Argumentacao juridica tecnicas de persuasao livro

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VÍCTOR GABRIEL RODRÍGUEZ

Argumentação Jurídica


ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Técnicas de persuasão e lógica informal

Víctor Gabriel Rodríguez

Martins Fontes São Paulo 2 0 0 5


C opyright © 2005, Livraria M artins F on tes E ditora Ltda.. S ão P au lo, para a p resen te edição.

1- edição 2002 (Editora LZN )

3 â edição 2004 (Editora V ox)

4- edição revista e ampliada 2005

Acompanhamento editorial H elen a G uim arães B itten cou rt

Preparação do original A n a M aria de O. M . B arbosa

Revisões gráficas M aria Luiza Favret lv an i A parecida M artins C azarim D inarte Z orzanelli da Silva

Produção gráfica G eraldo A lves

Paginaçâo/Fotolitos S tudio 3 D esenvolvim ento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) R o d ríg u ez, V ícto r G abriel A rg u m en tação ju ríd ica : técnicas d e p e rsu asão e lógica in­ fo rm al / V íctor G ab riel R odríguez. - 4* ed. - S ã o Pau lo : M artin s Fon tes, 2005. - (Justiça e direito) ISBN 85-336-2194-9 1. A rg u m en tação forense 2. L ógica 3. Persu asão (R etórica) I. Título. 05-6235

C D U -34:16

índices para catálogo sistemático: 1. A rg u m en tação ju ríd ica

34:16

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índice

Introdução (aos professores).................................................. XIII P refácio................................................................................... XVII I. A argumentação existen te................................ Um mínimo escorço histórico.............................

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II. O argum ento.......................................................... Os três tipos de discurso....................................... A disputa entre dois certos.................................. Argumento e verdade........................................... Os objetivos e os meios da argumentação........ Características da argumentação........................

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III. Argumentação e fundam entação. Pensan­ do no o u v in te......................................................... O discurso científico.............................................. Um corte de casim ira............................................ Argumentação x fundamentação: a distinção relativa....................................................................... Uma eterna desvantagem: o ponto de vista comprometido......................................................... IV. Ouvinte específico e discurso genérico. Intertextu alid ad e...................................................... O auditório universal............................................ A intertextualidade.................................................

31 31 33 40 44

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V. Progressão discursiva e coerên cia.................. A coerência.............................................................. Coerência e percurso............................................. Estabelecendo a coerência.................................... Coerência e sentido: a dependência do mundo exterior....................................................................... Coerência e extensão da argumentação........... Texto e ritm o............................................................ Coerência, intertextualidade e intenção: que­ brando regras........................................................... Falar algo, dizer outra coisa................................. Quatro dicas a respeito da coerência.................

57 57 60 63 65 72 75 80 82 85

VI. N arrando os fato s................................................. 89 Características da narrativa: figuratividade...... 90 Características da narrativa: transcurso do tempo. 91 Função argumentativa da narrativa dos fatos. A questão do ponto de vista do narrador.......... 94 Coerência narrativa................................................ 100 Conclusão................................................................ 106 VII. Argumento de autoridade: apelando para a opinião do exp erto ........................................... Apresentação: os tipos de argumento............... A autoridade............................................................ Argumentum ad verecundiam ................................ Ciência e verdade................................................... A confiabilidade da opinião da autoridade: quia nominor leo....................................................... Estabelecendo a validade do argumento.......... A questão do experto............................................ Questão da área...................................................... Questão da validade da opinião.......................... Questão da confiabilidade.................................... Questão da consistência....................................... Questão das provas................................................ As perícias em geral...............................................

107 107 108 110 114 117 119 121 124 126 128 130 131 133


Os pareceres............................................................ Combatendo o argumento ad verecundiam....... Nada contra os clássicos. Mas..............................

134 137 140

VIII. Argumento por analogia: o uso da jurispru­ dência ....................................................................... A analogia e a ilustração....................................... Jurisprudência: analogia e autoridade................ Uso da jurisprudência: quantidade e qualidade Segue: valor e uso da jurisprudência.................. Combatendo o argumento de analogia............

143 143 145 148 150 151

IX. Exemplo, figuratividade e ilustração do dis­ curso.......................................................................... O exem plo............................................................... Requisitos do exemplo.......................................... Representatividade do exemplo......................... Falando em ilustração........................................... Ilustração e argumento......................................... Mau uso da ilustração........................................... Tendência atual da figuratividade...................... A imagem e sua importância: a questão da presença.................................................................... Conclusão................................................................ X. Estrutura lógica e argum ento: a fortiori, ad absurdum e ridículo............................................... O argumento jurídico............................................ O argumento contrario sensu................................ O argumento ad absurdum................................... O uso da ridicularização....................................... O argumento a coherentia...................................... Lei ou brechas da lei?............................................ Argumento a fortiori............................................... O córax...................................................................... Argumento ad hom inem ........................................ Conclusão................................................................

153 153 155 159 160 162 166 167 169 171

173 173 173 176 182 184 187 190 194 195 201


XI. Argum entação fraca: fuga e senso comum .. A argumentação corriqueira................................ O argumento de senso com um ........................... Argumento de fu ga................................................ Conclusão................................................................

203 203 204 210 213

XII. Quando a linguagem é argum ento.................. Predisposição à argumentação............................ Palavra....................................................................... Conteúdo e form a.................................................. A linguagem adequada......................................... O discurso jurídico................................................. Linguagem técnica x jargão................................. Competência lingüística e linguagem corrente Carga sem ântica..................................................... Expressões latinas e brocardos jurídicos........... Conclusão................................................................

215 215 217 219 221 224 226 229 232 233 235

XIII. Honestidade da argumentação e ordem dos argu m en tos............................................................ Honestidade e falácia............................................ Ordem dos argumentos........................................ Momentos principais da argumentação........... Criando argumentos............................................. Argumentar ou mostrar erudição?..................... Conclusão................................................................

237 237 243 245 250 253 254

XIV. Espaço da argumentação jurídica: sentença e teses su bsid iárias............................................. 255 Sentença como espaço argumentativo............. 255 Teses subsidiárias e efeito argumentativo......... 258 Argumentar é colocar em dúvida....................... 259 Tese subsidiária e aceitabilidade em juízo......... 262 A fundamentação do juiz: demonstrativa ou argumentativa?....................................................... 264 Conclusão................................................................ 266


XV.

