Catalogo je14

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JOVENS ESCRITORES ‘14

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CIDADES INDIGITADAS Álvaro Seiça 27

O MUNDO É UM LUGAR APERTADO Catarina Homem Marques

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ENQUANTO O FOGO Emanuel Madalena 55

HORIZONTE DE PEDRA Joana Tomásia

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ÊXODO José Trigueiros

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NINGUÉM CÁ FICA Tiago Ramalho

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CIDADES INDIGITADAS Álvaro Seiça

Il n’y a rien d’inhumain dans une ville, sinon notre propre humanité. Georges Perec, Espèces d’espaces

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petersburgo são petersburgo tem um sena magnífico vetusto petrogrado tem água suficiente para que todos se lavem leninegrado apesar de cela em cerco tem um tamisa deslumbrante tsípkin tem um dostoiévski entrelaçadíssimo quase aquoso brodskii tem uma dúvida: para qual dos lados do rio será enviado? mas moscovo dirá que o neva tem um indiscutível tom veneziano londres e paris andam há anos a procurar o seu lado oriental mandelstam anda a alertar akhmátova para a inutilidade da tradução o comboio qual volga está a andar a uma velocidade sem janelas (qual é a próxima paragem?)

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bilbau bilbau queria cantar os teus braços siderúrgicos a tua pele titânica queria cantar a tua respiração química à meia-noite os teus testículos metálicos os teus pés marítimos bilbau queria cantar o teu sangue barrento o teu cotovelo velho bilbau a tua caixa torácica antiga parda iminente bilbau queria cantar as tuas mãos independentes a tua língua peninsular umbria de sempre bilbau queria cantar queria cantar estes teus intestinos industriais longíssimos dentro da tua carne rochosa bilbau queria cantar o dia nocturno em que entrei dentro da tua carne como um cristal entra dentro de uma artéria bilbau queria cantar mas já não se canta escreve-se sobre fala-se sobre e apenas há temas e isso foi há uns anos bilbau há uns anos quando os teus filhos fervilhavam dentro de ti

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acendendo as tabernas com palavras bilbau há anos e hoje hoje hoje bilbau tens artistas a tiritar de sub-temas ínfimos conceitos assuntos anafados dito isto bilbau tu não és conceptual bilbau tens uma boca tristíssima e não sei se já referi mas queria cantar cantar a tua boca de amanhã queria cantar as tuas aurículas a encher as tuas heras trepando as tuas mães as tuas irmãs os teus pais os teus primos os teus irmãos a tua avó jovem a retirar a bandeira da janela com o seu olhar insular rubro vigia espumante bilbau queria cantar só cantar sem depois (verifique-se sub-temas e quebra de supra-estrofes)

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marraquexe para ler os teus olhos como duas pontes em viena serรก melhor largar a tua praรงa e partir para essaouira pela estrada calcada a vermelho

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trieste joyce vivia contigo trieste aschenbach apenas pernoitou houve um dia em que rasparam ombros nesse dia aschenbach flutuava demasiado embrulhado nas pontas dos sapatos sem destino com o chumbo do trabalho e da doença aschenbach nem reparou que joyce parara discreto (ia sempre com a cabeça apontada a veneza) e depois se mantivera sentado no teu ombro trieste joyce sempre soube de ti sempre te amou joyce escreveu-te como cálcio a germinar aschenbach tu sabes trieste inchava o cérebro aschenbach contemplando-se dizia adeus e partia como porcelana (cf. quem escreveu menos palavras sobre trieste) joyce avisara: aschenbach é ostensivo snobe conservador sabes trieste? joyce falava outra língua em 24h onde aschenbach apenas passou joyce conseguira recriar o mundo

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pequim se berlim fosse pequim se berlim fosse pequim se berlim fosse pequim (rimava e era desinteressante)

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madrid atocha em atocha num dia há quem se sente para um mês em atocha somos um ínfimo ramal do mundo em atocha as pessoas explodem de alegria em atocha há pessoas que chegam pessoas que partem em atocha há pessoas que nunca chegam e pessoas que nunca partem em atocha homens e mulheres retiram-se atrás dos lavabos em atocha o café é mau o café é caro em atocha as ucranianas conversam ao alto em atocha os pombos descalçam-se para subir o lavapiés em atocha és o prado o thyssen o reina sofía em atocha os cágados ressonam sobre os nenúfares em atocha palacio e eiffel começaram um terminal para o espaço em atocha ao meio-dia moneo plantou palmeiras em atocha sentes-te como uma tâmara numa estufa em atocha és valência e barcelona em atocha um relógio real diz-te afinal que não és daqui em atocha um nove sete sete dois zero zero quatro em atocha és madrid

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rangum a mão em torno da porcelana cingalesa parada na vertical um fio de chá a 100ºc a chávena fumega sobre o ébano tagore impresso e estático lê gandhi mas o vento adianta quinze páginas a porcelana queima-se e a perna quebra a boca no entanto não geme não abre não se move a outra mão ápice pára as páginas é raríssimo mas uma face assim pode assimilar uma fenda um vértice uma janela-céu uma casa uma rua uma cidade um país uma face assim desloca uma espécie

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monsaraz uma casa no descampado com duas campas à porta duas vasilhas de aço para os incisivos dois penicos para as bonecas sem roupa e um tarro vazio coçado absíntico uma casa no descampado a pender azeitonas sobre um deserto de água com vinhas secas sentinelas azuláceas uma casa no descampado desabitando-se inócua analfabeta à espera que alguém se lembre de a situar

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paris paris estás crua como o teu metro cansada como o teu sena vista como a tua torre gasta como a tua rua velha como o teu jardim usurpadora como o teu museu sem emprego como a tua periferia (limpar linha: a urina é o sol que te ilumina a boca) dizes que já só te resta um casaco e dois bolsos para uma dúzia de advogados te defenderem do mundo no entanto tens ainda tudo paris

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cidade do méxico acto 1 estás grande de mais

acto 2 continuas grande de mais para te escrever

acto 3 nem moralista nem muralista estás grande má de mais para te escrever

acto 4 (seleccione adjectivo: pobre/fértil) tens todos os teus poetas dentro de cada rua (seleccione verbo: ostento/invento) de todas as ruas apenas uma rua uma exacta rua que poderia visitar mas já visitei: (seleccione substantivo: insígnia/palavra) esta rua de octavio paz

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dublim em dublim buenos aires copenhaga são francisco barcelona bamako kobe florença dakar lisboa sidney joanesburgo praga rio de janeiro toronto teerão nova iorque reiquiavique accra edimburgo adis abeba melbourne mostar beirute amesterdão seul londres cairo estocolmo bombaim tunis auckland dili xangai são paulo singapura (pensar em mais cidades indigitadas)

se quiser escreva mais aqui:

há apenas uma ponte que se atravessará (pensar em qual)

se quiser escreva mais aqui: (joyce e beckett continuam no exílio)

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budapeste outrora as estradas reluziam e tu estavas interminável (o bilhete ficou encravado no revisor do autocarro) outrora um teatro tinha uma peça em cena sobre a censura (o fiscal do comboio exigiu uma nota larga pela diminuta viagem de um banco) outrora cem pontes ligavam todas as pessoas a uma praça aberta (um espelho côncavo janela acha distorce mais e mais o teu reflexo a cada dia) outrora um homem de preto podia carregar uma mala branca prismática (alguém lhe agarrou os antebraços pelas costas decadentes coice nas nádegas) outrora pela calçada de pedra liam-se romances a troco de um banco no danúbio (a mala quebrou-se no cimento desvelando o título párhuzamos történetek) hoje na calçada de pedra leu-se péter nádas

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istambul tangente à àsia tangente à europa tangente ao islamismo tangente ao cristianismo tangente à pele safrão tangente à ro a fachada a tua rua opulenta uebra o teu palácio pobre as tuas e uberantes vassalagens nada megalómanas o teu sultão simpático pró imo das ostensivas gentes a tua ambiguidade certa o teu curdo coração as tuas costas helénicas o teu escalpo caucasiano a tua luz prisional ue presta visita aos jornalistas a tua beleza- uociente a tua beleza azul sem tempo- att tangente à carne fotovoltaica tangente ao tijolo hisky tangente à brava terra tangente à ueda água antes de o mar de mármara te levar ambivalente até izmir o bósforo aperta-se arménio para te misturar melhor (amanhã reordeno os versos e finalizo amanhã)

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helsingør helsingør é elsinore elsinore é shakespeare shakespeare é hamlet hamlet é cesariny cesariny é uma palavra

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inverness há uma fotografia demasiado pequena para te lembrares (onde?) é num cotovelo marítimo contra o corrimão a cor sem idade há barcos na baía a beberem o sol claro e oscilante da manhã mas as figuras estão demasiado desfocadas pelo vento para te lembrares (quem?) são duas faces que não reconheces encostando-se a um ombro de poliéster há várias manchas a cobrir os flancos e um ponto pardo que parece um filho mas o som dos estais já está demasiado longe para te lembrares (quando?) mesmo que a cor esteja sem idade que o plano esteja sem detalhe pega na imagem vira a mão até ao verso da fotografia contra o canto semântico contra a forma fonética lembrar-te-ás apenas inverness e. k. e. 73

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atenas li tanto sobre ti pensou aktra que quando finalmente trepou à acrópole (trepou mesmo?) com uma zona de silêncio ainda na cabeça apreendeu em trezentos e sessenta graus (olhe que o nosso campo de visão cobre menos de 180º) no que se teria de tornar a arte em mil novecentos e noventa e três

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buenos aires vem buenos aires vem vem comigo buenos aires vem vamos pelas alamedas alagadiças pelas arcadas de prata vamos pelas graves galerias fumar palavras em ignição já é tarde buenos aires a auto-estrada do sul afunila-nos mesmo com os faróis acesos vem buenos aires vem vem comigo buenos aires vem vamos por uqbar tlön tijolo após tijolo quilha após quilha amontoando marés até ao espaço ainda é cedo buenos aires mostra-me os teus teatros de papel as tuas colmeias em fogo vem buenos aires vem vem comigo buenos aires vem vamos por esses túneis fora juntando arte e ciência até que a razão se esgote por mais que queiram buenos aires tu não és europeia de facto os críticos já só apreciam como se dessem esmola para se consolarem vem buenos aires vem vem comigo buenos aires vem façamos como se fosses um tabuleiro suspenso os peões inúteis a rolar já vamos com pele de cobra arrancada pela poalha de calcário nunca é tarde buenos aires levantemos as tuas asas de combustível e como um asteroide cheguemos lá onde todos efabulam a fantasia

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deadhorse1 daqui a uns dias irei até ti a cavalo gritou tatsuo a caminho largando de fairbanks para refundar uma viagem um relato uma lenda

1. Nota do Leitor (N. do L.) Não quero parecer incómodo, ou inoportuno. Não me leve a mal, por favor, mas já é a segunda vez que encontro esta falha! Monsaraz é uma freguesia, que já foi vila. Não é, de todo, uma cidade. Por outro lado, Deadhorse é uma comunidade não-incorporada, ou desincorporada, traduzindo livremente. Espero que este pequeno esclarecimento ajude outros leitores, no sentido de uma descodificação poética, já que, de facto, é gravíssimo considerar estas duas localidades como cidades, mesmo que “indigitadas”. De resto, as minhas felicitações pelo material criativo! (<íon> mas, mas… quem é este fiscal?)

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O MUNDO É UM LUGAR APERTADO Catarina Homem Marques

I Há sempre um cheiro a esterco ao redor da minha terra. De vez em quando pergunto-me porque se mantém só ao redor. Como se alguma coisa não permitisse que venha até ao centro. Não é como aquelas terras cheias de pó em que as pessoas têm sempre as roupas entranhadas de sujidade, numa normalidade de tons pastel. Vira moda. Acho que é assim também com a radioactividade. Aqui a roupa cheira ao detergente que se põe na máquina. O esterco não paira logo do lado de fora da janela. É como viver numa espécie de ilha. Em vez de estarmos rodeados de mar, estamos rodeados por uma matéria olfactiva nauseabunda. Mas o cheiro não passa além da linha da costa e há ainda quem o consiga transpor. A culpa deste isolamento por via de emissões gasosas fedorentas é dos Urbanos, uma propriedade mesmo à porta da vila que tem um nome oficial mais florido que ninguém memoriza – Herdade das Alfazemas ou Monte dos Alecrins – mas onde dia e noite se produz merda. O modelo do negócio não é exactamente a criação de vacas com o objectivo de as fazer cagar em doses industriais. Seria o tipo de ofício que

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não ia incomodar as associações de defesa dos direitos dos animais. Há poucos direitos dos animais (e humanos) tão fundamentais como o trato intestinal. Talvez seja melhor explicar: o foco do negócio é o leite, pelo que a acumulação de esterco passa a efeito colateral. Ou melhor, constitui-se como único efeito directo na vida dos habitantes. As fezes bovinas e o respectivo cheiro. Há um outro efeito mais ligeiro, com impacto diferenciado em cada pessoa ou, num sentido menos individual, em cada família – os postos de trabalho. A necessidade de desenvolver imunidade nasal por via da submersão diária no coração da náusea é um luxo, uma pequena glória. Noutras latitudes de oportunidades será o equivalente a ter emprego com gabinete próprio, cadeiras estofadas em pele, seguro de saúde com dentista e ar condicionado. Um emprego de longa duração, empresa próspera, contratos e afins. O cheiro fica remetido para contingência e prova provada da teoria de desenvolvimento e adaptação das espécies. Dentro do reino fedorento dos Urbanos raramente há sobressalto digno de nota. Com excepção, claro, do Dia da Grande Gritaria. Uma gritaria que ecoa até hoje e que é certo que ecoará por mais umas quantas gerações para depois se constituir mito do qual não restarão provas ou testemunhas. Por enquanto ainda resta a vítima, também conhecida como entidade perpetuadora do crime, consoante a versão da história. Anda por aí em carne, osso e uma coluna ligeiramente mais vergada. O nível de hidratação já terá sido entretanto reposto. Só não se lhe apontam dedos de cada vez que sai de casa porque teve a sorte – ou previdência – de existir em duplicado. No dia do sucedido estavam os dois gémeos a trabalhar na propriedade e mesmo que alguém alguma vez tenha tido informação de qual deles protagonizou a façanha, as contas já se baralharam. Como naquele jogo em que sabemos à partida qual dos copos esconde uma bola e, depois de misturado com outro em movimentos rápidos, deixamos de poder afirmar com certeza.

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O que a vila inteira pode – e não se cansa – de garantir a pés juntos é que um deles pegou na extremidade da máquina da ordenha, aquela que se agarra à teta da vaca, e a meteu na pila. O resto de inteligência que lhe sobrou foi usado para carregar no botão que inicia o processo de sucção. Não chegou a ter tempo para sentir vergonha ou pensar numa solução discreta. Gritou sem parar. E teria gritado muito mais – a máquina é de uma modernidade aplicada ao sucesso da empresa, automática, e só termina a função depois de sugar 1 litro. Não fosse o prejuízo provocado à propriedade, talvez a situação tivesse passado como piada geral. Piada privada era impossível, tendo em conta os ingredientes da história e a falta de eventos suficientes em redor para a tornar banalidade. Parava-se a máquina da ordenha à bruta – como se parou –, deitava-se fora toda a colheita de leite – como se deitou –, repreendia-se o rapaz quando a pila voltasse à cor e forma normais – como se repreendeu –, e os gémeos podiam manter o emprego para o qual até já tinham o nariz calejado. Mas o prejuízo foi grande. A empresa italiana de leite que comprava toda a produção da propriedade, e que entretanto (felizmente) faliu, não gostou de ouvir os rumores que chegaram depois da falha no fornecimento. Pior do que perder leite por conta de uma originalidade masturbatória, é ter um único tolo a tornar-se lenda do negócio. E ter esse tolo a lembrar a todos os outros tolos por essas propriedades de ordenha fora qual o potencial de uma máquina de sucção com encaixe quase perfeito na cabeça da pila. Plantada a ideia na natureza competitiva do sexo masculino, aumenta-se o potencial de réplicas e tentativas de aperfeiçoamento. Restou apenas uma opção. Como uma daquelas cabeças que na guerra se espetam em lanças para servir de exemplo, o gémeo foi despedido. Pouco depois, incapaz de se aproximar de uma máquina de ordenha sem ser gozado, o outro gémeo foi atrás. Por esta ordem de pensamento, a chave do mistério sobre qual fez o quê pode estar na ordem de inscrições para o subsídio de desemprego.

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Mas à falta de investigação mais apurada, resta o efeito prático e pouco voluntário de solidariedade: até hoje os dois gémeos partilham a genética, uma mesa isolada no Café Central e o protagonismo num boato eterno. Talvez nem seja por maldade que ninguém lhes dirige a palavra enquanto ficam sentados no canto do café a mexer a chávena devagar. Excepto o Senhor Hélio, que recolhe o pedido. Sabe de cor o que querem, mas insiste – por uma questão de honra – em dar-lhes uma oportunidade para proferir algumas palavras. Não fosse isso e não haveria qualquer prova de terem voltado a falar depois do incidente. Ficam em silêncio, iguais na cara e iguais na firmeza dos lábios cerrados. Encolhidos no peso do rumor. Quando passo por perto vem-me sempre um bom dia à boca. São os olhos que me puxam para baixo, que me prendem as intenções. Tenho medo que se sintam julgados se os olhar de frente. E mesmo que não olhe, tenho medo que um som atirado assim de repente na sua direcção quebre algum tipo de película que os mantém protegidos. Fico calada. Talvez toda a gente da aldeia sinta o mesmo. Talvez se explique assim que alguém, ainda para mais duas pessoas espremidas numa só, seja tão presente enquanto história e tão transparente enquanto existência. Gostava de acreditar nisso. E acreditaria, não fosse estar aqui há tempo suficiente para saber que o efeito fétido do cheiro que nos rodeia não se entranha na roupa mas tem uma estranha capacidade de se alojar na cabeça. Sobretudo nas células dos sentimentos mais nobres.

