

Nosso projeto de trabalho teve como objetivo possibilitar aos alunos um olhar diferenciado do cotidiano, por meio de uma melhor interpretação de um bem cultural consumido pelas massas: o jornal. Esse processo viria a partir da leitura e interpretação de gêneros discursivos da esfera jornalística como procedimentos metodológicos. Os objetivos específicos foram explorados com base em desvendar a estrutura do jornal, as características da estrutura dos seguintes gêneros: notícias, reportagens, notícias ideais, gráficos, propagandas, charges, classificados, classificados poéticos, crônicas, entretenimentos, receitas e cartas ao leitor. Ao iniciar o projeto, foi necessárioo levantamento prévio dos alunos acerca do seu contato com o jornal. Para isso, foram feitas perguntas como: qual o principal meio de informação você utiliza? Qual jornal você costuma ler? Com que frequência você o consome? Qual ou quais parte(s) do jornal você lê? Como resultado desse levantamento, observamos que os alunos, em sua maioria, liam o jornal uma vez por semana, normalmente o de menor custo e liam as partes destinadas ao público feminino. Tais informações nos auxiliaram na seleção de alguns gêneros e no descarte de outros, como, por exemplo, o caderno de esportes, já que não era de interesse da turma. •146

Com isso, os professores, ao longo do projeto de trabalho, se preocuparam em disponibilizar aos alunos textos da esfera estudada, para que, a partir desse contato, pudessem entender o real objetivo das diferentes enunciações.

A CAPA

No estudo da capa, fizemos uma comparação de várias capas de jornais que circulam na cidade em que moram os alunos, Rio de Janeiro, fazendo intervenções para que eles pudessem apontar características comuns à capa de todos os jornais, além das particularidades de cada uma. Nessa observação, os alunos também puderam analisar as diferenças nas manchetes, nos preços, nos nomes, nos tipos de informações escolhidas e no motivo pelo qual foram escolhidas para compor a capa do jornal. Algumas atividades foram propostas em sala para os alunos a fim de que pudessem se apropriar do gênero. Podemos citar uma em que os alunos tiveram que montar uma capa de um jornal de baixo custo, apontando os motivos de suas escolhas, e de um jornal de custo mais elevado. Essa atividade

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envolve não só aspectos críticos dos alunos, mas também aspectos linguísticos, baseados no que já é veiculado no mercado.

NOTÍCIAS

Os estudos do gênero notícias foram realizados com a leitura de notícias selecionadas pelos alunos. Observando, sempre, as características do gênero para que ao produzirem suas próprias notícias pudessem alcançar os objetivos requeridos pelo mesmo. Ao trabalharmos as características do gênero notícia, buscamos apontar que algumas informações são cruciais para que o leitor entenda a mensagem a ser dada. Para isso, o autor precisa selecionar informações que garantam a clareza e informatividade de sua notícia. Após o contato e a exploração do gênero, os alunos da turma produziram três notícias para o jornal PRONATI. No caderno de notícias intitulado “Aconteceu no PROALFA”, saíram três notícias com as seguintes manchetes: “Corpo e mente em movimento gera uma vida mais sustentável”, “PROALFA chegou perto do resultado oficial das eleições de 2014” e “Descoberta do jornalismo, da gráfica e redação do jornal O Globo empolgou as alunas da UNATI I” . Para que as notícias pudessem ser verídicas, os alunos realizaram algumas atividades para, posteriormente, produzirem a notícia. A primeira notícia foi fruto da participação da Oficina da memória realizada pela UNATI, a segunda foi realizada após uma simulação da eleição feita pela turma no PROALFA e a terceira foi produzida após a visita realizada pelos alunos da turma à redação e à gráfica do jornal O Globo.

NOTÍCIAS IDEAIS

As notícias ideais foram uma extensão do estudo do gênero notícias, mas baseado na crônica Os Jornais, de Rubem Braga, possibilitando a ampliação e a reflexão do conteúdo veiculado nas notícias, além da produção autônoma, criativa e individual dos alunos. As manchetes produzidas pelos alunos foram: “O povo brasileiro pede paz”, “Mais e melhores oportunidades no mercado de trabalho”, “A polícia entra na favela para acolher as crianças”, “O país encontrou a solução para o desmatamento”, “Cientistas descobriram a cura do câncer”, “Governo oferece residência para sem teto”, “Como evitar no futuro a falta de água”, “O sistema de irrigação que acaba com a seca do Nordeste”. No início desse artigo, apresentamos que os alunos não são submetidos a testes de desempenhos, mas, com o produto dessa etapa do trabalho, podemos verificar quais os alunos se apropriaram mais do gênero ao analisar os temas apontados na manchete. A crônica de Rubem Braga faz uma crítica aos assuntos escolhidos para serem veiculados pelo jornal atrelado à banalização da vida humana. Com a interpretação e as leituras feitas da crônica, os alunos deveriam produzir notícias que veiculassem informações que jamais seriam escolhidas para o jornal vendido. Entretanto, se notarmos os temas das manchetes, nos certificaremos de que alguns alunos trouxeram temas muito prováveis à realidade, não sendo, talvez, um ótimo exemplo de notícia ideal, proposto na atividade.

PROPAGANDAS

No que diz respeito ao gênero propaganda, foram trabalhados, na oficina de leitura, aspectos como: intencionalidade, público alvo, cores, imagens, informações oferecidas, etc. Além de aspectos gramaticais como os verbos, campos semânticos, pontuação, intertextualidade e outros

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que compõem e classificam o gênero. Para o produto final, a turma produziu em conjunto uma propaganda do projeto, no qual estão inseridas.

As novelas que entraram na disputa foram unanimidade da emissora de TVGlobo, são elas: Salve Jorge, com cinco estrelas; Avenida Brasil, com quatro estrelas; Rei do Gado, com três estrelas e Vale Tudo, com duas estrelas.

CRÔNICA CLASSIFICADOS POÉTICOS A exploração do gênero crônica foi realizada pela oficina de produção de textos, utilizando o mesmo processo pedagógico que as aulas com os professores regentes e a oficina de leitura; Exposição ao gênero, interpretação e produção autônoma do gênero. Algumas crônicas utilizadas ao longo do processo foram: Burro sem rabo, Ela, Suflê de chuchu, Vida em Manchetes e Queixa de defunto. Ao longo do semestre e entre as leituras, os alunos produziram algumas crônicas individualmente, que puderam ser revisadas algumas vezes para melhor desenvolvimento do gênero. Para o produto final, foi produzida uma crônica coletiva da turma com colagens de manchetes verdadeiras retiradas de jornais, baseando-se na crônica Vida em manchete, de Luís Fernando Veríssimo.

OPINIÃO DAS MULHERES

Essa sessão é parte de um gênero mais específico em que o leitor tem poder de voto, no jornal O EXTRA, chamado Melhores do Ano. Para o jornal PRONATI, decidimos fazer uma mistura do melhores do ano com a sessão de novelas, em que as alunas puderam votar nas melhores novelas que assistiram. Nessa etapa do trabalho, as alunas conduziram quase todo o processo, visto que elas mesmas indicaram quais as novelas entrariam na disputa e produziram a legenda que faz referência à novela indicada. •148

O estudo dos classificados foi realizado em duas etapas. Primeiro fizemos uma análise do gênero classificado que é veiculado no jornal, pesquisamos sua estrutura, os verbos utilizados, a quantidade e o tipo de informação. Posteriormente, selecionamos e analisamos os classificados poéticos do livro Classificados Poéticos, da Roseana Murray. Com a intercessão dos dois tipos de classificados os alunos puderam notar as igualdades e as diferenças entre os dois tipos de classificados. E como proposta para o produto final os alunos produziram individualmente classificados poéticos para o jornal PRONATI. Além de se apropriarem do gênero, os alunos puderam desenvolver sua criatividade pedindo, por exemplo, um romance de uma noite, uma nora melhor, trocar o caos da cidade pelo bem estar do campo, seus defeitos por qualidades. Observamos que puderam fazer uso do gênero não só para questões concretas e práticas do dia a dia, mas também para questões que envolvem o campo criativo e afetivo, que, para o grupo, é de extrema importância e os motiva, porque lhes causa prazer ao produzir através dessa proposta.

DELÍCIAS

Na seção das receitas, não precisamos fazer grande exploração do gênero, visto que a turma é composta por mulheres e já dominam o gênero há mais tempo. Mesmo alunos com dificuldades de

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decodificação, se conhecem o gênero ao qual o texto pertence, conseguem facilmente elaborar um texto pertencente a tal gênero. Pedimos aos alunos que elaborassem alguma receita de família e os alunos trouxeram receitas que faziam parte da história da sua vida, como uma aluna que trouxe a carne seca com abóbora que gostava de fazer para seu marido, outra aluna trouxe a sopa de ervilha com camarão feita por seu pai e outra aluna que trouxe a receita prática, da sardinha na panela de pressão, que costuma fazer no dia a dia. Fizemos também, coletivamente, a receita de Como viver bem, baseada em Receita de olhar, também da autora Roseana Murray. Outra intercessão do gênero receita com o gênero poesia, que possibilitou, mais uma vez, a produção autônoma e criativa dos alunos.

DIVERSÃO

Na seção de diversão do jornal PRONATI, estão os jogos produzidos e baseados nas oficinas de matemática, em que os alunos ao longo do semestre exploraram a leitura de gráficos e os jogos de raciocínio lógico presentes no jornal. Para o produto final, foram produzidos os gráficos da notícia “Proalfa chegou perto do resultado oficial das eleições de 2014” e os jogos de sequência lógica da seção de diversão.

CARTA AO LEITOR

Para o produto desse caderno, foi necessário a leitura do gênero carta e a presença dele no jornal. Apontamos sua função, seu espaço e seu poder dentro da esfera jornalística. No jornal PRONATI, saíram quatro cartas

ao leitor: três destinadas às coordenadoras do programa e uma ao projeto no qual estão inseridas. Na carta ao leitor, os alunos estiveram livres para agradecimento e/ ou reclamações, mas só tiveram elogios tanto ao programa quanto às coordenadoras, mostrando a satisfação de fazer parte do programa.

BREVES CONSIDERAÇÕES

Traçamos uma abordagem do ensino dos gêneros da esfera jornalística dentro de uma proposta não formal de ensino. Os alunos não foram submetidos a testes de desempenho, nem obtiveram notas ao fim do semestre. Apesar disso, foram capazes de se apropriar de uma esfera que abrange vários gêneros discursivos de presença significativa em seu cotidiano. A proposta adotada para trabalho também se diferencia do que vemos em grande parte das escolas, onde os gêneros são apresentados já com suas características fechadas e não a partir da observação e análise como fizemos com a turma. Acreditamos, dessa forma, que o conhecimento seja construído pelo aluno a partir da sua interação com os gêneros e não a partir de uma apresentação de características pré-definidas dos mesmos. Seguindo o que nos aponta Soares (2010) em:

Os gêneros do discurso são apropriados pelos indivíduos quase do mesmo jeito que a língua materna, pois é por meio de enunciações concretas, e não através de dicionários ou gramáticas, que os sujeitos assimilam as formas da língua. (p.38).

Por esse motivo, foi importante a proposta

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utilizada durante o projeto de trabalho. Visto que, após a observação, pesquisa, interação da turma com os gêneros e a escolha do produto final, foi possível desenvolver o estudo dos gêneros com criticidade e apropriação das características de cada um destes.

O gênero estabelece, pois, uma interconexão da linguagem com a vida social. A linguagem penetra na vida por meio de enunciados concretos e, ao mesmo tempo, pelos enunciados a vida se introduz na linguagem. Os gêneros estão sempre vinculados a um domínio da atividade humana, refletindo suas condições específicas e suas finalidades. (p.61).

Soares (idem) nos mostra a eficácia desse método quando nos sinaliza que:

Será, pois, o desconhecimento dos gêneros que circulam em uma dada esfera da comunicação, e não a ignorância as formas da língua, que poderá impedir o sujeito de participar satisfatoriamente de uma situação de interação verbal, seja ela oral ou escrita. (p.38).

Foi com o desenvolvimento de aspectos linguísticos, envolvendo a leitura e a escrita, que os alunos puderam apresentar seus conhecimentos no produto final, mostrando, assim, o domínio dos gêneros explorados. Dessa forma, percebemos que o projeto de trabalho possibilitou aos alunos um olhar diferenciado e mais consciente do jornal. Para esses alunos, entender, desvendar e se apropriar dos gêneros possibilitou maior participação e atuação no mundo do qual fazem parte. Surpreender-se ao desvendar a linguagem, se sentir superior ao poder de uma propaganda ou perceber que pode pensar sobre qual é o melhor veículo a ser lido é de extrema importância, pois se percebem como pessoas em transformação no mundo em que vivem. Desse modo, ressaltamos, mais uma vez, que o gênero discursivo faz parte do cotidiano do homem, como nos aponta Fiorin (2008):

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Notamos que, ao final do semestre, os alunos passaram a interagir de forma diferente com o jornal, pois ele passou a fazer parte do seu cotidiano. O jornal deixou de ser aquele gênero ao qual todos, aparentemente, sabiam da importância, mas não possuíam conhecimento necessário para explorá-lo. Deixou de ser aquele jornal composto de cadernos repletos de palavras desconexas, tornando-se, assim, o rico jornal no qual se encontram variados textos com diferentes funções discursivas. Desse modo, podemos notar na atuação enquanto professor regente, que o estudo dos gêneros discursivos é de extrema importância para a apropriação da linguagem como um todo. Podemos dizer que se apropriar da língua por meio da interação, análise e posterior sistematização dos gêneros é um meio eficaz de aprendizagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. “A educação popular e a educação de jovens e adultos: antes e agora”. In: Formação de Educadores de Jovens e Adultos.

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Org. Maria Margarida Machado. Brasília. Secad/ MEC,2008.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008.

MURRAY, Roseana.Classificados poéticos. 4ª ed. São Paulo: Moderna, 2010. ________, Receitas de olhar. 3ª ed. São Paulo: FTD, 1999.

VERÍSSIMO, Luís Fernando. Comédias para se ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva,2001. ________,O Nariz e Outras Crônicas . São Paulo: ed. Ática, 1994.

SABINO, Fernando. A mulher do vizinho. Rio de Janeiro: Ed. do autor, 1962, p. 10-12

SANTOS, Joaquim Ferreira dos. As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

SOARES, Josiane de Souza. “Pra você ensinar, você tem que aprender”: Gêneros discursivos e ensino de língua materna: o que dizem as professoras de português. Dissertação (Mestrado em educação), Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2010.

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JANE EYRE – DO LIVRO PARA A TELA Raquel Oliveira Barbosa (Graduação ― UERJ)1 RESUMO O presente artigo investe em uma breve análise do clássico da literatura inglesa, Jane Eyre, de Charlotte Brontë, e a representação recorrente de sua personagem principal no cinema ao longo das últimas décadas. O propósito desse artigo se baseia em refletir o papel da mulher e sua relação com o sexo oposto, tendo em mente a posição da classe trabalhadora no século XIX, e um possível diálogo entre a obra e suas adaptações, assim como a observação das diferentes releituras ao longo desse processo.

Palavras-chave: cinema; adaptação; mulher; Jane Eyre

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A época vitoriana que vai de 1837 a 1901, foi o momento histórico conduzido pela rainha Vitória na Inglaterra. Este período foi marcado por uma grande turbulência na sociedade inglesa nos campos intelectuais, filosóficos, econômicos e religiosos ocasionando uma efervescente produção literária, na qual se destacaram, da isolada paróquia de Yorkshire, as irmãs Brontë que através de suas obras refletiam e questionavam o papel da mulher nessa sociedade moralizante e repressora. Uma dessas irmãs, Charlotte Brontë, publicou em 1847 o livro Jane Eyre, sob o pseudônimo de Currer Bell a fim de preservar sua identidade em uma sociedade que repudiava o trabalho intelectual feminino. Em seu livro, Charlotte Brontë narra a trajetória de uma jovem órfã deixada aos cuidados de sua tia abastada, Sra. Reed, porém, a mesma a rejeita por sua atitude “selvagem e passional”. Jane, então, é mandada para um internato, de onde só sairá na idade adulta para ocupar a posição de precepto-

ra de Adéle Varens, tutelada de Edward Rochester, de Thornfield Hall, e a partir de então, começa a jornada de nossa protagonista. Desde sua publicação, este é um livro que tem causado admiração em seus leitores devido à força, persistência e superação da personagem principal, portanto, com o surgimento do cinema não é de se admirar que o romance tenha sido adaptado tantas vezes. Embora haja várias adaptações, esse artigo tratará apenas da versão de 1943, tendo Orson Welles e Joan Fontaine como personagens principais, e a versão de 2011, em que Mia Wasikowska e Michael Fassbender revivem Jane Eyre e Sr. Rochester respectivamente, uma vez que essas versões serão consideradas como marco inicial e final no processo de releitura e representação do enredo. Algo, de extrema importância, a se ter em mente reside no fato de a adaptação cinematográfica ou televisiva não se tratar de mera cópia do romance trata-se de uma linguagem sendo transmutada a outra, ou seja, a linguagem escrita para a linguagem audiovisual. Linguagem esta que representa as visões e perspectivas, ora do diretor, ora do roteirista e a contribuição dos atores no desempen-

* Graduanda do curso de Letras / Inglês e suas Literaturas - Universidade do Estado do Rio de Janeiro •152 Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016


ho da caracterização dos personagens e na fluidez da história. CINEMA E LITERATURA

A partir do séc. XIX, com o surgimento da imprensa, há um crescente desenvolvimento e consumo do romance literário, uma vez que este atende a uma necessidade da sociedade burguesa de se ver representada no universo cultural, porém somente no séc. XX surgirá a verdadeira arte burguesa, o cinema, já que este se caracteriza como um instrumento artístico proveniente da máquina e todas as artes praticadas e apreciadas pela burguesia são anteriores a ela. O cinema é a arte criada pela burguesia. O cinema e a literatura se assemelham pelo seu aspecto narrativo, já que ambos se baseiam no entrelaçamento e sequenciamento de ideias, tramas e conflitos, entretanto, como dito anteriormente, se diferenciam no que diz respeito ao aspecto da linguagem, já que a literatura se utiliza da linguagem escrita e o cinema, da linguagem audiovisual. Devido a isso, o cineasta sueco Ingmar Bergman em um artigo publicado pela revista Horizon em setembro de 1960 faria uma declaração radical dizendo que o “Cinema nada tem a ver com a Literatura, as duas formas de arte estão, frequentemente, em conflito” (BERGMAN, 1960, p.4-9) e complementando essa ideia de autonomia entre as duas formas de arte, Linda Gualda dirá que “A primeira consideração a ser feita é que estamos tomando a obra cinematográfica como uma tradução da obra literária, pois ambas são inteiramente independentes, mas, ao mesmo tempo estão intimamente relacionadas” (GUALDA, 2010, p.204). Portanto, entende-se a adaptação como uma recriação do texto original, retirando, acrescentando e/ou modificando aspectos da obra, no qual o filme foi inspirado.

REALIDADE X ILUSÃO

Em dezembro de 1895, se deu a primeira exibição cinematográfica no Grand Café em Paris. Eram filmes curtos, em preto e branco e sem som algum, porém, a audiência se impressionou com a chegada de um trem à estação. Todos sabiam que não se tratava de um trem verdadeiro, não havia som, não havia cor, mas a imagem parecia verdadeira, e a partir disso surgiria a magia do cinema: a ilusão, a impressão da realidade, o cinema nos daria a oportunidade de assistir à ficção como se fosse algo real. Atualmente com os novos recursos tecnológicos, os filmes digitais não necessitam de rolos e não se utilizam da ilusão de ótica que era usada no passado, uma vez que esse processo se dava com a sobreposição de várias imagens a certa velocidade criando a impressão de movimento. Porém, assim como a literatura, o cinema pode se envolver com o conceito de verossimilhança, apresentando a ficção, mas se aproximando do que poderia ser real; surge então o interesse e muitas vezes a identificação do público com o que é narrado na história e vivenciado pelos personagens. Apesar disso tudo, a questão pode ser ainda mais relativizada, no que diz respeito às adaptações, se a audiência tiver em mente a obra literária como o parâmetro real e a adaptação como o ilusório, já que muitas vezes se entende que o filme não está sendo fiel ao livro, ou seja, não condiz com a realidade esperada pelo espectador.

JANE EYRE: IDENTIDADE E TRABALHO FEMININO

A protagonista de Charlotte Brontë se apresenta como a mulher que tem voz e será através de sua fala que a autora vai construindo a identidade da protagonista ao longo da narrativa. Essa característica pode ser percebida logo nas primeiras páginas, quando Jane briga com seu primo John e

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declara “– Menino malvado e cruel – disse eu – Você é como um assassino, é como um feitor de escravos, é como os imperadores romanos!” (Jane Eyre, p. 16). Nessa declaração, nota-se a percepção que a jovem tem em relação ao estado de opressão a que é submetida por seus familiares que esperam que ela se encaixe no perfil da órfã amável, calada e agradecida. Em outro momento, no qual Jane é punida pela briga, Bessie, a babá, a critica por agredir o jovem patrão e Jane a interpela “– Patrão! Meu patrão como? Eu sou alguma criada?” (Jane Eyre, p.19); mais uma vez a protagonista se revela através de seu discurso demonstrando não aceitar a posição que lhe cabe. Além de não aceitar sua subserviência, a expressão da verdade como é encarada pela personagem também se torna uma forma de defesa contra a opressão sofrida, e isso será uma constante ao longo do romance, pois Jane usará o mesmo instrumento de defesa contra Sr. Rochester e St. John Rivers, uma vez que ambos tentarão conduzi-la ao papel de esposa aos moldes do que se espera no período vitoriano, uma mulher controlada e abnegada, despojada de pensamento e vontade própria. O papel que cabe à Jane é o de preceptora, uma mulher sem recursos, porém inteligente que usará seu conhecimento como meio de sobrevivência. A governanta no séc. XIX se fazia extremamente necessária no seio familiar, entretanto, sua posição era bastante atípica, uma vez que estava intimamente ligada à família que servia, mas não era parte dela. Estava em constante contato com as crianças, geralmente meninas, já que os meninos costumavam frequentar internatos, era responsável por sua educação formal que se constituía ao ensino de francês, piano, dança e o manejo em trabalhos manuais. No entanto, além de não ser bem vista no corpo familiar, também não era aceita pelos serventes. A governanta estava fadada a viver numa espécie de cárcere proporcionado pela família à •154

que servia e “para sentir-se confortável em seu trabalho, bastaria à preceptora reconhecer o lugar que devia ocupar e mostrar o desejo de encaixar-se bem nele”. (SEWELL, 1865, p. 413). Algo que Jane tem extrema dificuldade em fazer desde o início do livro: o reconhecimento do lugar que lhe é devido não é o suficiente para que se sinta satisfeita, embora ela estivesse em um lar no qual era bem tratada. “Era inevitável; a inquietação estava em minha natureza, e às vezes me agitava até doer. Então meu único alívio era caminhar ao longo do corredor do terceiro andar” (Jane Eyre, p. 154).

JANE EYRE E SUAS ADAPTAÇÕES

Em 1944, seria lançado no cinema uma das versões mais conhecidas do clássico de Brontë, tendo como personagens principais, Orson Welles e Joan Fontaine, com roteiro escrito por Aldous Huxley, o mesmo autor de Admirável Mundo Novo. Essa versão cria uma espécie de paradigma para as versões que viriam a seguir, e embora apresente alterações importantes, a versão de 2011 segue o mesmo padrão da narrativa clássica. A adaptação de 1943 como exemplo de narrativa cinematográfica clássica, se divide em três partes: a primeira, que é a introdução, onde se caracteriza o protagonista e o contexto da história. Na segunda parte, tem-se o desenvolvimento com algum conflito a ser superado e por fim, a terceira parte com o desfecho e resolução do conflito. Assim sendo na primeira parte, é estabelecida a personalidade passional de Jane e a dureza de sua infância na casa da Sra. Reed, sua tia. Na segunda parte, tem-se o conflito gerado pela tentativa de casamento malsucedido, no qual uma vez que o Sr. Rochester possui uma esposa viva, ele não poderia se casar com Jane. E finalmente, a resolução do conflito se dá pelo retorno de Jane à Thornfield Hall, a descoberta de que Bertha está morta e a possibili-

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dade de um final feliz ao lado do seu ex-patrão. Outro elemento interessante nessa versão é a presença do narrador autodiegético (ou de terceira pessoa), onde o narrador e protagonista coincidem relatando e vivenciando os eventos da história, e consequentemente dando à narrativa um efeito mais autêntico e criando uma relação de maior intimidade com o espectador. Já a versão de 2011, embora seguindo os padrões da narrativa clássica, alguns deles são modificados. Cary Fukunaga, diretor dessa adaptação, inova ao utilizar-se do recurso de anacronia, ou seja, inversão na ordem dos eventos; isso pode ser feito através de flashback, que é a visitação a eventos no passado, ou flashforward, que se dá pela antecipação de situações futuras. Nesse sentido, Fukunaga cumpre o que “dizia Godard sobre seus próprios filmes que eles tinham um princípio, meio e fim…, mas não necessariamente nessa ordem” (NOGUEIRA, 2010, p. 83). Nessa adaptação, seguindo as divisões da narrativa clássica, o diretor opta por apresentar Jane em sua fuga após a revelação de Rochester ser um homem casado, para somente então, caracterizar sua infância. Portanto, o filme apresenta um hook, ou seja, um elemento capaz de chamar a atenção do espectador e ao mesmo tempo inspirar curiosidade e estabelecer o contexto da história. Jane, aqui, não se apresenta como a menina órfã procurando seu lugar numa sociedade que a despreza por ser mulher e sem recursos financeiros, e que a obriga a se encaixar em um molde que não lhe agrada. A protagonista caracteriza-se como “a fugitiva”, a mulher que foge da opressão e da subserviência, mesmo quando essa é infligida pelo homem que ama. A partir de então, o filme abordará sua estadia com os Rivers no primeiro momento do filme e através de flashbacks se dá o retorno à sua infância, a vida na escola, até a chegada a casa de Rochester e o momento que ficam noivos, e o segundo momento se dá com a revelação da existência Bertha Mason, esposa de Rochester, que vive no sótão da mansão. Dessa forma, o segundo momento, torna-se cíclico,

uma vez que retorna à primeira parte do filme e une-se a ele, através da fuga. E, finalmente, a terceira parte se dá com a recusa dos insistentes pedidos de casamento de seu primo Rivers e seu retorno a Thornfield Hall, o que na verdade seria mais uma fuga, mas dessa vez de um casamento sem amor. Assim, se chega à conclusão, que, embora o cinema e a literatura estejam ligados pela estrutura narrativa, ambos diferem pelo aspecto da linguagem usada e também pelo efeito causado no espectador e/ou leitor. Não se pode esperar que uma obra literária seja integralmente concretizada na tela do cinema, pois esse recurso possui elementos próprios característicos que serão utilizados no momento em que se é feita a adaptação, criando assim uma nossa obra.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIAS

BERGMAN, Ingmar. Why do I make movies?. Horizon; New York, V. 3, N. 1, p. 4-9. September; 1960.

