REVISTA BANDEIRAS POSITHIVAS 2

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bandeiras posithivas Ano 2 l Edição 2 l Novembro/2009

foto: fabio ghivelder sobre campanha “Viver com a aids é possível. Com o preconceito não” do artista plástico Vik Muniz

Uma Revista do Programa Estadual de DST/Aids-SP

CRT DST/AIDS-SP estrutura 1º Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do país VIK Muniz mobiliza Pessoas vivendo e convivendo com HIV/Aids no Estado de São Paulo


editorial É com muita felicidade que apresentamos o segundo número da revista de Bandeiras PositHIVas. A revista nasceu em 2008 para contar e lembrar a história da construção da resposta à aids no Estado de São Paulo. Agora ela tem por objetivo reportar os feitos e realizações da Coordenação do Programa Estadual de DST/Aids-SP, assim como registrar experiências de pessoas e instituições importantes na luta contra a aids. 2009 foi um ano de grandes realizações. A mais ambiciosa e que nos trouxe orgulho e satisfação foi a organização do Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP, inaugurado em 9 de junho. Este ambulatório é fundamental para o resgate da cidadania e inclusão desta população no Sistema Único de Saúde. A sua construção só foi possível com o empenho e a dedicação de toda a equipe do CRT DST/Aids-SP da Secretaria Estadual de Saúde -SP, em especial do Secretário Luiz Roberto Barradas Barata, que não poupou esforços para a implantação do serviço. Outros grandes parceiros foram o Centro de Referência da Diversidade (CRD) da Prefeitura de São Paulo em parceria com a ONG Pela Vidda-SP e o Ambulatório T de São José do Rio Preto. Enquanto o CRD nos ajudou a desenhar a estrutura do serviço, com as especialidades médicas mais relevantes para as travestis e as transexuais, a equipe do Ambulatório T nos orientou sobre o fluxo e rotina de trabalho. A Campanha do Dia Mundial de Luta Contra Aids do Departamento Nacional de DST/Aids e Hepatites Virais foi outro grande acontecimento que nos mobilizou neste ano. Tínhamos como missão levar 600 pessoas vivendo e convivendo com HIV/aids para estádio Thomeuzão, de Guarulhos, para a realização do ensaio fotográfico “Beijos”, do artista plástico Vik Muniz. Superamos a expectativa e conseguimos com o apoio dos programas municipais de DST/Aids de Guarulhos, Diadema, Osasco, São Paulo, São Bernardo do Campo, São Caetano, Santo André, além do Fórum de ONG/Aids-SP, Instituto Vida Nova, Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids e Cidadãs PositHIVas, levar 1000 pessoas para o evento. A energia de vida que tomou conta do estádio Thomeuzão foi de arrepiar e reiterou o grande comprometimento dos paulistas na luta contra a aids. A foto de capa da Bandeiras PositHIVas é uma das imagens da campanha do 1º. de Dezembro de 2009, que tem por tema os Direitos Humanos das Pessoas Vivendo e Convivendo com HIV/Aids. Nesta edição você também conhecerá mais de perto: o processo de descentralização dos recursos de financiamento de organizações da sociedade civil, uma pesquisa que visa entender melhor a epidemia entre os homens que fazem sexo com homens em São Paulo, o Grupo de Trabalho de Aids e religiões, entre outros temas. Convidamos a todos para mais uma leitura da revista Bandeiras PositHIVas. Aguardamos suas críticas e sugestões para continuar levantando à frente nossas Bandeiras e, sobretudo, a Bandeira contra aids no Estado de São Paulo.

Maria Clara Gianna Coordenadora do Programa Estadual DST/Aids-SP Artur Kalichman Coordenador Adjunto do Programa Estadual DST/Aids-SP Paulo Roberto Teixeira Consultor do Programa Estadual DST/Aids-SP


expediente bandeiras posithivas

sumário

Secretário de Estado da Saúde

Luiz Roberto Barradas Barata

Coordenadoria de Controle de Doenças

Clélia Maria Sarmento Aranda

Coordenação do Programa Estadual DST/Aids-SP

Maria Clara Gianna

Coordenador-Adjunto do Programa Estadual DST/Aids-SP

Artur Kalichman

Conselho Editorial (ordem alfabética)

Alexandre Gonçalves, Artur Kalichman, Ângela Tayra, Elvira Filipe, João Bosco Alves de Sousa, Leda Jamal, Maria Clara Gianna, Marina Pecoraro, Paulo Roberto Teixeira, Paulo Mineiro, Rosa de Alencar Souza e Vilma Cervantes Edição final

Paulo Roberto Teixeira Maria Clara Gianna Artur Kalichman João Bosco Alves de Sousa Emi Shimma Marina Pecoraro Jornalista Responsável

Marina Pecoraro MTB 40.770/SP

Reportagem e redação

Eliane Izolan Marina Pecoraro Maurício Sacramento Sylia Rehder Revisão

Janete Tir Projeto gráfico e edição de arte

GB8 Design e Editoração Ltda - (11) 3871-9390 Ilustrações

Gilmar e Fernandes Fotografia

Ed Viggiani Bandeiras PositHIVas é uma publicação do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP Programa Estadual DST/Aids-SP Coordenadoria de Controle de Doenças Secretaria de Estado da Saúde-SP Apoio Organização Panamericana de Saúde-OPAS ISSN 1984-9370

6 ambulatório tt Travestis e Transexuais têm serviço especializado para a sua saúde integral no CRT DST/Aids-SP

11 prevenção Orkut, twitter, sites de relacionamento e teatro são os novos cenários da prevenção às DST/aids

16 fique sabendo Estado de São Paulo incentiva a testagem do HIV com a Campanha Fique Sabendo

18 odontologia Equipe pioneira de dentistas ajuda na detecção da aids e atua em dezenas de municípios

21 humanização

Arteterapia, conselho gestor e ouvidoria são algumas das ações desenvolvidas pelo CRT DST/Aids-SP

24 perfil Márcio Colaferro: Uma vida pautada em arte, projetos e paixões

26 planejamento Estratégias e metas para enfrentar a epidemia de aids em grupos mais vulneráveis

28 hpv/him Estudo HIM – História Natural da Infecção pelo HPV quer conhecer melhor a doença entre os homens

30 sífilis Prevenção, tratamento e informação para evitar a sífilis congênita

32 entrevista

Alexandre Grangeiro faz um balanço histórico sobre a resposta brasileira à epidemia de aids

36 emílio ribas

A importância do Instituto de Infectologia Emílio Ribas na assistência às pessoas que vivem com HIV/aids

40 aids e religiões Parceria entre religiões e técnicos do PE DST/Aids-SP possibilita esclarecimento sobre a epidemia de aids

43 artigo sara romera da silva

Coordenação do PE DST/Aids-SP inicia processo de descentralização de recursos para ONG/aids

45 ética em pesquisa

A importância da pesquisa para o desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas

49 novas tecnologias Muito além da camisinha. Cientistas pesquisam alternativas para impedir a infecção pelo HIV

53 artigo gabriela calazans Pesquisa quer entender a epidemia entre homens que fazem sexo com homens em São Paulo

fale conosco: bandeiras@crt.saude.sp.gov.br / tel.11-5087-9835


7 Ambulatório TT

implanta 1º ambulatório de saúde integral para travestis

e transexuais

Eu sou simplesmente uma mulher aprisionada no corpo de um homem. Mesmo que a sociedade não entenda, eu nasci assim, eu cresci assim, desde criança eu sentia isso. Só quem passa por uma situação semelhante pode entender o sofrimento de um transexual, o seu corpo não é seu. Quero ajustar meu interior e viver de forma plena”, desabafa Regiane Alves dos Santos, transexual de 31 anos, usuária do 1º. Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP, enquanto aguarda a consulta com o psicólogo do serviço. Regiane é cearense de Juazeiro do Norte e, atualmente, trabalha como supervisora de uma fábrica de roupas femininas. Ela veio a São Paulo há 10 anos com o objetivo de fazer cirurgia de redesignação sexual (aquela que adequa o sexo biológico à identidade de gênero). Porém, o único lugar que realiza este tipo de procedimento dentro do Sistema Único de Saúde, SUS, em São Paulo, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, está com a fila fechada. Quando ficou sabendo do Ambulatório do CRT, foi à procura do serviço para realizar seu sonho. Ao receber a notícia de que o CRT DST/Aids-SP ainda não oferece este tipo de procedimento, ficou um pouco frustrada, mas reconhece a importância do Ambulatório de Saúde Integral para travestis e transexuais. “Aqui somos muito bem atendidas. Há uma

preocupação de toda a equipe de não expor o usuário. Quando veem uma travesti ou uma transexual com aparência feminina, eles logo perguntam qual é seu nome social e isso é muito importante para nós. Já em outros hospitais os profissionais não respeitam e fazem questão de chamar a gente pelo nome de registro e isso afeta muito o nosso psicológico. Fora os comentários das pessoas que dizem: chegou o traveco, o veado”, diz Regiane. História do Ambulatório: Tudo começou assim... O Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids, 1º do Brasil, foi inaugurado em 9 de junho de 2009. Segundo Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual de DST/Aids-SP, “nós já havíamos identificado a necessidade de se ter uma estratégia de trabalho para a população de travestis e transexuais. Durante a elaboração do Plano Integrado de Enfrentamento da Feminilização da Epidemia de DST/Aids a gente tem a inclusão das transfemininas no plano, porém ficou a pergunta de como executar isso. Algum tempo depois, durante a Conferência Nacional de Direito LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) o movimento sinalizou que as questões de saúde da população de travestis e transexuais extrapolam a temática de DST/aids”, explica Maria Clara.

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

Há uma preocupação de toda a equipe de não expor o usuário. Quando veem uma travesti ou uma transexual com aparência feminina, eles logo perguntam qual é seu nome social e isso é muito importante para nós (regiane Alves dos Santos)

CRT DST/AIDS-SP

Em paralelo a isso, no início deste ano o secretário de Saúde de São Paulo, Luiz Roberto Barradas Barata, convoca a diretora do Programa de DST/Aids, e diz que é o momento de implementar um serviço específico para esta população. De acordo com Maria Clara, a Secretaria de Saúde indica o CRT DST/Aids como o local ideal para a implantação deste serviço, uma vez que a equipe lida historicamente com grupo mais vulneráveis. A brecha estava dada, agora era preciso criar um ambulatório que de fato atendesse às necessidades dos travestis e transexuais. A Equipe do Programa tinha receio da aceitação do movimento, pois o fato do Ambulatório de Saúde Integral estar dentro de um Centro de Referência em DST/Aids poderia aumentar o estigma de associar este grupo à epidemia. Na primeira reunião houve certa dúvida. Mas depois as lideranças acharam interessante o CRT encampar este serviço, pois a equipe conhece e está acostumada a trabalhar com este público. Com a proposta aceita pelo movimento, começou o desenho de como seria o ambulatório e quais as especialidades médicas eram necessárias Em conversas com representantes do movimento LGBT e a equipe do Centro de Referência da Diversidade, CRD, da Prefeitura de São Paulo em parceria com a ONG Pela Vidda-SP, as principais queixas apresentadas foram sobre a demora na cirurgia de redesignação sexual, a hormonoterapia para travestis, prótese de silicone, complicações com uso de silicone industrial, dificuldade ao acesso de serviços de saúde devido ao grande preconceito, a questão das bombadeiras (indivíduos que aplicam o silicone industrial), a necessidade de adequar a voz a nova identidade, entre outros. Um outro fator que ajudou no processo de implantação do serviço foi um artigo do médico Dráuzio Varella, publicado em 11 de maio no jornal Folha de S. Paulo, sobre as dificuldades enfrentadas pelas travestis que, segundo ele, são o grupo que mais sofre discriminação. “Se


9 Ambulatório TT vra de ordem da iniciativa do ambulatório é acolhimento. “No ambulatório, travestis e transexuais terão um lugar onde podem ter a certeza e a tranquilidade de que não serão discriminadas de maneira nenhuma. E que encontrarão uma equipe 100% preparada para atendê-las. É um estímulo para que elas possam cuidar melhor da saúde. Há um ganho para todos. Só quem perde é o preconceito”, considerou o secretário de Estado da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata. O ambulatório hoje Quatro meses após a inauguração, o Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids tem 180 usuários cadastrados e já realizou mais de 400 atendimentos. A equipe é composta por: clínico geral, urologista, proctologista, ginecologista, endocrinologista, psicólogo, psiquiatra, assistente social, educador em saúde, fonoaudiólogo, dentista, cardiologista e oftalmologista. Por ser tudo muito novo, os profissionais do ambulatório vão abrindo novas frentes de trabalho conforme as demandas vão surgindo. De acordo com Rosa de Alencar Souza, gerente de Assistência do Programa Estadual de DST/ Aids-SP, “o Ambulatório já estabeleceu uma parceria com o Hospital Estadual de Diadema para a retirada de silicone industrial e encaminhou um documento à comissão de bioética do CRM para poder liberar a prescrição de hormônios para as travestis. Fora isso, está em negociação com o Hospital Heliópolis para a cirurgia de implante de silicone e com o Hospital de Jundiaí para a cirurgia de redesignação sexual”. Outra conquista do Ambulatório foi a

parceria com o Hospital das Clínicas, possibilitando a ampliação em quatro vezes do número de cirurgias de redesignação de sexo realizadas no complexo. Com a mudança, o HC ganha capacidade para realizar, em média, uma cirurgia desse tipo por mês. A questão da retirada do silicone industrial é um problema sério de saúde enfrentado por esta população. “Ele pode provocar infecção no momento em que é aplicado, causar úlcera, escorrer para outras partes do corpo, originar problemas circulatórios, além de deformidade no local da aplicação. Tem pessoas que até morrem durante a aplicação ou logo depois”, explica Silvia Pereira Goulart, médica do ambulatório. Segundo Maria Filomena Cernichiaro, diretora do serviço, “a possibilidade de remover o silicone industrial, que gera deformidades físicas graves, é fundamental para o resgate da saúde e da autoestima dos pacientes”. Infelizmente, nem todas as meninas que sofrem com o problema conseguem ser encaminhadas à cirurgia. Isto porque, segundo Silvia, quando o silicone se infiltra no músculo, não tem como retirá-lo. Os primeiros usuários do serviço foram encaminhados para a equipe de cirurgia plástica do Hospital de Diadema em agosto. O grande desafio do ambulatório, na opinião de Rosa, é a questão da criação de protocolos de cuidados em relação às demandas de travestis. “Para as transexuais, apesar de enfrentarem problemas de ampliação ao acesso das cirurgias de redesignação sexual, existem

o Ambulatório já estabeleceu uma parceria com o Hospital Estadual de Diadema para a retirada de silicone industrial e encaminhou um documento à comissão de bioética do CRM para poder liberar a prescrição de hormônios para as travestis (Rosa de Alencar Souza)

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

No dia da inauguração, o governador José Serra reafirmou o compromisso de seu governo com os direitos humanos e individuais

Nós não queremos criar ambulatórios de referência em todo o Estado. Nós queremos, sim, facilitar para que este processo aconteça dentro da rede (Maria Clara Gianna)

fosse possível juntar os preconceitos manifestados contra negros, índios, pobres, homossexuais, garotas de programa, mendigos, gordos, anões, judeus, muçulmanos, orientais e outras minorias que a imaginação mais tacanha fosse capaz de repudiar, a somatória não resvalaria os pés do desprezo virulento que a sociedade manifesta pelos travestis.” No dia da inauguração do Ambulatório de Saúde Integral de Travestis e Transexuais estiveram presentes no CRT DST/Aids o governador José Serra e os secretários Luiz Roberto Barradas Barata, da Saúde, e Luiz Antonio Marrey, da Justiça, além de Alessandra Saraiva, representante das Travestis e Transexuais de São Paulo. Na ocasião, Serra reafirmou o compromisso de seu governo “com os direitos humanos e individuais. Então, nesse sentido, nós trabalhamos para todos e para todas. Todas as pessoas são consideradas, por nós, cidadãs. E, portanto, devem merecer serviços públicos e devem ser defendidas da discriminação, das agressões, do tráfico e de tudo mais”. De acordo com Alessandra, a pala-

portarias no CFM e no SUS. Elas podem receber hormônios, por exemplo. Já a hormoterapia para travestis ainda é uma questão a ser resolvida, assim como o implante de silicone. Hoje nós não podemos prescrever esta substância para elas.” Fora estas questões, o ambulatório tem um objetivo maior que é a inclusão da população de travestis e transexuais no SUS. “Nós não queremos criar ambulatórios de referência em todo o Estado. Nós queremos, sim, facilitar para que este processo aconteça dentro da rede. O compromisso com o movimento LGBT é de que o nosso serviço ajude a incluir o cuidado desta população dentro da rede de atenção básica. Queremos irradiar cidadania e respeito a esta população no SUS”, explica Maria Clara.