II Houve um tempo em que a fonte da praça central me parecia uma espécie de gruta encantada. A fonte está igual. Continua com água da mesma nascente. Os dois velhos que se sentam lá todas as tardes são também

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os mesmos. Só não seriam se tivessem entretanto morrido. Caso tivessem tido essa infelicidade orgânica de ceder o lugar cativo a outros, as badaladas do sino da igreja a tocar fora da hora informariam do óbito. O rebate dos sinos em horas impróprias é um evento tão solene como a passagem da carrinha dos congelados, com a música circense repetitiva a anunciar a chegada com antecedência suficiente para toda a gente tirar as moedas dos bolsos. No caso das badaladas da igreja, a única diferença é que as cabeças demoram um pouco mais a aparecer às janelas. Quase podia jurar que toda a gente leva algum tempo a verificar se os batimentos cardíacos estão no lugar certo e se não foi desta que a varredela dos sinos passou para os levar. Se tudo o resto decorre em sucessões de inconsciências dormentes, porque não a morte? Confirmado o adiamento do inevitável, naquela alegria mórbida que se sente quando a morte dos outros nos lembra a importância das nossas funções vitais, abrem-se então as janelas. O entusiasmo das vozes só não é obsceno por já roçar a tradição. Importa descobrir quem morreu. Saber qual é a família que requer consolo. A que alma bondosa não se poderá mais apontar defeitos ou contar falhas. E são precisos apenas alguns minutos de palavras atiradas de trás para a frente, de parapeito em parapeito, para que o nome do infeliz se sussurre em todas as bocas. Recolhem-se então as cabeças em jeito de respeito, com a hora do funeral decorada e o ouvido de novo atento, não vá passar entretanto a carrinha dos congelados. A fonte está igual, dizia. Só já não parece a gruta encantada onde nos empoleirávamos e saltávamos de um lado para o outro a tentar não escorregar no musgo. Um recanto frio de onde gritávamos mais para nos ouvirmos no eco do que para alguém nos ouvir. Aqui não interessa a idade das crianças. Enquanto não crescemos somos todos uma massa uniforme de gente que existe por oposição aos adultos. Não importa se um tem três anos e o outro tem dez. A única

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diferença é o grau de probabilidade de voltar para casa com os sapatos molhados na fonte, consoante o comprimento das pernas. Há tão pouca diferença entre estágios de infância como entre possibilidades de destino. E tão pouca distância como aquela que vai da idade adulta à velhice. Aqui os velhos começam a ser velhos no exacto momento em que chegam a adultos sem ter rompido a fronteira de cheiro que nos separa do mundo. Mas por essa altura, quando a fonte era uma gruta encantada, eu ainda não sabia disso. Um pouco como quando a Lena escorregou no musgo e já se levantou com a boca cheia de sangue e sem os dois dentes da frente. Pensei: isto nunca aconteceria comigo. É essa fórmula vezes infinito, como dizíamos nas promessas dos tempos em que a infância ainda nos oferecia eternidade. Ela nunca acabou a escola: isso nunca aconteceria comigo. Ela só arranjou um daqueles trabalhos que sobram para as mulheres: isso nunca aconteceria comigo. Ela nunca conseguiu ir viver para fora daqui: isso nunca aconteceria comigo. Pena que o vezes infinito seja só uma brincadeira infantil. Agora, como ainda estou aqui (a Lena, que já tem dentes novos, vive umas casas abaixo), sei que a fonte está igual. Há só uma coisa diferente – já não existe coucho. Apesar de raramente me lembrar disso, sei que existia aquela espécie de colher grande, feita de cortiça, sempre pendurada num prego por cima do furo por onde sai a água. Uma mão comunitária para levar a água a todas as bocas por igual. Quando as nossas cabeças eram pequenas, pegávamos juntos no coucho e encostávamos as testas para beber. Ninguém ficava à espera, até porque a sede que se tem depois de saltar a tarde inteira é uma urgência inadiável. A urgência, também conhecida por aqui como o sentimento que se torna obsoleto assim que deixamos de saltar a tarde inteira. Ao contrário dos nossos corpos, o coucho não tinha pressa nenhuma. Estava sempre ali. Cada pessoa com sede pegava nele, bebia e voltava a pendurar no prego. Tudo por respeito à sede seguinte. Ou apenas

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porque, num lugar assim, um coucho pendurado numa fonte é um direito tão universal como a educação ou a saúde. Terá sido certamente mais universal. Pelo menos enquanto existiu. Um coucho, na sua natureza de cortiça e em solos mais dados a poesias, poderia ser uma metáfora da vida. Nada permanece seguro. Nem mesmo um bebedouro pendurado na fonte da praça central de uma vila isolada. Desapareceu. E as pessoas, sem perder tempo a pensar nisso, deixaram de beber com recurso à igualdade. Não sei quando ocorreu o desaparecimento. Nem sei sequer quantos dos outros notaram. Quando éramos pequenos, a gritaria das bocas secas faria soar o alarme. Mas já não somos – muito poucos o são por estes dias. E nem me lembro de alguma vez ter voltado a sentir uma sede assim. O problema nem é o desaparecimento. O coucho nunca esteve amarrado. Muitas vezes era escondido por brincadeira ou esquecido num muro mais afastado. Também lhe acontecia ceder ao peso de tantas bocas a sorverem-lhe as entranhas e ficar partido. O problema é que ninguém repara que parámos de beber em conjunto. Já não resta quem grite enfurecido o seu direito de levar água à boca sem ter de usar as mãos. Nem eu, que noutros tempos juraria a pés juntos que jamais uma indiferença assim me iria acontecer. Aquilo que só ia acontecer aos outros, como a escorregadela da Lena. Ela que na altura era tão mais bonita do que as outras raparigas e que pelo caminho até disso abdicou. Moderou na beleza para caber melhor na paisagem. Com a fonte ao topo, a praça central era o território privilegiado de todas as infâncias. À noite, enquanto os adultos ficavam no café (os gémeos ainda não tinham conquistado a mesa do canto), as crianças brincavam naquela espécie de palco empedrado. Passávamos horas de costas dobradas, dedos em pinça, a tentar apanhar umas sementes pretas que ficavam entaladas nos intervalos das pedras. Enchíamos os plásticos exteriores dos maços de tabaco até cima, numa competição silenciosa.

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Nunca soube que sementes eram. Não consigo sequer imaginar o que fiz aos sacos que enchi ao longo de tantas noites, até o café dos adultos escorregar garganta abaixo com o último boato já esmagado no cinzeiro, junto às beatas. Não sabia sequer que devia ter poupado as costas. E que apanhar sementes em pequenos sacos de plástico era só um estágio distraído para a arte de sufocar raízes em espaços apertados. Na altura ainda estudava até tarde, com a língua apertada entre os lábios, certa de que me elevaria acima do mau cheiro. Sonhava com o dia em que ia ter a vista cansada. Deve ser tão bom ter a vista cansada. Aqui só me posso cansar de ver sempre a mesma coisa. Isso conta como dioptria?

III Hoje acordei feliz e não devia. Não que a felicidade vespertina seja da ordem do dever, mas há pelo menos que esboçar uma tentativa de susto quando é um choro compulsivo que nos abana no momento de despertar. Apesar do lamento audível o suficiente para agitar um sono de madrugada, deixei-me sorrir um pouco na expectativa de um dia diferente. Só depois me levantei com uma ruga de preocupação na testa (só na testa) e abri a janela. É sempre a D. Dulce que está do outro lado da rua. É assim a ordem: um banco com a tinta lascada, uma porta com uma cortina florida no postigo e uma janela com a D. Dulce enquadrada. Todos os elementos da sequência caídos no mesmo sossego. Tirando talvez a cortina, mais susceptível às variações do vento. Mas hoje a D. Dulce chorava. E chorava em excesso, ainda que os sobressaltos do corpo a soluçar não alterassem nunca a expressão silencio-

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sa de todos os tempos antecedentes. Nem um bom-dia lhe tinha sobrado para dizer a alguém, desatenção que só à D. Dulce se perdoava. Não precisei de perguntar para saber que continuaria calada, como quem se limita a acrescentar soluços à costumeira ordem das coisas. Fui de novo para a cama, preguiçosa, enfadada. Há alguma probabilidade de ter encolhido os ombros pelo caminho. Voltei a acordar de repente e percebi pela intensidade da luz que era tarde. Apurei o ouvido mas já não se ouviam soluços. Apurei ainda mais e não se ouvia sequer o silêncio habitual da D. Dulce. Corri para a janela mais ansiosa do que quando tinha acordado com um choro desesperado. É sempre a D. Dulce que está do outro lado da rua. E estava: com a cabeça a pender num ângulo estranho sobre o parapeito e nem sossego, nem soluços nem nada. Estava tudo tenso – os músculos do pescoço dela, as veias dentro do meu corpo, o espaço entre as nossas duas casas. Vesti-me devagar, calcei-me devagar, acho até que fiz a cama, e saí pela porta em passo lento. Só quando estava com os dedos a tocar-lhe nos cabelos secos é que tive a primeira dúvida. Que ela estava morta já eu tinha a certeza ainda antes de abrir as portadas da janela. Mas quais eram as probabilidades de ninguém ter ainda passado para reparar? A dúvida nem chegou a ser dúvida. Assim que o primeiro esboço de interrogação surgiu, tornou-se evidência. Não se ouvia nada em lado nenhum. E não era só a D. Dulce que estava sem vida. Neste lugar restava apenas eu. Bastou dar alguns passos pela rua para ver os outros corpos caídos. Acordei de repente. Agora sim. O tronco a atirar-se para a frente ainda frenético do susto, antes mesmo de ter tido tempo para ajustar as retinas. Apesar de já não se ouvir chorar, soube que ela estava lá, como sempre, do outro lado da rua. Tive de ir à cozinha beber um copo de água. Cansa muito acordar sem acordar. Desta vez tinha pressa de sair de casa, apesar do medo de encontrar ainda alguns conhecidos caídos nas esquinas. Restos do pesadelo. Só na

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rua é que fiz por avançar com cautela. Acalmei-me quando passei pela janela da D. Dulce e ela estava de volta ao seu silêncio tranquilo. Não reparou em mim. O olhar perdido noutro ponto. Costuma acompanhar cada passo, cada gesto, cada movimento de tudo o que atravessa a rua: seja gente, seja folha, seja osga. Mas uns olhos parados são menos preocupantes do que um corpo a soluçar ou sem vida. Há sinais de alarme que relativizam outros. Continuei a andar. Ao primeiro bom-dia não correspondido ainda estava imbuída do silêncio da D. Dulce e não reparei. Ao segundo imaginei que tivesse falado baixo. Ao terceiro questionei-me se seria distracção. Ao quarto fiquei convencida que tinha feito alguma coisa para toda a gente me odiar. Melhor: para que toda a gente deixasse de cumprir as obrigações da proximidade geográfica. Só ao quinto comecei a ficar angustiada – o espaço era demasiado apertado para ficar assim tão separada dos outros. Comecei a gritar e acho que gritei durante muito tempo, não necessariamente parada no mesmo sítio. Deveriam estar já várias cabeças a espreitar por trás dos postigos. Não vi nem uma. O caso era grave. Há demasiadas sombras neste lugar que em circunstância alguma resistiriam a aparecer para assistir. Pela primeira vez na vida não reconheci o espaço à minha volta. Aquela rua não fazia sentido. A rua seguinte também não. Corri em todas as direcções e não consegui encontrar a porta de casa. Nem sequer o café na praça central ou o castelo abandonado lá no alto. É que em casa não faz mal ser invisível. Acordei ainda cansada de correr. Acordei. Desta vez de verdade. Soube que era de verdade porque voltei a ouvir o choro da D. Dulce e não tinham passado nem dez minutos desde que tinha ido espreitar à janela aquele soluçar desesperado. Claro. Não podia ter voltado a dormir tão completamente com aquele sofrimento a pairar. Desta vez ela olhou-me directamente nos olhos e eu soube que havia

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alguma coisa para entender. Ficámos caladas. Quer dizer, eu fiquei calada, que isso ela já era e não tinha como ficar mais. Terá passado algum tempo até começar a ouvir passos pesados a virem do fundo da rua. A D. Dulce tinha sentido o tremer do chão muito antes de mim. Vi primeiro o Senhor Fonseca, o encarregado de tudo. Sabe-se lá porque lhe calhou esse título e essa função num lugar tão esquecido. Mas era a ele que se recorria sempre que era caso de recorrer a alguém. Vinha depressa mas tropeçava muito. As pernas não podiam acelerar mais e nem por isso estava conformado. Forçava o corpo. Assim que passou por nós, com uma expressão tão fechada que seria impossível abrandar o que o empurrava, começou a subir o som de outros passos mais atrás. Muitos passos. Todos os passos. Nada assim alguma vez se tinha visto. Já estava a soluçar também quando alguém nos gritou do meio da multidão: “O cheiro começou a sentir-se perto do santuário.” Está perto. A prisão fica mais apertada.

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ENQUANTO O FOGO Emanuel Madalena

Acende um fósforo. O papel começa a queimar, tímido. As folhas secas da nespereira estalam por entre as frágeis lâminas adornadas com sangue. Ela senta-se no canto oposto à banheira, enquanto recorda a queda dessa noite inicial, neste mesmo dia, há doze anos, numa data que aprenderam a festejar como aniversário. Lembra-se desse dia com a naturalidade com que chegam e terminam as estações, com que o sol se põe e já espera atento no dia seguinte, quando se dá por ele levantado. Lembra-se com a naturalidade de algo inevitável, como um dia que não pudesse ter deixado de existir, por nele começar outra vida inteira. Lembra-se que falavam do cheiro, enquanto jantavam. A poeta tapava o nariz e redescobria o gosto das coisas, sem aroma, e dizia que ela nunca tinha apreciado realmente as nêsperas, que não conhecia a hortelã ou os coentros, que nunca tinha provado sequer a cebola ou o alho. Dizia que é como quando se está muito constipada e a comida perde o sabor. Enquanto espera que o lixo arda, recorda a sua fé nos cheiros, como um pouco antes dessa noite, quando ainda em casa da mãe tomava duche,

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e as suas madeixas de cabelo escuro serpenteavam pelas costas, diluindo o champô com a água cuspida pelo chuveiro. Como sempre a sua fé nos perfumes – um resto, talvez a alma do champô que continuasse presente nos cabelos, assombrando-os. O perfume do sabonete demorado nas dobras e extremos mais recolhidos ou mais expostos, exuberantes fontes de odor, assim havia aprendido na ciência de todos os corpos – um vapor invisível que continuasse a proteger-lhe, e aos outros, da humanidade dos seus cheiros. Confiava a pele ao duche e aos perfumes, cega, esperando apenas ser normal – o que quer que isso fosse – e que lhe bastasse esse normal para não se comprometer com os seus eflúvios. Mesmo que quisesse, não se podia afligir com os odores, nem sequer com os seus mais íntimos, porque nunca os poderia conferir sem que deixassem de o ser. Diziam-lhe que as rosas podem ter cheiro a merda, que um perfume pode ser desagradável, que há quem goste do cheiro da gasolina e quem dele enjoe; e há o prazer do aroma do café, da terra molhada, dos cachorrinhos, dos livros novos e velhos. Nada disso estava ao seu alcance. Sabia que só o nome da rosa se explica, mas apenas lhe via a cor e sentia os espinhos, sem cheiro. Chamava-se Rosa, e costumava dizer que não tenho cheiro, mas o que não tinha, para sermos exactos, era olfacto. Cheiro teria, sim, e muitos, mesmo que não os pudesse conhecer. A pequena Rosa inspirava fundo e não cheirava. Inspirava mais fundo, com mais força, uma e outra vez, e nada. O pai a perguntar-lhe se não conseguia sentir o cheiro a queimado da comida no tacho, com a mãe aos berros de zangada, e ela inspirava fundo e pedia desculpa. A irmã a tapar o nariz com uma pinça de dedos esquerdos, e Rosa inútil, a chorar, que nem para avisar do arroz a queimar sirvo. e que

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não é fita, pai, juro, e o pai via a filha tão desamparada que começou a estranhar, a insistir, cheira isto, filha, e a filha inspirava fundo, colaborava como sabia, imitando, atraindo com força o ar entre o nariz e o tacho com o arroz queimado, o gargalo da garrafa de vinho tinto, o vinagre do galheteiro, o líquido verde de lavar o chão, o frasquinho de acetona. Inspirava tudo com uma vontade impossível, sem pestanejar perante a agressividade dos vapores. Foi operada duas vezes ao nariz, sem resultado. Ficou por saber se havia nascido assim, ou se tivera alguma lesão ainda em bebé. Anosmia congénita, eis um diagnóstico possível, mas para Rosa era irrelevante. Bastava saber-se incompleta para lá da sua vontade, da sua compreensão. Sabe-se que o cheiro é um dos principais gatilhos para a memória e para os sentimentos, que um qualquer odor da infância pode trazer uma recordação, como que nos transportando para outro local. É um vestígio do passado pré-histórico, quando se dependia do instinto activado pelos sentidos, em vez do pensamento, do raciocínio, da consciência. O cheiro é memória, mas Rosa recorda tudo, ainda assim. O fumo já começa a escurecer o ar à sua volta, e só assim existe, como trevas por cumprir. Não bastasse já de faltas, Rosa não tem os outros sentidos mais desenvolvidos, como dizem acontecer com os cegos, por exemplo. Pelo contrário, a anosmia prejudica, obviamente, o paladar, porque sem os aromas perde-se a maioria dos sabores. Diz-se, aliás, que o paladar é noventa por cento olfacto, e que, tirando os aromas, restam diferentes combinações simples entre o salgado, o doce, o amargo e o ácido. Rosa nunca poderia compreender tais falhas, mas não se preocupava – a comida sabia-lhe bem, gostava de comer, mesmo que não soubesse o que saboreava ou não. Descobriu aos poucos que não conseguia distinguir certos sabores. Um gelado de leite era igual a um de baunilha. Sentia o amargo da

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canela no arroz doce, mas não a descobria se estivesse misturada numa sobremesa. Gostava de chás, mas a única diferença entre eles era a textura, o amargo, e a adstringência, que é quando se fica com a língua perra no céu-da-boca ou nos dentes. Gostava que o chá a aquecesse por dentro e a fizesse sentir bem. Gostava de lhe misturar mel e limão, para o adoçar e trazer de volta à vida. Mesmo assim, não cozinhava mal. Recebia até alguns elogios da poeta, mais por gentileza do que admiração, mas limitava-se sempre a cozinhar as coisas mais simples, sábia por tradição, por cultura, por conhecer os passos indispensáveis e as misturas habituais – ainda que dois pratos temperados com aromas bastante diferentes pudessem saber-lhe quase ao mesmo. A poeta também cozinhava, às vezes, mas não se importava de entregar a sua vida nas mãos de Rosa, cegas para o podre, para o azedo, para o queimado, e mostrava-a capaz, incentivando-lhe a culinária, dizendo parabéns, Rosa, isto hoje está uma especialidade, e nunca comi umas migas tão boas na minha vida, e só gostava que pudesses cheirar esta delícia, Rosa. O amor com que a chamava Rosa, com que Rosa dizia o seu nome. Uma rosa sem cheiro – chegaram a rir com isso, e aquilo a que se chama rosa mesmo com outro nome cheiraria bem. A nada, para ela, como esse vazio nas palavras, nomeando o ar e os compostos voláteis, os cheiros. E ela sempre disse que não, não consigo cheirar a comida a queimar.