BERNADET, Jean C. O que é cinema? São Paulo; Brasiliense, 1985.

BRONTË, Charlotte. Jane Eyre. São Paulo; Paz e Terra, 1996.

GUALDA, Linda C. Cinema e Literatura. Elo e confronto. Matrizes; São Paulo, V. 3, N. 2, p. 201-220. Jan-Jul / 2010.

MONTEIRO, Maria C. Figuras errantes na Literatura Vitoriana. Fragmentos; Florianópolis, V. 8, N. 1, p. 61-71. Jul-Dez/1998.

NOGUEIRA, Luis. Manuais de cinema I: laboratorio de guionismo. Covilhã:Labcom, 2010.

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ENTRE O CLARO E O ESCURO: EUCLIDES DA CUNHA CONVIDA REMBRANDT Juliana Barcellos da Silva (Graduação – UFRJ)1 Luisa Serrano Lima (Graduação – UFRJ) Sérgio Eduardo Correa Santos (Graduação – UFRJ) Tamara de Souza Mendes do Nascimento (Graduação – UFRJ)

RESUMO Rembrandt van Rijn, renomado pintor holandês do século XVII, é conhecido por sua visão extraordinária ao pintar retratos e quadros que, em sua essência, trazem à luz o lado mais obscuro da alma humana. Talvez por esse motivo, Euclides da Cunha, em seu D ​ iário de Expedição (1939), o cita como o único capaz de relatar, por meio de sua pintura, uma cena aterradora presenciada pelo autor durante a desastrosa campanha de Canudos. Entretanto, é possível notar que Euclides fez tal relato diversas vezes na polissemia​ d’Os Sertões (1902). Sendo assim, a presente pesquisa tem como objetivo explorar as pontes entre a escrita euclidiana e a pintura rembrandtiana que revelam o barroquismo despretensioso apresentado por ambos em suas obras.

Palavras­chave:​Barroquismo. Rembrandt. Euclides.

Tendo em vista que “O Barroco é uma arte alegórica que exprime uma experiência do sofrimento, da opressão, do negativo” (BENJAMIN, 1984, p. 30), torna­se evidente traçar aspectos comuns entre ​Os Sertões​, de Euclides da Cunha, e esse estilo de época. Pela crueldade do evento em Canudos, que foi por ele até certo ponto observado proximamente, o indivíduo euclidiano esforçou­se para tentar projetar em palavras, diante daquela guerra, a sua perspectiva sobre o homem e a luta. Interveio, pois, no que deveria resultar numa fria encomenda: o pesar, a compaixão e uma mutável análise daquela situação advinda da observação – direta ou indireta. Sobre as bases da “denúncia do divórcio entre a ciência e a arte” (SOUZA, 2009, p. 71), surgiu, então, ainda que despretensiosamente, um traçado do estilo Barroco, pois “na visão euclidiana em que a arte e ciência se consorciam, o poetar pensante e o

pensar poético solicitam o desempenho dramático do refletor, que consiste em filtrar emocionalmente os fatos representados” (SOUZA, 2009, p. 71). Na aparente dificuldade em trabalhar com as tensões humanas na arte da palavra, o autor de Os Sertões convidou, registrando em seu Canudos:​ Diário de uma expedição ​(2003), o pintor Rembrandt van R. a pintar com “seu pincel funério” as cenas lancinantes de Canudos:

Bahia, 12 de agosto Acabo de assistir na Estação da Calçada ao desembarcar de cerca de oitenta feridos que chegam de Canudos e não posso, nestas notas ligeiras esboçar um quadro indefinível com o qual se har-

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Estudantes de Letras Português/Literaturas na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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monizariam admiravelmente o gênio sombrio e o pincel funéreo de Rembrandt. (CUNHA, 2003, p. 37).

Admirador do holandês, Euclides provavelmente visualizou que “ele tinha ‘atividade da alma’ e era capaz de penetrar fundo na pele de todos os tipos de homens” (GOMBRICH, 1999, p. 423), em suas mais variadas realidades da vida – no horror, sob as sombras ou sob a luz. Afinal, “nos grandes retratos de Rembrandt sentimo­nos frente a frente com pessoas de verdade, sentimos o seu calor humano, sua necessidade de simpatia e também sua solidão e sofrimento” (GOMBRICH, 1999, p. 423). Igualmente com trabalhos encomendados, van Rijn se apropriou de sua independência como

artista para seguir, até a criação, por um caminho que começa na objetividade, porém excede esse sentido inicial e passa por sua subjetividade – estando à mercê de uma observação muito particular – dando, assim, por fim, no resultado da forma artística. Ambos, pintor e escritor, no que tange aos aspectos singulares do criador, se colocaram em meio ao estilo Barroco, tornando-se barrocos no espírito e no modo de retratar o Humano. Por meio dessa pessoalidade acentuada, o pintor construía sua liberdade pictórica ao escolher, em alguns momentos, os modelos que desejava retratar. Em um desses casos, temos o famoso quadro intitulado Dois Negros (1661), em que Rembrandt, oposto a uma tendência de sua época, na qual a tonalidade real era manipulada segundo preferências estéticas, preservou o tom de pele dos indivíduos.

REMBRANDT, Dois Negros, 1661. (Óleo sobre tela, 77.8 x 64.5 cm. Museu Mauritshuis, Holanda.) Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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Essa pintura fotográfica remete a um excerto no qual o relato traz um homem negro puro, espigado e seco que “chegou arfando, exausto da marcha aos encontrões e do recontro em que fora colhido” (BERNUCCI, 2009, p. 731) para testemunhar em meio à guerra de Canudos, como aponta o título “Depoimento de uma testemunha”. Pela informação de que o indivíduo, um preso, fora conduzido ao general João da Silva Barbosa, podese suspeitar do confronto real de Euclides com tal situação e de sua escolha pela inclusão desta em seu livro, assim como Rembrandt, que pintou dois homens reais não extraídos de estórias e histórias ou de sua própria imaginação.

Depoimento de uma testemunha [...] Um negro, um dos raros negros puros que ali havia, preso em fins de setembro, foi conduzido à presença do comandante da 1.ª coluna, general João da Silva Barbosa. Chegou arfando, exausto da marcha aos encontrões e do recontro em que fora colhido. Era espigado e seco. Delatava na organização desfibrada os rigores da fome e do combate. A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente curvo. A grenha, demasiadamente crescida, afogava-lhe a fronte estreita e fugitiva; e o rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanugem espessa da barba, feito uma máscara amarrotada e imunda. Chegou em cambaleios. O passo claudicante e infirme, a cabeça lanzuda, a cara exígua, um nariz chato sobre lábios grossos, entreabertos pelos dentes oblíquos e saltados, os olhos pequeninos, luzindo vivamente dentro das órbitas profundas, os longos braços desnudos, oscilando — davam-lhe a

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aparência rebarbativa de um orango valetudinário. (CUNHA, 2009, p. 731).

A imagem é semelhantíssima à do pintor: “A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente curvo. [...] Chegou em cambaleios. O passo claudicante e infirme, a cabeça lanzuda, a cara exígua, um nariz chato sobre lábios grossos, [...]” (BERNUCCI, 2009, p. 731). As “órbitas profundas” parecem descrever os olhares de Dois Negros (1661), dos quais um, de porte mais firme, sustenta o outro. Muito se nota no trecho a precisão dos detalhes pela não tentativa, igualmente à proposta de Rembrandt, de mascarar as especificidades da raça em sua forma e estado. Entretanto, ainda no escrito, lê-se um adendo de caráter duvidoso ao dizer que “davam-lhe a aparência rebarbativa de um orango valetudinário” (BERNUCCI, 2009, p. 731), como se o preso assim fosse observado por terceiros. Além desses retratos sensíveis, o holandês é conhecido por ser um dos pintores que mais pintaram autorretratos, característica essa que ressalta a sua preocupação em conhecer a si e, assim, entranhar com mais facilidade na pele e na alma daqueles que retratava. Talvez por esse motivo, seus autorretratos apresentem uma tensão, um embate, que era representado por meio do jogo de luzes utilizado por ele, mais precisamente o claro­escuro, que permeia grande parte de sua obra. Seu rosto muitas vezes se encontra envolto em sombras, confrontando o espectador de forma que ele preencha esses “vazios” com suas impressões pessoais ou sua própria imaginação. Toda essa construção pode ser observada em seus autorretratos nos instantes da jovialidade e da velhice, momentos que fizeram Rembrandt variar sua concepção desse gênero pictórico para que cada vez mais ele pudesse “fazê­lo da forma mais verossímil para o espectador” (SANCHÉZ, 2007, p. 66).

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REMBRANDT, Autorretrato de um homem jovem, 1629.

REMBRANDT, Autorretrato com boina – inacabado, 1659.

(Óleo no painel, 15.5 x 12.7 cm. Museu Alte Pinakothek, Alemanha.)

(Óleo no painel, 30.7 x 24.3 cm. Museu Granet, França.)

Assim como o pintor, Euclides, em sua pessoalidade, escolheu, por muitos momentos, a quem dedicar suas linhas. Os sertanejos, atingidos física e psicologicamente pela guerra, foram também a centralidade do seu olhar, sob o qual o escritor, impressionado, se propôs a descrever, em seus escritos, esses semblantes sofridos, tal qual os do pintor em seus autorretratos e os dos Dois Negros (1661) que foram por ele pintados. Como podemos depreender no seguinte trecho extraído de seu diário:

Passam soldados que tornam dos sertões, feridos e convalescentes, trôpegos e alquebrados, fisionomias pálidas e abatidas, das quais ressumbra uma resignação estóica – acurvados alguns em bengalas toscas, caminhando outros amparados pelas muletas

ou pelos braços de companheiros mais robustos... E em todas as frontes e em todos os olhares o reflexo de uma dor indefinida e complexa, em que se pressente um misto de agruras físicas e morais. (CUNHA, 2003, p. 33­34).

Enquanto o holandês abusava desse jogo claro­escuro em suas pinturas, com o intuito de ressaltar e trazer a lume pontos que para ele eram mais relevantes, Euclides pautava sua escrita em recursos que tornavam mais luminescentes determinados eventos ocorridos no sertão baiano, transformando-a em algo dual, pois ora exalta ora rechaça as atitudes dos republicanos e sertanejos. Se, para Rembrandt, o jogo antitético entre as tintas construía as nuances de sua pintura, o autor fez isso por meio das modulações presentes em sua escrita – a ironia, as reticências, as sintaxes longas, etc. –,

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que auxiliaram na construção de um barroquismo, pois, segundo Bernucci:

Mesmo Euclides, que claramente criticou o ‘gongorismo da Rocha Pita’ e que de boa­fé combateu o obscurantismo estilístico decorrente dessa tendência literária do século XVII, não pôde atravessar incólume as quadras da sua própria escritura sem de alguma forma deixar de ser também barroco. Barroco é o seu modo de construir as antíteses ou os contrastes que permitem ver simultânea e alternadamente seca e chuva, a planta da floresta e do deserto ou no seio da natureza tropical um deserto, inverno e verão, extrema aridez e exuberância extrema, máxima energia orgânica e mínima fortaleza moral. Barrocos ainda são os oxímoros mendigos fartos, Hércules-Quasímodo, tumulto disciplinado, e alguns outros já lembrados por Augusto Meyer, e ainda a maneira paradoxal de apresentar a natureza que ora atrai, ora repulsa os sertanejos. [...] Finalmente, nem mesmo a sintaxe freia o ímpeto barroco

de Euclides, que cria frases em que o hipérbato adquire força expressiva, quando combinado com outro poderoso elemento do estilo desusado, a ironia, tão esmagadora que é de causar inveja ao nosso Gregório de Matos e aos mestres espanhóis Quevedo e Góngora. (BERNUCCI, 2009, p. 28 -29).

Nesse barroquismo despretensioso, vislumbramos convergência entre pintor e escritor, pois ambos se apropriaram do estilo sem serem assumidamente pertencentes a esse gênero artístico. Com o intuito cerne de denunciar o genocídio ocorrido no sertão baiano, o autor pintou as palavras com o mesmo pincel que o holandês teria pintado seus quadros. Então, explorando as pontes entre a escrita e a pintura, algumas relações diretas entre imagem pictórica e trama narrativa podem ser apresentadas, sem que haja uma postulação de que Euclides da Cunha tenha, em sua expressão literária fortíssima, se baseado diretamente nas produções pictóricas realizadas por Rembrandt. Telas e páginas se encontram no caminho do relato, da construção de imagens, tendo cada qual os seus métodos e recursos. Tais correlações podem ser presenciadas em:

● A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp e o “Quadro lancinante”

REMBRANDT, A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp, 1632. (Óleo sobre tela, 216 x 170 cm, museu Mauritshuis, Haia – Holanda.)

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Quadro lancinante Certa vez essa insensibilidade lastimável calou profundamente. Foi numa visita a um dos hospitais. O quadro do amplo salão era impressionador... Imaginem-se dous extensos renques de leitos alvadios, e sobre eles – em todas as atitudes, rígidos debaixo dos lençóis escorridos como mortalhas; de bruços, ou acaroados com os travesseiros, em mudos paroxismos de dores; sentados, ou acurvados, ou estorcendo-se, em gemidos – quatrocentos baleados! Cabeças envoltas em tiras sanguinolentas; braços partidos, em tipoias; pernas encanadas, em talas rigidamente estendidas; pés disformes pela inchação, atravessados de espinhos; peitos broqueados a bala ou sarjados a faca; todos os traumatismos e todas as misérias... (CUNHA, 2009, p. 662).

Ao nos confrontarmos com o quadro acima e com o quadro descrito pelo autor de Os Sertões, percebemos a sensibilidade com que ambos expõem suas percepções mais íntimas. De um lado, o escritor construía imagens e introduzia, em sua escrita, elementos sequenciais que formavam frases longas e reticenciosas. No trecho em que diz que “o quadro do amplo salão era impressionador…” (CUNHA, 2009, p. 662), temos a impressão de que o narrador euclidiano está diante de uma aterradora pintura, pois se cria um jogo semântico entre o significante “quadro” e seus múltiplos significados. O autor direciona a luz, ou seja, o principal eixo narrativo, para os convalescentes do massacre canudense. Já o pintor estruturou sua expressão artística de um modo semelhante ao projetar uma intensa luminosidade sobre aquele que não seria o protagonista do quadro: o cadáver. Sendo assim, Rembrandt “soube dotar de uma tensão extraordinária esses momentos de sua pintura, elevando a aula à uma condição de acontecimento dramático” (SÁNCHEZ, 2007, p. 24-25). Ambos, autor e retratista, aproximam-se por meio do viés da empatia ao dar visibilidade – em seus traçados – para aqueles que não receberiam, naquele momento, nenhuma atenção da sociedade.

● Lição de Anatomia do Dr. Joan Deijman e o “Cadáver de Conselheiro”

REMBRANDT, Lição de Anatomia do Dr. Joan Deijman, 1656. (Óleo sobre tela, 113 x 135 cm, Museu de Amsterdam, Amsterdam.) Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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“[...] que a ciência desse a sua última palavra” (CUNHA, 2009, p. 780) é a premissa, eternizada por Euclides, que rege o excerto “O Cadáver do Conselheiro”, assim como, também, a Lição de Anatomia do Doutor Deijman, de Rembrandt. A construção discursivo-imagética do evento, gerado pela curiosidade em relação ao homem, que foi capaz de movimentar multidões no sertão baiano – ainda que sob as represálias do governo –, é composta por uma sutil ironia, que deixa escapar certo estarrecimento do indivíduo euclidiano em relação ao ocorrido. Importava para o país, notou ele, acima de qualquer lei própria e natural da vida ao lidar com a morte, a certeza da extinção de Antônio Conselheiro. Semelhante, mas não comparável, a lição de fisiologia do crânio do corpo de um condenado qualquer, reconhecido como Joris Fonteyn, enforcado na época, foi também um evento pintado por Rembrandt. Autor e pintor os fotografaram, permitindo que fossem eles as figuras centrais, ao transmitirem uma interpretação psicológica de cada um dos momentos em relação a todos os fatores envolvidos. “O olhar que avança a partir das plantas dos pés, passa pelo pano que cobre as virilhas e o torso e chega até o rosto magistralmente ensombrecido” (SÁNCHEZ, 2007, p.26), como observa Sánchez, é luzente no quadro, clareando o acesso à figura mais importante: o jovem de uma antiga margem da sociedade holandesa. O recurso do pintor é não ceder maior luz a todos: uma ironia. Em Os Sertões, a mesma luminosidade recobre a cena de Conselheiro, indivíduo igualmente da riba, do instante em que o estudo clandestino de seu cérebro e de seu corpo viram exposição a uma multidão, como descreve Euclides a respeito de todos os atos realizados. Os dois artistas não eternizaram apenas um momento, mas sim os dois finados de homens.

O cadáver do Conselheiro [...] Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa – único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! –, faziam-se mis-

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ter os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma massa angulhenta de tecidos decompostos. Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava, afinal, extinto aquele terribilíssimo antagonista. Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar sua cabeça tantas vezes maldita – e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez antes aqueles triunfadores. Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra.” (BERNUCCI, 2009, p. 780).

● O cegar de Sansão e “Canudos não se rendeu”

A força da representação cênica presente no quadro O cegar de Sansão nos remete ao longo período em que o pintor trouxe a vertente sacra como base para suas composições pictóricas. Para além da mera reprodução de um trecho bíblico, Rembrandt nos transporta até a cena na qual ele mesmo parece estar assistindo a toda a violência que recai sobre Sansão ao ter seus cabelos cortados e seus olhos perfurados. Tal recurso aparece também no excerto “Canudos não se rendeu”, nos inserindo na cena. Euclides conduz seu narrador até o último dia do Arraial de Canudos e delega a ele a incumbência de descrever toda a brutalidade que os militares

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REMBRANDT, O cegar de Sansão, 1636. (2,365 x 3,025 m. Instituto Staedel, Frankfurt.)

vacilante e sem brilho. Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem... Ademais não desafiaria a incredulidade do futuro a narrativa de pormenores em que se amostrassem mulheres precipitando-se nas fogueiras dos próprios lares, abraçadas aos filhos pequeninos? [...] (CUNHA, 2009, p. 778-779).

despejaram nos sertanejos. No instante em que o narrador euclidiano nos relata que “Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados” (CUNHA, 2009, p. 778), estabelecemos um paralelo com a obra rembrandtiana e vemos nas duas expressões artísticas a exposição da crueldade que permeou esses dois momentos.

Mulher Velha Rezando e “As Rezas”

Canudos não se rendeu [...] Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la

REMBRANDT, Mulher Velha Rezando, 1630 (16 x 12 cm)

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A religiosidade não é item dispensável quando se trata do Barroco, quando se fala de um período esteticamente marcado ou de um sentimento atemporal da sensibilidade humana referente a sua postura frente ao terreno e ao divino. O excerto de Os Sertões, nomeado “As Rezas”, trata-se de um olhar muito exterior àquela fé propagada fortemente em Canudos, sob as instruções de Conselheiro. É um vislumbre dúbio do indivíduo euclidiano que nota “em cada um deles um baralhamento enorme de contrastes...” (CUNHA, 2009, p. 309), expostos para além da identificação de homens e mulheres. Fez-se poesia ao extrapolar a descrição – baseada em fatos vistos ou ouvidos –, ao dizer que “Difundia-se nos ares o coro da primeira reza” (CUNHA, 2009, p. 309). Talvez uma reza parecida com a realizada pela Mulher Velha Rezando, pintura de Rembrandt, na qual “os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras” (CUNHA, 2009 p. 309), como assim escreveu Euclides. As sombras não são elementos só das duas narrativas, mas também de seus criadores. O Pintor, “segundo uma relação consonante com a própria experiência e evolução espiritual ao longo de sua vida” (SÁNCHEZ, 2007, p. 31), independente do período artístico em que viveu, deu existência à senhora que realiza as preces e a tantos outros quadros nos quais a religiosidade, o bíblico, se fez cenário. O Escritor, que tanto pareceu lutar contra o contato com essa importante parte da vida dos sertanejos, viu-se atraído a não negar o lugar dessa fé, numa construção antitética de si e do outro, ao seu magnânimo livro.

As Rezas Ao cair da tarde, a voz do sino apelidava os fiéis para a oração. Cessavam os trabalhos. O povo adensava-se sob a latada coberta de folhagens. Derramava-se pela praça. Ajoelhava-se. Difundia-se nos ares o coro da primeira reza.

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A noite sobrevinha, prestes, mal prenunciada pelo crepúsculo sertanejo, fugitivo e breve como o dos desertos. Fulguravam as fogueiras, que era costume acenderem-se, acompanhando o perímetro do largo. E os seus clarões vacilantes emolduravam a cena meio afogada nas sombras. Consoante antiga praxe, ou, melhor, capricho de A. Conselheiro, a multidão repartia-se, separados os sexos, em dois agrupamentos destacados. E em cada um deles um baralhamento enorme de contrastes... (CUNHA, 2009, p. 309).

Ainda explorando as pontes entre as artes em questão, podemos estreitar os laços entre as obras desses dois artistas ao citarmos a inserção de si mesmo que ambos faziam em suas produções artísticas. Rembrandt muitas vezes se retratava dentro de seus quadros como observador e participante de determinadas cenas, e Euclides fazia o mesmo ao introduzir o seu “narrador sincero”, que, segundo Souza (2009), “narra a história emocionalmente sintonizado” como elemento ora participador, ora observador de alguns acontecimentos dentro da narrativa. o quadro intitulado O apedrejamento de Santo N Estêvão, obra marcada pela caprichosa encenação, temos a imagem do jovem pintor que figura na cena como um dos espectadores. O holandês aparece atrás do protagonista da pintura, observando tudo de forma atônita, sem acreditar no que vê. O mesmo estarrecimento foi vivido por Euclides ao constatar, nas páginas iniciais de Os Sertões, sua participação na desastrosa Campanha de Canudos por meio dos dizeres: “Nem enfranquece o asserto o termo-la realizado nós, filhos do mesmo solo” (CUNHA, 2009, p. 65).

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nessa menção feita pelo escritor ao pintor – privilegiamos a pintura. No entanto, as magistrais cenas construídas por Euclides poderiam ser representadas por diferentes esferas artísticas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

REMBRANDT, O Apedrejamento de Santo Estêvão, 1625. (óleo sobre painel, 89,5x123,5 cm, Museu de BelasArtes)

Em suma, é possível colocar, despretensiosamente, pintor e escritor lado a lado sob a forma do estilo Barroco. Atemporal, essa manifestação artística se apresenta pela forma singular de se retratar o mundo – subjetivo e objetivo – de Euclides da Cunha e Rembrandt, que, apesar de a proposta de criação ser, para ambos, em sua maioria, de caráter remunerado, não seguiram traços pré­estabelecidos e esperados. Os sertões, dentro desse contexto, se configura como uma obra polissêmica, pois, para além das suas múltiplas funções – literária, histórica, geológica, antropológica –, sua função literária reverbera para outras artes. Sendo assim, a diversificada linguagem extrapola os planos do discurso verbal e salta para um plano imagético, que nos transporta para as cenas aterradoras de Canudos e nos remete aos quadros de Rembrandt. O tom claro­ escuro é o principal ponto de convergência exposto em tinta na tela ou no papel, elevando, assim, o convite de Euclides ao holandês, “para esboçar um quadro indefinível” (CUNHA, 2003, p. 37), a um lugar que poderia ser, e pôde ser, de ambos, dada a genialidade de cada um. Neste artigo – baseado

BAKTHIN, Mikhael. Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance. São Paulo: Hucitec, 2014.