11 prevenção

de DST/Aids da cidade. “O fato de o serviço funcionar dentro de uma unidade de atenção básica facilita os encaminhamentos de exames de rotina”, explica Araceris de Castro Achcar, gerente da área de prevenção e diagnóstico do Programa Municipal de DST/Aids. De acordo com Flávio Henrique Borin, médico de família e responsável pelo atendimento das travestis, o ambulatório já realizou 140 atendimentos. “Outro dia atendi uma travesti de 40 anos que nunca havia ido a uma unidade de saúde”, comemora o dr. Borin. ×

O fato de o serviço funcionar dentro de uma unidade de atenção básica facilita os encaminhamentos de exames de rotina

fotos: arquivo PMG municipal dst/aids, são josé do rio preto

São José do Rio Preto criou em outubro de 2008 o Ambulatório de Saúde T, voltado para as travestis da cidade. O serviço tem por objetivo oferecer às travestis atendimento em clínica geral, levando em conta particularidades de sua saúde. O Ambulatório é fruto de uma parceria da Secretaria de Saúde – por meio da Coordenação da Saúde do Homem, do Programa Municipal de DST/Aids e de seus programas de prevenção em campo Sidadania e HSH/Travestis, da Unidade de Saúde Vetorazzo, da Artts (Associação Rio Pretense de Travestis e Transexuais), do Centro de Referência em Direitos Humanos GLBT e do Conselho Municipal de Saúde, que não pouparam esforços para que esta população pudesse ter sua visibilidade positiva garantida e sua vulnerabilidade diminuída em função do acesso à saúde. Ele funciona dentro da Unidade Básica de Saúde da Família do Vetorazzo, às terças-feiras, das 17h às 21h. As consultas são agendadas pelos agentes de prevenção do Programa Municipal

(Araceris de Castro Achcar)

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

perto da população

P

rogramas nacional, estadual e municipal investem em novos meios de conscientização, seguindo as mudanças culturais e tecnológicas dos últimos anos. Parado no trânsito, dentro do coletivo, você olha para o alto e se distrai com a televisão do ônibus. Um vídeo educativo, com legendas, mostra como identificar os sintomas de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e evitar o contágio. A cena pode parecer cotidiana, quase banal, mas foi muito bem planejada. “Desde agosto de 2008, produzimos vídeos curtos para exibirmos em algumas linhas de ônibus, equipados com televisão, na cidade”, conta o jornalista Pedro Malavolta, responsável pelo núcleo de prevenção a distância do Programa Municipal DST/Aids de São Paulo (PM DST/Aids-SP). Malavolta está à frente de projetos inovadores no que se refere à prevenção e à conscientização de DST/Aids no Brasil. “A epidemia tem uma interface de mudanças culturais, então faz todo o sentido que atuemos nesse espaço”, afirma. “A idéia é estar presente na vida das pessoas em vários momentos e não só por meio de agentes de prevenção.” A referência é inevitável. O PM DST/Aids-SP, e outros municípios do Estado, tem vislumbrado nas mídias eletrônicas uma nova ferramenta para entrar em contato com a população, em complemento ao tradicional formato de abordagem composto por folder + camisinha. “Há necessidade de se utilizar novas tecnologias, porque elas estão integradas na vida das pessoas”, explica Malavolta. Elvira Filipe, gerente da área de Prevenção da Coordenação

foto: acervo cia. paulista de arte

Ambulatório de Saúde T

Folder + Camisinha + Internet + teatro + twitter = prevenção às DST/AIDS

A idéia é estar presente na vida das pessoas em vários momentos e não só por meio de agentes de prevenção (Pedro Malavolta)

Ambulatório TT


13 prevenção vidade ao abrir um espaço para comunicação e prevenção. “Nosso projeto envolveu uma campanha interativa que levava uma mensagem de autocuidado”, explica Tereza Dib, Coordenadora do Programa Municipal DST/Aids de Sorocaba. Na primeira fase do projeto, adesivos e portacopos com o slogan “Do que é meu cuido eu” foram distribuídos em bares, boates e lanchonetes. Além do slogan, as peças convidavam as pessoas a visitarem o website da campanha. No site, a pessoa preenchia um cadastro e ganhava o direito de enviar uma foto de si mesma com o adesivo (“Do que é meu cuido eu”) e uma frase sobre o tema. As fotos e frases ficavam expostas em um mural virtual, que teve mais de oito mil visitas entre os meses de dezembro de 2008 e março de 2009. “Apesar de ter sido uma campanha virtual, a adesão foi real”, comemora Dib, enquanto ressalta como cada fase efetivamente envolveu os participantes. “As pessoas tiraram fotos com os adesivos, se cadastraram e pensaram em uma frase para participar. Depois, correram para avisar os amigos que elas estavam na internet, multiplicando a mensagem.”

“Estas formas de transmitir mensagens são perfeitas, pois atingem grupos diferentes de formas distintas”, assegura Elvira Filipe. Foi pensando em mensagens destinadas a populações específicas que a Unidade de Pesquisas de Vacinas Anti-HIV do CRT DST/Aids-SP resolveu agir na hora de recrutar novos voluntários para seus estudos com grupos de Homens que fazem Sexo com outros Homens (HSH). Segundo Gabriela Calazans, educadora comunitária da Unidade, a idéia “surgiu da constatação de que esse público utiliza muito a internet para se relacionar e buscar parceiros”. Para atingir o público masculino gay, a Unidade de Pesquisas fez parcerias com diversos sites de relacionamento, também conhecidos como “sites de pegação”. “Nós fizemos um mapeamento dos principais sites voltados para este público no mercado. Depois, entramos em contato solicitando espaço para divulgarmos o banner para nosso projeto”, explica Calazans. “A maior parte dos sites de ‘pegação’ demonstrou interesse em colaborar, pois entendeu que fazia parte de sua responsabilidade social junto à população com a qual trabalha”, lembra Gabriela. Entre setembro e outubro de 2006, no primeiro mês da ação, foram 439 visitas ao website da Unidade, no qual a pessoa preenchia um cadastro que ajudaria a selecionar os voluntários para a pesquisa. “De outu-

A maior parte dos sites de ‘pegação’ demonstrou interesse em colaborar, pois entendeu que fazia parte de sua responsabilidade social junto à população com a qual trabalha

Estadual de DST/Aids, concorda. “Esses vídeos são formas eficientes para atingir as massas.” “O Programa Estadual também tem projetos de produzir vídeos para o Youtube e ter página no Orkut, e acaba de entrar no twitter”, conta. Em formato de teleaula, os vídeos produzidos pelo PM DST/Aids-SP são exibidos também em uma rede interna de televisão que a Secretaria Municipal de Saúde mantêm em salas de espera de algumas Unidades Básicas de Atendimento. Estes tratam de assuntos que vão desde técnicas de prevenção até a importância do pai nos exames pré-natal ou sobre a incidência de DST em pessoas da terceira idade. A utilização de novas mídias, no entanto, alcança territórios até mesmo pouco conhecidos da maior parte dos brasileiros, como o Second Life. Criado em 2003 por uma empresa norteamericana, o Second Life é um ambiente virtual on-line que simula alguns aspectos da vida real e social do ser humano. Cada pessoa pode participar depois de criar seu próprio “avatar”, um personagem com feições humanas. Uma vez lá dentro, é possível passear pelos mais diversos ambientes. Pode ser a praia de Copacabana ou mesmo uma discoteca espanhola. “Nós fomos o primeiro órgão público no mundo a criar e dar continuidade a um projeto envolvendo o Second Life”, conta Malavolta. “Criamos uma sede virtual do Programa Municipal. Lá é possível ver nossos vídeos, além de encontrar outros avatares e trocar idéias e experiências.” Os resultados envolvendo o Second Life, no entanto, ainda são tímidos. O encontro mais recente promovido neste ambiente virtual reuniu cerca de 100 pessoas. Pouco para o mundo real, mas um bom número se levarmos em consideração que são pessoas que foram buscar informações voluntariamente. Ainda apostando na internet, mas em uma plataforma mais tradicional, o Programa Municipal DST/Aids de Sorocaba investiu na interati-

(Gabriela Calazans)


15 prevenção bro a novembro, depois que a parceria foi ampliada aos sites mais populares, o número de visitantes saltou para 2.400”, diz a educadora. Seguindo outro caminho, longe do virtual, mas ainda diferente do formato “folder + camisinha”, o Programa Municipal DST/Aids de Jundiaí levou suas questões para os palcos e praças da cidade. O Programa estabeleceu uma parceria com a Cia. Paulista de Artes. “Priorizamos a arte e a emoção como formas de atingir um público maior” conta Suzana Ramilsoeiro, coordenadora do Programa Municipal DST/Aids de Jundiaí. “Nós utilizamos o teatro como um método mais interativo e lúdico para conversar com diversos públicos sobre assuntos como formas de transmissão, uso correto de preservativos e sintomas de alguma DST”, explica. As peças são encenadas para públicos que vão desde adolescentes até idosos, passando por frequentadores de boates da cidade, às vezes até mesmo em forma das tão populares stand-up comedies - esquetes humorísticas. Segundo Rosangela Peroni Brigoni, dramaturga da Cia. Paulista de Artes, as stand-up comedies são esquetes educativas focadas na promoção do uso do pre-

servativo. Outra característica deste formato é a forte interação entre o ator e a platéia. Outra forma inusitada de prevenção e conscientização, criada pelo PM de Jundiaí em parceria com a Cia. Paulista de Artes, foi o Labirinto das Sensações. Montado em praças e eventos públicos desde 2007, o projeto é uma instalação na qual o espectador entra em uma estrutura em formato de labirinto. Lá dentro encontra atores que representam papéis relacionados a fetiches e aspectos da sexualidade. “No labirinto, você é o sujeito da ação”, comenta Edilane Spinace, coordenadora da área de Prevenção do PM de Jundiaí e uma das autoras do Labirinto junto com Brigoni. “A pessoa quer contar sua experiência, participar, então precisamos de algo que mexa com a sensibilidade, informação, tudo junto.” Segundo Ramilsoeiro, “o sucesso do Labirinto das Sensações é tão grande que o projeto vem sendo exibido em outras cidades do Estado e em outros países”. Essa variedade de ações de prevenções reflete criatividade e diversidade dos profissionais envolvidos com a prevenção de DST/aids. “O PE DST/Aids participa e incentiva estas ações”,

MINISTÉRIO DA SAÚDE APOSTA NA INTERNET

Nós utilizamos o teatro como um método mais interativo e lúdico para conversar com diversos públicos sobre assuntos como formas de transmissão, uso correto de preservativos e sintomas de alguma DST

(Suzana Ramilsoeiro)

“Do que é meu cuido eu” A Cidade de Sorocoba desenvolveu a campanha interativa “Do que é meu cuido eu” na internet para promover o autocuidado. Cerca de 8 mil pessoas participaram da ação que, segundo a coordenadora do PGM Municipal de DST/Aids da cidade, foi o maior sucesso

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

observa Elvira. “O PE DST/Aids criou um grupo de trabalho que ajudou a orientar as discussões e a traçar estratégias para as atividades realizadas em Jundiaí”, exemplifica. O tradicional e o moderno não se excluem. “Ainda é necessário ter papel. É importante ter um folheto para a pessoa levar para casa”, afirma Elvira. “O sucesso desses novos projetos não substitui o trabalho de um agente de saúde”, acredita Pedro Malavolta, do Programa Municipal DST/Aids de São Paulo. “E não adianta nada passar a informação se a pessoa não tiver acesso à camisinha”, completa. ×

Em âmbito nacional, os novos métodos de prevenção têm sido alvo de ações criativas e até mesmo de grandes debates. Nos últimos meses, o Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das DST/Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde vem estabelecendo canais de comunicação com a população por meio de sites e redes de relacionamento. “Este é um espaço que tem de ser ocupado por estratégias bem definidas no campo da prevenção”, observa Ivo Brito, coordenador da Unidade de Prevenção do Departamento DST/Aids e Hepatites Virais. “O acesso do público às redes sociais possibilitou o estabelecimento de novos níveis de relacionamentos entre as pessoas. Ferramentas como Facebook e Orkut permitem interação maior entre população e equipes de saúde, facilitando acesso a informações confiáveis”, explica. Dulce Ferraz é uma das responsáveis pela realização do Fórum Virtual de DST e Aids, uma iniciativa que promoveu, em maio passado, discussões abertas relacionadas a experiências inovadoras na área de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis. “Um seminário, que seria presencial e restrito a Brasília, teve recorde de participação graças ao fórum virtual”, aponta. Foi um sucesso absoluto. Foram 10.300 acessos entre os dias 6 e 29 de maio, em discussões que serviram de base para o Encontro Nacional de DST/ Aids, realizado com a presença de especialistas no assunto e transmissão via web. “Essa é uma maneira de capilarizar mais as ações”, ressalta Ferraz. Brito concorda: “A internet, bem como todas as ferramentas culturais e sociais, exerce um poder sobre a decisão das pessoas.” Diante de uma epidemia com viés comportamental, trata-se de um grande trunfo.