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Não, não sei se o leite está azedo sem o provar. Não, não me cheira a gás; e está escuro, vou ligar a luz. Não, não sei se está alguma coisa a arder; talvez um incêndio que me asfixie antes de eu ver fumo. Não, não sei que cheiro esquisito é esse; se calhar sou eu, vejam lá. Ela nunca perceberia, por exemplo, o odor de um corpo alheio. Porque não a cheirava pela casa, nos lençóis, nas roupas, e nem que lhe encostasse o nariz, Rosa tocava e saboreava o corpo da poeta com o conforto e o alívio de um regresso. Agora, quase que a respira. Nunca se esqueceu dessa noite primeira, do momento dos olhares fisgados, tensos como a linha de pesca que arrasta o peixe, e as metades dos sorrisos envergonhados na boca, feitos itinerários de uma viagem sem volta. A poeta disse é um narizinho avariado, mas é perfeito na mesma, e beijou-a. Conheceram-se por quase nada, e já sentiam ser tanto estarem ali. A poeta via-a como uma raposa, esperta e elegante, e não se conseguia concentrar em mais nada; Rosa via-a como um pombo, galante mas errático, e compadecia-se da atrapalhação da poeta, que se esforçava por lhe mostrar a casa apenas térrea, num ocaso que lhe adivinhava a luz, até chegarem ao jardim que não o chegava a ser. Era nas traseiras da casa e tinha tomateiros e ervas aromáticas, mas não era um quintal – tinha flores e carreiros de pedrinhas. Tinha meia dúzia de árvores de fruto mas não era um pomar. Daí para a frente, Rosa continuou a dizer o jardim, e a poeta continuou a dizer o aido. Um barracão de madeira com telhas de zinco, ao fundo, e uma grande nespereira junto à casa. A poeta perguntou-lhe, tímida, se

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gostas de nêsperas? e esticou-se para apanhar algumas da árvore. Rosa disse que sim, gosto muito, principalmente quando ainda estão ácidas. Oh, estas já estão maduras. Não faz mal, também gosto assim, bem docinhas. Eu prefiro doces, maduras, com este perfume maravilhoso. Pois, mas sobre isso não posso dizer nada, e a poeta inclinou a cabeça, como o pombo que era, ou um cão a tentar perceber o dono. Eis esse momento dos olhares quase fisgados: as perguntas de uma, as explicações de outra, as brincadeiras, a forma como a poeta se aproximou e disse tudo bem, não faz mal, e lhe deu um beijo na ponta do nariz, como se debicasse uma migalha no chão. O narizinho avariado mas perfeito. Os beijos, como nêsperas. Nessa noite, não voltariam a estar a mais distância do que a dos seus braços, e a partir daí partilharam todos os dias, onde lhes descobriam melhores horas. Mas agora o fogo já mastiga o tempo que pudesse restar a este dia, e desfaz o papel num fumo espesso, que arranha a garganta de Rosa. O papel que estala aflito e murmura uma agonia de cinzas; um corpo e um espírito que terminam. Tomai e comei, poderia dizer Rosa ao fogo, e vem-lhe o dia em que a poeta lhe disse que é uma heresia escrever neste papel, Rosa, e ela concordava, com o rosto torcido em ternura e medo. Conhecia o sabor do sangue sem o aroma a ferro; não cheirava o sangue nem a merda, mas reconhecia-lhes a heresia, a gravidade, e o peso. Nesse dia houve problemas no barracão: de tão corroída que estava, a banheira partiu-se. A poeta ficou até tarde a tentar aliviar os estragos, a salvar o trabalho que já estivesse mais adiantado, e quando terminou

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estava arrasada de cansaço e suja de merda até ao pescoço, e para lá deste, tão literalmente quanto é possível às próprias palavras. Rosa ajudou-a a despir-se e tratou da roupa enquanto a poeta tomava banho. Já deitadas, nuas como sempre, de costas uma para a outra, Rosa perguntou-lhe foi muito mau?, perdeste muita coisa?, mas a poeta resmungou que não lhe apetecia falar disso, e Rosa disse não faz mal, pronto. Agora descansa, que tudo se resolve. A poeta voltou-se e abraçou-a, inspirando-lhe o cheiro dos cabelos. Rosa atendeu à respiração suave e morna que sentia na nuca. A poeta disse que estou tão enjoada, estive lá tempo de mais, apertou-se contra as costas de Rosa, és o melhor cheiro do mundo, e Rosa entristecia, por não poder partilhar com ela esse mundo inteiro. Mesmo não sabendo de odores, sabia do amor com a mesma fé com que sabia do cheiro, e só um sentido oculto o explicaria. O perfume da rosa e o cheiro da merda, ambos preciosos, inatingíveis como deuses, e ela com a sua fé – fé científica, mas agnóstica à força. Notava-se que, nessa altura, já a poeta se cansava mais, enfraquecendo. Havia começado a escrever com sangue, como se não lhe bastasse o papel. O papel e as palavras, agora já tudo era da poeta. Branqueasse ela o papel com o leite que os seios inventassem e não restaria nada dela que fosse inteiro de Rosa. A sua pele era de Rosa, mas extinguia-se de fraqueza. Havia palavras só para Rosa, mas diluíam-se nas horas cada vez maiores, cada vez mais febris, em que a poeta se perdia no barracão. Os olhares ternos ou lúbricos que oferecia a Rosa espalhados agora pelo jardim, enquanto o papel secava ao sol, e a sua atenção, como luz de um sol maior, esquecida nos versos que compunha lentamente na mesa da cozinha. Rosa ainda ia sabendo do amor, do seu corpo minguante, do seu calor e do brilho da sua atenção, mas a poeta extinguia-se.

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Não é que Rosa fosse alheia à merda – também foçava nela, na das crianças. Dizem que a dos bebés não cheira mal, pois que a comam com tostas, pensava, porque não lhe dava prazer nenhum mexer-lhes nas fraldas borradas. Trabalhou no infantário desde que acabou de estudar, não tendo conhecido outra ocupação. Todos a diziam abençoada por não conseguir cheirar a merda, mas o nojo sobrevive à anosmia. Se não é instintivo, por surgir o instinto através do cheiro, então será um nojo cultural. Escreveria Rosa uma dezena de ensaios sobre o mundo sem cheiro, se disso fosse capaz. Também por isso, eram pobres. O rendimento vinha regular do trabalho de Rosa, e o da poeta aparecia ao sabor do sucesso. Já o ia tendo, fugaz, com os seus poemas e os seus quadros, mas continuavam a ser mais os meses em que só aparecia o ordenado do infantário, mirrado e seco como uma uva passa. Arquitectavam a vida pelos recursos e pelo alheamento crescente da poeta. Rosa chegou a ser curadora e crítica de arte, mesmo sabendo nada do assunto, quando lhe vinham bater à porta os amigos da poeta a pedirem alguns exemplos do novo que fazia. Tinha de lhes mentir a dizer que ela não estava, ou que não estava disponível, ou que estava doente, mas corria a recolher os papéis de que mais gostava. Mostravalhes os poemas. Dizia a origem do papel e da tinta. Dizia o que valia o poema e o suporte, objecto e conteúdo. Contava-lhes tudo – do processo de fabrico, dos primeiros falhanços, da forma como ela se cortava para que se lhe aflorasse à pele o sangue com que escrevia as palavras; e eles, fascinados, prometiam-lhe exposições e antologias, fama e glória. Foi a intermediária do génio enlouquecido e eremita, que antes frequentava todos os mais importantes eventos do meio, socializando sem constrangimentos, mas que agora apenas fabricava papel, escrevia poemas, e lhe aparecia ao fim do dia, dizendo-a, até ao fim, musa do seu melhor. Chegou a publicar-se um livro, chegaram a fazer-se algumas

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exposições – que nunca visitaram – e venderam-se muitos dos seus papéis. A crítica a seus pés, a admiração do público. Rosa falava-lhe disso tudo, e a poeta dizia apenas que ainda bem, fico feliz por isso, e que ainda bem que o meu trabalho está a chegar a alguém, e até, duas ou três vezes, que espero que continues sempre a zelar pela minha obra. Pela sua merda e pelo seu sangue, queria ela dizer, o seu mínimo denominador comum com o resto da humanidade. Nesta memória surge a altura confusa, mas fundamental, em que a poeta quis que os seus poemas fossem mais dela própria, o mais possível; por isso começou a fazer com as suas fezes o papel onde os escreveria. Tal como as suas palavras, o papel seria fruto de um mundo transformado por ela, por aquilo que nela seria único, um resto das suas entranhas. O fabrico nunca parava, e todas as fases aconteciam em permanência, com diversos processos em diferentes estágios, ao mesmo tempo. Começava com a recolha dos seus dejectos, que armazenava em vários recipientes fechados. Quando já tinha uma quantidade suficiente – o que, no início, demorava uma semana e meia, e, mais tarde, apenas quatro ou cinco dias – fervia as fezes numa velha banheira de esmalte que tinha adaptado à função. Fervia durante várias horas com um pouco de hidróxido de sódio. Soda cáustica. Rosa não percebia exactamente como se processava, porque nunca lá entrava durante as fervuras, mas via a botija de gás e uns tubinhos de metal debaixo da banheira. Nessa alturas, a poeta procurava arejar o barracão e sair de lá o mais possível – dizia que não era só o cheiro horrível, mas os próprios vapores, assassinos. Curiosamente, não se importava com os vapores da lixiviação por que passava, de seguida, a papa de merda fervida com peróxido de hidrogénio. Água oxigenada. A poeta dizia a Rosa que por esta altura

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desaparecia completamente o cheiro, e mostrava-lhe a pasta de fibras que restava depois de se filtrar e escorrer bem o líquido. Durante todo o processo, a merda passava por vários recipientes, enquanto era mexida e remexida, principalmente nesta altura, antes de ser distribuída por diversas telas porosas, que serviam também de peneira, onde as fibras eram dissolvidas em água e espalhadas cuidadosamente numa camada homogénea, enquanto se escorria o excesso de água. Essas telas ficavam ao sol a secar durante vários dias, e da merda se fazia papel. Quando a poeta começou com os primeiros testes, totalmente inconsequentes, percebeu cedo que teria de alterar a sua alimentação. Assim, comia cada vez mais vegetais e cereais, aumentando a quantidade de fibra que ingeria e transformava em matéria-prima. Entretanto, ia pesquisando e descobrindo novas e melhores fontes de fibra, e foi trocando os vegetais pelas sementes. Quase toda a sua alimentação passou a resumir-se a pão áspero de sementes barrado com margarina de soja, cereais integrais e frutos secos. A pouca fruta fresca que comia incluía a casca – principalmente bananas. Como o papel era fabricado de uma forma artesanal, era normal que tivesse imperfeições e impurezas, que ela de início assumia como uma parte inevitável, e até desejável, do processo. Mas entretanto mudou de opinião, e começou a tentar, a todo o custo, aperfeiçoar o produto final. Rosa lembrava-se de uma vez, no Verão, em que a poeta tinha ficado furiosa por encontrar algumas sementes de melancia no papel. Deitou-o fora e nunca mais plantaram tomates. Foi nesse Verão que ela mais aperfeiçoou o seu método, depois de alguns meses de experiências bem orientadas. A poeta sabia-se capaz da empresa – e tinha já várias provas disso, empilhadas numa gaveta, com poemas escritos, na época, a tinta permanente – e isso levou-a à obsessão. Passava cada vez mais tempo perdida em alquimias no tétrico barracão, esquecida em trabalhos. Falavam do cheiro, de como o cheiro da merda era mau por instinto ou natureza, e da sorte, sempre a sorte, que Rosa tinha por não o conhecer.

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A poeta dizia que o cheiro é horrível, é revoltante, e que cada dia me parece pior, em vez de me habituar, e Rosa oferecia-se para ajudar, mas ela não queria. A poeta fechada num barracão inabitável, e Rosa cada vez mais conformada na sua caverna inodora e insípida, entretida com as sombras que lhe descreviam. Restava-lhe apenas engolir a frustração e continuar a trabalhar, como sempre, por ela e por elas. Mas agora, passado um par de anos no meio da merda, doía-lhe imenso vê-la assim, a matar-se pelo seu papel, cada vez mais fraca. Já quase não comia o que não lhe servisse para a matéria-prima. Mastigava constantemente pequenos pedaços de cana-de-açúcar ou de bambu, por exemplo, até conseguir engolir a pasta que formava na boca; e comia cada vez mais erva – preferia as mais duras e secas, sem que lhe importasse saber se eram comestíveis. Dizia que o seu sistema digestivo já se estava a habituar, mas ambas sabiam que isso era mentira. Ambas sabiam que a poeta estava constantemente doente e que enfraquecia mais um pouco a cada dia. Por tudo isso, Rosa zangava-se com ela. Discutiam muitas vezes, nessa altura. Rosa dizia-lhe que tens que parar com isso, ou pelo menos começa a comer melhor, e a poeta respondia-lhe em fúria perante insistências, com um olhar incrédulo, como se fosse absurda a discórdia, dizendo isto é o meu trabalho, não percebes?, é a minha vida. É isto que eu vou deixar. E Rosa dizia, já a chorar, mas eu não quero que deixes nada, tu é que não percebes. Eu só te quero a ti, que fiques comigo. Não te preocupes, eu não vou a lado nenhum, prometo,

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e Rosa não conseguia continuar, por acreditar. Mesmo perdida nas suas obsessões, mesmo enfraquecida, a poeta continuava a amá-la, e nunca deixou de haver dias bons. Até ao Domingo passado, pelo menos. Estava um dia quieto, como no primeiro Domingo em que acordaram juntas, na manhã que seguiu a noite em que se despiram, como numa cerimónia inaugural, e adormeceram nuas, partilhando o mesmo calor da pele que Rosa ainda sentia, doze anos depois, antes de se levantar e querer saber da manhã brilhante e morna. Foi beber chá para o jardim. Aos Domingos nunca havia pão, mas mais silêncio. Como era fim-desemana e Rosa estava em casa, a poeta atendia-lhe à vontade de a acompanhar até depois do almoço, quando ia trabalhar umas horas, enquanto Rosa lia e dormitava. Em dias como este podiam passear na praia, aproveitar o calor ainda brando, antes de o Verão encher os areais e atiçar o sol. A poeta não gostava do sol; Rosa não gostava do calor; mas em manhãs de Domingo como aquela, com a poeta a demorar-se no sono, Rosa arrastava o banco comprido para lá da sombra da nespereira e reclinava-se nas almofadas, com o roupão aberto e a luz a tocar-lhe a pele. Bebericava o chá quente e talvez fosse uma brisa que lhe arrepiasse os braços e os mamilos, ou um beijo da poeta no pescoço, num seio, no ventre, que a despertasse, quando finalmente se levantava e encontrava Rosa assim estendida. Mas dessa vez ela não veio e já corria longa a manhã. Rosa foi ao quarto e deixou que a janela iluminasse o espaço. Disse que já é tarde, amor, vamos acordar, e sentou-se na cama, junto dela. Beijou-a junto à boca e ela grunhiu, incomodada. Brincou com ela, que vou destapar-te se não acordas e me dás já um beijo, e começou lentamente a descobrir-lhe o corpo, a chamá-la, estás tão magrinha, amor, estás tão magra, e subiu para cima dela, envolvendo-a com as pernas, os seios contra o seu estômago, os dedos torneando os ombros e as clavículas, tão

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salientes, a pele tão fina, como que prestes a rasgar. A poeta acaba de fingir e agarra Rosa de surpresa, que solta um pequeno grito confundido logo em risos. Vira-a contra a cama e começa a fazer-lhe cócegas. Às vezes ainda brincavam assim e tudo valia a pena. Pensavas que te escapavas, eu sei, mas não escapas, e Rosa contorcia-se debaixo dela, divertida, a tentar-lhe também as cócegas. A poeta beijava-a atrás da orelha enquanto Rosa a puxava para si, num abraço. Acalmaram-se, de repente, e a poeta estendeu-se sobre Rosa, as coxas premidas entre as virilhas e as mãos a procurarem fazer-se secretas. Rosa começou a sentir o corpo da poeta cada vez mais pesado; o corpo imóvel, desmaiado. Passado alguns minutos, já Rosa se atrapalhava com o corpo teimoso da poeta, enquanto a tentava vestir a tempo da ambulância. Foram para o hospital. Os médicos diziam que tudo falhava. Falavam de soros e cê-cês, de anemias e diarreias, de palavras acabadas em ina e em ite. Ficavam muito sérios com as palavras acabadas em ite. Deixaram que Rosa ficasse com ela, sentada a seu lado. Só por uma vez lhes voltaram os sentidos. Às duas. A poeta abriu muito os olhos, como que aflita. Murmurou Rosa, a custo, e desenhou-se um mapa no canto da sua boca, na orla do olhar, mostrando o território de um sorriso. Rosa não devolveu qualquer intenção de sorrir e começou a dizer, zangada, que não aguento mais isto, nem eu nem tu, isto tem que parar. Não me faças isto, por favor, tens de comer em condições e parar de mexer na merda, parar de viver na merda. A poeta muda, incapaz, enquanto Rosa levantava a voz quando lhe via as pálpebras a desistir, obrigando-a a abrir muito os olhos, esforçada. Uma aflita e a outra zangada, a ser dura, amor duro, a não querer que morressem. As duas. Rosa falou com ela até ao fim dos seus esforços, até perceber que já

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estava a falar sozinha. Uns inconscientes dias passados no hospital, e a poeta morreu. Quando regressou a casa, Rosa via-a em todo o lado. Não sentia o seu cheiro nos casacos ou na fronha da almofada, mas encontrava-a espalhada na mesa da cozinha, escrita no papel a sangue, o seu corpo a secar no jardim, as memórias. Colheu todas as folhas espalhadas pela casa e levou-as para o barracão. Largou-as na banheira vazia; juntou também o papel que ainda secava no jardim, e algumas folhas secas da nespereira, que apanhou do chão. Acendeu um fósforo. O papel começou a queimar, tímido. Antes de se sentar junto ao canto oposto, abriu um pouco a porta do barracão e o fogo cresceu, lambendo as tábuas da parede e as telhas de zinco. Fechou a porta. O fumo começou a arranhar-lhe a garganta e fazê-la tossir. Tenta agora acalmar-se e respirar lentamente, talvez lembrar-se mais um pouco. Vê o fogo a rodear a botija de gás. Talvez o rosto, o sorriso, o amor com que a chamava Rosa, com que Rosa dizia o seu nome. Os beijos, como nêsperas. A luz de um sol maior. Parece-lhe que está a conseguir cheirar o fumo. Por momentos pensa que sim, que consegue cheirar, mas é só a irritação na garganta e no nariz. É só o fumo cada vez mais espesso, como se a abraçasse.

Setembro, 2014 Jovens Criadores ‘14

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HORIZONTE DE PEDRA Joana Tomásia

Parte I Salix babylonica pertence à família dos Salgueiros, é uma árvore de porte médio. A copa é arredondada, a madeira é frágil com ramos bastante flexíveis que chegam a tocar o chão. Toda ela é verde; com flores verdes, ramos verdes, folhas verdes, sempre verde. É de folha caduca. Particularmente caducifólia, de tal forma que é conhecida vulgarmente por Chorão. Dizem que veio da China, não sei… A nossa tombava delicadamente para o campo de futebol apoiando-se na rede. A queda de folhas constante, o chão verde constante fazia com que os nossos nomes fossem constantes nos lábios da Madre Maria do Rosário, com vassouras que nos aguardavam constantemente. No intervalo do choro, brincávamos… Tu tinhas este hábito de passear junto ao muro, onde não havia canteiros, enterrávamos os pés e os olhos no cascalho e roçavas as pontas dos teus dedos no limite do mundo e do desconhecido, para mim, no limite da liberdade e da prisão, para ti. Quando o silêncio se arrastava muito, eu dizia uma tontice qualquer, ainda conservava os meus dentes de leite e podia.