Peculiaridades do discurso o ral................... Discurso oral e discurso escrito.......................... Discurso oral, papel e evidência......................... Predisposição à argumentação no discurso oral Carisma e empatia: uma difícil definição.......... Discurso parlamentar............................................ Discurso no tribunal do jú ri................................. Conclusão................................................................

269 269 270 274 278 282 284 286

XVI. Peculiaridades do texto e scrito ....................... Uma premissa: quem lê o que escrevemos?.... Escrita e coesão textual......................................... Gramaticalidade e pontuação.............................. Algumas dicas de construção.............................. Escrita como fator argumentativo......................

287 288 290 295 298 302

XVII. Argum entação, estilo e subjetividade.......... Construir um estilo, edificar uma im agem ....... O segredo final: a humildade.............................. Conclusão................................................................

303 306 308 310

XVIII. Argumentação e criatividade........................... Medo de mudanças ou medo de que as coisas não m udem ?........................................................... Criatividade e informação.................................... Novidade e persuasão........................................... Renovando o discurso........................................... Conclusão................................................................

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Bibliografia..............................................................................

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312 317 322 325 327


El a n d a r a ca b a llo a u n o s h a c e cab allero s, y a o tro s cab allerizo s.

Cervantes, "D e los consejos segundos que dis Don Quijote a Sancho Panza", p. 734.


Introdução (aos professores)

Este livro foi idealizado em sala de aula. Quando veio em primeira edição, trazia a experiência de nosso trabalho na Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Ao notar que os alunos, todos advogados, interessavam-se muito pelo te­ ma da argumentação, acreditei que as principais lições pu­ dessem ser perfiladas em um manual. Hoje aqui já se encontra em quarta edição, bastante re­ formulada. Tive novos aprendizados, não só pelo aprimora­ mento científico e por repensar em todas as sugestões que me foram feitas, mas principalmente por coordenar um cur­ so específico de argumentação, na graduação em Direito. Sei que este livro tem sido adotado em muitas faculda­ des, como norte de matérias zetéticas ou como referência de construção de discurso em vários cursos ligados à área jurídica, no pós-graduação. Tenho visto de perto alguns de­ les e louvo a iniciativa de muitos professores de ministrar essa disciplina, principalmente (vá lá a modéstia) caso utili­ zem esta obra. Porém indico a todos que queiram conhecer, em especial a coordenadores de departamento, como nós, a experiência que se tem feito ao instaurar uma disciplina específica deste tema na graduação em Direito. Em outros países, como se sabe, a prática é comum. A este autor vem a alegria de ver, recentemente, reco­ nhecida a argumentação - assim, autônoma - como fator relevante de estudo para os cursos de Direito, pelo próprio


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Conselho Nacional de Educação (Resolução CES/CNE n? 09, de 27/9/04, art. 4?, inc. VI). Entendemo-nos pioneiros na instauração de um curso dessa natureza, bem como em perfilar um manual do assunto que desse a ele tratamento moderno e prático no país. Neste livro, espera-se que tanto o professor quanto o aluno e o operador do Direito tenham uma leitura agradá­ vel, mas principalmente - como aqui nos dirigimos aos pro­ fessores - que se possa apresentar um programa, em lições diversas, que venha efetivamente a desenvolver o potencial argumentativo de cada aluno, principalmente ao que inte­ ressa em curso de graduação em Direito. Como livro de leitura didática ou paradidática, as nor­ mas de metodologia científica certamente não se encon­ tram rígidas. As anotações de rodapé são incluídas apenas nos momentos mais decisivos, em que foi necessário um argumento de autoridade, ou para fazer complementações e remissões que, por coerência, não couberam no corpo do texto. Aos professores que utilizam a obra, em primeiro lugar os agradecimentos pelas considerações que são feitas a res­ peito dela. Depois, o conselho - talvez evidente - de que o curso de argumentação siga metodologia de ensino aberta e interdisciplinar. Nossos exemplos, aqui, muitas vezes abor­ dam as artes, a literatura e o cinema para servir de apoio à intelecção e estímulo ao diálogo com os demais tipos de lin­ guagem, em que está alicerçada a tese fundamental do livro e do curso: a de que o operador do Direito é também um profissional da comunicação. As aulas, portanto, não devem ser diferentes: devem estimular o diálogo e a leitura cons­ tantes, para muito além deste manual. Aliás, as idéias e conceitos aqui não se cristalizam e es­ tão, claro, apresentados à crítica e ao debate. De qualquer modo, seguro é que vale implantar a dis­ ciplina de Argumentação Jurídica, como autônoma, nos cur­ sos de Direito, não apenas pelas diretrizes curriculares ora vigentes, mas por fazer parte da formação do aluno, já que,


INTRODUÇÃO (AOS PROFESSORES)

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neste mundo pós-moderno, por questões que aqui não vale aprofundar, é imprescindível fomentar o trabalho do racio­ cínio, para que não prevaleça a ilusória impressão de que o excesso de informação importa diretamente em capacidade para a construção do raciocínio. É só.


Prefácio

Conheci o advogado Víctor Gabriel quando ele ainda era estudante, no Largo São Francisco. Lá, eu ministrava aulas na matéria de Técnicas de Negociação e Arbitragem e já notava seu interesse pelas técnicas de argumentação, as quais faziam parte de nosso programa curricular. Sempre entendi serem as disciplinas de argumentação imprescindíveis ao operador do Direito, em especial ao ad­ vogado, por isso me satisfazia adentrar nesse tema, lecio­ nando na Faculdade de Direito. Vejo, agora, que aquelas au­ las renderam frutos: Víctor, hoje professor na Escola Supe­ rior de Advocacia, escritor de ficção e mestre e doutorando na mesma Faculdade de Direito, com intensa atividade leti­ va, apresenta-me para prefaciar uma interessante obra so­ bre técnicas de persuasão. O livro não abandona a retidão científica, mas, antes de apresentar-se como uma obra caudalosa, destinada à re­ flexão acadêmica sobre a lógica informal e a lógica jurídica, é uma obra didática, que certamente contribuirá para o lei­ tor em sua atividade profissional, no desenvolvimento de suas teses, em seus discursos forenses ou em suas mono­ grafias jurídicas. Com exemplos claros, retirados de casos famosos, da literatura ou da doutrina, o autor apresenta uma gama de lições sobre os vários tipos de argumentos, seu uso, sua pro­ priedade e, também, seus defeitos; mostra-nos que pensar