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______. A Lição de Anatomia do Dr. Nicolaes Tulp, 1632. 1 original de arte óleo sobre tela, 216 x 170 cm, museu Mauritshuis, Haia – Holanda.

­­______. A Lição de Anatomia do Dr. Joan Deijman, SOUZA, Ronaldes de Melo e. A geopoética de Euclides 1656. 1 original de arte óleo sobre tela, 113 x 135 cm da Cunha. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009. Museu de Amsterdam, Amsterdam. ______. O cegar de Sansão, 1636. 2,365 x 3,025 cm. Instituto Staedel, Frankfurt.

VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha – esboço biográfico. Organização de ______. Mulher Velha Rezando, 1630. 16 x 12 cm. Mario Cesar Carvalho e José Carlos Barreto de Santana. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ______.O Apedrejamento de Santo Estêvão, 1625. 1 original de arte óleo sobre painel, 89,5x123,5 cm, Museu de Belas-Artes. Rembrandt van Rijn - Auto-Retratos – Completo. Disponível em: <https://www.youtube.com/ •166

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ANAKIN SKYWALKER E DARTH VADER- DOIS NOMES, UM NOVO CONCEITO DE ANTI-HERÓI Victoria Barros de Carvalho Silva (Graduação ― Uerj)*

Vader puxou Luke para bem perto e falou em seu ouvido. “Luke, você tinha razão…e tinha razão sobre mim… Diga a sua irmã…que você tinha razão.” (KAHN, 2014, p. 516)1.

RESUMO A Jornada do Herói ou Monomito de Joseph Campbell é a conclusão da observação de mitos culturalmente diferentes nos quais há sempre a figura heroica. À mesma conclusão chegou Joseph Henderson, a partir dos ensinamentos psicanalíticos de Carl Jung. Este monomito foi utilizado pelo criador da saga cinematográfica Star Wars (Guerra nas Estrelas) na formação de uma de suas personagens, Luke Skywalker. O presente artigo utilizando o mesmo Monomito discutirá a caracterização da personagem Anakin Skywalker/Darth Vader presente na mesma saga. Contrapondo-se a categoria criada por Aline Helena Manera e Luiz Vadico, demonstrar-se-á que a personagem encarna um novo tipo de anti-herói cumprindo as características determinadas por Victor Brombert e diferenciando-se por possuir uma Jornada interrompida, porém completada.

Palavras-chave: Anti-herói, Monomito, Star Wars.

INTRODUÇÃO Joseph Campbell (1904 – 1987) foi um especialista na construção e na repercussão cultural dos mitos. Ao observar a estrutura de mitos, lendas e fábulas culturalmente diferentes o autor norteamericano concluiu que em suas narrativas há sempre a figura de um herói cuja aventura é o centro da história. Concebeu a partir disso a chamada Jornada do Herói ou Monomito, apresentado no livro O Herói de Mil Faces cuja primeira edição é de 1949. A possibilidade de uso da figura heroica

enquanto centro narrativo se encontra não somente no material analisado por Campbell, mas também na narrativa cinematográfica. Criador da saga cinematográfica Star Wars (Guerra nas Estrelas), George Lucas afirma ter lido a obra de Campbell e ter nela se inspirado ao conceber a história da personagem Luke Skywalker. O autor e o cineastra se tornaram amigos tendo aquele assistido à trilogia clássica de Star Wars a convite de seu criador (CAMPBELL, 1990, p. 08). A opinião de Campbell sobre a trilogia era a de que “Lucas imprimiu a mais nova e mais poderosa rotação ‘à história clássica do herói’ (Ibid., p. 08), pois

* Graduanda do 5º semestre do curso de Letras Português/Italiano da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com ênfase em literatura italiana e cultura pop. victoriabarros2005@gmail.com 1 KAHN, James. Star Wars Episódio VI: O Retorno de Jedi. In: LUCAS, George. Star Wars: a trilogia. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2014, p. 366-521. (Trad. Peterso Rissatti).

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conseguiu transmitir temas e motivos mitológicos de forma contemporânea” (Ibid., p. 08).

O CONCEITO DE HERÓI E A PSICANÁLISE

A forma contemporânea a qual Campbell se refere é ao sistema burocrático o qual é imposto, questionando: “Como se relacionar com o sistema de modo a não o ficar servindo compulsivamente?” (Ibid., p. 159). Isto é representado através da imagem de Darth Vader, o qual “não desenvolveu a própria humanidade. É um robô. É um burocrata, vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um sistema imposto” (Ibid., p. 158). E a figura de Luke Skywalker, de acordo com o autor, é a resposta ao seu questionamento. Deve-se manter “fiel aos seus próprios ideais, como Luke Skywalker, rejeitando as exigências impessoais com que o sistema o pressiona” (Ibid., p. 159). Observa-se, então, o modo como os filmes de George Lucas lançados até aquele momento compreendem o Monomito de Campbell adaptando-o à contemporaneidade de acordo com o próprio autor.

Ao iniciar O Herói de Mil Faces, Campbell faz algumas considerações acerca dos mitos como “a viva inspiração de todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humanos” (1997, p. 05) e produção espontânea da psique humana (Ibid., p. 06). Sua presença na modernidade, diz o autor, foi estudada pela psicologia através de Freud, Jung e seus discípulos (Ibid., p. 06) estabelecendo desde o início uma relação entre as suas análises dos mitos e a psicologia. De fato, “o simbolismo da mitologia se reveste de um significado psicológico” (Ibid., p. 139).

A partir da Jornada do Herói campbelliana aplicada à primeira trilogia cinematográfica de George Lucas na personagem Luke Skywalker, o presente artigo a aplicará à personagem Anakin Skywalker/Darth Vader da segunda trilogia. Com a jornada completada ou não e analisando sua história, se discutirá a sua classificação.: seria ela herói, vilão ou anti-herói? Ou ainda não corresponderia a nenhuma dessas categorias se encaixando na categoria criada por Manera e Vadico (2011) de vilão herói? As ações assim como a personalidade de Anakin Skywalker/Darth Vader servirão de fundamentação para discutir as classificações anteriormente citadas a partir das definições fornecidas por Joseph Campbell (1997), Joseph Henderson (2008) e Victor Brombert (2002). O artigo foca na contradição da categoria criada de vilão herói concluindo que a personagem é um anti-herói e demonstra características de tal desde o início de sua narrativa.

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A contemporaneidade dos mitos antigos existe, uma vez que os arquétipos presentes neles, e em lendas e fábulas também, não perderam o seu poder de atingir à psique humana (JUNG; 2008, p.117). A existência desse poder se dá, pois é “como se o inconsciente procurasse ressuscitar tudo aquilo de que a mente se livrara no seu processo evolutivo – ilusões, fantasias, formas arcaicas de pensamento, instintos básicos” (Ibid., p. 124). Ao conceito de arquétipo, Jung o define como o instinto manifestado em fantasias revelando, muitas vezes, a sua presença apenas através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamo arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo — mesmo onde não é possível explicar a sua transmissão por descendência direta ou por “fecundações cruzadas” resultantes da migração (Ibid., p. 83, grifo meu).

A figura do herói e seu mito, “o mais comum e o mais conhecido em todo o mundo” (HANDERSON, 2008, p. 142), configuram um arquétipo. Isto pode ser comprovado pelo trabalho de Campbell que percebeu em suas observações a presença de tal figura em narrativas de mitos culturalmente diferentes. Portanto, “isso quer

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dizer que [os mitos] guardam uma forma universal mesmo quando desenvolvidos por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultural entre si” (Ibid., p. 142).

Barriga ou ventre da baleia

Psicologicamente, a figura ou o arquétipo heroico é definido enquanto “o homem ou a mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas, pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e aspirações dessas pessoas vêm das fontes primárias da vida e do pensamento humanos” (CAMPBELL, 1997, p. 13). Além disso, exatamente por ser um herói, a criança já vem ao mundo com duas ‘virtudes’ inerentes à sua condição e natureza: A ‘honorabilidade pessoal’ e a (…) ‘excelência’, a superioridade em relação aos outros mortais (…) o que o predispõe a gestos gloriosos, desde a mais tenra infância ou tão logo atinja a puberdade (BRANDÃO, 1992, p. 23).

Estrada ou caminho de Provas

Iniciação

Encontro com a Deusa A mulher como tentação Sintonia com o Pai Apoteose Bênção ou grande conquista

Retorno Recusa do retorno Voo mágico

A estrutura geral de sua narrativa conta, a priori, a história do herói de nascimento humilde mas milagroso, provas de sua força sobrehumana precoce, sua ascensão rápida ao poder e à notoriedade, sua luta triunfante contra as forças do mal, sua falibilidade ante a tentação do orgulho (hybris) e seu declínio, por motivo de traição ou por um ato de sacrifício “heroico”, no qual sempre morre (HANDERSON, 2008, p. 42, grifo meu).

Campbell esquematizou a estrutura apresentada por Henderson em uma jornada composta por três fases – a Partida, a Iniciação e o Retorno – e dezessete etapas em seu total:

Partida Chamado à aventura Recusa ao chamado Ajuda sobrenatural Travessia do primeiro limiar

Resgate com auxílio externo Travessia ou passagem do limiar de retorno Senhor de dois minutos Liberdade de viver

A GALÁXIA DE GEORGE LUCAS

No que concerne a cronologia dos filmes de Lucas há uma divisão em duas trilogias, a chamada nova trilogia e trilogia clássica. Esta corresponde aos filmes lançados entre 1977 e 1983; aquela corresponde aos filmes lançados entre 1999 e 2005. A nova trilogia que compreende A Ameaça Fantasma (1999), Ataque dos Clones (2002) e A Vingança dos Sith (2005) reflete a prequel do tempo cronológico da Galáxia de Lucas (LUCAS, 2014, não paginado). Enquanto a trilogia clássica que compreende Uma Nova Esperança (1977), O Império Contra-Ataca (1980) e O Retorno de Jedi (1983) reflete a Era Clássica. A personagem Anakin Skywalker/Darth Vader é quem serve de conexão entre esses dois períodos.

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QUADRO 01: SAGA STAR WARS Star Wars – Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999) Nova trilogia Star Wars – Episódio II: O Ataque dos Clones (2002) Star Wars – Episódio III: A Vingança do Sith (2005) Star Wars – Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977) Trilogia clássica Star Wars – Episódio V: O Império Contra Ataca (1980) Star Wars – Episódio VI: O Retorno de Jedi (1983)

Fonte: BONA & PERTUZZATTI, 2009, p. 07.

QUADRO 02: CRONOLOGIA DE STAR WARS Prequel

Era Sith

Era Clássica

Star Wars – Episódio I: A Star Wars – Episódio IV: Uma Ameaça Fantasma (1999) Nova Esperança (1977) Star Wars – Episódio Star Wars – Episódio V: O II: O Ataque dos Clones Império Contra Ataca (1980) (2002)

Star Wars – Episódio VI: O Retorno de Jedi (1983)

Star Wars – Episódio III: A Vingança do Sith (2005) Fonte: a autora.

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Nova República

Nova Era Jedi


O principal mote por trás da história e marcadora dos diversos períodos temporais em Guerra nas Estrelas é a política. No período da prequel havia uma República “sob o comando astuto do Senado e a proteção dos Cavaleiros Jedi” (LUCAS, 2014, p. 12) que governava toda a galáxia sendo o presidente o Senador Palpatine. No entanto, o Senador proclamou-se Imperador e iniciou a Nova Ordem cujo marco foi a eliminação da Ordem Jedi. “Mas um pequeno número de sistemas se rebelou contra esses novos ataques. Declarando-se contrários à Nova Ordem, eles começaram a grande batalha para restaurar a Velha República” (Ibid., p. 14). A Era Clássica, portanto, possui como principal marca a rebelião iniciada em prol do retorno da democracia. Proclama-se como marco inicial da Nova Ordem criada por Palpatine a eliminação da Ordem Jedi, pois esses eram “os guardiões da justiça da galáxia” (Ibid., p. 13) e usavam a Força para defendêla. Na primeira trilogia a Força é definida sob um viés místico:

Digamos simplesmente que a Força é algo com que um Jedi precisa lidar. Ainda que nunca tenha sido devidamente explicada, cientistas teorizaram de que se trata de um campo de energia gerado por todos os seres vivos. Os homens primitivos suspeitavam de sua existência, ainda que permanecessem ignorantes de seu potencial por milênios. (…) A Força está em torno de cada um de nós. Alguns acreditam que ela comanda nossas ações, não o contrário. O conhecimento da Força e a sabedoria para manipulá-la concediam ao Jedi seu poder especial (Ibid., p. 81-82).

Acrescenta-se ainda que “é onipresente.

Ela o envolve e ao mesmo tempo que é irradiada por você. Um guerreiro Jedi sente a Força como se pudesse tocá-la de verdade” (Ibid., p. 115). Tal definição mais mística faz referência a definições encontradas em O Herói de Mil Faces em que se fala “do umbigo do mundo, do lugar sagrado, do poder que se irradia no momento da criação” (CAMPBELL, 1990, p. 159). Em A Ameaça Fantasma dá-se uma explicação ligeiramente mais científica à Força, afirmando-se que essa se encontra dentro das células do corpo. Os chamados midi-chlorians indicam a sua presença e a depender da contagem de midi-chlorians a Força será mais forte ou mais fraca em um indivíduo (MANERA & VADICO, 2011, p. 10). A definição de midi-chlorians é apresentada pelo mestre Jedi Qui-Gon Jinn que junto ao seu padawan Obi Wan Kenobi conhecem o escravo Anakin Skywalker. Este tinha o “registro [de midi-chlorians] acima de qualquer contagem. Mais de 20.000. Nem o Mestre Yoda tem contagem tão elevada. Nenhum Jedi tem” (MANERA & VADICO, 2011, p. 10) criando-se, a partir disso, a crença do jovem ser o escolhido prometido por uma antiga profecia Jedi, o único que poderia reestabelecer o equilíbrio da Força. Por isso, Qui-Gon insiste em seu treinamento Jedi. Independente da Força medida em alguém, todos os Jedi deveriam passar por um treinamento iniciado na Academia Jedi, o qual continuava com a adoção de um padawan, ou seja, um estudante por um mestre Jedi. Criava-se um ciclo no momento em que o antigo padawan, então mestre, iniciava o treinamento de outro. Havia uma faixa etária para a inscrição dos aprendizes e Skywalker já a havia ultrapassado quando é apresentado ao Conselho Jedi, no entanto, Qui-Gon Jinn pede que tal requisito não seja levado em consideração e o menino possa ser treinado. Assim como a Força pode ser usada para a abnegação do ser individual para a proteção da galáxia, ou seja, a necessidade de muitos é prioridade diante da necessidade de um único

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ser, também pode ser usada de forma individual para a conquista do poder. Essa visão configura o lado negro da força defendido pela Ordem Sith percebendo-se, então, a dualidade demarcada de forma tênue por essa e pela Ordem Jedi. Outra marca, esta de cunho visual, das duas Ordens é a cor do sabre de luz e a sua definição. A cor vermelha é característica da Ordem Sith enquanto as cores azul, verde e roxo são da Ordem Jedi. Sobre o instrumento, Obi Wan Kenobi o define como

a arma convencional de um Cavaleiro Jedi. (…) Nem tão desajeitada ou aleatória quanto uma pistola de raios. Ela exigia mais habilidade do que simplesmente mira. Uma arma elegante. E também um símbolo. Qualquer um pode usar uma pistola ou um cortador de fusão – mas saber usar de verdade um sabre de luz era sinal de que alguém era acima da média (LUCAS, 2014, p. 80-81, grifo original).

Evidencia-se o pensamento de proteção do Cavaleiro Jedi ao pensar no sabre de luz não meramente como uma arma, mas, em verdade, como “um símbolo” (Ibid., p. 80) dos ideais da sua Ordem. A diferenciação aparente e facilmente assimilável por parte do público é, segundo o coautor de O Poder do Mito, uma das razões para o sucesso da saga cinematográfica. Moyers afirma que: “ele chegou num momento em que as pessoas tinham necessidade de ver, em imagens assimiláveis, o embate entre o bem e o mal” (CAMPBELL, 1990, p. 158). Campbell complementa a afirmação dizendo que: “O fato de o poder do mal não estar identificado com nenhuma nação específica, nesta terra, significa que você tem aí um poder abstrato, que representa um princípio, não uma situação histórica específica” (Ibid., p. 158). •172

DE ANAKIN SKYWALKER A DARTH VADER

Análise de Anakin Skywalker À figura do herói se aludem dois grupos de características, o primeiro, já apresentado, se refere à honorabilidade pessoal e à excelência (BRANDÃO, 1992, p. 23). O segundo se refere à vitória da personagem sobre “suas limitações históricas, pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas. As visões, ideias e aspirações dessas pessoas vêm das fontes primárias da vida e do pensamento humanos” (CAMPBELL, 1997, p. 13). A indicação de Anakin Skywalker enquanto a figura do herói se dá em A Ameaça Fantasma quando a sua contagem elevada de midichlorians sugere que seja o predestinado por uma antiga profecia para restaurar o equilíbrio da Força. Dessa forma é demonstrada a característica da excelência heroica. Aos nove anos de idade, Anakin já havia ultrapassado a faixa etária para iniciar seu treinamento Jedi, porém Qui Gon-Jinn insiste em treiná-lo por acreditar que ele fosse o escolhido. Apresentado ao Conselho Jedi para a oportunidade de ser treinado, Mestre Yoda pressente no jovem uma inclinação para o lado negro da Força criando uma ressalva diante de seu treinamento. Ainda assim, Qui Gon-Jinn faz seu padawan Obi Wan-Kenobi prometer que, ao graduarse Jedi, treinaria Skywalker. Kenobi cumpre com sua promessa pela relação afetiva a qual mantinha com seu Mestre. A partir do episódio II, O Ataque dos Clones, as atitudes de Anakin dão embasamento à ressalva apresentada podendo-se destacar duas. A primeira atitude é demonstrada após Anakin ter visões de sua mãe, retornando a Tatooine para resgatá-la do sequestro organizado pelo Povo da Areia. No entanto, ela morre em seus braços e como vingança mata a todos do Povo sem poupar mulheres ou crianças. A segunda, ocorre em A Vingança dos Sith quando Anakin batalha com o Conde Dookan em uma missão de resgaste do então

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Senador Palpatine. Influenciado por esse, Anakin decapita Dookan sem antes leva-lo ao julgamento no Conselho Jedi, o que seria o esperado. Esta decisão atormenta o padawan demonstrando seu embate entre os ensinamentos Jedi e o lado negro da Força. Esse embate aparece quando o Mestre Jedi Windu, ao descobrir que o Senador Palpatine é, em verdade, um Sith, decide matá-lo sem julgá-lo. Anakin tenta impedi-lo, pois sabe como a decisão perseguirá o Mestre como o persegue. Esse é o último aparente vestígio de seu embate, uma vez que logo após a morte do Mestre Jedi por Palpatine passa a seguir as instruções dele comprometendose eticamente com a Ordem Sith. Seu comprometimento completo se dá quando, à beira da morte devido a queimaduras graves, lhe é posta uma armadura negra para salválo. Desperta como Darth Vader, mais máquina do que ser humano (CAMPBELL, 1990, p. 158).

Análise de Darth Vader

Ao longo de Uma Nova Esperança as figuras de Anakin Skywalker e Darth Vader são bem distintas quando Obi-Wan Kenobi as descreve para Luke Skywalker, sendo o seu primeiro contato com as duas figuras. O pai de Luke lhe é descrito como um grande piloto e amigo de Kenobi cuja Força era grande, sendo um grande Jedi (LUCAS, 2014, p. 80). Seu destino cruza o de Darth Vader quando este o trai e o mata. Kenobi conta que treinava Vader sendo ele um brilhante discípulo e um de seus maiores erros, pois utilizou o seu treinamento Jedi, assim como a sua Força para o mal. O Mestre se lamenta dizendo que “se ao menos eu soubesse quem era o verdadeiro Vader. Às vezes, tenho a impressão de que ele está se preparando para uma abominação incompreensível. Esse é o destino de alguém que controla a Força e é consumido pelo seu lado negro” (Ibid., p. 81). A própria descrição da personagem lhe dá o aspecto de antagonista maligno da primeira

trilogia: “Dois metros de altura. Bípede. Um manto negro o seguia, seu rosto eternamente mascarado respirava por uma tela preta metálica bizarra, ainda que funcional – um Lorde Negro dos Sith era uma presença aterrorizante” (Ibid., p. 19). Acresce a seu aspecto antagonista suas ações como a destruição do planeta Alderaan em Uma Nova Esperança, por exemplo. A distinção das personagens Anakin Skywalker e Darth Vader causa o choque de Luke ao ser revelado que são apenas uma só em O Império Contra-Ataca. Lucas já havia pensado em Darth Vader como o pai de Luke Skywalker: “Sempre senti que quando essa revelação fosse feita, quando e se pudesse fazê-la, seria um choque, mas nunca esperei o nível de envolvimento emocional que o público havia estabelecido, no qual Luke é o símbolo de bondade e Vader a personificação do mal” (LUCAS, 2014, n.p.). O terceiro filme da primeira trilogia deve responder a todas as perguntas deixadas pela trama ao longo dos dois últimos filmes, sendo a principal o embate entre Luke e seu pai. “O Retorno de Jedi me deu a oportunidade de explorar questões filosóficas que me são muito caras. Um tema central da trilogia é o potencial de bondade que existe dentro de cada pessoa e é percebido apenas pelas escolhas que cada um de nós faz” (LUCAS, 2014, n.p.). Esse tema em questão é desenvolvido no confronto entre Luke e Darth Vader diante do Imperador Palpatine. Ele tenta fazer com que Luke utilize de sua raiva contra tudo aquilo que o Império representa através da figura de seu pai de modo a trilhar o lado negro da Força. No entanto, Luke se recusa dizendo que nunca irá para o lado negro, pois é um Jedi como era seu pai (KAHN, 2014, p. 503) esclarecendo que ele já aceitara a figura de Anakin Skywalker, não de Darth Vader, como seu pai. O Imperador então tenta matá-lo sendo impedido por Darth Vader cujo embate entre a ética Jedi e a ética Sith iniciado em O Ataque dos Clones retorna e é percebido por seu filho:

Luke escutara algo mais. “Seus pensamentos o traem, pai.

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Eu sinto o bem em você… o conflito. Você não conseguiu me matar antes e também não o fará agora.” Pelo que Luke conseguia lembrar, por duas vezes Vader poderia tê-lo matado, mas não o fizera. Na batalha aérea sobre a primeira Estrela da Morte e, depois, no duelo de sabres de luz em Bespin. Ele pensava em Leia, agora por um instante também, e em como ele a tivera sob suas garras uma vez, e até mesmo a torturara… mas não a matara. Ele se contraíra ao pensar na sua agonia, mas desfez-se rapidamente do pensamento. Esse ponto ficara claro para ele agora, embora tenha estado obscurecido por tanto tempo: ainda havia bondade em seu pai (KAHN, 2014, p. 500, grifo meu).

Com o Imperador morto, Darth Vader se encontra em um estado crítico pela força depreendida para realizar o ato e deixa seu filho vê-lo sem o maquinário que o esconde. Enquanto Luke, entre lágrimas, o olha, Vader reflete acerca de decisões tomadas:

Esse garoto o resgatou daquele fosso – aqui, agora, com aquele ato. Esse garoto era bom. O garoto era bom e tinha vindo dele – então, pode haver algo de bom nele também. Ele sorriu novamente para o filho e pela primeira vez o amou. E pela primeira vez em muitos e muitos anos ele também voltava a se amar (KAHN, 2014, p. 515, grifo original).

filho “ele fechou os olhos, e Darth Vader – Anakin Skywalker – morreu” (KAHN, 2014, p. 516).

A JORNADA (INTERROMPIDA) DO HERÓI A jornada de Anakin Skywalker/Darth Vader

Fase Um – A partida Etapa um – Chamado à aventura: através de uma terceira pessoa, é anunciado “o chamado para algum grande empreendimento histórico, assim como pode marcar a alvorada da iluminação religiosa” (CAMPBELL, 1997, p. 32). Iniciada em A Ameaça Fantasma ocorre quando Qui-Gon Jinn encontra o jovem escravo Anakin Skywalker para deixar Tatooine. Etapa dois – Recusa do chamado: Considerase a contraparte negativa da aventura (CAMPBBEL, 1997, p. 35) sendo “essencialmente uma recusa a renunciar àquilo que a pessoa considera interesse próprio” (Ibid., p. 35). Diante do convite do Mestre Jedi, Anakin o recusa preocupado com sua mãe, mas ela o incentiva a ir para que seu destino se cumpra. Etapa três – Auxílio sobrenatural: “Para aqueles que não recusaram o chamado, o primeiro encontro da jornada do herói se dá com uma figura protetora (que, com frequência, é uma anciã ou um ancião), que fornece ao aventureiro amuletos que o protejam contra as forças titânicas com que ele está prestes a deparar-se” (CAMPBELL, 1997, p. 39). Qui-Gon Jinn desde o início se propõe a proteger Anakin através, por exemplo, de sua insistência para que ele seja treinado apesar de ter ultrapassado a faixa etária para o início do treinamento. Etapa quatro – Travessia do primeiro limiar:

E neste momento final de redenção aos olhos de seu •174

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Tendo as personificações do seu


destino a ajudá-lo e a guiá-lo, o herói segue em sua aventura até chegar ao “guardião do limiar”, na porta que leva à área da força ampliada. Esses defensores guardam o mundo nas quatro direções assim como em cima e embaixo, marcando os limites da esfera ou horizonte de vida presente do herói. Além desses limites, estão as trevas, o desconhecido e o perigo (CAMPBELL, 1997, p. 44-45).