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-Sabes, comer cereais, assim, logo, logo quando acabas de meter no leite é igual ao andar nestas pedras. -Hum? -Sim, o barulho de comer cereais é igual ao barulho de pisar estas pedras, mas só estas. -Hum? -Se andarmos de olhos fechados e se só ouvires o barulho dos nossos pés, é de manhã, acabámos de acordar e estamos a comer cereais ao pé das nossas mamãs. Esboçavas um sorriso e adivinhava-se um túnel entre os teus incisivos. Depois haverias de me contar os teus planos de fuga enquanto contornávamos o muro. Todos os dias, durante o tempo em que vivemos juntos, todas as maneiras que inventavas de escapar. -Fujo à noite. O meu pai vive na Suíça. Vou ter com ele. Tenho rezado muito a Jesus para me ajudar, sabes. Apanho o comboio e… Não era certo que conseguisse ouvir todos os dias os teus planos. Não sabia o que era a Suíça e quando te perguntava, tu respondias que era um país e eu continuava sem saber o que era um país e então distraía-me com o som do cascalho, ou com as borboletas dos dias quentes. As borboletas hipnotizavam-me. Eu não gostava de te interromper e tu não gostavas de falar de borboletas, a custo ias murmurando que elas eram feitas com um pó especial e que morriam um pouco sempre quando as tocávamos. E a borboleta Rainha? Disso nunca te pronunciaste, mas eu sabia que existia, enorme, feita de pó mágico que brilhava no escuro. Nas tardes em que insistias muito em falar sobre a tua fuga, a borboleta Rainha afinal tinha vindo do céu numa estrela cadente, nas tardes em que apanhávamos muito sol na cabeça, a borboleta Rainha vinha do céu, numa estrela cadente e concedia desejos aos meninos que comessem a sopa. -Hey!!! Não é nada disso, lá estás tu a inventar, estás a misturar tudo. -Não estou nada, é segredo, por isso ninguém sabe… Não me importava verdadeiramente, eu tinha esta certeza só minha

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que a borboleta Rainha existia e vivia ali bem perto, mesmo ali em baixo, num país perto das nossas batatas e do roseiral. -… mas eu volto para te buscar, assim que os meus pais arranjarem uma casa, eu volto… -O que te aconteceu aos dentes? Interrompia. -Sei lá, caíram… -E porque não os apanhaste? -Oh, é mesmo assim, agora crescem mais fortes. A ti também te vai acontecer o mesmo. -Não vai nada, os dentes só caem aos meninos. -E às meninas também. A Raquel, tem o dente da frente a abanar… -Mas às meninas só abanam um pouco. Depois passa. E antes de se tornar uma discussão, colocavas as mãos na cintura, olhavas-me pelo canto dos olhos e sorrias-me desdentado. - O berlinde da sorte do meu mano é igual aos teus olhos. Um bruá vindo de dentro de ti interrompeu a conversa, a tarde ia longa, já não sabíamos do almoço e o lanche não era certo. Normalmente afogávamos o barulho do estômago com muita água e aguardávamos pelo jantar. Mas naquela tarde… Olhámos de forma diferente para o pátio; o chão, um plano sortido de peças de mármore branco unido por uma junta grosseira de cimento. No meio, desenhado a compasso brotava uma circunferência de manjericão, no centro da circunferência, uma laranjeira majestosa, onde o branco mármore trepava-a em branco de cal pelo tronco. Era por causa das formigas-diziam. Num dos ramos uma gota de mel laranja, enorme, do tamanho da nossa fome, pendia inocentemente. À pergunta que não fizeste, respondi sim com os olhos. Pegámos em vassouras e à vez, acertámos no ar, nos galhos e finalmente na laranja que arrebentou no chão manchando por um fio o mármore. Esventrámo-la em dois com as nossas mãos. Enorme. Cravámos os dentes nos gomos

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protegidos pela casca fina, o sumo melífluo escorria-nos até à ponta dos cotovelos. Ficávamos com as entranhas presas nos dentes e sorríamos com os olhos. Enorme. Doce. Doce, como o mel. Num silêncio premonitório, ergui os olhos e vi-te lívido, com a tua meia laranja no chão, ao teu lado, uma sombra monstruosa, nas minhas costas, a Madre Maria do Rosário. Petrificámos, sentados no chão, de pés cruzados e, em simultâneo, os nossos pés decalcados no manjericão. Ela reteve o olhar na vassoura… O resto de laranja na minha boca era uma pasta que azedava com o medo, passava de bochecha para bochecha, não descia… A Madre virou-nos as costas e começou a andar num passo lesto. O tempo pertencia-lhe, por isso deslocava-se sem pressa. Colocámos de pé num ápice, seguraste-me a mão pegajosa e disseste “Aconteça o que acontecer, não chores, desta vez não choramos!” Não sei se já falei da nossa Salix Babylonica que tombava delicadamente sobre o campo de futebol. A madeira era frágil com ramos que tombavam até tocar o chão. Flexíveis, enormes chicotes, difíceis de arrancar… até se arrancarem. A Irmã Maria do Rosário segurava alguns ramos, caminhava a passos firmes em nossa direcção enquanto despachava o resto das folhas com as mãos. “Aconteça o que acontecer…” E começara… a primeira chicotada, por mais que a mente esteja preparada, apanha sempre o corpo desprevenido, a primeira, o corpo não entende, a pele arrepia num inchaço e a ponta do chicote corta. Aguentámos, de dentes serrados e cara tapada durante 15 segundos, só se ouvia a respiração descompassada da freira, até os nossos pés começarem a marchar, desordenados, por vontade própria, a dor a atingir como uma pancada e cada parte do corpo a responder por si, o corpo desconectado, ora estaladas ora o chicote. O chicote cortava o ar num assobio, riscava-nos a pele de dor. Chocávamos, abraçávamo-nos um ao outro, separava-nos contra o chão e o tempo a ficar lento, o ar pesado que não nos chegava, a gravidade contra os nossos corpos.

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Havia serões em que nos juntávamos todos e a Madre educava-nos. Começava por dizer o mesmo e repetia-se a educar-nos “Os meninos desta casa sairão daqui a saber o que é a Vida”. O chicote nas nossas pernas, a atirarmo-nos para o chão, a escondermo-nos no chão. O meu peso suspenso numa mão, o assobio a calar-se nos nossos corpos. “A vida é dura e os meninos desta casa não serão como as outras crianças que ao mínimo problema lá vão os papás levá-los ao médico da cabeça por não aguentarem a vida”. Dizia-nos isto sempre num tom de igreja, isto é, falava sempre como se a sua voz ainda estive na igreja a cantar o salmo, a terminar em falsete, colocada, grande que ia até aos tectos e transbordava pelas janelas, a sua voz enchia a igreja, nada se ouvia para lá da voz da irmã na missa. Na distribuição aleatória das chicotadas, uma ponta acertou-me no ouvido, cortou-me a bochecha; numa careta feia, os meus olhos de leite rebentavam em água, eu com a mão à frente da boca a engolir o choro e os meus olhos em lágrimas. Desculpa. “A vida é dura, e vocês sairão daqui a saber disso”… “Aconteça o que acontecer, desta vez…” Desculpa-me. O hábito descomposto no corpo gigantone da freira, os óculos de massa de lentes lupa a escorregar dos olhos minúsculos, os lábios numa linha, o véu a mostrar os cabelos cinza e uma gota de suor a contornar-lhe o rosto. A imagem da Nossa Senhora presa por um fio de prata, um pêndulo no seu pescoço e a vida a acontecer… Desculpa-me. Seria sempre eu a primeira a chorar e tu o único a gritar… “oh mãe” gritarias sempre com a mesma fé que seria desta que alguém apareceria para nos socorrer, “oh mãeeee!” Só por uma questão de repetição do filme, eu saberia que ninguém apareceria, poderiam estar todas as mães do mundo naquele pátio que apanharíamos “oh mãeeee” talvez na tua Suíça fosse diferente “oh Mãe, Oh Mãe, Mãe, mãe, eu quero a minha Mãe, Vou dizer à minha mãe, Oh mãeeee!!!”talvez. Enquanto houvesse ar nos pulmões para chamares por qualquer mãe, haveria força naqueles braços anafados para nos chicotear. A

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nossa fome, coisa vil, magoara o manjericão, a nossa fome, esse monstro dentro de nós a ofender a Irmã Maria do Rosário. “Acontece o que acontecer, desta vez…” Desculpa-me Quando os teus gritos eram só um murmúrio de choro, o chicote parou… largou os ramos e reclamou do mal que a lixivia fazia às suas mãos que deixava a pele sensível para nos educar. Espalhados pelo chão, com o frio do mármore a acalmar a pele, extenuados, recolhemo-nos para debaixo de um arbusto, cada um com o seu silêncio a aguardar que a respiração voltasse ao normal. O sol caía em parte incerta. O resto da brisa da tarde secavanos o rasto de cloreto sódio dos rostos. Silêncio. Respiraste fundo uma vez, respiraste fundo segunda vez e uma aparição: -Xxxxxxxxxxpéeeeeectaculoooo, uma bola de ranho gigante a sair do teu nariz. Como fizeste? Também quero uma!!!... Espera, respira pouco e senão rebenta… De olhos tortos postos na ponta do teu nariz escondias o teu sorriso incrédulo. E eu ria, perdida de riso e batia palmas. A minha face ainda latejava, sentia uma espécie de dormência em metade da cara e em simultâneo parecia que tinha três bochechas o que me obrigava a entortar a boca, o meu ouvido ainda zunia… Toda a minha epiderme repuxava, como se a minha pele fosse uma camada fina de barro a estalar ao sol. A aparição durou segundos e rimos ainda mais, até faltar o ar. Ríamos por cima da dor. O riso sarava a pele mas essencialmente protegia-nos por dentro, o nosso interior. Hoje, a esta distância, sei que, se algum sentido fizer falar em vitórias, ganhámos sempre. Em cada interstício de tempo, intervalo de espaço que persistimos em ser crianças, ganhámos… -Buga tentar outra vez? -Buga.

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E haveríamos de tentar repetir a proeza forçando a respiração pelos narizes entupidos do choro, sem grandes resultados, limpando as tentativas nas t-shirts suadas, com sumo de laranja e lágrimas. A trinta metros das nossas gargalhadas iniciava-se uma marcha e um burburinho de passos e vozes. As oficinas encerravam… As mães subiam a ladeira. Largámos os nossos corpos entorpecidos e voamos até pousarmos atabalhoadamente nos respectivos colos. Toda eu cabia no regaço da minha mãe quando mergulhava a minha cara no seu pescoço, amparava-me com a sua mão grande e calejada, do tamanho das minhas costas, imitia um som e dizia baixinho aquilo que só uma mãe sabe dizer a uma filha. E naquele abraço já nada doía, já nada podia doer verdadeiramente. Pouco depois deste episódio, houve este dia que estranhei a tua ausência ao pequeno-almoço, a tua ausência ao almoço... Procurei-te... Como te procurei nesse dia… Ao fim da tarde, soube que Jesus tinha ouvido as tuas preces e que tinhas partido com a tua mãe pelo portão da frente. Coloquei a mão à frente para engolir o choro, abri muito os olhos para que não me escapasses nenhuma lágrima. “Aconteça o que acontecer, não chores…” Ganhei este hábito de, com as pontas dos dedos descascar o tempo do muro. Foste o único a falar-me do pó mágico das borboletas e do País Suíça, mas não foste o único a partir, crianças iam e vinham. Eu permanecia. Numa tarde que já ia longa, peguei em duas caixas de frutas vazias, alcancei o braço de uma figueira torta que repousava a corcunda no muro, trepei-a e vi o que estava para lá do muro, sentei-me e vi, tudo. Tudo, o que o muro escondia até ao horizonte. Olhei, olhei e simplesmente caíam lágrimas dos olhos sem soluços, sem caretas, sem me aperceber chorava, olhava para o que o muro guardava e chorava. Desci, deixei a pele dos joelhos esfolada na árvore e não voltei a aproximar-me do muro. Hoje que te recupero, lembro-me de me propor a esquecer-te.

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Dias passaram e, num deles, ao forçar duas peças de Lego encastradas, o meu primeiro dente de leite abanou e a vida continuou. Quando saí pelo portão da frente, saí sozinha, colocaram-me numa casa cercada por um muro chamado Tejo…

Parte II Pouco depois de partires, a doença da minha mãe piorou. Parti também. A Irmã Maria do Rosário achou por bem ficar com algum familiar, uma vez que era muito nova para ir para um colégio de raparigas. Cheguei à casa da minha “tia”- mãe dos meus padrinhos. Outros muros… A casa não era muito grande mas habituei-me a andar coladas às paredes, a desenhar com os passos os 90 graus dos cantos da casa, a encostar-me nas esquinas, a esconder-me nos interstícios que o mobiliário fazia com as paredes, a brincar em qualquer espaço sobrante. Nessa altura faziam muitos comentários sobre a minha pele e os meus ossos, ”és só pele e ossos”- diziam. Fiquei muito magra, depois só magra e pouco variei. Não falava. Fixava os olhos num ponto qualquer e relembrava-me de ti. As saudades da minha mãe apertavam-me mais do que podia aguentar. Passava todo o tempo permitido à janela da cozinha e ao fundo do meu olhar, a segurar o horizonte, o Tejo. E como tu, todos os dias em que me arrastei na casa da minha “tia”, planeei a minha fuga a partir do meu quartel delimitado entre o caixote do lixo e a porta da dispensa. Olhava o Tejo à janela, tirava as suas medidas e o rio não tinha mais do que a espessura do meu dedo mendinho. Da cozinha da minha “tia” ao Tejo ia aquela distância exacta que permite o olhar se iludir e acreditar que mais dia, menos dia, um plano apareceria e eu voltaria para o colo da minha mãe. Não consegui. O Tejo venceu-me sempre. Se não fosse o Tejo eu teria

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fugido… desculpa mas desisti… Sempre que olhava o Tejo de frente, a sua imensidão…derrotava-me sempre, sempre! O Tejo tem o tamanho das minhas saudades por ti e duas vezes o tamanho das saudades que eu sentia pela minha mãe e não consegui vencer nada, nem o Tejo, nem as saudades. Morria… Andava de olhos colados ao chão à procura das nossas pedrinhascereais, coleccionava berlindes - a minha busca incessante para procurar a cor dos teus olhos. Guardava tudo que me levasse até ti. Fazia o possível para não existir. Acreditava, numa esperança infantil, que se ficasse muito tempo encostada a uma parede, transformar-me-ia em parede e ninguém daria por mim, mas nem isso conseguia. ”Não, a sério, já viste como é que ela anda? Parece que não sabe andar! É muito difícil andares normalmente? Hã? É muito difícil tirares os olhos do chão e mexeres os braços enquanto andas? Hã? Eu estou a falar contigo, ouviste? FALA! Parece uma anormal, não fala, não sorri, não fixa o olhar, olha-me esse jeito! Eu fiz uma pergunta e estou à espera da resposta ou para além de parva és surda, hã? FALA. É pá, é que as outras crianças não são assim, andam normalmente, falam normalmente, brincam normalmente… Estás a chorar? Mas porque é que estás a chorar? Alguém te bateu? OUVISTE? Alguém te bateu? Chora, vá chora, tu sabes que a minha adora quando tu choras sem motivo. Espera que vou chamá-la para ela te arranjar uma boa razão para chorares. Oh mãeeee….” Nem deixar de existir conseguia… Na primeira noite que sonhei contigo, vivíamos juntos ainda e era um domingo de sol. Depois, sonhar tornou-se mais raro. Normalmente acordava e fica a olhar para as ripas de madeira da cama de cima com um sabor amargo na boca, que piorava todos os dias. A boca sabia-me ao negativo do estômago e ao acumular de palavras mortas. Mas nesse sonho era domingo e como todos os domingos íamos à missa. Chegavam as pessoas de fora com as suas melhores roupas, roupas de Domingo.

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Sentávamo-nos juntos, como sempre, a minha cabeça chegava ao teu cotovelo, mesmo a tocar no início da tua camisa axadrezada branca e azul, imaculadamente engomada de todos os Domingos. De Domingo também era o teu penteado. Desconfio que era o único dia da semana que o teu cabelo entrava em contacto com um pente. Risco de lado, cabelo colado à cabeça com gel e à tua passagem, um cheiro a perfume de mulher que era a colónia da tua mãe e, para teu desespero, ela achava que não fazia mal tu também usares umas gotas. A missa durava o limite da nossa paciência, o Sr. Padre tão velhinho e doente, percebia-se tão pouco. ”Parece que está a rezar a missa em latim” - sussurravas-me ao ouvido com a mão em concha e durante muito tempo pensei que latim era um problema de fala resultante da velhice ou de um AVC. Saíamos da missa a correr quando o sol já estava bem alto e mesmo em frente à laranjeira proibida, a Madre Rita, responsável pela cozinha, esticava um plástico espesso e enorme sobre o sortido de pedras mármore dispostas por juntas grosseiras de cimento. Depois, em duas ou três viagens, juntava um monte de pacotes de massa com a validade vencida. Abria pacote a pacote e espalhava sobre o plástico e esperava. Esperava que duas horas depois, quando recolhesse a massa, o gorgulho, por acção milagrosa do sol, fosse à sua vida para que ao jantar não houvesse bichinhos pretos nos pratos. Nunca aconteceu. Contávamos todo o gorgulho em todas as refeições, 10 pontos por cada um e rapidamente a refeição era um concurso e o desempate era feita pelo tamanho da mancha preta da borda do prato… A meio do sonho vi a minha mãe à porta do refeitório. Não estava doente e abria-me os braços para me receber. Eu corria e aninhava-me nos seus braços, encaixava a minha face no seu pescoço e apertava-a forte. Mas algo estava errado… O cheiro, o cheiro, não sentia o cheiro, não me conseguia recordar do cheira da minha mãe, apertava-a com mais força e não sentia nada; não sentia o peso da sua mão nas minhas

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costas. O cheiro bom da minha mãe com um ligeiro travo a tabaco desaparecia. Esquecia-me do seu cheiro, esquecia-me da minha mãe. Acordei sobressaltada. Abri muito os olhos. “Aconteça o que acontecer não chores!” E mesmo de olhos muito abertos, as lágrimas contornavamme o rosto e coçavam-me o pescoço. Continuava a esforçar-me para não existir. Saltei da cama, agora a olhar para o tecto e a abanar muito os braços para não arreliar a “tia”. Acreditava que era naquele dia; não passava daquele dia! Eu ia arranjar uma maneira para fugir. Ia tirar as medidas certas ao Tejo e àquela distância eu sabia que podia sonhar, mas desta, arranjaria uma maneira real de fugir. Fui até à janela e… já te contei que o Tejo venceu-me sempre? Espreitei e não acreditava nos meus olhos. O rio transformou-se numa coluna, um muro de água com metros e metros de altura. Um muro de água de pedra que me cercava e que me fazia prisioneira para sempre. Quis gritar mas… ”Porque é que não te comportas como uma criança normal?” Vontade de chorar… ”Porque é que estás a chorar? Alguém te bateu? Queres chorar com razão é isso?” Dias e dias a olhar aquelas paredes de água, com o mesmo desalento em que certos dias tu também passavas as pontas dos dedos, impotentes, pelo muro. A saudade fermentava o esquecimento e perdi aos poucos os teus traços. A minha mãe ligava-me esporadicamente. “-A mãe nem vai acreditar, hoje estrelei o meu próprio ovo, sem rebentar a gema! Já sei fazer esparguete e o arroz está quase, só preciso de mais uns dias! - Muito bem, a minha filhinha está a ficar uma mulher! - Sim! Olha mãe estive a pensar… eu já sei tomar conta de mim, a mãe já me pode vir buscar! - Oh filha… - Mãe, por favor, eu juro que me porto bem! - Oh filha, a mãe fica doente e depois não consegue tomar conta de ti

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e a Irmã Maria do Rosário não deixa… - Oh mãe, por favor, vem buscar-me. Já chega, não aguento mais, mamã. Desculpa por tudo, eu nunca mais me porto mal! - A Irmã do Rosário não deixa, filha. Ela não quer… - Mãe, o meu ovo… hoje fiz um ovo estrelado sem rebentar… mãe, por favor, eu já sei tomar conta de mim, mãe…” Tínhamos visitas em casa, protegia-me nos 40cm entre o beliche e a porta do guarda-fatos que nunca abriu por falta de espaço, mas essencialmente por falta de inteligência. Ouvia vozes que vinham da sala “bzote tchgá, bzote xintá”i. A sala enchia-se de um idioma que nem sempre dominei, os lábios da minha tia desapareciam com a irritação que eu lhe provocava por não a perceber. Por instinto, aprendi. ”Ela é afilhada da minha mais velha e do meu filho.” Falavam de mim. ”A mãe anda sempre doente, não podia dizer que não. Enfim, é uma cruz que tenho de carregar.” Tapava os ouvidos e cantarolava por cima. “É que se ainda fosse como as outras crianças…” Fechava os olhos e imaginava-me noutro sítio. “Nunca vi uma criança tão lerda e sem vida”. Tapei os ouvidos com força e fechei os olhos, quando os abri e tirei as mãos em concha das orelhas, apareceste. A centímetros do meu do meu nariz e a sorrir para mim com os incisivos em falta. Estavas assim, à minha frente, como se fosses de verdade fiquei petrificada a olhar para ti. “Buga brincar?” - perguntaste-me. Sorri. Um sorriso sem jeito de quem já há muito não o usava. Deixei de ouvir as vozes da sala. Basicamente, deixei de ouvir tudo à minha volta… Passavas os dias inteiros comigo, das primeiras vezes tinha de fechar os olhos, o meu coração chamava por ti e tu vinhas, depois deixou de ser necessário. Abria os olhos de manhã e lá estavas tu, o dia inteiro a meu lado. Sem ti, não teria aguentado os anos que passei nos muros da minha “tia”, foste o meu segredo. Assistimos ao Tejo a transformar-se simplesmente em Tejo. As colunas de água foram baixando e houve um dia que voltei a ter horizonte.