17 fique sabendo

Teste anti-HIV

O acesso facilitado ao teste anti-HIV faz parte da política estadual, municipal e federal de prevenção às DST/Aids

SABER FAZ A DIFERENÇA foto: agnaldo rocha/arquivo crt dst/aids

O

A campanha Fique Sabendo foi concebida com objetivo de ser atemporal, para ser realizada em todas as oportunidades

diagnóstico precoce e a introdução do tratamento antirretroviral em momento oportuno são imprescindíveis para a qualidade de vida dos portadores de HIV/aids. Esta realidade foi apresentada pelo Programa Nacional DST/Aids (PN DST/Aids), Ministério da Saúde, em Sessão Especial sobre HIV/aids, na Assembléia Geral das Nações Unidas (UNGASS-HIV/AIDS), em 2008. Constatouse que em São Paulo 42% chegam tarde aos serviços. O Ministério da Saúde estima que cerca de 630 mil brasileiros são hoje portadores do HIV. Desses, 255 mil ainda não sabem seu status sorológico. A partir destes dados, os Programas Nacional, Estadual e Municipal DST/Aids, decidiram estruturar planos para o incentivo a testagem precoce, dentro e fora dos serviços. O pontapé inicial deu-se em 2004, por iniciativa do PN DST/Aids, com a Campanha Fique Sabendo, lançada durante a Fashion Week de São Paulo. “A campanha Fique Sabendo foi concebida com objetivo de ser atemporal, para ser realizada em todas as oportunidades”, comenta o médico sanitarista Paulo Roberto Teixeira, na época coordenador do PN DST/Aids. Em muitos municípios a logomarca Fique Sabendo passou a identificar as unidades de saúde da rede de atenção básica que ofertam a possibilidade de demanda espontânea por testagem anti-HIV. “Com acesso facilitado ao teste anti-HIV, acompanhado de pré e pós-aconselhamento, as pessoas têm a possibilidade, em se descobrindo soropositivo, de iniciarem o seguimento clínico muito mais cedo, aumentando a sua chance de ter uma melhor qualidade de vida. E em se descobrindo soronegativo, têm a possibilidade de adotar ou manter as práticas

(Paulo Roberto Teixeira)

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

seguras”, explica Karina Wolffenbuttel, coordenadora do Fique Sabendo, no PE DST/Aids-SP. A partir da necessidade de ampliar a testagem precoce, a Coordenação do PE DST/ Aids-SP aprovou, na Comissão Intergestores Bipartite/SES em 2008, o Plano Estadual de Ampliação do Diagnóstico Precoce do HIV. Sua primeira ação foi uma campanha de incentivo à testagem anti-HIV entre 25/8 e 5/9 de 2008 no Estado de São Paulo, em parceria com o Instituto Adolfo Lutz. Foram realizados aproximadamente 120 mil testes. Entre 2008 e 2009, as três esferas de governo realizaram campanhas de testagem durante a Fashion Week de 2009, no campus da Universidade de São Paulo e Universidade Paulista, e durante a Semana da Parada Gay realizada em junho de 2009, na capital paulista. “Nesta última atividade, em três dias de testagem no Conjunto Nacional, foram realizados mais de 700 testes rápidos anti-HIV”, conta Márcia Santos, da gerência de Apoio Logístico. A oferta de testagem para HIV/aids nos Centros de Testagem de Aconselhamento (CTA) não é novidade, mas muita gente ainda não tem conhecimento. Hoje, o Estado de São Paulo dispõe de 104 CTAs que realizam, além do exame anti-HIV, teste para sífilis e hepatites B e C. Até 2012, todo município prioritário deverá dispor de um CTA.

Teste rápido: diagnóstico precoce e preciso Pode-se dizer que o diagnóstico precoce, disponível há cerca de três anos, mudou a realidade dos serviços de testagem e tornou possível campanhas como o Fique Sabendo. Seu processo de implantação iniciou em 2006 e, atualmente, 65 CTAs localizados em 40 municípios paulistas e outros 50 serviços realizam O TESTE RÁPIDO (TRD HIV). A testagem é realizada com aconselhamento pré e pós-teste. Para receber o resultado do exame anti-HIV pelo método rápido a pessoa espera em torno de uma hora, enquanto pelo método convencional, em torno de 15 dias. Inquéritos nacionais têm mostrado que cerca de 70% dos homens e 80% das mulheres nunca fizeram o teste, pois não se percebem em risco. “Enfatizamos a importância de um acolhimento humanizado, e necessidade de uma revelação diagnóstica de qualidade”, declara Ricardo Martins, psicólogo e coordenador de Saúde Mental do PE de DST/Aids. “É preciso saber ouvir e acolher as dúvidas e as angústias dos usuários. A qualidade do acolhimento e da revelação podem determinar a elaboração da situação e, inclusive, a adesão ao serviço e ao tratamento”, observa Martins. ×


19 odontologia

é na boca que aparecem os primeiros sintomas da aids

O

Referência O trabalho inicial como voluntária ganhou corpo. A cadeira de odontologia foi criada e Catalina foi incorporada ao Programa Estadual DST/

Saímos da faculdade prontos para intervenções agressivas, como arrancar um siso, mas inseguros para fazer uma biópsia (Catalina Riera)

paciente era um executivo de uma grande multinacional. Chegou ao consultório de Catalina Riera com um objetivo: substituir as restaurações de ouro pela nova tecnologia da cerâmica. Mas a dentista percebeu que havia mais a fazer. “Eu tentava descobrir o que ele tinha na boca. Levantei várias hipóteses, mas não fechava o diagnóstico. Só tinha certeza de uma coisa: meu cliente tinha um sério comprometimento imunológico”, lembra. “Não podia imaginar que se tratava do HIV”, completa Catalina. Isso foi em 1983. O vírus da aids ainda não tinha sido batizado e a doença ganhava as manchetes como “peste gay”. Foi com a ajuda das informações trazidas por outro dentista, César Migliorati, que vivia e trabalhava nos Estados Unidos, que Catalina fechou o diagnóstico. “Quando o César voltou ao Brasil, ainda em 83, começou a relatar as lesões de boca que eram encontradas em pessoas com aids nos Estados Unidos. Meu paciente foi se encaixando em todas as descrições. Meu colega duvidou: ‘O que é isso Catalina? Não existe aids no Brasil!’.” A dentista procurou a médica que acompanhava o paciente: a infectologista Walkiria Pereira Pinto. A hipótese foi confirmada. A partir deste momento, Catalina se aproximou da saúde pública. César e ela começaram a trabalhar como voluntários junto ao grupo coordenado por Paulo Roberto Teixeira, na época do Programa de Dermatologia Sanitária da Secretaria de Estado da Saúde. Foi lá que nasceu a primeira resposta do poder público à epidemia de aids. “Acompanhávamos as primeiras reuniões com os pacientes. Eram encontros riquíssimos, com muita informação”, lembra Catalina. As reuniões deram origem ao GAPA-SP, a primeira ONG/aids do país.

Hoje, Catalina é coordenadora do Departamento de Odontologia do CRT DST/Aids-SP e luta contra a idéia de que dentista só cuida de dentes: “A odontologia é fundamental no tratamento de doenças infectocontagiosas”. A informação disponível em manuais básicos sobre aids dá força à bandeira da dentista: é na boca que aparecem os primeiros sintomas da aids. Gengivites leves ou agressivas, lesões na língua e no palato, úlceras aftosas, fissuras e outras doenças periodontais fazem parte do quadro descrito como fase sintomática inicial da aids. “O dentista tem uma grande responsabilidade. Tanto para o diagnóstico do HIV, como para notar falhas terapêuticas ou de não adesão ao tratamento. Mas, infelizmente, poucos profissionais estão preparados para isso”, avalia Catalina. “Saímos da faculdade prontos para intervenções agressivas, como arrancar um siso, mas inseguros para fazer uma biópsia”, completa.

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Aids. A partir daí, ela e a equipe assumiram a tarefa de capacitar outros dentistas. Em 1995, seis profissionais participaram do primeiro treinamento no Estado. Santos, São Bernardo, São José dos Campos, Barretos e Sorocaba passaram a contar com atendimento odontológico na atenção aos soropositivos. “Ainda estávamos tateando, havia poucos medicamentos e os pacientes apresentavam muitas lesões de boca”, lembra Ana Paula Libório, a dentista de Sorocaba que participou da formação. “Nessa época, o melhor resultado no tratamento dependia da forma de se encarar a doença. Perdemos muitas pessoas, mas também vi muitas se recuperarem”, completa. Por problemas de saúde, ela precisou se afastar do atendimento. Em abril de 1998, Nelly Littério assumiu a tarefa. Nelly faz parte da terceira geração de dentistas treinados para atender pessoas com aids. Os desafios eram diferentes: “Comecei no mesmo período em que foi introduzido o tratamento antirretroviral. Pacientes em tratamento correto não apresentavam tantas lesões, mas às vezes apareciam casos complicados e eu ficava insegu-

Equipe de dentistas do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP da esquerda para direita: Sonomi Takita, Fabiana Scheneider, Catalina Riera e Décio Masini


21 Humanização

odontologia

CRT DST/AIDS-SP É referência em humanização

N

Primeira Jornada de Controle de Infecção Voltada para Cirurgiões Dentistas organizada pelo PE DST/AidsSP, ocorreu na Faculdade de Saúde Pública da USP em 29 de maio

ra”, diz Nelly. “A capacitação e o aperfeiçoamento foram importantes para dar segurança e fazer diagnósticos melhores”, completa. Hoje, a rede de saúde em São Paulo é formada por 40 dentistas, que atuam como referência em dezenas de municípios. Biossegurança O grupo de dentistas se encontrou em maio deste ano para a “Primeira Jornada de Controle de Infecção e Segurança do Profissional em Odontologia”. O evento foi organizado pela Faculdade de Enfermagem da USP e discutiu os cuidados com biossegurança e os riscos de acidentes ocupacionais nos consultórios odontológicos. É consenso que os profissionais ainda correm riscos em sua rotina. “Enquanto a disciplina de biossegurança não se tornar obrigatória na formação dos profissionais, continuaremos a ter problemas”, alerta Jayro Guimarães, da Comissão de Biossegurança da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo. Foi em 1985 que Catalina falou pela primeira vez sobre o HIV em um Congresso de Odontologia. Na platéia, cerca de 500 dentistas. “As pessoas ficaram curiosas e assustadas. Um co-

lega chegou a dizer que eu estava anunciando o apocalipse”, lembra Catalina. Neste período, luvas, máscara, avental e óculos de proteção não existiam em consultórios odontológicos. “Ninguém usava luvas e isso era visto como algo absolutamente normal.” As notícias sobre a epidemia ganharam as ruas e a Associação Brasileira de Odontologia procurou o Programa de Aids de São Paulo. Segundo Catalina, “a sensação da comunidade odontológica era de que a população estava com medo de ir a consultórios”. Começa então uma espécie de cruzada pela biossegurança. A primeira equipe do Programa de Aids passou a ir todas as noites até a associação de dentistas para falar sobre a nova epidemia. As palestras ficavam lotadas. “Foi aí que a aids chegou para os dentistas”, diz Catalina. Apesar das dificuldades para a mudança de comportamento, Catalina avalia que hoje a discussão tem avançado. Quanto aos dentistas que ainda abrem mão da biossegurança, ela é categórica: “Não tem justificativa. Hoje, você compra luvas a menos de três reais o par. Se o profissional não tem luvas descartáveis, é melhor não atender”. ×

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o início da tarde, Afonso* chegou à Ouvidoria do CRT DST/Aids-SP. Trazia nas mãos uma Guia de Internação e não conseguia entender por que não era internado. Afonso não é um neófito. É usuário do CRT DST/Aids-SP há 20 anos. Mas não sabia o que fazer. “A informação que recebeu não foi clara. A Guia de Internação era apenas o encaminhamento para um exame de biópsia”, explica Sérgio Gomes, ouvidor da instituição. A confusão gerou medo e ansiedade. O paciente pensou que seu quadro de saúde era muito grave. “Foi uma falha no processo de trabalho”, constata Gomes. O paciente não registrou a reclamação. A solução veio na mesma hora, a biópsia foi agendada e o caso virou aprendizado. “A ouvidoria é instrumento de gestão importantíssimo. Ela ajuda a melhorar a qualidade do serviço, por-


23 Humanização ção”, explica Mara Regina Annunciação, ex-coordenadora do Comitê de Humanização do CRT. O esforço para garantir a participação do usuário se concretiza no Coges, o Conselho Gestor. Uma vez por mês os representantes dos funcionários, dos gestores e dos usuários discutem os caminhos tomados pelo serviço. As polêmicas são decididas no voto. Os representantes dos usuários e dos trabalhadores são eleitos a cada dois anos e qualquer paciente do CRT pode se candidatar.

esse é um tratamento importantíssimo. Foi o que me tirou da depressão. Ela foi embora há anos e acho difícil que volte a aparecer

que aponta os problemas que existem na instituição. Já as sugestões e elogios estimulam o funcionário”, explica o ouvidor, que tem a sala posicionada em local estratégico: na entrada da instituição, ao lado da Farmácia. Em 2008, foram registradas 598 manifestações. A ouvidoria não trabalha sozinha. Está inserida em uma política mais ampla: a Humanização. O conceito de atenção humanizada foi formalizado em 2004, com a Política Nacional de Humanização (PNH) do Ministério da Saúde. No mesmo ano a Coordenação do Programa Estadual DST/ Aids-SP criou o Comitê de Humanização. “Trabalhamos com alguns valores que ajudam a definir o CRT DST/Aids-SP: ética, atitude, solidariedade,

(carlos sá)

respeito”, explica João Bosco Alves de Souza, gerente de Recursos Humanos. Ele dá um exemplo: “Precisamos aprender a respeitar os nomes sociais. Se uma pessoa chama-se João, mas se veste como Maria, é preciso chamá-la pelo nome que ela deseja ser chamada”. Desde a criação do Comitê, foram realizadas 22 oficinas entre funcionários e pacientes para discutir as diretrizes de atendimento. As discussões deram origem a dois documentos: as Diretrizes de Conduta do Usuário e as Diretrizes de Conduta do Funcionário. “Humanização não é ser ‘bonzinho’ e passar a mão na cabeça. É preciso fazer com que o usuário seja protagonista, que seja coprodutor das respostas da institui-

