[CAPA]
Saiba mais sobre a matriz doutrinรกria
Arte: Capella Design
progressista
carta ao leitor
O horizonte de um partido
Marcus Vinícius Vieira de Almeida
T
odo horizonte é formado por duas partes: o chão e o céu. No chão, seja ele um campo verde e plano ou a imensidão do mar, enxergamos uma base, um ponto de apoio. No céu, recebemos a inspiração para refletir sobre nossos rumos e trilhar novos caminhos. Um partido político também congrega essas duas dimensões. Por um lado, necessita do alicerce de sua ideologia – seus preceitos, seus valores, sua identidade. Por outro, não pode deixar de pensar na aplicabilidade desses ideais, olhando para o futuro e para a representação da sociedade. Ao longo de sua história, o Partido Progressista uniu essas duas forças e construiu uma trajetória sólida e próxima das pessoas. É uma legenda que tem postura, tem posição, tem reflexão. Mas tem também senso prático e muita ação. Através da Fundação Tarso Dutra, o PP apresenta mais um instrumento para sua missão partidária: a Revista Horizonte. Trata-se de uma publicação que reflete o que é ser um progressista. É a revista de quem acredita que política se faz com seriedade, compromisso e respeito à população.
Presidente da Fundação Tarso Dutra
Neste primeiro número, trazemos uma reportagem especial que indica a tendência conservadora na opinião política dos brasileiros. Também é traçado um panorama da má gestão do governo Tarso à frente do Piratini. No âmbito internacional, as diferentes realidades de dois países com estilos de governo distintos – Argentina e Alemanha – são colocadas em pauta. Valorizando o capital intelectual progressista, convidamos diversos pensadores a analisar o atual panorama da política e da atuação do Poder Público. São ensaios ricos e instigantes, incrustados em na tradição de pensamento do nosso partido. Três entrevistas exclusivas compõem este primeiro número. O ex-governador Jair Soares relembra sua gestão à frente do Estado e momentos marcantes de uma vida pública dedicada à sociedade gaúcha. O desafio de fazer um bom governo é o assunto da conversa com o ex-prefeito de Pelotas Adolfo Fetter Jr. O escritor Percival Puggina conversa sobre a coragem de distoar do politicamente correto no ambiente intelectual. O resumo de tudo isso é: qual é o futuro que queremos? Boa leitura e até a próxima edição!
Índice
Carta ao Leitor 3 Drops 6 Ideologia 8 Aprofunde-se 92 Estudo 94
ensaio O sol idarismo na política brasileira 26 Luciano Dias Ideologia ainda existe? 32 Cleber Benvegnú Universalização da saúde: um objetivo 46 Márcio Turra O sentido da vida e a política 56 Miguel Peracchi Brasil: chegamos ao futuro? 60 Marco Aurélio Ferreira É tempo do município 66 Celso Bernardi Agricultura: do rudimento à tecnologia 76 Francisco Turra A falácia da reforma agrária 80 Marco Antonio Villa
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reportagem 38
M a i o r i a c onservadora e silenciosa
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G o v e r n o Tarso: maiúsculo em discurso, m i n ú s c u l o em realização
74
A n a A m é lia assume presidência da F u n d a ç ã o Milton Campos
84
C h o r e m o s por ti, Argentina
88
D e d i r e i t a, de saia e sem afetamento
entrevista 42
P e r c i v a l Puggina
50
J a i r S o a r es
70
Fetter Jr.
revista
Coordenação Editorial
horizonte Presidente M a r c u s Vinicius Vieira de Almeida
Presidente Ana Amélia Lemos
Diretor Acadêmico Percival Puggina
Vice-Presidente Esperidião Amin
D i r e t o r Administrativo/Financeiro M i g u e l A n gelo Alvim Peracchi de Barcellos
2º Vice-Presidente Benedito de Lira
C o nselho Fiscal – Titulares Túlio Macedo João Carlos Nedel Pedro Feiten
1º Secretário Nelson Meurer
C o nselho Fiscal – Suplentes Tarso Boelter Mônica Leal Leonardo Hoff
2º Secretário Adolfo Fetter Jr. 3º Secretário Pedro Henry 1º Tesoureiro Luiz Fernando Faria 2º Tesoureiro João Pizzolatti
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drops Foto por Governo Federal dos Estados Unidos, domínio público
Frases
“
E m r e l ação à liberdade do indivíduo d e e s c o l her fazer o aborto, tem outro i n d i v í d uo que não está sequer sendo c o n s i d e r a d o . É ele que está sendo abortado. E e u m e d e i c o nta de que todos aqueles que e s t ã o a favor do aborto já nasceram.
”
Ronald Reagan (1911-2004), ex-presidente dos Estados Unidos (1981-1989), em entrevista ao jornal The New York Times Foto por Cleones Ribeiro, Licença Creative Commons Attribution 2.0
“
G o v e r n a r é n a vegar e m n e v o e i r o d e nso.
”
Fernando Henrique Cardoso (1931), ex-presidente do Brasil (1995-2003), após terminar seu mandato
“
Retrato por Yousef Karsh, domínio público
O v í c io inerente ao capitalismo é a d i s t r ibuição desigual de benesses; o do socialismo é a distribuição por igual das misérias.
”
Winston Churchill (1874-1965), primeiro-ministro do Reino Unido em 1940-1945 e 1951-1955
“
Retrato por Sir Joshua Reynolds, domínio público
T u d o q u e é n e c e ssário para o t r i u n f o d o m a l é que os bons h o m e n s n ã o façam nada.
”
Edmund Burke (1729-1797), filósofo britânico
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“
Foto por acervo TV Brasil, Licença Creative Commons Attribution 3.0
É divertidíssima a esquizofrenia de nossos artistas e intelectuais de esquerda: admiram o socialismo de Fidel Castro, mas adoram também três coisas que só o capitalismo sabe dar - bons cachês em moeda forte; ausência de censura e consumismo burguês. Trata-se de filhos de Marx numa transa adúltera com a Coca-Cola...
”
Roberto Campos (1997-2001), economista, no livro “Na virada do milênio”
“
Domínio público
O h o m e m s ó é feliz pelo supérfluo. N o c o m u n i s m o , só se tem o essencial. Q u e c o i s a abominável e ridícula!
”
Nelson Rodrigues (1912-1980), dramaturgo e escritor, em entrevista à revista Playboy
“
Domínio público
P a r a t o d o p r o b l e m a c omplexo existe s e m p r e u m a s o l u ç ã o s i mples, elegante e c o m p l e t amente errada.
”
H.L. Mencken (1880-1956), intelectual norte-americano, em “O livro dos insultos”
“
Foto por acervo TV Brasil, Licença Creative Commons Attribution 3.0
D e m o c r acia é quando eu mando e m v o c ê , ditadura é quando você manda em mim.
”
Millôr Fernandes (1923-2012), humorista e escritor
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ideologia
Matriz
Doutrinária
do Partido Progressista
E
Para começar, a pessoa humana
m absoluta contradição com o que estamos habituados a presenciar, nossa dignidade e o decorrente respeito dessa dignidade pelos demais e pelas instituições da sociedade não pode provir do que nos diferencia (bens materiais, títulos, idade, raça, beleza, força física, etc.) mas deve basear-se no que temos em comum. E é na condição de pessoa humana que ela se firma, como reconhece o primeiro artigo da Constituição Federal ao incluir a “dignidade da pessoa humana” como um dos cinco fundamentos da existência da nação. O conceito de pessoa, é bom saber, foi articulado pelo pensamento cristão. Segundo ele, a pessoa humana é portadora de uma dignidade natural e de “direitos anteriores ao Estado” (Leão XIII, Rerum Novarum, 1891). Conjugam-se nela dualidades aparentemente antagônicas mas complementares: ela é material e
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espiritual, individual e social, imperfeita e aperfeiçoável, racional e emocional, sendo dotada de inteligência, vontade e liberdade. É do encontro da inteligência com a vontade, na presença da liberdade, que se define a moralidade das ações humanas. Hoje fala-se muito em cidadão e pouco em pessoa humana. Mas esses dois conceitos não se confundem e remetem a uma outra questão fundamental: há um Direito Natural, inerente ao ser humano, ou existe apenas o Direito Positivo, expresso nos ordenamentos jurídicos? A pergunta não é teórica, como pode erroneamente parecer. Antes, é absolutamente prática, e da coluna onde cravarmos o X da resposta pendem maneiras totalmente divergentes de se viver a política e organizar a sociedade. Os que admitimos o conceito de pessoa humana, como acima expresso, afirmamos que antes de existirem o Estado e suas leis já existia a pessoa humana, portadora de direitos (Direitos Naturais),
Reprodução por More Good Foundation, Licença Creative Commons Attribution 2.0
O c o n c e i t o d e pessoa foi articulado pelo p e n s a m e n t o cristão. Segundo ele, a pessoa h u m a n a é p o rtadora de uma dignidade natural e d e d i r e i t o s anteriores ao Estado. como o direito à vida e à liberdade. Admitimos também, que todos participamos da mesma e igual natureza. De outra parte, nas sociedades modernas, toda pessoa humana é também um cidadão, mas nessa condição, está submetida ao Estado e desfruta apenas dos direitos que os códigos lhe conferem (Direito Positivo). Já se percebe aqui a possibilidade de alguns problemas: o estrangeiro não é cidadão, o feto não é cidadão, e se a lei estabelecer que alguém pode ser eliminado, ele o será, legalmente; se a lei definir que o feto pode ser abortado, ele o será, legalmente. Daí se conclui que
tanto mais perfeito é o Direito Positivo (legislado) quanto mais de acordo estiver com o Direito Natural. Por conseguinte, conhecer, reconhecer e valorizar o Direito Natural deveria ser critério importante na seleção dos que elaboram as leis e dos que as fazem cumprir. Enquanto houver sobre direitos naturais - no sentimento do corpo social - rombos ou fissuras, continuaremos a conviver com as muitas formas de brutalidade que por vezes nos sobressaltam mais do que deveria nos assustar o cotidiano ao qual nos acostumamos.
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E
P e s s oa, ser individual ou social?
ssa é uma das questões de fundo no debate ideológico entre esquerda e direita. Nossa natureza individual é algo que salta aos olhos de modo permanente. Quando tropeço numa pedra, o pé que dói é o meu e o de ninguém mais. Cada um de nós tem a sua memória, a sua história, a sua própria vocação, seus gostos e desgostos. Nossa carteira de identidade apresenta uma impressão digital que, como qualquer célula de nosso corpo, é única, própria e irrepetível. Se cada um de nós não existisse e quisesse Deus criar um outro ser como nós, precisaria recriar nossos pais, e os pais deles, e assim sucessivamente, até que toda a Criação tivesse sido refeita. Contudo, esse ser assim tão individual é, também, um ser social. Somos sociais por carência (precisamos dos demais) e por abundância (podemos e devemos contribuir para o conjunto da sociedade em que vivemos). Somos um elo da sociedade presen-
te e um elo social do passado com o futuro. Nossas atitudes, nossa cultura, nossos hábitos são aprendidos do meio social. Se, a exemplo de Tarzan, fôssemos criados na floresta, por um bando de chimpanzés, sem contato com outros seres da própria espécie, nossos comportamentos reproduziriam em tudo o que fosse possível o ambiente social em que estaríamos inseridos. E ao chegar a idade adulta, se não nos aparecesse a Jane, acabaríamos casando com a Chita. No entanto, apesar da obviedade dessas constatações antropológicas, o fato é que as ideologias deste século penduraram-se nos fios do individualismo e do coletivismo. Para o individualismo o ser humano é movido pelo interesse próprio e sua natureza é puramente individual ou dominantemente individual. Para os coletivismos o ser humano é puramente social ou dominantemente social. Praticamente toda a confusão que operaram ao longo de quase dois séculos decorre desses erros fatais.
As ideologias deste século penduraram-se nos fios do individualismo e do coletivismo. Para o individualismo o ser humano é movido pelo interesse próprio e sua natureza é puramente individual ou dominantemente individual. Para os coletivismos o ser humano é puramente social ou dominantemente social. Praticamente toda a confusão que operaram ao longo de quase dois sé culos decorre desses erros fatais.
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I n d i v i d u a l i s m o e coletivismo, erros fatais
P
ara o individualismo liberal, uma de suas virtudes consiste em extrair do egoísmo os impulsos propulsores do interesse próprio para estimular as atividades econômicas. Entendem seus pensadores que as necessidades humanas são mais plenamente atendidas quando todos os indivíduos buscam suas conveniências afanosa e irrestritamente. Note-se que há uma lógica sedutora nesse conceito porque a experiência mostra que as pessoas tendem a se dedicar mais ao que lhes convém pessoalmente do que ao interesse alheio. Já para o coletivismo, o interesse próprio precisa ser eliminado como condição indispensável a que o interesse coletivo prevaleça. A busca egoísta das conveniências individuais estabeleceria a prevalência dos mais fortes sobre os mais débeis com graves danos ao equilíbrio social. Também aqui há uma lógica sedutora pois é exatamente isso o que a experiência exibe ao observador atento. Como admitir-se que duas noções antagônicas possam estar corretas? Ou, ainda: como podem ambas estar erradas embora coincidam com o que se observa? Onde está, afinal, a verdade? Ela não está em qualquer das duas (como revelaram todas as práticas individualistas e coletivistas). Para encontrar-se a verdade é preciso reconhecer aquilo que a doutrina cristã ensina: a pessoa é um ser ao mesmo tempo individual e social. O bem da pessoa e da sociedade não pode ser atendido por uma ordem que desconheça essa dupla condição. Assim, o
Estado não existe para garantir os espaços do egoísmo nem para extinguir o interesse individual. Cabe-lhe, ao contrário, atuar no sentido de que o interesse de cada um se ponha a serviço do bem comum, promovendo relações sociais solidárias. Produzir isso é o papel da atividade política. O segundo maior mandamento da lei de Deus é o princípio original do pensamento político cristão: não nos é imposto amar ao próximo mais do que a nós mesmos nem amar-nos a nós mesmos mais do que ao próximo. O justo equilíbrio leva à solidariedade. Dizia-me alguém, dias atrás: o homem é naturalmente egoísta. E eu complementei: e é, também, naturalmente comodista, naturalmente hedonista, naturalmente pecador, o que não significa que no confronto natural entre os vícios e as virtudes se deva deixar dominar por aqueles em detrimento destas. É bom saber, por fim, que assim como o individualismo estimula o egoísmo de cada um, o coletivismo - como a história, amplamente, demonstrou organiza esse mesmo egoísmo em modelos políticos totalitários. A humanidade muito apanhou no brutal confronto entre o individualismo e o coletivismo. Este, criando estruturas de dominação social para inibir a expressão da individualidade; aquele, quando muito generoso, chegando ao social como um episódico ensaio de amabilidade, apropriado para as horas livres. Nas horas ocupadas, impondo estruturas de dominação individual.
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O
I g u a l dade, um desafio
tema da igualdade é, por certo, um dos que mais desafia aqueles que se preocupam com as questões sociais. De fato, não é um assunto que “se possa deixar para lá” porque, queiramos ou não,
ele surge quotidianamente perante nossos olhos, nossa consciência, nossa vida cristã, nosso ambiente político e nossa realidade econômica. Não existem duas pessoas iguais. Mesmo aquelas que vemos como “parecidas” diferem entre si em uma infinidade de aspectos. Deus não se repete.
Foto por Michael Lokner (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
Seria justa um a corrida em que cada competidor l argasse de um ponto diferente da pista para cruzarem todos juntos a meta? Ou, ao contrário, o que torna justa a competição é estarem todos alinhados na hora da partida? Nosso principal equívoco, sob esse ponto de vista, está na largada e não na chegada.
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E as conseqüências dessa originalidade se multiplicam pela combinação de diferentes vontades e graus de liberdade com desigualdades físicas, psíquicas, emocionais e intelectuais. Ao criar com tão caprichosa variedade, Deus expressa determinados desígnios que relutamos em aceitar. Lendo-se essas revistas que se debruçam sobre as exuberantes prodigalidades dos bilionários, percebe-se que há uma intransponível desigualdade entre o nosso padrão de vida e o deles (bilhões de pessoas, se tivessem a possibilidade de olhar para mim - para mim! experimentariam a mesma sensação, e isso me causa certo mal-estar). Ao contemplar as piruetas de um atleta olímpico nas barras paralelas, a fluência de um poeta repentista, o comovente desempenho de um bom ator, a virtuosidade de um pianista consagrado (e fico por aqui porque a lista é inesgotável) nota-se que, neles, sobram capacidades que não só nos faltam como nos fazem falta. Todos gostaríamos de têlas. É justo, isso? E no entanto, sabemos que nós mesmos, o atleta, o ator, o bilionário, o virtuose e o poeta, somos iguais. Iguais em quê? Iguais na mesma dignidade. Liberdade, igualdade e fraternidade!, berrava a burguesia francesa enquanto secionava o pescoço dos cortesãos, abrindo caminhos para uma nova elite em que não se viram donas de casa nem padeiros. De fato, a igualdade e a simetria dos pratos da balança servem à justiça e nos desconcerta ver o deserto e a várzea, quer estejam na natureza ou nas habilidades do corpo e do espírito. O tema da igualdade é um desafio que nos cria o Criador. Ele fez certo, embora na estreiteza de nosso entendimento, talvez nos sentíssemos tentados a lhe recomendar um melhor controle de
qualidade e Lhe indicássemos alguma bibliografia sobre produção em série. A mecatrônica sobrepujando o humanismo... Imagine, leitor, o mundo que faríamos se o pudéssemos fazer ou refazer. Ali, nas nossas linhas de produção industrial, com um bom laboratório, chegaríamos a uma ISO-9001 da humanidade, onde todos seriam perfeitos e haveria uma correta distribuição dos atributos que tanto valorizamos, como beleza, saúde, inteligência, força, etc.. Não são poucos os que, inconformados com as desigualdades naturais, defendem um Igualitarismo em que todos seriam nivelados por força de lei humana. Várias utopias, aliás, foram construídas sob essa inspiração, confundindo a igualdade de direitos e a igualdade perante a lei, com igualdade por força de lei. É de se indagar: seria justa uma corrida em que cada competidor largasse de um ponto diferente da pista para cruzarem todos juntos a meta? Ou, ao contrário, o que torna justa a competição é estarem todos alinhados na hora da partida? Nosso principal equívoco, sob esse ponto de vista, está na largada e não na chegada. O padre Fernando Bastos de Ávila sintetiza bem a questão ao observar que o princípio da Igualdade, nas sociedades políticas, implica três exigências fundamentais: 1ª) a igualdade inicial de oportunidades para todos ( com especial aplicação nos campos da Educação e da Saúde); 2ª) a disponibilidade, para todos, de iguais possibilidades de realizar sua dignidade essencial (com especial aplicação no campo do Trabalho); e 3ª) a disponibilidade de condições diferentes para que cada um possa realizar talentos diferenciados (com uma quase infinita gama de possibilidades).
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“C
ada um cuida de si e Deus de todos!” proclamam os individualistas, embora sejam muito rápidos em pedir socorro nas próprias necessidades. Errando sobre a natureza humana, desconhecem a si mesmos, aos demais e, principalmente, não conhecem a Deus. O egoísmo que bem os caracteriza fundamenta-se naquilo que julgam aprender da Natureza: Os minerais, servem aos vegetais; os vegetais servem aos animais; os animais de ordem inferior, menores, mais fracos e mais lentos, servem aos animais de ordem superior, maiores, ou mais fortes ou mais ágeis; todos os animais, vegetais e minerais, servem ao homem. Ora, observando os homens, percebe-se que também entre eles, existem os menores, mais fracos, mais lentos, menos inteligentes, menos aptos. Logo, o mesmo princípio que em tudo se observa - os seres de ordem inferior servem aos fins a que se destinam os seres de ordem superior - há de valer para a humanidade inteira. Certo? Errado! Esse raciocínio esgota sua validade ao chegar ao gênero humano porque, como se viu antes, todas as pessoas, independentemente daquilo que as distingue, são titulares dos mesmos direitos naturais e da mesma dignidade. Os coletivistas, ao perceberem a natureza social da pessoa humana, sentindo o equívoco do individualismo e atentos aos seus péssimos reflexos na vida das sociedades, ensaiaram três versões de sua filosofia social. Vamos defender a nação dos egoísmos alheios! E criaram o fascismo. Vamos defender a raça dos egoísmos alheios! E criaram o nazismo. Vamos defender a clas-
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A solidariedade se social dos egoísmos alheios! E criaram o comunismo. Em cada um dos três coletivismos que a história conheceu está presente o germe do mesmo mal: há um coletivo que quer ordenar para dominar ou não ser dominado e onde os indivíduos do grupo social - abelhas de uma colméia, formigas de um formigueiro, cupins de um cupinzeiro - são fragmentos do todo-poderoso coletivo, onde cada um se destrói e renasce como participante místico do todo em que se integra. Não preciso gastar palavras para rememorar o cortejo de tormentos e violências que os coletivismos produziram ao longo deste século. A partir de um engano antropológico, desconhecendo a natureza da pessoa humana, potencializaram o egoísmo individual. Deram caráter orgânico e místico ao mesmo egoísmo que no individualismo adquire feição maléfica, sim, mas desordenada e não sistêmica. Fizeram mais, lhe colocaram armas nas mãos e o levaram à guerra, pela direita e pela esquerda do estúpido arco ideológico. É parte dessa loucura, no caso dos coletivismos, o tipo de solidariedade que anunciam. Colocam rótulo legítimo num uísque paraguaio de péssima qualidade pois chamam solidariedade ao sentimento que une o coletivo. Ora, solidariedade não é mera união de interesses. Para exemplificar, indago: pode-se chamar solidariedade o espírito que congrega os participantes de uma reunião da poderosa Confederação Nacional da Indústria? É claro que não. Tal grupo se une por interesse, da mesma forma que por interesse se reúne a CUT no outro lado do corredor. Solidariedade é aquilo que acontece se e quando os dois grupos saem de suas salas para um sincero encontro com vistas ao bem comum.