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Nada, absolutamente nada na minha vida merece ser partilhado, à excepção de ti. Mas, passados mais ou menos doze anos da tua aparição, a solidão voltou a apertar o peito. Desejava tanto ter uma amiga para falar sobre determinados assuntos que tinha vergonha de partilhar contigo. E foi assim, que numa manhã cinzenta e húmida, acordei e tinha sentada aos pés da minha cama, uma menina da minha idade com uma trança preta até às costas e um lindo vestido azul céu. Deu-me os bons dias. Apresentei-te a minha nova amiga e fomos os três trabalhar. Trabalhava num café perto de casa. Nesses tempos, andámos mais distantes mas preservava a minha colecção de berlindes e andava com seis numa bolsa à cintura, os mais parecidos com a cor dos teus olhos. Piorou quando passados três anos senti uma vontade enorme de me enamorar. Arranjar um namorado para segurar a minha mão nos bancos de jardim, oferecer-me rosas com palavras doces, como nos filmes do cinema. Numa tarde de Verão, ao passear pelo Parque Central, o meu príncipe apareceu! Apaixonei-me de imediato por aqueles olhos verdes e sorriso tímido. Foi a primeira vez que realmente baralhei a realidade com a “minha realidade”. Arranjei o meu primeiro namorado e as coisas complicaram um pouco. Andava tão feliz que a Dona Almerinda, dona do café, apanhou-me várias vezes a conversar convosco. Ameaçou-me, ou falava com um médico ou despedia-me. Fui falar com o Dr. Luís Campbell. Às vezes dou por mim a pensar se a Irmã Maria do Rosário soubesse as horas que já passei em consultórios de médicos para a cabeça. As horas e horas que passei sentada em poltronas a olhar para o chão, a falar com estranhos sobre a minha vida por simplesmente não conseguir aguentála… Nunca sei se devo rir ou chorar. Invariavelmente acabo por fazer as duas coisas… Só muito depois da primeira sessão é que contei ao Dr. Campbell que convivia com pessoas que só existiam na minha mente. Falar sobre tudo custava tanto e fez-me um nó tão grande na cabeça e no coração. Piorei.

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Surgiram mais amigos para tentar aliviar tamanho desnorte, mas não sei… acho que perdi o controlo… Já eram tantos que eu os tratava por “malta”. A malta ia comigo para todo o lado. Juntávamo-nos em casa, colocava a música no máximo dos decibéis possíveis e bebíamos até amanhecer, comecei a faltar ao trabalho… Houve um dia que te vi a um canto sem quereres saber de nós. Abri a bolsa dos berlindes para me meter contigo e só contabilizei 4. Baixei o volume da música, meio tocada pelo álcool. “Alguém viu os meus berlindes? Faltam dois, alguém os viu? Se faz favor, eu estou a falar convosco! Podem ajudar-me a procurar?” A malta fingiu que não me ouviu! Fizeram pouco do meu desespero, os meus berlindes, teus olhos! Senti-me magoada! Pedi para que saíssem imediatamente da minha casa e para me deixarem contigo. Não me fizeram caso, passei a noite toda aos gritos a pedir continuamente para abandonassem a minha casa. Tranquei-me no quarto e a malta foi toda para o quarto, tranquei-me na casa de banho e a malta enfiou-se toda na casa de banho, ordenei que me deixassem e nada. Adormecemos vencidos pelo cansaço trancados na dispensa. De manhã cedo, acordei e corri para o consultório do Dr. Campbell, irrompi pelo seu gabinete e já com o desespero a sobrepor-se a tudo, expliquei-lhe que a malta não me abandonava, que queria ficar só, contigo. Eu apontava para a malta e o Dr. Campbell seguia o meu dedo e olhava para a parede em branco. Agarrou-me nas mãos. Pediu-me calma. Disse-me secamente qua a malta não existia, que não era real, disse-me que TU não existias, que não eras real!!! Ainda me custa tanto esse episódio. Subitamente estou a livrar-me das mãos que me pediam calma e a berrar. Tu não existias? MENTIRA, MENTIRA,MENTIRA! Queriam roubar-te de mim. Empurrei o Dr. Campbell; varri com um braço a sua secretária. Tu és real, tu existes, tu existes. A malta não, mas tu existes. Os berlindes a saltarem da minha cintura, a caírem alternadamente com os gritos de ajuda do doutor. Eu fora de mim a lutar por ti, a lutar contra todas as palavras que te pudessem arrancar da

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minha memória, a gritar, mais do que os pulmões podiam. Depois uma vertigem. O chão tão próximo... apaguei. Acordei na ala psiquiátrica. O sorriso amável do Dr. Campbell a debitar palavras “… um episódio psicótico…” estava altamente sedada “…mas com a medicação…” procurei-te com todos os meus sentidos “… com a terapia…” não estavas lá. Pela primeira vez em 18 anos, abri os olhos e não estavas lá “… logo, logo deixarás de ver a malta e…” onde estavas tu? “…e a medicação não pode falhar, nunca…” Tinhas-me abandonado… Estava só, verdadeiramente só, outra vez. Mais uma vez prisioneira de outros muros que me roubavam o horizonte; desta vez a funcionarem como um trio, um comprimido branco, grande, de risco ao meio e dois pequenos, um rosa e um azul. Um muro na minha cabeça que me separava de ti, como se fosse suficiente para te esquecer! Hoje dou por mim a pensar que talvez precisemos de muros. Os meus muros fazem-me saber de mim no mundo. Sei onde estou… Só podemos sonhar se houver muros. É essa a sua utilidade: deambular com os dedos no que nos impede de ver o horizonte, sonharmos com a liberdade e sermos felizes nesse sonho! Só isso. Só isso. Eu transgredi os meus muros e do outro lado só encontrei a solidão. No meio de uma bebedeira com “a malta”, a solidão veio falar comigo, perguntou-me como é que, apesar de tudo, ela ainda existia em mim, ao que eu respondi, tu és a única que não me abandona. Mas hoje estou feliz, já tomei a medicação e todas as pessoas gostam de mim assim. Voltei a trabalhar. Trabalho na jardinagem, dedico-me a tudo que seja verde desde que não tenha de estar fechada num espaço. Continuo a guardar segredos como os meus berlindes com a palete de cores do teu olhar. Todas as manhãs, antes de tomar o trio, encho uma tigela de cereais, rego-as com leite e, quando oiço o crepitar da junção, levo uma colher cheia à boca, fecho os olhos e é como se o muro fosse de papel e o rasgasse como se rasga uma tela, começo a mastigar e sinto os

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meus pés a afundarem-se no cascalho, são sempre dias de sol, continuo a mastigar, oiço os teus passos ao lado dos meus, sorris-me desdentado e eu retribuo com o meu sorriso de leite e passeamos durante a manhã toda.

i . “Entrem e sentem-se”- Crioulo de Cabo-Verde

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ÊXODO José Trigueiros

No princípio, havia um pequeno jardim rodeado por um imenso deserto. É difícil asseverar se nesse jardim se concentrava a natureza como a conhecemos agora, pois inúmeras coisas se passaram às primeiras espécies aí criadas, muito por culpa da convivência inevitável entre elas. Mas de momento, a evolução não é para aqui chamada. Havia um jardim, e no centro desse jardim, uma macieira carregada de frutos. Pouco a pouco, o jardim foi-se povoando. O verde deixou de ser intocável e animais de todas as cores, tamanhos e feitios passeavam aos pares de uma ponta à outra do jardim, contentando-se com o que ele tinha para oferecer e evitando as areias estéreis que se apresentavam aquém e além deste. Reparem que afirmei ser um pequeno jardim, mas se formos a ver bem, é provável que hoje em dia não exista jardim algum que se lhe compare em extensão e variedade. Seria pequeno comparado com o imenso deserto que o cercava, mas na sua pequenez cabia um rio profundo e cristalino, um par de montanhas de nariz esbranquiçado, e toda a fauna – existente e extinta – do nosso planeta. As plantas não brotavam do chão. Eram plantadas. Assim como os

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animais não eram paridos pelo coito nem experimentavam um processo de crescimento. Nasciam aos pares, já adultos e em plena forma física. Não me perguntem como. Era assim que as coisas aconteciam e ponto. Apenas um detalhe diferenciava subtilmente dois seres vivos da mesma espécie: o sexo. Uma particularidade anatómica, que sendo certo que proporcionava diferentes habilidades nos elementos de distintos sexos, era, contudo, irrelevante em questões de pertença ou poderio colectivo. Ninguém mandava em ninguém. Estávamos no começo de tudo, onde as pirâmides sociais eram ainda um tema longínquo e a cadeia alimentar uma piada de mau gosto, muito mau gosto, pois leão algum tinha vontade de ferrar os dentes numa forma estranha e diferente da sua. Tenho na ideia que a convivência forçada e mal pastoreada entre as diferentes espécies animais é a razão principal para existiram tantos dentes caninos no nosso ecossistema. E sim, até os leões, ferozes como reis, tiveram em seu tempo um pastor. Falemos desse pastor. Homem de espécie. Nasceu num abrir e fechar de olhos, tal e qual a fauna que o antecedia, excetuando que quando o homem abriu os seus, viu meia dúzia de maçãs a pairar lá no alto. Confuso de orfandade, pensou ser ele próprio um fruto caído, e desejando regressar ao seu galho, aprendeu a saltar antes de caminhar. Permitam-me abrir uns parênteses: (acredito piedosamente que se todos os homens nascessem de corpo feito e em plena madurez física, saltariam! Não de felicidade, mas simplesmente para despegarse do chão, numa tentativa vã de cortar a gravidade que qual cordão umbilical nos aprisiona à terra. Agora mesmo, cada cinco segundos, morre alguém com a ilusão de que, finalmente, se irá despegar da terra e levitar por esse céu afora.) O problema do primeiro homem, ao contrário dos outros animais, foi ter espertado só. A seu lado não dormitava o exemplar feminino da sua espécie, o que torna mais difícil a compreensão anatómica do nosso ser, habituados que estamos ao método imitativo protagonizado na

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infância: ter um pai e uma mãe como modelos facilita-nos a imaginação nas coisas que dispensam originalidade como andar, comer e falar. Por sorte, o primeiro homem tinha um rio ali perto, e a rebolar qual fruto maduro, acercou-se ao reflexo de si mesmo. Ali estava ele: um homem feito. Passou a mão pela barba de nove meses, abundante e crespa como os restantes pêlos do corpo. Examinou a forma Neandertal do torso, rectangular e de pescoço inexistente, com muitas pontas soltas – braços, pernas, dedos, etc. – de extrema utilidade. Concordou não ser maçã, e ainda fascinado com a testa encavada e o nariz abatatado, viu-se surpreendido por uma tremenda exclamação que fez estremecer terra e céus: ADÃO! Ora, concentrado que estava em si mesmo, o primeiro homem compreendia o mundo como um sentir do seu corpo, ou seja, tudo o que o rodeava estaria dirigido única e exclusivamente à sua pessoa. É igualmente importante salientar que a humanidade, por inventar, ainda não defecara os céus de poluição. De facto, os céus pronunciavam vogais e consoantes com um vozeirão confundível com a pior exasperação humana. Não sendo por isso estranho que o primeiro homem julgasse que a trovoada lhe dirigia a palavra com aquele “Adão.” Seja como for, assim o apelidara o céu. E uma vez baptizado, Adão levou uma molha de chuva glaciar, tão fria que decidiu atirar-se ao rio para se abrigar da tempestade. Atenção! Juízos de valor e noções de coerência automaticamente aplicados a esta acção de um indivíduo se atirar à água para evitar ficar molhado podem ser eles próprios disparatados. A lógica nunca foi inerente a natureza ou espécie alguma! Deixemos as crenças científicas de lado. Só uma mente descomprometida é capaz de aceitar o caos como princípio, meio e fim de qualquer existência. Adão foi parido pelo caos, que pode, qual roleta russa, ser lógico ou incoerente. E é nesse mesmo caos que agora o primeiro homem se confunde com maçãs e peixes, até chegar o dia em que mais esclarecido das suas capacidades e desígnios, pensará existir uma lógica em tudo, e será surpreendido uma vez mais pelo seu criador, o caos, que num mesmo abrir e fechar

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de olhos, lhe ceifará a vida. Mas voltemos ao Adão submergido no rio. Há um pequeno pormenor por aclarar. Adão era imortal. Um anjo de carne e osso, suscetível de quebrar e sangrar, sem com isso sentir dor alguma. Meteu-se rio adentro, a dar aos braços como os peixes, mas faltava-lhe destreza e engoliu água, muita água, tanta que se lhe incharam descomunalmente os pulmões e as tripas. Deu à tona redondo e esverdeado como uma maçã, desiludido com o habitat desinteressante dos peixinhos e quase seguro de não enquadrar na sociedade pomar. Experiências de similar torpeza e inabilidade foram-lhe indicando o seu posto no mundo. Deslocou ossos atirando-se dos rochedos mais altos, confiante de poder voar como as águias; Rasou unhas e dedos na terra mais rígida do jardim, querendo amigar-se com as toupeiras; Entorpeceu-se de cãibras e rompeu meia dúzia de ligamentos correndo atrás de linces e leopardos; Fez-se filho de coalas, primo de chimpanzés e enteado de catatuas; E embora já soubesse abraçar tão bem como os primeiros, valer-se das mãos como os segundos e falar fluentemente como os terceiros, eram mais as diferenças que o entendimento ajuizado entre eles. Muitas vezes, rendido à sua imparidade, Adão encostava-se à macieira e observava os animais nas suas rotinas casamenteiras, bem acompanhados nos seus passeios pela vida ou encaixotados às lambidelas na mais doce preguiça de uma toca. Esporadicamente chegavam animais novos. Casais que iam repovoando o jardim e o enchiam de sons caricatos que Adão tentava perceber em vão. De tanto observar e ponderar o seu lugar no mundo, o primeiro homem tornou-se um ser racional. Pois claro! Não dêem por adquirido que a racionalidade é um bónus que nos etiquetaram na ponta do polegar direito. Foi a solidão que lhe desenvolveu o intelecto. De outra maneira não teria com que se distrair, por muito inúteis que fossem estas distrações. Uma delas, por exemplo, foi a invenção da matemática. Mas antes de explicar a criação dos números, convém explicar as circunstâncias que a antecederam. E não é que Adão, numa tarde repetitiva em que

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caminhava sem rumo nem ambição, vislumbrou, bem perto da sua macieira, um homem como ele! Sim, um homem como ele a apreciar as maçãs. O primeiro homem correu desalmadamente, e a meia dúzia de metros caiu de joelhos, embasbacado. Era ele duplicado de alto a baixo: o mesmo torso rectangular, o mesmo pescoço inexistente, o mesmo aspecto amacacado de tez torrada quando não peluda, o mesmo metro e meio das sobrancelhas farfalhudas às unhas trôpegas dos pés! Não fosse a postura rectilínea e despreocupada do seu duplicado – em contraste com a de Adão que levava as mãos a rasto pelo chão – e o primeiro homem pensaria ser ele próprio um reflexo do rio. “Olá Adão”, disselhe o novo ser estendendo-lhe uma mão, “sou o Verbo”. Adão, ainda de joelhos, não soube que fazer com aquela mão estendida. Procedeu como pôde, ou melhor, procedeu como procedia sempre que se deparava com algo insólito: imitou um animal. Lembrou-se dos beija-flores quando abordam o objecto do seu desejo, e beijou. O senhor Verbo pareceu não importar-se e repondo o olhar nas maçãs exclamou: “Que belos frutos, não achas?” Adão pôs-se de pé e experimentou a língua: “Eu quem? Quem tu?” O senhor Verbo suspirou meio aborrecido. “É. Foste criado à minha imagem. Mas isso de quem sou eu e quem és tu é uma tremenda chatice. Olha, não me leves a mal, mas tenho de ir. Deixei um mamífero a meio e...” Adão esbugalhou os olhos: “Mamífero?” O senhor Verbo tentou explicar-se: “Sim. É bastante parecido com outros que por aí andam. Desses que sobem às árvores, estás a ver?” Como grande parte dos animais do jardim passavam a vida metidos em árvores, Adão não estava a ver coisíssima nenhuma. O senhor Verbo apercebeu-se da necessidade urgente de baptizar a fauna existente para a poder mencionar. Propôs: “Olha, já que estás aqui, podíamos fazer um trato. Estas maçãs não são para se tocar. Livra-te de o fazer! Em troca, deixote baptizar todos os animais que por aqui andam e os que estão para chegar. Que te parece?” Adão bateu palmas, mais entusiasmado pelos reencontros do que propriamente pela função poética de intitular a

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fauna do jardim. “Pronto, é isso. Cada vez que o vento sustenha a respiração e o sol se ponha pardo, vemo-nos aqui e baptizas-me as últimas criações.” Adão abraçou a macieira e prometeu ficar de guarda até ao próximo encontro. E foi assim que o primeiro homem se promoveu a vigilante das maçãs, enxotando tudo e todos com um pequeno galho que para ali encontrou e fazendo da macieira a sua moradia privada. Fosse noite ou fosse dia, Adão não despegava da macieira, e os seus pés zelosos já cavavam círculos de vigília à volta do tronco. De tempos em tempos, os dois sócias reencontravam-se. O senhor Verbo acompanhado por uma nova parelha de animais, e Adão acompanhado por novas dúvidas existenciais que o atormentavam. A matemática, mais do que uma invenção, foi o ruminar de uma dessas dúvidas existenciais. Foi inventada num dia de baptismo. Adão aguardava a chegada do senhor Verbo enquanto observava como os animais se amedrontavam e escorraçavam aos pares assim que o vento sustinha a respiração e o sol se punha pardo. Corriam acasalados, cada qual preocupado com o seu semelhante, atiçando e deixando-se atiçar, até ambos se encaixotarem numa toca atentos ao último burburinho dos pássaros assustados. Um princípio de semelhança – cada vez que um animal se igualava e confundia com outro – provocou-lhe uma necessidade contabilística. Qual reacção alérgica, a matemática tomou-lhe conta da visão, e o “2” surgiu-lhe assim naturalmente como primeiro número inventado e princípio de qualquer contagem, pois Adão apenas contava aquilo que lhe parecia idêntico e repetitivo. Para ele a unidade estava no par. Já quando se identificava no reflexo de um rio, Adão não sentia o pulsar do número 2. Era apenas ele pintado de água. Nem a própria sombra lhe atrapalhava a contagem, pois rapidamente se deu conta de ser o sol a pregar-lhe rasteiras. Não, Adão não era um número 2. Esteve perto de acreditar que sim, que ele e o senhor Verbo poderiam constituir uma contagem. Mas desenganou-se com a falta de interesse do seu criador. Já que o único motivo pelo qual o senhor Verbo procurava Adão, era