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Paradigmas A busca por um atendimento de qualidade passa também pela multiplicidade de conhecimentos. “A interdisciplinariedade faz parte dos princípios da instituição. Nossa equipe de referência é constituída por psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros”, explica João Bosco. Diversidade de conhecimento resulta em alternativas terapêuticas e uma mudança de paradigma: o foco não é a doença, mas a pessoa. Atividades como as da Oficina de Arteterapia são exemplos desse olhar. Toda segunda-feira, 12 usuários do CRT DST/Aids-SP encaminham-se para o Museu Lasar Segall e, munidos de pincéis, espátulas e telas, têm aulas de pintura em acrílico com a artista plástica Lenira Romero. Carlos Sá descobriu a habilidade com os pincéis há 11 anos, depois de passar 28 dias internado e, em seguida, ver a aposentadoria antecipada pelo quadro de saúde. Enquanto dá cores a uma paisagem, ele faz o balanço: “Esse é um tratamento importantíssimo. Foi o que me tirou da depressão. Ela foi embora há anos e acho difícil que volte a aparecer”. Carlos divide a experiência trabalhando como voluntário no Centro de Referência de Diadema, na grande São Paulo. O que ele faz? Ensina outras pessoas a pintar. “É uma satisfação muito grande. As pessoas chegam cabisbaixas e aos poucos começam a interagir, a encarar o desafio. A realidade muda.” “Quando a pessoa se vê com o HIV, passa por um processo doloroso. Mui-

tos se isolam, perdem os amigos e o trabalho. Ao entrar no grupo, percebem que são capazes de se integrar. Muda o estado emocional e fica muito mais fácil encarar o tratamento”, explica Laura Bugamelli, psicóloga que com uma assistente social, Fabiana Lo Bello, coordena a Oficina de Arteterapia, que inclui pinturas em acrílico e aquarela. Ela mostra o impacto do trabalho: “Melhora a adesão ao tratamento”. Os usuários do CRT DST/ Aids-SP contam ainda com Reiki Terapia e o Projeto Leia Comigo, uma biblioteca circulante com um acervo de quase 4 mil livros disponibilizados a pacientes, acompanhantes e funcionários em vários pontos da instituição. Os pacientes também podem participar do Coral do CRT DST/Aids-SP, composto por 40 integrantes, entre eles vários funcionários do serviço. Os ensaios são realizados no salão da igreja Nossa Senhora da Saúde, em frente ao CRT DST/Aids-SP. “É um momento de integração entre funcionários e pacientes. Eles saem da rotina e entram em um espaço de convivência”, explica João Bosco. Quem cuida Suely Kleiman, diretora da Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho, coordena a equipe de medicina do trabalho formada por 14 profissionais, entre eles assistentes sociais, médicos, enfermeiros, um psicólogo e uma professora de educação física. A equipe atende a 10 funcionários por dia. O grupo começou tratando de resfriados e picos de pressão, agora tenta ampliar o foco: “Queremos trabalhar na prevenção. Nosso objetivo é prevenir problemas que os funcionários possam ter no futuro: cardiopatias, diabetes, colesterol, pressão alta”, explica Suely. “O funcionário que se sente amparado, trabalha mais satisfeito e retribui com disposição e boa vontade. Todo mundo sai ganhando”, completa. ×

* Nome fictício


25 perfil

O HIV trouxe muita dor, mas também coisas boas. Passei a ver a vida de forma diferente. Hoje minha alimentação é mais saudável, busco a energia dos alimentos e viver com qualidade o meu presente

após o diagnóstico

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igor. Esta palavra define Márcio Colaferro, 67 anos, paulista de Araçatuba e designer de móveis, interiores e de cenários. Portador do HIV há 23 anos, Márcio é um artista repleto de projetos: teatro, design, vida. Atualmente, ensaia duas peças de Francisco Carlos, autor amazonense inédito, com excelentes artistas jovens paulistas, como Caco Ciocler, Marat Descates, Maria Manuella, Sergio Guise, Majeca Andrelucci. Na área de design de interiores, desenvolve lojas-conceito para uma rede de chocolates e para um grande grupo de utensílios domésticos.

Aos 21 anos veio a São Paulo estudar engenharia no Mackenzie. Após um breve período de crise, Márcio concluiu que o curso não tinha nada a ver com ele. Tomou coragem e comunicou a seu pai a decisão de interromper a faculdade e de que se tornaria concertista de piano. “Meu pai ficou uma fera e cortou tudo, casa, alimentação, estudo.” Sem dinheiro, mas livre do sofrimento do curso de engenharia, Márcio arrumou emprego no Instituto de Arte e Decoração (Iadê). Sua primeira função era preparar os slides das aulas de artes. “Eu fotografava os livros para os slides e comecei a achar aquilo

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23 anos de hiv e muitas realizações

muito interessante. Passei a ler os livros, pedi uma bolsa de estudo e consegui. Logo, virei assistente do diretor, comecei a dar aula e troquei o piano pelo design. Desenhar móveis é uma das minhas paixões”, diz. Assim como o design, o teatro surgiu em sua vida de forma inusitada. Em 1978, Marília Pêra e Marco Nanini o convidaram para fazer o cenário da peça Tito ao Alvo. “Na ocasião fiquei meio inseguro, mas eles insistiram, eu fiz e deu supercerto.” Após muitos anos viajando pelo Brasil e pelo exterior com as peças de teatro, Márcio resolveu dar um tempo no teatro e abriu uma loja de design brasileiro no shopping D&D, a Espaço Interior. Ficou à frente do negócio entre 1996 e 2001. Pai de um rapaz de 33 anos e avô de um menino de 4, Márcio temia não ver seu filho crescer nem imaginava que seria avô. O receio tinha fundamento. Em 1986, após um longo período de febre, ele procurou um renomado infectologista. “Quando retornei à consulta após uma série de exames, o médico não me cumprimentou nem tocou em mim. Apenas disse: você tem aids e vai morrer.” Após a bombástica notícia, Márcio lembra-se de ter parado o carro perto do parque do Ibirapuera e de ter chorado muito. “Achei que viveria mais três ou quatro meses no máximo. Chamei meu filho, a mãe dele, minhas irmãs e disse: ‘Tô morrendo’. Foi um trauma na família”, recorda-se.

Se o primeiro médico tirou toda e qualquer esperança de continuar vivo, a dermatologista Valéria Petri, uma das primeiras médicas a diagnosticar aids no Brasil, foi fundamental para Márcio. “Ela salvou minha vida. É uma pessoa maravilhosa. Na primeira consulta ela me examinou e disse: ‘Cara, você não está morrendo, você é um artista e tem um monte de coisa para fazer na vida’.” E a médica estava certa. Márcio, ao contrário de alguns amigos que também eram portadores do HIV e morreram rapidamente, ficou quase nove anos sem nenhuma complicação da doença. Em 1995, durante uma viagem ficou muito doente. Ao retornar ao país, um amigo médico foi buscá-lo no aeroporto e o levou ao hospital imediatamente. Em 1997, Márcio iniciou o tratamento com a terapia tríplice. Desde que iniciou o tratamento, Márcio teve pouquíssimos efeitos colaterais e já há alguns anos sua carga viral está indetectável e seu CD4 acima de 400 cópias. “O HIV trouxe muita dor, mas também coisas boas. Passei a ver a vida de forma diferente. Hoje minha alimentação é mais saudável, busco a energia dos alimentos e viver com qualidade o meu presente.” Márcio se preocupa com os jovens que, na sua opinião, não se previnem contra o HIV. Para ele, “o mundo gay está uma loucura. As pessoas dizem abertamente que fazem barebacking (prática deliberada de sexo desprotegido). Para eles, o conselho de Márcio é: “Façam o exame anti-HIV e usem camisinha em todas as relações, porque o que não tem sido considerado é que muita gente ainda continua morrendo por conta do vírus e que nem todos se dão bem com o coquetel. Para alguns há efeitos colaterais bem complicados. Acho que tive sorte”. Para o futuro, Márcio, 67, portador do HIV há 23 anos, espera publicar um livro sobre o trabalho relacionado a seus móveis, objetos de decoração e cenários. ×


27 Planejamento

Planos de Enfrentamento PROPÕEM ESTRATÉGIAS e Metas para as Ações COM GRUPOS DE maior VULNERABILIDADE número já era de 2/1. Estima-se que, em determinadas faixas etárias, o número de mulheres infectadas já seria igual ao número de homens portadores do HIV. “Não estamos propondo ações inéditas. Várias metas que estão no plano já são realizadas”, pondera Santos. “Mas o plano pode ajudar a avançar na questão do monitoramento, da qualidade de ações que já são executadas em alguns municípios do Estado.” Um aspecto importante e que abrange tanto o plano direcionado para a epidemia entre as mulheres quanto aquele elaborado para gays, outros HSH e travestis diz respeito ao trabalho interdisciplinar entre as diversas esferas governamentais e programas de saúde estadual e municipais. “Uma das metas do plano é acumular ou estimular o conhecimento sobre a vulnerabilidade das pessoas, observando sua diversidade”, ressalta Santos. “Um exemplo são os travestis”, explica Márcia Giovanetti, técnica do Núcleo de Populações Vulneráveis da área de Prevenção do PE DST/Aids. “É preciso inse-

rir os travestis, assim como as lésbicas e mulheres transexuais, em serviços de saúde, como o Saúde da Família. E não encaminhá-los diretamente para os serviços ligados às DST/aids.” Giovanetti é uma das responsáveis pela elaboração do plano voltado para gays, outros HSH e travestis. “Nosso plano foi pensado na perspectiva do aprimoramento do conhecimento e informações sobre esta população”, explica. “Estamos discutindo métodos para analisar bancos de dados e investindo em novas pesquisas, como um projeto de estudo de comportamentos, atitudes, práticas e prevalências, voltado para população de gays, outros HSH e travestis, por meio de uma parceria entre o CRT, a USP e a Santa Casa, dentre outras instituições.” O pontapé inicial para a criação dos planos foi dado no final de 2007, quando o Programa

Nacional de DST/Aids solicitou a cada Estado a criação de estratégias organizadas de enfrentamento a partir de suas particularidades regionais. Sua elaboração foi feita a partir de diversas discussões entre o Programa Estadual, municípios e representantes da sociedade civil. “Estamos agora esperando que cada programa municipal elabore seu próprio plano, de acordo com suas necessidades,” observa Naila Santos, do Plano de Feminilização. “A aplicação e o monitoramento das ações propostas devem propiciar um salto de qualidade no atendimento e na redução de vulnerabilidades”, acredita. “A Coordenação Estadual apóia e incentiva a aplicação do plano, mas quem executa é o município”, lembra Giovanetti. “Governos e parceiros precisam assumir suas responsabilidades. O plano só se efetiva a partir da adesão dos municípios.” ×

É preciso inserir os travestis, assim como as lésbicas e mulheres transexuais, em serviços de saúde, como o Saúde da Família. E não encaminhá-los diretamente para os serviços ligados às DST/AIDS (Márcia Giovanetti)

A

necessidade de unificar conhecimentos em torno de objetivos comuns produziu, nos últimos meses, dois documentos que podem auxiliar no enfrentamento à epidemia de aids. Elaborados pela Coordenação Estadual de DST/Aids (cE de DST/Aids) de São Paulo, o Plano de Enfrentamento da Epidemia de Aids e das DST entre Gays, outros HSH e Travestis e o Plano Integrado de Enfrentamento da Feminilização da Epidemia de DST/Aids vêm propor um conjunto de ações que podem auxiliar no combate ao aumento da infecção pelo HIV entre esses dois grupos de grande vulnerabilidade. “A feminilização da epidemia de DST/aids é um processo que vem ocorrendo com grande intensidade”, afirma Naila J. S. Santos, assistente- técnica da Divisão de Prevenção do Centro de Referência de Tratamento (CRT). Segundo dados do Boletim Epidemiológico do Programa Estadual de DST/Aids, em 1984, a proporção de casos notificados em homens e mulheres era de 27 homens para uma mulher. Em 1996, esse


29 hpv/him

Três países participam do estudo por meio de centros de excelência. O Brasil é representado pelo Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer e o Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids (CRT/DST/Aids-SP), vinculado à Secretaria de Estado da Saúde. O México e os Estados Unidos participam, respectivamente, por meio da Unidade de Investigação Epidemiológica e de Serviços de Saúde e H. Lee Moffitt Cancer Centre & Research Institute. “O Brasil foi incluído no estudo por ser produtor de pesquisas sobre o HPV reconhecidas pela comunidade científica mundial e por apresentar elevados índices de câncer de colo de útero e de pênis causados pelo HPV”, conta Luisa Lina, bióloga, diretora do Instituto Ludwig, entidade sem fins lucrativos, com 9 filiais e diversos cen-

O

E

studos nacionais e internacionais vêm sendo realizados para conhecer melhor o papilomavirus humano (HPV), uma das doenças sexualmente transmissíveis (DST) mais frequentes entre pessoas sexualmente ativas, responsável por cerca de 250 mil mortes por ano no mundo. Parte das respostas obtidas em estudos com mulheres portadoras de HPV resultou nas vacinas disponíveis no mercado. E a doença nos homens, como se comporta? Quais são os fatores de risco e proteção para o público masculino? Estas e outras questões serão reveladas pelo Estudo HIM – História Natural da Infecção pelo HPV em Homens –, atualmente o maior estudo multicêntrico sobre o tema em âmbito internacional, com início em 2005 e que deverá ser concluído em 2013.

camisinha ajuda a proteger contra todos os tipos de HPV O HPV é um vírus que afeta mucosas e pele e pode levar ao surgimento de verrugas a câncer genital, anal e de boca. Já foram identificados mais de 100 tipos de HPV, cerca de 40 deles acometem as áreas genitais e de ânus de homens e mulheres. Constatou-se que 15 tipos são causadores de câncer. Estudos recentes em mulheres resultaram em duas vacinas aprovadas no Brasil: uma quadrivalente, que protege contra os HPVs 6, 11, 16 e 18; outra bivalente contra os tipos 16 e 18. No momento, as vacinas anti-HPV não fazem parte do calendário da vacinação oficial do país. Por tratar-se de uma doença de transmissão sexual, a prevenção se faz por meio de informação e adoção de práticas de sexo seguro, ou seja, uso de preservativos nas relações anal, vaginal e oral.

tros e instituições afiliadas em diversos países. Estima-se que cerca de 70% dos brasileiros sejam portadores assintomáticos do HPV, o que faz deles agentes de disseminação da doença em mulheres. Estudos apontam que entre mulheres portadoras de HPV, menos de 1% dos casos desenvolverá câncer cervical, mas entre as que tiveram câncer, quase 100% apresentaram infecção pelo HPV. O Estudo HIM No Brasil, o Estudo HIM fará seguimento de 1.400 homens voluntários na faixa etária de 18 a 70 anos, moradores da grande São Paulo, sem histórico da doença e que não apresentem verrugas ou câncer genital ou anal. Os voluntários, ao integrar o estudo, respondem a um questionário sociocomportamental e são acompanhados por 4 anos. Nesse período, passam por dez consultas, duas logo no início da adesão e uma a cada 6 meses. “Em geral, entre homens, a infecção pelo HPV é reconhecida pela presença de verrugas no pênis, mas pode também causar câncer de boca; nestes casos, o HPV é um fator de risco que só perde para o tabagismo e para o alcoolismo”, explica Roberto José Carvalho da Silva, urologista responsável pelo estudo no CRT/DST/Aids-SP. Durante o período do estudo alguns homens irão adoecer pelo HPV, outros apresentarão anticorpos para o vírus e, uma terceira parcela, continuará sem contato com o vírus. A avaliação desse comportamento tornará possível identificar os fatores de risco e proteção, e conhecer a história natural da doença.