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sobre a argumentação é tarefa imprescindível ao bom opera­ dor do Direito, para que seu estudo jurídico possa se tornar dinâmico, vindo a operar-se com maior eficiência. Sem dúvida, o leitor da obra perceberá que, ao terminar sua leitura, terá adquirido relevante conhecimento, que lhe permitirá lidar com a necessidade de persuadir com maior desenvoltura, ampliando vastamente a gama de recursos suasórios a sua disposição. Trata-se de leitura extremamente recomendável aos que querem operar o Direito com competência e refletir sobre a lógica argumentativa, além de bom livro-texto para a disciplina. Mais uma mostra da capacidade e do preparo do autor. Celso Cláudio de Hildebrand e Grisi Professor Titular da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo Bacharel em Direito pela USP


Capítulo I

A argumentação existente Estudar argumentação não significa, hoje, rever discur­ sos empolados. Mas não resta dúvida de que, em sistema ju ­ rídico aberto, essa disciplina alcança campo de estudo muito maior que o para ela reservado alguns anos atrás. Por quê?

"Terias preferido limpar os estábulos de Áugias"1, afir­ mou o imperador Cláudio a Hércules, querendo provar que o herói teria preferido fazer a limpeza daqueles estábulos, o que representara um de seus doze trabalhos, a administrar a justiça e ouvir a argumentação dos advogados. Realmen­ te, fica a impressão de que a argumentação, para quem a faz ou a escuta, seja algo enfadonho, ligado aos discursos lon­ gos, empolados e capciosos de advogados e políticos, que muito falam e pouco dizem. E, a julgar pela antiguidade da citação, essa impressão não é nova. Mas será que toda argumentação é enfadonha? Quando se pretende tornar um tema qualquer aplicável a determinada realidade, não se pode afastar dela. Assim, se aqui se tem o anseio de, como já apresentado na Introdu­ ção, rever algumas técnicas argumentativas para colaborar com o operador do Direito na construção de seu discurso persuasivo, ou seja, na forma de tomar mais convincentes suas teses, precisamos, a princípio, saber se existe realmen­ te compatibilidade entre a teoria e a prática, se o mundo real demanda ou ao menos aceita as técnicas argumentativas a serem desenvolvidas. 1. "Maluisses cloacas Augeae purgare". In: TOSI, Renzo. Dicionário de sen­ tenças latinas e gregas, p. 747.


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Em outras palavras, para dar continuidade à questão anterior, procuremos apresentar a resposta a esta pergun­ ta: para o operador do Direito atual é importante bem ar­ gumentar? A resposta não é imediata. A experiência na atividade forense não raro tem mostrado a toda classe de operadores do Direito algo como a massificação da atividade: os advo­ gados, com demandas em excesso, algumas delas financei­ ramente pouco promissoras, utilizam-se dos recursos tec­ nológicos para reproduzir argumentações copiadas de tex­ tos já existentes, nem sempre com propriedade. Juizes, dian­ te da obrigatoriedade de dar célere desfecho às lides sob sua presidência, proferem julgados cujo relatório mal per­ mite ao leitor depreender que seu autor tenha sequer to­ mado conhecimento da extensão e dos limites do processo. Na fundamentação das decisões judiciais a praxe não al­ cança caminho diverso: a pressa em proferir a decisão e a repetição das teses levadas a juízo justificam, ao menos na aparência, discursos progressivamente sucintos ou padro­ nizados, com remissões a outros julgados como prova de legitimidade do posicionamento adotado, quando não se furtando a responder a argumentos pertinentes de ambas as partes demandantes, que merecem, na exposição do ra­ ciocínio do julgador, a demonstração do devido provimen­ to jurisdicional. Mas esse problema não é exclusivo do discurso jurídi­ co e pode ser encontrado em todo o contexto social, que ousamos rapidamente invadir. A linguagem se dinamiza, e, à medida que a velocidade de transporte de informações aumenta, diminui - ao menos é o que parece - o espaço para a construção do raciocínio argumentativo. Isto é observável em nosso cotidiano: su­ portes eletrônicos armazenam quantidade inimaginável de texto, um disco de leitura de computador consegue guardar mais jurisprudência que, quiçá, uma biblioteca inteira; mais que isso, todo esse teor de informações pode ser transporta­ do virtualmente pela internet, em questão de fração de se­ gundos, para o ponto mais distante do globo.


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Ter à disposição um número excessivo de informações, a exemplo do mundo virtual levado a efeito pela internet, não significa, porém, maior possibilidade de construção de raciocínio. De forma paradoxal, parece que o efeito é total­ mente inverso: uma geração criada com as inúmeras infor­ mações da televisão e da internet parece - ao menos parece - cada vez menos capaz de uma construção argumentativa competente, de elaboração de teses e raciocínios con­ vincentes. Isto porque, nesse excesso de informações, dispensa­ mos cada vez menos atenção aos raciocínios mais comple­ xos. O fluxo informativo é tão caudaloso que qualquer com­ binação entre enunciados mais intrincados, ao menos nas matérias humanas, parece ser de menor importância, dis­ pensável. Não há tempo de compreendê-lo, quanto mais de elaborá-lo. A velocidade de produção e absorção de in­ formações não permite reflexão aprofundada. Tomemos por exemplo um jornal impresso qualquer, desses de grande circulação nacional. Um periódico mo­ derno tem várias seções: empregos, internacional, cultura, informática, imóveis, tecnologia, caderno rural, cada qual com sua miríade de informações, produzidas por agências de notícias espalhadas pelo mundo. São tantas as informa­ ções disponíveis ao alcance da redação do jornal que fica difícil selecionar o que irá ser publicado. Nesse contexto, as notícias, porque várias, assumem tamanhos menores, sen­ do raras as reflexões, as opiniões aprofundadas a respeito de cada uma delas, salvo em uma ou outra página de edito­ rial ou em um destaque especial. O periódico que trouxer notícias muito longas, procurando conduzir seus leitores a uma reflexão mais aprofundada, pode ver surgir contra si um efeito deletério: dispondo de pouco tempo para absorver in­ formações, os leitores elegem o jornal concorrente, que lhes fornece conteúdo parecido, exigindo menor leitura. Pior ainda ocorre com um jornal televisivo, que conta com minutos e segundos cronometrados para apresentar um denso, ou melhor, um extenso conteúdo informativo: suas