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para este lhe baptizasse as criaturas, que no parecer do segundo, desde que o senhor Verbo trocara os dinossauros pelos mamíferos, estavam cada vez mais repetitivas. Mas era um parecer que o primeiro homem guardava para si mesmo. Não tinha dotes de criação, apenas acabara de inventar a matemática, e por isso decidiu arrumar a cabeça, meter Deus no devido lugar e inventar um número para si mesmo: 1. Nem lhe pareceu estranha a ordem com que alienou a contagem, pois para Adão qualquer existência começava no número 2, sendo o número 1 uma consequência posterior e não anterior à criação. Eram sempre dois os animais que o senhor Verbo lhe trazia. E esse número tinha tendência para ampliar. Adão observava como dois animais juntos, ao largo do tempo, produziam um terceiro. Concluiu, com toda a matemática possível, que 1 + 1 seria igual a 3. E por vezes a conta era ainda mais completa: 1 + 1 = 5 ou 7 ou 12. Em todo o caso, o 2 era o começo de tudo e o 1 o princípio do fim, pois os animais, ao contrário dele, tendiam a morrer. E quando um 2 se convertia num 1, pouco tempo restava para esse mesmo 1 desaparecer e se converter num terrível novo número: 0. Adão vira muitos zeros tombados no jardim. Não se moviam ou faziam outra coisa para além de estarem ali tombados, a apodrecerem-se de cores, sendo que com o tempo desapareciam e Adão já não os considerava 0, mas -1. Encheu o peito de melancolia, e nos dias de baptismo, quando se deparava com o senhor Verbo, estirava-lhe um dedo de súplica que depois apontava a si mesmo, fazendo-o compreender que tinha duas mãos, duas pernas, dois braços e tanta paridade como ele, o seu criador, e que ainda assim se sentia incompleto. Pela cabeça de Adão passavam pensamentos perigosos, quase de revolta, sendo um deles que o senhor Verbo apenas o criara por auto-recreação, para se ver a si mesmo reencarnado num organismo animalesco a passear pelo jardim e a usufruir dos seus próprios inventos, e que o baptismo dos animais era uma justificação preguiçosa para a sua existência. Os animais não necessitavam sons que os identificassem. Nem sequer os entendiam!

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Apenas baptizamos o mundo para poder comunicá-lo a alguém. E Adão pouco ou nada comunicava com o senhor Verbo. Estava claro que ele entendia tudo o que Adão sentia, mas o contrário – entender o sentir de Deus – era impossível, meramente intuitivo, e o que é intuitivo tem tendência a ser pecaminoso. Adão nem fazia por mal, era puro misantropismo de um ser parido num mundo de órfãos e que seria a primeira vítima com Síndrome do Deficit de Atenção. Esta condição ser-lhe-ia congénita o resto da vida, e o primeiro sintoma foi a criação da arte na sua forma mais rudimentar. Adão adquiriu o hábito de traçar dedos em todas as superfícies legíveis. Números, que ao princípio desenhava para contar o avanço de cada nova espécie, alimentando assim a sua pretensão pastorícia na reorganização do mundo. Mas durou pouco até esse sentir de responsabilidade contabilista se converter em algo mais introspectivo, e era comum encontrar três traços na toca de qualquer espécie, III, como uma denúncia discriminatória que Adão pretendia redirecionar a si mesmo. Eles ocupam III dedos e Adão somente I. Eles são três vezes iguais, e eu não me igualo a coisa nenhuma. Sou feito de desigualdade. E assim começou a desenhar a desigualdade no peito, com um traço feito de lama, resina e por vezes até sangue de animais mortos. E com esse traço se apresentava ao senhor Verbo, que revirava os olhos ou lustrava as maçãs enquanto fingia não o entender. Mas Adão não desistiu e passou a esboçar traços isolados em todas as superfícies terráqueas, fossem pedras, árvores, areais ou carcaças abandonadas, interferindo na estética cuidada do jardim. Até que numa noite de lua cheia, incapaz de encontrar objectos pontiagudos para pintar a sua frustração, Adão meteu mão em si mesmo e arrancou uma costela. Com ela escavou um traço longo e gordo na macieira tão querida do seu criador. Lascou noite inteira, sem parar, até que um novo sentir se apoderou do seu corpo, ou, mais concretamente, um dessentir. O homem adormeceu pela primeira vez. Que não vos pareça estranho. Nem vos assuste a assunção que o cansaço é uma forma ligeira de dor.

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Podemos assim dizer que Adão experienciou uma dor pela primeira vez, o sono, e adormeceu. Fez-se-lhe escuro o mundo, e tombado sob a macieira, com um resto de costela na mão direita, sonhou. Sonhou que o Verbo era a macieira acabada de vandalizar, e que as maçãs lhe falavam em coro com a voz do Senhor. Diziam-lhe que não era o único ser no mundo a sentir-se só e incompleto. Que o senhor Verbo o criara à sua imagem e semelhança por sentir exactamente o mesmo que ele, um abandono eterno resultante da condição imortal de ambos. “Repara Adão, os animais morrem porque estão feitos de incompreensão. São o aperfeiçoamento dos meus traços. Traços que começaram exactamente como os teus, em linhas rectas como dedos. Autorretratos do nosso desespero que mais tarde se converteram em árvores de muitos dedos, sendo a primeira delas a maceira que acabas de vandalizar e que agora te dirige a palavra. Também tu és um autorretrato. Podia dividir-te em dois, e Adão com Adão reproduzirias autorretratos infinitos de incerteza. Mas fiz melhor que isso. Escuta: Existem dois jardins. Sim, dois paraísos criados à imagem um do outro, porque tu sabes que os acidentes acontecem e duplicando tudo consigo controlar melhor a extinção inata do mundo. Espera! Não te adiantes. Já sei o que vais perguntar. A resposta é sim. Existe outro ser humano que criei exactamente no mesmo instante em que te criei a ti. Uma mulher. Mais valente e determinada que tu, pois acaba de atravessar todo este deserto árido que te rodeia. Caminhou muitíssimo, e dei-lhe resguardo sobre os meus ramos, aqueles que tens por dever guardar. Abre os olhos, Adão.” O dia já aclarara, e a primeira coisa que Adão viu foram as maçãs lá no alto, pequenas e torpes como sempre foram, mais feias incluso que muitas outras repartidas pelas diversas macieiras do jardim. Adão viu o enorme traço que escavou na macieira, mas na sua mão já não se encontrava costela alguma. Na sua mão encontrava-se outra mão, mais pequena e frágil. E dessa mão seguia-se todo um corpo primata como o seu, sendo as suas formas mais arredondadas, lineares e harmoniosas. Pelo menos

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assim as via Adão, que num impulso incontrolável tentou abarcar por completo aquele corpo frágil num gesto que pode ser considerado como o primeiro abraço da humanidade. A mulher despertou. Deparou-se com os olhos possessivos de Adão. A sua barba rija a espicaçar-lhe a face. O corpo quadrado de braços duros e fortes pegado ao seu e a bombear qualquer coisa estridente no seu interior prestes a explodir. Sentiu-se sufocada, sem se poder mover ou respirar. Gritou, e num salto abrupto afastou-se de Adão, que tombado de joelhos também gritou erguendo dois dedos, indicador com indicador, numa explicação matemática muito frouxa e varonil que assustou ainda mais a primeira mulher que entretanto subira à macieira e lhe pontapeava qualquer tentativa de reaproximação. Confuso, Adão salivou incongruências animalescas, autênticos palavrões que lhe estreavam a boca nos insultos. Queria a sua mulher! Tentou trepar a macieira, mas a mulher, sem qualquer tipo de complexos, apanhou uma maçã e acertou-lhe em cheio na nuca. Adão não sentiu dor alguma na cabeça, mas sentiu-a no peito. Medo! Que no fundo é uma dor provocada pela antecipação de mais dor. Adão tinha medo que o senhor Verbo se chateasse com a promessa incumprida de salvaguardar as maçãs, e lhe levasse a mulher de volta para o outro jardim. Achou prudente afastar-se rapidamente, pois a primeira mulher já tinha fisgada outra maçã. Já a meia centena de metros de distância, olhou uma última vez para a macieira. E ali estava ela, a primeira mulher, escondida entre os frutos, inacessível. Num último relance, viu-se a si mesmo metido entre os ramos, a ziguezaguear por entre as maçãs e a silvar confidências ao ouvido da primeira mulher. Mas não era ele. Era o senhor Verbo, apenas preocupado em preservar as malditas maçãs. Nos dias que se seguiram, Adão tentou diversas vezes reaproximarse da mulher. Chegava devagarinho, em bicos de pés, e era pontapeado. Gritava de longe, como um gato cioso, e era apedrejado. Uma vez, atrevido e mal criado, meteu-lhe as mãos ao cabelo e tentou arrastá-la pelo chão. Levou tamanho coice nas virilhas e mordidela nos braços

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que mesmo sem sentir dor se envergonhou do seu proceder e ganiu como um cão rejeitado. Passou a admirá-la de longe, escondido atrás de um rochedo ou mascarado de moita. Sofria com a intimidade que ela partilhava com os animais e por vezes, vendo-a chegar, corria à sua frente para espantar a bicharada. Não queria que lhes tocasse. Eram seus! Quase acreditava que fora ele que os criara, e não o senhor Verbo. Se via algum animal aproximar-se da mulher por vontade própria, fazia-lhe uma espera na toca. E se era demasiado grande para o assustar, montava armadilhas e deixava os bichos encurralados até aprenderem a lição. E de que lhe servia tudo isto? De nada. A primeira mulher continua a ver-se com os animais, e eles cada vez mais enamorados dela. Adão era pastor de coisa nenhuma. Já nem os coalas o abraçavam. Angustiava-se, sobretudo, com a cantoria que rodeava a primeira mulher. Não havia animal que não lhe melodiasse a passagem, fazendo-a sorrir. E como Adão estremecia de a ver sorrir! Tanto que ele próprio sorria sozinho, abraçado a uma árvore, imaginando-se carne com carne, felicidade com felicidade. Era isso! Tinha de a fazer sorrir. Só assim o deixaria acercar-se o suficiente para a possuir. E uma vez possuída, refém dos seus braços e sorrisos, seria sua para sempre. Meteu-se nas tocas dos animais, a escutá-los atentamente dia e noite, e quando só, imitava-os em jeito de chamamento, para provar habilidades. Fez-se mestre de piares, mugires, ladrares e cacarejares. Aprendeu todos os idiomas do mundo, e era tão fluente que os animais começaram a prestar-lhe atenção. Tentou o truque com a mulher. Metido numa árvore, assobioulhe como os pássaros e uivou-lhe como os lobos, deixando a mulher espantada, mas ainda reticente em permitir qualquer aproximação. Onde caberia Adão? Nem na toca mais profunda do seu coração. Retirou-se para a sua macieira e recuperou a vida de antes, guardião de maçãs. Não conseguia entender o porquê da matemática ser tão incerta. 1 + 1 terminar em 1. Ou não seria a mulher o seu complemento? A sua natureza dizia que sim. Havia que agarrá-la. Fazer seu o corpo dela.

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Mas por que era necessário tanto esforço? Os outros animais já nasciam de conta feita. E se lhe preparasse uma armadilha? Um buraco no chão! Depois de a resgatar, ela não seria capaz de percorrer o jardim sem a sua companhia. Sim! Estaria sempre agarrada ao seu braço, a implorar pela adição matemática do seu corpo forte e protector. Podia até disfarçar-se de animal e pregar-lhe sustos. Ganhá-la pelo medo. Inventaria crenças mitológicas de monstros animalescos, demónios, dos quais só poderia escapar recorrendo a ele, o seu redentor. Sim, crenças que funcionassem através do medo! E inventaria mandamentos para ela seguir, caso quisesse afugentar o mal. Mandamentos que a levariam sempre a ele, o seu homem, o seu senhor. Era um bom plano. “Deixa-te de parvoíces!” Adão voltou-se, surpreendido, e encontrou o senhor Verbo com duas minhocas gigantescas nos braços. Tinha cara de poucos amigos. “Não reparei que estavas aí...”, atrapalhou-se Adão. “Trago-te mais dois animais para baptizar. Talvez assim te inspires e limpes essa mente de porcaria.” Adão sentiu-se envergonhado. “Ela não me quer!” O senhor Verbo pendurou as minhocas sem nome no ramo mais próximo da macieira. “Adão, não criei este jardim para contentamento teu. Tens a sorte de ser imortal. Desenvolveste o raciocínio e aprendeste muito com os seres à tua volta. Mas és caprichoso! Acaso te crês mais que os outros? Que contas são essas na tua cabeça? Quem disse que Eva te pertence ou é menos que tu?” O senhor Verbo falava devagar e sem tirar os olhos de Adão. O primeiro homem apontou-lhe o dedo. “Fizeste-me à tua imagem!” O senhor Verbo encolheu os ombros. “Sim. Fiz tudo à minha imagem. Esta árvore, estas maçãs, estas “minhocas gigantes”, este rio, este jardim, tudo! Eva foi feita à minha imagem também. Tão fotocopiada como tu! Eu sou o reflexo de toda a existência contida neste jardim. Sou um criador. Tudo o que ponho no mundo, é parte de mim mesmo.” Adão baixou a cabeça. Afinal era tão especial como o mais insignificante grão de areia. “Aí é que tu te enganas, Adão. Não és tão

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especial como um grão de areia. Simplesmente fazes parte de um todo em que o grão de areia também está incluído. E não é pisando esse grão de areia que te fazes mais pertence desse todo, ou sequer possuidor da sua mais ínfima parte. Eva não é propriedade tua, Adão. Não a podes possuir à força e com artimanhas. Não te podes crer mais do que ela. O “2” que tanto desejas é puro egoísmo, pois os números não se consomem uns aos outros, apenas se conectam quando aceitam a sua igualdade. Enganaste-te na conta Adão. 1 = 1, esta é a matemática que te falta aprender.” O senhor Verbo silvou às “minhocas” e Adão, inspirado no sopro seco das suas falas, baptizou-as de serpentes. Assim que o senhor Verbo se retirou, Adão estendeu-se num galho da macieira. Dormitou pela segunda vez, todo encolhido para não incomodar as maçãs, até ao entardecer. Quando reabriu os olhos, avistou uma das serpentes a dois ramos do seu, e muito lá em baixo, apoiada à macieira, dormitava também a primeira mulher. Eva. Era esse o seu nome, segundo o senhor Verbo. Que vileza. Tanto lhe custaria a esse senhor Verbo aclarar-lhe as ideias antes e poupar-lhe tanta vida de errância e falsa intuição? Indignado, Adão encolheu-se no ramo e imitou a voz do criador: “Eva, ó Eva!” A primeira mulher despertou e olhou instantaneamente para cima. Viu a serpente e sorriu. “Que me queres? Fica-te bem o disfarce.” Adão não podia acreditar! Eva pensava que a serpente era o senhor Verbo disfarçado! Contendo o riso, continuou. “Eva, porque não comes uma maçã destas?” Eva torceu o nariz. “Porque não me apetece.” Adão não desistiu. “Mas Eva, se comeres uma maçã destas, serás como eu!” Eva apanhou uma das maçãs e sacou-lhe brilho. “Como tu? E para que quero ser como tu?” A serpente ergueu ligeiramente a cabeça e Adão aproveitou a deixa: “Ora, para que se te abram os olhos e vejas o mundo segundo a minha perspectiva celestial.” Eva riu-se muito alto. “Perspectiva celestial? Andas a rasto pelo chão, a comer pó e a ser pisada por meio mundo! O teu céu é tão celestial como a curvatura do meu joelho.” E sem parar de rir, a primeira mulher deu uma boa mordidela

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na maçã e fez pontaria à cabeça semioculta de Adão. “Sai daí patife!” Adão desequilibrou-se com o impacto da maçã e caiu da macieira com grande alarido. Eva sentou-se a seu lado sem conter o riso. Apanhou a maçã mordida e estendeu-a a Adão. “Não está má, mas as da macieira ali da esquina são melhores.” Adão entrou em pânico. “O Verbo! Era uma brincadeira, mas o Verbo vai-nos castigar!” Eva, impaciente, enfiou-lhe a maçã na boca e barafustou: “Outra vez essa história do Verbo? Já antes te tinha escutado a falar sozinho. Pareces maluquinho, sabes? Por isso me dás medo. Bem, por isso e pela mania que tens de me agarrar como um brutamontes.” Adão levantou-se de mãos no ar, rendido. “Mas o Verbo!” Eva pregou-lhe tamanha rasteira que o fez tombar novamente de costas. “Qual verbo qual carapuças. É tudo na tua cabecinha! Eu também falo comigo mesma, mas não ando para aí a gritar o que penso e muito menos a discutir com o vento! Vê se atinas, Adão. Este jardim faz-te mal ao juízo.” E num gesto carinhoso, passoulhe a mão pela face. Adão sorriu, e aproveitando a deixa, acercou-se subtilmente para a abraçar. “Que sugeres que faça? Eu só queria ter-te nos meus braços.” Eva deixou-se abraçar. “Não te preocupes. Podes contar as histórias que quiseres. Mas vamo-nos daqui. Há mais mundo para explorar, e já vai sendo hora de parir a humanidade.” Adão e Eva levantaram-se e olharam à volta. Deram as mãos. O mundo era um deserto cheio de aventuras e histórias para preencher. Adão prometeu à primeira mulher que inventaria uma maneira de preservar a história daquele jardim. E Eva disse ao primeiro homem que podia contar as histórias que quisesse, desde que tivesse a decência de não patentear o mundo e todas as suas criações baixo o domínio do seu ego machista. Mas Adão, tão concentrado que estava na invenção da literatura, não lhe deu ouvidos.