Qui-Gon Jinn, seu padawan Obi-Wan Kenobi e Anakin vão ao planeta da Senadora Padmé Amidala, Naboo, onde ocorre uma batalha. O Mestre pede que Anakin espere-o em um lugar seguro, porém, ele entra em uma nave para ajudar seus amigos. Etapa cinco – Barriga ou ventre da baleia: “A ideia de que a passagem do limiar mágico é uma passagem para uma esfera de renascimento é simbolizada na imagem mundial do útero, ou ventre da baleia. O herói, em lugar de conquistar ou aplacar a força do limiar, é jogado no desconhecido, dando a impressão de que morreu” (CAMPBELL, 1997, p. 50). A nave de Anakin é atingida em batalha e ele cai dentro da nave inimiga, porém, consegue, sem recursos, destruí-la e sobreviver.

Fase dois – A iniciação A segunda fase do Monomito de Anakin Skywalker se inicia em O Ataque dos Clones e o espaço temporal entre este e A Ameaça Fantasma é de dez anos. Etapa um – Caminho ou estrada de provas:

Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem

onírica povoada por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas. (…) O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região. Ou, talvez, ele aqui descubra, pela primeira vez, que existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-humana (CAMPBELL, 1997, p. 57).

Ao final de A Ameaça Fantasma, Qui Gon-Jinn antes de morrer pede a seu, então, padawan, ObiWan Kenobi, que treine o jovem Skywalker ao se graduar. Ele cumpre essa promessa, pois havia uma relação afetiva entre os dois. Ao se iniciar O Ataque dos Clones, Anakin acompanhado de seu Mestre Obi-Wan Kenobi procura o robô o qual provocou o atentado à vida da Senadora Padmé Amidala. O Mestre é quem o protege durante a perseguição. Etapa dois – Encontro com a Deusa: A figura feminina representa tudo aquilo que pode ser aprendido e o herói é o aprendiz. É aquela que o atrairá, guiará e pedirá que rompa com os grilhões os quais o prendem. (CAMPBELL, 1997, p. 65) “A mulher é o guia para o sublime auge da aventura sensual” (Ibid., p. 65). Ao reencontrar Padmé Amidala após dez anos, Anakin declara ter pensado nela desde a última vez em que se viram. Etapa três – Mulher como tentação: A mulher enquanto símbolo “não mais de vitória, mas de derrota. Nesse momento, um sistema ético monástico-puritano, que nega o mundo, transfigura todas as imagens do mito. O herói não pode mais permanecer inocente diante da deusa da carne; pois ela se tornou a rainha do pecado” (CAMPBELL, 1997, p. 69).

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É proibido pela ordem Jedi que seus estudantes ou Mestres tenham qualquer tipo de relação carnal com outrem, portanto, quando Anakin e Padmé se beijam é o momento em que o herói falha em uma de suas provas e sucumbe ao seu desejo, interrompendo a sua jornada. O desvio de seu caminho continua, pois Anakin não somente a beija, como se casa com Padmé ao final de O Ataque dos Clones e a engravida em A Vingança dos Sith. Esses atos representam também o rompimento de Anakin com a ética Jedi. Etapa quatro – Sintonia com o pai: O herói deve vencer a “figura pai” obtendo um sentimento de aprovação paterna a qual procura. “Ele contempla a face do pai e compreende. E, assim, os dois entram em sintonia” (CAMPBELL, 1997, p. 81). Por ter Anakin já interrompido sua jornada, a etapa em questão não acontece, mas poderia. E tal possibilidade é também interessante para analisar a transição de Anakin Skywalker para Darth Vader. Obi-Wan Kenobi foi a figura mais próxima de um pai que Anakin teve. Logo antes de morrer em O Retorno de Jedi ,se recorda do Mestre Jedi pensando nele como seu amigo

e em como aquela amizade havia se transformado. Transformouse, ele não sabia como, mas foi injetada, apesar de tudo, com alguma virulência negligente que se deteriorou até… terminar. Essas eram recordações que ele não queria, não agora. Lembranças de lava derretida, subindo pelas costas dele… não (KAHN, 2014, p. 515).

Portanto, quando ambos batalham ao final de A Vingança dos Sith, poder-se-ia pensar como o momento em que Skywalker obteria a aprovação de Kenobi ao vencê-lo em batalha, mas isso não ocorre. Kenobi o derrota e após cortar partes de seu corpo •176

a lava o consome. Sua morte não ocorre devido ao Imperador Palpatine, que o salva e o transforma em Darth Vader. Sua jornada, de fato, interrompeu-se na terceira etapa. Comparando a personagem a Luke Skywalker, o qual também possui uma jornada do herói, esta completa tal etapa quando em O Império Contra-Ataca se vê em uma ilusão cortando a cabeça de Darth Vader. Porém, ao cortá-la é a sua própria cabeça que rola ao chão demonstrando que seu real inimigo está dentro de si. A cena se torna mais significativa como representante da sintonia com o pai quando se sabe que Darth Vader é, em realidade, o pai de Luke. A etapa se completa quando a revelação da paternidade é feita (MANERA, VADICO, 2011, p. 07). No espaço de tempo entre os filmes A Vingança dos Sith e O Retorno de Jedi Anakin tem sua jornada interrompida e só volta a completála neste último. Quando em batalha com Luke, seu filho, é derrotado, porém não é morto. O Imperador Palpatine ameaça matar Luke, pois caso não se tornasse parte do lado negro da Força iria ser destruído (KAHN, 2014, p. 503). Manera e Vadico (2011, p. 13) consideram que a jornada do herói recomeça a partir da terceira fase, o retorno, mas pode-se considerar que seu recomeço se dá ainda na segunda fase, a iniciação, em sua sexta etapa fazendo com que a quarta etapa, como visto, e a quinta tenham sido omitidas. Etapa cinco – Apoteose: É a divinização do herói compreendendo sua missão de “escolhido” ou “messias” ao ultrapassar suas limitações pessoais. “esse ser divino é um padrão da condição divina que o herói humano atinge quando ultrapassa os últimos terrores da ignorância” (CAMPBELL, 1997, p. 83). Etapa seis – Bênção última ou grande conquista: O herói busca o poder dos deuses, “o poder de sua substância sustentadora” (CAMPBELL, 1997, p. 96) e deve obtê-la por seus próprios meios. “Enquanto ele cruza limiar após limiar, e conquista dragão após dragão, aumenta

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a estatura da divindade que ele convoca, em seu desejo mais exaltado, até subsumir todo o cosmo” (CAMPBELL, 1997, p. 101). Assim, ao se aproximar do poder dos deuses, o qual obtém cumprindo sua jornada, ele demonstra a sua superioridade em uma ação na qual apenas ele poderia ser bem-sucedido. Nesta etapa o herói demonstra sua excelência (BRANDÃO, 1992, p. 23). Ao chão, após ter sido derrubado por seu filho, Darth Vader “rastejava como um animal ferido, para o lado de seu Imperador” (KAHN, 2014, p. 503) estando “mais fraco do que nunca estivera” (Ibid., p. 508). No entanto, ficara concentrado, reunindo todo o resto de força restante para

“aquele ato único, concentrado – a única ação possível; sua última, se falhasse. Ignorando a dor, ignorando a vergonha e a fraqueza, ignorando o ruído esmagador dentro da cabeça, ele se concentrou única e cegamente no seu desejo – na vontade de derrotar o mal encarnado no Imperador. Palpatine lutou para se livrar da força insensível do abraço de Vader, suas mãos ainda atirando raios de energia maligna em todas as direções. (…) O corpo de Palpatine, ainda emanando raios de luz, girou fora de controle no vazio, debatendo-se para frente e para trás nas laterais do poço enquanto caía”(Ibid., p. 508, grifo meu).

Apesar de sua pouca força, Vader consegue matar Palpatine triunfando quando nem mesmo Luke conseguiu.

Fase três – O retorno A terceira fase da jornada é aquela a apresentar mais etapas omitidas, portanto, a etapa que seria a quinta, senhor dos dois mundos, é a primeira a ser cumprida pela personagem. Etapa um – Recursa do retorno: Ao terminar a sua busca, o herói deve retornar com o troféu conquistado. “Mas essa responsabilidade tem sido objeto de frequente recusa” (CAMPBELL, 1997, p. 114). Etapa dois – Fuga ou voo mágico:

Se o herói obtiver, em seu triunfo, a bênção da deusa ou do deus e for explicitamente encarregado de retornar ao mundo com algum elixir destinado à restauração da sociedade, o estágio final de sua aventura será apoiado por todos os poderes do seu patrono sobrenatural. Por outro lado, se o troféu tiver sido obtido com a oposição do seu guardião, ou se o desejo do herói no sentido de retornar para o mundo não tiver agradado aos deuses ou demônios, o último estágio do ciclo mitológico será uma viva, e com frequência cômica, perseguição. Essa fuga pode ser complicada por prodígios de obstrução e evasão mágicas (CAMPBELL, 1997, p. 116).

Etapa três – Resgaste com auxílio externo: momento em que o herói, por algum motivo, começa a se afastar, ou hesita em continuar sua jornada, o destino então o auxilia para que ele retorne e prossiga, agindo por meio de um terceiro (CAMPBELL, 1997, p. 120). Etapa quatro – Passagem ou travessia pelo limiar de retorno: o mundo divino e o mundo humano são distintos entre si. A aventura do herói

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se passa naquele mundo e ali completa a sua jornada sendo, por isso, seu retorno descrito enquanto uma volta do além (CAMPBELL, 1997, p. 124). Ele deve, então, utilizar de seus conhecimentos obtidos no mundo divino para aprimorar o mundo humano. “Como ensinar de novo, contudo, o que havia sido ensinado corretamente e aprendido de modo errôneo um milhão de vezes, ao longo dos milênios da mansa loucura da humanidade? Eis a última e difícil tarefa do herói” (Ibid., p. 124).

O alvo do mito consiste em dissipar a necessidade dessa ignorância diante da vida por intermédio de uma reconciliação entre consciência individual e vontade universal. E essa reconciliação é realizada através da percepção da verdadeira relação existente entre os passageiros fenômenos do tempo e a vida imperecível que vive e morre em todas as coisas (CAMPBELL, 1997, p. 133).

Etapa cinco – Senhor de dois mundos:

A liberdade de ir e vir pela linha que divide os mundos, de passar da perspectiva da aparição no tempo para a perspectiva do profundo causai (sic) e vice-versa que não contamina os princípios de uma com os da outra e, no entanto, permite à mente o conhecimento de uma delas em virtude do conhecimento da outra é o talento do mestre (CAMPBELL, 1997, p. 130).

Enquanto Luke visualiza o rosto de seu pai, “triste, benigno, de um idoso” (KAHN, 2014, p. 514), Vader começa a pensar em todas as decisões tomadas até aquele momento. Reflete acerca de sua relação com Obi-Wan Kenobi e da possibilidade de haver, em si, bondade. Por ter grande Força contida em si, consegue sentir “a dor de seu garoto” (KAHN, 2014, p. 516) ao encará-lo e decide tentar mostrar o melhor ao seu filho, querendo que “Luke soubesse que ele não era realmente feio daquele jeito, não por dentro, não completamente” (KAHN, 2014, p. 516), então, diz a ele: “Somos seres luminosos, Luke… não esta matéria bruta” (Ibid., p. 516). Vader, então, atinge a compreensão do ser independente daquilo que aparenta. Redimindo-se aos olhos de seu filho que o vê não como Darth Vader, mas como Anakin Skywalker. Etapa seis – Liberdade para viver: •178

Não é dada liberdade para Anakin Skywalker/Darth Vader viver, uma vez que ele morre ao final de O Retorno de Jedi. No entanto, “por um momento evanescente, olhando para a fogueira, Luke pensou ter visto rostos dançando – Yoda, Ben… e aquele era o seu pai?” (KAHN, 2014, p. 521). Foi lhe dada liberdade para viver ao lado de seu antigo Mestre, Obi-Wan Kenobi no lado Jedi da Força.

CONCLUSÃO

Ao encarar a personagem Darth Vader apenas por suas ações na primeira trilogia pode-se conceituá-la enquanto uma figura representativa do embate maniqueísta entre bem (Luke Skywalker/ Aliança Rebelde) e mal (Darth Vader/Império). Seria ele conceituado enquanto um vilão cuja redenção ocorre apenas aos olhos de seu filho, uma vez que a consequência de suas ações, como a aniquilação do planeta de Alderaan, ainda existe. Porém, sendo a segunda trilogia um prelúdio de sua história e encarando-a em sua totalidade como formada pelas duas trilogias, se percebe que a personagem desde o princípio demonstrou ser um anti-herói. Ao longo da análise dos dois lados da

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personagem os quais formam sua totalidade, se percebe que a jornada do herói pensada para ela é completada independente de sua interrupção. Ao final da segunda trilogia a personalidade de Darth Vader morre para dar vida, novamente, a personalidade Anakin Skywalker que nasce, morre e se redime aos olhos de seu filho. A personagem não pode, então, ser conceituada enquanto um herói por tal interrupção, porém não o pode também ser configurada enquanto vilão, visto que completa sua jornada. Manera e Vadico (2011, p. 14) criam uma categoria para Darth Vader/Anakin Skywalker chamando-a de vilão-herói de forma que a personalidade Darth Vader é classificada enquanto vilão e a personalidade Anakin Skywalker enquanto herói. No entanto, isso seria separar a personagem em duas partes e classificar cada uma delas, não classificá-la em sua totalidade lembrando, até, O Médico e o Monstro de R. L. Stevenson. Portanto, classificando a personagem em sua plenitude deve-se chamá-la de um novo tipo de anti-herói. Seria tal categoria reservada para as personagens que apresentam as características de Brombert, ou seja, “amiúde um agitador e um perturbador. A concomitante crítica de conceitos heroicos subentende estratégias de desestabilização e (…) comporta implicações éticas e políticas” (2002, p. 14-15). Além de possuírem uma jornada do herói a qual interrompem e a concluem, suas ações não devem pender completamente para nenhum dos lados maniqueístas de bem ou mal e ao serem classificados, como no caso de Anakin Skywalker/Darth Vader, enquanto vilão-herói sua personalidade é desmembrada em duas partes e classificada de forma excludente – ou se é bom, ou se é mal; ou se é herói, ou se é vilão.

UNIVALI, Itajaí, SC. 2009.

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário MíticoEtimológico da Mitologia e da Religião Romana. Petrópolis: Vozes. 1993.

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Textos literários

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contos

LEMBRANÇAS DE UMA CASA VELHA Anderson Câmara (Graduação ― UERJ)

E

ra uma casa. Paredes, janelas, cortinas verdes e lâmpadas incandescentes que mais aqueciam que iluminavam os sofás e poltronas forrados de couro. Rodapés feitos de cerâmica escura com desenhos sem sentido, encimados de manchas de infiltração a um canto da sala de estar. O longo corredor, um pouco enviesado em relação ao eixo do terreno, ligava a sala à cozinha, e dava acesso a dois quartos e um banheiro. Um vaso sanitário de porcelana branca e assento de plástico, um chuveiro elétrico já queimado há muito tempo. O piso de cerâmica já sofrera muitas solas de sapatos e chinelos, pés descalços, café derramado, urina de um cachorro já morto há anos, e até costas estateladas no chão. O quarto pequeno, escuro e sem janelas, palco de cenas de compaixão e de raiva. Suas paredes guardaram segredos nunca contados, uns suspeitados mas não provados, e outros descobertos sem intenção. As cortinas da cozinha lembravam-se dos gritos da mulher que ali preparava o café e o reluzir da faca contra ela brandida. O teto do corredor nunca esquecera os grandes olhos negros da pequena menina traumatizada ao ver as terríveis cenas de agressão e covardia contra aquela que sempre lhe dizia para não chorar. Entretanto, aquele que sempre amparava a menina em seu pranto, era o couro do velho sofá, que por muito tempo colhia as lágrimas da criança. A cortina da sala, por vezes, dava espaço para o vento, que vinha consolá-la com sua brisa suave e seu assovio tenro. E todos ali, eram os únicos que escutavam, quando a menina chamava pela mãe desacordada no chão. O olho inchado, o lábio cortado. Por vezes o portão tentara bloquear a entrada daquele homem, mas apesar do alto nível de embriaguez, e por mais que ele lutasse, o homem sempre entrava. Fazia seus passos vacilantes atravessar a grama seca no quintal, vez ou outra pisando fezes do cachorro e espalhando-as pelo tapete da sala sem nem notar. Os quadros da sala mostravam-se aliviados quando o homem estava embriagado demais para qualquer coisa além de se jogar no colchão e acordar apenas no dia seguinte. Antes, quando o gramado era verde, e a menina era menor, o cão corria ao seu redor enquanto os curtos e ainda inexperientes passos dela conduziam-na dos degraus da porta até a base de uma bananeira, Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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que crescia junto com a menina, ali perto. Naquele tempo, o irmão mais velho corria na rua, um pedaço de madeira na mão, tentava atirar uma bola verde na garrafa do seu adversário na brincadeira. Anos depois, a casa envelheceu e cansou-se, mas as crianças cresciam jovens e saudáveis. O homem e a mulher acresciam suas discussões, e em vez de escondê-las, fizeram as crianças assistirem o terror. Quando o garoto cresceu mais um pouco, passou pela porta, desceu os degraus e atravessou o portão, uma grande mochila nas costas. O portão esperou que ele voltasse, mas enferrujou suas dobradiças e não o viu chegar. Foi então que o homem passou a trazer um hálito alcoólico em suas vindas. A menina estudava e brincava sobre a mesa, mas a mesa passou apenas a sentir golpes e tropeções do homem enquanto este perseguia sua mulher. As paredes externas descascaram sua tinta, e deram lugar a longas e tristes lágrimas de umidade, alguns tijolos do beiral jogaram-se na grama, e a menina virou moça. As paredes já não eram mais capazes de suportar sua fúria e indignação, apesar de sua mãe defender o pai. Foi então o tempo em que os homens armados passaram por um portão assustado. A mando da filha, carregaram algemado um homem que estava claramente e sinceramente arrependido, mas já era tarde demais.

HOMER E HAROLDO Anderson Câmara (Graduação ― UERJ)

E

ram três horas da tarde, uma tarde insuportavelmente quente no Rio. Haroldo fechou os olhos quando passou do corredor, mal iluminado pelas poucas lâmpadas que ainda não tinham queimado, para baixo da poderosa e quente luz solar. De olhos fechados ele sentiu o sol queimando a pele no rosto e nos braços e o mesmo calor sendo suavizado pela brisa acalentadora. Lembrou-se do ar abafado que havia lá dentro, lhe pareceu estranho estar novamente ao ar livre depois de tanto tempo, como reconhecer um amigo de muito tempo por quem se esqueceu da antiga intimidade e afeto. Mesmo assim, mesmo estando sem jeito com a brisa e o sol, mesmo tendo perdido intimidade com a ideia de que agora poderia andar para qualquer direção que quisesse, sentiu um prazer imenso. Um entusiasmo carregado dos ganchos da antiga tristeza o tomou, e ele sentiu as mãos tremendo suavemente. O último elemento que o encheu de satisfação foi o som do pesado portão correndo sobre os trilhos e se fechando com um ruído metálico forte. Respirou fundo, sentiu o cheiro da liberdade: fumaça de escapamento, fezes de cavalo e lixo. Abriu os olhos e a cidade se abria a ele, cada esquina, cada rua, cada loja, cada ônibus era um caminho que o convidava sorridente. Estava de volta ao mundo. Não mais veria os corredores apertados e celas tumulares. Vestiria as roupas que quisesse, comeria o que quisesse, ou pelo menos o que tivesse dinheiro para comprar... se conseguisse emprego a partir de agora. Quando começou a andar não olhou para trás saudosamente, e nem debochadamente, como a maioria dos que ganhavam a esperada liberdade. Não quis ver a cara monstruosa do Bangu onde vivera os últimos anos. Não tinham sido muitos, •182 Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016


apenas seis anos. Seis anos perdidos, além de uma noiva, uma faculdade, um bom emprego, um carro, a confiança dos pais e seu cachorro. Não cumprira o resto da pena por que conseguiu, depois desses seis longos anos, provar que não tinha cometido aquele crime. Haroldo sabia que não era capaz de matar ninguém. Motivo até já tivera, se é que existe no mundo motivo justo para um homem tirar a vida de alguém, mas não o cometera. Surpreendeu-se, lembrando o que o advogado do ministério público lhe dissera nas visitas, com o tempo que levara para provar sua inocência quando todas as provas já estavam na mesa. Seis longos anos. Foi até um tempo curto para os padrões dos quais tinha ouvido falar. Quando se afastou do presídio, apreciou se sentir apenas mais um. As pessoas passavam por ele, se desviavam apressadas, até esbarravam nele, e não o achavam um marginal. Não o desprezavam, não tinham medo dele. É claro que seria diferente se descobrissem de onde vinha, mas ali ninguém se importava. Ficou imaginando, enquanto olhava cada arquétipo que passava no sentido contrário, o que aquelas pessoas estariam fazendo. Viu um homem muito obeso caminhando com dificuldade; imaginou que estivesse indo pagar alguma conta e como era desagradável ficar apertado nessas filas de lotérica enquanto todos o olhavam e o culpavam com olhar por ocupar espaço demais. Passou um homem que aparentava ter seus sessenta anos, uma expressão mal-humorada. A princípio ponderou se ele brigara com a esposa ou estava muito apertado para ir ao banheiro, mas quando passou por ele sorriu e disse “boa tarde”. E aquilo o surpreendeu. Imaginou também se os outros ficavam montando teorias sobre o que ele estava prestes a fazer. Queria ansiosamente que alguém lhe abordasse e perguntasse, diria com todo prazer “estou indo para casa”. Passou uma mulher de pele parda, tinha provavelmente um belo cabelo de negra mas fazia-o parecer cabelo de branca. Sem se conter, virou para ela quando passou e falou com toda satisfação: ― Estou indo para casa. ― Sorriu. Ela subiu uma sobrancelha desenhada e continuou andando sem dizer nada. Mas ele não se importou, continuou caminhando a passadas largas e com um sorriso enorme. Andou bastante, por que não tinha dinheiro para pagar o ônibus. Finalmente estava onde queria. O lugar não mudara muito, apenas uma ou outra parede tinha mudado de cor. Sua casa ficava numa vila pequena, uma rua estreita onde cinco casas à direita encaravam seis casas à esquerda, e uma grande dominava todas as outras no fundo, que era onde morava o dono; o único sobrado e a casa mais bem arrumada. Era pequeno, mas lhe pareceu maior do que se lembrava. A rua era de paralelepípedos e só havia espaço para um carro de cada vez, mesmo assim uns dois vizinhos ainda deixavam seus veículos no lado de fora, apesar de terem todos uma garagem, e até isso pareceu prazeroso para Haroldo. Uma senhora saiu para regar o belo jardim que cultivava na calçada quando Haroldo atravessou o portão, mas ela não o olhou a princípio. A reconheceu mesmo vendo branca uma cabeça que antes era castanha. ― Boa noite, dona Hélia. ― disse com alegria. A mulher ergueu a cabeça e o analisou longamente, tentando se lembrar. ― É o Haroldo. ― E dona Hélia se lembrou imediatamente, sendo acometida por um sobressalto. Então largou a mangueira e correu para dentro de casa. ― Tudo bem... normal. Passou olhando com prazer para a pintura descascada da fachada de sua casinha e foi bater no sobrado do fim da vila. Abriu um homem de setenta anos, com um sorriso jovial e voz um tanto rouca. Vestia-se com roupas modernas, uma camiseta larga e preta com o desenho de um surfista encarando o mar. ― Haroldo! ― falou ele de braços abertos. ― Finalmente o dia chegou! Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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― E devo isso ao senhor. Foi o único conhecido que ainda me ajudou ― ele falou sorrindo sem querer repetir mais um “obrigado”, que já dissera inúmeras vezes em cada visita que recebera. ― Aqui, a chave. ― disse o dono mexendo no bolso. ― Tomei a liberdade de abrir a casa e mandei alguém fazer uma faxina antes de você chegar. ― falou depositando a chave na mão de Haroldo. ― Que isso, não precisava. ― E tem alguém aqui que vai ficar feliz em te ver. ― falou o dono virando para trás, para dentro de casa. ― Homer, vem cá! ― gritou. ― Ah, não acredito... Um cachorro preto veio abanando o rabo, assim que se aproximou agitou-se e soltou um latido muito forte e agudo. Correu para Haroldo, que se abaixou, e o cão ficou pulando e correndo ao redor dele, latindo e chorando. Até que pôs as patas nos ombros do antigo dono e abaixou a cabeça para receber seus carinhos. ― Que bom te ver, amigão. ― De todas as alegrias que o encontraram desde que saíram, esta foi a única capaz de fazer Haroldo derramar uma lágrima. ― Tá ficando velhinho, mas ainda é forte. ― disse o dono da vila. ― Cuidei dele com a melhor ração que tinha, ainda tem dois sacos grandes aqui, depois eu deixo lá pra você. ― Muito obrigado. ― disse Haroldo abraçado ao cachorro, que ainda chorava. Homer e Haroldo foram juntos para a antiga casa que estava desabitada havia seis anos. Morara ali com os pais desde os dois anos de idade, e dali só pretendia sair para casar. Quando foi preso, tinha vinte e cinco anos na ocasião, a mãe não suportara a ideia de que seu filho era odiado e acusado de ter estuprado e espancado uma moça de treze anos até que ela não se movesse mais. Haroldo perdeu a honra, a liberdade e a mãe, tudo de uma vez. O pai, que naquele momento revelou ter outra mulher com mais dois filhos não muito longe dali, achou que não tinha mais nada que o prendesse naquela vila e foi embora. E nem se fala nos efeitos que isso causou na moça que tinha como noiva. Ele ouvira por alto, quando estava preso, que ela estava em Minas com marido e uma filhinha. Haroldo recordou bem rápido as coisas que tinha vivido na sala, os móveis eram os mesmos antigos de madeira boa. A televisão era moderna no tempo em que vivera ali, hoje já estava ultrapassada. Lembravase da primeira vez em que tinha alcançado o interruptor da sala, de quando era maior e correra dali para a cozinha quando a panela de pressão explodiu a fim de socorrer sua mãe. Das conversas que seu pai tivera na sala com o dono da vila e das gritarias aos domingos de final de campeonato, ele e o pai torcendo pelo Flamengo na sala e a mãe e uma outra vizinha gritando Vasco na casa ao lado. ― Somos só nós agora, Homer. ― disse ele para o cachorro, que ergueu para ele o focinho, as orelhas compridas erguidas atentamente, como se o compreendesse. Durante a madrugada Haroldo acordou com os latidos de Homer. Ergueu-se de um salto e correu para a sala, onde se deparou com a porta aberta e um homem parado sob o umbral. Entre os dois homens, o cão latia furiosamente contra o invasor. ― Vai embora daqui! ― Haroldo disse avançando contra o homem usando da valentia que fora obrigado a desenvolver no presídio. •184