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notícias serão compactadas ao extremo, e procurar-se-á asi­ lo nas imagens para complementar a linguagem telegráfica que o compõe. Tudo isso não é novidade, apenas ilustração: queremos velocidade na comunicação porque temos pouco tempo dis­ ponível para qualquer atividade, principalmente as secun­ dárias. Maximizar produção, otimizar o tempo, aplicar a reengenharia das atividades são máximas do discurso da Administração de Empresas, que convergem para um úni­ co ponto: a necessidade de cortar excessos, de concentrar informações, de não se estender em raciocínios que não se­ jam, antes de tudo, produtivos. Daí, no contexto empresarial, a comunicação sempre direta, as mensagens curtas, as reu­ niões céleres, a tecnologia fazendo por si só tudo quanto lhe for possível. Quando voltamos à área jurídica - percebe-se - a reali­ dade não é em nada diversa, seguindo essa mesma tendên­ cia: as petições são feitas com forçosa rapidez, muitas vezes recheadas de julgados de pertinência discutível, mas a que se tem fácil acesso. O trabalho argumentativo afigura-se menos compensador porque surte resultados progressiva­ mente menores: na medida em que os juizes não se persua­ dem com a leitura, o tempo de redação de um texto suasório ou o tempo de preparação de um discurso para convenci­ mento, na reengenharia moderna, pode ser mais bem utili­ zado na realização de uma audiência, na apreciação de ou­ tro processo, em outra reunião em que se cuide de maior valor econômico etc. É aí que a argumentação parece perder espaço na ativi­ dade do advogado e, conseqüentemente, dos demais ope­ radores do Direito. A produção exige fins e não meios, e a re­ tórica do advogado aparece como exemplo mais corriqueiro de um meio pouco adequado ao fim perseguido, o resultado interessante ao cliente. Será possível, realmente, encarar hoje a argumentação dessa maneira? Para se falar bem claro, é possível crer que, para o advogado de hoje, é necessário mais o conhecimen­


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to jurídico propriamente dito e menos a retórica, a argu­ mentação? E a teoria da argumentação seria algo do passa­ do, daqueles advogados antigos que gostavam de discursos longos e monótonos, que seriam totalmente inadequados ao ritmo da advocacia moderna? A argumentação é coisa do passado? Manuel Atienza, na introdução de seu trabalho As ra­ zões do direito2, traz como premissa a seguinte afirmação: Ninguém duvida que prática do Direito consista, fun­ dam entalm ente, em argumentar, e todos costum am os co n ­ vir em que a qualidade que m elhor define o que se entende por um "b om jurista" talvez seja a sua capacidade de con s­ truir argumentos e m anejá-los com facilidade.

A premissa é agradável e precisa a todos os estudiosos, mas nossa humilde experiência em sala de aula tem de­ monstrado que a idéia de capacidade argumentativa como qualidade principal do jurista não tem sido aceita de forma tão unânime como observa o autor. Visões imediatistas ou reducionistas do Direito, observadas do prisma mercadoló­ gico, por vezes trazem a ilusão de que a argumentação seja atividade de menor importância para o advogado, como es­ tudo, por assim dizer, antiprodutivo. Daí a necessidade des­ tas informações iniciais, dando conta de que a argumenta­ ção é trabalho importante de todo operador do Direito, por mais grave que seja sua demanda por produção. Vamos responder negativamente. A argumentação é tão imprescindível ao operador do Direito quanto o conhe­ cimento jurídico. Como atividade provinda do raciocínio humano, o Direito não se articula por si só, daí porque so­ mente pode ser aplicado através de argumentos. São os ar­ gumentos os caminhos, os trilhos da articulação e da apli­ cação do Direito. No Direito, nada se faz sem explicação. Não se formu­ la um pedido a um juiz sem que se explique o porquê dele, 2. As razões do direito, p. 19.


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caso contrário diz-se que o pedido é desarrazoado. Da mes­ ma forma, nenhum juiz pode proferir uma decisão sem ex­ plicar os motivos dela, e para isso constrói raciocínio argumentativo. Sem argumentação, o Direito é inerte e inoperante, pois fica paralisado nas letras da lei, no papel. A partir do momento em que se exercita o Direito - e é essa a função de todo profissional que nessa área atua - , a argumentação passa a ser imprescindível. Ela surge de várias fontes: da doutrina dos professores que interpretam e analisam o or­ denamento jurídico, das peças dos advogados que articu­ lam teses para adequar seu caso concreto a um ou a outro cânone da lei, da decisão dos juizes que justificam a adoção de determinado resultado para um caso concreto. Argumentação é instrumento de trabalho do próprio Direito, e então é objeto de previsão legal. Quando a Cons­ tituição fala em fundamentos da decisão legal, evidentemen­ te está se referindo aos argumentos formulados pelo Poder Judiciário (embora ainda façamos alguma distinção entre fundamentação e argumentação propriamente dita, mas com princípios muito próximos). Quando determinado re­ curso cuida a respeito das razões, pede os argumentos que o sustentam, caso contrário será inoperante. Os argumentos são também a própria essência do ra­ ciocínio jurídico. A teoria do Direito somente é aceita na m e­ dida em que bons argumentos a sustentem, e também só pode ser aplicada a um caso concreto se outros argumentos demonstrarem a coerência entre estes e a teoria. Nesse contexto, quem mais argumenta, melhor opera o Direito, melhor o aplica. O conhecimento jurídico propriamente dito represen­ ta, então, uma série de informações que se encontram à dis­ posição do argumentante, mas elas por si mesmas não ga­ rantem a capacidade de persuasão. Informações puras não se combinam, não fazem ninguém chegar a conclusão al­ guma, a não ser que sejam intencionalmente dirigidas, arti­ culadas para convencer alguém a respeito de algo.