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NINGUÉM CÁ FICA Tiago Ramalho

Ninguém soube ao certo quando se finou a primeira vítima mortal do Vírus da Felicidade. Nem mesmo o próprio tolo de sorriso estampado no rosto, que sentiu o coração a explodir-lhe dentro do peito, sem metáforas ou lirismos, teve consciência de que era o paciente zero de uma pandemia que viria a reduzir a percentagem de seres humanos a uma mísera casa decimal. Em volta do defunto só especulações; a sua morte era tratada como um caso de combustão espontânea, daquelas situações que ocorrem volta e meia numa localidade remota, sem ciência nem lógica que ampare os incautos habitantes e que se explica, para não dar muito trabalho aos médicos legistas, departamentos policiais, funerárias e outros serviços que lucram com a morte, com recurso a uma fantasia que mete medo e deixa o assunto por ali. Um indivíduo que se prezava como inteligente e talvez ligeiramente audacioso questionou a ausência de cinzas ou queimaduras no cadáver mas logo lhe explicaram – um homem que tinha licença de doutor e

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praticava o seu ofício naquela mesma terrinha – que o caso de combustão espontânea era um mero exemplo para explicar que a causa de morte, sendo impossível de descortinar, só poderia ser atribuída a algo que ninguém questionasse. Chame-lhe “morte fulminante” e acabe-se já com o assunto, disse o doutor ao chico esperto, que ainda assim não ficou satisfeito. Morre um homem e nem lhe dão paz à alma, continuou o paladino da verdade, Que um homem que morre sem saber porquê não tem descanso, nem neste mundo nem no outro. Qual outro, perguntou o doutor, sem deixar esconder o cinismo embebido nas palavras. Se o doutor não acredita é lá consigo, e deixe-me que lhe diga que até fica mal um senhor com a sua craveira intelectual não acreditar que há mais do que aquilo que aqui temos, mas continuo a dizer que um homem que morre, que fica com as entranhas do lado errado do corpo e ainda assim ninguém lhe dá reparo, é quase assunto de polícia. Falando em polícia, disse o doutor com um sorriso malicioso, Nunca ouviu dizer que quem mata sente quase sempre a necessidade de regressar ao local do crime? E o que quer o senhor dizer com isso, perguntou o outro, mostrando visível transtorno pelas insinuações do doutor. Deixe lá o assunto, homem, é melhor para todos, inclusive para o defunto, que pode ficar morto à vontade sem lhe andarem a remexer no corpo. A discussão terminou azeda e sem conclusões lógicas. O caso ficou por ali, sendo apenas reatado pontualmente, aqui e acolá, como um fogo selvagem, por gente que não sabia muito bem do que falar. Não tardou muito, no entanto, a surgir tragédia semelhante, desta feita numa grande cidade. Um outro tolo, sentado ao sofá, de olhos colados à televisão e de braguilha aberta, com restos de coração e outros tecidos moles estampados na t-shirt, era sem saber o paciente número dois. A excitação foi muita, comentou um bombeiro para o outro, enquanto abria o saco preto. Safou-se de boa, que agora ninguém paga a conta da televisão por cabo, respondeu o outro, e não tardaram em soltar gargalhadas. Dupla de malandros, gente sem espinha dorsal nem respeito pelo outro, falsos

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cristãos, terá assim pensado o defunto se ainda tivesse em condições de pensar. Na morgue ninguém chegou a um consenso, e observando o registo médico do homem, nada plausível explicava o sucedido; o coração explodiu-lhe dentro da caixa torácica, com intensidade tal que ainda lhe rachou duas costelas. Os intestinos liquidificaram, juntamente com a vesícula e os testículos e outros órgãos menores. Era uma morte bizarra e, mais do que isso, inexplicável. Será um vírus, terá perguntado um médico estagiário, rapaz bem comportado e de inteligência acima da média, mas com pouca modéstia e tremenda ânsia de se fazer notar. Se for um vírus, ter-lhe-á dito um outro médico, bem mais velho e cheio de sensatez, Não tarda muito és tu quem lhe toma o lugar, quando ele for enfiado debaixo de terra. Caso sem solução, guardado num dossiê e enfiado numa prateleira, juntamente com outros de idêntico cariz. No funeral do paciente número dois, conduzido por um virtuoso padre com excepcional ligação ao criador, disse a avó do defunto, enquanto roía um rissol de camarão: Ninguém cá fica. Era uma afirmação impossível de comprovar por um mero ser humano mas não andava longe da verdade. Desse dia em diante foi vê-los cair como moscas, centenas de vítimas do Vírus da Felicidade que na altura não tinha esse nome. Todos tolos, homens e mulheres, que partilhavam uns com os outros um inconveniente estado de euforia na altura da morte. O caso mais mediático, que levou à queda do governo, aconteceu num comício do partido da democracia conservadora, a meio do brinde que exaltava uma vitória antecipada nas eleições presidenciais. Cantaram de galo, dissese depois, e acabaram por ir parar à caçarola. Os sorrisos contagiantes de elementos partidários e apoiantes do partido despoletaram a reacção química que definiria a doença mais letal da história; os corações aceleraram e nem o vinho acalmou. Em pouco segundos deu-se um festival de explosões de músculos e tecidos moles. No fim, mais de dois mil cadáveres jaziam em poças de sangue semelhantes a lagos. O

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líder do partido vencido, achando que tal hecatombe era explicada por intervenção divina, organizou de imediato uma festa, em segredo; se não havia partido rival, não havia hipótese de perder coisa alguma. A festa durou pouco e logo ao primeiro brinde lá se deu situação igualmente macabra. A Deus não se podia apontar o dedo de favoritismos políticos, escreveram os jornais. As instituições religiosas citaram Testamentos e culpabilizaram os que por cá andavam. E de quem mais seria a culpa? Deus estaria certamente cansado do mau uso dado pelas suas criaturinhas ao livrearbítrio; Deus, se tivesse juízo, metia um ponto final nesta existência asquerosa. O problema surgiu quando também os padres começaram a vomitar as entranhas. Agora é que a porca torce o rabo, pensou um teólogo famosíssimo, que por acaso também escrevia literatura profunda, Que já nem os filhos preferidos de Deus escapam ao fim cruel que toca a todos os outros. Ninguém cá fica, continuou a pensar, e uma vez mais esta declaração não estava longe da verdade. Também ele se viu em apuros e tudo por causa de uma garota que não sendo bem parecida tinha um jeito particular de morder os lábios que lhe agradava. Senhor padre, pequei, disse ela no intervalo de uma aula sobre ética e moral, Qual foi o teu pecado, perguntou ele, sem se importar com a imprecisão da designação utilizada pela rapariga, Provei o fruto proibido, disse ela, E a que sabe tal fruto, inquiriu ele cheio de intenções, Adocicado, respondeu ela, e continuaram a conversa no escritório do teólogo, alongaram-se em metáforas e quando o clímax surgiu através de sons plangentes ambos os corações estoiraram. A porca não torceu o rabo, mas não fosse a súbita precocidade do homem, podia muito bem ter visto o seu traseiro invadido. Os anos passaram, como acontece sempre no mundo desde que se inventou o tempo, indiferentes à carnificina que pela terra reinava. O medo do Vírus da Felicidade, assim designado por um jornalista com tal quantidade de cinismo no corpo que lhe dissipava a temível serotonina,

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afugentou as pessoas das grandes cidades para as aldeias distantes mas foi pior a emenda que o soneto, e de sonetos bucólicos que preenchiam os seus dias campestres, também esses morreram a cruel morte. Os hospitais, que não eram vistos com bons olhos fazia já algum tempo, transformaram-se em campos de concentração onde se aguardava a morte e a mais cruel vicissitude deste novo flagelo que se propagava a cada sorriso descortinava-se nas salas de parto. Deus fechou os olhos, comentava-se em voz baixa pela ocasião de cada nascimento, e com justificada apreensão. As mães, de barriga inchada, deitadas no próprio suor, lançavam preces aos céus mas as palavras ficavam quase sempre pelo tecto esbranquiçado. Os médicos e enfermeiros, sem saber muito bem o que esperar nos segundos que se seguiam, talvez vida, talvez morte, faziam apostas dentro das próprias cabeças. Isto porque o acto de dar à luz era como uma aposta, jogar no casino, lançar os dados e ver o que calhava. Umas vezes, não tantas como se gostaria, a criança nascia, entre berros entalados na garganta e gemidos e logo se dava uma enorme choradeira e lá saiam duas pessoas em vez de uma da sala de parto. Outras, o que viria a tornar-se a norma, assim que se via a cabeça do futuro habitante daquela terra conflagrada, de imediato se dava a euforia descontrolada e a explosão de órgãos, mãe e filho amaldiçoados pelo acto infelizmente feliz de maior união que há entre seres humanos. As grandes cidades tornaram-se complexos industriais, fábricas atrás de fábricas que produziam fumo e não mais que isso; porque um iluminado, certamente influenciado pela cultura popular de filmes e literatura fantástica que o acompanharam no decorrer da vida, tivera a feliz ideia de cuspir na atmosfera gases nocivos à saúde, que diminuíssem os níveis de serotonina e outras substâncias produzidas pelo cruel cérebro e que aparentemente causavam o vómito letal. Feliz ideia é o termo adequado, porque logo após a concepção e disseminação do ambicioso projecto, e derivado da epifania que lhe deu grande gosto ter, morreu como os outros.

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Nasceu então uma oligarquia que mantinha a ordem – se é possível chamar “ordem” aos esforços perpetrados pela sociedade que tentava sobreviver com grande custo, sem poder dar azo à alegria que comumente era associada à humanidade – e deu bom uso às últimas palavras do indivíduo; em poucos anos edificaram maciças construções de betão que serviriam o desejado propósito. E assim era o admirável mundo novo, passe a referência, caracterizado pela negridão dos céus e sujidade na terra, apocalipse pouco original saído de histórias medíocres. A esperança, palavra gasta nas bocas dos ansiosos e inconformados, não tinha forma de se fazer escutar, até certo dia (ou seria noite, não dava para diferenciar tal era a escuridão no céu) em que se fez ler. Uma mensagem, ninguém sabia de onde vinha, captada pelos serviços de comunicação da oligarquia vigente, impressa em folhas de papel para que se pudesse ler com maior celeridade, estendia-se em mais de trezentas folhas e para espanto do primeiro homem a pôr-lhe os olhos em cima, era uma obra de literatura. E coisa fabulosa que era, narrativa que prendia a consciência e não deixava mais largar. Era uma estória de vida e morte, como são todas, de amor e de tristeza, uma odisseia que percorria a espinha, enchia corações e alimentava sonhos. Quem terá escrito tal coisa, numa altura destas? perguntou-se o técnico de comunicações, de olhos lavados em lágrimas, Quem terá tanto amor dentro do peito capaz de dar forma a esta obra? continuou a perguntarse, até que o coração rebentou e lhe pôs fim às interrogações.

*** Ele escrevia poemas com urina em paredes e esquinas. Intitulava-se Poeta do Mijo e era revolucionário à sua maneira. Nunca leu Orwell ou Huxley mas guardava na bexiga uma quantidade infindável de rebeldia. A Julieta, antes de o ser, era Romeu. Nunca leu Shakespeare mas sabia que as histórias de amor, as boas histórias de amor, terminam em morte.

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E era assim que se sentia antes da operação; morta. O veneno que lhe consumia as entranhas era bem mais poderoso que o que vitimou os eternos amantes. Agora amava-se e poucas pessoas podiam dizer o mesmo. Nenhum dos dois leu Saramago, no entanto sabiam que a esperança vinha de dentro e não de cima. Até à data da inédita obra escrita por desconhecido messias, nunca se tinham encontrado mas viviam debaixo do mesmo céu roubado de azul pelas chaminés das fábricas que vomitavam o fumo espesso das suas entranhas, metástases espalhadas ao longo da grande cidade. O poeta soltava-se de inspiração, escrevia um soneto ou assim o parecia, na parede exterior de um antigo teatro, gasta pelo tempo cruel que lhe comia a tinta. Tinha sido, em anos tristonhos, um antro de pecados da carne mas agora, que a felicidade se propagava com fúria indesejada, não era mais que um mausoléu de cadáveres à espera da última viagem. Julieta viu-o ao longe, enquanto percorria a rua coberta de cinzas, papéis rasgados e animais mortos. Ia descalça, como era hábito; fazia-o por motivos de loucura, que só os loucos caminham descalços. Ou entidades messiânicas, apesar de ela não se ver como salvadora de coisa alguma. Ele era feio mas tal adjectivo não era incomum desde que a felicidade fora despejada, à força e por necessidade, dos olhos dos cidadãos. Não a viu porque estava de costas para o mundo, calças pelos tornozelos, num transe só ao alcance dos poetas. As últimas gotas de urina caíram na parede sem força, levadas à mão pela gravidade. Era um poema frágil, que não duraria mais que algumas horas. Mas tudo era efémero neste novo universo; o cosmos lá tinha tempo para histórias longas. Um cão gemeu de frio, no meio da estrada desolada que já não servia propósito; era serpente despida de escamas. Tanto gemeu que acabou por morrer, uma morte triste, enregelada, profundamente diferente da partilhada pelos habitantes bípedes da cidade. Fez-se silêncio e no meio do silêncio os olhos dos dois únicos seres vivos ali presentes encontraram-se.

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Morreu um cão, disse o poeta. Julieta acenou com a cabeça, à distância de dez passos, talvez menos. Morreu, certamente, disse ela mas ele não a ouviu. Ele ouvia mal, um problema vindo da infância. Os seus olhos, no entanto, eram vorazes. Morderam-lhe as feições, saboreando a figura à distância; era uma mulher alta, de ombros largos, resquícios de um corpo que lhe fora entregue por engano. Não era bonita mas estava lá e isso chegava para lavar a vista; acontecimento raro, naquelas solitárias ruas, duas pessoas se cruzarem, porque os sobreviventes preferiam abrigos, paredes e tecto que os guardassem da toxicidade cuspida pelas nuvens. Caminharam em direcção ao animal que jazia num monte de cinzas. Que preces se rezam por um cão, inquiriu ela, com a voz seca. Não me parece que os cães se fiem em preces para chegar a algum lado, respondeu ele, Vão-lhe comer a carne e só no bucho de outra criatura vai sair daqui, infeliz viagem o espera. Julieta suspirou a tristeza para fora do peito. Não era uma viagem tão diferente daquela apregoada pela sua família, em tempos, à volta da mesa de jantar. Também as almas eram guardadas dentro de outras pessoas que partilhavam as mesmas crenças e através delas viajavam, para todo o lado ou para lado nenhum se assim tivesse de ser, se não tivessem sido banhadas com água tocada por um qualquer santinho. Mas havia poucos cães na cidade; seria comido por ratos ou gatos esfomeados. Os gatos comiam tudo, se a fome lhes encostasse o estômago às costas. A mulher procurou um saco num amontoado de lixo ali perto. Estava determinada em dar àquele cão uma honra que não teria quando o seu fim chegasse; assim lho dissera sua mãe, num pranto desmedido, quando Julieta decidiu que ia deixar de ser Romeu. Não sou isto, disse ela, cheia de coragem, Este corpo não é meu, enganaram-se. Deus não se engana, respondeu a mãe, com raiva a encher-lhe a boca, Tu é que estás enganado, estás doente, o que vai dizer o teu pai, Queres matar o teu pai? Morta estou eu, disse Julieta, recebendo de pronto a palma

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da mão de sua mãe na face. A palmada queimou-lhe a bochecha mas as palavras é que lhe ficaram para sempre marcadas. És uma vergonha, vais arder no Inferno, não, não, nem para lá vais, vais ficar com as outras almas penadas, metes-me nojo, não és meu filho. Enfiou o cadáver gelado do cão dentro de um saco de plástico negro e atou a ponta. O poeta, intrigado com o que se estava a passar à frente dos olhos não se fez rogado e perguntou o que ela estava a fazer. O que estás a fazer? Vou levá-lo comigo, disse ela. Para onde vão? insistiu ele, usando adequadamente o plural, não fosse ela sentir que não estava a ser levada a séria. Ainda não o sabia, mas o seu destino estava traçado. Assim ficou no momento exacto em que o livro nasceu, o livro que ainda não lera mas aguardava pelos seus olhos. Uma luz pintou o céu negro, ao longe; pendia sobre a linha do horizonte fumegante, gritava em silêncio pelos dois. O poeta e Julieta, que também era Romeu, porque certas coisas não se lavam do corpo, nem se dissipam do organismo independentemente da quantidade de estrogénio e pílulas hormonais que se enfiem no estômago. Eram três, ao todo, ofuscados pela luz que anunciava um nascimento. Ambos sabiam que aquela zona era perigosa, o vale da sombra da morte, povoado por coisas saídas de histórias para assustar criancinhas, como se o mundo em que viviam e onde não se podia sorrir sem correr o risco de ir desta para melhor não fosse assustador o suficiente. Fábricas esculpidas em metal e aço, vindas de um período de tempo em que o Vírus da Felicidade era apenas uma noção adormecida no inconsciente do jornalista que a designou, adornavam a paisagem com as suas formas retorcidas e gélidas. O berço da esperança, pensaria alguém mais tarde, não podia ser ali, mas há coisas que ainda hoje surpreendem, hoje que a felicidade mata e os cães mortos viajam em sacos de plástico. Para ali, apontou Julieta na direcção da luz distante. Decidiu-se pelo aparente suicídio porque o estômago grunhia de fome e a alma lhe doía, à custa das chibatadas verbais que lhe saíam da memória. O poeta

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achava louca a mulher que caminhava descalça e que guardava um cão num saco preto, mas que melhor arma havia contra a feliz morte para além da loucura? A luz intrigava-o também, porque ali não devia haver nada, só desolação. O seu poema escorria pela parede e em breve seria coisa nenhuma, somente sujidade numa superfície já imunda. Estava portanto concluído o seu propósito como uretra de uma geração que necessitava de mijar em paredes; seria agora outra coisa qualquer, fosse o que fosse que o esperava ao cair do horizonte.