S o l i d a r i e d a d e não é parceria, embora a parceria p o ss a s e r e x p ressão de solidariedade. Solidariedade n ã o é t a m p o u co um espasmo de sensibilidade i n d i v i d u a l , m as é um vínculo permanente do i n d i v í d u o c o m a vida, com certos interesses l e g í t i m o s , e c om as responsabilidades de um grupo s o c i a l , d e u m a nação e da própria humanidade.
Não mais legítima é a beberragem servida com o rótulo de solidariedade pelos individualistas. Coerentemente com a filosofia social que esposam, ela se converte num sentimento individual, meio inadequado, uma extravagante combinação de caráter, circunstância e vontade, capaz de levar alguém, agindo contra a própria natureza naturalmente egoísta e voltada ao interesse próprio, a se ocupar episódica e esporadicamente, com os problemas alheios. Uma atitude nesse sentido, determinada e permanente, será, por certo, sintoma de grave deformidade moral ou enfermidade psíquica... Uma vida social efetivamente democrática vai necessitar, como nós necessitamos do ar que respiramos, de uma cultura de solidariedade com vigência na alma social, ali convertida em virtude. Solidariedade não é parceria, embora a parceria possa ser expressão de solidariedade. Solidariedade não é tampouco um espasmo de sensibilidade individual, mas é um vínculo permanente do indivíduo com a vida, com certos interesses legítimos (também, sim), e com as responsabilidades de um grupo social, de uma nação e da própria humanidade. Não é estranho que na visão comum de solidariedade se promova um salto em dimensões meridianas, do núcleo familiar para o âmbito planetário? Temos, sim, consciência da solidariedade do núcleo
familiar que dissolve, muitas vezes, os interesses divergentes de seus membros com vistas a um bem comum. Temos, também, e com igual conseqüência, noção de uma solidariedade planetária com vistas às questões ecológicas (sentimonos passageiros transitórios do planeta e crescentemente compreendemos que o compartilhamos com contemporâneos de outro hemisfério que jamais vimos e com gerações vindouras que jamais veremos). E nos falta, contudo, o sentido de solidariedade em tudo mais: na empresa, na cidade, no estado, no país, em relação aos povos vizinhos e assim por diante. É possível que a estas alturas, o leitor atento destas páginas esteja refazendo a questão da qual tratei anteriormente: mas o ser humano não é naturalmente egoísta? Reproduzo a resposta: e somos também naturalmente comodistas, hedonistas e predadores. Mas isso não significa que devamos permitir que nossos vícios sufoquem as virtudes, mesmo sabendo que aqueles unem tanto ou mais do que estas. Contudo, se somos assim (e somos assim), também é verdade que a solidariedade é parte - e parte boa - da nossa natureza social. E isso se comprova com o fato, por todos experimentado, de que jamais esquecemos das ocasiões em que fomos solidários, tanto quanto jamais olvidamos as ocasiões em que faltou solidariedade para conosco.
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O bem comum
É
conhecida a definição de açúcar segundo a qual ele é um pozinho branco que deixa amargo o café quando não o adicionamos a ele. Analogamente, o bem comum é aquele princípio da vida social sem o qual uma comunidade se desagrega. Ele é formado pelo conjunto de condições materiais e espirituais necessárias a que as pessoas se realizem, presente em todos os grupos sociais harmônicos. Assim, há um bem comum familiar; há um bem comum do bairro, da cidade, do estado e do país; e há um bem comum à humanidade inteira. É da noção de bem comum que surge a consciência ecológica; e é da noção de bem comum que se pode realizar aquela reunião entre a CUT e a CNI mencionada no capítulo de que tratamos da solidariedade. Já se vê que o bem comum é um princípio indispensável à organização do Estado (sendo ele mesmo, o Estado, parte do bem comum nacional) e se formos apontar uma finalidade à Política, aí também estará a construção do bem comum como o seu mais nobre e legítimo objetivo.
O princípio do bem comum é flagrantemente contraditório ao individualismo, que o rejeita com todas as forças de sua alma egoísta. A filosofia social individualista contrapõe ao bem comum o conceito de bem geral, formado não por um conjunto de bens efetivamente comuns mas pelo somatório dos bens particulares dos indivíduos e organizações. Pouco lhe importa o número de dígitos que cada um aporte a essa soma esdrúxula, nem lhe interessa se ela resultar algébrica pela soma dos números positivos de uns com os negativos de outros. Bem ao contrário do que decorra dessa matemática patrimonial, a experiência revela que, não raro, o bem comum resulta muito mais das renúncias de cada um do que dos ganhos que os indivíduos aufiram. Por paradoxal que possa parecer, o princípio do bem comum é contraditório, também, à filosofia social dos coletivismos, mesmo daqueles que, como o comunismo, sustentam o caráter comum dos bens. Para compreender razão disso é preciso perceber o caráter não pluralista e não democrático dos coletivismos, onde o único bem que conta é o bem do coletivo dominante: a
Podemos falar em bem comum genérico, envolvendo objetivos permanentes da sociedade: segurança, liberdade, justiça, ordem e progresso, bem como o conjun to do patrimônio cultural, moral e institucional. E em bem comum específico, que são os bens materiais (riquezas naturais, bens públicos de infra-estrutura, etc.) disponíveis à manutenção e consecução do bem comum genérico.
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nação no fascismo, a raça no nazismo e a classe social no comunismo. Portanto, no comunismo, até mesmo pela ausência de bens pessoais que possam conferir liberdade e autonomia aos indivíduos, a transferência dos bens econômicos ao Estado se converte em fonte de dominação política. É exatamente pela inexistência de um bem efetivamente comum que os coletivismos resultam totalitários. Como o único bem que conta é o do coletivo dominante, as liberdades públicas e os direitos políticos - parte expressiva do bem comum das sociedades efetivamente democráticas - são surripiados até o último resíduo pelos coletivismos, como condição indispensável a moldar um rebanho de servos submissos ao poder político. Este, por seu turno, cuida logo de entupir os ouvidos da massa informe com as mentiras de sua propaganda. E enquanto subtrai ao povo o bem comum interno lhe dá coesão através da maliciosa construção de um sinistro mal comum externo. Não é por acaso que todos os coletivismos foram à guerra. Podemos falar em bem comum genérico, envolvendo objetivos permanentes da sociedade: segurança, liberdade, justiça, ordem e progresso, bem como o conjunto do patrimônio cultural, moral e institucional. E em bem comum específico, que são os bens materiais (riquezas naturais, bens públicos de infra-estrutura, etc.) disponíveis à manutenção e consecução do bem comum genérico. Desta última divisão conceitual decorrem nitidamente os papéis próprios e diferentes do Estado e dos governos. Cabe ao Estado zelar pelo bem comum genérico e cabe aos governos o cuidado do bem comum específico. Mas isso tudo não é muito vago? indagará, talvez o leitor. Felizmente, sim. Porque é desse caráter vago que decorre a própria necessidade da política e da democracia. Se tudo fosse absolutamente objetivo e o bem comum algo cientificamente
definido - como pretendiam e infelizmente ainda pretendem alguns profetas dos totalitarismos e da organização científica das sociedades - bastariam as estruturas burocráticas para colocar em marcha o Estado. Apele à sua memória, leitor: não foi exatamente isso o que passaram a dizer as esquerdas nacionais quando caiu o muro de Berlim e se desfez o mito do socialismo de estado? Não passaram elas a proclamar, tentando salvar os fundilhos da utopia, e diferentemente de quanto diziam antes, que fora o socialismo burocrático que caíra? Quando compareço a um jantar servido em forma de buffet, torço para que, de alguma forma, o acesso ao mesmo seja organizado. Caso contrário, acaba havendo um corre-corre no qual os mais ágeis, os mais mal-educados e os mais corpulentos levam vantagem. Os mais ágeis porque chegam primeiro, os mal-educados porque furam a fila e os corpulentos porque ocupam maior frente de mesa e travessas. São os beneficiários da desorganização, que sempre prejudica os lentos, os fracos e os bem educados. A situação descrita pode ser considerada uma parábola do Brasil e de outros países com problemas de organização política com vistas à promoção do bem comum, cuja desordem política, econômica e administrativa serve aos interesses dos ágeis (espertos), dos maleducados (sem caráter) e dos corpulentos (poderosos). Estes controlam o buffet, onde consolidam as posições privilegiadas e o acesso à maior parte dos bens disponíveis. Resumindo: não podemos acabar com a democracia do buffet para que o Estado coloque no prato de cada um uma porção insossa do pirão insuficiente que produza (como pretendem os coletivistas), nem transformar o acesso a ele numa cerimônia selvagem onde os mais fortes prevaleçam (como desejam, para benefício próprio, os individualistas). A verdadeira Liberdade, outra virtude social, não é isso.
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O
E s p lendor e fracasso da liberdade
macaco, quando empilha caixotes para apanhar bananas suspensas fora de seu alcance, está usando um atributo, denominado inteligência, comum a várias espécies animais. Já quem se empenha em conhecer a Verdade e o Bem, usa de uma outra faculdade, especificamente humana, chamada razão. A razão - a razão pura esteve no centro da revolução filosófica dos séculos XVIII e XIX. Que decepção teriam os pensadores daquela época se pudessem confrontar o otimismo que suas idéias suscitaram com a quase absoluta irracionalidade a que chegamos! Nunca a humanidade foi tão destra em empilhar caixotes para apanhar bananas, quer elas pendam de Júpiter ou de uma retorta de laboratório, mas jamais esteve tão distante de apreender o sentido da vida e desinteressada de orientá-la para o Bem. Erich Fromm resume assim a situação: !Possuímos o saber-como (knowhow), mas não possuímos o saber-por-que (know-why) nem o saber-para-que (knowwhat-for)”. O motivo é evidente. Absolutizando razão e liberdade, essa filosofia desenrolou o tapete para o relativismo e o existencialismo: se a razão for a única fonte da verdade e se a liberdade for a essência do homem, ter-se-á uma verdade para cada mente e o homem deve ser o que quiser fazer de si. O resultado é a miséria da filosofia e o trágico descaminho, travestido de liberdade, percorrido por gerações despreocupadas com a Verdade e com o Bem, patrocinadoras da prosperidade de advogados e
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profissionais da saúde mental. Destes, porque lidam com os cacos que as pessoas acabam fazendo de si (e umas das outras) por não terem compreendido o que de fato são, e daqueles porque - ausente a noção de Bem - as relações sociais se orientam apenas por interesses que se complicam quando a regra é o desregramento. Um prato cheio - de bananas. Extraviada a idéia de Bem, a noção de erro se esvazia e a consciência pessoal se amordaça num novelo de racionalizações oportunistas e egoístas. Nada há de surpreendente, então, na derrocada da instituição familiar, na irresponsabilidade moral de pais, educadores e comunicadores, na decadência do papel do Estado, nem na insignificância das virtudes individuais e sociais. E ainda aparece quem recrimine o Cristianismo por não se moldar segundo tais paradigmas! Ninguém levanta cedo, troca o lazer pelo dever, o prazer pelo compromisso moral ou pelos desconfortos do trabalho, porque assim queira mas porque reconhece como verdade haver nisso um bem superior ao aconchego da cama, aos gostos da recreação, e às excitações dos muitos vícios com que poderia ocupar seu tempo. A liberdade, como virtude moral, não consiste em se fazer o que se quer mas em se fazer o que se deve com vistas ao Bem. Portanto, a liberdade só pode ser um princípio da vida social se for, também, um valor moral que implica, conforme ensina Fernando Bastos de Ávila, o uso consciente dos direitos e o exercício responsável dos deveres. E aqui se reproduzem, mais uma vez, os antagonismos que vimos assinalando nas páginas anteriores entre a
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A l i b e r d a d e s ó pode ser um princípio da vida s o c i a l s e f o r , também, um valor moral que i m p l i c a o u s o consciente dos direitos e o e x e r c í c i o r e s ponsável dos deveres. essência do Cristianismo e as filosofias do individualismo e dos coletivismos. Com efeito, para o individualismo, a liberdade consiste, como se afirmou acima, em que cada um possa fazer o que deseja, contanto que não interfira na liberdade dos demais, cabendo ao Estado como função principal, assegurar aos indivíduos a possibilidade de usar dessa liberdade. No plano econômico, a liberdade se expressa no mercado, território vedado a qualquer interferência dos poderes públicos (é a essência do liberalismo econômico). Para os coletivismos, a liberdade é um atributo do coletivo dominante e não das pessoas. Assim, em todos eles, sofrem pesadas restrições as liberdades públicas, os direitos
políticos e os diretos humanos, a começar pelos processos de doutrinação a que são submetidos os membros da sociedade, passando pelo tratamento dispensado às dissidências políticas, e chegando no caso do coletivismo marxista à supressão das liberdades de iniciativa econômica individual. Mais adiante nos deteremos na questão das liberdades econômicas, bastando, neste momento assinalar que essa liberdade faz parte da liberdade humana integral, onde o Estado vai cumprir, como em tudo mais, uma função subsidiária que o individualismo rejeita (porque o quer mínimo e insignificante) e o coletivismo marxista recusa (porque o deseja protagonista de todos os papéis relevantes).
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O papel subsidiário do Estado
arece interessante introduzir este tema a partir de questão bastante prática e atual - o tamanho do Estado - que, como se sabe, excita e divide no plano ideológico e fisiológico o auditório nacional. Nas trincheiras ideológicas se debatem infatigáveis como de hábito a velha esquerda e a antiga direita. No plano fisiológico o conflito é mais agudo: de um lado os que, ao longo do tempo, foram firmando direitos e se apropriando de parcelas cada vez maiores do Estado, constituindo as poderosas corporações funcionais do país; de outro as corporações privadas que cobiçam deitar mão sobre tudo quanto hoje é dito público a começar pelas iguarias mais finas proporcionadas por nosso vastíssimo cardápio estatal. Indagaria então o leitor: não existe qualquer vestígio de idealismo nesse debate? É difícil compreender que um debate entre partes tão mal-intencionadas possa
repercutir entre pessoas sensatas. Mas como disse acima, as ideologias cumprem esse estonteante papel: embebedam o peru das massas para o posterior jantar das elites. Uma coisa é defender-se as relevantes funções civilizadoras, humanas e sociais do Estado; outra, é querer preservar estruturas estatais abusivas de privilégio e poder. Uma, é sustentar a prioridade das iniciativas privadas; outra, é querer derrubar a casinha do salva-vidas para que a praia fique entregue apenas aos atletas da economia. Portanto, a boa intenção corre por conta de quantos, ingenuamente, acreditam na sinceridade das exposições de motivos com que os antagonistas divulgam suas posições e se engajam nos respectivos movimentos. Não há como excluir do qualificativo fisiológico quem se mova por interesse próprio, ao arrepio do bem comum, em qualquer das duas facções que se rosnam reciprocamente à mesa desse banquete.
O Estado é um bem a ser buscado como necessário. O fato de que sua s instituições muitas vezes sejam a busadas não torna menos evidente que na ausência do Estado a humanidade regrediria à uma selvageria com variáveis graus de sofisticação. Não parece razoável admitir que disfunções institucionais mais ou menos freqüentes faç am transitar em julgado sentença c o ndenatória a tudo que é público pela via estatal porque i s s o seria o mesmo que considerar desprezível o músculo cardíaco diante da grande incidência de cardiopatias.
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O primeiro grupo fisiológico é formado por aqueles que, de maneira muito especial, se interessam em confundir público com estatal. A respeito, me parece oportuno transcrever, tomando a liberdade de uma tradução não-autorizada, trecho de conferência do prof. Andrés Ollero Tassara, catedrático de Filosofia do Direito na Universidade de Granada sobre o tema “La apropiación de lo público por el estado”. Diz o professor e deputado granadense no parlamento espanhol: Se determinadas posturas ideológicas conseguem fazer seu o termo “público”, chegando a convencer de apenas elas defendem tão nobre objetivo, jogam com vantagem. Se, ademais, conseguem apropriar-se do termo “social”, até o ponto de que seu próprio nome aparece associado a ele - como ocorre com o socialismo - lhes resultará ainda mais fácil suscitar simpatias e afinidades quase inconscientes (...) Para completar nosso quadro teríamos que indagar-nos sobre o que se costuma entender por “privado”. Algo “privado” aparece, antes de mais nada, como algo de que se excluiu alguém. O termo cobra assim, uma clara conotação negativa (...) Chega um momento em que a chave do privado já não se situa em seu titular senão - para falar como os juristas - em sua excludente dimensão erga omnes (...) Em tais circunstâncias, se alguém - no âmbito político - se deixa levar a essa forçada contraposição entre o privado e o público, terá a batalha perdida de antemão. E prossegue o professor Ollero, com muita agudeza, constando, na sociedade espanhola, algo que com ela compartilhamos: Se contrapõe em nossa sociedade uma arraigada divinização ética do Estado. Nisto somos, assombrosamente, “hegelianos” sem o saber, como aquele sujeito que falava sempre, inadvertidamente, em prosa... O Estado se converte em símbolo do desinteresse absoluto. Todo o estatal é
indiscutivelmente desinteressado, frente ao particular, interessado por definição. Como conseqüência, se uma determinada tarefa pode ser feita por um particular ou pelo Estado, as pessoas - prevendo benefício - optarão por que ela seja assumida pelo Estado, sobretudo se se trata de um âmbito em que esteja afetada de maneira especial a vida dos cidadãos. Nada diferente do que, por longo tempo, aconteceu entre nós e com cujos desdobramentos ainda convivemos. As calçadas das Bolsas de Valores, em dia de leilão de empresas estatais, são as praças de guerra dos conflitos que refletem essas tensões fisiológicas e respectivos argumentos ideológicos. O segundo grupo à mesa do banquete proclamará que o Estado é um mal necessário e redutível a uma expressão mínima que acabe por lhe suprimir toda significação. Recém-desembarcadas de um curso sobre História Universal na constelação Alfa-Centauro, essas pessoas enfrentam dificuldades para compreender o mundo em que vivem e o gênero humano a que pertencem. Talvez porque absolutamente não consigam discernir o que acontece no mundo, certificam, no que lhes diz respeito, a exatidão de Vico quando afirmava que homo non intelligendo fit omnia. O Estado é um bem a ser buscado como necessário. O fato de que suas instituições muitas vezes sejam abusadas não torna menos evidente que na ausência do Estado a humanidade regrediria à uma selvageria com variáveis graus de sofisticação. Não parece razoável admitir que disfunções institucionais mais ou menos freqüentes façam transitar em julgado sentença condenatória a tudo que é público pela via estatal porque isso seria o mesmo que considerar desprezível o músculo cardíaco diante da grande incidência de cardiopatias.
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À luz dos princípios do Bem Comum e da Subsidiariedade, o Estado deve ter, a cada momento, o tamanho necessário para fazer aquilo que a pessoa humana e a sociedade não possam fazer bem feito.
No entanto a vida continua e a questão persiste: que tamanho deve ter esse Estado, que é um bem? Creio que a conferência do professor Andrés Ollero, chamando a atenção para o fato de que o estatal não é necessariamente equivalente a social nem público, e indicando, ademais, que o conceito de privado não se opõe necessariamente ao de social e que nem sempre o estatal é desinteressado, nos sinaliza na direção de buscar resposta a essa pergunta no campo do interesse público e do social. E a abandonar, por menos relevante, a mera tensão entre estatal e privado dentro da qual quase compulsivamente nos pautamos.