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Por exemplo: uma folha de antecedentes criminais do réu juntada aos autos de um processo constitui uma infor­ mação, assim como um livro de doutrina jurídica representa também um conteúdo informativo denso em relação a um caso concreto que se pretenda defender. Eles não têm fun­ ção autônoma para alterar o resultado de um processo judi­ cial qualquer, a não ser que sejam invocados como razão, intencionalmente, por um trabalho de raciocínio: a folha de antecedentes, revelando primariedade do acusado, pode convencer um juiz a aplicar-lhe uma pena no mínimo legal, assim como a citação de um trecho do livro de doutrina ju ­ rídica pode convencer a respeito de determinada tese, expli­ cada e defendida por uma reconhecida autoridade no cam­ po do Direito. Em ambos os casos, à informação foi aplica­ do um raciocínio argumentativo, e somente a partir disso ela passou a surtir um efeito prático. Assim, a argumentação é a própria prática do Direito, é como ele se opera, principalmente nas lides forenses. En­ gana-se quem pensa que apenas o conhecimento jurídico interessa ao operador do Direito, pois este representa con­ teúdo essencialmente informativo. Por isso, voltando à nossa primeira questão formulada, pode-se dizer que nem toda argumentação é enfadonha, pois assim o próprio Direito o seria. A argumentação é a prática e a dinâmica da operação do Direito, o que nele há de mais ágil e concreto. E vale estudá-la como meio de aprimoramento da atividade jurídica como um todo. Toda­ via, quem pensa em construção argumentativa como aque­ le discurso retórico complexo, gongórico, e no estudo da argumentação com reiterada referência a escolas clássicas, pode-se supreender com o estilo deste livro. O que faremos será constituir um estudo com método que efetivamente contribua para a atividade do operador do Direito, de for­ ma que enriqueça sua enunciação argumentativa e tenha parâmetros e exemplos suficientes para conhecer a boa ar­ gumentação e assim poder aplicá-la ao conjugar-se com seu conhecimento jurídico em busca de um resultado pretendi­ do. Basta conhecer os métodos.


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Um mínimo escorço histórico O estudo da argumentação data de antes de Cristo, e sua evolução na Antiguidade pode merecer análise apro­ fundada para aquele que aprecie a matéria. Porém aqui pre­ ferimos não nos prolongar nesse percurso histórico, apenas naquilo que se faz essencial para realçar a importância do estudo desta nossa matéria no Direito atual. É porque recentemente passaram a existir trabalhos pioneiros de inserção da disciplina de argumentação nas faculdades de Direito brasileiras e, sem falsa modéstia, te­ mos atualmente a honra de participar e dirigir tal matéria em instituições que se preocupam muito com a formação aca­ dêmica integral de seus alunos, que ora nos ocupamos em demonstrar como o estudo dessa disciplina bem se aplica ao Direito. Mas foi no início de 1970 que um filósofo do Di­ reito, e também lingüista, Chaím Perelman (autor, dentre outras obras, do Tratado da argumentação: a nova retórica, já com edição brasileira pela Martins Fontes, 1996) inseriu o curso de argumentação na Universidade de Bruxelas. Por isso, recorremos a ele para discorrer uns poucos parágrafos a respeito da pertinência deste estudo, e desta disciplina, na visão atual que se tem do Direito, ainda que incorramos em certo reducionismo, ou seja, na falta de consideração de alguns fatores muito importantes no assunto. O autor nota que, durante séculos, o papel da argu­ mentação no Direito era secundário porque as decisões ju ­ diciais não necessitavam ser fundamentadas. O juiz, que deveria buscar antes de tudo o "justo", tinha fontes do Di­ reito não muito claras e não raro confundia - porque assim o era - os preceitos jurídicos com critérios morais e religio­ sos. O Direito restringia-se quase à atribuição de certos ór­ gãos para legislar e outros para aplicar a lei. Sem a necessi­ dade de fundamentação específica dos julgados, de persua­ são racional, era natural que o papel da argumentação e de seu estudo fosse alijado a segundo plano, ainda que valores e maior subjetividade fossem elastério para a aplicação de


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elementos de persuasão. Pense-se, por exemplo, no absolutismo monárquico, em que o rei intervinha nas decisões judiciais e raramente se encontravam sentenças com gran­ des fundamentos, somente uma sucinta exposição de con­ texto probatório. Por isso Perelman elege a Revolução Francesa como marco importante para a diferenciação de todo esse con­ texto. De fato, o advento da separação de poderes, as leis es­ critas e a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais trouxeram à tona a necessidade da construção do discurso, dos processos escritos, da racionalização do pro­ cesso de construção do Direito. Depois de muito tempo de arbitrariedade, a Revolução Francesa marca como maior va­ lor jurídico a segurança e a igualdade, ali entendidos como conformidade da decisão com a lei prévia. O juiz submetese à letra da lei, e é isso o que mais há de relevante em sua atividade: a racionalização como fuga ao subjetivismo e aos privilégios. E em todo esse contexto misturam-se as idéias de Darwin, determinando uma origem genética para a raça huma­ na em evolução de espécies, Freud dizendo que pode inter­ pretar sonhos e descobrir a origem para as personalidades, seguidores de enciclopedistas opondo-se à fé e recontando a história, e assim a cultura como um todo aproxima-se do auge do empirismo, da impressão de que, grosso modo, to­ dos os fenômenos podem ser explicados no laboratório. E enquanto o mundo vive o fascínio, como ilustra o persona­ gem Brás Cubas, da "pura fé dos olhos pretos e das consti­ tuições escritas", quando passa "fazendo romantismo prá­ tico e liberalismo teórico", no campo das ciências humanas floresce o positivismo de Comte, refratado no Direito por pensadores como Duguit e Hans Kelsen. O Direito afastase definitivamente do jusnaturalismo, da crença de que exis­ tam valores superiores às leis postas e, assim, procura siste­ matizar sua atividade com o raciocínio e o cálculo quase cartesiano em sua aplicação. Evolução louvável, mas que parece trazer à argumentação, à linguagem natural e às téc­