*** Como é que uma máquina escreve um livro, perguntou o homem mais alto da sala, que se dava pelo título outrora nobiliárquico de Conde e que pouca ou nenhuma ligação tinha à monarquia que morrera naquele país faziam anos. A sala era meramente um buraco na terra onde se meteram paredes e se forrou o tecto de betão e escondia os poucos sobreviventes que faziam parte da oligarquia. Tantas armas tivemos desde tempos imemoriais e agora é um livro que nos ameaça roubar a vida? Não é a primeira vez, respondeu a única mulher na sala, Não será o primeiro nem o último livro com o poder de levar vidas. Também a sagrada igreja tinha em sua posse artefacto de semelhante calibre bélico, continuou ela, de olhos postos no monitor de um computador que ocupava quase uma das paredes em altura; à sua frente tinha a origem do sinal emitido anteriormente que fora descodificado e impresso nas mais de trezentas folhas de papel. Revelava a imagem de uma máquina com forma de cruz, dividida em três blocos de metal que guardavam vários processadores. No centro dispunha de um ecrã monocromático que cuspia informação inteligível a velocidade estonteante. E olha o fim que lhes ficou reservado, retorquiu o Conde com desdém, Já não há homens de batina com o coração dentro do peito. Todos temos o tempo contado, independentemente de quem olha

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por nós das alturas, respondeu ela. Era irmã do Conde e ainda assim as semelhanças ficavam-se pelo que se via à flor da pele. Partilhavam os mesmos traços faciais como se os seus rostos tivessem sido esculpidos à mão pela mãe e a cor que lhes tingia o cabelo era um dourado gasto, quase bronze. Mas em tudo o resto eram polos opostos. Ela respirava pequenas doses de esperança diariamente e não sendo fiel às antigas doutrinas de Cristo guardava junto ao peito a embrionária e frágil ideia de que havia sentido nas coisas. Ele era um pretenso niilista que receava com todos os seus átomos a bomba relógio depositada na caixa torácica. Que fazemos quanto ao sinal, perguntou um homem baixo de costas curvadas. Era coisa velha que evacuava a restante humanidade pelos poros da epiderme e já mal conseguia andar. Mas a sua mente não tinha idade e se sobreviveu tantos anos à felicidade que o rodeava, tal facto deveu-se à obstinação em não morrer. Era alérgico à morte, dizia por vezes em jeito de piada, mas com o passar dos anos a piada perdeu graça e tornou-se numa meia verdade que ninguém podia negar; prova viva era ele mesmo, em toda a sua decadência, com um coração que batia ao contrário de muitos outros. Este modelo, começou por dizer enquanto arreganhava a garganta para se libertar do muco asfixiante, É tecnologia antiga, como eu. Não padece de livre arbítrio. Sem ninguém para a guiar seleciona aleatoriamente letras, caracteres, ícones, o que raio a parta, e processaos sequencialmente. Sem ninguém para a guiar, insistiu o corcunda, a máquina não é capaz de escrever livro nenhum. No entanto é um livro que temos em mãos, disse o Conde. Um livro com mais de trezentas páginas, acrescentou com severidade. Alerto que domino imensas matérias mas matemática não é uma delas e ainda assim posso arriscar dizer que, à luz das probabilidades, levaria àquilo um milénio a produzir tal obra. À luz das probabilidades poderia levar somente um dia, comentou o corcunda com um discreto sorriso na cara, Mas não me parece seguro

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acreditar em tal ideia. Que lhe parece, perguntou de olhos postos na mulher de cabelos de ouro gasto. É imperativo saber, respondeu ela, deixando as palavras morreremlhe na boca antes de terminar a frase. Saber o quê, perguntou o Conde enquanto enchia um copo com uísque; abençoado álcool que o defendia das garras da cruel alegria de viver. Mastigou pensamentos, procurando-lhes o sabor e o saber mas eventualmente ficou-se pela interrogação já deglutida; como pode uma máquina escrever um livro, uma máquina que precisa que a guiem. Dentro da sua cabeça a esperança relampejava incessantemente e apesar de não pretender acreditar em intervenção celestial a verdade é que por instantes sonhou com as possibilidades de uma nova era de felicidade. Afinal se um amontoado de metal e circuitos e tubagens detinha o dom de conceber arte talvez - um talvez pequenino mas brilhante- a existência tivesse propósito, a morte feliz tivesse sentido e pudesse ser curada. Tanto sonhou que o seu coração começou a acelerar, despejava quantidades absurdas de excitação na sua corrente sanguínea. Receou morrer ali mesmo, naquele buraco na terra. Mas os segundos passaram e a morte não lhe fez caso, por motivos só ao alcance de um qualquer ser omnisciente. E quem seguirá o rasto do sinal, inquiriu o Conde, gesticulando na direcção do ecrã, Aquilo é terra morta, terra perigosa. Não estará assim tão morta, visto ser capaz de produzir literatura, retorquiu a irmã, Eu irei. E assim foi. A irmã do Conde - chamemo-la assim por necessária submissão à condenável misoginia que ocorre habitualmente em cenários apocalípticos- preparou-se como pôde; arranjou uma meia dúzia de homens para lhe servirem assistência e protecção, que apesar de a sua inquebrável determinação, as palavras do irmão ecoavam-lhe entre as orelhas e não estavam erradas de todo. Aquilo era efectivamente terra morta e havia muito mais formas de falecer lá que dentro do abrigo.

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Quando as portas de chumbo do abrigo se abriram, ela deitou os olhos para trás, colou a vista ao rosto do irmão. Ele fez o mesmo e ficaram a contemplar-se durante tempo indeterminado. Amavam-se como podiam, como o mundo e o coração deixavam. Plantado feito figura de pedra, o Conde remeteu-se ao silêncio, estoico o quanto possível; ela deixou fugir um sorriso que lhe acelerou o coração e seguiu o seu destino, se tal designação era acertada para denominar a viagem que a aguardava. Os homens iam à frente, envergavam coletes de kevlar e empunhavam metralhadoras e espingardas automáticas. É um hábito comum, ou assim o parece, em eventos apocalípticos, o ser humano proteger-se atrás de utensílios militares, como se plástico e chumbo pudessem guardar alguém de um inimigo que se esconde entre as costelas, neste género em particular de calamidade.

*** A pele que vestes não é tua, ouviu Julieta, sem saber de onde vinha o som. Olhou para o poeta mas ele estava calado, entretido a fazer desenhos nas cinzas. A pele que vestes não é tua, repetiu a voz que saía dentro do saco de plástico preto. O cão não era parvo nenhum e a acutilância da sua observação fez Julieta estremecer. Tão pouco a tua te pertence, respondeu ela, recorrendo a um lugar-comum que não era minimamente inteligente. O cão suspirou, como se a resposta o desiludisse. Eu sou um cão e a pele que tenho é minha, sempre foi, tal como o pelo e o focinho e tudo mais, mas a tua não te pertence, porque a trocaste? questionou o animal morto que falava. Ela encolheu os largos ombros e meteu os olhos no horizonte que se aproximava, na luz que pintava o céu. Que má educação, insistiu o cão, Deixar uma pergunta sem resposta. Há coisas que só nós sabemos, que fazem sentido porque é assim que somos e mesmo sem saber explicar o porquê continuamos a sê-lo, assim eu sou e não era dantes, por isso decidi trocar, disse a mulher. O poeta não fazia

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caso da conversa e tal alienação agradou a Julieta, que podia dessa forma continuar o diálogo com a criatura dentro do saco. Estava presa dentro de um sarcófago e não há pior morte que essa, morrer asfixiada dentro de um caixão de carne, muito me custou a mudança e a liberdade nem sempre a encontro agora, mas é melhor assim, para mim, e que se danem os outros. Respirou fundo e olhou uma vez mais para o poeta, que se tinha afastado e escrevia um poema junto a um caixote do lixo. E tu, que estás morto e no entanto falas, pior, falas quando não falavas mesmo em vida, que nunca na história se ouviu um cão falar língua de gente, que explicação dás a isso, perguntou ela, fazendo um furo no saco para que a voz do cão não saísse abafada. Talvez seja personagem de uma fábula de La Fontaine, ou talvez devas ser tu a explicar o porquê de eu falar, visto que quem conversa com um cão morto és tu e não eu, respondeu o animal e Julieta imaginou-lhe um sorriso arreganhado que mostrava os dentes. Ela calou-se, enfurecida pela troça de que era alvo. Vamos embora, vamos continuar, berrou na direcção do poeta. O fim estava próximo, se as suas contas estivessem certas, se os olhos não a enganavam – e isso era possível, já que os ouvidos tinham ganho aparente gosto ao ludíbrio. Pegou no saco de plástico e levantou-se a esforço, Se não te apressares sigo caminho sem ti que a fome aperta e a ânsia de chegar também. Que fúria é essa que te dá, retorquiu o poeta com espanto, enquanto fechava a braguilha, Temos tempo de chegar que o brilho ao longe não se esfuma, O que menos há é tempo, sabe-se lá se numa epifania vinda do fundo do ser não te pões a rir e lá morres a morte que te espera, respondeu ela visivelmente exasperada. Ele anuiu, mais por respeito à mulher que tinha em frente do que por receio da felicidade e meteu às costas uma mochila com enlatados e garrafas de água, Lidere o caminho, minha senhora, Estava a ver que nunca mais era sábado, respondeu o cão, Sábado, questionou ela sem compreender a referência e o cão, vil

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escumalha ele parecia ser, manteve-se em silêncio e a ela na ignorância. Ao fim de uma hora, se os relógios daquela terra estivessem certos, os peculiares viajantes chegaram ao vale da sombra da morte, assim chamado em referência a textos antigos e aos quais poucos davam valor nos tempos que corriam. Não era exactamente um vale, antes um enorme complexo industrial, que se estendia até ao horizonte longínquo, cheio de fábricas e chaminés e casebres abandonados. A cinza tinha tomado o lugar da terra e imensas coisas de outros tempos estavam enterradas no manto descolorado. Um edifício em particular chamou-lhes a atenção; encontrava-se situado no centro do vale – ou o que parecia ser o centro – e projectava de um orifício no tecto uma luz amarela que rasgava a chuva acinzentada que lhe caía em cima. Tocava no céu e aí findava a sua ascensão, certamente cansada pelo esforço de trepar a atmosfera rarefeita que lhe abrandava a marcha. Chegámos, murmurou o poeta, sem saber muito bem o significado de tudo aquilo, E agora. Não podemos parar, é já ali em baixo, indicou Julieta, A fábrica não fica longe. Temos de atravessar este vale maldito, diz-se que está minado de armadilhas e monstruosidades, continuou o poeta com a voz trémula, Não receio as coisas que estão escondidas, respondeu ela fingindo coragem. Devias, disse o cão entre o que só podia ser um sorriso, Devias. Mas não estavam sozinhos, quando chegaram perto da fábrica; mais gente lá estava, conduzida pela luz. Um grupo de homens que se assemelhavam a militares e uma mulher. E agora, que gente é essa que para aí está? perguntou o poeta, mas Julieta não tinha resposta. Não via um grupo tão extenso há mais de dois anos e ainda para mais com armas. O instinto natural, que será sempre igual para homens ou animais, foi de se esconderem mas era tarde para isso. Quem aí vem, gritou um dos homens, levantando a espingarda até ficar a ver a estrada pela mira, Quem aí vem, repetiu até lhe faltar a voz, porque independentemente do colete ou da espingarda, um homem sensato teria

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medo do que o pudesse aguardar ali naquela terra. Calma, que somos amigos, respondeu o poeta finalmente, levantando os braços. Olhou para Julieta e indicou-lhe com os olhos que fizesse o mesmo. Que fazem neste fim do mundo, questionou o militar, aproximando-se dos invasores com cautela redobrada. Foi seguido por mais dois, ambos de arma em riste. A irmã do Conde ficou atrás enquanto observava com admiração o encontro improvável de tantos seres humanos naquele pedaço de terra amaldiçoada. Julieta deu um passo em frente e desceu um dos braços, deixando o outro apontado acima das cabeças de todos os que ali estavam. Viemos por causa da luz, disse ela baixinho, até recuperar o fôlego, Viemos por causa do fim que aquilo pode trazer, a bem ou a mal, continuou com maior determinação. Que é isso que aí trazes, perguntou o primeiro militar a dar a voz, Aí dentro do saco. É um cão morto, respondeu Julieta com desdém a escorrer pela boca, Apenas um cão morto. Apenas, questionou o cão, indignado com tal desprezo, mas deixou-se ficar. E esperança, não carregas contigo? A pergunta era sincera, embevecida por um carinho que era estranho àquele mundo e a voz que a carregou pertencia à irmã do Conde. Isso é uma palavra morta, respondeu Julieta, Esperança é para os tolos que morrem felizes. E não somos todos tolos, de outra forma que fazemos aqui, neste cemitério de ambições, à procura não sabemos bem do quê? Insistiu a irmã do Conde, como se sentisse no seu âmago a obrigação materna de inspirar os que a rodeavam, de os guiar até à máquina que poderia dar respostas às interrogações do fim do mundo. Julieta suspirou, como fazia sempre, e deixou-se estar em silêncio, que se alastrou até todos os que ali estavam. Vamos seguir a luz, falou finalmente o poeta, sem rima nem métrica, Vamos até ao fim do nosso destino que foi isso que nos trouxe aqui. Ninguém se opôs à ideia, nem mesmo cão, e a marcha prosseguiu com o seu rumo lento, receoso, pelo rio de cinza que desaguava na fábrica. Ruídos metálicos atordoaram os sentidos apurados dos militares, que de armas em punho varreram o ambiente com olhos acesos, Que foi

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isto? Perguntou um deles, a suar das ventas. De repente nasceu da terra uma coisa que não era nem bicho nem homem, centopeia com escamas metálicas e infinitas patas de ferro que a arrastaram do buraco a alta velocidade em direcção ao grupo. Ninguém sabia que coisa era aquela mas o poeta, artífice de palavras e com gosto pelo conhecimento, que se cultivara com matérias do mundo contemporâneo e antigo, desconfiava que podia ser uma construção dos tempos da guerra, máquina cujo propósito consistia em tratar ferimentos no campo de batalha mas adulterada por mentes pérfidas, tornou-se num parasita repleto de vírus e armas químicas. Corram, gritou uma voz que morreu nos ouvidos dos restantes, contaminados por medo, Corram. Os militares não pouparam as munições e de pronto largaram todo o chumbo guardado nas espingardas em direcção à estranha criatura, aparentemente indiferente às maleitas que as balas provocam em seres vivos. A um dos soldados deulhe a fraqueza que normalmente ocorre em situações de grande tensão e logo caiu sobre um dos joelhos, deixando-se ficar por terra. Outro, o que em primeiro lugar falou nesta história, foi acorrer o colega, pegou-o pelo braço e arrastou-o o quanto as forças permitiram. Aquele acto fraterno, incomum nos tempos cinzentos que pairavam sobre todas as vidas, tocou no coração do soldado tombado; e se sentir amor por um irmão, mesmo de armas, é calor que não se deve desprezar, então logo o Vírus da Felicidade fez jus ao seu nome e lá estoirou com o músculo coronário aquecido do feliz coitado. A centopeia de metal, maquinaria de velocidade comparável à crueldade de seus intentos, rastejou rapidamente até ao soldado salvador, que não conseguiu proteger a própria vida nem com trinta ou quarenta balas de ponta explosiva, e numa questão de segundos viu as tripas perfuradas por uma dezena de patinhas de aço, aguçadas como facas. Mártir, era assim que ele ficaria na memória dos restantes, que com o seu sacrifício involuntário deu aos sobreviventes tempo para que as pernas os levassem até à fábrica e com pânico a fervilhar nas têmporas lá conseguiram arrombar as portas e entrar no novo abrigo.

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Os seus passos ecoaram pelo átrio principal, um enorme barracão de betão, escuro e sujo. Era uma construção enorme e o seu interior, desprovido de conteúdo, parecia ainda maior à custa da ausência dos órgãos que em tempos o compuseram. Ao fim de minutos que pareceram anos, quando os pulmões retomaram o ritmo a que estava habituado, o poeta falou. Que sítio é este? A irmã do conde, encharcada no próprio suor, precisou de mais algum tempo até responder. O berço da esperança não pode ser aqui, disse, olhando depois para Julieta, Mas há coisas que ainda hoje surpreendem, hoje que a felicidade mata e os cães mortos viajam em sacos de plástico. Que esperança é essa que tanto procuras, perguntou a visada, Não será aqui que encontrarás semelhante abrigo para a consciência. Vamos continuar, disparou um dos soldados restantes, com atenção concentrada nas portas da fábrica, Aquela coisa não estará satisfeita, aquela merda quer-nos a todos. O importante, continuou a irmã do Conde, É encontrar o sinal, encontrar a máquina. Que máquina é essa, perguntou o poeta, como se sentisse dentro de si que havia ali, naquele antro de coisas passadas, um rival literário. Quando a virem compreenderão, rematou a mulher, olhando em seu redor à procura de um sinal, de uma pequena luz que os guiasse. Não encontrou e lá se fiou nos instintos dormentes que tinha. Todos a seguiram, talvez porque as suas palavras estavam carregadas com uma estranha determinação. Percorreram corredores obscurecidos pela noite eterna até que finalmente, ao longe, a luz no fundo do túnel. Desembocaram numa sala ampla e oval, cujas paredes se estendiam por mais de vinte metros de altura. No topo um buraco que fazia de janela e por onde atravessava o feixe de luz amarela, vinda de uma construção agrilhoada no centro da sala. Tinha uma forma familiar, de cruz, mas era ligeiramente diferente do que a irmã do Conde tinha visto no monitor do abrigo. Era constituída por dois blocos, um sobre o outro, metálicos, como se fossem caixas. De lá saiam dois tubos, semelhantes a

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braços, que percorriam horizontalmente a sala até chegarem, cada um, a uma extremidade. No centro da máquina estava um ecrã, janela obsoleta para um mundo de tecnologia antigo. A luz era projectada por um holofote situado no topo do bloco superior; tinha uma forma arredondada e o rebordo parecia feito de espinhos. O corpo da máquina era da altura de dois homens adultos e apesar da imensidão que os rodeava era coisa de impor respeito. Será isto a nossa salvação? A irmã do Conde questionava-se sobre a propriedade messiânica do conjunto de metal e circuitos que permanecia inerte à frente dos seus olhos. A máquina que vislumbram enviou um sinal, constituído por palavras e símbolos que, em conjunto, formaram um livro, disse ela, sem esconder a ânsia nas palavras. Um livro, inquiriu o poeta, que já tinha visto muitas coisas mas nunca uma máquina que escrevesse por livre vontade. Julieta, por sua vez, não tinha dificuldades em acreditar no absurdo, valia-lhe o cão falante dentro do saco para espantar a descrença, mas não compreendia como uma coisa velha que escrevia podia salvar fosse o que fosse. Com um gesto da mão direita a irmã do Conde ordenou a um dos soldados que retirasse um dispositivo da mochila que levava às costas; era uma espécie de computador ligado ao abrigo de onde viera. Em segundos a máquina ficou operacional e mostrava no ecrã o rosto do Conde e ao seu lado o velho que tinha alergia à morte. Coisa feia que aí têm, disse o homem dentro do rectângulo, É dotada de livre arbítrio como julgávamos? Julieta lembrava-se daquela forma geométrica, pendurada ao pescoço de sua mãe; odiava-lhe os traços e contornos, como quem odeia lembranças de tempos sofridos. Sem dar aviso a máquina começou a ranger e a produzir sons agudos e o ecrã no seu cerne disparou informação, em primeira instância a uma velocidade impossível de acompanhar pelo olho humano; depois parou subitamente e começaram a escorrer linhas de texto lentamente. Todos os olhos ali presentes, inclusive os que observavam à distância através do computador, se fixaram no monitor à medida que a máquina exibia a sua obra de arte, todos a ler pela primeira vez desde que tinham memória

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uma história escrita por um objecto inanimado. Quando o último ponto final chegou restava o silêncio. Os corações aceleraram vertiginosamente mas a morte tardava em aparecer; seria um sinal de que algo estava para mudar? Julieta saboreou o sal das suas lágrimas enquanto lhe escorriam pela face. Mas não era a única que chorava, mesmo os soldados, homens habituados a esconder as coisas mais emotivas debaixo da pele, não conseguiram conter o fluido que lhes saía dos olhos. Os segundos que anteciparam uma nova linha de texto, uma frase, uma palavra, alongaram-se numa expectativa pueril de salvação. Se a máquina for ciente, disse a irmã do Conde, rompendo o silêncio, Poderá haver esperança para o fim da morte absurda que tantos levou. Se ela escrever de novo, continuou, Teremos pelo menos uma oportunidade de salvação. Foi num instante que o medo do que aí vinha se transformou numa corrida para fugir da tragédia; todos sentiram dentro do peito o batimento característico do coração quando infectado pelo Vírus da Felicidade e o Conde, caindo de joelhos num abrigo que não o protegia de coisa nenhuma, viu-se tomado por um súbito acesso de loucura. Diznos, berrou na direcção do ecrã, Diz-nos que há cura para este fim, que a esperança não é uma palavra que nos morre na boca. Também o velho resistente se asfixiou na espectativa e o músculo que tinha enterrado dentro do peito titubeava anormalmente. O cão enfiado dentro do saco latia com intensidade tal que feriu a alma de Julieta, Não resta mais nada senão a morte, não te fies em histórias, essa coisa não tem vida. A mulher pontapeou o pessimismo para longe e deixou-se ficar inerte, à espera. A máquina voltou a produzir sons e o monitor piscou com intensidade, alternando entre o preto opaco e os reflexos esverdeados que compunham os símbolos. O tempo movia-se à velocidade do suor que lhes escorria pelo pescoço e em poucos segundos souberam o seu fim; o suposto messias escreveu e no ecrã surgiu a3fPºqsl.

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