Paulistas solidários ao estudo Encontrar homens dispostos a colaborar com o estudo de uma doença não foi uma tarefa fácil. “O Brasil é o país com maior índice de recrutamento. Um sucesso que deve ser atribuído à estratégia adotada que incluiu palestras em universidades, canteiros de obras, além de uma ampla divulgação na mídia”, relata Carvalho. O estudo, que teve início em 2005, já apresenta alguns resultados. Observou-se que são elevadas as taxas de HPV no pênis e escroto dos homens entre 18 e 44 anos de idade. Também foi mostrado que a maioria dos HPVs encontrados em homens é de baixo risco oncogênico, o que difere dos resultados em mulheres nas quais os tipos mais prevalentes são os de alto risco oncogênico. Concluído, o estudo HIM será uma grande contribuição para que formas eficazes para combater o HPV em homens sejam descobertas, inclusive, uma vacina. O estudo HIM é financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde Americanos (NIH) e Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer. ×

Em geral, entre homens, a infecção pelo HPV é reconhecida pela presença de verrugas no pênis, mas pode também causar câncer de boca. nestes casos, o HPV é um fator de risco que só perde para o tabagismo e para o alcoolismo (Roberto José Carvalho da Silva)

Estudo quer conhecer melhor o HPV entre os homens


31 sífilis

os desafios da sífilis

Q

uem trabalha com prevenção e controle de doenças gostaria de ter respostas para três questões: Qual é o agente causador da doença? De que forma ocorre sua transmissão? Quais os mecanismos para seu controle e cura? Para a sífilis, há tempos temos as respostas. O agente causador é Treponema pallidum, conhecido desde o início do século 20. A transmissão acontece como a maioria das DST, por meio de relações sexuais, transfusão sanguínea e, no caso da sífilis congênita (SC), da mãe para o bebê, por meio da placenta, durante a gestação. Para o controle e cura, além das medidas educativas, existe medicamento específico, barato e disponível em toda a rede pública de saúde: a velha e boa penicilina, também uma descoberta do século passado. No caso da sífilis congênita, se a mãe for tratada com a droga corretamente, consegue-se diminuir o risco de óbito fetal e o nascimento de crianças com sequelas (cegueira, deformações ósseas, surdez e comprometimento do sistema nervoso central). Então: por que ainda persistem tantos casos de sífilis em adultos e por que ainda hoje crianças morrem ou vivem em decorrência das sequelas da doença? Os desafios da sífilis congênita Sensibilizar população para adoção de medidas de proteção contra a sífilis e outras DST/ aids ainda é um imenso desafio. Entretanto, é possível reduzir os casos de sífilis e eliminar sua transmissão vertical. A doença pode ser detectada por meio de um exame simples, o VDRL. Se o exame der positivo durante a gravidez e a mãe for tratada, interrompe-se a transmissão vertical. Se houver falha no pré-natal, ainda há

oportunidade de realizar o exame no recémnascido na maternidade – e o tratamento, caso necessário. Para Luiza Matida, médica responsável pela área de transmissão vertical do HIV e da sífilis congênita do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo, a doença será eliminada quando for diagnosticada e tratada no prénatal e assistência ao parto; o uso da penicilina de rotina; e o diagnóstico e o tratamento forem realizados nos parceiros. Preconizam-se dois exames VDRL durante o pré-natal. Um na primeira consulta e outro no início do terceiro trimestre da gestação. “Nem sempre isso acontece. Levantamentos apontam que é realizado apenas um exame no pré-natal. E mesmo na última oportunidade, no momento do parto, nem sempre o exame é realizado. Se for diagnosticada a transmissão vertical da sífilis, o bebê pode ser curado e viver sem sequelas”, explica Matida. “Alguns médicos resistem em prescrever a penicilina à gestante com sífilis por receio de choque anafilático. Para estes profissionais, foi elaborado um manual para a realização do teste de hipersensibilidade que permite aplicar a droga com segurança. A penicilina ainda é a única terapêutica eficaz para a sífilis durante a gravidez”, prossegue. “Outro grande desafio é trazer o parceiro dessa gestante ao pré-natal. Não adianta tratar a mãe se não tratar o parceiro. Precisamos sensibilizar os parceiros”, completa. A sífilis no mundo e em São Paulo Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), dos 130 milhões de nascimentos no mundo/ano, 3,3 milhões são natimortos, 3 milhões vão a óbito na primeira semana de vida e 8 milhões de crianças no primeiro ano

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

de vida. De todos esses óbitos, 26% têm como causa a sífilis congênita. No Brasil, embora a notificação da sífilis congênita seja compulsória desde 1986, foram notificados apenas 41.249 casos (1998 - 2007), o que denota subnotificação alta. Isto ocorre, segundo Matida, pela ausência de diagnóstico: seja pela desatenção seja pelo desconhecimento técnico do profissional da saúde, que lê errado o exame. Outro problema é de fluxo entre a unidade de saúde e o laboratório, além da dificuldade de coleta do sangue da veia periférica do recém-nascido com suspeita de sífilis. A informação sobre a situação da sífilis em gestantes no país é recente. No Estado de São Paulo, a notificação obrigatória dos casos começou em 2004, no país em 2005. Estudo sentinela realizado pelo Ministério da Saúde em 2004, em uma amostra de parturientes de 15 a 49 anos, de todas regiões do país, revelou uma prevalência da doença na região Sudeste de 1,6%. “Em São Paulo, o estudo foi realizado em 60 maternidades públicas de referência. Precisamos conhecer melhor esse universo. São Paulo irá realizar um novo estudo ampliado, incluindo maternidades privadas que contribuem com cerca de 40% do total de partos realizados no Estado”, adianta Matida. ×

O

para a saúde pública

As metas de São Paulo para a Sífilis Congênita

Em 2007, a Coordenação Estadual DST/Aids-SP elaborou e instituiu o Plano Estadual de Eliminação da Sífilis Congênita com meta de redução da incidência da doença a níveis inferiores a um caso para cada mil nascidos vivos até 2012. “É preciso sensibilizar a sociedade civil para esta questão. A população precisa saber o que é a sífilis congênita, como preveni-la e tratá-la”, declara Luiza Matida. Outra estratégia é exigir que os gestores de saúde garantam o exame VDRL nas redes pública e privada que realizam os partos. Cerca de 60% dos partos no Estado são feitos pelo SUS. Tratar da sífilis garante economia no campo da saúde pública. O custo da realização dos exames e do tratamento é infinitamente inferior aos gastos despendidos para tratar das sequelas causadas pela sífilis, especialmente em crianças.


33 Entrevista

Sociólogo faz um resgate da política de atenção à aids no Brasil

A

aids entrou na vida do sociólogo e especialista em saúde pública Alexandre Grangeiro em 1985. Até então, ele trabalhava no Departamento de Hansenologia e Dermatologia Sanitária do Instituto de Saúde, vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. Quando os primeiros casos da nova doença que intrigava o mundo começavam a pipocar em São Paulo, as notificações eram endereçadas ao Departamento de Dermatologia Sanitária. A transversalidade da nova epidemia seduziu Grangeiro. Há 25 anos, Grangeiro dedica-se à compreensão, manejo e controle da epidemia, em várias esferas de governo. Em sua trajetória ocupou diversos cargos, de assistente técnico na Área de Vigilância Epidemiológica a diretor do Programa Nacional DST/Aids. Atualmente, dedica-se à pesquisa, publicação de artigos e ativismo no campo da propriedade intelectual. O sociólogo acumulou ao longo do tempo conhecimento em termos teóricos e práticos, o que faz dele um expertise no campo da aids. Nesta entrevista, Grangeiro resgata a estruturação política da atenção à aids no Brasil.

O Brasil foi um dos primeiros países a receber financiamento do Banco Mundial exclusivamente para investimentos em questões da aids. Um dinheiro destinado a organizar a estrutura de saúde e impulsionar a incorporação de novas tecnologias nos países em desenvolvimento

Bandeiras PositHIVas – Como a resposta à epidemia da aids foi inserida no SUS? Alexandre Grangeiro – Curiosamente, a trajetória do SUS e da aids, no mesmo recorte de tempo – as décadas de 80 e 90 –, teve desenhos semelhantes. A descentralização do sistema, que conferia novas atribuições e competências aos municípios, acontecia, concomitantemente, com a descentralização da doença, que deixava de ser exclusividade dos grandes centros do Sul/ Sudeste e ramificava para outras regiões do país e outros municípios de grande porte, fora das capitais. O problema deixou de ser local, com respostas locais e circunscritas a estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, onde surgiram os primeiros casos e já na década de 80 as primeiras respostas à epidemia. A aids passou a ser um problema nacional, demandando uma resposta coordenada e inserida no SUS.

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

B.P – Como os estados e os municípios receberam a encomenda para a incorporação da aids entre suas atribuições na saúde pública? Grangeiro – Acho que foi mais fácil naquele momento do que seria hoje. No início da década de 90 o sistema de saúde estava em construção e isto facilitava a implantação de estratégias inovadoras, baseadas na saúde como direito, na universalidade da atenção e na inclusão de populações marginalizadas. As estruturas das secretarias também não haviam chegado a seu limite e era mais fácil contratarem profissionais e implantar serviços. Ao mesmo tempo, o Ministério da Saúde começava a implantar políticas de fortalecimento das áreas técnicas locais e havia dinheiro para financiar isso. O Brasil foi um dos primeiros países a receber financiamento do Banco Mundial exclusivamente para investimentos em questões da aids. Um dinheiro destinado a organizar a estrutura de saúde e impulsionar a incorporação de novas tecnologias nos países em desenvolvimento. De forma inusitada, fruto dos resultados alcançados, o Brasil firmou três acordos sequenciais que financiaram os projetos Aids I, II e III, entre 1994 e 2007. B.P – Como foi usado esse financiamento? Grangeiro – Durante o Aids I e II, o Ministério da Saúde foi amplamente fortalecido na sua competência técnica e na capacidade de in-

duzir políticas por meio do financiamento e da mobilização de setores da sociedade civil e da área pública. Nos estados e municípios, foi organizada a rede de assistência, implantados projetos de prevenção e teve início o apoio às organizações não-governamentais. Assim, a resposta que, pioneiramente, havia começado em São Paulo torna-se uma resposta nacional. B.P – Como o dinheiro chegava aos estados e municípios? Grangeiro – Por meio de convênios, com toda a burocracia que isso envolve. Para receber o dinheiro, por exemplo, o município tinha que estar totalmente adimplente, em todas as áreas. Isso nem sempre acontecia. Então, na realidade, os municípios ficavam mais tempo sem dinheiro do que com dinheiro. Os convênios não eram os melhores instrumentos porque privilegiam a execução financeira e não o objeto do financiamento, além disso, não passavam pelo controle social. B.P – Essa crítica foi feita pelo ministério e secretarias de saúde para a mudança na forma de financiamento? Grangeiro – Com a experiência do Aids I e II ficou claro que a lógica do financiamento deveria ser a lógica do SUS. Então no Aids III – de 2003 a 2007 –, o financiamento deixa de ser interna-


35 Entrevista cional e passa a chegar aos estados e municípios fundo a fundo, de forma regular e automática, tendo como contrapartida o estabelecimento de metas pactuadas e definidas com a participação do controle social. O foco deixa de ser o controle financeiro e passa a ser o controle da epidemia. Se no Aids I e II o importante era colocar o pé no acelerador para que as respostas se concretizassem, no Aids III, com a implantação da política de incentivo, a meta foi consolidar as conquistas e incorporar novas tecnologias, tanto na prevenção quanto na assistência.

Se no Aids I e II o importante era colocar o pé no acelerador para que as respostas se concretizassem, no Aids III, com a implantação da política de incentivo, a meta foi consolidar as conquistas e incorporar novas tecnologias, tanto na prevenção quanto na assistência

B.P – Na construção da história da aids no Brasil é forte a participação da sociedade civil, não só como controle social, mas como atores na definição das políticas e até no atendimento... Grangeiro – Temos que entender algumas particularidades sociais da epidemia da aids que a diferem de outras doenças. Já nos primeiros casos, a sociedade civil teve que se organizar para combater preconceitos e garantir direitos. Vale lembrar que no início o problema era tratado como restrito aos gays, que lutavam para ter uma identidade socialmente reconhecida. E foram eles, antes de qualquer iniciativa governamental, que alertaram para o potencial impacto da aids, demonstrando que o preconceito seria um desafio maior do que o HIV. Dentro desse contexto, iniciativas das ONGs Grupo Outra Coisa e Casa de Apoio da Brenda Lee, em São Paulo, são as primeiras a realizar ações de prevenção, de defesa de direitos e de assistência no país. B.P – Parceiras nessa trajetória, as ONGs passam a receber financiamento federal. Quando e como isso acontece? Grangeiro – Em 94 o financiamento era por projetos apresentados em concorrência pública nacional. Mas seguindo a lógica da descentralização e a criação da política de incentivo, as concorrências tornam, em 2003, atribuição

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dos estados. Os resultados deste processo no Brasil precisam ser avaliados. Há indícios de que, apesar de positivo, não propiciou o aumento no número de projetos e no volume de recursos repassados. Além disso, a descentralização não avançou para os municípios. B.P – O Ministério da Saúde encomendou ao Departamento de Medicina Preventiva da USP uma avaliação dos últimos 5 anos de implantação da política de incentivo para a aids. O senhor está conduzindo essa avaliação, alguns resultados podem ser adiantados? Grangeiro – Existia um problema inicial de inserir a aids em formas regulares de financiamento do SUS e ampliar a descentralização. Parte foi solucionada. Hoje o financiamento é nacional, sustentado por equipes locais e processos de planejamento e pactuação com a sociedade. Foram ampliados de 150 para 481 os municípios qualificados para receber recursos, o que corresponde à cobertura de mais de 80% dos casos de aids do país. Em São Paulo, este percentual é superior a 90%. Porém, a capacidade dos municípios executarem estes recursos é limitada. Em muitos casos o dinheiro fica parado ou é usado com critérios que não contemplam a realidade local. Muitas ações pactuadas, por exemplo, são voltadas para a população em geral e excluem populações com maior prevalência, como homossexuais, usuários de drogas, profissionais do sexo e pessoas privadas de liberdade. As metas e as ações pactuadas devem ser estratégicas e com capacidade de intervir no curso da epidemia. E isso não está acontecendo. A avaliação aponta que as metas são em maior número operacionais, visando a realização de treinamentos ou a contratação de recursos humanos, e a compra de insumos, por exemplo. Além disso, parte importante dos estados e municípios deixa de contemplar ações estratégicas, como a prevenção da transmissão vertical, o diagnóstico e o tratamento das DST e a redução do estigma.