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― Ei... para aí. ― disse o outro puxando um revólver da cintura, Haroldo parou no segundo passo. A lâmpada do corredor permanecia acesa e assim podia vê-lo nitidamente. Era um homem de meia idade, muito magro, a camisa preta folgada escondia sua cintura. Tinha olheiras profundas, estava quase careca, e tremia. ― O que você quer? ― Haroldo resolveu agir com calma. ― Leva o que quiser, não vou reagir. O revólver ainda apontava para ele. ― Você, maldito, já levou uma coisa de mim. ― então começou a chorar. ― Maldito! Eu queria tirar de você alguma coisa igual... ah... queria. Mas você não sente... não sente isso por ninguém. Maldito! Minha filha... seu maldito, ela tinha só treze anos! ― Escuta, meu amigo... ― Haroldo falou com as mãos erguidas em rendição, falando devagar. – Se acalma. Abaixa essa arma, você não é uma pessoa ruim. ― Ah, não... mas você é. ― falou agressivamente, botando para fora toda a indignação e ódio que acumulara por seis anos. Homer sentiu, parece, a mudança que ocorreu no invasor e o perigo que o dono corria. Avançou e pulou contra o homem, mas ele abaixou a arma para o cão e atirou. Um estalo forte e um ganido agudo, Homer caiu no chão e começou a sangrar. ― Agora é você, desgraçado! ― apontou a arma para Haroldo e atirou. Ele errou o primeiro, e Haroldo começou a andar. O atirador, vendo a ameaça crescendo para ele, entrou em desespero, e disparou os outros quatro que lhe restavam, acertando apenas o último no meio do peito. Mas foi no mesmo momento em que as mãos de Haroldo envolveram seu pescoço e apertaram com tanta força que o invasor só conseguir emitir um grasno parecido com um pato. Haroldo, enfurecido, respirava pesado, o rosto contorcido em cólera quando fitou dentro dos olhos do invasor, que se avermelhavam. As mãos se debatiam, batiam, mas nada conseguiam. Haroldo sangrava, mas não soltava as mãos. ― Você matou meu cachorro, seu maldito! O homem então amoleceu e caiu. Haroldo recuou e sentou-se no sofá. A visão embaçada, o sangue manchando a camisa branca. Viu o portão abrindo e o dono da vila entrava desesperado. ― Estou em casa. FIM

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CENAS Antonio Severo dos Santos Júnior (Graduação – FEUC)

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odo o dia a mesma coisa. Parece que sou filmado a frente de um fundo verde e editado depois. Os personagens são os mesmos, só mudam os figurantes: o rapazinho de óculos, a mocinha de tatuagem no ombro, o homem que finge ler o jornal e a senhora que parece contar as estações. Onde estaríamos? O maquinista anuncia mensagens inúteis que nos chegam como chiados sobre nossas cabeças. Entra um vendedor, anuncia balas, doces; conta suas notas. “1 real”. Tentador, mas ninguém compra. Ele ainda insiste e grita; castiga-nos por não comprarmos suas mercadorias rotas. Um cego tateia os ferros da composição e começa uma ladainha impossível de entender. A única frase que faz sentido é ”pelo amor de Deus” e se põe a balançar umas três moedas que ele mesmo deve ter colocado no copo sujo. Os passageiros entediados querem paz, apesar de já estarem acostumados a zoeira do trem. Tentativas inúteis de ler o material maçante da faculdade. Apenas o jornal chinfrim ganha a atenção: morte de inocentes e os gols da rodada. Nada de novo. Por isso, nunca compro o jornal! A mulher com tatuagem no ombro ameaça partir, as pessoas em volta se agitam, disputam a vaga apertada, até que o bom senso conduz um senhor curvado até o assento onde um filete do sol de dezembro se aninha. Calor insuportável! Vou chegar ao trabalho suado e fedendo. Andei pensando em desistir de usar o perfume antes de sair de casa. Deixo-o todo no transporte. Invariavelmente chego suado e sem nem mais a lembrança do perfume. Vou levar o frasco e usá-lo quando chegar à empresa. De repente, o rapazinho de óculos já não está mais lá; fora reposto por uma mocinha muito branca que ouvia música. A composição para na estação e dá sinais de avaria. Muxoxos e palavrões. Alguém fala alguma coisa sobre política e privatizações. O senhor ao meu lado tenta puxar assunto. Fala dos absurdos do país. “Isso é uma vergonha!” Como a conversa não evolui, paro de lhe prestar atenção e dou importância a outros assuntos. Uma senhora cheia de embrulhos e bolsas está ao telefone dizendo que irá se atrasar. Fala alto e nos deixa a par de sua vida mesquinha. Lá fora, ao longe, montanhas e árvores me fazem sentir vontade de viajar. Preciso de férias. A última vez, já faz mais de dois anos. Penso no dia que terei pela frente e a vontade de sumir aumenta. A ideia da loteria volta forte. Sempre que penso estar sofrendo demais, lembro-me da loteria. Passo uns dois dias num delírio intenso, e começo a fazer planos de como irei gastar o meu dinheiro. Pessoas que vou ajudar e lugares pra onde ir. Invariavelmente, logo após a constatação de que não ganhei, deixo de lado os meus sonhos e me decido por objetivos mais concretos: terminar a faculdade, conseguir um emprego em minha área, ganhar dinheiro, comprar uma casa perto do trabalho e pensar em constituir família. Não sei por que aquilo que me parece possível é tão distante do que considero sonho. Como se o sonho e a realidade dependesse de condições específicas e jamais pudessem ser a mesma coisa. Casar dependeria do fato de não ser um milionário, assim como viajar o mundo de eu não ser um assalariado. Certa vez, acertei alguns números e recebi a quantia de R$ 1.634,00. Nada que pudesse mudar minha vida, mas me ajudou bastante naquele mês. Não sei o quanto já havia gastado, mas o que motiva o nosso sonho é a possibilidade de realizá-lo. •186

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Quando chego ao trabalho, Dr. Mendonça me olha sério e, antes mesmo de desejar bom dia, pede-me um relatório que só será necessário na semana seguinte. Há sempre um relatório para a próxima semana. Eu deveria estar acostumado com o velho Mendonça. Às vezes tenho pena dele; às vezes raiva. Vive pra empresa. Está velho e viúvo. Não tem filhos, nem amigos; é sempre o primeiro a chegar e o último a sair. Tenho pena quando penso em sua vida, e raiva quando penso que não aprendeu nada com ela. Repito a mesma cena todos os dias. Desfaço o sorriso com o qual saúdo a recepcionista, olho-o nos olhos e digo que o relatório está quase pronto. Em minha mente, só a vontade de adiantar os ponteiros do meu relógio e partir. Na volta, o sol já se foi, mas o calor continua a me castigar. Como sempre viajo com as mesmas pessoas, já decorei os rostos e as manias. Mas nunca fiz amizades. Não sou muito dado a amizades casuais. Alguns devem me achar esnobe por causa do terno, outros talvez me achem um coitado, também por causa do terno. Eu acho que sofro mais do que deveria; outros talvez achem que minha vida é fácil. Quando trabalhava como vendedor nas ruas costumava a ver os homens de terno atravessando a Rio Branco e os invejava. Imaginava como deveria ser bom trabalhar daquele jeito em um daqueles prédios altos e espelhados. Vivemos de ilusão. Ganhava muito mais que hoje. Toda vez que pego o trem na Central, acho que eu deveria comprar um carro, mas quando passo pelos estacionamentos do Centro, vejo que eu não teria como pagar pela vaga todos os dias, e então digo pra mim mesmo que o trânsito seria muito estressante, mas só digo isso pra aliviar um pouco a minha impossibilidade de manter um carro. Nos finais de semana, quando saio com Martinha, vamos de ônibus. Dependendo da festa, pagamos um táxi ou pego o carro do meu irmão emprestado. Ela diz que não liga. Que um dia teremos uma vida melhor. Compartilhamos tudo, inclusive o trem que sempre chega atrasado e cheio; arrastado por um maquinista preguiçoso e mal humorado, que não se importa se é segunda ou domingo. É infeliz e parece querer que provemos de sua insatisfação pessoal.

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JÚ NO CARNAVAL 2015 Daniela Victorino (Graduação ― UERJ)

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ós decidimos que iríamos para uma cidadezinha na Região dos Lagos ― Iguaba Grande ― no carnaval. Lá é legal porque, de carro, é fácil ir para qualquer cidade por ali. Ouvi falar bem do Bloco das Piranhas, em Araru, e do Bloco das Damas em Cabo Frio. Fiquei louca pra ir a todos os blocos possíveis! Fomos em três casais: o Vini e eu; Gui e Bia; e Di e Maya; em dois carros. E decidimos que seria CARNAVAL SEM LEI!! ― Bom dia, vida ― acordei o Vini. ― Bom dia, meu amor. ― Bora pra Cabo Frio, hoje?

― Bora, pô. Todo mundo vai? ― Vou tentar convencer as meninas.

― Bia. Maya. Vamos pro bloco hoje? ― Eu topo! ― Respondeu Maya. ― Eu não. ― resmungou a Bia. –Chata-. ― Ah, amiga. Vamos! É carnaval! Temos que aproveitar todo o tempo que temos. ― Gata, eu estou me-ga-ar-di-da! Sem chance! ― Para de graça, Bia. ― disse Maya ― Eu nem passei bloqueador ontem e tô vivinha da Silva. ― É, amor. Fiquei amarradão pra curtir o bloco hoje. ― apareceu o Gui tentando convencer a Bia. ― Bebê, fica quietinho, fica. ― Também te amo, leoazinha. ― Tu é MEU namorado. Se não puder concordar comigo, cala a boquinha, tá bom?! ― Quanto amor, gente ― chegou, enfim o Di ― qual é a da briguinha aí? ― Ih! Cala a boca que o assunto chegou ― todos rimos. ― Acordou o dorminhoco? ― disse a Maya ― lindo, geral quer ir pro Bloco em Cabo Frio e a Bia está de mimimi. ― Parou, né, Bia! Vai querer empatar o nosso carnaval? ― Di, sem condições. Se eu me queimar mais vou ficar em carne viva. ― Caraca, Beatriz! O bloco é 5h da tarde, cara. Essa hora o sol tá fraco. ― Pô, Jú, eu não sabia disso. ― E você me deixou falar? Veio logo dizendo que não. ― Fechou então! A concentração é 5 horas, a gente sai daqui 4h. ― Tu sabe onde é, amor? ― perguntou Vini. ― Ah, postaram aqui que é na Arena Dos Blocos. ― E você sabe chegar lá, amiga? ― Maya, relaxa. A gente se acha. É só sair pedindo informação até chegar. •188

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Tudo decidido, fomos direto almoçar ― lasanha! (de micro-ondas) ― porque acordamos tarde e estávamos mor-ren-do-de-fo-me. E, quando todo mundo acabou de tomar banho, se arrumar e se maquiar, já eram ― quase ― 4 horas. Os boys, do lado de fora, já cansados de esperar a mulherada, pra variar. ― Todas prontas? ― SIM! ― Partiu, então. Quando chegamos na rua da praia, caraca! Engarrafamento monstro! Já estava estressada, imaginando demorar, tipo, quatro horas de Iguaba até Cabo Frio. A Bia com aquela TPM dela – que ninguém aguentava mais. O carro já ficando sem gás. Mas, até então, tudo de boa. Era torcer para a gente conseguir pegar, pelo menos um pouco, do bloco. ― Eu TENHO que ir ao banheiro ― disse a Bia. Então… Sabe a lei de Murphy? ― Ih, já até sei. Você estava insuportável nesses últimos dias. ― Pois é, gata. É isso mesmo. Sinal vermelho ― ela piscou. ― Amor, vamos parar no primeiro posto. O gás já está praticamente no fim. Relaxa aí. ― Tá vendo, Jú? O perrengue em que a gente se meteu? Mais de uma hora nesse carro já. Depois que saímos do Posto, em São Pedro da Aldeia, foi rápido chegar em Cabo Frio. O trânsito nem estava parado. É que, simplesmente, TODOS os carros que estavam na Região dos Lagos tiveram a mesma ideia ― brilhante ― de ir para o mesmo lugar ao mesmo tempo. Uhul, mas que sorte a nossa.! Enfim passamos por uma placa escrito “Cabo Frio”. ― Pronto! Agora joga no Google maps. ― Droga! A internet não tá pegando. ― Ah, ótimo! ― Sem estresse, gente. Se não a gente não chega a lugar nenhum. Vamos perguntar ali. Abaixa o vidro. ― Amigo.,como é que eu chego na Arena dos Blocos? ― Tu segue a reta aqui e só vira à esquerda lá no final. É perto da Praia do Forte. ― Valeu, brother. Seguimos o fluxo e chegamos perto da praia, mas nada de Arena, nem de blocos. ― Oi, boa tarde. Você sabe onde é a concentração do Bloco das Damas? ― Olha, tá perto. É só andar um pouquinho pra lá e virar à direita, mas não dá pra ir de carro não. Tem que achar vaga para estacionar. ― Valeu, colega. Estacionamos quase dois anos depois e quando, finalmente, avistamos o trio elétrico a gente quase morreu. Mas decidimos que correr atrás do trio era uma ideia melhor, e foi o que fizemos. UFA!

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O LEITÃO

Francisco Neto (Graduação ― UNESA)

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Sol ainda gritava: em sua imaginação um grunhido engasgador garganteava com a secreção dos escapamentos, ressecando suas mucosas ao inalar a negrumenta visão dos ônibus engolfados na central. Assim, chegou a se sentar, naquele dia, estava decidido a não fingir que dormia, o banco era seu, seu até o fim da viagem, não havia porquê, não daria satisfações, afinal, seus olhos ainda ardiam, quase lacrimejavam. Preste bastante atenção, pois o personagem é um ordinário trabalhador, residente de uma favela no subúrbio de uma grande cidade erguida. Forte, um solavanco faz as páginas se misturarem, atropelado no trânsito em meio ao frisson e burburinho alarmante dos dedos perdidos, inúteis e aglomerados ao redor das folhas. Frustrados ficaram seus olhos ao perderem o limite da história. Para ser violento, o ônibus seguia querendo torturar seus ferros estridentes. De pé ao lado do banco alguém estava de jeans suspenso por um cinto preso por uma fivela de metal, como o ônibus ficara maciçamente cheio, ter sentado não parecia boa opção agora, volumosas cabeças e pernas e braços e roupas e pastas e mochilas e ferros e celulares estavam entre ele e a porta, e próxima a sua orelha de homem sentado no ônibus estava a fivela de metal, era uma fivela cromada que se aproximava tanto nas curvas que podia sentir o frio tilintar dentro dos seus ouvidos. Seus cotovelos tentavam, tentavam e tentavam encontrar maneira de reabrir o livro e procurar a página perdida. Assim, muito dificilmente conseguiu ver a mão de quem estava sentada ao seu lado, a mão segurava no banco da frente, uma mão magra e um pouco cansada tem mais atraência, coubera o esmalte dourado meio bege na unhinha do mindinho decepado à faca, rentes ao corte na unha e a ferida na ponta, mas a casca verde e amarela não deixava sangrar. Seus olhos de homem, que não finge dormir, viram: o ensebado cheiro de detergente desbotar a cor bege que exalava do esmalte. O sol, desesperado por não ver mais os homens, se atirou atrás dos prédios. Depois de sofrer ao longo de quase toda a zona metropolitana o ônibus cansara, emagrecera, definhara e agora faminto e enfraquecido, engasgava e cuspia alguns passageiros em paradas estranhas e sob viadutos. A suposta, de dedo ferido, que durante algum trabalho ainda perderá um membro e tropeçará em coisas manqueando por filas de repartições, já fora cuspida. Ele estava então sentado à janela, e o calor diminuíra com a escuridão entrecortada por postes e o vento que tentava levantar as folhas firmes sob seus polegares achatados, assim ainda lacrimejavam mordeduras em seu estômago, sentiu-se como o ônibus se sente, quando a desventura do estresse o faz olhar pelo retrovisor um passageiro que ficara só em rua escura sob o faro dos famigerados, então se conformou e continuou a ler de onde pode: Rodrigo era um jovem de grande vigor moral, não se intimidava por pouco, seu senso de dever há muito tempo havia ultrapassado o seu medo da morte, justamente por isso não tremeu quando entendeu que aquela circunstância o levaria, inevitavelmente, ao túmulo. Já estava preparado para a ideia de morrer. Desde criança via seus amigos morrerem jovens, sempre pensou que a vida é assim. Depois daquela noite, caminhou para casa deleitando-se nas luzes amenas da alvorada, as cores rosadas do horizonte espalhavam um reconfortante perfume o qual inflava a serenidade, sentia-se acariciado pela brisa quando viu sua esposa, já acordada. O beijo de hortelã •190

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dissipou o cheiro de pólvora negra, disse baixinho seu nome: ― Ester… e sentiu as tranças e as miçangas de seus cabelos. Seguiu para o banheiro, sua arma nunca pesou tanto, guardou atrás do armário, como fazia todos os dias. Nunca se sentira tão limpo, suas roupas nunca foram tão leves e confortáveis. Abraçou sua filha maior, que lenta acordou nos braços do pai. Deixou que fosse, enfim. No quarto, ainda em sua cama, seu pequeno bebê, as mãos de Ester ainda estavam marcadas nas colchas que o envolviam, ao ver as memórias do gesto maternal nada mais o fez duvidar. Ester, intuiu que algo estava diferente, não chegou a pensar na morte, o tempo e a própria experiência a fizeram calar e deixar a vida se encarregar de tudo. Viu Rodrigo dormir ao lado do pequeno filho, lembrou do dia que ele saiu para o trabalho e voltou traficante da favela, lembrou de como não teve argumentos para recriminá-lo, lembrou do quanto sofreu nos dias seguintes e do quanto se sentiu feliz ao vê-lo orgulhoso de carregar coragem e dinheiro. Dedo entre folhas, o ônibus pigarreou algumas vezes com a aspereza do apito, em frente ao seu asfalto, fora cuspido, a noite suspendia encrespada a poeira do cimento, ninguém a vista, odiava, aquele lugar, passando pelas casas, amontoados de tijolos e decepções, o trepidar opaco das luzes de televisores, foi breve o instante no qual se esquecera, estilhaçou as chaves na porta, a geladeira chupou seus ouvidos, o resto de flan quase lhe adoçou a boca, demais vazia. A fome ainda choramingava seu estômago quando ouviu os grunhidos. Era véspera, dia de matarem os porcos, amanhã as moscas entrarão em frenesi, irá sentir o zumbido patinhar em seus ombros, mas hoje era a noite dos porcos. Sentiu crocando o cheiro do bacon, andou rápido até o basculante, os pés ainda duros de borracha e o tênis latejante, espremeu a cabeça entre duas chapas de vidros de onde olhava o vizinho, apenas uma luz ao contrário, decepcionante, não ouviu mais grunhidos, mas um sorridente enlameava-se na direção do curral, a luz se apagou, não gostava de esperar, palmilhas e cadarços embolados, fresco sopro nos pés sobre um sofá gasto, maquinal, pois há letras aos olhos: o bacon derretia o cheiro forte que eriçava-o à fome, aglutinava ao prazer de imaginar os pedaços gordos fervilhando nos dentes. Os olhos correram, sem encontrar história, lia marcas vazias, o sabor do bacon era intenso, mas: “Você, não vê que está morto?”. Disse Mineiro, o chefe de Rodrigo. Pacientemente continuou: “Rodrigo, eu sei que você nunca faria aquela merda toda. Só tava cês três, pra que protegê eles? Nenhum deles se acusô, mas eu sei que não foi você. Quem foi?” Rodrigo olhava-o fixamente. “Rodrigo, me diga ao menos que não foi você.” Mineiro não obteve resposta e sabia que Rodrigo tinha uma misteriosa dívida com um dos outros envolvidos. Mineiro gostava muito dele, não queria, seu peito apertava diante da ideia, mas teria que matá-lo, não havia saída. “Rodrigo, me fala que não foi você!” Rodrigo manteve silêncio. “Eu, não entendo! Vá…” Rodrigo saiu. Em seguida, Pequeno, que assistira toda a conversa perguntou: “Nos vai mata ele hoje, patrão?” “Não, domingo é o batizado da neném, vamo respeitá.” “E se ele fugi, patrão?” “Ele não vai fugi… ― Pequeno, termina a comida logo, e vai mandá o Adelmo entregá um leitão pra festa do batizado.” Ao sair dali, Rodrigo seguiu em direção à casa de sua mãe, sabia que era a última visita que faria a ela. Olhos ternos o receberam e o doce de um bolo de milho-verde o convidou pela porta aberta. Um grunhido! Fez a luz acender, enfiou a cabeça correndo entre as lâminas geladas do basculante, viu o curral iluminado pela lâmpada do barracão cortado pela parede, mas o chiqueiro que estava ali iluminado viu uma porca grandemente gorda, será ela? Viu dois leitões pequenamente gordos, um deitado mais ao canto e outro com o focinho sobre a barriga da mãe, os três dormiam saudáveis se aquecendo pela luz, a sorridente silhueta se aproximava pegadeando a lama, uma voz lá de dentro gritou: O mais gordo. A silhueta pisante se aproximou ao acordar da mãe que grunhiu preocupada com visitas aquela hora, faziam gritos, os porcos giravam ao redor das patas gruindo baixo e olhando por cima do portão de madeiras quase podre, a silhueta arrebatou um dos pequenos por uma pata traseira, gritou desesperado com o susto, fora largado dolorosamente com o focinho ao chão de lama após esfolar as patas nos estribos do Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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chiqueiro, a silhueta recolhera a mão ao resvalar dos dentes desesperados da porca que urrava pisadora e encurralava os pequenos como se o inimigo lhe estivesse fustigando com uma corda, outra silhueta a arrastou de um só puxão até os estribos, gritava e rosnava sufocada pelo laço e sentindo as orelhas queimarem nas madeiras secas. Um dos leitões foi pego e devolvido, estava ferido. O outro, são, fora levado. A porca solta gemia olhando nos olhos do filho sobre os ombros da silhueta, seus olhos encheram-se, tentava forçar as tábuas do chiqueiro, era vão. Rodava e estalava na lama atordoada, mirou a cabeça entre as lâminas do basculante, seus pequenos olhos enrugados gemeram, as náuseas superaram a fome, quis afastar-se de tudo, destrancou as folhas e continuou: quando Rodrigo saía da igreja com seu filho batizado ao colo com seu próprio nome envolveram-lhe tonturas ao lembrar que hoje após a festa estava morto, seguindo com os convidados para o quintal do padrinho onde o leitão sobre a mesa imperava dourado ao centro suculentamente aberto pela barriga coroado de saladas, tinha ar alegre, diriam que ainda atordoado pelo golpe sorria Rodrigo para os que cumprimentavam e acariciavam o pequeno que na festa cedo dormiu protegido sem saber, mas os convidados sabiam e admiravam, pois não falava sobre sua morte nem mesmo deixara de sorrir quando as conversas lhe pediam, os convidados comovidos olhavam-no com aflito desejo de arrancá-lo, de mantê-lo junto a si como amuleto da dignidade que não deixavam transparecer. Celebravam bebendo e comendo, cada convidado comeu além de saciar a fome, havia um apetite que mantinha todos a beberem mais e comerem muito, porém ninguém ousava tocar no leitão que manteve-se sorridente escurecendo ao sol da festa nem mesmo lhe pousavam as moscas sequiosas pelo suor que pingavam as carnes cansadas ao fim da tarde, a qual sustentara a angústia de estar morto. Rodrigo sentou-se em uma leve cadeira, estava só. João, um dos convidados, que fumava ao portão para tomar os ares da rua voltou ao quintal, disse algo ao ouvido de Rodrigo que lhe respondeu, após, retornou à rua. Rodrigo entrou na casa, banhou-se, abraçou Ester, olhou seus filhos que dormiam na sala, não disse nada, não se despediu de mais ninguém, seguiu ao portão onde estavam três homens armados, um deles perguntou: “Vamo?” Rodrigo balançou a cabeça afirmativamente. Levou a mão à cintura, puxou a pistola e entregou a um deles. Seguiu na frente. João acompanhou com os olhos até que virassem a esquina, não teve coragem de voltar ao quintal, foi embora. O sol bafejava: sobre o corpo encontrado dentro de um latão ao fim da rua de acesso à favela.