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Na medida em que nos fixamos no interesse público e social, estamos nos abeirando da idéia de bem comum, tratada em capítulo anterior e apontado como único motivo legítimo das ações políticas. O tamanho do Estado terá uma obrigatória relação com essa finalidade. Ali se viu que o bem comum não mantém relação exclusiva com a Política mas para ele também devem, por imposição moral, convergir as ações que habitualmente se incluem no campo das chamadas atividades privadas, razão pela qual não se pode pressupor uma incompatibilidade natural entre as expressões do binômio público/ social e privado. De resto, as experiências
empresariais mais bem sucedidas neste fim de século testemunham de modo tão eloqüente o acerto de tal ensinamento que fica difícil compreender porque tarda ele a penetrar e a fecundar de maneira eficaz determinados círculos públicos e privados brasileiros. Tendo presente o que ali se afirmou sobre a relação entre o conteúdo do bem comum específico e os governos, será condição do Bem Comum que a sociedade possa periodicamente rever e, se for o caso, modificar, as estruturas do Estado, do Governo e da Administração em conformidade com aquilo que tenha sido decidido dentro do processo político. Mudanças estruturais não eqüivalem ao processo de sedimentação ocorrido no Brasil, onde cada governo, durante décadas, foi construindo sua própria estrutura sobre a estrutura anterior, agregando as próprias camadas às camadas preexistentes, e gerando a multifoliada e mastodôntica cebola burocrática com a qual convivemos. Por outro lado, e com isso chegase ao núcleo do tema, a pessoa humana e a comunidade são anteriores ao Estado. Portanto, suas iniciativas não devem ser inibidas pelo Estado, nem pode o Estado assumir como encargo seu aquilo que a pessoa humana e a comunidade possam fazer bem feito. Trata-se do princípio da Subsidiariedade: a sociedade maior não deve fazer aquilo que a sociedade menor possa fazer bem feito. O ancestral desacato a esse princípio no Brasil foi levado tão longe, criando situações tão aberrantes, que hoje, mesmo entre os segmentos políticos da esquerda, se encontra bolsões de consenso sobre a necessidade de se revisar as atribuições dos três níveis de governo. Portanto, à luz dos princípios do Bem Comum e da Subsidiariedade, o Estado deve ter, a cada momento, o tamanho necessário para fazer aquilo que a pessoa humana e a sociedade não
possam fazer bem feito. Entendido esse conceito, torna-se inafastável a idéia de um Estado organizado de maneira flexível, cujo porte possa variar para atender e deixar de atender aquilo que a sociedade lhe vá balizando a partir dos limites de suas próprias possibilidades e competências. Num mundo em permanente mutação, no qual as ondas se sucedem com crescente rapidez, esse Estado dificilmente será mínimo no sentido equivalente a inexpressivo mas o será no sentido de menor possível, como conseqüência da conjugação do Bem Comum com a Subsidiariedade. Além da dimensão política que aqui se enfatizou, o princípio da subsidiariedade tem uma dimensão social: ela se expressa nas relações entre os membros de uma família (com o respeito dos pais à autonomia dos filhos); e também nos condomínios, onde a administração não deve ser chamada a interferir naquilo que seja próprio dos condôminos; nas cooperativas, nos sindicatos, e em todo o conjunto dos corpos intermediários existentes na sociedade. Às instituições de ordem superior compete orientar, harmonizar, suprir e jamais substituir, inibir ou eliminar as instituições de ordem inferior. Reconhecer a necessidade de se reduzir o porte do Estado não significa avalizar teses próprias do individualismo liberal. Por outro viés, defender a ação forte, ética e competente do Estado na promoção do bem comum não significa subscrever teses inerentes ao coletivismo. Os individualistas recusam o princípio da subsidiariedade por estarem ligados pelo umbigo à idéia de cada um por si e Deus por todos. Os coletivistas – especialmente os de perfil marxista - o rejeitam pelo excesso oposto: para eles, a pessoa e as instituições da sociedade é que são subsidiárias ao Estado. Se formos olhar bem, resta depositada no fundo desse caldo ideológico a questão do direito à propriedade privada.
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O direito à p r opriedade privada
uponha que você tenha dedicado anos de sua vida pesquisando algo que pudesse dar solução a um determinado problema da humanidade. Você se empenhou, renunciou a muitas horas de lazer, investiu recursos que poderiam ser aplicados em benefício imediato seu e de sua família. Por fim, encontrou o que buscava e com isso se tornou detentor de um conhecimento técnico e de uma tecnologia que só você tem. Trata-se de um bem intelectual, guardado no cofre de sua mente. Será difícil conceber uma propriedade tão pessoal: é seu e só você sabe que existe. Mas existe, é seu e tem valor. Para o coletivismo marxista, esse conhecimento não lhe pertence. Aliás, se você se apresentasse com ele ao poder público, na condição de cidadão de um estado coletivista, enfrentaria problemas sérios por ter desenvolvido seu trabalho fora do órgão oficial correspondente. Ali, não existe apropriação privada de conhecimento técnico e menos ainda de seus frutos. Já um individualista lhe dirá que você pode fazer o que bem entender com o conteúdo de seu cofre mental. O sagrado direito de propriedade lhe permite usar ou não usar do que sabe. O que você fizer com o que lhe pertence, para si ou para outrem é problema seu. Vender, emprestar, dar, alugar ou jogar fora são alternativas do proprietário. Contudo, essa propriedade, a exemplo de qualquer outra, tem uma função social. Você está moralmente obrigado a colocar esse bem a serviço dos demais. É lícito para você determinar o modo como
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fará isso: registrar uma patente, vender para comprador nacional ou estrangeiro, criar uma fundação, estabelecer uma empresa industrial ou comercial para explorar economicamente seu invento, doá-lo para uma universidade, transferir direitos para herdeiros, ou qualquer alternativa que lhe ocorra. Mas não lhe é lícito - ao menos num sentido moral - impedir que ele seja usado em benefício dos demais. Na situação imaginária que acima apresentamos estão os elementos fundamentais da grande questão ideológica envolvendo a propriedade privada dos bens, especialmente dos bens de produção. Há os que a recusam até em seus méritos; há os que a sustentam até em suas mazelas e expressões de egoísmo e dominação; e há o que aqui se ensina. O leitor atento terá percebido que ao apresentar a questão nessa perspectiva, surgiu uma divisão na relação que se estabelece entre a pessoa e o bem: tratou-se ali da posse (o direito de ter algo como próprio) e o uso (que deve cumprir função social). Esse ensinamento, absolutamente lógico, economicamente eficiente, moralmente perfeito, decorre do princípio da Destinação Universal dos Bens. Deus criou o mundo natural para todos os homens e não criou qualquer de seus filhos desprovido do direito de acesso aos bens que proporciona. O direito à propriedade privada serve à eficiência da vida econômica, à segurança pessoal e familiar, à liberdade e a civilização. Na ausência da propriedade as pessoas e as famílias vivem em grande insegurança e passam a depender de quem a tenha seja do grande senhor feudal ou capitalista,
quando a propriedade está mal distribuída - seja do Estado e seus senhores, quando as propriedades são todas públicas e ficam sujeitas às decisões da esfera política. Os extintos regimes comunistas exacerbaram seu caráter totalitário precisamente ao conferirem o poder econômico nas mesmas mãos que assumiram o poder político. Criaram uma sociedade de servos indigentes que desabou por ser antropologicamente errada e economicamente incompetente. Assim, a propriedade privada: a) é um direito natural que, como salta aos olhos, vem depois de outros direitos naturais
superiores, como por exemplo o direito à vida e a liberdade; b) é um direito de todos e não apenas dos que já a detêm e por isso deve estar dispersa e acessível a todos mediante o trabalho; c) implica deveres decorrentes da função social, que não é assessória nem secundária mas integra o próprio direito e lhe dá fundamento. Esses enunciados sobre o direito de propriedade surpreenderam o mundo quando foram formulados nas encíclicas sociais. Hoje, contudo, poucos países não incluem tais princípios no seu direito positivo sobre o instituto da propriedade. Foto por vpickering (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
O d i r e i t o à p r opriedade privada serve à eficiência da v i d a e c o n ô m i ca, à segurança pessoal e familiar, à l i b e r d a d e e a civilização. Na ausência da propriedade a s p e s s o a s e as famílias vivem em grande insegurança e p a s s a m a d epender de quem a tenha.
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Em tempos de perplexidade global sobre o papel do Estado no desenvolvimento econômico e s ocial , sobre a natureza do i n d i v íduo e sobre suas relações com as instituições políticas , é conveniente revisitar o solidarismo .
Foto por Alexandra Guerson, Licença Creative Commons Attribution 2.0
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ensaio
Luciano Dias
Cientista Político e diretor da CAC Consultoria
O solidarismo na política brasileira
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e forma simples e direta, o solidarismo é a denominação geral da doutrina social da Igreja Católica, tal como expressa em várias encíclicas papais e sistematizada nas obras do jesuíta alemão Heinrich Pesch (1854-1926). Esta, contudo, é apenas uma definição de caráter histórico. Sua importância política e ideológica, para os dias de hoje, vai muito além de sua origem confessional: está diretamente relacionada ao objetivo que pretendia cumprir em seu nascimento. Na passagem do século XIX para o XX, várias correntes intelectuais desejam evitar tanto o radicalismo socialista como a utopia do livre mercado e o solidarismo ofe-
recia um conjunto de idéias novas, capazes de servir tanto para análise da sociedade, como também para propor soluções para seus problemas. Os dias de hoje, no Brasil e no mundo, não estão muito distantes dessa conjuntura. O fim da Guerra Fria desmoralizou o socialismo, que sobrevive à base oportunismo político. As crises financeiras geradas pela globalização, por sua vez, mostram como é difícil vender aos eleitorados mundiais o livre mercado como utopia social. Em tempos de perplexidade global sobre o papel do Estado no desenvolvimento econômico e social, sobre a natureza do indivíduo e sobre suas relações com as instituições políticas, é conveniente revisitar o solidarismo.
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O solidarismo, considerado como doutrina econômica e social, pode ser exposto de acordo com a lógica de seus três princípios. Seu primeiro princípio, naturalmente, é o da solidariedade. Aqui, de saída, para uma compreensão adequada de seu significado, é preciso afastar-se dos sentidos habituais que a palavra assume no contexto brasileiro. Por conta de suas implicações políticas no curso da democratização da Polônia e no fim da Guerra Fria, as esquerdas nunca se interessaram em naturalizar o conceito de solidariedade. No campo da centro-direita, a exaltação dos mecanismos de mercado sempre deixou pouco espaço para os laços sociais que não nascem das interações econômicas. Por conta disso, a solidariedade, no Brasil, é geralmente considerada como aquele sentimento vago de simpatia pelos necessitados ou pelas vítimas de desastres naturais, sentimento que justifica midiáticas campanhas de arrecadação de donativos. Nada mais distante, contudo, do conceito de solidariedade aqui examinado. Trata-se do vínculo fundamental da sociedade, o meio pelo qual é realizada a existência humana. Dentro dessa perspectiva, o ser humano é uma entidade, em si mesma solidária. A compreensão dessa unidade que não é propriamente biológica ou cultural, mas ontológica, permite ao solidarismo evitar as contradições de outros modelos para a vida social e econômica. O homem como sujeito e objeto de contratos, como mero agente dos mercados, não pode ser detentor de direitos substantivos, para além de sua própria liberdade. Por isso, não restou ao liberalismo ao longo dos últimos dois séculos senão enxertar definições externas e ocasionais
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desses direitos quando as revoluções políticas ameaçaram a ordem privada que ele instaura. Do ponto de vista da solidariedade, não existe qualquer dúvida sobre a existência desses direitos substantivos do Homem. Por sua vez, o socialismo, ao submeter a identidade humana ao mero jogo das forças econômicas, não consegue fundamentar sua liberdade política. O Estado socialista está sempre buscando maneiras de reduzir essa liberdade em nome de ideais coletivos intangíveis. Enquanto isso, o fulcro do solidarismo não pode ser o Estado, mas a pessoa humana, considerada em toda a sua complexidade e liberdade. É a dependência de todos com relação a todos. Passando do plano dos princípios para o mundo das linguagens políticas, a solidariedade oferece outra visão de mundo, uma forma alternativa e também positiva de descrever a realidade social e política. Permite a formação de identidades ideológicas distantes das dicotomias em uso na política eleitoral brasileira e também de suas tradições clientelísticas. Por fim, as origens cristãs do princípio da solidadariedade permitem um diálogo com eleitorados mais sensíveis a questões de valores, sem exibir, necessariamente, um aspecto confessional. Em resumo, todos dependem de todos, para além de classes, grupos sociais, níveis de renda ou posições nas escalas sociais, e todos têm obrigação com todos. O segundo princípio do solidarismo avança em terreno menos seguro. Ele é definido como o primado do bem comum, mas, como qualquer pessoa com alguma experiência política sabe, é difícil empregar conceitos morais na vida concreta dos governos.
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P o l í t i c a é a a rte do possível e exige capacidade de forjar c o m p r o m i s s o s. Mesmo as ditaduras mais cruéis da H i s t ó r i a s e m pre afirmaram que trabalhavam pelo bem d o s c i d a d ã o s ou da humanidade. Política é a arte do possível e exige capacidade de forjar compromissos. Mesmo as ditaduras mais cruéis da História sempre afirmaram que trabalhavam pelo bem dos cidadãos ou da humanidade. Essa dificuldade de sintonizar o conceito de bem comum com as realidades da política é, sem dúvida, considerável, mas não é intransponível. Basta levar em conta que o seu ideal inverso – um governo meramente cínico, cidadãos perfeitamente egoístas – é ainda mais contraditório. O fato é que mesmo os maus precisam apresentar suas intenções como boas, demonstrando que uma definição comum do bem é possível, ainda que não seja partilhada por todos sinceramente.
Assim, em termos contemporâneos, o bem comum pode ser definido tanto em termos de princípios, como de modo pragmático. No plano dos princípios, o bem comum pode ser materializado por meio da garantia e proteção dos chamados direitos universais que, de algum modo, implicam um ideal de Homem e de Sociedade. Até mesmo um patamar mínimo universal de bem estar material pode ser incluído, sem contradição, na idéia de bem comum. No plano pragmático, contudo, é que o conceito de bem comum revela maior potencial político. Ele pode ser ajustado, a cada momento da História de cada sociedade, aos anseios dos cidadãos, quando de-
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finidos de forma livre e democrática. Por mais que os cidadãos estejam perfeitamente a par das realidades políticas e do ritmo das decisões administrativas, certamente não trocariam ao menos o ideal de um governo voltado para o bem pela certeza de um mundo intencionalmente perverso. A idéia do bem comum, mesmo problemática em sua manifestação concreta, tem uma valência positiva na consciência da maioria dos cidadãos e, portanto, tem o seu papel na retórica eleitoral. Uma sociedade pode não ter uma idéia muito clara sobre o que é o bem comum, mas saberá com certeza o que não é. O bem comum, portanto, não precisa ser visto como o recurso ingênuo de pessoas inexperientes. Ele pode ajudar a promover várias iniciativas práticas que terminam reduzindo o espaço da má política, como é o caso da defesa da transparência nos negócios públicos, do bom uso dos recursos do contribuinte ou da interpretação ampla dos direitos fundamentais. O terceiro princípio do solidarismo talvez seja o mais difícil de traduzir em termos políticos usuais. Ele diz respeito a um domínio técnico da organização da sociedade e, em português, é apresentado como princípio da subsidiaridade. De forma geral, ele estabelece que
toda a ação social, econômica ou política que pode ser conduzida pela pessoa humana não deve ser conduzida por entidades de caráter mais geral, como o Estado. O fundamento deste princípio, portanto, está baseado na idéia da autonomia e da independência dos cidadãos, que devem ser estimuladas pelas instituições políticas e não reduzidas pela interferência dos governos e seus agentes. Curiosamente, esse princípio, que parece bastante abstrato à primeira vista, ganhou uma versão bastante coloquial na linguagem da política brasileira. No âmbito das discussões sobre a organização de nosso federalismo, ganhou alguma popularidade a expressão: “O que pode ser feito pelo município não deve ser feito pelo estado; o que pode ser feito pelo estado, não deve ser feito pela União.” De uma forma simples e direta, essa expressão resume de forma bastante eficaz o princípio da subsidiaridade, evitando as associações negativas que o termo subsídio ganhou no Brasil. Além disso, esta expressão permite uma ligação direta com um movimento político de alguma expressão nacional, o municipalismo. Adotando os devidos cuidados terminológicos, é promissor o potencial político-eleitoral do princípio da subsidiariade na
O bem comum, portanto, não precisa ser visto como o r e c u rso ingênuo de pessoas inexperientes. Ele pode ajudar a promover várias iniciativas práticas que terminam reduzindo o espaço da má política, como é o caso da defesa da transparên cia nos negócios públicos, do bom uso dos recursos do contribuinte ou da interpretação ampla dos direitos fundamentais.
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conjuntura brasileira. É visível, por exemplo, a perda de prestígio dos valores clientelísticos, derivados da idéia de que o Estado deve necessariamente atender a todos os tipos de necessitados e que o indivíduo só progride amparado pelo governo. Há algum tempo, os próprios programas sociais exigem alguma forma de contrapartida dos seus beneficiados (presença dos filhos nas salas de aula) e identificam, como alvo preferencial e legítimo, apenas a pobreza extrema. A idéia de que o progresso individual depende da própria capacidade de iniciativa está lentamente ganhando espaço mesmo no discurso público. Além disso, a crise fiscal e gerencial do Estado brasileiro praticamente obriga o governo da União a confiar aos estados e municípios a responsabilidade pelos programas sociais de maior visibilidade. Ao repassar recursos para a execução das políticas de educação, saúde e segurança, a União termina ampliando o foco sobre as autoridades estaduais e municipais, muito mais vulneráveis à cobrança da opinião pública. Estas autoridades, por sua vez, não têm alternativas senão promover, estimular e apoiar o envolvimento dos cidadãos com a solução dos problemas sociais, nem que seja para evitar uma completa responsabilização de sua atuação. De maneira gradual, estão ensinando o povo que a capacidade dos governos é limitada. Por fim, a crescente preocupação pública com a promoção do desenvolvimento econômico, única forma de gerar emprego e renda em uma sociedade capitalista, torna central o valor da independência e da capacidade de iniciativa. Seja no contexto individual, familiar, comunitário ou político. Ressalte-se aqui que não se trata de repetir a cantilena liberal sobre a soberania
dos mercados ou sobre o Estado mínimo. O princípio da subsidiaridade reconhece o caráter fundamental da ação dos governos e das instituições políticas. Há coisas que apenas os governos podem fazer: não há Estado mínimo, mas o Estado adequado. Aquele capaz de criar, por meio de mecanismos democráticos e sob a fiscalização do cidadão, as condições necessárias para o progresso do indivíduo em sua família; da família em sua cidade, da cidade em seu estado e assim por diante. Como parte do discurso político, o princípio da subsidiaridade apresenta ainda outro aspecto importante. Ele reforça o sentimento positivo da participação política, sem o radicalismo das ideologias totais e sem o utopismo contemporâneo do “se cada um fizer a sua parte”. A subsidiaridade propõe missões concretas, relacionadas aos desafios político-administrativos de cada esfera de governo e uma orientação segura para os detentores de mandatos eletivos. Naturalmente, dentre todos os princípios de uma política baseada no solidarismo é aquele que requer o mais sofisticado tratamento retórico. Ninguém escreverá “subsidiaridade” em uma faixa de propaganda eleitoral ou em material de campanha. Seu conteúdo, entretanto, é de simples compreensão e pode ser expresso de maneira efetiva, por meio da mobilização de sentimentos de auto-estima, responsabilidade comunitária, etc. Naturalmente, estas breves páginas não têm a pretensão de expor completamente uma doutrina social e econômica com uma trajetória de mais de um século. Nosso objetivo foi mostrar como seus elementos básicos oferecem uma base consistente para uma ação política concreta que se afasta dos paradigmas socialista e liberal, oferecendo um ideal diferente do Homem e da Sociedade.
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Não se vê esquerdista dizendo que “ ideologia não existe mais ”. Quando abdica da identidade , o adversário de ideias torna-se presa mais fácil e servil aos seus
projetos de poder.
Foto por Jose Téllez (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
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ensaio
Cleber Benvegnú
Jornalista e advogado, é sócio-diretor da Critério - Inteligência em Conteúdo. No portal da Zero Hora, assina o blog Senso Incomum
Ideologia
ainda existe?