Muitas ações pactuadas, por exemplo, são voltadas para a população em geral e excluem populações com maior prevalência como homossexuais, usuários de drogas, profissionais do sexo e pessoas privadas de liberdade

B.P: Qual é a solução ou soluções para os problemas apresentados acima? Grangeiro – Nestes 25 anos de resposta à epidemia aprendemos que os bons resultados decorrem de ações abrangentes, que articulam prevenção, assistência e direitos humanos e que contemplam, ao mesmo tempo, a população em geral e, prioritariamente, as populações de maior prevalência, como gays, travestis, trabalhadoras sexuais entre outras. Inclusive, na avaliação que fizemos, os municípios com as respostas mais abrangentes e pautadas nessas diretrizes foram os que apresentaram os melhores indicadores epidemiológicos, demonstrando tendência de redução do número de novos casos e da mortalidade por aids. É essa experiência que precisa ser repassada para todos os municípios prioritários. Para isso é preciso que o processo de gestão da Política de Incentivo em âmbito federal e estadual seja aprimorado a partir de um consenso nacional, envolvendo secretários de saúde e sociedade civil, sobre o conjunto mínimo de ações que devem ser realizadas pelos municípios no contexto da Política de Incentivo. ×


37 emílio ribas

A importância do instituto de infectologia Emílio Ribas na resposta paulista à aids

Era uma loucura, muitos médicos e residentes não queriam atender por medo. Tinha até gente vendendo escafandro e tubo de oxigênio, relembra a médica que até hoje trabalha na internação do Instituto (Rosana Del Bianco)

A

costumado a lidar com grandes epidemias, o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, da Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, voltou a ocupar a mídia no início do ano devido à epidemia da gripe H1N1. O Instituto virou hospital de referência para as pessoas com sintomas da gripe e o pronto-socorro da instituição, que atendia cerca de 500 pessoas por dia, passou a receber 1.500 pacientes. No início da década de 80, os primeiros casos da nova doença que acometia homossexuais nos Estados Unidos também foram parar lá. Em meados de 1983, o primeiro paciente internado com suspeita da nova doença era um cabeleireiro que havia viajado para o exterior. Ele foi encaminhado pela médica Luiza Batista com suspeita de febre tifóide e coube à, então, residente Rosana Del Bianco cuidar do caso. “Ele tinha sapinho e apresentava outros sinais da nova doença, naquele tempo ninguém falava em aids ainda”, relembra Rosana. Ela soube que Paulo Roberto Teixeira, que na época estava no Programa de Hanseníase, estava preocupado com essa nova doença e o procurou para discutir o caso. A partir daí, Rosana passou a ser uma das pessoas de referência do Programa Estadual de DST/Aids-SP dentro do Emílio Ribas para os casos suspeitos de aids. “Era uma loucura, muitos médicos e residentes não queriam atender por

medo. Tinha até gente vendendo escafandro e tubo de oxigênio”, relembra a médica que até hoje trabalha na internação do Instituto, além de ser responsável pela Internação do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP. Assim como os casos da gripe H1N1 não paravam de chegar ao hospital entre os meses de maio a agosto de 2009, os casos de aids se multiplicaram rapidamente depois de 1983. Após um arranjo com a diretoria, Vasco reservou seis leitos da UTI para os pacientes com aids, porém a demanda não parava de crescer. A solução foi a criação do Emílio Ribas II, que mais tarde se transformou no Centro de Referência e Treinamento em Aids, atual CRT DST/Aids. Coube ao médico Vasco P. Lima, da diretoria clínica, preparar o hospital para a demanda gerada pela nova epidemia. No início foram apenas três andares do novo prédio do Ribas II, devido à falta de profissionais de saúde dispostos a trabalhar com a nova doença. Foi só por meio do incentivo oferecido no holerite é que o Hospital conseguiu ter um quadro completo. A Importância do Emílio Ribas para a Aids O Emílio Ribas foi referência para a desmitificação da aids, para o atendimento ao paciente internado e em saúde pública, pois nunca fechou as portas para a nova doença. “A epide-


39 emílio ribas

po de estágio de nove faculdades de medicina e duas de enfermagem. De acordo com Ana Carla Carvalho de Mello e Silva, diretora do ambulatório do Instituto, 20 residentes de medicina fazem campo de infectologia no Instituto. “Oferecemos muito mais vagas do que qualquer outro hospital”, comenta Ana Carla. Segundo Rosana, o Emílio Ribas treinou médicos do Brasil inteiro. “Muitos dos infectologistas capacitados para o tratamento da aids no Brasil passaram pelo Instituto. Ele foi um impulso para quem realmente se interessou por essa doença.” Para quem pensa que ser atendido por residentes desagrada aos pacientes do Ribas, Abel Corino da Fonseca Neto, 47, portador do HIV e usuário do serviço, afirma que prefere mil vezes ser tratado por um médico em início de carreira. “Eles são como os motoristas que acabaram de tirar a carteira de habilitação, dá seta, coloca o cinto de segurança, faz todos os procedimentos de forma correta. Como está estudando e aprendendo, o residente tem vontade de fazer tudo certo. Fora isso, eles são supervisionados por excelentes médicos.”

O Ribas é minha casa. É mais fácil faltar no meu trabalho do que aqui, pois a pessoa internada está me esperando. Se eu não vier visitála, não tem outro que venha

(Abel Corino da Fonseca Neto)

mia de aids em São Paulo sempre foi encarada como questão de saúde pública, diferente do Rio de Janeiro em que a epidemia ficou restrita, no início, aos hospitais universitários”, afirma Paulo Teixeira, consultor do Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo. Outra grande contribuição do Instituto à epidemia é sua missão pedagógica, uma vez que é um hospital escola. Atualmente, é cam-

Abel tem uma relação de amor com o Emílio Ribas. Usuário há 17 anos, voluntário há 6 e coordenador do projeto de Cuidados Paliativos, ele afirma que um dos motivos que o prendem à cidade de São Paulo é o hospital. “O Ribas é minha casa. É mais fácil faltar no meu trabalho do que aqui, pois a pessoa internada está me esperando. Se eu não vier visitá-la, não tem outro que venha.” Abel está atuando também na implantação do conselho Gestor da Instituição. No começo do ano, David Uip, novo diretor do hospital, recebeu representantes de usuários e do Fórum de ONG/Aids de São Paulo para discutir a implantação desta forma colegiada de gestão. Segundo Rodrigo Pinheiro, presidente do Fórum, esta é uma demanda histórica do movimento social. ×

Nova Direção do Emílio Ribas que “o hospital não vai perder sua capacidade histórica de resposta à aids. O que vamos fazer é aumentar a possibilidade de atendimento para outras doenças”. Entre as novidades a serem implantadas pela nova gestão estão: a retirada do ambulatório de aids de dentro do hospital, aumentando o número de leitos hospitalares de 195 para 313; a reforma de um prédio para abrigar o novo ambulatório; a realização de transplante de rim para portadores do HIV; o aumento da cirurgia estético reparadora e a criação de um ambulatório de ortopedia. Em 22 de setembro, foi realizada no hospital a primeira cirurgia de artroplastia total de quadril com componentes de cerâmica, de última geração, em paciente soropositivo. A cirurgia foi realizada no Emílio Ribas com

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a colaboração do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids e do Hospital das Clínicas. A compra das próteses de cerâmica foram feitas pelo o CRT DST/Aids, que adquiriu 12 próteses a um custo médio de R$ 20.000 por unidade. Segundo Maria Clara Gianna, coordenadora do Programa Estadual DSt/Aids-SP, “a ocorrência de necrose avascular em pacientes soropositivos, em uso de terapia antirretroviral, é de 4%, uma prevalência 20 vezes maior do que na população em geral”. Com a sobrevida dos portadores do HIV/aids, devido à terapia antirretroviral, é preciso garantir ao portador do HIV uma vida digna e sem complicações de saúde. “Nossa missão é oferecer qualidade de vida às pessoas que vivem com aids”, afirma Uip.

o hospital não vai perder sua capacidade histórica de resposta à aids. O que vamos fazer é aumentar a possibilidade de atendimento para outras doenças (David Uip)

Em fevereiro deste ano, o infectologista David Uip assumiu a direção do Emílio Ribas. Seu objetivo para o Instituto é audacioso: tornar o I.I.E.R o maior centro de diagnóstico e tratamento e prevenção de doenças infectocontagiosas. Para tanto, uma parceria entre a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, Faculdade de Medicina da USP e Fundação Faculdade de Medicina da USP está andamento. Uip reconhece a importância do Ribas para a aids, mas acredita que a missão da instituição é maior. “Este hospital precisa dar retaguarda a estes pacientes, mas também deve atender às suas outras funções acadêmicas de ensino, pesquisa e atenção para todas as doenças infectocontagiosas.” O novo diretor do Ribas garante, porém,


41 aids e religiões

Ciência e espiritualidade:

a aids une as religiões

U

ma campanha de prevenção à aids, lançada pelo Programa Estadual de DST/Aids-SP, em fevereiro de 1988, aproximou a medicina da religião. Segundo a médica Maria Eugênia Lemos Fernandes, responsável pela área de prevenção do Programa na ocasião, havia duas campanhas sobre a nova doença circulando na grande mídia (televisão e rádio). Uma elaborada pelo Programa Nacional de DST/Aids, que falava sobre os famigerados grupos de risco, e outra do Programa paulista

focada na promoção do uso do preservativo. Receosos de que esta mensagem pudesse causar mal-estar entre os religiosos, Maria Eugênia e outros técnicos do Programa Estadual de DST/Aids-SP se aproximaram de lideranças das religiões católica, protestante, judaica e de matriz africana. Os encontros para discutir a nova doença aconteciam às terças-feiras no Centro de Referência e Treinamento em Aids, CRT-A (atual CRT DST/Aids). O rabino Henri Sobel, o padre Julío Munaro (representante da Arquidiocese de São Paulo), além de representantes da igreja presbiteriana e das religiões afro se reuniam com os técnicos para aprender sobre a nova doença. A ênfase dada durante os encontros era de que a aids era um problema de saúde pública e não um problema moral ou bíblico, explica a médica. Segundo Maria Eugênia, o dr. Antônio Carlos de Azevedo, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, foi fundamental nestes encontros. “Por ser um grande conhecedor da Bíblia, ele nos ajudava em momentos de embate entre nós, técnicos da área da Saúde, e os religiosos, fazendo uso de argumentos pautados no livro sagrado.”

Levamos para a oficina uma mãe católica que deu depoimento sobre seu filho portador do HIV e seguidor do candomblé

(pai celso)

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Após algumas terças-feiras, ficou claro o desconforto entre os religiosos que seguiam o monoteísmo e os representantes das religiões afro. Por isso, os encontros passaram a acontecer separadamente. Às sextas-feiras, os profissionais do programa ensinavam técnicas seguras para serem usadas nos rituais aos pais e mães de santo. De acordo com Maria Eugênia, havia na ocasião 16 mil terreiros no Estado. Houve um trabalho árduo da equipe do Programa junto aos pais e mães de santo para conter a disseminação do HIV nos rituais de escarificação, em que o compartilhamento da navalha era corriqueiro. “Trabalhamos com a noção de rituais seguros em que os cortes deveriam ser feitos com navalhas individuais”, comenta a médica. Esta experiência de trabalho entre o Programa Estadual de DST/Aids e as religiões foi apresentada no V Congresso Mundial de Aids, realizado em Montreal, no Canadá, em 1989, e, segundo Maria Eugênia, foi muito bem recebida. GT Aids e Religiões Em 2001, Celso Ricardo Monteiro, o Pai Celso, líder religioso do candomblé e coordenador do Grupo de Valorização do Trabalho em Rede – que reúne 15 das maiores religiões de matriz africana –, procurou o PE com uma demanda específica: a organização de uma oficina onde técnicos do Estado apresentariam aos líderes religiosos respostas para suas dúvidas sobre a epidemia. O que era para ser exclusivo para o povo da umbanda e candomblé foi ampliado para outras religiões. A oficina se transformou em um momento ecumênico. “Levamos para a oficina uma mãe católica que deu depoimento sobre seu filho portador do HIV e seguidor do candomblé e o grupo das marianas, formado por senhoras idosas católicas e negras que cantaram cantigas da cultura afro. O objetivo era trabalhar a tolerância religiosa. Também foram abordadas questões práticas como o uso de navalhas em rituais e o risco de contaminação

da aids”, lembra Paula Souza, coordenadora do Grupo Técnico Aids e Religiões, formado após a realização da oficina, como estratégia do PE para aproximar as religiões das questões da aids. “O que fizemos foi mostrar para o Estado que ele deveria ter uma postura uniforme em relação à aids e às religiões”, lembra o precursor Pai Celso. A iniciativa obteve resultado. A oficina foi um marco. A partir dela, começaram a chegar ao GT pedidos de outros segmentos, como da Federação Espírita, por exemplo. “A cada pedido, aproveitávamos para agregar mais um segmento religioso. Outras oficinas foram organizadas. Era a estratégia com que contávamos. Nosso objetivo era ter a representação de todas as religiões no GT, mas não sabíamos onde encontrá-las. Os terreiros, por exemplo, não têm uma organização, nenhuma listagem com dados, endereços, nomes dos responsáveis. Isso é um comportamento cultural, já que em outras épocas sofreram muita perseguição do Estado. Então o mapeamento se dá de forma espontânea. Nos municípios acontece isso. Você organiza uma oficina, a princípio chama três terreiros conhecidos na cidade e aparecem outros, que não estavam mapeados”, exemplifica Paula.


43

artigo

aids e religiões A aproximação da entidade ecumênica Koinonia com o GT traz com ela uma importante representação dos protestantes e pentecostais – as neopentecostais não integram o grupo. Em 2006, a Igreja Anglicana passa a integrar o GT e com ela outro evento acontece e marca o ecumenismo aids e as diversas religiões. “Organizamos uma vigília reunindo as religiões católica, protestante, candomblé em uma noite de orações das diversas fés, com a participação do Gapa, da Koinonia e do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids, do Programa Estadual”, lembra o reverendo Arthur Cavalcanti. A ciência ou o místico, ou os dois A aids e suas formas de prevenção são abordadas de maneiras diferentes pelos grupos religiosos. O uso do preservativo ou a abstinência como forma de prevenção; a posição diante das orientações sexuais diferentes como um direito individual; culpa, castigo, céu e inferno. Nada disso é objeto de discussão nas reuniões mensais do GT, que acontecem na capital e em vários municípios. A proposta do GT deve ser útil a todos: fornecer apoio ao paciente e reforçar a não discriminação. O Estado oferece o espaço, aproxima as religiões das ONGs, acompanha as discussões, mas não as provoca”, conta Paula. Os técnicos do PE DST/Aids-SP muitas vezes são chamados pelo GT para oferecer explicações científicas para al-

guns “fenômenos”, como da carga viral indetectável, atribuída por alguns pastores evangélicos a milagres. “Explicamos o que significa a diminuição da carga viral ou mesmo a carga indetectável, situação que pode ocorrer no curso do tratamento. Mas também ponderamos que a religião pode ser um suporte para o paciente. O sentido da cura pode ser trocado pelo sentido da vida com a aids”, explica Paula. Em seus oito anos de existência, a principal estratégia do GT, dentro do que preconiza um estado laico, tem sido a de aproveitar os espaços oferecidos pelas religiões para introduzir informações sobre prevenção, sem discutir dogmas. O resultado tem sido muito positivo. As reuniões mensais em São Paulo reúnem cerca de 20 líderes religiosos, as atividades dos GTs nos municípios são intensas e um grupo virtual na internet conta com mais de cem membros e cresce a cada dia. Assim como as diversas linhas religiosas podem conviver de forma ecumênica, as respostas da ciência podem permitir leituras novas e ampliadas das escrituras bíblicas. “O Programa Estadual é fonte de informação técnica, a partir delas podemos fazer outro tipo de leitura da Bíblia. As escrituras podem ser lidas de várias maneiras que respeitem a estrutura da igreja e contemplem as questões de prevenção”, conclui o reverendo Arthur. ×

Organizamos uma vigília reunindo as religiões católica, protestante, candomblé em uma noite de orações das diversas fés, com a participação do Gapa, da Koinonia e do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids (Arthur Cavalcanti)

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fortalecendo a sociedade civil e a resposta local À epidemia Sara Romera da Silva Médica Sanitarista, Mestre em Saúde Pública, Gerente da Assessoria Planejamento do CRT DST/Aids-SP até 09/2009