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A FEIJOADA DE DOMINGO

Iasmin Rocha da Luz Araruna de Oliveira (Mestranda ― UERJ)1∗

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prato de domingo lá em casa era sempre feijoada. Era um ritual familiar. Nos reuníamos à mesa às 12 horas em ponto, mamãe, papai, eu e meus quatro irmãos. Achava tudo aquilo muito chato. Fazia anos que aquela mesma cena se repetia, com a única diferença de que agora os personagens estavam mais velhos e cada vez mais mudos. Tudo acontecia sempre igual. Íamos juntos à missa de manhã e à tarde nos juntávamos para olhar cada qual o seu prato e falar frivolidades da vida provinciana e ordinária do Engenho de Dentro. Mamãe mal abria a boca, sempre fora assim. Vovó dizia com orgulho que havia criado uma moça para casar: recatada, silenciosa e prendada. “Uma boa esposa deve cuidar do seu marido e da sua casa”, falava minha avó. Mamãe assentia com a cabeça sem discutir. E assim também era com meu pai. Quando ele falava, só se ouvia o eco da sua voz. Mamãe permanecia sempre calada e concordava com tudo, ou pelo menos não discordava. Ela vivia apenas de fazer as vontades do meu pai e de cuidar para que eu e meus irmãos estivéssemos sempre apresentáveis para a vizinhança, pois papai odiava que falassem que seus filhos andavam desleixados e que ele não provia à sua família de maneira adequada. Papai era um homem severo e imponente. Brigava por tudo e, embora nunca houvesse encostado o dedo para bater em mamãe, descontava nos filhos com pontapés e bofetadas suas amarguras do mundo. Tudo era motivo para nos castigar, até mesmo ter comido o melhor pedaço do porco da feijoada. Ele sempre dizia que éramos o motivo do seu desgosto e que por nossa causa havia perdido os melhores anos de sua vida. Ninguém contestava. Frente à figura autoritária de papai, éramos sombras mudas que vagavam com medo pela casa. Apenas meu irmão mais novo ousava desafiá-lo. Aurélio era um menino sério e quase não falava, mas às vezes seu gênio forte baixava como uma pomba gira enlouquecida, e ele partia enfurecido para brigas que duravam dias com papai. Entre eles seguia uma guerra silenciosa, em que ninguém se metia. Eu sempre torcia por Aurélio e sonhava com o dia em que aquele corpo franzido e desbotado iria destituir do cargo de chefe da casa os bigodes grossos e autoritários de meu pai. Tinha um carinho especial por aquele irmão, porque, apesar de sua falta de vigor corporal, tinha uma personalidade forte. Mesmo roxo e dolorido, depois de sessões de surras repetitivas, não abaixava a cabeça e encarava com olhos firmes o rosto de seu agressor. Eu era a quarta dos filhos e a única mulher. Era duro parecer o reflexo de mamãe. Assim como ela, eu não tinha voz firme com meu pai. No único dia em que abri a boca, recebi como pena puxões de cabelo. Passei dias com dores na cabeça e no orgulho. Em meio a feridas e bocas mudas, representávamos como marionetes nossa rotina. Roupas limpas, cabelos penteados e sorrisos de mármore davam tom à hipocrisia familiar e faziam do cárcere privado um ∗ 1 Mestranda em Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: iasmindaluz@ live.com 193• Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016


retrato acolhedor para os olhos curiosos dos que estavam de fora. Seguíamos passo a passo o roteiro de nossas vidas. Até aquele domingo de maio. Ainda consigo me lembrar do cheiro da terra molhada no jardim misturado ao cheiro de feijoada que inundava os cômodos da casa. Ao meio-dia em ponto estávamos todos à mesa para encenarmos nossos papéis. Mamãe estava bonita e vestia um vestido vermelho simples. Eu olhava os cantos da sala, entediada. Papai fumava um cigarro de palha e esperava a comida. Aurélio olhava com um sorriso no canto da boca a vida se repetir. Tudo parecia como sempre fora. Mamãe havia colocado o prato de todos, mas primeiramente o de papai. Ele tinha sempre que dar a primeira garfada para que depois pudéssemos comer. Aurélio o contrariou. Pegou seu garfo e comeu um bom naco de costela para, em seguida, se deliciar com o rosto insatisfeito de papai, que, ensandecido, levantou da cadeira e foi em sua direção. Eu tremi, meus outros irmãos permaneceram sentados, mamãe, completamente lívida, abriu a boca e, pela primeira vez em anos, deixou que palavras saíssem. ― Sai de perto do Aurélio! ― ela gritou. Todos ficamos atônitos. Até Aurélio ficou sem expressão. Mamãe nunca antes nos defendera daquela maneira. Em 17 anos, era a primeira vez que eu a via levantar a voz contra papai. Talvez ela estivesse com medo de morrer engasgada com as palavras que não disse ou talvez só estivesse cansada de uma existência de nulidade. Papai ficou com mais raiva ainda; seu rosto estava vermelho e surpreso. Apesar disso, respirou e chegou calmamente perto de mamãe. Não disse nada, mas sua mão voou em forma de bofetada no rosto dela. Apenas o estalido da palmada foi ouvido e todas as nossas vozes e pensamentos se calaram. Papai havia atravessado a última barreira. Fiquei com pena de mamãe, e meus olhos se encheram de lágrimas, mas eu não podia chorar. Ninguém era capaz de emitir som algum ou de fazer qualquer coisa. O feijão jazia frio em nossos pratos. Papai respirou novamente e acendeu mais um cigarro. Como se nada tivesse acontecido, sentou na cadeira e mandou que todos se sentassem, menos mamãe. Ele mandou que ela trouxesse para a mesa as laranjas que havia esquecido na cozinha. Com o rosto ainda vermelho e latejante, mamãe foi, mas não trouxe laranjas, trouxe a morte. Depois de um barulho ensurdecedor, papai caiu de cara no prato, e sua camisa se encheu de um vermelho escarlate. O cigarro chegou ao chão ainda aceso. Como de costume, não dissemos nada, mas dessa vez o sentimento não era de medo, era um tenebroso misto de espanto e liberdade. Em pé, com as mãos trêmulas e o olhar fixo, mamãe sussurrava palavras ao ar: ― Eu disse a ele que, se encostasse em mim uma vez, não faria isso nunca mais. Foi o último suspiro do tirano.

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INDIE ROCK Lucas Serpa (Graduação – UERJ)

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tudo sobre as garotas, não é? Mal pode lembrar quando tudo começou, todo esse repentino interesse, mas não importa, hoje é tudo sobre elas. Você assistia a filmes comédia-romântica-sessão-da-tarde

no sofá com sua mãe e não dava a mínima para aquelas emoções interpretadas pelos atores, ótimos mentirosos, mas hoje acompanha todo clipe do Arctic Monkeys ou de qualquer outra banda indie cujas letras sempre falam de garotas e de relacionamentos romantizados. É normal. Somos todos adolescentes e adoramos essa romantização do amor adolescente, mas, ao mesmo tempo, não tiramos um olho do futuro, até porque nunca se sabe quando o “amor verdadeiro” baterá à porta. Por isso, é sempre bom estar preparado. As saídas à noite, com apenas nós dois, de mãos dadas sob as estrelas e a atenção da lua voltada para vocês. Quantas horas se passaram, quantas cervejas já foram goela abaixo, e onde está a lixeira para jogar fora meu maço de cigarros mentolados com sabor de cereja, porque sei que você gosta de cereja? O mundo é um lugar muito bonito ao seu lado. Mas, no próximo mês, ela já não mais passa as noites na sua cama conversando debaixo de cobertas, enquanto, na televisão, passa algum desenho no Cartoon Network – porque adolescentes hoje em dia também gostam de desenhos. Em vez disso, seus olhos encaram o espaço vazio onde ela costumava ficar, sua mão passa pelo nada numa tentativa de agarrar alguma memória perdida, como a de quando trocaram seus primeiros “eu te amo”. Todos dormiam na casa, exceto o jovem casal, que ficava na cama conversando baixinho e prendendo risadas. Ela me odiava – e como – por lhe fazer rir nos piores momentos possíveis, mas, na hora de dizer isso, trocou os verbos (in)conscientemente, e eu apenas sorri sem dar resposta. “Não vai dizer nada?”, perguntou, envergonhada. E eu apenas beijei o beijo mais romântico que pude lhe beijar e respondi: “Eu te amo”. O mundo é apenas um lugar sem alguém ao seu lado. A cama é de solteiro, mas não à toa cabem duas pessoas ali. Outros amores vieram, outros amores virão, outros amores. Durante a adolescência, amor é uma pequena coisa que se acha na rua, jogada na calçada, que atrai teu olhar e que te faz, sem saber o porquê, levá-la para casa e colocá-la na escrivaninha, ao lado dos cadernos de estudo. Mas o tempo passou e, acidentalmente, a derrubou, sem saber exatamente quando, no chão de onde, ela foi varrida pela mãe, pelo pai ou até mesmo por você. Talvez nunca mais a encontre. Ou talvez a veja na rua mais uma vez. Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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CAT LADY Maira M. Moura (Graduação ― UERJ)

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gato dormia em um colchão na sala de estar. O colchão havia sido arrastado por três senhoras (uma grisalha, uma ruiva e uma branca) do quarto no segundo andar, empurrado abaixo pelas escadas e levado até a sala, onde estava o gato – onde ele sempre estaria. Outras duas senhoras o afagavam (uma negra, outra russa), mergulhando nas ondas de seu pelo comprido. Da coxa do gato surgiu uma mão branca e azul, com dedos eletrizados e unhas afiadas. Era Anna, a russa, que escorregou para dentro da pelugem e não conseguiu sair. Princesa, a senhora branca, ajudou Anna. Não havia móvel maior que o gato. Sua barriga ocupava todo o colchão de casal; as patas e rabo pendiam para o tapete persa esmigalhado pelo afiar de unhas. O rabo do gato atravessava a porta para a cozinha, se enroscava em pés de cadeiras. Seus olhos eram como enormes bolas de cristal com um risco negro. Daquele traço só se podia imaginar os tipos de criaturas que vivem do outro lado. Felizmente, os olhos estavam quase sempre ocultos sob as pesadas pálpebras. A casa em que viviam o gato e as senhoras era cercada por arame farpado. Atrás, havia um quintal onde o capim crescia selvagem, como vibrissas da terra, e onde antigas e novas bolas de futebol jaziam abandonados (embora nem sempre esquecidas). As senhoras às vezes iam até lá para catar lagartos, ratos ou gambás, que eram o alimento do gato. As velhas eram silenciosas e, fora o tempo que gastavam cuidando do gato, sedentárias. Vestiam casacos esquecidos no metrô, os que foram recolhidos e guardados nas gavetas daquela casa (não foram elas quem os recolheu, mas a pessoa que morava ali antes). Todas possuíam olhos claros, umas mais que outras. Até Luma, que era toda escura; dos dedos dos pés negros aos cabelos carbonizados, só lhe escapavam os olhos amarelos. Faísca, a ruiva, era uma velha de olhos enferrujados e cabelos e sobrancelhas incandescentes, mas de um fogo pálido. Princesa era aquela que passeava como um vulto branco: tinha a pele e a cabeça luminosas, os olhos azuis. Anna possuía cabelos cinza-azulados e olhos verde-opacos. Níquel tinha o cabelo dividido em mechas escuras, claras e médias, todas em algum nível de cinza, um pouco mais metálico que o de Anna. O gato raramente se mexia. Às vezes trocava de posição, o que poderia levar horas, já que não era somente um gato grande, mas um gato gordo e desajeitado. Houve uma época em que ele mantinha a cabeça sempre virada para a TV. Agora o aparelho não é mais ligado. A casa era cheia de coisas que não faziam sentido para as senhoras. Havia xícaras, chaleiras, fogão, um forro de crochê sobre o aparador, o aparador, porta-retratos, imagens de santos, livros e muitos ócu•196

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los esquecidos em vários cômodos. Cada objeto daqueles tinha uma história que elas ignoravam. Não ligavam para a marca invisível de lábios na caneca com pintas de dálmata, onde alguém bebeu café todos os dias, por seis anos. Se a foto na moldura de plástico contava a história de uma neta que perdeu o dente na piscina, não havia interesse. O que realmente as interessavam eram as torneiras e almofadas. Tinham o prazer da corrente de água e dos lugares confortáveis. E só. Houve um dia em que uns homens arrombaram a porta da frente, depois de gastar a música da campainha. O primeiro deles entrou furtivo e encontrou as senhoras dormindo em poltronas, no sofá e nas costas do gato. Ele não deve ter percebido a respiração suave do grande felino, pode mesmo tê-lo confundido com uma pilha monstruosa de edredons – estava muito ocupado em ficar enjoado com o fedor dali para prestar atenção. Luma era a única acordada. Aproximou-se do homem, que a olhou de cima para baixo. Ele estava realmente envergonhado por ter destruído a porta, mas não se desculpou. Ao invés disso, falou: – Onde está Efigênia? Ela ainda mora aqui? Luma respondeu que não, bisbilhotando as pessoas atrás daquele homem, que também pareciam embaraçadas por quebrar a porta de cinco velhinhas adormecidas. Foi assim que ninguém deu um passo à frente a ponto de poder ver o gato gigante na sala escura. – Você sabe onde ela está? Ela não atende o telefone... há semanas. Peguei um avião para vir até aqui. Sou filho dela. Luma não sabia responder àquelas perguntas e o homem decidiu ir embora. Aquela foi a única visita pela porta da frente. A outra visita vinha pelo vaso chinês no hall. A visitante ia ali uma vez por ano, e surgia de dentro do vaso (havia um espelho). Era uma garota sardenta que tinha um gosto por estampas floridas e rímel; e, claro, usava sempre um chapéu, geralmente um modelo coco ou cloche. As senhoras a tratavam com familiaridade, mas não lembravam muito bem quem ela era. A moça chegava, olhava a casa, olhava o gato, perguntava sobre as novidades e pedia por algo. – O que vocês têm para mim hoje? – Acho que dessa vez você vai gostar do que juntamos – dizia Anna. Então as velhas se reuniam para trazer uma fronha cheia de calungas e lagartixas mortas. – Não, eu não quero isso. Era a mesma coisa todo ano, mas a garota era paciente e sempre voltava. Uma vez, uma criança não ligou para as histórias que seus amigos contavam e entrou no quintal atrás de sua bola. Era uma bola cara. Além do mais, estava cansado de ser chamado “café-com-leite”. Tomás segurou Pedro pelo cotovelo e disse “Estou falando sério, não vai”, mas Pedro se soltou e correu para um buraco na parede, por onde só ele mesmo, e alguns gambás, poderiam passar. Os meninos brigaram entre si para conseguir um espaço naquele buraco onde pôr os olhos. Tomás conseguia ver Pedro lá dentro procurando a bola, com o mato na cintura. Depois não viu mais nada porque levou uma cotovelada. Então os meninos discutiram tão alto que alguém na casa ouviu e foi até o quintal. Pedro recuou, mas não gritou. Era apenas uma velha, como a sua vó, afinal. Aquela era parecida com cinzas de cigarro e não trazia Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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chicletes, mas era só uma velha. Apenas. Ela se abaixou e meteu os braços dentro do mato; puxou a bola de lá. Então, sem dizer palavra, estendeu-a para Pedro. O menino disse “obrigado” antes de chegar até ela, mas diria outra vez quando pegasse a bola, para cortar o silêncio. Só naquele momento, Tomás mandou todos se calarem porque havia perdido Pedro de vista. Quando voltou a olhar, ele já tinha sido agarrado por Níquel e entrado em casa; a bola, caído de volta para o capim. Pedro tinha uma mão dura, como um pedaço de osso, dentro da boca. Não adiantava morder. Faísca ajudou a segurar o menino e Princesa acordou o gato. Foram os olhos abertos do gato que mais aterrorizaram Pedro. Cada um tinha o tamanho de sua bola. O gato tomou o menino entre as patas e o deixou gritar um pouco antes de mastigar seu pescoço. Os meninos, lá fora, escutaram. A mãe que estava do outro lado da cidade, grampeando papeis, também escutou. Aquele almoço foi a maior bagunça. As velhas tiveram que limpar o sangue do colchão, do pelo e do bigode do gato, que não estava nem um pouco afim de ser tocado. Luma encontrou unhas soltas no tapete, no lugar onde o menino havia se agarrado e guardou-as. Alguma coisa dentro dela dizia que aquilo tinha valor. Não o valor monetário que move o mundo das pessoas e paisagens, mas o valor secreto que move o intrínseco das aparências. Um valor que serve para poucos, e por isso mesmo maior. Luma era preta como uma sombra, assim ela nasceu. Seus instintos eram memória da sua cor, um conhecimento arrecadado no pelo escuro. Quando ouviu Faísca e Anna discutirem sobre qual daqueles lagartos deveria ir para a fronha e qual deveria ir para a boca do gato, Luma teve uma ideia. Jogou as unhas no vaso chinês e esperou pela garota, apesar de faltar algum tempo para o mês em que ela geralmente aparece. Veio naquele mesmo dia. Saiu do vaso com as unhas na palma. Esse ano usava uma saia vermelha comprida atrás, curta na frente e uma blusa com estampa de orquídeas – além do chapéu. Chamou todas as senhoras e disse: – Eu sabia que vocês conseguiriam. Luma, esse é o melhor presente de todos. Com isso, posso devolver a liberdade de vocês. Então, a garota não estava mais falando com cinco velhas, mas cinco gatas. O gato no colchão era agora uma velha obesa, que tinha os pés inchados e os cabelos desbotados. A garota acariciou cada gato antes de sair. Entrou no vaso, o que em seguida se partiu em cacos que se partiram em cacos menores que se partiram mais, até restar pó. Mais tarde a velha acordaria e acariciaria suas gatas. Faria café e o beberia em uma caneca com pintas de dálmata. Olharia a foto da menina sem dente e pensaria em quão omisso e ingrato é seu pai. Remoeria um pouco, mas não o ligaria, nunca. Mais tarde ainda, alguém tocaria a campainha e seu coração dispararia. Mas após abrir a porta, desejaria nunca tê-lo feito. Lá fora estariam policiais, testemunhas e uma mãe desesperada, todos reclamando um menino. Ela choraria e juraria inocência, sem a menor desconfiança que pedaços dele ainda estavam entre seus dentes.

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COISAS DE ESCRITORES Mariana Oliveira (Graduação ― UERJ)

― Querida Magda, não faça isso! ― Mariana, você não manda mais em mim! ― Será que você pode me ajudar, Romualdo? ― Que quer que eu faça, mulher? ― Fale com ela por mim! ― E por que falaria? ― Você é o pai dela! ― Não sei de nada disso. Você escreveu isso? ― Vou escrever já. ― Faço com uma condição... ― E qual seria? ― Mude meu nome. ― Não posso, Romualdo. Não me pertence mais. Já criei sua mãe. ― Basta que redigite esta parte! ― Não mexe aí, Romualdo, não é assim! Depois que crio uma personagem, suas atitudes não mais me pertencem. Vão todas de acordo com sua personalidade! ― E daí? ― Daí que sua mãe deu-lhe o nome do pai dela, por quem era devotada. ― E que é que tem, mulher? Que te custa mudar o meu nome? Romualdo! Você é louca, é? Que diabo de nome é Romualdo?! ― É parte da sua mãe o nome que ela lhe deu! ― Basta que você mude o nome do meu avô! ― Não posso! ― Hum... Não foi você quem me criou? ― Sim. Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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― Então você é minha mãe! ― Nada disso! ― Eu sou inteligente, você me fez assim. Sabe a história de Gustave Flaubert? ― “Madame Bovary sou eu!”? ― Isso! Viu? Se você me criou, somos como a mesma... ― Não, você não está entendendo, Romualdo! Eu criei a história e ela, agora, não me pertence mais, por mais que seja minha, por mais que seja eu! ― Ah, licença vocês dois? Mariana, você já disse tudo, viu? Não te pertenço mais. Agora vou a onde quero. Azar o seu por ter me criado. ― Magda, volte aqui! Ou... ou crio um personagem que te assassine! ― Você não ousaria! Este texto é em primeira pessoa! Há! ― Você quem pensa, querida... Sabe o Brás? ― Cubas? ― Isso, Romualdo! Você é mesmo bem sagaz! ― Obrigado. ― Bem, voltando, vocês podem até não me pertencer depois que os crio, mas enquanto escrevo posso fazer o que quiser com vocês. ― Então mude meu nome! ― Ah, Romualdo...!

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PACHORRA Mariana Oliveira (Graduação ― UERJ)

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á ia quase louco há muito tempo por causa daquela mulher! Que maldade dela, deixá-lo assim. Era tal barata, mordia e assoprava. Num dia era toda favores, meiga, doce, só faltava pingar mel de seu corpo. Noutro estava distante nem parecia a mesma dantes.

Raquel era seu nome. Tinha uns olhos, que olhos, meu Deus! Quando olhava pra gente parecia até que estávamos olhando pela janela do paraíso! Os cabelos eram cor de fogo, vermelhos, brasais. Toda formosa, sua presença encantava de crianças a velhos, homens e mulheres, do mais rude ao mais sensível. Contava vinte anos quando a conhecera. Ela tinha dezoito. Trabalhava atendendo os homens cansados da labuta no bar da mãe. Levava uma bandeja com copos de pinga, quando pisou o pé de Arthur, nossa vítima. Ele, dolorido pelo primeiro dia de batente, xingou bem alto. A menina até se encolheu. - Me desculpe, senhor! – e voltou-se para o balcão. Mas Arthur, arrependido diante de tanta graça, tomou-a levemente pela mão e disse: - Qual nada, me desculpe a senhora. - Senhorita – disse Raquel, apresentando-se. E desde então, Arthur passou a entrar no bar sempre, só para vê-la. De início ele, homem sério, muito macho, pouco dado a sentimentos – aproveitava-se apenas do corpo das raparigas – mentia para si mesmo que precisava só de um bom copo da desgramada. Mas ai dos móveis de sua casa se fosse ao bar e não visse Raquel! O negro ficava que era o Diabo! A dona da pensão, desesperada, chamava o marido pra dar um jeito na moganga do negro, e o homem, mais para rato, batia de leve na porta temendo um soco. Arthur abria já arrependido, que não era pra aquilo que sua mãe o criara. Desdobrava-se em desculpas, que o rato do marido distorcia em “Eu falei com ele, mulher, não se apoquente que eu não quero ir lá arrumar briga!”. E nisso passaram-se meses até que ele não pôde mais negar que a amava. Que era para ela que trabalhava e poupava seu dinheiro porque no futuro queria se casar. Que seu dia só valia a pena se passava pelo bar e a via lá, toda linda, como uma flor no meio daqueles cães, ainda que seus ciúmes quase o fizesCoruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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sem entrar para tirá-la dali. Foi bem num dia que estava para lá de bom pra qualquer um que vivesse debaixo do céu de nosso Senhor: o time estava vencendo, o salário fora maior porque o patrão estava contente com o nascimento do primeiro filho, voltando pra casa ainda ganhara um galo bom pra assar do granjeiro, que estava para se mudar. Mas o Arthur estava amuado, sem nem saber porque, e ia errando pra casa só pensando nela. Os homens da rua perguntando “Ô homem, que te aflige?” e ele sem ter como responder. E as pernas o guiaram como descreveu Brás Cubas, até que se viu diante do bar, diante de Raquel. A ruivinha estava encantadora, uma flor pendurada na orelha, o sol refletindo em seus olhos cor de mel. - Mas o que há de errado, Seu Arthur? Não quer entrar e tomar um gole? - Mas que nada, senhorita! Já lhe pedi que me trate por tu. Agora que te vejo ficou tudo azul de bolas cor-de-rosa pra mim, menina! Ela riu um riso solto, audível, os dedos de moça guiando os fios soltos do cabelo de fogo para trás da orelha. Arthur já estava feliz. Agora não se podia mais negar o amor que sentia por ela. E ele, homem inexperiente nesses assuntos do coração, sentia mesmo que ia explodir se não falasse. Mas a Raquel na sua doçura ingênua ia e vinha por entre os homens, beliscava um pedaço de queijo de cada mesa, conversava com eles. E o Arthur, ensandecendo, quase a arrastá-la pelos cabelos mesmo, queria era levá-la para os lados do litoral, que naquele interior do Nordeste só tinha devasso. O moço estava a suar, mas não queria fazer o veado e não beber a pinga que Raquel deixara em sua mesa, porque estava cercado de conhecidos e vizinhos. “Ah, Diabo!”. Ele pensou em terminar logo aquele copo e puxar Raquel prum canto, pra modo de falar logo o que estava sentindo. Mas a moça passava por ele sem parar, apenas lhe sorrindo do outro lado da sala. “Ela vai ter que vir perguntar se eu quero mais alguma coisa!”, ele pensou. E nisso entrou a Lucilene, que tinha por Arthur uma paixão recatada. O homem era bonito, afinal, e ela quase que não enxergava nada quando estava perto dele, derrubava o que tinha pela frente. Caiu uma cadeira por perto, e o Arthur, pra chamar a atenção da Raquel, levantou pra pegar. Mas fez mal, porque aí a Lucilene foi-se sentar com ele e agora era que não ia mais poder falar nada! A Lucilene contava da sua tia velha, que andava para lá de xoxa porque não aguentava mais coser pra fora. - Então que não costure! – disse o rapaz, tentando não ser grosseiro enquanto só via Raquel, a lavar um prato de doces que a mãe esvaziara. - Mas ela gosta de trabalhar, Seu Arthur, aí é que está o problema. E eu estou às voltas com os estudos... Mas ai que graças ao bom Deus só me faltam mais dois anos e eu vou poder ajudá-la. - Hum... - É que logo faço dezoito. Vou poder até casar... – pobre Lucilene, cegada pela paixão. - Hum... - Ouviu, Seu Arthur? •202

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Mas ele não respondeu. Raquel, que estava a dois segundos olhando para ele, acabara de deixar cair o prato. Arthur correu para o balcão, dizendo-lhe palavras doces, pegando sua mão e limpando os cacos. A coitada da Lucilene saiu com os olhos marejados: ainda não sabia que paixão é coisa que dá e passa, é fogo que queima e morre. Mas o amor que Arthur sentia, ah!, esse só fazia crescer! Ainda mais vendo a menina com os olhos gigantes, marejados, querendo abraçá-la. “Ora, que se dane essa coisa, não tenho vergonha que eu não sou fruta!”, abraçá-la foi o que ele fez.