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arte considerável da direita (não assumida), seja de formação liberal ou conservadora, prefere acreditar que ideologia não existe mais. Compreensível. É mais cômodo do que reconhecer a derrota cultural em curso no ambiente da opinião pública, especialmente na América Latina. Ou do que admitir desconhecimento sobre o tema – por falta de algumas horas de estudo. A esquerda, inclusive a menos ortodoxa, aceita de bom grado essa assertiva, pois sabe que apenas serve para reforçar suas teses. Quando abdica da identidade, o adversário de ideias torna-se presa mais fácil e servil aos seus projetos de poder. Tanto que não se vê esquerdista dizendo que “ideologia não existe mais”. Especialmente nas últimas décadas, enquanto a esquerda chamava jovens para
fazer formação doutrinal, a direita os reunia para batucadas, tão-somente para elas. São honrosas as exceções. Duas dinâmicas paralelas vitimaram a direita brasileira. Refiro-me à direita democrática, reta, adepta de valores tradicionais. Sem mofo. Falo da mesma vertente ideológica que, pelo mundo, elegeu figuras como Angela Merkel, José Maria Aznar e o jovem David Cameron. No Brasil, ela também existe: diversos são os intelectuais e líderes sociais que comungam dos mesmos contornos doutrinários. No espectro político-partidário, porém, ela quase virou pó. Autodeclarados mesmo, só restaram alguns caricatos e excêntricos, quase sempre de duvidosa adesão humanista. Nada capaz de ganhar votos para além de seus fieis seguidores. O primeiro processo a gerar esse ocaso foi a derrota de comunicação havida durante e, principalmente, depois do regime
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militar. Os protagonistas de então perderam a batalha da opinião pública. Seus feitos – até os bons – herdaram maledicências e críticas. Era resultado previsível para um regime que se excedeu no tempo e nos métodos. Tudo o que é de direita, desde então, passou a receber uma carga por esses erros. Ao lado disso, a esquerda assimilou a lição ensinada pelo intelectual italiano Antonio Gramsci, que propunha uma evolução nas estratégias de tomada de poder: em vez de armas, ocupação de espaços; em vez de imposição, construção de hegemonia. E essa estratégia foi de tal forma bem sucedida que mesmo instituições tradicionais, como a Igreja Católica, abriram vertente para o avanço das teses socialistas. Quase todos os vetores de formação do imaginário coletivo foram dominados, consciente ou inconscientemente, por uma concepção esquerdista de política e de mundo – donde surgiu, a propósito, o ditame do politicamente correto. A maior prova de tais circunstâncias é que, nas últimas eleições presidenciais, só figuraram candidatos autodeclarados de esquerda – uma verdadeira disputa para ver quem era ideologicamente mais canhoto. Geraldo Alckmin, por exemplo, com todos os contornos de um líder conservador, fazia um esforço hercúleo para esgueirarse noutra direção em 2006. Confirma essa tendência a forma com que o próprio termo “conservador” virou, em si, sinônimo de pecado. Enquanto na ciência política é substantivo a denominar tão-somente uma categoria intelectual, na arena da opinião pública corresponde a um adjetivo pejorativo. Os partidos de viés centrista e direitista ignoram, no entanto, um dado relevante. Mesmo com os vetores de
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formação da opinião pública sob dominação da esquerda, as pesquisas identificam que parte considerável da população continua comungando de ideias conservadoras: preservação da família, direito à propriedade, livre iniciativa, recusa ao aborto, leis penais mais severas, educação para os valores. O Datafolha, a propósito, ano a ano, mostra isso em seus levantamentos: os eleitores, inclusive jovens, perguntados, dizem-se mais de direita do que de esquerda. Esse potencial eleitoral é rasgado pelos partidos que poderiam comungar de tais identidades. O caso do DEM demonstra esse conflito existencial mal curado. É patética a forma através da qual, para implantar uma suposta reinvenção, o partido desenhou seu próprio ocaso. E o mais exótico é que fez isso de caso pensado, contratando marqueteiro, cientista político e tudo mais. Eis que a primeira decisão foi abandonar a velha sigla PFL, demonizada pelos adversários e por boa parte dos formadores de opinião, mas que tinha muitos votos e adeptos. Em vez de comprar a briga na opinião pública e renovar as práticas de viés coronelista da agremiação, os então liberais decidiram adotar um nome e um ideário que dialogasse com a dominação cultural em curso. E no lugar de tratar da imagem e das práticas que precisavam ser mudadas, quiseram transmutar suas ideias. Mudar o pensamento, abdicar de convicções. A começar pelo nome – Democratas –, que comunica com a esquerda norte-americana. Os resultados evidenciam o erro estratégico: o velho PFL, agora revestido publicitariamente de ares modernosos, migra para o brejo. Faltou combinar a reinvenção com o eleitor. Virou presa ainda mais fácil para o inimigo, a quem pretendeu igualar-se – em vez de verdadeiramente
Foto por Governo Britânico, domínio público
A m e s m a v e r tente ideológica que, pelo mundo, elegeu f i g u r a s c o m o Angela Merkel, José Maria Aznar e o jovem D a v i d C a m e r on também existe no Brasil. Diversos são os i n t e l e c t u a i s e líderes sociais que comungam dos mesmos c o n t o r n o s d o utrinários. No espectro político-partidário, p o r é m , e l a q u ase virou pó.
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Foto por Governo Britânico, Licença Creative Commons Attribution 2.0
A lógica dos pensamentos políticos revela q u e coerência ideológica n ã o é critério exclusivo para avaliação de
postura política.
renovar-se por dentro e com coerência. Figurando dentre as maiores bancadas da Câmara e do Senado há duas eleições, hoje o partido míngua. Um dado diz tudo: em 2006, tinha 65 deputados; hoje, não passa de 30. Alguns líderes pareciam ter notado esse equívoco. Mas, há alguns meses, em comercial na TV, o Democratas gaúcho propunha a criação do “Bolsa Creche” como uma espécie de nova salvação da lavoura. Notadamente, uma tentativa pífia de comunicar algo como “olha, nós também somos sociais”, num claro rendimento ao viés de programas e discursos protagonizados por quem...? Pelo PT, justamente seu principal adversário e algoz. Tenta plantar flores em um terreno minado pelas armadilhas do seu concorrente, em vez de cuidar bem e melhor do seu próprio roseiral. É um caminho que nem diminui a força do adversário, porque não o critica, tampouco aumenta a sua, porque não demonstra identidade e originalidade. Muito menos coragem.
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Não é por outro motivo que o novo PSD nasce com igual medo – ou erro estratégico – ao não assumir bandeiras ideológicas claras. Amealhará uma porção de seguidores pragmáticos, mas dificilmente conseguirá dialogar com o imaginário coletivo. E, desse modo, sem alternativa, eis que os votos da direita democrática permanecem órfãos, a espera de alguém possa merecê-los. Ou seja: ocorre uma flagrante contradição entre os vetores de formação da opinião pública (que têm espaço e repercussão: artistas, líderes comunitários, políticos, padres, jornalistas, professores) e a opinião pública propriamente dita. Formouse aí o que a teoria da comunicação chama de espiral do silêncio: a suposta minoria cala sob constrangimento da suposta maioria. Claro que a simples adesão a uma ideologia não significa imunidade de caráter e ações. O céu, disse o próprio Jesus, não está garantido apenas aos cristãos. Quem ignora sua mensagem também pode alcançar
Foto por thenails (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
Mesmo com os vetores de formação da opinião pública s o b dominação da esquerda , a s pesquisas identificam que parte considerável da população continua c o m u n g a n d o d e ideias
conservadoras.
a eternidade. A lógica dos pensamentos políticos é a mesma: coerência ideológica não é critério exclusivo para avaliação de postura política. Há ladrões, por exemplo, para todos os lados. Assim como há pessoas de excelente caráter, gestores competentes. O que está superada, portanto, isto sim, é a visão de que um quadro político pode ser avaliado tão-somente por suas escolhas ideológicas. A adesão a um ideário, em si mesma, não confere alvará de bom comportamento. Os atos é que dizem mais da pessoa – é assim na vida, também é na política. Porém, é ao menos desejável que o posicionamento sobre grandes ideias políticas seja elemento decisivo para que pessoas se reúnam, por exemplo, em torno de um partido. Não o único elemento, mas um dos mais relevantes. E essa adesão inspira ou motiva, não é possível ignorar, grande parte dos movimentos tomados no cotidiano dos governos. Isso não é
matemático e autoaplicável, mas são pensamentos que comandam e organizam ações. Tal influência é menor, todavia, no âmbito municipal, porque as necessidades costumam ser mais objetivas e concretas, assim como os consensos sociais. Se quem vota só por ideologia tende a ficar refém de grupos e obtuso diante da realidade, quem a ignora completamente tende a não cultivar uma identidade de fundo. Isso passa a compor a geleia geral em que se transformou o sistema partidário brasileiro – onde todos se escondem e poucos se identificam. Onde o queridismo é mais palatável do que a tomada de posições. Onde ter lado virou sinônimo de algo ultrapassado e preconceituoso. E assim se vai a identidade de um partido político, seu maior patrimônio, mais perene do que as próprias pessoas e suas circunstâncias. Mas é possível encontrar cores no meio dessas cinzas, basta adotar uma postura de equilíbrio, inteligência estratégica e coragem.
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reportagem
Foto por Gonchoa (Flickr), Licenรงa Creative Commons Attribution 2.0
Maioria conservadora
e silenciosa
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Eles não são arroz-de-festa em protestos, nem se consideram credores da humanidade, tampouco participam de arruaças sob motivações ideológicas. Essas pessoas têm na família a fonte de seus valores e estão na exata contramão de boa parte das posições defendidas pela imprensa, pela elite cultural e pela classe política do país.
Foto por Francisco Aragão (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
A
maioria da população brasileira tem pendor pelas ideias conservadoras. É o que se revela a cada resultado de pesquisa de opinião pública. A mais recente delas, O que querem os brasileiros?, promovida pelo recém-criado PSD (Partido Social Democrático), comprova essa realidade. Foram ouvidos, no final do ano passado, três mil cidadãos com os mais diversos perfis e residentes em 46 cidades de 18 estados, além do Distrito Federal. Em artigo publicado no Diário do Comércio, o filósofo Olavo de Carvalho aponta a contradição entre o eleitorado nacional e seus representantes. “No Brasil, gayzismo, abortismo e coisas do gênero não dão voto a ninguém. Podem garantir algum aplauso da mídia, mas quem disse que a mídia é tão influente quanto gosta de imaginar que é?”. E conclui: “Contra a tagarelice geral dos que se julgam donos da opinião pública, todas as pesquisas mostram as preferências acentuadamente conservadoras do povo brasileiro, que graças a um brutal erro de avaliação dos
Redação Horizonte partidos ‘de direita’, fica excluído da representação política”. Perguntados sobre qual posição ocupam no espectro político, apenas 18% responderam centro-esquerda no último levantamento. Centro-direita, por sua vez, foi a preferência de quase um terço dos entrevistados – ao passo que 28% definiram-se como centristas e cerca de um quarto não soube opinar. Essa afinidade por determinado campo ideológico transparece sobretudo diante de casos práticos e assuntos ligados diretamente às suas vidas. É o que ocorre quando o brasileiro expressa sua opinião sobre segurança pública. O desejo é pelo endurecimento da legislação e pela punição exemplar dos criminosos. A redução da maioridade penal conta com aprovação de 87% da população, sendo que um terço defende que ela seja fixada em 12 anos de idade. Defendida por grande parcela dos intelectuais e em manifestações como a Marcha da Maconha, a bandeira da legalização da droga é um fracasso quando levada às ruas. Nada menos do que 85% dos
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entrevistados se diz contrário à proposta. Outra tese simpática aos formadores de opinião, a legalização do aborto é repudiada no escrutínio do povo. Mais de dois terços se opõe à iniciativa que integra as reivindicações de setores feministas e que é propagada com espalhafato pela Marcha das Vadias – protesto realizado em diversas cidades do mundo e supostamente voltado ao combate à violência sexual contra as mulheres. Quando o assunto é economia, a população também se distancia da pauta dominante da maior parte dos partidos políticos. Por trás das respostas, por mais que não haja plena consciência, está a defesa da livre iniciativa. Os indivíduos avaliam que a carga tributária é excessiva, que o setor privado administra melhor uma empresa e programas como o Bolsa Família são necessários, mas incentivam a falta de esforço. O empreendedorismo também sobressai no levantamento: 62% dos entrevistados gostariam de gerir um negócio próprio. O resultado de “O que querem os brasileiros?” reforça a sequência de estudos realizados pelo Datafolha. Em 2008, o jornal Folha de São Paulo publicou o caderno “Jovem Século 21”, que evidenciou a afinidade
da juventude brasileira com o ideário conservador. De todos os entrevistados, 37% se declararam de direita, 23% de centro e 28% de esquerda. Para além das categorizações ideológicas, o resultado se expressa na posição em relação a assuntos concretos: 68% dos jovens se opõem à mudança da lei do aborto, 72% avaliam que deve ser proibido fumar maconha, 83% defendem a redução da maioridade penal, apenas 1% se dizem ateus e 10% não têm religião. Outro levantamento, realizado em 2009 pelo Ibope, revelou que 92% da população brasileira considera ilegais as invasões realizadas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). A interpretação dos dados dessas pesquisas não deixa dúvidas: há um eleitorado à espera de líderes que defendam suas posições e não temam as patrulhas de minorias organizadas. Analisando o fenômeno, o jornalista Reinaldo Azevedo avaliou em seu blog, hospedado no site da revista Veja: “Uma boa leva de políticos no Brasil deveria olhar para os dados do Datafolha com vergonha. Vergonha de si mesmos e de sua covardia. Existe uma maioria silenciosa que hoje não encontra uma representação consistente”.
Quando o assunto é economia, a população também se distancia da pauta dominante da maior parte dos partidos políticos. Por trás das respostas, por mais que não haja plena consciência, está a defesa da livre iniciativa. Os indivíduos avaliam que a carga tributária é excessiva, que o setor privado administra melhor uma empresa e programas como o Bolsa Família são necessários, mas incentivam a falta de esforço.
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Pesquisa O que querem os brasileiros? Como s e p o s i c i o n a e n t r e dir e i t a e e s q u e r d a ?
Maioridade penal
Legalização da maconha
Us u á r i o d e d r o ga s é criminoso?
Legalização do aborto
Avaliação dos impostos no Brasil
Qu e m a d m i n i s t r a melh o r u m a e m p r e s a ?
Bolsa Família
Vida profissional
Fonte: CEPAC – Empresa de Pesquisa e Comunicação Coordenação: Rubens Figueiredo e Partido Social Democrata 3.000 entrevistados no final de 2011 http://www.psd.org.br/pesquisas
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entrevista
Um pensador na
contramĂŁo
Foto: Acervo pessoal
do politicamente correto
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N u m a m b i e n t e político-cultural dominado pelas teses e s qu e r d i s t a s e pelo politicamente correto, há um i n t e l e c t u a l q ue não perde a oportunidade de expressar s u a d i s c o r d â ncia. Cavalheiro na forma, é firme e direto n o c o n t e ú d o , reduzindo a pó os argumentos de seus a d v e r s á r i o s . Percival Puggina faz questão de mostrar que tem lado. C r i a d o r d a F u ndação Tarso Dutra, presidiu a entidade entre 1 9 9 6 e 2 0 0 4 . Atualmente, publica artigos em jornais e sites d e t o d o o p a í s, além de dar palestras e participar de debates n o r á d i o e n a televisão. Entrevistado pela Horizonte, P u g g i n a a p r o fundou – com a originalidade e o bom humor h a b i t u a i s – s uas análises sobre política e ideologia.
Com a Queda do Muro de Berlim, muitas peças do tabuleiro global foram movidas. À época, intelectuais como Francis Fukuyama afirmaram que a ideologia socialista perderia toda a sua força, com o consequente triunfo do capitalismo e da democracia. Passadas duas décadas desse acontecimento histórico, pode-se dizer que houve precipitação e otimismo demais? Se Fukuyama acreditava no que escreveu era um tolo que não merecia a atenção que lhe foi dada. Se pretendeu ironizar as previsões no Karl Marx no sentido oposto, gastou muito papel para fazer isso. O fato é que nem então, nem agora, se pode afirmar que o capitalismo (bem-sucedido no espaço da economia) seja um triunfante no ambiente político. Que eu tenha notícia, nenhum país o adota em estado puro como política de governo ou de Estado. O que conheço são sistemas que resguardam alguns fundamentos capazes de assegurar liberdade à atividade econômica (respeito à propriedade e à liberdade de empreender), mas atribuem crescentes responsabilidades ao Estado na área social. Em relação ao que se entende por capitalismo, isso resulta numa esquizofrenia. Inúmeros países enfrentam
hoje dificuldades decorrentes do excessivo consumo de recursos pelos poderes públicos. A América Ibérica, por sua parte - Brasil incluído - está muito longe, politicamente, de algo que se possa chamar de adesão racional, consensual, a um sistema de liberdades econômicas e livre iniciativa. O tema da dominação cultural é recorrente em suas palestras e artigos. Qual a diferença entre a estratégica marxista tradicional e a contemporânea, baseada no pensamento gramsciano? E qual é a mais bem-sucedida? A diferença entre ambas é a sutileza no modo de agir. A estratégia concebida por Gramsci envolve o reconhecimento do papel da política e do processo político como forma de estabelecer a hegemonia. Ou seja, enquanto Marx pensava no levante das massas mobilizadas para a luta de classes, Gramsci pensava em fazer cabeças. Marx pensava em armar os braços, enquanto Gramsci queria armar os cérebros pela manipulação e instrumentalização dos meios que agem no campo da cultura. Nenhuma das duas pode ser declarada “bem-sucedida”. Podemos falar de “revolução comunista”, com uso da força, no marxismo-le
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ninismo e assemelhados, e de revolução “para o comunismo” na linha de Antonio Gramsci. A experiência das revoluções comunistas foi um fracasso de renda e público. Dizimou boa parte do público e acabou com a renda. Como a luta de classes encaminha a história dos povos que adotam o comunismo para a necessária vitória incondicional da classe operária, tornase necessário eliminar os inimigos de classe. E lá se foram mais de uma centena de milhões de vítimas. No plano econômico, basta olhar as realidades sociais de Cuba e Coreia do Norte para obter a prova dos nove da incompetência do sistema. É necessário repetir, sempre, que esse sistema, em um século de história não consegue apresentar ao mundo um único estadista, uma única democracia e um único caso de sucesso. A experiência da revolução “para o comunismo” através da conquista da hegemonia no meio cultural ainda está em curso, mas se percebe um avanço efetivo em boa parte da América Ibérica e um avanço mais lento, mas perceptível, no restante do Ocidente. O desinteresse – ou, por vezes, o desprezo – do brasileiro médio pela política agrava essa situação? Que tipo de implicações essa postura causa? É impossível compreender a atitude política dos brasileiros dissociada do que as instituições fizeram com a cabeça dele. As instituições políticas nacionais são de péssimo feitio, produzem rigorosa e inevitavelmente aquilo que vemos e é vã toda tentativa de fazer
com que ela produza resultados diferentes. Desde que me tenho por gente ainda não vi uma legislatura ser melhor do que a anterior em qualquer parlamento. A cada volta do ciclo eleitoral, as relações entre os poderes de Estado se tornam mais comerciais e decadentes. Num contexto assim, parece inevitável que, no meio social, a política cause o que se vê: apatia de muitos e comércio de interesses. Você costuma dizer que, da direita à esquerda, o Brasil está carente de estadistas. Trata-se de um problema geracional? Há uma luz no fim do túnel? Os estadistas existem em estado potencial. O único problema é que levam suas vidas longe dos espaços da política. Nosso sistema de governo e nosso sistema eleitoral são repelentes à participação de uma verdadeira elite política, ou seja, de pessoas qualificadas para as funções de Estado e de governo, capazes de agir em harmonia, para a promoção do bem comum, respeitando valores e guiandose por princípios. Num resumo do resumo, o que pode fazer um estadista num sistema eleitoral em que a mentira ganha de goleada quaisquer disputas que trave com a verdade? Então, a mentira, a falsidade, a demagogia vencem por forfait... O fortalecimento do pensamento politicamente correto diz o que sobre o atual momento da humanidade? Apaga, pouco a pouco, as luzes da razão e reduz, pouco a pouco, os espaços da liberdade.
“A experiência das revoluções com u n i s t a s f o i u m f r a c a s s o d e r e n d a e pú b l i c o . D i z i m o u b o a p a r t e d o p ú b l i c o e acabou com a renda.” 44 | Horizonte | 2º semestre/2013
“Os estad i s t a s e x i s t e m e m e s t a d o potencial. O ú n i c o p r o b l e m a é q u e levam sua s v i d a s l o n g e d o s e s p a ç o s da polític a . “
Trata-se de uma asfixiante ação do Estado sobre o direito de opinar, estabelecida com o intuito de tornar impensável e indizível tudo que possa suscitar divergência em relação aos gostos e desgostos daqueles que o impõem. O “politicamente correto” é um grau refinado do gramscismo como estratégia. E o relativismo, defendido por boa parte da academia e criticado com contundência em suas análises? Esse é um tema que se restringe à seara moral? Como ele pode ser percebido no mundo prático (na cultura, por exemplo)? O relativismo anda de braços dados com o politicamente correto. O inimigo de ambos é a tradição filosófica, religiosa e cultural do Ocidente cristão. É fato conhecido que, contrariando Marx, o comunismo conseguiu se instalar em sociedades arcaicas e desarticuladas do Oriente e fracassou no Ocidente, onde seus pressupostos contradizem nossa tradição cultural. Diante dessa obviedade, tornou-se necessário, aos comunistas, empreender o enfrentamento no plano da cultura, valendo-se, para tanto, da tolerância sempre valorizada pelos democratas e proporcionada pelas democracias. Para esse fim, nada mais conveniente do que difundir a relativização dos valores e a flexibilização dos princípios. Exemplos mais visíveis são o gayzismo militante, a Marcha das Vadias, os ataques sistemáticos aos valores e símbolos cristãos, o ateísmo militante, a Marcha da Maconha, as crescentes franquias legais à
prática do aborto e o manejo do vocabulário no sentido de tornar pejorativas as palavras conservador, anticomunista, cristão e assim por diante. São frequentes as tentativas de suprimir as liberdades individuais no país, e um dos alvos desse esforço é o trabalho independente da imprensa. Até que ponto a patrulha ideológica afeta a sua atividade intelectual? Sinto essa patrulha ideológica em e-mails de leitores para os veículos aos quais escrevo, notadamente Zero Hora e Tribuna da Imprensa. Mas isso é pouco ante o que vejo como política definida em Congresso pelo partido governante. São insistentes os anúncios relacionados com o tal “marco regulatório da mídia”, que outra coisa não é se não uma tentativa de amordaçar a imprensa com a fita adesiva do politicamente correto. O marco regulatório sujeitará a sanções matérias que afrontem o que for ideologicamente definido como correto pelo partido dominante. Certa vez, o Papa João Paulo II disse que o cristão precisa ser um sinal de contradição no mundo. É essa a sua sensação quando escreve na contramão da maré? Creio que quando João Paulo II fez tal afirmação, ele tinha em mente que o enfrentamento contraditório a essa cultura “pós-moderna” seria uma forma de martírio - o que muito provavelmente virá a acontecer. Por enquanto, para mim, é uma tarefa muito divertida em todos os seus aspectos.