M

arca indissociável da resposta à epidemia de aids em nosso país é, sem dúvida, a presença, desde o primeiro momento, da sociedade civil em variadas formas de manifestação e organização. À frente, formulando e reivindicando políticas públicas, ou ao lado, monitorando ações e diretrizes, o movimento social mais diretamente afeito aos problemas ligados à aids tem sido legítimo protagonista dessa história. As pessoas que vivem e convivem com o HIV e as que de alguma forma estão envolvidas com o problema em suas manifestações ou em sua gênese sempre propuseram alternativas e criaram tecnologias inovadoras para essa resposta, traduziram enfaticamente as necessidades e expectativas das pessoas acometidas e souberam apontar perspectivas avançadas de enfrentamento. Um reconhecimento e uma conquista desse protagonismo tem sido, desde os anos 90, o financiamento de ações desenvolvidas pelas Organizações da Sociedade Civil (OSC) pelo Programa Brasileiro de DST/Aids, sempre por mecanismos públicos, transparentes e democráticos, inaugurando novas formas de participação social na saúde. No fim de 2002, com a implantação da Política de Incentivo1, este recurso se consolida em política pública incorporada aos mecanismos de repasse do SUS para Estados e municípios. São estabelecidos valores proporcionais por Estado, destinados ao financiamento de ações realizadas pelas OSC. Dando seguimento a essa política, em 2004 e 2005, novos recursos são alocados com essa mesma finalidade2, ampliando os valores anteriores e criando mecanismo de repasse para municípios, particularmente para Casas de Apoio. Para viabilizar o repasse financeiro às OSC, a Coordenação do Programa Estadual de DST/Aids –SP já realizou, desde 2003, cinco concorrências públicas para seleção de projetos, como mostra o quadro abaixo (as seleções de 2009 ainda estão em andamento). Número de projetos e recursos repassados às OSC, ESP, 2004 a 2008. Ano

Valor total repassado (R$)

Número total de projetos

2005

4.305.590,88

83

2006

3.820.830,77

71

2007

3.908.992,06

91

2008

8.833.602,90

123

Fonte: CE PE DST/Aids-SP – Assessoria de Planejamento. 1 2

Portarias 2.313 e 2.314/02 – GMS Portarias 1824/04 e 2190/05 – GMS


45 ética em pesquisa

Autores: Sara Romera da Silva – responsável pela Assessoria de Planejamento da Coordenação Estadual de DST/Aids de São Paulo Jean Carlos de Oliveira Dantas – diretor do Núcleo de Articulação com a Sociedade Civil – Assessoria de Planejamento da Coordenação Estadual de DST/Aids de São Paulo Valéria Nanci Silva – técnica da Assessoria de Planejamento da Coordenação Estadual de DST/Aids de São Paulo

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HIV. Se candidatou depois de ler no jornal que o protocolo 055 poderia ser cancelado por falta de voluntários. Ele não teve dúvidas, ligou para o serviço, descobriu que seria submetido a uma rotina de exames e avaliações, conversou com a família e entrou de cabeça na pesquisa. Isso, há 3 anos. Ele tinha apenas 19 anos. Além de Daniel, outros 110 voluntários participam de 5 estudos de vacina conduzidos pelo CRT DST/Aids-SP. Ao contrário das pesquisas de medicamento, o voluntário de vacinas não pode foto: agnaldo rocha/arquivo crt dst/aids

Passados seis anos da criação de mecanismos de transferência de recursos para que o Estado financie ações das OSC ligadas às DST/aids, hoje é possível e necessário que parte desse processo seja gerido pelos municípios, em particular onde a presença das organizações e do ativismo sejam mais atuantes. Com base na análise histórica dessas ações e no debate junto a gestores estaduais, municipais e federais e OSC, a CE do PE DST/Aids-SP propôs e aprovou, junto à Comissão Intergestores Bipartite, a descentralização de parte deste recurso de forma proporcional para os municípios de São Paulo, Campinas, Guarulhos, Sorocaba, Piracicaba, Carapicuíba, Ribeirão Preto e São Vicente. Esta decisão pactuada e consensual entre os parceiros envolvidos marca o início de uma nova fase para OSC e gestores ligados às DST/aids no Estado. Municípios e entidades poderão construir localmente processos democráticos e transparentes, mais próximos da realidade dos que poderão se beneficiar de fato das ações desenvolvidas. Por outro lado, o seu acompanhamento poderá ocorrer de maneira mais rica e o acesso aos recursos facilitado pela maior proximidade dos ativistas. Não obstante, é preciso lembrar que essa garantia não é automática. O apoio da Coordenação será fundamental, particularmente nas fases iniciais. E, mais do que esse apoio, o acompanhamento em todos os momentos da construção dos critérios de financiamento até a aprovação e monitoramento dos projetos pelas OSC e suas articulações estaduais, como o Fórum de ONG/Aids-SP, Rede Nacional de Pessoas Vivendo, Fórum Paulista LGBT, Movimento Nacional de Cidadãs Posithivas, entre outros, serão a verdadeira garantia de que essa descentralização virá para ampliar o acesso e resultar em melhor e mais significativa resposta por parte de gestores e ativistas aos desafios da epidemia de aids em nosso Estado.

É uma escolha. Tem quem prefira esperar para tomar o remédio já testado. Eu preferi arriscar.” A opção foi feita por Leonardo*, advogado, 40 anos, há 20 vivendo com o HIV. Ele participou dos estudos que testaram o TMC114, medicamento batizado de darunavir, e o TMC 125, o etravirina. Em 2004, quando se candidatou como voluntário no CRT DST/Aids-SP, sua contagem de células T-CD4 era mínima: 21. O tratamento não fazia efeito e não havia alternativa de resgate. Foi em 1995, na pesquisa do indinavir, que começaram os ensaios clínicos no CRT DST/ Aids-SP. De lá para cá, foram feitos 40 estudos, financiados por nove laboratórios farmacêuticos. Atualmente, são 13 pesquisas que reúnem cerca de 200 voluntários. “Uma das vantagens para o paciente é ter acesso a um tratamento que estará disponível na rede pública entre quatro e cinco anos. Para quem já está em falência, existe a possibilidade de resgate. O benefício é grande”, avalia José Valdez Ramalho Madruga, coordenador da Unidade de Pesquisa de Medicamentos do CRT DST/Aids-SP. “Nunca me senti uma cobaia. Tudo estava muito claro, os riscos, a possibilidade de entrar e sair, a probabilidade de não dar certo”, lembra Leonardo que, de fato, se beneficiou do estudo: a imunidade melhorou, a carga viral diminuiu, retomou o peso e mantém suas atividades. O laboratório mantém o tratamento de Leonardo. Mas isso não é um favor. Cumpre-se a norma ética brasileira que garante aos voluntários o acesso ao melhor tratamento testado até que este esteja disponível na rede pública. Daniel Gervásio é outro voluntário. Ele faz parte do estudo de fase 1 para uma vacina anti-

Nunca me senti uma cobaia. Tudo estava muito claro, os riscos, a possibilidade de entrar e sair, a probabilidade de não dar certo

Essa decisão pactuada e consensual entre os parceiros envolvidos marca o início de uma nova fase para OSC e gestores ligados às DST/Aids no Estado

medicamentos, vacinas e pesquisas comportamentais

(*leonardo)


47 ética em pesquisa Ética em Pesquisa (CEP) de instituições de ensino e serviços de saúde. Atualmente, são 584 CEPs em todo o País. A estrutura normativa de pesquisa ainda envolve a Anvisa e o Ministério da Ciência e Tecnologia. “A 196 é considerada um marco para as pesquisas no País. Ela aborda o acesso a medicamentos pós-estudos, a garantia de sigilo, a vulnerabilidade de certos grupos, como gestantes e crianças, e prevê o retorno de benefícios para a comunidade que participou, direta ou indiretamente, do estudo”, diz Eduardo Lagonegro, coordenador do CEP do CRT DST/Aids-SP. Na opinião de Artur Kalichamn, diretor do CRT DST/Aids e coordenador da Unidade de Pesquisa de Vacinas Anti-HIV do CRT, a legislação brasileira é muito boa, porém ela acredita que o Conep precisa de mais agilidade na avaliação dos projetos, pois o volume é muito grande e os pareceres, às vezes, são demorados. por exemplo, a não doar sangue, porque pode desenvolver anticorpos contra o HIV e ter resultados falso-positivos em exames de aids”, explica Sirlene. Quando Daniel conta aos amigos que vai ao CRT até duas vezes por mês e não recebe nada por sua solidariedade, acham que ele é louco. “O voluntário não precisa da gente é a gente que precisa dele”, conclui Sirlene. Padrão Brasileiro É preciso ter cuidado com pesquisas que envolvem seres humanos. O Brasil tem uma das normas mais avançadas do mundo quando se fala em ética em pesquisa. A resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde segue os princípios da beneficência, não-maleficência, autonomia, justiça e equidade. As exigências feitas aos pesquisadores vão de A a Z e o objetivo é proteger o Sujeito de Pesquisa, como é chamado o voluntário. A resolução também cria o Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) e, subordinados a ele, os Comitês de

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ter o HIV. Essa não é a única exigência: “Para participar de um estudo de vacinas em fase 1, que avalia a segurança, não dá para ter apenas boa saúde. É preciso ter ótima saúde. Um quadro de asma pode ser motivo de exclusão”, explica Sirlene Caminada, coordenadora da Unidade de Pesquisa de Vacinas do CRT DST/Aids-SP. Por que alguém que só vai ao médico fazer exames de rotina vira voluntário de uma pesquisa? A explicação de Daniel é puro altruísmo: “Me identifiquei com a causa. Nem sempre dá para participar de algo tão importante”. Daniel é enfermeiro e fala como profissional de saúde: “Quantas vacinas tomamos na vida? Várias. Quantas pessoas sofreram para podermos tomar vacinas com toda a segurança? É bom saber que dá para ajudar as pessoas lá na frente”. Conseguir voluntários para estudos de vacinas preventivas anti-HIV não é uma tarefa fácil. “São duas dificuldades para encontrar voluntários em pesquisas. A elegibilidade e a disponibilidade da pessoa. Ela tem que estar disposta,

Pressão As pesquisas envolvendo a indústria farmacêutica não estão longe da polêmica. Se Leonardo fosse voluntário em algum país da África, provavelmente não teria acesso ao medicamento que ajudou a desenvolver após a conclusão do estudo. A necessidade de estabelecer limites éticos para condução de estudos com seres humanos ficou clara a partir de vários casos tenebrosos de abusos, como as pesquisas em campos nazistas. Em 1947, o Código de Nuremberg, passa a definir o que é permitido em experimentos médicos com humanos. Menos de 20 anos depois, a Associação Médica Mundial assina a Declaração de Helsinque, que serve de referência para a maioria das diretrizes nacionais e internacionais e é considerada por muitos como o mais importante padrão internacional de pesquisa biomédica. Mesmo com a existência de normas, no início dos anos 70, foi divulgado o experimento

me identifiquei com a causa. Nem sempre dá para participar de algo tão importante (Daniel Gervásio)

“Casinha” do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP que abriga a Unidade de Pesquisa de Novos Medicamentos e a Unidade de Pesquisa de Vacinas Preventivas contra o HIV/Aids


49 novas tecnologias

ética em pesquisa

de Tuskegee, nos Estados Unidos, que de 1932 a 1972 acompanhou 399 homens negros com sífilis, sem nunca ter revelado o diagnóstico da doença nem realizado o tratamento. Um dos “benefícios” oferecidos era o pagamento do funeral. O caso deu origem a mais uma norma, o Relatório Belmont, de 1979, que define regras de proteção a seres humanos em ensaios clínicos. Ainda assim, a pressão para flexibilizar as regras continua: “Com normas mais rígidas em alguns países e buscando facilidades, os laboratórios voltaram suas ações para os países em desenvolvimento, em especial, o continente africano”, avalia Dirceu Grecco, membro do Conep. Ele continua: “Quando se fala do HIV, estes países tornam-se cenário ideal para abusos: o mesmo vírus e a mesma doença dos países ricos, alta prevalência e incidência e voluntários, autoridades e pesquisadores menos exigentes”. A última alteração da Declaração de Helsinque mostra que o fôlego para resistir às pressões da indústria farmacêutica e dos governos dos países desenvolvidos está menor. “No ano 2000 houve um grande esforço, especialmente do governo e das empresas norte-americanas, para que a Declaração deixasse de exigir a garantia de acesso ao tratamento e permitisse o uso de placebo nas pesquisas, mesmo em situações onde existe tratamento”, lembra Grecco. Naquele ano, a flexibilização proposta

É preciso convencer o mundo de que o ser humano deve ser tratado de forma igual, que saúde pública não é comércio e que as conquistas devem ser divididas entre todos (Dirceu Grecco)

foto: agnaldo rocha/arquivo crt dst/aids

foi derrotada. Mas em outubro de 2008, a Associação Médica Mundial reduziu as exigências: permitiu o uso de placebo e abriu espaço para acabar com a obrigatoriedade do acesso ao tratamento pós-estudo. Resistência Para reverter a situação, a proposta do membro da Conep é de que as Nações Unidas encabecem a discussão: “Instituições mundialmente representativas, como a OMS e a Unesco, podem definir requisitos éticos baseados na equidade. É preciso convencer o mundo de que o ser humano deve ser tratado de forma igual, que saúde pública não é comércio e que as conquistas devem ser divididas entre todos”, conclui. Grecco não faz a crítica sozinho. As mudanças na declaração de Helsinque enfrentaram uma oposição firme do meio científico brasileiro. Apesar da derrota, a Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina mantiveram posição contrária às mudanças. Além disso, o Conep aprovou a resolução 404/08 que torna não ética a participação de qualquer médico brasileiro em pesquisas com uso do placebo quando existe terapia eficaz. A postura brasileira torna mais confortável a opção de Leonardo. Perguntado se participaria de outro estudo, responde: “Sem dúvida alguma”. × *Nome fictício.

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Ciência busca novas

alternativas para prevenir o HIV

M

arcos Freitas, 27 anos, cresceu ouvindo falar de aids e de preservativo. Há cinco anos ele namora outro homem. Os dois não usam camisinha. Confiança e o teste anti-HIV embasaram a decisão. Marcos se candidatou a voluntário da Iniciativa Profilaxia Pré-Exposição (Iprex), um estudo da Universidade de São Paulo (USP) que tem por objetivo descobrir se o uso profilático de antirretrovirais pode prevenir a infecção pelo HIV. “Acho que o excesso de cuidado com o sexo às vezes cansa. Se esse tratamento for mesmo eficiente, todo mundo sai ganhando”, diz Marcos. Ele não foi selecionado para participar do estudo. o motivo alegado pela equipe foi: ele não se enquadrava no perfil dos voluntários que o estudo estava procurando. Outras 20 pessoas foram escolhidas. Duzentos voluntários devem ser cadastrados só na grande São Paulo. O perfil dos candidatos é claro: homens com alta vulnerabilidade que fazem sexo com homens (HSH). Parte dos participantes toma todos os dias um medicamento composto por dois inibidores de transcriptase reversa, o tenofovir e a emtricitabina. Outra parte toma placebo. Os voluntários serão acompanhados por dois anos, recebem preservativos e realizam teste anti-HIV todos os meses. A pesquisa é conduzida em quatro países, financiada pela Fundação Gates e pelo National Health Institute (NIH), agência de pesquisa em saúde dos EUA. Os medicamentos são fornecidos pelo laboratório Gilead. No Brasil, outros dois centros também participam do estudo, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O resultado preliminar está previsto para o fim do ano.