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nicas de persuasão menor valor, porque afastados da exati­ dão que demandava o raciocínio jurídico àquele tempo, im ­ pregnado de concepções naturalistas. Porém a crença nos valores exatos e deterministas che­ ga a tal ponto que um tirano calcula que consegue desen­ volver empiricamente uma raça naturalmente superior no mundo, a ariana. Tal superioridade física justificaria, de for­ ma empírica, a dominação e o possível extermínio das raças inferiores. Assim, a Segunda Grande Guerra chegou a ex­ tremos de quase conduzir a humanidade à extinção. Ao mesmo tempo, o ser humano observa a matemática e a en­ genharia, que construiu máquinas absolutamente moder­ nas, que tanto eram admiradas, incrementar o instrumental bélico e transformar-se em potencial de morte e extermí­ nio. Mais ou menos por esse percurso é que Perelman ele­ ge o processo de Nuremberg como marco de uma nova vi­ são na filosofia do Direito, quando demonstrou que um Es­ tado poderia ser criminoso. Em outras palavras, ainda que juridicamente posto, o Estado poderia ser tremendamente injusto. E cruel. Entre a Revolução Francesa e o processo de Nuremberg o que se viu foi a valorização do aspecto absolutamente for­ mal e sistemático do raciocínio judiciário, embora atualmente este entendimento seja tido como parcialmente superado. É que se percebe que trabalhar com valores sociais, com ex­ pectativas e com conceitos mais amplos, ou confusos, como justiça e igualdade, também é tarefa do Direito como maté­ ria humana. Nas palavras de Perelman, "faz algumas déca­ das que assistimos a uma reação que, sem chegar a ser um retorno ao Direito natural, ao modo próprio dos séculos XVII e XVIII, ainda assim confia ao juiz a missão de buscar, para cada litígio particular, uma solução eqüitativa e razoável, pedindo-lhe ao mesmo tempo que permaneça, para conseguilo, dentro dos limites autorizados por seu sistema de Direito". O Direito como processo absolutamente empírico e na­ turalista está superado. As mais diversas áreas de seu estu­ do estão progredindo cada vez mais para acrescentar valo­


A ARGUMENTAÇÃO EXISTENTE

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res e possibilidade de argumentação em cada processo e até mesmo conceito da ciência jurídica. Os conceitos têm-se flexibilizado para poder trabalhar paradigmas humanos e acrescentar carga valorativa a seu processo de aplicação. Nesse sentido, o ordenamento jurídico não mais signi­ fica verdade absoluta de um sistema fechado, até porque, como veremos, algumas características suas, indeclináveis, impedem-no de contar com essa exatidão. Encarar o Direi­ to como sistema aberto, que permite a analogia, a compa­ ração, a absorção de características próprias da sociedade cultural implica dar maior relevo à atividade argumentati­ va, que demonstra, entre as várias soluções possíveis para uma lide, uma mais razoável. Assim, o ordenamento jurídi­ co não é posto de lado, mas encarado como fator orienta­ dor e limitador de uma atividade argumentativa que se ini­ cia com aquele que pleiteia a aplicação da norma e termi­ na com aquele que a decide, todos em um grande processo comunicativo. E a tendência à abertura da hermenêutica do sistema jurídico tem feito desta matéria, a argumentação, algo acei­ to e cada vez mais aprofundado nas faculdades de Direito, o que é bastante proveitoso.


Capítulo II

O argumento Para compreender a argumentação deve-se abandonar o conceito binário de certo/errado. No Direito concorrem te­ ses diferentes, e não necessariamente existe uma verdadeira e outra falsa. O que existe é, no momento da decisão, uma tese mais convincente que as demais.

Vimos que a argumentação é necessária àquele que tra­ balha com o Direito, pois o conhecimento jurídico desen­ volve-se por meio de argumentos. Mas o que são os argumentos? Sem nenhuma dúvida, definir o argumento de um modo bastante simples terá para nós efeito prático. Acompanhemos, então, essa definição.

Os três tipos de discurso Argumentar é a arte de procurar, em situação comuni­ cativa, os meios de persuasão disponíveis. A argumentação processa-se por meio do discurso, ou seja, por palavras que se encadeiam, formando um todo coeso e cheio de sentido, que produz um efeito racional no ouvinte. Quanto mais coeso e coerente for o discurso, maior será sua capacidade de adesão à mente do ouvinte, por­ quanto este o absorverá com facilidade, deixando transpa­ recer menores lacunas. Desde Aristóteles, adota-se uma divisão tripartite en ­ tre os tipos de discurso. O critério de diferenciação entre eles é o auditório a que se dirige, ou seja, quem são os destinatá­ rios finais das mensagens transmitidas pelo discurso. Para cada tipo de auditório, uma maneira distinta de compor o texto que lhe será levado a conhecimento.


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Pode-se citar Aristóteles: São três os gêneros da retórica, do m esm o m odo que três são as categorias de ouvintes dos discursos. Com efeito, um discurso com porta três elem entos: a pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala. O fim do discurso refere-se a esta última, que eu cham o o ouvinte. O ouvinte é, necessariam ente, um espectador ou um juiz. Se exerce a função de juiz, terá de se pronunciar ou sobre o p as­ sado ou sobre o futuro. Aquele que tem de decidir sobre o futuro é, por exemplo, o m em bro da assem bléia. O que tem de se pronunciar sobre o passado é, por exemplo, o juiz pro­ priam ente dito. Aquele que só tem que se pronunciar sobre a faculdade oratória é o espectador.1

São os tipos de discurso em Aristóteles: a) O discurso deliberativo é aquele cujo auditório é uma assembléia tal qual um senado - atual ou da Grécia antiga. A assembléia é chamada a decidir questões futuras: um projeto, uma lei que deverá ser aplicada, o direcionamento de um ou outro plano para se atin­ gir uma meta. Enfim, questões políticas, em que se discute o que é útil, conveniente ou adequado. b) O discurso judiciário é aquele que se dirige a um juiz ou a um tribunal. Nele decidem-se questões que di­ zem respeito ao tempo pretérito. Tudo o que está do­ cumentado em um processo qualquer são, evidente­ mente, questões do passado, ainda que possam tra­ zer como resultado eventos futuros. Tais fatos pas­ sam por um esclarecimento, para que se comprove sua ocorrência de determinada forma, e depois vão a julgamento, quando são atingidos por um juízo de valor, para que se lhes aplique determinada con ­ seqüência. Para Aristóteles, o discurso judiciário pode ser a acusação ou a defesa. E esse o tipo de discurso que 1. Arte rctórica. Capítulo III.