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Foto por Gonchoa (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
O modelo de saúde pública adotado no Brasil se provou i n ó c u o , por n ão colocar o dedo n a f e r i da . É preciso corrigir
d i s t o r ç õ e s do financiamento
do sistema, questão elementar para a equação do problema. Depois, coibir o m a u uso dos recursos , que é uma questão bastante complexa, mas não impossível.
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ensaio
Márcio Turra
Médico Urologista. Conselheiro da Sociedade Brasileira de Urologia. Suplente da senadora Ana Amélia Lemos
U n i v e r s a lização
d a s a ú de: um objetivo
O
problema de saúde pública no Brasil é antigo e as soluções caminham a passos lentos demais, para que tenhamos um atendimento eficiente e digno para toda sociedade brasileira. Em termos comparativos, diríamos que o Brasil atingiu três, em uma escala que vai até 10. É muito pouco, para não dizer: pouquíssimo. Os avanços verificados até o momento esbarram em barreiras que parecem intransponíveis, mas que, na verdade, podem ser superadas, com vontade e determinação política. Um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que o número de estabelecimentos na área de saúde passou de 77 mil em 2005
para 94 mil em 2009. Poderíamos dizer que é considerável, embora o aumento ocorra especialmente nos serviços de diagnóstico e tenha diminuído a oferta de leitos para internações hospitalares. Assim, o brasileiro vê diminuir o tempo que gastava de sua casa até serviços de diagnóstico. No entanto, como a maioria destes estabelecimentos é privada, o sentimento geral é de que nada mudou. Definindo o exemplo acima, em outras palavras, diríamos: nada mudou. Damos um passo adiante, na mesma proporção que damos um passo atrás. Não saímos do lugar. O modelo de saúde pública adotado no Brasil se provou inócuo, por não colocar o dedo na ferida. É preciso corrigir distorções do financiamento do sistema,
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questão elementar para a equação do problema. Depois, será preciso coibir o mau uso dos recursos, que é uma questão bastante complexa, mas não impossível. Se conseguirmos realizar com sucesso esses dois quesitos, ainda acreditando que os governos cumpram o que ficou estabelecido com a aprovação da EC29, fatalmente chegaremos à universalização do sistema de saúde. Quando falamos em universalização dá a impressão de que estamos sendo utópicos. Não tem problema. Se utopia é um ideal difícil ou impossível de ser alcançado não deve ser deixado de lado. Pelo contrário. Se buscarmos o sonho utópico, no mínimo, iremos em sua direção e o simples fato de nos direcionarmos na posição correta já será um ganho extraordinário. Imagine, então, se nos aproximarmos dela, por mais impossível que seja o sonho de atingir plenamente o nosso ideal. O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado em 1988. De lá para cá, o país viveu turbulências nas áreas econômicas, políticas e sociais, até chegarmos a um crescimento econômico invejável. O problema consiste em que esse crescimento econômico não se verifica em idêntica proporção no setor de saúde. A política econômica não se altera. São altas taxas de juros, cortes em gastos sociais e a doença crônica do Brasil, que se chama “superávit”. O Estado entende que está “curando” a nação com ele e deixa a sociedade adoecer por causa dele. Pelo que já foi dito aqui, entendemos que faltam investimentos no setor de saúde e é uma verdade incontestável. Só que o problema não se restringe ao volume de investimentos, mas – e principalmente, o que deve ser investido. Questão que se resolve com gerenciamento, compromisso e responsabilidade social. O problema não é só falta de dinheiro. É preciso saber o que priorizar e como priorizar.
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O fato é que não podemos ser país de primeiro mundo com uma saúde de quarta ou quinta categoria. De nada adianta a qualquer nação do planeta ser a primeira economia do mundo e ter emergências superlotadas, pessoas morrendo por falta de atendimento ou mesmo sem acesso adequado a uma simples consulta. A força econômica de um país se mede também no atendimento social, em que a saúde é um dos mais importantes segmentos. O Brasil se orgulha (e nós, brasileiros, também) do atual estágio de nossa economia. O país é rico, está “nadando” em dinheiro, mas em relação aos equipamentos de alta tecnologia só tem acesso quem tem condições de pagar. Enquanto o sistema de saúde for pobre, de nada adiantará a riqueza de uma nação. Veja o caso dos equipamentos de ressonância magnética. Entre 27 países, o Brasil está entre os primeiros a oferecer o serviço para quem tem plano de saúde. Quando a comparação é feita pelo sistema público (SUS) o Brasil cai para penúltimo lugar, ficando à frente apenas do México. Então, como podemos nos orgulhar de termos uma economia saudável com uma saúde tão doentia? É impossível concebermos que, em pleno ano de 2012, tenhamos ainda de conviver passivamente com discrepâncias da oferta de atendimento. Enquanto no Sudeste existem 4,3 médicos para mil habitantes, no Norte tem apenas 1,9. Óbvio que sem plano de carreira, mal remunerados e sem condições dignas de trabalho, ainda que com número crescente de recém-formados, os Médicos preferem se estabelecer nos grandes centros. Em 2007, o IBGE fez um levantamento sobre o total de gastos privados no setor de saúde brasileiro e chegou a um índice de 58% do total investido. O setor público participou com apenas 42%, o que é inconcebível
Foto por Alex E. Promius, Licença Creative Commons Attribution 2.0
O s i s t e m a d e saúde brasileiro está atrasado e evolui m u i t o d e v a g a r. Não acompanha as transformações d o m u n d o e muito menos as mudanças sociais que s e v e r i f i c a m no próprio país. para um país que adota sistema público universal de saúde e assiste passivamente o setor privado garantindo a maior fonte de financiamento. Enquanto o governo investe 42%, outros países, também com Sistema Público Universal, investem até o dobro, como é o caso do Reino Unido (87,4%), ou França (79,7%), Itália (77,1%), Espanha (72,5%) e Canadá (70,4%). O sistema de saúde brasileiro está atrasado e evolui muito devagar. Não acompanha as transformações do mundo e muito menos as mudanças sociais que se verificam no próprio país. A taxa de natalidade do Brasil já é semelhante à dos países mais ricos do mundo. A informação é da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), que alerta para um rápido envelhecimento da população brasileira trazendo novas necessidades de planejamento, direcionamento das políticas de saúde e reavaliação do sistema previdenciário. Assim, para uma ou duas décadas à frente, que as políticas de saúde pública deveriam já estar direcionadas. E, na verdade, ficamos chocados ao constatarmos que as políticas não conseguem atender as necessidades atuais, quanto mais às futuras. Não podemos mais tratar a questão de saúde pública como gasto, como déficit, prejuízo. Saúde é também para a economia geradora de emprego e renda.
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entrevista
Jair Soares: uma vida pública de
retidão
J a i r d e Oliveira S oares recebeu a equipe da Horizonte em s u a c a sa, na Zona Sul de Porto Alegre. Quadro histórico d o P a r tido Progressista, ch egou ao topo da vida pública g a ú c h a, sendo eleito governador do Estado em 1984. Sua r i c a t r ajetória inclui ainda passagens como ministro da P r e v i d ência e da Assistência Social, secretário estadual d e S a ú de, diretor do Departamento Estadual de Compras, d e p u t a do federal e vereador de Porto Alegre. F o r a m mais de duas horas e meia de entrevista, marcadas p o r l i ç ões de vida, opiniões firmes e uma memória que traz e v e n t o s distantes como se tivessem ocorrido na véspera. O s m e lhores trechos e as fotos desse bate-papo podem ser c o n f e r idos com exclusividade pelos leitores da revista.
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Fundação Tarso Dutra | 51 Fotos por Redação Horizonte
Descoberta da vocação pública
“A vocação pública é algo inato em uma pessoa. Em todas as atividades, ela sobressai naturalmente, sem saber que está liderando. Foi assim no primário, quando fui presidente do Grêmio Estudantil Tuiuti, em uma eleição direta em que votaram todos os alunos. Na PUCRS, onde presidi o Centro Acadêmico. No esporte, aconteceu a mesma coisa, liderando, organizando, dando a palavra de incentivo. Quem tem vocação pública se dedica mais ao trabalho. Quando meu pai abria a porta para o quintal e olhava, ele dizia: ‘Hoje foi o Jair quem varreu’. Eu não só varria a sujeira como desenhava tipo Copacabana com a vassoura. Era assim também no galinheiro, onde ele sabia que não teria nenhuma titica de galinha e que a água e o milho seriam colocados. Dentro de casa eu também liderava. Meu pai trabalhava e, na ausência dele, eu era o chefe da família.”
Qualidades de um líder
“Um líder, um homem ousado não deixa passar cavalo encilhado. O fator sorte representa 95% do sucesso, sobrando 5% para a preparação que é preciso ter. O gestor político também não pode ser um especialista, mas um generalista. Quem manda tem que saber um pouco de tudo, senão não tem condições de cobrar.”
Aprendiz do governador Euclides Triches
“O governador Triches era militar e começava o expediente às 8h da manhã. Eu estava lá às 7h30. Ele chegava e apertava a campainha: um toque era o chefe de gabinete, dois toques era o oficial de gabinete, três toques era a datilógrafa e redatora. Ele viu que não tinha ninguém, e aí fui eu lá. Eu era um guri. Ele me recebeu na porta, eu apertei a mão dele e ele falou: ‘O senhor é o Jair Soares?’. Eu disse que sim, e ele: ‘Vamos fazer uma experiência.’ Ele virou as costas e foi embora. Deram para mim uma série de atividades, incluindo datilografia, no que eu era bom e ligeiro, e o álbum de recortes de jornal. Eu comecei a enfeitar, fazendo uma espécie de moldura com um lápis bicolor. Logo me destaquei. O governador mandou perguntar qual era meu cargo e responderam que eu era funcionário requisitado para o gabinete. Aí ele me promoveu para auxiliar de gabinete. Eu tinha uma coisa: quando alguém me dizia algo, eu nunca dizia ‘isso não dá’ ou ‘vou ver’. Eu respondia ‘sim, senhor’”.
Carta branca do governador Peracchi Barcellos
“Eu estava bem na vida, tinha meu carro zero, era dono do meu nariz, com casa financiada pela Caixa. Fui subindo meus degrauzinhos
“Um líder, um homem ousado não deixa passar cavalo encilhado. O gestor político também não pode ser um especialista, mas um generalista. Quem manda tem que saber um pouco de tudo, senão não tem condições de cobrar.” 52 | Horizonte | 2º semestre/2013
Foto por Redação Horizonte
um por um. Aí o Peracchi, após ser eleito, me chamou no escritório de transição e disse: ‘Quero ver tu negar. Tu vai ser o presidente da Comissão de Compras’. Eu respondi que aceitaria, mas queria centralizar, sistematizar as contas. Ele topou, mas antes de eu sair, ele me chamou: ‘Guri, fecha a porta. Se alguém roubar, tu vai pra cadeia’. Eu respondi: “Olha, governador, depois que o senhor disse isso, eu vou precisar de carta branca’. Ele respondeu que eu teria e completou: ‘Sem problemas, quando quiser, traz o decreto pra eu assinar’. Quando cheguei com o decreto pronto, o governador perguntou: ‘Onde eu assino?’. Um secretário se espantou e perguntou: ‘Mas o senhor não vai ler?’. Ele respondeu: ‘Não, esse guri eu conheço desde pequeno’. Ele assinou e nem leu.”
Colocando a casa em ordem
“Quando comecei na Comissão de Compras, o Estado tinha apenas uns 5 fornecedores. Essas empresas vendiam de tudo. Alguém que estava registrado na Junta Comercial como comerciante de armarinhos e miudezas vendia desde o vaso noturno até as lâmpadas fluorescentes. O Estado levava seis meses para pagar, então os fornecedores cobravam 8 cruzeiros por um quilo de manteiga. No mercado, o mesmo produto era vendido por 2,50 cruzeiros. Era uma loucura. Aí eu tive de meter a mão em tudo, concentrando todas as compras do Estado, inclusive para a Brigada Militar. Depois de um tempo, consegui reduzir o preço de tudo. O impacto foi tão forte que o governador citava isso nos discursos.”
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Aparecendo de surpresa
“Na Comissão de Compras, estranhei que um cidadão estivesse vendendo 11 mil quilos de carne de primeira sem osso por um preço excessivamente baixo. Comparando com o açougue, a diferença era enorme. Eu desconfiei e fui ver a entrega, que ocorria por volta das 4h da manhã. Fiquei observando de longe e, logo após o produto ser recebido, cheguei de surpresa e perguntei: ‘Foi entregue a carne?’. O rapaz disse que sim, mas nem sabia quem eu era. Eu me apresentei: ‘Sou Jair Soares, presidente da Comissão de Compras e quero inspecionar’. Quando ele abriu a caixa, a primeira camada era carne de primeira sem osso, mas o resto era tudo carne de pescoço. Tornei o fornecedor inidôneo, ele e muitos outros. Não tinha como perdoar.”
Rigor que não abre exceções
“Eu tinha autorização para retirar todos os veículos do serviço público que estivessem sendo usados para outras funções. E aí eles eram repassados para a Brigada Militar ou a Polícia Civil. O primeiro caso que deu foi justamente com o secretário de Saúde. Um amigo dele me
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ligou pedindo para rever a decisão. Eu fui claro, disse que o carro estava em missão de turismo, indo para a praia. Pensei que o Peracchi ia me chamar, mas não chamou. O carro foi apreendido.”
Secretário que mudou a saúde do Estado
“Nós erradicamos a varíola e controlamos a paralisia infantil, difteria, tétano, coqueluche, sarampo, caxumba e rubéola. Também controlamos a epidemia de meningite meningocócica. Introduzimos a vacina BCG intradérmica, que se tornou obrigatória, através de leis, para crianças que se matriculam na 1ª série. Fizemos um laboratório farmacêutico, que distribuiu um número elevadíssimo de medicamentos.”
Um governo de realizações
“O trinômio do nosso governo foi saúde, educação e segurança. Eu dizia nos comícios, pelo interior do Estado: ‘Quero uma cidade mais humana e sem medo’. Havia 33 mil brigadianos no Rio Grande do Sul. Só em Porto Alegre, tínhamos 4.200 no dia a dia. Hoje, não
“O trinôm i o d o n o s s o g o v e r n o f o i s a ú d e , educ a ç ã o e s e g u r a n ç a . E u d i z i a n o s comícios, p e l o i n t e r i o r d o E s t a d o : ‘ Q u e r o uma cida d e m a i s h u m a n a e s e m m e d o ’ . “
tem nem mil, mesmo com a população bem maior. Durante a minha gestão, fiz 5 mil salas de aula. Isso equivale a cem colégios Júlio de Castilhos ou cem colégios do Instituto de Educação. Em 1986, investimos em educação 28,29% acima do mandamento constitucional. Isso sem fazer qualquer empréstimo. Não endividei o Estado, mas paguei a dívida das outros. Às vezes parece que eu ainda estou no governo. Eu sei de tudo e acompanho todos os poderes.”
Subordinado e chefe
“Quando você é subordinado, é preciso saber o seu lugar. Não pode ir além da chinela ou virar papagaio de pirata. A humildade é algo fundamental. Você é o segundo, faz a coisa certa e garante que apareça apenas o titular. Aí que você faz a sua poupança. O cara sabe que não fez aquilo, mas o seu auxiliar, que não falhou. E ele é elogiado por isso. Se o goleiro é bom, você não pode dar para o governador bater o pênalti. Se ele for frangueiro, é preciso ter certeza que o governador bate bem o pênalti. O segundo tem que ser o para-choque do primeiro, absorver e assumir tudo o que está errado. Para ser primeiro, tem que conhecer, saber mandar, não pode comer pela mão dos outros, nem tocar de ouvido.”
Corrupção e suas raízes
“Na origem da corrupção está a impunidade, que vem crescendo. Há duas leis tipicamente brasileiras: a Lei de Gerson, em que todo mundo dá o jeitinho, e a Lei de Murphy, em que
tudo que você acha que não vai dar certo não dá mesmo. A grande verdade é que não proveram os órgãos de controle adequadamente, então eles não acompanham a evolução da modernidade. Eles estão desaparelhados.”
Transparência e exemplo
“Guardo em casa quatro pastas pretas com todos os gastos, dia por dia, no Palácio Piratini, inclusive pedágio para ir para a praia. Não é fácil ser governador, mas esse tipo de postura te dá autoridade moral. A minha agenda diária era publicada, as pessoas sempre sabiam onde estava o governador, hora por hora. A transparência é fundamental.”
Respeito aos recursos públicos
“Governar é contrariar interesses. Para aplicar a lei em sua exatidão, é preciso contrariar interesses de diversas pessoas. Tem gente que se acha acima do bem do mal. E eu dava o exemplo. Acabei com as mordomias no Palácio. Fizemos só duas jantas pagas oficialmente: uma para o presidente do Uruguai e outra para o do Brasil. É fundamental administrar a coisa pública como se fosse tua. Na época do Governo, minhas filhas reclamavam da escuridão no Palácio, pois eu sempre apagava as luzes. Eu dizia que a conta quem pagava era o povo, não nós, então era preciso economizar. Uma vez cheguei para o chefe da mordomia e disse que não ia ter mais comida para ninguém no Palácio, que eu ia pagar do meu bolso. O ajudante de ordens que estava em serviço ia comer, mas eu que ia pagar.”
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ensaio
Miguel Peracchi
Diretor Administrativo-Financeiro da Fundação Tarso Dutra
O sentid o d a v i d a
e a política
G
rande parte da população brasileira não quer nem falar de política – muito menos participar dela. Esse é um dos principais motivos que levam pessoas despreparadas e sem ética a exercerem o poder público. Votamos em qualquer um, por qualquer motivo. Até mesmo anulamos o voto, pensando ser um gesto de protesto. O fato é que, em todas as eleições, pessoas serão eleitas. A maioria delas, no entanto, não tem competência, tampouco vocação, para exercer a nobre função de servir a sociedade – cuidando dela e preservando os valores intrínsecos para que se faça acontecer o bem comum. Os responsáveis por essa situação são justamente aqueles que se dizem indiferentes à política. Este ensaio inicia com uma reflexão sobre o sentido de nossa vida. Ele se sobrepõe às nossas preocupações habituais – como saúde, alimentação, vestuário, moradia, conforto, lazer, viver a vida e, para os envolvidos na política, a próxima eleição.
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Com efeito, ninguém pediu autorização para nos colocar no mundo. Nossa existência não nos foi proposta, mas sim imposta. Diante da perspectiva da morte, nos questionamos o sentido de tudo isso. Entramos na seara filosófica, mas o homem foi feito para pensar, e é o único ser que tem consciência de seu pensamento. Ganhamos a vida de presente. Não a recebemos pronta e acabada da mesma forma que uma peça de roupa, que só precisamos pegar e vestir. Temos de viver a vida e construí-la. Isso nos custa, dá trabalho e causa dificuldades. Olhando ao seu redor, o homem nota profunda diferença entre si e os demais seres da criação. Os outros seres tem toda sua vida resolvida e guiada por mecanismos instintivos e vivem em harmonia com a natureza. Embora não tenham consciência disso, os animais vivem completamente realizados. O homem se sente à parte na criação e superior a ela, pois a domina e a usa. Ele raciocina, inventa e cria – e os atributos que lhe permite esta superioridade são a razão e o livre arbítrio.
Foto por Kenji Wang (Flickr), Licença Creative Commons Atribuição 2.0
G a n h a m o s a vida de presente. Não a recebemos pronta e a c a b a d a d a m esma forma que uma peça de roupa, que só p r e c i s a m o s p egar e vestir. Temos de viver a vida e construíl a . I s s o n o s c usta, dá trabalho e causa dificuldades.
O homem aspira ser feliz. Esse é um desejo inerente ao seu ser. A maior parte das nossas ações é para alcançar a felicidade. O homem faz planos e estabelece objetivos, mas quando chega a atingi-los, a felicidade obtida é passageira. Ocorre que a felicidade passageira não nos satisfaz. Sentimos necessidade de algo que nos dê satisfação permanente. E continuamos nessa busca pela vida afora até sermos interrompidos pela morte.
Em determinado momento de suas vidas, algumas pessoas começam a pensar: qual o sentido de tudo isso? Buscamos a felicidade duradoura, e o que encontramos são somente momentos de felicidade e satisfação. Vemos que há tanto sofrimento e que um dia a vida termina. Qual o sentido do sofrimento? Qual o sentido de uma vida que acaba?