Naqueles dias de calor extremo, o povo se molhava de mangueira na rua, nas portas de casa mesmo. A Raquel, que só fazia trabalhar no bar, molhava os braços e as pernas também, amarrando a barra do vestido quase nas ancas. A pontinha de pano e o cabelo onde pingasse água secavam em questão de minuto. Que beleza era ver a Raquel debaixo da mangueira, os olhos fechados como se agradecesse pelos poucos minutos de refresco! O Arthur, que já se sentia guardar certa propriedade sobre ela, ficava sempre aflito com a quantidade de homem que parava para ver, mas não era tempo ainda de começar a restringir as atitudes da moça, que ela podia se assustar e afastar-se dele. De noite, aos sábados, ele a levava ao cinema, ou iam ambos tomar sorvete na praça. A mãe da Raquel fazia gosto do rapaz trabalhador, e até fingia que se lembrava de sua falecida mãe. - Ah, boa senhora, isso ela era! A Raquel que tinha um espírito lisonjeiro, agradecia aos elogios de Arthur e às declarações, sempre modesta, como que se achasse indigna delas. Tratava bem o rapaz, até suas roupas pegara pra lavar, mas nunca que dava sinal de sentir amor por ele como ele sentia por ela. Quando lhe perguntavam as menininhas com quem brincava que tipo de relação tinha ela com Arthur, sorria daquele seu jeito, olhava para elas daquele seu jeito – parafraseando o tal José Dias, olhava de (com)“olhos de cigana, oblíquos e dissimulados” – e respondia que eram só amigos. E o Arthur na sua ilusão ainda ajuntava dinheiro pro casamento, mas sabia que tinha coisa errada porque nem um beijo Raquel lhe dera ainda. Talvez ela pensasse ser muito nova pra casar, mas pelo que fazia por ele era de se supor que queria, no futuro. Feliz mesmo ele ficou quando um tal de Alexandre, um moço engomadinho do litoral, passou a rondar Raquel e levou bem um passa fora da moça. Dizia-se até que ela lhe disse – sempre naquele seu jeito meigo – que estava já enamorada por outro. E esse outro, pelo que viam as pessoas, só poderia ser Arthur. E nesse dia a Raquel estava que era uma prenda, cheia de carinhos, cheia de elogios. “Está bonito, Seu Arthur! Está forte, está cheiroso! Andas com fome? Queres um pedaço de melancia?”. Mas fugiu discretamente quando ele foi beijá-la no cinema, cheia de risinhos. O rato da dona da pensão, agora já entendido do problema do negro, lhe dava conselhos de macho sabido: “Essa menina está é de doce, que tenho dito! Mas você tem que ter paciência, que mulher boa é assim. Se ela facilitasse você perderia o gosto. Sabe que macho é caçador e ela é a presa perfeita”. - Mas eu já estou que não me aguento! Ela ainda me chama de senhor...! Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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- Continua assim como está, que ela não faz por mal não, só te quer prender. Vai ter uma hora que ela mesma não vai mais conseguir e cede, que eu sei. Se você fizer o mesmo jogo com ela é capaz de perder. Nada de resistência, é o que lhe digo. Empurra com a barriga, faz as vontades dela que você garante, Arthur! O rapaz ouvia o velho como se fosse seu pai a lhe aconselhar. E vivia naquela vontade há mais de seis meses contando do dia do prato quebrado. Até Lucilene arranjou-se com um rapaz, o engomadinho do Alexandre que descobriu que se amarrava em uma neguinha. Por tudo isso, já ia pra ano que Arthur estava enamorado de Raquel. Não tinha mais visto nenhuma outra mulher, e não por falta delas, que o negro era atraente! A Raquel era vigiada por todos os outros, pois homem é bicho unido. Ninguém chegava perto dela que Arthur não ficasse sabendo. E nem precisava de vigia, que ela era moça de respeito e botava os outros pra correr. Sempre dizia que estava enamorada. Arthur tinha ganas de ouví-la dizer aquilo, era até capaz de roubar-lhe um beijo daqueles. Paciência era diferente do sangue de barata. Ele tinha fogo na veia, trazido lá do povo africano. Era homem de atitude. Passaram-se os dias e nada de ele ouvir a moça declarar que estava enamorada. Já começava mesmo a pensar que não era por ele, que ela o via só como amigo mesmo, mas aí ela vinha cheia de solicitudes... Estamos de volta para o início da narrativa, quando vimos que ele já ia quase doido por causa de Raquel. Esse era um dia em que ele estava no bar, a Raquel lá pelos fundos, atendendo freguês. Arthur já se punha triste, a paciência de Jó convertida à desilusão. O coitado já se arrependia por Lucilene e até tinha certa inveja dela. Mas não inveja de seu namorado, não, que ele era macho e tem-se dito! Inveja da certeza que ela tinha do amor dele. Não sabia mais o que fazer. Já pensava que durava nem mais um dia naquela incerteza, e que se fosse confirmado que ela não o queria era até capaz de agonizar até a morte. Lá fora passaram Alexandre e a Lucilene, que entrou toda sorrisos para falar ao negro, que de lá de fora se via triste e abatido. - Mas ai que a menina é esperta, Seu Arthur! Vê bem que ela te ama, pois lhe quer prender o resto da vida. Se te vir assim por ela, sabe logo que a ama mais que tudo. - Pois eu acho já que não é nada disso... - Eu não precisei disso com o Alexandre – disse a moça, olhando lá para fora. O namorado bateu com um dedo branco feito cera no relógio de pulso, o olhar derramando ciúmes sobre o negro. Arthur teve até receio – Mas isso foi porque sabia que ele me ama muito já... - E como sabes? - Porque ele me escreveu uns versos lindos e os declamou para mim bem no auditorium da escola. - Mas eu não tenho essas habilidades... - Pois que não há necessidade disso, se ela vem aí com fogo nos cabelos e nas ventas ver o que falas comigo em tom de segredo. Eu me vou que não quero apanhar e meu homem está cá fora me esperando. - Já se vai, Lucilene? Eu ia ver se desejava alguma coisa...! – disse Raquel, a voz trêmula. A outra acenou decentemente lá de fora, o braço ao redor do namorado, que nem mesmo olhou para •204

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Raquel em respeito a sua pequena. Dizia-se que daqui a um ano, quando se terminassem os estudos de Lucilene, ela iria casada morar com o engomadinho e a tia no litoral. - E que tanto lhe falava ela, pode-se saber? – perguntou Raquel. Arthur olhou para ela e quase teve um piripaque. Seu rosto estava vermelho, muito vermelho. Parecia até que estava para desfalecer. - Pois senta, boneca, que se não cai... - Não preciso me sentar que estou bem. Essa Lucilene não estava apaixonada por ti? - Mas isso já tem quase mais de ano, Raquel, sem aperreio! - E você deixe de arenga, vá ao ponto que quero saber do que ela falava! E agora já estava demais! A jovem parecia mais velha, a voz doce perigosa, mais alta até. O Arthur, longe de ficar feliz com a crise de ciúmes, amuou-se mais. Os olhos quase que cheios de lágrimas, levantou-se e disse, olhando fundo nos olhos de Raquel: - Você está que eu não te entendo! Sabe, não é possível que não saiba, que só vivo e respiro por ti! Sabe que não penso em outra coisa que não em sua pessoa e que já não me basta o que como e bebo para manter meu espírito colado a esse corpo, pois que me falta você. E agora fica aí de desconfiança! Se a moça só me veio consolar...! Pois que vê-se de longe: estou me acabando nessa espera, já ando mal com forças para trabalhar. Se te vejo e sinto o teu cheiro em todos os lugares...! Você anda como se desdenhasse do meu amor, diz que está apaixonada, mas não se sabe por quem, foge dos meus beijos e diz que só somos amigos... Você está fatiando meu coração, Raquel. Ela, que durante todo o desabafo ficara parada com as mãos – antes firmemente presas à cintura – pendendo molemente ao lado do corpo, estava com o rosto lavado de lágrimas e trazia nos lábios um sorriso apaixonado e doce. Esticou os braços e levou as mãos cálidas a face do negro. Ele voltou o olhar para ela. Uma ventania lá fora varreu os cabelos de Raquel para o rosto do rapaz, que respirou deles o cheiro de rosas. Raquel, à vista de todos, sorriu aquele seu riso solto e olhou ao redor com aquele seu olhar capitulino. Disse: - Este é o homem por quem estou enamorada! E o beijou.

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CRÔNICAS

QUANDO FALTOU LUZ Anderson Câmara (Graduação ― UERJ)

P

rimeiro, senti o silêncio. Os ruídos imperceptíveis da vida urbana sumiram, e então se tornaram perceptíveis. Fornos industriais com seu vibrar grave, música em diferentes pontos do bairro, vozes de pessoas em bares e lanchonetes, tudo isso se mesclava e se tornava um único tom ressonante que zumbia no fundo do cotidiano. Não havia isso mais; a vida moderna, acostumada ao barulho constante, estranhou a lacuna deixada, esse vazio invisível e tão presente, tão cheio e pesado. Estranhava-se ouvir as vozes dos vizinhos, o baque seco do copo na mesa, as gotas de chuva do beiral, o som da própria respiração. A gente tinha esquecido o som da vida real, de tão habituados às televisões fervilhando, aos aparelhos elétricos chiando e aos celulares apitando. Depois de estranhar, o silêncio virou uma visita agradável. Porque a gente descobriu que toda essa parafernália moderna, que serve para facilitar a vida, acaba por muito estressar a mente e o corpo já estressados depois de um dia de trabalho e das inevitáveis três horas de trânsito. E esses sons individuais, que finalmente tiveram vez de dizer que existem, acabaram por receber grande apreciação. O silêncio ressaltou o quão agradável é viver simplesmente. Mas a mente reage à falta de agitação como um drogado em abstinência acaba sofrendo da própria solução por que tanto clama. Depois, a falta de tecnologia fez lembrar como a gente esquece que o prazer maior da vida é conversar um pouco com os companheiros de lar, é a doce expectativa da janta ficando pronta, é escrever em papel, sentindo a ponta esferográfica roçar na aspereza da folha a cada letra construída. Viver devagar estica a vida...

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A TERCEIRA CASA Anderson Câmara (Graduação ― UERJ)

I

maginemos uma cidade incomum. Se você já leu A Utopia, de Thomas More, talvez não ache a ideia tão absurda.

Imagine que uma cidade, brasileira ou não, contemporânea ou não, admita um sistema de governo em que não há propriedade privada e onde cada pessoa é feliz pela função que desempenha nesta sociedade, independente de ser médico ou limpar ruas, pois entendem a comunidade como um corpo. Um dos artifícios para esta satisfação seria equalizar todos quanto ao seu valor pessoal e hierarquizar apenas o dever. Os líderes seriam escolhidos por voto popular, sem candidatura, e o eleito decidiria então aceitar ou recusar a investidura no cargo. Digamos que, sem propriedade privada, o líder eleito fosse obrigado a habitar certa casa por fins logísticos. Uma casa sem nenhum adorno ou diferenciação além abrigar o líder da comunidade, uma casa popular como qualquer outra. Nos primeiros dias, esta comunidade viveria em plena paz e satisfação, pois teriam matado a ambição e valorizado o dever, que eram considerados os motivos da falha de todos os governos. Um dia, um carteiro, por exemplo, passaria pela casa uma vigésima vez e veria o líder na companhia dos homens investidos dos deveres primordiais na comunidade. O carteiro humildemente entregaria a correspondência imaginando se aqueles homens admirariam a entrega de cartas como o carteiro admirava o combate à injustiça. E não somente o carteiro teria tal devaneio. Em pouco tempo aquela casa comum, que não teria nome de palácio ou arquitetura mais rebuscada, seria vista com alguma distinção. Quando alguém declarasse que bons e felizes eram os que habitavam a terceira casa da rua dez, o endereço tornar-se-ia o título. Quando alguém se orgulhasse de já ter habitado a Terceira Casa, o cargo estaria assumidamente ambicionado. Quando alguém dissesse em público “a senhora faria jus à Terceira Casa”, estaria lançada a campanha política. Quando alguém concedesse privilégios ao habitante da terceira casa a fim de ser indicado por ele na eleição seguinte, aí, de uma só vez, entrariam a dissimulação, o favorecimento ilegal e a dinastia sutilmente ditatória. Nesse momento, os habitantes da humilde e avançada comunidade bem poderiam construir um palácio, não apenas sobre a Terceira Casa, mas sobre toda a quadra. Poderiam ambicionar publicamente e fingir publicamente e parar de fingir também que já não se achavam superiores ao carteiro ou ao lixeiro. E quando criticados por aqueles tradicionalistas que antes tinham criticado, poderiam dizer: “não deu certo, mas o que há? Somos humanos!”.

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A PROMESSA Jéssica Caroline Pessoa dos Santos (Graduação ― UERJ)

Amanhecia mais um domingo, o galo já cantava. Era hora de acordar todo mundo. De hoje não podia passar, pensou a mãe muito afobada. Acordou primeiro o marido, depois entrou no quarto das crianças, acendeu a luz e gritou: ― Acorda, meninada! Hoje é o grande dia! Mais ou menos em meia hora todos os nove filhos já estavam prontos: tomaram banho, café da manhã e estavam todos vestidos. Logo que saem de casa o filho mais novo questiona: ― Mãe, por que sair tão cedo? Hoje é domingo! A mãe responde: ― Você sabe bem o porquê... temos que ir na Igreja da Penha pagar a promessa que fiz a Santa há um tempo atrás para que ele ficasse curado. E vamos que os outros devem estar lá embaixo esperando! Lá iam o pai, a mãe e as nove crianças descendo ladeira abaixo para pegar o ônibus. Os filhos mais velhos já estavam no ponto de ônibus com os seus respectivos esposas e maridos. O 254 quase passou direto mas deram sinal e ele parou. E então subiram as 25 cabeças de uma vez só. No balançar do ônibus, a velha mãe rezava para que tudo desse certo. Chegando lá a velha mãe começou a subir os imensos degraus com as crianças. Mas seu marido, um homem já avançado de idade, no vigésimo andar já estava esbaforido. Suas costas doíam, as juntas nem se fala. Preocupada com a saúde de seu pobre marido que ainda estava se recuperando da cirurgia que fizera, propôs subir com ele e com uma de suas filhas mais velhas e seu marido, também idoso, de elevador deixando os filhos mais novos, ricos de saúde subirem de escada. Vendo essa atitude uma velha senhora que subia com as suas irmãs disse: ― Ora! Que povinho, hein? Desistiu de fazer a promessa na última hora! A irmã respondeu: ― Pois é! Aí chega lá e vai querer a benção igual nós! ― A Deus ninguém engana! Disse a outra irmã com o terço na mão. Ainda com os pensamentos voltados a Deus, a mãe agradece por estar cumprindo a promessa que era apresentar toda a família aos pés do Senhor. A missa já tinha começado, sentaram todos nos bancos de trás fazendo com que o santuário ficasse cheio. •208

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No meio da missa o padre anunciou a promessa feita por aquela mulher e a igreja a saudou. Se sentiu muito acolhida por todos. Todos exceto as irmãs que a olhavam de raiva. A mais velha pensou: ― Agora essa mulher deve estar se sentindo toda pomposa por isso. Mas deixa que no final da missa eu irei desmascará-la na frente do padre. A missa acabou, então a mãe iria agradecer a Santa e se despedir do padre quando a irmã entrou na frente e disse dirigindo-se ao sacerdote: ― Padre! O senhor acha certo que essa mulher tenha subido de elevador? Pois o elevador é apenas para os inválidos e não para os não pagadores de promessas! A mãe ficou tão assustada que não tinha nem forças para falar pelo tanto que chorara. O padre já conhecendo a família daquela velha senhora e a fama de encrenqueira das irmãs cajazeiras falou: ― Irmãs, porventura não aprenderam nada com o sermão de hoje? A palavra do Senhor nos diz que “O Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o coração”. Depois desse episódio, a mãe desceu do ônibus muito feliz, mas enquanto descia as suas calças caíram. As crianças riram e o filho mais novo perguntou: ― Esqueceu o cinto de novo, mamãe? ― Dessa vez não. Isso é prova de que todas as coisas más caíram por terra.

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DOS GÊNEROS Victor Hugo Cardoso Delmas (Graduação ― UERJ)*

O português, que vem do ventre latino, não possui o gênero neutro como a língua de Virgílio e Cícero o fazia. É claro, assim, que algo se perdeu. Pois bem: como enquadrar o substantivo cabeça, o substantivo mar ou o substantivo corpo no gênero neutro (do latim neuter, -is, que significa nem um nem outro) se a língua vernácula não dispõe desse recurso? O latim dispõe, e por isso mesmo tais nomes são neutros. Se corpo é masculino, a língua é machista? Cabeça é feminino, cabeça é feminino!, insisto. Embaralham-se gênero gramatical e sexual. Menos sede ao pote. O latim, como bem se sabe, é uma língua sintética, em oposição às neolatinas que são analíticas. Como tudo, há vantagens e desvantagens, prós e contras. A língua romana é composta por declinações, que nada mais são que grandes grupos compostos de substantivos que funcionam de forma similar. Isso existe em português, a propósito. Não à toa, dividimos os verbos em três conjugações, e esperamos minimamente algo em comum entre aqueles que pertencem à mesma categoria. É de vital importância salientar que Roma, cuja língua oficial era o latim, foi uma sociedade patriarcal. Está muito claro que língua e cultura constituem um nó tão apertado que se tornam, por isso, indissociáveis. Vale lembrar também que herdamos a língua de uma sociedade patriarcal. Os vestígios da outrora potência mundial são inevitáveis. Pois bem: a primeira declinação dos substantivos latinos possui em sua grande maioria nomes femininos: rosa (rosa), insula (ilha), patientia (paciência), dea (deusa). Existem também alguns nomes masculinos, como nomes de profissões: nauta (marinheiro), agricola (agricultor) e nomes estrangeiros, como poeta (poeta). A segunda declinação, no entanto, é diferente. Possui, na sua grande maioria, nomes masculinos, como servus (servo), deus (deus), filius (filho) e animus (espírito). Existem também nomes femininos, como nomes de árvores: malus (macieira) e citrus (limoeiro). Os neutros, tão ausentes no português, também aparecem na segunda declinação, como o substantivo bellum (guerra) ou o substantivo templum (templo). A pergunta que fica é: por que existem substantivos masculinos na primeira (que é uma declinação de maioria feminina) e por que existem substantivos femininos na segunda (que é uma declinação de maioria masculina)? Ora, mais uma vez, língua e cultura estão tão conectadas quanto poderiam estar. Confundem-se. Ligam-se. Divertem-se. Foram à primeira declinação os nomes masculinos de profissões não valorizadas, exercidas pelas classes dominadas. Foram também os nomes estrangeiros, que provinham de outra cultura. Ora, se Roma foi uma sociedade patriarcal, é evidente que a intenção de pôr esses nomes nessa declinação passou por uma questão social: o desprestígio. •210

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Foram à segunda declinação os nomes femininos de árvores, que simbolizaram a fertilidade, própria da mulher. Com isso, houve a intenção contrária: o prestígio. O neutro latino se aproxima muito mais do masculino que do feminino. Nos casos genitivo, dativo e ablativo se declinam como um masculino. No português, uma espécie de neutro permaneceu: os pronomes demonstrativos isso, isto e aquilo. Ora, se não é esta nem este, é isto. Se não é essa nem esse, é isso. Se não é aquela nem aquele, é certo que será aquilo. Vejamos bem: todos eles se aproximam mais do masculino que do feminino. A culpa não é, não foi e não será do português. O gênero masculino, além de tudo, é o gênero não marcado! Mulheres, sintam-se especiais! Ora, uma sala só de mulheres, é uma sala só delas. Uma sala, contudo, com muitas mulheres e um homem, é uma sala deles. Um único homem é capaz de manchar tudo! Mas vejam o que isso significa: a não identidade, a não marcação. Lembrem-se mais uma vez: o neutro se aproxima mais do masculino que do feminino. O feminino, em língua portuguesa, é plus, é o black card. Usado apenas para com elas! Ai de quem negue isso. Para fechar, deixo a questão: como seria a nossa língua machista se temos o feminino de papa sem nunca termos tido uma papisa no papado? Por que temos poetisa se poeta serviria muito bem em sendo comum de dois gêneros? Por que haveria a língua de ser machista se ela dispõe de tantos recursos de que nem usufruímos? Meu discurso já está preparado para as críticas. Ergo a bandeira, estufo o peito e solto a voz: a culpa é de Roma, a culpa é de Roma! EX FVMO DARE LVCEM.

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poemas

500 ANOS Anderson Câmara (Graduação – UERJ) 1

Acabou o medievalismo

Traz o preto da África grande

Navios e expansionismo

Bota no tronco se quer ser livre

O Brasil “descoberto”

Assim essa terra nova se expande?

de uma península ali perto

droga nenhuma

O índio só quer viver

Napoleão tá quase no umbral

o branco chega e toma

Irredutível, forte e vil

o que nunca chegou a pertencer

Corramos todos à nau

nem a quem o tente defender

só nos resta esse Brasil

Um curioso

2

outro escraviza

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Um furioso

“Quinto dos Infernos” diz Carlota

outro assassina

Manda construir estrada

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e faça desta terra ferrada um lugar onde Rei mora.

E numa ironia dessa o Brasil se mete em duas guerras

Volta pra cá, Rei João

E como não bastasse tanta usura

Traz também teu filho

ainda vem a ditadura.

“Diga ao povo que fico” Devasso Pedro é agora dono desse chão

4

“Imperador”, olhe só!

O regime caiu, Brasileiro!

O Brasil é independente

agora de nossa gente

pra ser por si só

elege um bom presidente!

cada vez mais decadente.

“Eita, cadê meu dinheiro?”

Decadente? Mas como assim?

Daí então, andou tudo igual

Somos país, olhe pra ontem!

Deputado enriquece

É, mas o pobre homem

Mas a gente logo esquece

só espera é seu fim.

Aí vem copa e carnaval

3

Assim, desde antiga data a nobre casta

Desde o começo

só trocou a coroa pela faixa

tem sido esse jeito O grande faz seu desejo

Prometem uma e outras mil

de ter mais dinheiro.

e nos fazem de tolos Esse é meu Brasil,

E nisso pisa o pobre

um país de todos.

o rico e ri e o outro sofre Em um mês recebe o que o outro gasta quando bebe. Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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SOBRE SOLIDÃO Anderson Câmara Anderson Câmara (Graduação – UERJ)

Há vantagens na solidão. Você raramente terá problemas de espaço E absolutamente nunca terá problemas de opinião Ninguém vai ouvir seus eventuais surtos de tolice ou rir de uma súbita vergonha. Você poderá ser egoísta, soberbo, mentiroso, nojento sem magoar uma pessoa querida. Ninguém vai te fazer se sentir culpado por se empenhar mais que você nas tarefas domésticas. Não vai deixar ninguém sem dormir quando for chegar em casa tarde. E quando o espelho escarnecer de ti por diante dele chorares à trivialidade da existência humana, você pode culpar a solidão pelas lágrimas.