O ARGUMENTO

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aqui mais nos interessa, na medida em que nos pro­ pomos a tratar da argumentação jurídica, c) O discurso epidíctico ou demonstrativo é aquele co­ locado a uma platéia para louvar ou censurar deter­ minada pessoa ou fato, não se interagindo com o ou­ vinte a ponto de este necessitar tomar posição sobre o que lhe é relatado. Esse é o tipo de discurso, por exemplo, dos comícios políticos atuais, a que com­ parecem apenas os eleitores daquele a quem cabe a fala principal, diante de uma enorme platéia, enalte­ cendo seus próprios predicados. Mesmo no discurso demonstrativo, em que não existe contraditório, está presente a arte retórica, de valorizar os pontos favoráveis àquele que fala. Por exemplo, é porque em um comício político um candidato não encontra, em número relevante, opositores a quem discursar que sua fala pode deixar de trilhar um caminho argumentativo que leve à adesão de seus ouvintes às idéias que são momentanea­ mente proferidas. Veja-se que curioso o trecho de Arte retórica, de Aristó­ teles, intitulado "Habilidade em louvar o que não merece louvor": Convém igualm ente utilizar os traços vizinhos daque­ les que realm ente existem num indivíduo, a fim de os con ­ fundir de algum modo, tendo em mira o elogio ou a censura; por exemplo, do hom em cauteloso, dir-se-á que é reservado e calculista; do insensato, que é honrado; daquele que não reage a coisa alguma, que é de caráter fácil [...]. Importa igualm ente ter em conta as pessoas diante das quais se faz o elogio, pois, com o diz Sócrates, não custa louvar os atenien­ ses na presença de atenienses.2

O que têm em comum os três tipos de discurso vistos? A resposta é simples: todos procuram convencer. Ainda no

2. Idem, p. 63.


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discurso demonstrativo, cuja única finalidade é enaltecer ou criticar determinada pessoa ou atitude, procura-se conven­ cer os ouvintes a respeito daquilo que se fala: que determi­ nada pessoa é importante, que só tem qualidades etc. Mas a platéia que temos, quando nos voltamos à ativi­ dade principal do operador do Direito, é o juiz ou tribunal, e, se o Poder Judiciário existe para pacificar contendas, temse duas partes debatendo. Quando se argumenta nas ativida­ des forenses, na acusação ou na defesa, não se tem como fim principal a deliberação ou o elogio, mas sim a vitória em uma controvérsia. E a idéia de controvérsia nos conduz a alguns outros comentários um tanto pertinentes. Como a disputa é con­ dição do discurso judiciário, este reveste-se de qualidades que lhe são peculiares, que vale compreender.

A disputa entre dois certos Participar do discurso judiciário é envolver-se em uma demanda, em uma disputa entre partes. Cada uma das par­ tes, como bem se sabe, procura obter para si o melhor re­ sultado: a sentença e o acórdão favorável. Para isso, têm de fazer vingar uma tese, que envolve questões relativas à pro­ va dos fatos alegados e à incidência de determinado insti­ tuto ou conseqüência previstos por lei, para que se aplique o Direito ao efetivo caso concreto. Por isso as partes se digladiam, afinal, seria desnecessário um juiz se não houves­ se controvérsia: poderia ser fechado um acordo de vontades, tal qual ocorre na assinatura de um contrato. Mas não é as­ sim, naturalmente: cada uma das partes, quando se socorre do Poder Judiciário, entende estar com a razão, às vezes lançando sobre a realidade um olhar por demais compro­ metido com seus próprios interesses. Na justiça criminal assim também ocorre, pois, ainda que um réu venha a re­ conhecer seu erro pelo cometimento de um delito, sempre entenderá merecer reprimenda mais leve que a que seu persecutor lhe deseja.


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No Direito, quando se fala em disputa havida por meio da argumentação, surge, primariamente, sempre a idéia do justo. Se duas partes debatem, é natural que se entenda que ao menos uma delas não deva estar com a razão, não seja acobertada pelo Direito, pois não é possível que duas idéias contrárias estejam certas. Sob tal ótica, a argumentação ou a retórica seriam um instrumento de fazer com que aquele que não tem razão se valha de artifícios formais para enganar o julgador3. Quem nunca viu um advogado ser chamado de velhaco porque disfarça a verdade através de truques, de falácias em seu discurso? Essa idéia não é rara, mas bastante tragicômica. Em um evidente prejulgamento, entende-se a argumentação como um debate entre um certo e um errado. Ora, se duas teses são conflitantes, uma é correta, outra não, e a disputa da argu­ mentação somente viria a revelar quem é essa parte que procura fazer uma comprovação impossível. Assim, o de­ bate argumentativo poderia ser comparado àquelas ima­ gens dos desenhos animados: a personalidade do protago­ nista divide-se em dois pólos diferentes: à esquerda, sua imagem travestida de demônio o tenta a uma atitude eviden­ temente má, enquanto a mesma figura, travestida de anjo, tenta dissuadi-lo, mostrando-lhe o caminho do bem. Fácil sa­ ber quem tem a razão, qual o melhor caminho, apenas de­ cidindo-se procurar a forma angelical. Alguns tentam ver as lides processuais com a mesma obviedade que o jocoso discurso entre o anjo e o demônio, afirmando fazer uso do conceito de justiça. A disputa argumentativa seria uma lide em que se daria a oportunidade de retirar o véu que encobre a divisão entre o justo e o in­ justo: aquele que tem o direito e a justiça a seu lado reforça sua razão, mostrando, por meio de argumentos, que seu ra­ ciocínio é o único correto porque decorre de premissas vá­ 3. "Fada, non verba" - Fatos, não palavras! Frase latina que indica que a argumentação é dispensável porque visa turbar a realidade.