Perguntas Em São Paulo, os voluntários começaram a ser cadastrados em julho de 2008. Tempo suficiente para inflar a polêmica sobre a Profilaxia Pré-Exposição, conhecida como Prep. Sobram perguntas. A primeira delas é sobre eficácia. Estudos em macacos mostram que o medicamento evitou a infecção em 100% dos casos. Em seres humanos, os pesquisadores preferem a parcimônia. “A avaliação é de que em países com incidência menor que 1%, se a Prep alcançar 50% de eficácia, já pode ser considerada efetiva”, diz o coordenador do estudo em São Paulo, o infectologista Esper Kallás.


51 novas tecnologias

(Artur Kalichman)

ponder: “Existe a profilaxia pós-exposição para o HIV. Não é o caso de medicar indiscriminadamente. Mas localizar os grupos tão expostos que já estariam submetidos a um tratamento de pós-exposição contínuo, na prática, já um tipo de Prep”. A ponderação fica a cargo de Paulo Roberto Teixeira, consultor do Programa Estadual DST/Aids: “Estes são temas presentes. Não há como evitá-los. O caminho é informar, discutir e aguardar os resultados”. Circuncisão A circuncisão é outro método que gera dúvidas. Hoje, é preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como meio de prevenção para homens heterossexuais em epidemias generalizadas, leia-se: África Subsaariana. No Brasil, que tem uma epidemia concentrada, ainda não virou política de saúde pública. “É estranho pensar em um método exclusivo para homens heterossexuais, uma população que está longe de ser a mais vulnerável no Brasil”, lembra Tiago Duque, do Grupo Identidade, uma ONG de Campinas.

Diu, diafragma, pílula... Os anticoncepcionais são analogia frequente na discussão sobre as formas de acesso à Prep. “Provavelmente, não será uma política de distribuição em massa. Um caminho é manter a oferta daquilo que é, ainda, o mais eficiente e barato, a camisinha, e deixar para o indivíduo a possibilidade de escolher outro método. É assim com os anticoncepcionais”, diz Kalichman. “E os efeitos colaterais pelo uso contínuo do medicamento?”, pergunta Beloqui. O site do Iprex diz que a maior parte das pessoas não sente os efeitos colaterais do medicamento. Mas 10% relatam dor de cabeça, cansaço, escurecimento da pele, aumento de triglicérides, febre... Alexandre Grangeiro, pesquisador do Departamento de Medicina Preventiva da USP, pergunta: “Tem sentido medicar uma pessoa durante a vida sexual dela inteira?” Esper Kallás lança mão do consenso terapêutico para res-

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A partir desta eficácia surge outra questão: como trocar o certo pelo duvidoso? No caso, trocar o preservativo, que tem quase 100% de eficácia, por medicamentos que podem não ser tão eficazes assim. “É preciso prever se a Prep pode vir a prejudicar o uso do preservativo”, alerta Artur Kalichman, coordenador adjunto do PE DST/Aids. “Ao trocar alguma coisa que tem uma eficácia quase total por uma que tem 50%, você faz um mau negócio. Se juntar as duas, pode ser que não”, completa. “A Prep sozinha está fadada ao fracasso, ela precisa estar associada à prevenção tradicional”, alerta Kallás. A desconfiança em relação à Prep não convence Alexandre Menezes, representante da International Aids Vaccine Initiative, IAVI, no Brasil: “Muitos avaliam as pesquisas sem abrir mão do discurso atual da prevenção. O resultado é resistência. Imagino que o tratamento não será indicado para todos, mas se der certo, pode fazer parte do pacote de prevenção”. Em quais situações será indicada? Essa é outra pergunta que ainda aguarda resposta. Em 2008, 31 mil pessoas com aids receberam o tenofovir no Brasil. Custo anual: US$ 43 milhões. Jorge Beloqui, ativista do Grupo de Incentivo à Vida (GIV) lança a questão de fundo ético: “Estamos pesquisando algo que vai ser útil para o Brasil? Ou vai ser como a vacina contra o HPV que foi testada em brasileiras e não está disponível?” A gerente da área de prevenção do Programa Estadual de DST e Aids, Elvira Filipe, traz o dado da realidade: “Estamos falando de uma medicação cara. Como vamos arrumar tanto remédio para medicar tanta gente? Imagino que será preciso definir critérios”, conclui.

Um caminho é manter a oferta daquilo que é, ainda, o mais eficiente e barato, a camisinha, e deixar para o indivíduo a possibilidade de escolher outro método. É assim com os anticoncepcionais

fundação oswaldo cruz desenvolve microbicida vaginal brasileiro Dolabelladienetriol. Esse é o nome da substância que pode ser o primeiro antirretorviral (ARV) brasileiro e que, na forma de microbicida vaginal, teria chances de evitar a infecção pelo HIV. O medicamento desenvolvido pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC) poderá ser usado por mulheres antes da relação sexual. Em testes com animais, a substância funcionou como um tipo de barreira contra o HIV em 90% dos casos. Em testes in vitro, inibiu a replicação do vírus em células humanas infectadas pelo HIV. A substância retirada de uma alga mostra baixa toxicidade e já foi aceita pela Aliança para o Desenvolvimento de Microbicidas, organização apoiada pela Fundação Bill & Melinda Gates, como um potencial microbicida. A expecta-

tiva do Coordenador do Estudo, o imunologista Roberto Castello Branco, do IOC, é de iniciar os ensaios clínicos já em 2010. Outra novidade que anima o meio científico é o microbicida Pro2000, do laboratório norteamericano Indevus. Os resultados de um estudo clínico envolvendo 3.100 mulheres mostram até 30% de eficácia. Mulheres que usaram o Pro2000 tiveram 30% menos infecções do que as que receberam placebo. Mas o resultado não tem relevância estatística. Agora, os cientistas voltam a atenção para o teste que está sendo feito com outras 9.400 mulheres na África. Se for mesmo comprovada a eficácia do Pro2000, o microbicida poderá ser, em breve, mais um método para ajudar na prevenção ao HIV.


artigo

novas tecnologias Não existem estudos mostrando a eficácia do método entre HSH. Só agora pesquisadores do Peru e Equador começam um ensaio clínico para avaliar se a circuncisão pode mesmo reduzir a transmissão do HIV nesse grupo. A questão de gênero também é alvo de debates: “Se já existe muita dificuldade por parte das mulheres em negociar o uso do preservativo, isso pode ficar ainda mais complicado se implantarmos um fator protetor apenas para os homens”, lembra Elvira Filipe. “A tendência é que o método não seja adotado como política de massa para a epidemia brasileira, mas poderia ser feita por decisão individual”, conclui Paulo Teixeira. Dilemas A discussão sobre as novas tecnologias lança luz sobre os dilemas da prevenção. Jorge Beloqui coloca a questão: “Será que o discurso da prevenção anda enrijecido? Há muito tempo, nas oficinas de sexo seguro, falávamos em hierarquias de risco. Depois, tudo virou preservativo. Mas é bom ter claro que as pessoas não decidem a vida sexual apenas pelo ponto de vista de máxima segurança”. “Prevenção é muito complicado de se fazer em relação a qualquer doença. O cigarro, por exemplo, todo mundo sabe dos riscos, mesmo assim há quem continue fumando. O preservativo não vai atingir todo mundo. Mas não dá para parar de falar nele”, pondera Elvira.

“O que temos aprendido é que a prevenção é um meio e não um fim. O preservativo é fundamental, mas não é a única preocupação. O maior desafio é não sermos autoritários”, diz Tiago Duque. Água fria Outro catalisador das novas tecnologias foi o resultado das pesquisas de vacinas preventivas anti-HIV. Em 2007, quando um produto do laboratório norte-americano Merck ainda era testado, inclusive no Brasil, a expectativa era de que o mundo conheceria, enfim, uma vacina contra o HIV. O produto não só foi ineficaz, como ainda havia a suspeita de que aumentaria a sensibilidade de algumas pessoas para o HIV. “Foi um banho de água fria. Descobrimos que havia menos informação do que era necessário, que é preciso entender melhor os estudos pré-clínicos e conhecer melhor o sistema imunológico”, lembra Gabriela Calazans, coordenadora de Educação Comunitária da Unidade de Pesquisa em Vacinas do CRT DST/Aids-SP. Hoje, a área reorganizou prioridades e concentra energia em estudos epidemiológicos. “Tivemos dificuldade em recrutar pessoas em maior risco para o estudo de eficácia. Aproveitamos essa pausa compulsória para aprimorar”, explica Gabriela. Em breve, a área inicia um estudo epidemiológico entre HSH. Quanto às vacinas, ainda é aguardado o resultado de um estudo de fase III na Tailândia. A esperança de que o produto seja eficaz é bastante remota. ×

O que temos aprendido é que a prevenção é um meio e não um fim. O preservativo é fundamental, mas não é a única preocupação. O maior desafio é não sermos autoritários (Tiago Duque)

pesquisa quer entender melhor a epidemia de HIV/aids entre hsh

Gabriela Calazans é pesquisadora e educadora comuinitária da Unidade de Pesquisa de Vacina anti-HIV do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids-SP

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Coordenação do Programa Estadual de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids (CE DST/Aids) e parceiros1 estão desenvolvendo um projeto de pesquisa para compreender melhor a epidemia de HIV e aids entre homens que fazem sexo com homens (HSH), como parte do Plano Estadual de Enfrentamento da Epidemia de aids e das DST entre Gays, outros HSH e Travestis (2009 - 2012). Pretende, portanto, contribuir com o seu objetivo geral de enfrentar a epidemia do HIV/aids e das DST por meio da redução de vulnerabilidades e do estabelecimento de política de prevenção, promoção e atenção integral à saúde. Mais precisamente, este estudo responde ao objetivo específico de número 5 do Plano Estadual de Enfrentamento que propõe aprimorar o conhecimento sobre necessidades, comportamentos, atitudes, práticas (sexuais e outras), contextos de vulnerabilidade e cenário epidemiológico das DST/aids entre gays, outros HSH e travestis para subsidiar ações de enfrentamento. Este plano atende à demanda do movimento social de aids que aponta para a necessidade de enfrentar a epidemia de aids com foco na população mais afetada em nosso país, os homens que fazem sexo com homens. Pesquisas que ajudem a compreender melhor a epidemia entre HSH têm sido feitas desde o seu início. Embora, em seu conjunto, não tenham sido, ainda, suficientes para compreender a complexidade e dimensão que a epidemia assume neste grupo. Dentre as iniciativas para conhecer a epidemia entre HSH, destacase a publicação realizada pelo Grupo Pela Vidda em um número especial de seus Cadernos Pela Vidda intitulado “Homossexuais e aids, a epidemia negligenciada”. Diversos estudos, nacionais e internacionais, têm nos ensinado que os HSH apresentam risco acrescido de serem infectados pelo HIV em comparação com a população geral de países nas Américas, Ásia e África. Uma revisão sistemática dos estudos de prevalência do HIV, realizados entre homens que fazem sexo com outros homens em países de baixa e média renda nos anos de 2000 a 2006, nos informa, ainda, que os HSH são inadequadamente estudados em muitos países e, apesar dos bem caracterizados riscos para aquisição e transmissão do HIV, os HSH continuam a ser sub-representados nos sistemas nacionais de vigilância, em programas direcionados à prevenção e à assistência.

Os pesquisadores: Maria Amélia Veras e Manoel Ribeiro (Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo), Jorge Beloqui (Instituto de Matemática e Estatística - IME-USP), Cássia Buchala (Faculdade de Saúde Pública - FSP-USP), Alexandre Grangeiro (Faculdade de Medicina - FMUSP), Regina Fachini e Isadora França Lins (Núcleo de Estudos de Gênero Pagu – UNICAMP], Sérgio Funari (Instituto de Infectologia Emílio Ribas), Carmem Aparecida de Freitas Oliveira, Márcia Castejon e Rosemeire Yamashiro (Instituto Adolfo Lutz), Carlos Augusto Velasco de Castro (Fundação Oswaldo Cruz) e Luísa Lina Villa (Instituto Ludwig).

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O chamado risco acrescido de infecção pelo HIV não é natural, nem exclusivo dos HSH. Biologicamente, todos nós, humanos, somos sujeitos à infecção pelo HIV

O termo homens que fazem sexo com homens (HSH) foi cunhado em 1994, visando a redução do estigma contra gays, bissexuais e transgêneros e homens autoidentificados como heterossexuais que se engajam em sexo com outros homens. O termo opta pela descrição de comportamentos, em vez de identidades sociais ou culturais. Enquanto o termo HSH é sensível para definir um comportamento comum entre homens com identidades diversas, ele peca pela falta de especificidade dos diversos subgrupos que contém. Múltiplos relatos descrevem diferenças significativas no risco de infecção pelo HIV entre diferentes subgrupos de HSH, incluindo transgêneros, homens trabalhadores sexuais e entre práticas sexuais receptivas e insertivas – nuances que se perdem no termo inclusivo HSH. A história da epidemia de aids no Brasil e no mundo, bem como a das respostas que as sociedades têm podido dar para enfrentá-la, ensina que nem todo homem que faz sexo com outro homem tem maior chance de se infectar pelo HIV. O chamado risco acrescido de infecção pelo HIV não é natural, nem exclusivo dos HSH. Biologicamente, todos nós, humanos, somos sujeitos à infecção pelo HIV. As práticas desprotegidas é que nos colocam em risco. Já aprendemos também, com a nossa história, que as possibilidades de termos práticas seguras estão determinadas pela cultura, pelas condições sociais e pelo acesso às informações e aos serviços que orientam e ajudam na proteção. Assim, para estabelecer estratégias adequadas de prevenção e controle de infecções, como as causadas pelo HPV e pelo HIV, precisamos de uma compreensão mais adequada das características pessoais e sociais dos diversos grupos, o que inclui conhecer os comportamentos sexuais e o uso de substâncias psicoativas. Para responder a estes desafios enfrentados pelo Programa Estadual DST/ Aids-SP relacionados à prevenção, à vigilância epidemiológica e ao desenvolvimento de pesquisas de vacinas anti-HIV é que se está propondo este estudo. A realização de um estudo dessa natureza, que visa responder às questões caras ao PE DST/Aids e à comunidade, demanda uma articulação intensa com a sociedade civil, desde antes da elaboração do projeto de pesquisa, para avaliar publicamente a pertinência de seus objetivos, da metodologia e para definir estratégias conjuntas de apropriação e disseminação dos resultados. Por isso, temos travado debates com pesquisadores e representantes dos Fóruns Paulistas de ONG/Aids, LGBT e a Rede Nacional de Pessoas Soropositivas (RNP+) sobre este estudo. Se quiser mais informações ou tiver interesse em participar de reunião para conhecer mais sobre o projeto e discutir estes temas, entre em contato com Gabriela Calazans: gcalazans@crt.saude.sp.gov.br ou nos tels.: (11) 5087-9854 e (11) 5087-9115.

Bandeiras PositHIVas - Uma publicação do CRT DST/Aids-SP

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