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Para que o homem não se sinta um absurdo, é necessário que a vida continue para sempre. Isso nos leva a pensar que deve existir algo eterno que proporcione ao homem o que ele busca e lhe garanta a continuidade da vida. Mas o que seria esse algo? Entre nossos contemporâneos, muitos se perguntam: “Para que vivemos? O que perseguimos na vida? Prestígio, fama, afirmação pessoal, riqueza, poder, prazer?” Muitos se deixam arrastar pelo turbilhão dos acontecimentos. Alguns estão dentro da canoa levada pela correnteza dos modismos da época. No passado, o homem tinha as mesmas ambições de nosso tempo. Poder, prestígio, fama e glória eram procurados com a mesma intensidade dos dias atuais. O mistério não está presente apenas na existência do homem. Antes disso, a evolução da espécie e a origem da Terra, do Sistema Solar e do Universo também estão envoltas em um enigma. Buscamos saber tudo. É próprio do homem – que é, afinal, um ser nascido com intelecto filosófico. A grande pergunta: de onde surgiu o Universo? E a vida? A teoria do “boom” inicial, do átomo primordial, seria obra do acaso? A conclusão está em Deus. Deve existir um princípio eterno que deu origem ao Universo e a todas as coisas. A esse algo eterno damos o nome de Deus Intimamente, aceitamos a sua existência. E como seria este Deus? Deve ser anterior ao tempo; portanto,
eterno. Deve ser poderoso e onipotente, considerando a dimensão do Universo. Deve ser tremendamente sábio: o pouco que nossa ciência conseguiu estudar sobre a natureza nos deixa maravilhados com a constituição íntima do ser e as leis que regem harmoniosamente a vida. Também deve ser pessoal, pois somos pessoas e o pessoal não pode originar do impessoal. Deus não é algo, mas alguém. Deus é o princípio de todas as coisas e o causador de tudo, inclusive de nossa vida. Na sua infinita sabedoria ao criar tudo, Deus tinha uma intenção. Qual poderia ser o sentido da existência se não correspondermos à intenção pela qual fomos criados? Se Deus no criou com uma finalidade, nossa razão verdadeira de existir é ser fiel a essa finalidade, cumprindo assim a vontade dEle. E qual é essa vontade? Devemos descobrir. O real sentido da vida é descobrir a vontade de Deus a nosso respeito e cumpri-la. Se não procuramos descobrir, certamente não estamos suficientemente conscientes. Por outro lado, se descobrimos e não cumprimos como atitude existencial, estaremos frustrando nosso maior anseio. Supondo que queiramos corresponder à intenção pela qual fomos criados, como descobrir a vontade de Deus? Como conhecê-Lo? Que podemos saber dEle? Olhando com os olhos abertos para a natureza, podemos intuir alguma coisa de Deus. Porém, a maneira mais direta é
O real sentido da vida é descobrir a vontade de Deus a n o sso respeito e cumpri-la. Se não procuramos descobrir, c e r t amente não estamos suficientemente conscientes. Por o u t ro lado, se descobrimos e não cumprimos como atitude existencial, estaremos frustrando nosso maior anseio.
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através da revelação. Ele toma a iniciativa e comunica sua vontade às criaturas livres e inteligentes. Essa revelação primeiro se deu através de um povo escolhido, os profetas hebreus. Depois, completa e diretamente por Jesus Cristo, que é a palavra de Deus personificada, o verbo encarnado. Está aí a chave do segredo. Na encíclica Fé e Razão, João Paulo II diz: “A fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de conhecer a Ele, para que, conhecendo-o e amando-o, possa chegar também à verdade plena de si próprio”. Nascemos de Deus e voltaremos para Deus – não somos os donos absolutos de nossa existência para fazer de nossas vidas o que bem entendermos. Temos a liberdade, sim, mas haverá um prestar de contas do uso que dela fizemos – quer queiramos ou não. Todos temos de passar pela mesma porta, a morte, e nem sequer sabemos quando. Deus nos criou para felicidade, e ela é encontrada na vida em sintonia com a verdade. Ela é revelada na vivência do Evangelho e na busca da civilização do amor, quando todos os homens estarão em paz no amor de Deus. Se a essência do homem é ser imagem de Deus, seu agir também há de ser correspondente, de acordo com o ensinamento dos filósofos: “o agir é consequência do ser” ( operari sequitur esse). Temos, assim, a tríplice relação do homem com o Absoluto: ontológica, porque dEle recebeu o ser; lógica, porque conhece
essa relação; e moral, por saber, no recesso da consciência, que deve submeter-se ao querer de Deus, para sua melhor realização. Apesar dessas considerações filosóficas, não atingimos a realidade íntima e última do homem. Só teologicamente compreendemos de fato a sua grandeza e o mistério que Ele é. Como está escrito no Catecismo da Igreja Católica, “Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação”. Concluindo, o homem no exercício do sentido da sua vida tem na política um terreno fértil para fazer a vontade de Deus. Ali, usa seus dons para o bem, fazendo com que a sociedade preserve os valores que a revelação de Cristo nos comunica. Desde o momento que fomos gerados no ventre de nossa mãe até o momento que deixamos a vida, dependemos e necessitamos da política. Afinal, tudo o que rege a sociedade humana emana das leis que são feitas por políticos para normatizar e regular a vida. Por fim, defendo a doutrina conservadora do Partido Progressista, porque lá encontro os princípios da Doutrina Social Cristã no programa que é pregado por seus pensadores. Esforçamo-nos para que os eleitores se deem conta de que nossa proposta de sociedade é a que mais ajuda a solucionar os problemas que enfrentamos. Nossa logomarca não é uma flor, não é uma árvore, não é uma chama, não é uma ave, não é qualquer coisa material. É a figura de um ser humano com sua mãos voltadas para céu. Isso reflete o sentido do transcendente para a realização da felicidade humana, mostrando a liberdade que temos de fazer o bem e nunca ser escravos do mal.
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ensaio
Marco Aurélio
Ferreira
Conselheiro da Fundação Tarso Dutra e Chefe de Gabinete da senadora Ana Amélia Lemos
Br a s i l:
c h e g amos ao
O
brasileiro é um otimista por natureza. Mesmo com todas as dificuldades vividas durante anos de inflação e instabilidade social, o brasileiro nunca perdeu a esperança de que viveria dias melhores. Na década de 40, quando o austríaco Stefan Zweig cunhou a famosa expressão “Brasil, país do futuro”, a nação ganhou um mantra que, mais tarde, passaria a ser repetido em todas as classes sociais. Esse futuro, cantado em prosa e verso por nossos poetas, relatado em discursos por políticos habilidosos e sonhado por cada brasileiro, parece estar em nossas vidas nos dias atuais. A ascensão e a estabilidade econômica, construídas com muito trabalho por diversos governos, permitiram aos brasileiros um momento ímpar perante a economia mundial. Planos de inclusão social e de renda tornaram realidade o sonho da casa própria e a segurança de uma
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futuro? renda familiar. O desenvolvimento econômico abriu novas vagas de trabalho e o mercado passou a buscar profissionais em diferentes setores. Apesar de problemas crônicos, como corrupção e violência, o país que se apresenta ao mundo de forma diferente, neste século XXI, é um Brasil democrático, forte economicamente, dinâmico e criativo. Porém, alguns políticos ligados ao atual governo parecem querer reescrever a história, exagerando na divulgação de afirmações positivas sobre o momento que vivemos, no que parece uma tentativa de se tornarem protagonistas únicos. Assim, espalham no ar uma euforia irreal, como se nunca antes na história do Brasil tivéssemos vivido uma fase tão boa economicamente, e destacam ainda que a crise se restringe a outros países, mas... Ao analisarmos o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), nos deparamos com uma realidade diferente,
pois neste parâmetro da Organização das Nações Unidas (ONU) que utiliza indicadores de educação, saúde e renda para uma vida digna, e uma das principais referências sobre desenvolvimento humano, o Brasil ocupa a 85ª posição em um ranking composto por 187 países e territórios. Estimativas recentes divulgadas pela própria presidente da República, Dilma Rousseff, revelam que 700 mil famílias ainda estão à margem de políticas estatais. Cálculos feitos por especialistas contestam esses números pois alegam que é muito baixo o patamar de renda per capita do brasileiro, de R$ 70, definido pelo governo federal, para determinar quem vive em pobreza extrema. Segundo o relatório da ONU, os avanços sociais dependem essencialmente de políticas estruturais de longo prazo. O país tem como grande desafio diminuir a distância que separa os mais ricos dos mais pobres. Além desse, outros desafios precisam ser vencidos. Vivemos um momento de estabilidade econômica, de números recordes na produção agrícola e desenvolvimento industrial considerável, mas a alta carga carga tributária e o Custo Brasil são obstáculos ao dinamismo de nossos empreendedores. A globalização derrubou fronteiras e acelerou a competitividade no setor privado ,mas ainda não acabou com a burocracia governamental que atrapalha nosso desenvolvimento . Um dos sinais mais claros de alerta chegou com
o anuncio do PIB de 2012, que indicou um crescimento econômico de apenas 0,9%, muito abaixo dos tempos em que nosso PIB crescia a uma taxa média de 10 % ao ano entre 1968 e 1973. Apesar disso, o Brasil tem demonstrado ao mundo que, além de futebol e carnaval, pode exportar produtos e serviços de elevado grau tecnológico, como urnas eletrônicas e sistemas bancários eficientes. Grandes ideias têm feito parte de nosso cardápio. É importante lembrar que o planeta estará de olho em nosso país nos próximos anos. Eventos como a Copa do Mundo e as Olimpíadas trarão para cá a mídia mundial. Nesse contexto, muitas oportunidades se abrem para nossa economia, aliadas a grandes desafios que definirão qual nossa imagem perante as demais nações. Não podemos acreditar que chegamos ao ponto máximo, mas certamente subimos alguns degraus. A caminhada é longa e precisará de prosseguimento. Afinal, a parte de nosso hino que diz “deitado eternamente em berço esplêndido” não serve mais para um país que pode ser pego de surpresa pela complexa dinâmica da economia global. As perspectivas para o país são boas, mas investimentos em políticas estruturantes, como educação e infraestrutura, por exemplo, são fundamentais neste momento. Otimismo é sempre bom, mas, em excesso, pode atrapalhar.
Vivemos um momento de estabilidade econômica, de números recordes na produção agrícola e desenvolvimento industrial considerável, mas a alta carga carga tributária e o Custo Brasil são obstáculos ao dinamismo de nossos empreendedores.
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reportagem
Go v e r n o T a r s o :
maiúsculo em discurso, minúsculo e m r e a l i z a ç ã o
N
o final de 2012, em respeito aos eleitores, o Partido Progressista elaborou um documento manifestando sua opinião e suas preocupações com o desempenho administrativo e político do governo de Tarso Genro. O PP conclui que o despreparo gerencial, o imobilismo diante das questões do Estado e a irresponsabilidade fiscal comprometem o futuro do Rio Grande do Sul. Há um verdadeiro abismo entre o Plano de Governo, aliado ao generoso discurso de campanha petista, e o que efetivamente vem sendo feito. A gestão do PT é um governo de muitas promessas, muitos anúncios, mas de poucas realizações. Um governo que se ouve e se lê, mas não se vê e nem se sente. Um governo de papel: maiúsculo em discurso, minúsculo em realização. A preocupação do PP-RS não se atém apenas à má gestão administrativa e política do governo. É também em relação ao comportamento do governador. Em diversas ocasiões, Tarso abriu mão do protagonismo que o cargo exige na defesa dos interesses
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I m p r e n s a PP maiores do Estado, incluindo a distribuição dos royalties do pré-sal e a disputa dos produtos gaúchos com os argentinos. Ao mesmo tempo, assume compromissos financeiros de longo prazo que ultrapassam o limite de sua gestão, chegando até a 2018. Além disso, questões como aparelhamento partidário, desequilíbrio das contas, baixo investimento e excesso de gastos com o serviço da dívida, já diagnosticadas no primeiro ano, tiveram sequência e foram agravadas. O descontrole das contas públicas estaduais é motivo de grande preocupação. O Rio Grande do Sul corre o risco de voltar a ter déficit crônico. Ao analisar a situação deste ano, as projeções futuras, os compromissos assumidos e as dívidas e os empréstimos contraídos, projeta-se chegar em 2014 com um déficit de R$ 4 bilhões. Evitar o aumento do déficit público é uma tarefa que precisa ser priorizada pelo governo. Deveria ser seu primeiro dever, mas isso não está ocorrendo. Há, sim, muita gastança e irresponsabilidade. O Estado apresenta um desequilíbrio estrutural de suas contas. Os governos costumam optar entre dois caminhos: ou não cumprem vinculações constitucionais rela-
Foto por Fabrício Marcon (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
A tudo isso, o governador Tar so assiste impassível . N ã o s e vê um movim e n t o . Ao contrário: o que há é omissão e imobilismo . Um levantam e n t o objetivo dem o n s t r a que as prome s s a s d e campanha, em s u a grande maior i a , n ã o foram honrad a s . H á muito discurso e pouca realização .
cionadas a saúde, educação e tecnologia, por exemplo; ou cumprem-nas e correm o risco de formar um grande déficit. A atual gestão, no entanto, não cumpre as vinculações e, mesmo assim, amplia o déficit. A tudo isso, o governador Tarso assiste impassível. Não se vê um movimento. Ao contrário: o que há é omissão e imobilismo. Um levantamento objetivo demonstra que as promessas de campanha, em sua grande maioria, não foram honradas. Há
muito discurso e pouca realização. Como justificar que, do R$ 1,889 bilhão orçado para investimentos em 2012, apenas R$ 643 milhões, ou 34%, tenham sido empenhados até 30 de novembro? Trata-se de um valor inferior aos R$ 882 milhões aplicados em 2011 e muito menor do que o R$ 1,864 bilhão de 2010. Essa situação põe o Estado como o terceiro pior colocado na relação entre investimentos e Receita Corrente Líquida (RCL). E isso
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traz perdas concretas. Pela estimativa da Agenda 2020, o Rio Grande do Sul deixa de faturar anualmente R$ 13,8 bilhões por falta de investimentos em infraestrutura. Se há projetos, cronogramas e dinheiro, é possível definir como má vontade do governo o fato de o pagamento da Consulta Popular não ser realizado. Até agora, menos de 30% da dotação
determinada nos orçamentos de 2011 e 2012 foram pagos. Além de não bancar compromissos assumidos com mais de um milhão de eleitores que participaram da iniciativa, Tarso retirou, por decreto, R$ 95 milhões votados e inseridos no orçamento. Na área da segurança pública, foram aplicados menos de 20% dos investimentos previstos. Como consequência, os gaúchos
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É um governo de muitas promessas, muitos anúncios, mas de poucas realizações. Um governo qu e se ouve e se lê, mas não se vê e nem se sente. Um governo de papel.
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estão reféns da insegurança. A região metropolitana de Porto Alegre conta com uma média de 27 homicídios para cada 100 mil habitantes, número três vezes maior do que o contabilizado na Grande São Paulo. E mais: houve um aumento de 21,2% na comparação com 2011. O terror também está espalhado nos pequenos municípios do interior, que sofrem com constantes ataques a bancos. A falta de investimentos também castiga a educação. Ficam no ar algumas questões: onde está o dinheiro para a área, se até os minguados repasses para a manutenção financeira das escolas estaduais sofrem atrasos? E o piso do magistério prometido na campanha eleitoral, algo que rendeu muitos votos ao então candidato? Em nenhum momento, o governo fez qualquer gesto na direção de cumprir o piso ou na busca de condições ou negociações com este objetivo. Pelo contrário: tomou iniciativas jurídicas para não pagar. Em dois anos de governo, muito pouco foi feito para melhorar a saúde dos gaúchos. Existem projetos e intenções, mas as propostas ficaram no papel. O orçamento da pasta foi criado com o objetivo de alcançar os 12% estabelecidos por lei. No entanto, retiradas as contribuições de assistência médica ao IPERGS, a saúde representa apenas 10,26% do montante. O desentrosamento entre partido e setores do governo, com demissões e acusações graves de lado a lado, demonstra claramente que a prioridade não foi o andamento de projetos e obras coletivas, mas o aparelhamento partidário. Na verdade, o governo patrocinou uma crescente onda de desordem políticoadministrativa em área importante para o desenvolvimento. No período em que foi oposição, o PT bradava aos quatro cantos que os projetos
apresentados em regime de urgência limitavam as possibilidades de discussão. À época, alegavam que esse subterfúgio cerceava o processo democrático, retirando o poder e a autonomia da Assembleia Legislativa. Agora, à frente do Piratini, Tarso encaminhou 80% de seus cerca de 400 projetos em regime de urgência. No governo anterior, esse percentual foi de 43%. O Estado deve servir a sociedade, e não a si próprio – menos ainda aos partidos que estão no poder. A preocupação do PP com o inchaço da máquina pública realizado pelo atual governo se justifica por números: entre janeiro de 2011 e dezembro de 2012, o governo contratou 661 CCs (cargos em comissão). Também efetivou 1.409 funcionários em contratos emergenciais – ou seja, sem concurso. Muito embora a valorização salarial e profissional dos servidores públicos seja uma bandeira histórica do PP, o partido questiona o fato de o governo petista ter reajustado salários dos servidores até o final de 2018. Ao invés de enfrentar a questão no escopo de seu mandato, Tarso empurrou os maiores percentuais de aumento para o futuro governo (20152018). Tal situação gera diversas dúvidas. Como saber qual será o cenário econômico daqui a seis anos? Haverá alteração no ICMS na chamada Reforma Tributária? E se a inflação for alta, os aumentos serão suficientes? Como esperar de um servidor o estímulo e a busca de produtividade sendo que, desde já, sabe o que receberá em 2018? São fatos que preocupam e que inspiram reflexões. O principal objetivo da avaliação feita pelo PP é responder, como um partido de oposição, seu compromisso com a sociedade. Trata-se de uma obrigação de apontar equívocos e fiscalizar os atos de governo, preservando o interesse do Rio Grande.
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O Brasil é constitucionalmente uma R e p ública Federativa . A Federação é principio legal, mas n ã o é real . Como podemos ter uma Federação real se insistimos em manter a c e n t r a l ização do poder e dos recursos em Brasília?
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ensaio
Celso Bernardi
Presidente do Partido Progressista do Rio Grande do Sul
É t empo d o
A
município
democracia brasileira deu uma demonstração de maturidade nas eleições municipais de 2012. Em 5.568 municípios, 481.446 pessoas se dispuseram a competir por um cargo eletivo de prefeito, vice-prefeito e de vereador. Como resultado desse memorável evento democrático, em 1º de janeiro deste ano, 5.568 prefeitos com seus respectivos vices e 57.422 vereadores assumiram seus cargos, simbolizando a esperança de tornar realidade os sonhos de milhões de eleitores. Com a posse dos novos gestores e legisladores municipais começou uma nova relação entre os eleitos e os eleitores. De um lado os eleitos que precisam resgatar os compromissos assumidos na campanha, pois honestidade política é, antes de mais nada, cumprir o prometido. De outro lado, os eleitores, que devem fiscalizar e acompanhar atos de gestão, pois sendo a participação característica essencial da democracia não é lógico admitir que esta
se encerra com o voto no dia de eleição, ficando o cidadão de “férias” por quatro anos. As eleições demonstram que, mesmo com algumas imperfeições, a democracia brasileira está consolidada. O que precisamos agora é construir uma Federação de verdade, pois sem ela não há República, como bem disse Tancredo Neves. O Brasil é constitucionalmente uma República Federativa. A Federação é principio legal, mas não é real. Como podemos ter uma Federação real se insistimos em manter a centralização do poder e dos recursos em Brasília? Como falar em Federação se há um desequilíbrio na distribuição dos recursos em comparação com os encargos atribuídos aos municípios? Como reconhecer a Federação se desconhecemos a subsidiariedade, o principio básico do federalismo, que consiste em não transferir a um ente maior o que pode ser feito pelo ente menor?
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Em razão disso, estimulamos no Brasil o princípio da peregrinagem, que consiste na ida de prefeitos a Brasília, de pires na mão, para tentar trazer de volta um pouco dos recursos gerados no seu próprio município. A Federação não é respeitada quando a União, de forma unilateral, legisla e baixa medidas sobre a política salarial e regime de trabalho dos servidores de estados e municípios ou quando faz desonerações setoriais de tributos sem a devida compensação aos entes Federados. Em razão desta inaceitável avidez do Poder Central, os municípios foram transformados, a um só tempo, em “primos pobres” e em “costas largas”, aos quais muito se demanda sem que lhes sejam dados as condições financeiras para o respectivo atendimento. Afinal, que Federação é esta em que parte expressiva da receita federal deixou de ser os impostos repartidos entre os entes federados e passou a ser as contribuições, sem previsão constitucional de rateio? Há consenso que essa excessiva centralização gera várias mazelas, inclusive a mais vergonhosa de todas, que é a corrupção, facilitada pelo trânsito dos recursos públicos. Precisamos levar em conta que, nos países desenvolvidos, o poder local controla na ordem de 50% dos recursos, enquanto que, nos em desenvolvimento como o Brasil, esse controle não chega a 20%. Esse modelo provoca uma crise estrutural e torna difícil a gestão municipal. Se não vejamos: do total da receita de 2012, que superou a 1,5 trilhões só 6% são arrecadados e do domínio dos municípios; a esse percentual somamse 9,5% de transferências obrigatórias, determinadas pela Constituição e outros 5% ou 6% (dependendo do ano) através de transferências voluntárias que são
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os famosos convênios com a União, que mantêm 393 programas. Essa participação é bem-vinda, mas deveria primeiramente, ser maior, além de duas outras questões: a burocracia infernal e a contrapartida. Exemplifico: no Programa das Creches, a União oferece os recursos para a construção e as prefeituras têm que contratar os funcionários e custear o funcionamento. Esse tipo de contrapartida é difícil para muitas gestões. É de se destacar, ainda, que aos gestores municipais se exige cumprimento dos percentuais de educação e saúde e da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), enquanto que ao poder central se permite manobras e maquiagens contábeis para alcançar suas metas. Por tudo isso é chegado o tempo de a sociedade pressionar por uma maior valorização do poder local. Começa por reconhecer que vivemos no município, que é a única comunidade concreta. Reconhecer que o município é o grande agente social pelas ações redistribuídas e pela democratização das decisões, na medida em que o cidadão pode interferir na escolha das prioridades e exercer melhor o controle da aplicação dos recursos. Completa-se pela consciência de que o prefeito é quem melhor conhece a realidade e a partir dela tem as melhores condições de aglutinar e articular ações e ferramentas que objetivam o bem comum, tais como diálogo, parceria e uso do capital social. No entanto, para que o prefeito possa corresponder aos verdadeiros interesses da comunidade é urgente que se repense o pacto federativo, assegurando uma melhor distribuição de poder e de recursos aos municípios. A necessidade de reforma federativa é consenso, tanto na opinião da sociedade, como dos agentes políticos. Por que,
Foto por Everton Amaro, Licença Creative Commons Attribution 2.0
O p r e f e i t o é quem melhor conhece a realidade e a p a r t i r d e l a t e m as melhores condições de aglutinar e a r t i c u l a r a ç õ es e ferramentas que objetivam o bem c o m u m , c o m o diálogo, parceria e uso do capital social. então, ela não avança, mesmo com todo o esforço das lideranças municipalistas? Ocorre que a “cultura” do Governo Federal é por repassar os recursos através de transferências voluntárias (convênios, emendas etc...) no lugar de repassá-los com critérios estabelecidos em lei. Isso submete os entes inferiores (estados e municípios) a uma dependência pontual tanto administrativamente quanto política. É a substituição dos princípios republicanos pelo “poder” da caneta e do Diário Oficial. Neste sentido, quero relembrar, respeitosamente, aos nossos congressistas, que muitas vezes são também sufocados pelo poder Central, o significado de mandato. Deriva-se do latim mandatum – mandare – composto de manus dare (mãos dadas) que exprime o contrato entre duas vontades. Uma dando a outra incumbência; outra recebendo-a e aceitando-a. Tecnicamente significa dar poder (Plácido e Silva).