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NAMORADOS

TREM

Anderson Câmara (Graduação – UERJ)

Anderson Câmara (Graduação – UERJ)

Lá eles vão

As bolsas pesam

as mãos dadas

Os braços pesam

enlaçadas.

As pernas doem

Com discrição

Os pés se moem

se dão a um beijo

O chão balança

de lábios feitos

O trem avança

com essa paixão

Tudo apertado

e falas ternas

Desesperado

de jura eterna

De sono ao lado

com emoção.

Pressão na veia Bexiga cheia

Talvez nem lembrem

Estresse tenso

que para sempre

Tudo em silêncio

nada disso é não. Deixe ela e ele

Estação...

não interpele

Reflexão...

Sem coração

A vida é curta

a vida tênue

Mas a viagem é longa

tem graça não. As bolsas pesam mais Os braços ardem mais As pernas forçam Os pés entortam E o trem balança Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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O chão avança

No meio do nada.

Entrou mais gente Então aguente

Senhores passageiros,

Todos juntos

estamos aguardando liberação de tráfego à frente. Agradecemos a preferência.

Sem tumulto Trabalhadores As mesmas dores A porta aberta Bexiga aperta

O MEU AMOR POR TI Estação...

Fabricio da Silva de Oliveira (Graduação ― UFRJ)

Reflexão...

Tô sem dinheiro O tempo inteiro Pra que trabalho?

As bolsas pesam mais Os braços doem mais As pernas gritam Os pés me pisam O trem avança Ninguém balança Entrou mais gente Por Deus, aguente! Tô passando mal Chegando à Central

O trem para •216

Não há poesia sem você, ouça: Não há poesia! Tentei encontrar uma solução, na ilusão De caminhar por outros caminhos, Conhecer novas flores. Mas em todos os caminhos e em todas as flores Eu te encontrei e descobri: Você está em todas as coisas, Você está dentro de mim. Está no meu modo de olhar a vida. Na beleza de minhas canções. Em cada verso, vocábulo, rima, Rima teu nome: Inspiração! Impossível te escrever em tão poucas palavras. Nenhuma língua do mundo suporta o teu ser. Infinito de pétalas enfeitando o outono. O meu amor por ti não é divino e nem platônico. Não é conceituável! Tampouco imitável! Vem de onde o tempo é estável. Vem de onde o eterno não tem fim. Onde vivem todas as flores e todas as poesias Ainda não conhecidas. Onde vive tudo o que é incompreensível: Os meus sonhos, as lágrimas, minhas dores, a saudade E o meu amor por ti!

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POESIA À SEMELHANÇA DE HOMEM Fabricio da Silva de Oliveira (Graduação ― UFRJ)

Tento escrever a poesia perfeita. Aquela, nunca escrita, nunca alcançada. Quando já não acreditava mais em mim - em poesia, Eis que a encontro, de carne e osso, de carne e alma. Jamais vi poesia à semelhança de homem! Tive medo, ao tentar interpretá-la e não consegui. Existência insólita e misteriosa, às vezes, apavorante... Como explicar esses cabelos-cascatas jorrados em teus traços? Místicos enjambements? Teu sorriso é sol nascente se pondo no outro lado do mundo. Olhar barroco, (des)concertante. Me sinto tão seguro na escuridão de tua íris, UM PASSO Mesmo desconhecendo o recitar dos teus olhos. Pedro Cruz de Aguiar (Graduação ― UERJ) Hipérbole! Figura de teus genitais. Tudo em você foi levado ao extremo: Girar, rodopiar, a valsa no escuro, Nariz e lábios “babuínicos”, compreender, existir, deixar de ser. corpo felino meio feminino, macho... O giro, movimento da mente, Foste escrita pela natureza com grãos de terra. a cabeça parada. Com grãos, de terra molhada. Tão imensa, tão sem limitações. O sonho! o sonho! Terminar-te, aqui, em linhas, seria impossível Viver só no sonho, Já que foste feita de infinitos vejo o céu, não toco, Te deixo voar acredito e só. O golpe, provar da realidade, não aceito, questiono a sanidade, só o é por assim achar. Falsamente ser, na mente fisicamente, nunca! Passo, inteiramente chão, terreno, pensamento... o sonho, o sonho. em casa realmente, ser. porta a fora, Viver.

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O LADRÃO DE ESTRELAS Lucas Serpa (Graduação ― UERJ)

As estrelas não mais habitam o céu escuro das duas horas da manhã. Ninguém mais vê estrelas à noite, Escondidas pelo Grande Amarelo Pai durante o dia E por suas falsificações durante a noite. Quem roubou as estrelas? O Ladrão de Estrelas não levou apenas pontos brilhantes. Levou os amores da minha vida, Minhas companhias em cada noite de solidão. Assobio a fumaça para Cada pequena e brilhante alma Longe na escuridão noturna. CARTAS Só nos sobra a Lua. Mariana Oliveira (Graduação ― UERJ) Doce Lua. A Grande Mãe Prateada. Ela não tem culpa. De um jeito ou de outro, Ainda exerce seu papel de babá. Guia caminhos e estradas e curvas certas Para todas as estrelas cadentes que teimam em Cruzar nossos céus, Queimar em nossa atmosfera, Para não se sabe onde.

Dizes coisas tão belas, senhora Tão belas e tão mentirosas A tua verdade é horrenda, embora A disfarce teu perfume de rosas Cá por mim não me dou aos pedaços, Não posso aceitar pedaços teus Embora me tenhas em teus braços, Caminhas para longe, nem dizes adeus Beijo-a ao dormir, em meus sonhos E espero beijá-la quando a aurora vier Mas só dormindo obtenho meus ganhos, Pois tu me repeles e somes, mulher Pergunto se é pela semelhança Que se dá tamanho desprezo A resposta devolve-me a esperança E com dobro de afinco eu rezo Para realizar meus sonhares Restam-me apenas a leitura e a escrita Então choro sob as luzes lunares, O vento soprando meu laço de fita

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VÁRIAS VIDAS Mariana Oliveira (Graduação ― UERJ)

Já estive em vários lugares Já fui rainha, princesa Já fui príncipe, já fui rei Já lutei com dragões e feiticeiras malignas Já fui soldado, já fui mercenário Já fui amante, já fui fiel Já fui mãe e pai também Já fui bichos, todos os bichos E já fui seres que nem sei descrever Já estive nas melhores e nas piores Já morei em castelos e casebres Já senti os horrores da guerra Já perdi amigos, já matei inimigos Já fui milionária Já fui miserável Já estive em situações alarmantes Já morri Várias e várias vezes Mas eu sempre volto Quando abro outro livro Minha vida renasce Quando uma nova história começa

NOÊMIA Mariana Oliveira (Graduação ― UERJ)

Sinto seu cheiro em todos os lugares Por onde passo. Escuto sua voz A milhas de distância. Em meus andares Vejo seu rosto, rosto após rosto, rosto após rosto, rosto após... Imagine que um dia o oceano seque E o sol esfrie até que gelo pareça Que me leve a vida a foice em leque Se por ventura de ti, neste dia, me esqueça A face oculta da lua Guarda a fórmula que lhe deu origem (Aplaudam-na, senhores e façam-lhe uma vênia!) Adoro tanto essa beleza sua Que quando longe sinto vertigem (Recebem os Céus minha amada Noêmia!)

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PEQUENOS ESCLARECIMENTOS PÓSTUMOS Mislene das Neves Firmino (Graduação ― UERJ)

Essa febre não passa, Deus meu. Doente da alma, dizem que não há remédio. Remendo as dores insignificantes, maiores que o mundo e faço poesia. Prosa em poesia. Querem ainda a não-prolixidade em alguém doente! Ora, pois! Sou exclamação por inteiro! Se querem a praticidade da vida cotidiana, a modernidade líquida que nos inunda e nos esvazia, deixem-me ao relento, larguem-me com a alma imensa que flui, que transborda, que transcende. Ela é maior que tudo, perpétua. Cabe em mim, entretanto, a alma vasta. Eu, de passos curtos, incertos, desconhecidos. Viver é uma doença? Não sejam tão rasos, meus caros! Vomito toda mediocridade humana – vejam bem, não como consequência da enfermidade, mas sim de tamanha consciência. Como não sentem o niilismo que me invade?! Eu pulso, a cada novo segundo. Vomito por um excesso de palavras que não diz, cala. Gozo de sentidos, de sentimentos, grito no eco um não-entender que me habita todo o ser. Tu queres apenas a razão. Não, não me ofendas desse jeito. Já disse: o ópio é o menor dos problemas. A sanidade é quem me alucina! •220

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Estão cegos?! Surdos?! Os ruídos e máquinas gritam alto, ensurdeceram vossas almas?! Recuso a alcunha difamatória de louco, viciado. Não compreendem-me os que ousaram assim dizer. Sou um poeta de malas vazias, tudo o que tenho é o que sinto: imensidão com a qual vocês não se depararam, pois as ocupadas mãos seguram um presente que é líquido.

LUA CRIS Rafaela Paula (Graduação ― UFRJ) Quando em meio ao silêncio Algo parece mudar São olhos que no dia completam Olhos que à noite retraem Se depois de tanto canto, farfalhar e loação Os olhos de ti saem logo É que precisam da luz infinda E não pisca-pisca, sim sim, não não As horas passam e o vazio fica Talvez a distância nos mostre outra luz Pois como enxergar minha estrada, a verdade Diante de ti, luz do bem da maldade? Depois de séculos o esquecimento E para mim só há recordação Do tempo em que os olhos sorriam sem medo Tudo de sim, nada de não E hoje os corpos, o impedimento. A forma deforma a minha emoção Os olhos não veem mais o corpo de outrora E se fecham, casam com a escuridão. Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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TRISTEZA EM POESIA Rafaela Paula (Graduação ― UFRJ) Chamas amor o que não chamo O beijo é a véspera do escarro Sei que em versos não lhe persuado Se inútil foi o coração que amo No entanto meu canto é infindo Mesmo oriundo dessa hulha fria Que moribundo, chamavas coração infinito E esvaziar tentastes com espírito de orgia

SOMBRA DA ÁRVORE DA VIDA

Não devemos nomear culpados Se bons amigos pensamos algum dia ser E assim procurar o que nos é de agrado Sem precisar mudar, morrer

Rafaela Paula (Graduação ― UFRJ) Sombra que mais parece clarão Não vou mais machucar você Sombra imensa que me protege, me abriga. Clarão sem fim me revigora, me anima.

Para fazer feliz quem precisa De provas para testemunhar dependência Quando aprendi tal ciência Não sei o que cresci nessa sina

Me chamaram para apontar os tropeços do caminho Pensei que fosse sombra, água e rede Deitei, rolei, bebi E, como vês, continuo com sede

Dizer ser verdadeiro o que se sabe ser falso Sem amor como a destruição de shiva Que reconstrói e dança e vibra E não se vinga malpecado

Tem quem diga que eu era a água A rede para ele se deitar Mas não soube enxergar, quis me levar a alma E dois cegos não podem juntos caminhar

Quem se diz malpocado Que não mata uma mosca Pode lhe causar asco Como ela numa sopa

Mas subirei enfim as escadas E poderei ou não te encontrar Não ouso pedir que me leve em suas asas Eu, que pelo voo cego continuo a cantar.

O balanço das ondas me disse Que balanço das ondas não há O barco vai tomar seu rumo Quando encontrar o mar.

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NEGRA Paulo D’ Anna (Graduação ― UVA)

Vago e revago pela rua, frente, trás, o muro descascado, a posição da casa em diferentes ângulos. Nuvem cobrindo o sol na ida. Reconhecer das múltiplas vistas.

Ó negra Do belo sorriso (voltam à vida as flores murchas) Do belo andar (uma dança pós-nupcial) Dos lindos olhos (suplicantes de beijos e atenção) Dos doces lábios (de onde retira o mel)

Na praça, sapatos gastos seguem sempre com rumo. Único objetivo: passar. Se ficam, passam o tempo.

Ó negra Que atrai meus inimigos Que se faz de difícil Ó negra da pele lisa (de onde fia o veludo)

Não veem a beleza de vagar, conhecer a vida... Sem velocidade.

Ó negra Está mesmo comigo? O coração está enganado? É uma ilusão? Não? Quem sou eu, então?

VIRAMUNDO Pedro Cruz de Aguiar (Graduação ― UERJ)

Sair das janelas, das grades que prendem... E ir... da rua natal para o bairro próximo, a estação de trem, o município longe. Descer a serra, fugir da selva. Cair na tranquilidade. Descalçar da vida. Sentir os dedos. A grama, o bicho do pé, a lama escorregadeira. Andarilhar na beira da estrada. Enquanto carros vão, vejo bois. Antiga pedreira, minas de argila, cercas de arame e mato, lagos e sítios. O olhar civilizatório da natureza. Ferir os pés no limiar do concreto, da sociedade. Trovar amplidões sem Vira-mundo.

Ó negra dos cabelos escuramente cacheados (Que exóticos! Que fartos!) Do corpo lindo o qual abraço Dos dentes esbranquiçados Ó negra Do hálito gostoso Do cheiro doce Ressuscita meu coração já morto Ó negra Sinônimo da beleza Inimiga da tristeza Companheira da perfeição Quem diria, meu amigo, Que ela viveria comigo, Essa negra feita de paixão?

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CULPA ENCARNADA Pedro Cruz de Aguiar (Graduação ― UERJ) Um diabo, um diabo pendurado na torre antiga, pedra decrepita, carne nova. Preso na sua sina imposta, um diabo, na cruz arcaica e podre, herdando o pecado de todos, absolvendo os males. A ironia, ó Crucificado, Ver perdurar a cruz e o demônio e a atalaia secular. A eternidade passante em procissão ajoelhada em benção, apontando em blasfêmia o pobre diabo, na cruz na torre. A ironia, ó Crucificado, testemunhar o pobre diabo sofrer, das criaturas, o pecado

CARNAVAL DE RUA Pedro Cruz de Aguiar (Graduação ― UERJ) O bloco passa na rua. não vejo foliões, não escuto as marchas, nem da varanda vejo passar. O bloco não passa e vejo os fantasiados a andar desfigurados a ouvir as marchas, próprias marchas, entre cabeças animadas marchas de feições tristes. Da varanda não noto o passar, não tenho varanda, HÁ!, mas sinto, é o que vale. O bloco passa nu, mostrando as partes e a face. E segue... E seguem... A trilha de confetes no ar... no chão. E perseguem o alcançável, morrendo ao toque.

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MESA REDONDA DE UMA SEXTA FEIRA À NOITE Lucas Serpa (Graduação ― UERJ) Um bando de latas de cerveja compõe o quarto: Uma cerveja por pessoa, Duas cervejas por pessoa, Três cervejas por pessoa e é agora que separamos os homens dos garotos, as mulheres das garotas e os gêneros neutros adultos dos gêneros neutros crianças. Uma garrafa de cachaça roda a roda, boca a boca o mel diminui cada vez mais descendo como água em nossas gargantas secas. No teto já se cria nuvens em formatos de coelhos, dragões, sóis e luas. Constelações, fauna e flora e qualquer coisa que as pessoas consigam imaginar. Alguns hippies ainda teimam em cantar e não sei como não erram a letra, acho que tem algo a ver com a maconha. Talvez reviva a memória lírica das pessoas, quem sabe? No canto escuro, vultos fantasmagóricos transando com a vida e a morte discutem os prazeres da vida e da morte e da existência miserável à espera da próxima refeição. Num outro canto, computadores dançam com seus parangolés, cantam sua próxima obra de arte oswaldiana e trocam óleos e peças. À roda apenas os intelectuais, A bolha academicamente avantajada, Os comunistas e os anarquistas. E eu. Fotógrafo realista.

QUANDO EU ACORDEI PRA VIDA Lucas Serpa (Graduação ― UERJ) Já não acredito mais em estrelas cadentes. Apenas em Adidas, Polo e Rolex. Já não acredito mais em trabalhar por amor, Amor ao trabalho Amo o dinheiro. Acordava meio dia todo dia Camarão que dorme A onda leva. Finalmente abri um livro para estudar. Larguei Letras, Arte não garante, Inútil (à) sociedade. Cursei engenharia, Medicina, Direito. Candidato a deputado Eleito contra corrupção Caminhando pra evolução sem sair do lugar. Sete horas da manhã: A casa em ordem Filhos na escola, Mulher satisfeita. Vivo sobrevivendo até a hora do jantar. Coruja • Rio de Janeiro • Número 1 • 1º semestre de 2016

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THINKING THING Mislene das Neves Firmino (Graduação ― UERJ)

Tu és um número, José. Teu nome é próprio, mas comum. Todos teus traços, características e sonhos já foram descritos pelo horóscopo. Teu uniforme se ajustaria a outro corpo, e no entanto,

NÃO BASTASSE AMAR Mariana Oliveira (Graduação ― UERJ) Você, minha linda, chora De alegria, não de mágoa Mas a emoção de agora Não vale uma gota d’água

é o teu suor, José, - somente o teu (e de mais outros tantos) que o encharca e o faz feder.

Este anel é só um mimo Minha bela margarida É a ti que mais estimo E por ti daria a vida

Não somos, fomos feitos (com defeitos de fábrica). O trabalho, de preferência escravo, faz do homem um forte, um sobrevivente, um Severino. O ócio é perigoso porque o tornaria poeta.

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O anel por si só Nada vale, nada nada Pois morria por ti, sem dó E morria feliz, minha amada! Por que choras, oh, flor De emoção com banal presente Se minha vida dedico, amor A te ver sempre sorridente?

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prosapoética TRECHOS POÉTICOS Priscila Mendes Viana (Graduação ― UERJ)

Não tenho ideias. Não sei ler poemas. Não sei escrever. O que seria o universo? Não-sei-responder. Não problematizo, não vivo, não me jogo nos desejos, não me encontro entre os meios. Onde estás, Felicidade? Onde estás, Inteligência? Oh! Volto a mim e o que vejo? Nada, ninguém, nem poesia. Vivo a secura dos dias com chuva. É na chuva que há criação. Mas a minha chuva não me permite, não me ilumina, não me atinge. Abro a janela do dia. O que vejo? Pedras, solidão, despreparo, tensão e a própria falta de reflexão. Minha dor de cabeça é o que tenho de mais fácil. * Vivemos buscando motivos nas pessoas para justificar nosso próprio fracasso. Há entre o olhar do outro e a própria queda o que nos convém. Adaptamos tudo de acordo com o que nos é mais confortável. Ah, o homem contemporâneo... transfere as próprias decepções ao outro. Existe aí a procura da própria aceitação. * Quando no exílio, vivendo o que é por excelência, sem a interferência dos achismos de que está cercado, depara-se então com o horror profundo. Não se reconhece. Não se quer consigo. Não se aceita. Estar só, o ponto; decisão tomada pela tristeza que há no outro. Talvez não compreenda o horror contemporâneo. Seria, então, o próprio contemporâneo? Viver no limite em que vivemos é horror, não ter a loucura (beleza) de olhar pra dentro é o próprio horror. Somos o que somos? Ou somos o que ditam? * Pecar contra as próprias vontades há de ser o mais cruel. Perfídia. Pedido de desculpa aos grandes sonhos – possíveis de serem impossíveis – e ao fortalecedor de asas. Os caminhos entortaram-se diante de tudo que ainda não havia visto. Sentimento de desistência por vezes, a pressa perpassa a sabedoria. Erro cometido. Arremedo. Derrocada de quem não consegue sozinho. Amargo arrependimento. Segunda chance não há?

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XXII Jhonatan Andreas (Grduação — UERJ)

Tento dimensionar sua ausência subvertendo a gramática. Com um pedaço de papel e minha Bic esferográfica azul. Sobram espaços em branco e rasuras... Faltam palavras. Acho que ter e perder você, foi como alcançar as estrelas e em seguida cair vertiginosamente. Lembro-me da noite em que sonhei estar perdido no espaço... Infinitamente vazio. Despertei com uma estranha sensação, como que pressentindo aquele fim eminente. Dias depois você se foi. Pra sempre. Perdemos tanto tempo dizendo coisa alguma... Pressupondo e adiando, planejando um futuro... Mas o futuro é tão incerto! Tão incerto quanto às ondas que se dissipam num mar de infinitas conjecturas. Se amas, diga isso agora!

XXIII Jhonatan Andreas (Grduação — UERJ)

Em minha mente habitam inúmeras histórias. Mundos inteiros fadados ao esquecimento. Meus pensamentos transcritos transbordariam as páginas de um livro, mas meus dedos, vacilantes, se mostram incapazes de fazê-los fluir. Como se estivessem presos a mim, lutando contra a liberdade, sobrevivendo através do silêncio. Como se qualquer tentativa de convertê-los em palavra pudesse rasgá-los, e lança-los à banalidade. Silêncio sobrevive apenas em silêncio, como minhas histórias sobrevivem apenas na imaginação. A realidade é inimiga de ambas. Então só me resta imaginar... Imaginar o amanhã como se esse fosse um livro com milhares de páginas em branco, esperando para serem preenchidas. Eu sei que não posso apagar o passado, mas eu ainda posso escrever o futuro.

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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO Quanto às partes do texto: a) Título e resumo na língua na qual o artigo foi escrito (português, espanhol ou inglês); o resumo não deve ultrapassar o máximo de 250 palavras; resumo centralizado e o TÍTULO EM MAIÚSCULA E NEGRITO, ALINHADO À ESQUERDA; na linha inferior: Autoria (ver item 13); b) Palavras-chave (entre 3 e 5) na língua na qual o artigo foi escrito. As palavras-chave devem ser, na medida do possível, as correntes na área, devendo vir no singular e ser ordenadas do geral para o específico; separadas por ponto e centralizadas.

e) No caso de resenhas: TÍTULO EM MAIÚSCULO EM NEGRITO ALINHADO À ESQUERDA; na linha inferior: Resenha de: SOBRENOME, Autor. Obra. Editora. Localidade, Ano. ; E em baixo: Autoria da Resenha (ver item 13). Texto justificado. f) No caso de textos literários: TÍTULO EM MAIÚSCULO EM NEGRITO ALINHADO À ESQUERDA; na linha inferior: Autoria (ver item 13).; texto justificado. g) Notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, usando­ -se o recurso automático do Word para notas de final de texto;

c) Corpo do trabalho justificado, com divisões internas não numeradas, em negrito e alinhadas à esquerda.

h) Referências bibliográficas conforme a norma da ABNT mais recente (NBR 6023); título destacado por negrito.

d) No caso de artigo que não esteja em língua portuguesa, título e resumo também em português;

i) Citações com menos de 3 linhas, de acordo com a norma ABNT; Com mais de 3 linhas usar espaço 1,15, fonte 11 e recuo 4cm.

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Quanto à formatação: 1. Extensão: de 8 a 15 páginas, incluindo todas as partes do artigo. 2. Para resenhas: de 2 a 5 páginas. 3. Para produções literárias: Até 10 páginas. 4. Fonte: Times New Roman, tamanho 12; 5. Espaço entrelinhas: 1,5; 6. Formato da página: A4; 7. Margens: 3 cm , com recuo de 1 cm em início de parágrafo; 8. Alinhamento do parágrafo: Justificado; 9. Tipo de arquivo: extensão .doc 10. Nome do arquivo: Artigo_NomedoAutor. doc (Exemplo: Artigo_JoãodaSilva .doc; Resenha_JoãodaSilva; Conto_JoãodaSilva; Poema_JoãodaSilva) 11. Páginas não numeradas; 12. Uso de itálico para destacar palavras e expressões em língua estrangeira (evitar expressões sublinhadas ou em caixa alta);

13. Os artigos devem conter identificação de seu autor, além do nome do arquivo. Os dados do autor – nome, titulação, instituição e e-mail (esse último, apenas se o autor quiser que seja divulgado na revista) – devem aparecer após o título do trabalho. Exemplo: João da Silva (Graduação – UERJ)* 14. Gráficos, tabelas, quadros, planilhas, autoformas, mapas e cliparts (figuras) devem estar preparados em Word/Excel, sem tabulações em arquivos editáveis, e não em formato típico de imagens. 15. Salvo exceções comunicadas, não utilizar recursos artísticos e estilização do texto. 16. Fotografias e ilustrações devem ser encaminhadas em formato .tif, .psd ou .jpg com tamanho de aproximadamente 10x15cm (~= 2 mil pixels) e resolução mínima de 300 dpi. 17. Todas as imagens preferencialmente devem incluir autoria e fonte de origem. Obs: Apenas utilizar itálico em expressões de língua estrangeira.

E-mail: coruja.fale@gmail.com Facebook: https://www.facebook.com/corujafale •230

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SAPPLI

Semana Acadêmica de pesquisa e Produção Literária de Graduação em Letras

EM BREVE...

Informações: www.facebook.com/corujafale coruja.fale@gmail.com

Apoio:

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