Na relação política, os eleitos recebem o poder para realizarem a vontade dos eleitores. O prefeito recebe o poder para realizar a vontade de seus munícipes. Para andar de mãos dadas com eles. Mesmo com todos os conhecimentos e ativos favoráveis, o prefeito terá enormes problemas para atender as justas necessidades do povo, em razão do arremedo de Federação que temos. Por isso, cabe aos parlamentares federais atenderem a vontade de seus eleitores, colocando seus mandatos a serviço de reformas estruturais que sejam capazes de ampliar e facilitar o acesso de recursos financeiros aos municípios. É tempo do município, é tempo de revisar o Pacto Federativo. Essa deve ser a grande prioridade dos parlamentares. Ao finalizar, cito o sociólogo colombiano José Bernardo Toro: “Toda ordem social é criada por nós. O agir ou não agir de cada um contribui para a formação e consolidação da ordem em vivemos”.
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entrevista Acervo pessoal
“Ser p r e f e i t o é o c a r g o m a i s e s p i n h o s o da vid a p o l í t i c a b r a s i l e i r a , m a s o q u e perm i t e t e r o m a i o r n í v e l d e s a t i s f a ç ã o ao co n s e g u i r c o n c r e t i z a r p a r t e d o s sonh o s d a c o m u n i d a d e . ” 70 | Horizonte | 2º semestre/2013
Otimismo:
o novo legado de Pelotas À frente da terceira maior cidade do Estado, Adolfo Fetter Jr. desenvolveu um governo transformador e reconhecido nacionalmente. Após terminar seu segundo mandato e fazer o sucessor, o ex-prefeito de Pelotas (2003-2012) respondeu a perguntas da redação da Horizonte.
Sua trajetória inclui passagens como vereador, deputado federal, secretário de Estado e, nos últimos anos, prefeito de Pelotas. Qual foi a principal diferença entre administrar um município e as outras atividades públicas? No Legislativo, se tem maior liberdade de posicionamento e de ação. Mas, por outro lado, menor possibilidade de concretização das ideias, de torná-las realidade. Isso ocorre porque se trabalha na elaboração e análise de legislação, ou na fiscalização e acompanhamento das ações do governo. O Legislativo, para mim, foi uma grande escola, não apenas pelo contato direto com a realidade, mas por ter a oportunidade de conviver com as demandas da população e ser seu porta-voz no Parlamento. No Executivo, ao contrário, a cobrança é direta e permanente, especialmente em nível local, onde o prefeito tem de responder não apenas pelas responsabilidades municipais, mas por tudo o que afeta o cidadão – mesmo que seja de responsabilidade estadual ou federal. No Executivo, diariamente se tem de lidar e enfrentar os mais diversos tipos de
problemas, escolher prioridades entre alternativas e torná-las realidade, lidando sempre com recursos escassos e demandas concretas e importantes para a vida comunitária. Ser prefeito é o cargo mais espinhoso da vida política brasileira, mas o que permite ter o maior nível de satisfação ao conseguir concretizar parte dos sonhos da comunidade. Existe uma identidade compartilhada entre os prefeitos do Partido Progressista? Que característica une a todos, independente de tamanho do município ou região do Estado? O PP historicamente tem conseguido eleger o maior número de prefeitos no Estado. Isto se deve, primeiramente, à qualificação de suas lideranças locais e ao reconhecimento da comunidade. Um dos grandes méritos do partido no RS tem sido o de atrair e manter essas lideranças locais em praticamente todas as regiões do Estado. De outra parte, a gestão progressista tem se revelado realizadora, sendo a competência e o trabalho marcas inquestionáveis da atuação de nossos prefeitos.
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Pelotas viveu um período de grandes dificuldades, muitas delas tidas como insolúveis. Quais foram os maiores desafios quando você assumiu? O desafio foi o de fazer mais com menos. Ou seja, Pelotas dispunha de um orçamento insuficiente para o atendimento adequado de suas demandas cotidianas e para fazer investimentos. Para se comparar, em 2005, eram R$ 600 por habitante/ano, enquanto a média das prefeituras do RS tinha o dobro disso. Foi preciso regularizar a situação financeira da Prefeitura (pagamento de atrasados vultosos, como precatórios, dívidas de 20 anos com a iluminação pública ou o INSS). Ao mesmo tempo, se trabalhava na redução de custos e aumento de receitas, sem aumentar a tributação, e na elaboração de projetos para buscar recursos de fora para os investimentos necessários. Hoje, o orçamento próprio mais do que dobrou e, contados os investimentos com recursos obtidos em diversos programas (Banco Mundial, ProTransportes, ProMob, Monumenta e PAC, especialmente), ele triplicou. Como foi possível reverter ou atenuar esse cenário? Quais foram as principais medidas tomadas pela administração? Os primeiros três anos de administração (2005 a 2007) foram duríssimos. Foram voltados para colocar a casa em ordem, pagar ou renegociar dívidas, e preparar a municipalidade para acessar recursos de financiamentos ou programas estaduais e federais. Assim, quando a situação financeira se equilibrou, tínhamos projetos e nos habilitamos a aprovar outros que haviam sido elaborados na época
das vacas magras. Austeridade, controle rigoroso das despesas e planejamento foram os elementos-chave que possibilitaram o início de um círculo virtuoso de realização de obras e qualificação de serviços. Saímos do círculo vicioso de estagnação e baixos investimentos, quando a Prefeitura mal dava conta dos serviços essenciais e do dia a dia da comunidade. O seu trabalho na Prefeitura Municipal de Pelotas se tornou um case de gestão. Ganhou diversos prêmios e obteve reconhecimento estadual e nacional. Qual foi o segredo da sua administração? Não tem um único segredo, mas uma combinação de trabalho árduo, muita dedicação, uma equipe ampla e coesa e a aplicação dos princípios básicos consagradas na administração: planejamento, organização, comando e controle. Também acreditar sempre, inovar e ousar, sem temer o insucesso, acreditando que daria certo essa combinação de fatores. Os resultados obtidos, nos mais diversos setores, foram consequência disso e o reconhecimento também. Qual o legado que a sua gestão deixou para Pelotas? Como você compara o “antes” e o “depois”? O maior legado que possa ter deixado foi a retomada na credibilidade da administração municipal pela população, servidores e fornecedores. De outra parte, a elevação da autoestima da população, que voltou a acreditar na sua terra e na possibilidade de enfrentamento de problemas históricos e sua superação.Claro que não resolvemos tudo, nem a maior parte
“Antes, os pelotenses estavam desacreditados e desmotivados com a sua cidade. Hoje, se respira confiança e otimismo.“ 72 | Horizonte | 2º semestre/2013
Fotos: Acervo pessoal
Gestão multipremiada • • • • • • • •
S e i s a n o s s e g u i d o s f i n a l i s t a e d e s t a q u e n o Prêmio Gestor Público (Sindifisco e Afisvec) T r ê s v e z e s P r e f e i t o E m p r e e n d e d o r ( S E B R AE) T r ê s v e z e s P r e f e i t o A m i g o d a C r i a n ç a ( A B RINQ) D u a s v e z e s P r e f e i t o I n o v a d o r ( M B C ) , e m nível nacional 2 ° l u g a r n o I X P r ê m i o E d u c a ç ã o p a r a o T r ânsito (Denatran) P r ê m i o C i d a d e E f i c i e n t e , n a c a t e g o r i a S a n eamento (Eletrobrás, em 2011) D e s t a q u e e m B o a s P r á t i c a s d e S u s t e n t a b ilidade pelo Plano Cicloviário Urbano (MMA) A d m i n i s t r a d o r P ú b l i c o d o A n o n o R S ( C o n selho Regional de Administração, em 2010)
do déficit histórico acumulado em décadas de investimentos insuficientes, mas se cristalizou a consciência de que melhoramos e podemos fazer isto. Antes, os pelotenses estavam desacreditados e desmotivados com a sua cidade. Hoje, se respira confiança e otimismo. Ainda temos enormes desafios pela frente e será necessário o esforço de uma ou duas gerações para chegarmos aonde necessitamos estar. Mas sabemos que a estagnação e o pessimismo foram superados. Acreditamos que isso vai nortear o futuro de nossa terra. Neste ano, muitos progressistas estrearam no Executivo Municipal. Qual a grande lição que você pode transmitir a eles? Em resumo: inicie trabalhando como se estivesse sempre no último ano de seu mandato; reduza ao máximo as despesas correntes (há muito desperdício e perdas no funcionamento
da máquina pública); busque receitas de fora do município (para o que precisará estar atento aos programas federais e estaduais) e verifique possibilidades de ampliar a arrecadação dos poucos tributos municipais; esteja sempre atento às fiscalizações e procure respondê-las rápida e documentadamente; mantenha bom relacionamento com a Câmara de Vereadores e a imprensa; e procure estar sempre atento às reclamações e reivindicações da comunidade. Enfim, convença-se de que terá muito menos poder do que imagina, mas será cobrado permanentemente por tudo que acontecer no município. Tenha bom assessoramento, especialmente técnico e jurídico, pois vai ter que responder a inúmeros questionamentos. O prefeito não pode tudo, e muito do que deseja fazer depende dos outros. Mas, sem ele e sua permanente atenção, as coisas tendem a não acontecer.
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Foto por Agência Senado
“Somos um partido conservador, mas no sentido de conservar as conquistas que tivemos em nossa sociedade até agora.”
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reportagem
Ana A m é l i a assume presidênc i a d a
F undação Milton Campos
A
primeira reunião da Executiva do Partido Progressista nacional sob o comando do senador Ciro Nogueira oficializou a senadora Ana Amélia como a nova presidente da Fundação Milton Campos. O presidente Ciro Nogueira, do Piauí, abriu a reunião destacando a intenção de que os encontros sejam periódicos para o planejamento dos rumos da sigla. Em seguida, ressaltou que devido à importância e organização do PP no Rio Grande do Sul, o Diretório Gaúcho continuará com a presidência da fundação, agora com Ana Amélia na direção. No Estado, os progressistas têm 132 prefeitos, 115 viceprefeitos e 1.168 vereadores. Contam ainda com sete deputados estaduais e seis federais. Na sua primeira fala como presidente da Fundação, a senadora gaúcha destacou a importância do cargo que está assumindo e exaltou o trabalho do antecessor, exministro Francisco Turra. Ana Amélia também agradeceu a oportunidade e
I m p r e n s a PP reforçou o empenho para fazer uma boa gestão. “Como diz o presidente Ciro Nogueira, somos um partido conservador, mas no sentido de conservar as conquistas que tivemos em nossa sociedade até agora”, declarou a senadora. Durante os discursos, além das congratulações a Ana Amélia, foi tema recorrente a necessidade de fortalecimento da sigla. Para isso, é preciso que o partido eleja temas prioritários ao país, declararam progressistas como o deputado Toninho, o Padre Zezinho, o deputado Esperidião Amin e o ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro. “O primeiro desafio é escolher essas bandeiras. Esse é o papel da Fundação”, enfatizou Ciro Nogueira. O deputado Esperidião Amin, de Santa Catarina, foi confirmado como vicepresidente da Fundação Milton Campos. Parlamentares e lideranças do PP, entre elas o senador Benedito de Lira, de Alagoas, a presidente do PP Mulher, Beth Tiskoski e o secretário nacional, Aldo Rosa, participaram do encontro.
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ensaio
Francisco Turra
Presidente da União Brasileira de Avicultura (UBABEF) e ex-ministro da Agricultura
Agricultura: do r u d i m e n t o à tecnologia
A
vida me presentou com dois privilégios incomuns para uma única pessoa. Nascido numa pequena comunidade do interior de Marau, fui criado vivendo a natureza por dentro – desde seu estado mais puro, mais intocável, mais essencial. Matas fechadas, cachoeiras escondidas, riachos translúcidos. Ali conheci a atividade primária em seu estágio mais artesanal. Era a agricultura braçal – dos braços do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos e dos meus próprios. A agricultura do arado de bois, da enxada, da foice, do picão. Esse cenário compunha um mundo de inocência. A boa inocência humana, mas também uma perigosa inocência produti-
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va. Era a ideia de que, tão-somente com as mãos, com a força de vontade e com alguns rudimentos, conseguiríamos vencer na vida e criar nossos filhos. O suor nos bastava – o lavoro! –, mas não imaginávamos as exigências que o mundo iria por no caminho de quem trabalha no campo. Nem de longe. Mas também tinha ali muito de virtude: a virtude de quem trabalha ao invés de só achar desculpa. A virtude de quem ajuda a si mesmo estendendo a mão ao próximo. A virtude de quem coopera para colocar o pão de cada dia na mesa. A virtude de quem, acima de tudo, tem fé. Foi assim que se desenharam alguns dos capítulos mais afetivos da minha vida, na antevéspera de ir para a cidade, estudar, comprar o meu primeiro Fusca e formar
Sejam g r a n d e s , sejam médios , sejam p e q u e n os produtores, todos podem e têm o direito de desenvolver n ovas técnicas de produção . E para isso não é preciso perder a essência das lições que aprendemos lá em nossos primórdios .
Foto por Tom Goskar, Licença Creative Commons Attribution 2.0
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minha família. São lembranças que ainda arrepiam o pelo deste meu “couro curtido” – como cantou Telmo de Lima Freitas. É o primeiro privilégio de que falei. A segunda oportunidade que tive foi o de ganhar o mundo da vida. Depois de vivenciar esse chão mais simples, muito cedo pude descobrir novas possibilidades, enfrentar grandes desafios, conhecer pessoas interessantes e visitar lugares nos quatro cantos do planeta. Eis que aquele menino virou ministro da Agricultura e, agora, um executivo do setor de frangos. Ao longo dos anos, adquiri experiências de alto significado pessoal e profissional. Conheci, então, o que de mais moderno possa existir no agronegócio mundial. Acompanhei de perto iniciativas exitosas de aproximar o produtor da tecnologia.
Presenciei propriedades multiplicando seu faturamento com a adoção de técnicas apuradas. Vi alguns governos ajudando, e outros tantos atrapalhando o produtor. Li e me aprofundei na área. Hoje, sou um pouco daquilo e um pouco disso. Guardo em mim aquele marauense simples, menino do campo, que não desgrudou de suas origens e continua valorizando a mesma essência de alma que nossas famílias nos ensinaram – honestidade, caráter, lealdade, trabalho duro. E o outro tanto de mim é este apaixonado pelo agronegócio em que me tornei. Tive a graça de poder tomar iniciativas concretas, ajudar pessoas, estimular setores, incentivar a cooperação, estar ao lado dos produtores, buscar alternativas, derrubar barreiras, abrir mercados.
Foto por Roger Mateo Poquet, Licença Creative Commons Attribution 2.0 Foto por Paul-W (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
Um país vocacionado para produzir alimentos como o B rasil não pode acomodar-se a práticas antigas, de uma p r o dução pouco mecaniz ada, tecnologicamente atrasada e s e m planejamento. Isso não pode acontecer sob nenhum pretexto, muito menos por ideologia.
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O p r o d u t o r r u ral brasileiro é o maior e mais verdadeiro a m b i e n t a l i s t a que existe. E é isso o que sabemos e p r e c i s a m o s f azer: produzir alimento para a humanidade, a g r e g a r v a l o r , gerar renda.
Se me permitem fazer essa autorreflexão, hoje sou uma espécie de caixeiro viajante, um embaixador do agronegócio mundo afora, especialmente da área de frangos. Sou o produto de uma grande mudança: da civilização do rudimento para a civilização da tecnologia. Vivemos esse processo na própria pele, seja na sua dureza, seja na sua beleza. E o grande desafio que se apresentou, ao longo das últimas décadas, está exatamente em alcançar o ponto ótimo entre essas duas realidades. Não podemos mais querer aquela agricultura da inocência. Pelo menos, não no que se refere aos negócios. Se antes o horizonte do produtor não passava de alguns quilômetros, hoje o mundo é o limite. Um país vocacionado para produzir alimentos como o Brasil não pode acomodar-se a práticas antigas, de uma produção pouco mecanizada, tecnologicamente atrasada e sem planejamento. Isso não pode acontecer sob nenhum pretexto, muito menos por ideologia. Com ousadia, precisamos, queremos e podemos cada vez mais. Sejam grandes, sejam médios, sejam pequenos produtores, todos podem e têm o direito de desenvolver novas técnicas de produção, agregar valor ao produto e comercializar com mais rentabilidade. E para isso não é preciso perder a essência das lições que aprendemos lá em nossos primórdios. Como homem público, aproveitei as oportunidades que tive para ajudar nessa direção. Mesmo com minhas falhas humanas aqui e acolá, creio que consegui con-
tribuir de maneira relevante. Lembro do Pronaf, que instituí em minha gestão no Ministério da Agricultura – uma conquista histórica para o setor primário brasileiro. Recordo também de quando conseguimos o certificado de liberação da febre aftosa na OEA, em 2008, que deixou boquiabertos muitos descrentes de então. Foi capa de jornal, notícia em todos os telejornais. O zoneamento agroclimático foi outro marco: começamos a executá-lo de modo a municiar o produtor de informações mais seguras para o plantio e a colheita. O Moderfrota, por sua vez, gerou um verdadeiro boom no setor de máquinas e implementos agrícolas, além de modernizar as propriedades. Nesse mesmo sentido, houve ainda a Lei de Proteção de Cultivares. Começamos, desde lá, a andar pelo mundo e a vender o Brasil sem medo, participando das grandes feiras internacionais. O poeta William Cowper escreveu que “Deus fez o campo, e o homem fez a cidade”. E, agora, concluo eu que as duas obras se completam. A Parábola dos Talentos já havia ensinado que a nós cabe aperfeiçoar e multiplicar a criação divina. Até porque não existe ninguém mais apaixonado pela natureza do que quem vive e sobrevive dela. O produtor rural brasileiro é o maior e mais verdadeiro ambientalista que existe. E é isso o que sabemos e precisamos fazer: produzir alimento para a humanidade, agregar valor, gerar renda. Sem perder o “campo” de Deus, mas agregando um pouco da “cidade” dos homens.
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Era repetido como um mantra : o Brasil estava fadado ao fracasso e não teria futuro caso não houvesse uma reforma agrária .
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ensaio
Marco antonio
Villa
Historiador. Professor da Universidade Federal de São Carlos. Bacharel e licenciado em História, mestre em Sociologia e doutor em História
A falácia da
O
reforma agrária
tema da reforma agrária dividiu o país durante décadas. Desde os anos 1940 foi um dos assuntos dominantes do debate político e considerada indispensável para o desenvolvimento nacional. Diziam que a divisão das grandes propriedades era essencial para a industrialização, pois ampliaria, com base nas pequenas propriedades, o fornecimento de gêneros alimentícios para as cidades, diminuindo o custo de reprodução da força de trabalho e acabando com a carestia. Por outro lado, o campo se transformaria em mercado consumidor das mercadorias industrializadas. Ou seja, o abasteci-
mento dos centros urbanos, que estavam crescendo rapidamente, e o pleno desenvolvimento da indústria dependiam da reforma agrária. Sem ela não teríamos um forte setor industrial e a carestia seria permanente nos centros urbanos, além da manutenção da miséria nas áreas agrícolas. E, desenhando um retrato ainda mais apocalíptico, havia uma vertente política da tese: sem a efetivação da reforma agrária, o país nunca alcançaria a plena democracia, pois os grandes proprietários de terra dominavam a vida política nacional e impediam a surgimento de uma sociedade livre. Era repetido como um mantra: o Brasil estava fadado ao fracasso e não teria futuro caso não houvesse uma reforma agrária.
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Os anos se passaram e o caminho do país foi absolutamente distinto. A reforma agrária não ocorreu. O que houve foram distribuições homeopáticas de terra segundo o interesse político dos governos desde 1985, quando foi, inclusive, criado um ministério com este fim. Enquanto os olhos do país estavam voltados para a necessidade de partilhar as grandes propriedades – marca anticapitalista de um país que não admira o lucro e muito menos o sucesso – o CentroOeste foi sendo ocupado (e parte da Amazônia), além da revolução tecnológica ocorrida nas áreas já cultivadas do Sul-Sudeste. O deslocamento de agricultores, capitais e experiência produtiva especialmente para o Centro-Oeste ocorreu sem ter o Estado como elemento propulsor. Foram agricultores com seus próprios recursos que migraram principalmente do Sul para a região. Como é sabido, falava-se desde os anos 30 em marcha para o Oeste, mas nada de prático foi feito. E, quando o Estado resolveu fazer algo, sempre acabou em desastre, como a batalha da borracha, nos anos 1940, ou, trinta anos depois, com as agrovilas, na Amazônia. O épico deslocamento de agricultores do Sul para o Centro-Oeste até hoje não mereceu dos historiadores um estudo detalhado. De um lado, devido aos preconceitos ideológicos; de outro, pela escassez ou desconhecimento das fontes históricas. Como todo processo de desbravamento não ficou imune às contradições – e isto não ocorreu apenas no Brasil. Foram registrados sérios problemas em relação ao meio ambiente e aos direitos humanos, em grande parte devido à precariedade da presença das instituições estatais na região. Com a falência do modelo econômico da ditadura, em 1979, e a falta de perspec-
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tiva segura para a economia, o que só ocorrerá uma década e meia depois, com o Plano Real, as atenções do debate político ficaram concentradas no tema da reforma agrária, mas de forma abstrata. O centro das discussões era o futuro dos setores secundário e terciário da economia. O campo só fazia parte do debate como o polo atrasado e que necessitava urgentemente de reformas. Contudo, a realidade era muito distinta: estava ocorrendo uma revolução, um fabuloso crescimento da produção, que iria mudar a realidade do país na década seguinte. Entretanto, no Parlamento, os agricultores não tinham uma representação à altura da sua importância econômica. Alguns que falavam em seu nome ficaram notabilizados pela truculência, reforçando os estereótipos construídos pelos seus adversários. É o que Karl Marx chamou de classe em si e não para si. Os agricultores, na esfera política, não conseguiam (e isto se mantém até os dias atuais) ter uma presença de classe, com uma representação moderna, que defendesse seus interesses e estabelecendo alianças com outros setores da sociedade. Pelo contrário, sempre estiveram, politicamente falando, correndo atrás do prejuízo e buscando alguma solução menos ruim, quando de algum projeto governamental prejudicial à sua atividade. Hoje, o Brasil é uma potência agrícola, boa parte do saldo positivo da balança comercial é devido à agricultura, a maior parte da população vive no meio urbano, a carestia é coisa do passado, a industrialização acabou (mesmo com percalços) sendo um sucesso, o país alcançou a plena democracia e não foi necessária a reforma agrária. A tese que engessou o debate político brasileiro durante décadas não passou de uma falácia.
Foto por Rede Brasil Atual (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
Os olhos d o p a í s e s t a v a m v o l t a d o s p a r a a necessi d a d e d e p a r t i l h a r a s g r a n d e s proprieda d e s – m a r c a a n t i c a p i t a l i s t a d e um país q u e n ã o a d m i r a o l u c r o e m u i t o menos o s u c e s s o .
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reportagem
Choremos
Em 1929, o país tinha se consolidado como o celeiro do mundo e estava entre as dez maiores economias do globo. Hoje, contenta-se com a medíocre 27ª posição.
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por ti,
Argentina
Q
Redação Horizonte
uem vai hoje a Buenos Aires volta, na bagagem, com impressões contraditórias entre si. A capital portenha ostenta um vistoso patrimônio arquitetônico, tem uma vida cultural marcante e oferece ótimas opções de lazer – como o celebrado Puerto Madero. A sensação, por alguns instantes, é de visitar algum recanto da Europa. Por outro lado, a sombra da decadência ganha cada vez mais terreno. Há sujeira nas ruas, predominância de prédios antigos sobre novidades imobiliárias e escassez de produtos básicos como roupas de inverno, liquidificadores e medicamentos. Não se percebe por lá, como em qualquer metrópole brasileira, o desenvolvimento e seus impactos no cotidiano de uma população. O estágio atual de Buenos Aires é sintomático de um processo que vem devastando a Argentina em todas as suas esferas. Em 1929, o país tinha se consolidado como o celeiro do mundo e estava entre as dez maiores economias do globo. Hoje, contenta-se com a medíocre 27ª posição. A renda per capita, que já foi a oitava no começo do século passado, caiu para a 57ª colocação em 2008. Os tempos de prosperidade, como evidenciam os números, definitivamente passaram. Trata-se de um caso semelhante
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Foto por n i f (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
Foto por ¡Que comunismo! (Flickr), Licença Creative Commons Attribution 2.0
Foto por TV Brasil, Licença Creative Commons Attribution 2.0
S e a demagogia, o isolamento da comunidade global, o d e s r e speito aos preceitos democráticos, a intimidação à i m p r e n sa e a opção reiterada pelo receituário heterodoxo n a economia já tinham ido longe demais no governo de Néstor Kirchner , chegaram agora a um patamar i n s ustentável sob o comando de sua herdeira política .
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ao de um jovem promissor que não soube canalizar seu potencial para a carreira profissional. A história da nação sul-americana é uma sucessão de afrontas às instituições, golpes de Estado e guerras civis. Com o início do governo de Juan Perón, em 1946, a política da nação sulamericana ganhava um elemento que se faz presente até hoje: o populismo. Apoiado pelos argentinos, o caudilho trouxe para si as rédeas da economia. Colocou em prática um programa agressivo de redistribuição de renda, aumentou os gastos governamentais, passou por cima do direito de propriedade dos cidadãos e estimulou a indústria com subsídios e medidas protecionistas. O economista Mailson da Nóbrega enxerga uma relação direta entre a recente expropriação da YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales) pelo governo atual e o legado deixado por Perón. Em artigo publicado na revista Veja, o ex-ministro da Fazenda do Brasil expressa seu inconformismo: “A reestatização da YPF é mais um elo na cadeia de equívocos da gestão econômica argentina há quase sete décadas. Custa crer que um país tão rico em recursos naturais, dotado de uma população bem-educada e de trabalhadores qualificados, que já conheceu o sucesso, não consiga livrar-se da praga do populismo.” O episódios envolvendo a empresa espanhola é mais um da novela que ganha contornos mexicanos a cada decisão da presidente Cristina Kirchner – não por menos apelidada de “la loca”. É sob esse prisma que devem também ser vistas as declarações “anti-imperialistas” da chefe de Estado argentina em relação à posse das Malvinas. “A Argentina vai de mal a pior, e Cristina está tentando tapar o sol com a peneira. Ela quer encobrir os problemas argentinos e distrair o povo”, avaliou o cientista político americano David Fleischer no jornal O Globo.
Se a demagogia, o isolamento da comunidade global, o desrespeito aos preceitos democráticos, a intimidação à imprensa e a opção reiterada pelo receituário heterodoxo na economia já tinham ido longe demais no governo de Néstor Kirchner, chegaram agora a um patamar insustentável sob o comando de sua herdeira política. Na tentativa de iludir os cidadãos argentinos e mascarar a decadência do país, o governo manipula os índices de inflação – que, segundo economistas independentes, inspiram preocupação. “A Argentina está no caminho do inferno”, declarou o escritor Marcos Aguinis em entrevista ao jornal Folha de São Paulo. “Falam em crescimento econômico ‘chinês’, mas aumentou a pobreza, há decadência educacional, problemas em saúde, as favelas e o narcotráfico cresceram. Há aumento da anomia, com piquetes e bloqueios por todos os lados”, relata Aguinis. Não bastassem todas as trapalhadas cometidas, a presidente Cristina Kirchner desperta paixões e fanatismos, atraindo por onde passa uma legião de seguidores. A idolatria é presente sobretudo entre as populações mais carentes, que dependem de programas assistencialistas, e os sindicatos, cujos dirigentes têm controle de parte do orçamento social do governo. Tal como um tango argentino, há ainda bastante espaço para o sentimentalismo. E nisso a presidente é especialmente habilidosa: promove o culto à personalidade de seu falecido marido com bordões como “Nestor vive”, força uma identidade com Eva Perón, derrama lágrimas de crocodilo e reúne multidões para se mostrar popular. Como disse Barão de Itararé, “de onde menos se espera, é daí que não sai nada”. Os próximos capítulos da novela argentina ainda não passaram, mas já é possível prevê-los.
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reportagem
Foto por Aleph (Wikimedia), Licenรงa Creative Commons Attribution 2.0
De direita, de saia e sem afetamento 88 | Horizonte | 2ยบ semestre/2013
Q
Redação Horizonte
uem estuda a história da humanidade se depara com personagens que parecem saídos de um livro de ficção. Não é preciso, porém, ir longe – seja no tempo ou no espaço – para comprovar essa realidade. Há pouco mais de cinco décadas, um homem que fazia campanha com uma vassoura em mãos foi levado pelo povo ao Palácio do Planalto. E, depois de empossado, proibiu o uso de biquíni nos concursos de miss e condecorou o guerrilheiro Che Guevara com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. Na última década, um político que disputou as eleições presidenciais fez greve de fome para denunciar uma suposta perseguição política; outro, também presidenciável, chegou a descer do palanque onde discursava para, literalmente, tratar a socos e pontapés aqueles que o vaiavam. No campo da direita, tão carente de defensores na vida pública do país [reportagem na página 38], o comportamento caricatural é, senão predominante, bastante frequente. O vácuo representativo, não raras vezes, acaba sendo preenchido por tipos maluquetes que ganham projeção à base de polêmicas, modos extravagantes e noções duvidosas sobre a democracia.
Quem é a primeira-ministra alemã? No m e c o m p l e t o Idade Cidade natal Estado civil Mandato Partido Religião Formação Outros cargos
Angela Dorothea Merkel 57 anos Hamburgo Casada S e g u n d o , s e n d o p r i m e i r a -ministra desde 2005 U n i ã o D e m o c r a t a - C r i s t ã (centro-direita) Luterana Física-química M i n i s t r a d o M e i o A m b i e n te, Conservação da Natureza e S e g u r a n ç a N u c l e a r e M i n istra das Mulheres da Juventude P o d e r E l e i t a p e l a F o r b e s a m u l her mais poderosa do mundo
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À frente da maior economia de seu continente em um momento de intensa crise na União Europeia, Merkel trouxe para si a liderança de todo o bloco. A mulher mais pode rosa do mundo, segundo a revista Forbes, é conservadora assumida e esclarecida, mas não tem afetamento nem segue estereótipos.
Não é isso o que ocorre em outras nações, e muito menos na Alemanha, como bem exemplifica a primeira-ministra Angela Merkel. A mulher mais poderosa do mundo, segundo a revista Forbes, é conservadora assumida e esclarecida, mas não tem afetamento nem segue estereótipos. Integrante do partido União Democrata-Cristã, faz questão de mostrar suas credenciais ideológicas. Apoia a livre iniciativa, reconhece o legado dos valores judaico-cristãos e aponta o fracasso do multiculturalismo em seu país. À frente da maior economia de seu continente em um momento de intensa crise na União Europeia, Merkel trouxe para si a liderança de todo o bloco. Também pudera: em meio a tanta balbúrdia e vizinhos que, mesmo endividados, não curam a síndrome de Tio Patinhas, a Alemanha se tornou uma ilha de prosperidade e de controle fiscal. E o reconhecimento pelo bom trabalho não tardou a aparecer. Em seu segundo mandato, a chanceler é a líder política mais popular do país, de acordo com pesquisa realizada em abril pela emissora ARD. A personalidade de Angela Merkel é assunto corrente na imprensa internacional. Descrita como política fria por alguns jornalistas, a primeira mulher a chefiar um governo na história da Alemanha também costuma revelar outro lado. “Ela tem um excelente senso de humor e frequentemente sorri, mas as pessoas não sabem o que está por trás de seu sorriso mais do que o da Monalisa”, escreve o periódico britânico The Telegraph.
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Objetiva e determinada, Merkel consegue agregar ainda o papel de mediadora, tendo reconhecimento e credibilidade internacional. “A força dela é mais a de unir forças poderosas na sociedade, tornando soluções sem ter uma posição irredutível”, avaliou Nils Diederich, cientista político da Universidade de Berlim, à emissora portuguesa RTP. O jogo de cintura durante as negociações também é apontado como algo marcante por Frederick Studemann, editor do periódico britânico Financial Times. “Ela sabe como jogar o jogo mais longo – esperando por rivais e adversários tropeçarem. Parte disso é, sem dúvida, de sua própria personalidade, discreta de conto de fadas, nortista pé no chão e cientista de cabeça fria que pensa bastante e só depois age – uma imagem que ela também explora ao máximo em se apresentar como uma política honesta e direta ao ponto”. Por trás da chanceler com fama de durona, está uma senhora que não abre mão de atividades que fazem parte do cotidiano de uma pessoa comum. Prova disso é que a primeira-ministra segue fazendo suas próprias compras e pega fila no mercado de seu bairro. Talvez venha daí o rigor com que ela gerencia o orçamento de seu país. Outro dado peculiar é o fato de comumente servir café ou chá àqueles que visitam seu gabinete. O perfil da chanceler alemã, de acordo com o The Telegraph, ecoa passagens distantes de sua biografia. “Ninguém con-
Foto por Roberto Stuckert Filho, Presidência da República
segue ler sua mente, um talento que ela desenvolveu enquanto crescia na Alemanha Oriental como a filha de um pastor luterano”, informa a reportagem. A repressão do governo comunista exigiu dela uma capacidade de agir de forma pragmática e sem chamar atenção. Angela Merkel nasceu em Hamburgo, mas cresceu em Brandemburgo, que integrava a República Democrática Alemã. Sob influência do pai, as crenças de origem religiosa tiveram um papel determinante na formação de seu pensamento político – algo que a acompanha até hoje. Com tudo para seguir uma carreira acadêmica, graduou-se em Física na cidade de Leipzig, onde trabalhou na Academia das Ciências e obteve doutorado.
Mas foi com a Queda do Muro de Berlim, em 1989, que a cientista descobriu sua verdadeira vocação. Logo após o esfacelamento do regime autoritário, Merkel assumiu a função de porta-voz do governo eleito democraticamente. O próximo passo se deu de forma rápida, quando chefiou o Ministério da Família, Idosos, Mulheres e Juventude e, depois, do Meio Ambiente. Em 2000, assumiu a presidência de seu partido. A ida ao topo da política alemã também não tardou: após cinco anos, tornou-se primeira-ministra do país. Quatro anos depois, seu trabalho foi aprovado pela população, sendo reeleita. Trata-se de uma trajetória que tem muito a inspirar as lideranças do Brasil.
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aprofunde-se
Literatura
Diário da Corte – P a u l o F r a n c i s ( E d i t o r a T r ê s E s t r e l a s , 2 0 1 2 ) A coletânea reúne 76 colunas do jornalista na Folha de São Paulo. Publicados entre 1976 e 2010, os artigos acompanham a transformação ideológica de Francis: de trotskista a conservador. Um reflexo disso é sua opinião de opinião sobre o ex-presidente Lula. Inicialmente simpático ao líder sindical, em 1981, acaba por fuzilálo oito anos depois quando ele se torna candidato a presidente: “É uma besta quadrada. Não sabe de nada do que está falando. Vai usar o dinheiro dos juros da dívida - que não pagamos - para aumentar o salário mínimo dos trabalhadores. Lula arruinaria o país, nos transformaria em Sudão.”
Momentos de decisão – G e o r g e W . Bush (Edito r a N o v o S é c u l o , 2 0 1 2 )
Autobiografia de um dos personagens mais controversos do início do século 21. Momentos de decisão traz a experiência e a reflexão do expresidente americano sobre episódios como os atentados às Torres G ê m e a s , a s g u e r r a s d o I r a q u e e do Afega n i s t ã o e a c r i s e f i n a n c e i r a de 2008. Tr a t a - s e u m l i v r o o b r i g a t ó r i o nas estant e s d e q u e m s e i n t e r e s s a p o r política.
Saga brasileira – M i r i a m L e i t ã o (Editora Record, 2011) Em um livro de leitura acessível, a jornalista global recupera passagens de um marco para a estabilidade econômica do país: a implantação do Plano Real. Saga brasileira expõe as tentativas atrapalhadas de estancar a hiperinflação. E explica por que o programa capitaneado pelo então ministro da Fazenda de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, deu certo e perdura até hoje.
Por que virei à direita: três intelectuais explicam sua opção pelo conservadorismo – J o ã o P e r e i r a C o u t i n h o , L u i z F e l i p e P o n d é e Denis Rosenfield (Editora Três Estrelas, 2012) Ensaios de três pensadores que enfrentaram a patrulha e se declararam “de direita” – termo que se tornou um xingamento na era d o p o l i t i c a m e n t e c or r e t o . O t o m c o m b a t i v o d o l i v r o p o d e s e r r e s u m i d o e m u m t r e c h o d o t ex t o d o f i l ó s o f o L u i z F e l i p e P o n d é : “ A e s q u e r d a é abstrata e mau-caráter porque nega a realidade histórica humana a fim de construir seu domínio sobre o mundo.”
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Ci n e m a A Dama de Ferro (201 1 ) A atuação de Meryl S t r e e p c o m o Margaret Thatcher fe z a c o n s a g r a d a atriz receber o prêmi o d e m e l h o r a t r i z no Oscar. Não bastas s e e s s e m o t i v o para assistir ao filme , A D a m a d e Ferro recupera a traj e t ó r i a p o l í t i c a e pes soal da primeira - m i n i s t r a britânica que nunca d e i x o u d e c o m p r a r brigas quando estava c o n v i c t a d e sua posição. Como m o s t r a o l o n g a metragem, isso signi f i c o u m u i t a s vezes ir contra a opin i ã o p ú b l i c a e toma r decisões impo p u l a r e s . T r a t a se de um retrato emp o l g a n t e e , a o mesmo tempo, melan c ó l i c o d e u m a mulher conservadora q u e s e d e d i c o u integralmente à vida p ú b l i c a – e escreveu um capítulo à p a r t e n a h i s t ó r i a da humanidade.
Reparação ( 2 0 1 0 ) O corajoso documentário de Daniel Moreno aborda um tabu no debate político do país: as vítimas das ações terroristas durante o regime militar. O personagem central do longa-metragem é Orlando Lovecchio Filho, que teve a perna amputada em decorrência de um atentado contra o consulado dos Estados Unidos, em 1968. O ex-piloto estava ali p o r a c a s o e a c a b o u s e n d o v í t i m a d o a t o o r q u e s t r a d o p o r D i ó g e n e s Carvalho de Oliveira, d o g r u p o V a n g u a r d a P o p u l a r R e v o l u c i o n á r i a . R e s u l t a d o : o p r i m e i r o recebe hoje uma pen s ã o m e n s a l d e R $ 6 3 5 , 7 9 ; o s e g u n d o , R $ 1 . 6 2 7 , a l é m d o s R $ 4 0 0 mil atrasados. São ou v i d o s , e n t r e o u t r o s , d e p o i m e n t o s d o p r ó p r i o L o v e c c h i o , d o e x presidente Fernando H e n r i q u e C a r d o s o , d o h i s t o r i a d o r M a r c o A n t o n i o V i l l a e d o s o c i ó l o g o Demétrio Magnoli.
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estudo
Í n dice de Liberdade Econômica
A cada ano, o centro de estudos norte-americano Heritage Foundation divulga o Índice de Liberdade Econômica. Em 2013, o Brasil ocupou o 100º lugar entre as 177 nações avaliadas, registrando 57,7 pontos, em uma avaliação que vai de 0 (menos livre) a 100 (mais livre). Em relação ao ano anterior, o país caiu uma posição e perdeu 0,2 ponto. Confira abaixo as notas do país em cada um dos dez quesitos investigados e a comparação do resultado com 2012:
Estado de Direito
Limites do governo
Direito de propriedade – 50,0 Liberdade contra corrupção – 38,0
Gastos governamentais – 54,8 Liberdade fiscal – 70,3
Abertura de mercados
Eficiência regulatória Liberdade para negócios – 53,0 Liberdade trabalhista – 57,2 Liberdade monetária – 74,4
Liberdade comercial – 69,7 Liberdade para investimentos – 50,0 Liberdade financeira – 60,0
Ranking
Sinal verde Predominantemente com Livres (100-80) liberdade (79,9-70) 1º - Hong Kong: 89,3 2º - Singapura: 88,0 3º - Austrália: 82,6
7º - Chile: 79,0 10º - Estados Unidos: 76,0 19º - Alemanha: 72,8
Sinal amarelo Moderadamente livres (66,9-60) 3 6 º - Uruguai: 69,7 3 7 º - Colômbia: 69,6 4 4 º - Peru: 68,2
Sinal vermelho Predominantemente sem liberdade (59,9-50)
Reprimidos (49,9-0)
99º - Gabão: 57,8 100º - Brasil: 57,7 136º - China: 51,9
174º - Venezuela: 36,1 176º - Cuba: 28,5 177º - Coreia do Norte: 1,5
Leia o estudo completo em http://www.heritage.org/index
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Arte: Capella Design
O que ĂŠ o
bem comum?
[CONTRACAPA]