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lidas. Qualquer comportamento está em acordo ou em de­ sacordo com o Direito e, portanto, se existe alguma diver­ gência entre duas partes, somente uma delas pode estar agasalhada pelo direito e/ou pela justiça. Veja-se como Kelsen, cuja lição sempre constitui uma aula de raciocínio, defende, ao analisar a justiça no concei­ to de Aristóteles, a idéia de que dos fatos somente se pode fazer dois juízos: adequados ou inadequados ao ordena­ mento jurídico: A afirm ação de que uma virtude é o m eio entre um v í­ cio de deficiência e um vício de excesso, com o entre algo que é pouco e algo que é muito, implica a idéia de que a re ­ lação entre virtude e vício é um a relação de graus. Mas, com o a virtude consiste na conform idade, e o vício na nãoconform idade de um a conduta a uma norm a moral, a rela­ ção entre a virtude e o vício não pode ser um a relação de graus diferentes. Pois, no que diz respeito à conform idade ou à não-conform idade, não há graus possíveis. U m a co n ­ duta não pode ser muito ou pouco, só pode ser conform e ou não conform e um a norm a (moral ou jurídica); só pode co n ­ tradizer ou não contradizer uma norma. Se pressupom os a norm a: os hom en s não devem m entir, ou - expresso positi­ vam ente - os hom ens devem dizer a verdade, um a afirm a­ ção definida feita por um hom em é verdade ou não é verda­ de, é m entira ou não é m entira. Se for verdade, a conduta do hom em estará em conform idade com a norm a; se for uma m entira, a conduta do hom em estará em contradição com a norm a.1

O ordenamento jurídico prescreve modelos de condu­ tas e sanções àquelas que aparecem em desacordo com a norma. Dele surgem problemas intrínsecos, como a hierar­ quia entre as normas, as antinomias e as lacunas. Daí a ne­ cessidade do discurso judiciário, que pode ser caracterizado como aquele que procura comprovar a conformidade ou o

4. O que é justiça?, p. 118.


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afastamento das condutas humanas às prescrições jurídi­ cas. Mas isso não importa em dizer que, sempre que duas partes se encontram em litígio, uma necessariamente de­ fende uma conduta justa ou legal e a outra está afastada da norma jurídica, ou longe da justiça. Vale a pena ler o texto abaixo, adaptado do filme Um violinista no telhado5, em que o protagonista, Tevie, escuta a discussão entre Perchik e outro aldeão, ambos contrapon­ do-se em suas opiniões: Perchik - A vida é mais do que conversa. Deviam saber o que acontece com o m undo lá fora. Aldeão - Por que esquentar a cabeça com o mundo? Q ue o m undo esquente a própria cabeça! Tevie (apontando para o aldeão) - Ele tem razão. O Livro Sagrado diz: "Cuspindo para o alto, cairá em você." Perchik - Não pode fechar os olhos para o que passa no mundo. Tevie (apontando para Perchik) - Ele tem razão. Avram - Um e outro têm razão? A m bos ao m esm o tempo não podem estar certos. Tevie - Você tam bém tem razão. (Risos.)

Em obra de qualidade, como o citado filme, é evidente o teor ilustrativo de cada diálogo. O personagem Avram faz, no trecho recortado, observação final que pode ser tra­ duzida como: se dois personagens discutem e argumentam em teses antagônicas, ambos não podem estar certos! O pensamento do personagem rechaça a idéia de dois discor­ dantes ao mesmo tempo terem razão, porque aceitá-la se­ ria assentir com a impossível idéia de que duas verdades opostas coexistam. Quantas dificuldades isso pode trazer! Imaginemos um juiz que prolate uma sentença dizendo que as teses de am­ bas as partes estão corretas; forçosamente nenhum litígio 5. A fidleron the roof. Warner Brother South Inc., 1971.


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seria resolvido, porque é impossível uma conclusão como essa. Uma das teses deve estar errada. De fato, duas verdades opostas não coexistem. Ou uma conduta é contrária à lei ou não é, pois não se pode ser meio contrário à lei, como já visto. Quer dizer, é até possível que uma conduta seja permitida por uma norma jurídica e proibida por outra, mas aí entraríamos em conflito de nor­ mas, que não é nosso assunto aqui. O que de fato se tem é que um juiz não pode aceitar duas teses opostas como ver­ dadeiras, porque nesse caso seu julgamento seria inócuo, motivo pelo qual aponta como verdadeira apenas uma das teses, aquela vencedora em seu julgamento, em sua decisão. Mas se duas verdades opostas não podem coexistir, duas argumentações opostas não significam necessariamen­ te que alguma delas seja incorreta. Como isso pode acontecer?

Argumento e verdade A argumentação não se confunde com a lógica formal, não sendo então equivalente à demonstração analítica, ab­ soluta, como acontece, por exemplo, em uma equação ma­ temática. Em uma equação matemática verdadeira, somente se admite um resultado, fixando-se as variáveis. Sua resolução, passada em uma demonstração analítica, quaisquer que se­ jam os métodos válidos pelos quais ocorra, sempre chegará a um mesmo resultado. Imaginemos dois matemáticos discutindo o resultado de uma equação bastante complexa. Cada um deles utiliza um método de resolução, mas chegam a resultados dife­ rentes: o matemático A demonstra que a proposição resul­ ta em 350, enquanto o B demonstra que ela, em vez disso, traz forçosamente o resultado de 700. O que se deduz des­ se contexto? Evidentemente, um dos matemáticos, A ou B, está erradol


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O matemático lida com números, e estes representam, antes de tudo, exatidão. Na matemática ou em outras ciên­ cias exatas não existem opiniões ou posicionamentos, porque os números não o permitem. São linguagem artificial. Mas é um erro tentar aplicar ao Direito essa mesma premissa. Quem argumenta não trabalha com a exatidão numéri­ ca, por isso se afasta do conceito binário de verdadeiro/falso, sim/não. Quem argumenta trabalha com o aparentemente ver­ dadeiro, com o talvez seja assim, com aquilo que é provável. E diante dessa carga de probabilidade com a qual se opera que surge a possibilidade de argumentos combinados comporem teses totalmente diversas, sem que se possa dizer que uma de­ las esteja certa ou errada, mas apenas podendo-se afirmar que uma delas seja mais ou menos convincente. Vejamos um exemplo: Conta-se que, em um plenário do júri, um promotor exibia aos jurados as provas processuais. Procurava, por­ tanto, na prática de um discurso judiciário, convencer os ju ­ rados a respeito de sua tese. Mostrava a eles, com muita pro­ priedade - argumentando que o laudo elaborado pela po­ lícia técnica concluía que havia 99% de chance de que o projétil encontrado no corpo da vítima fatal houvesse sido disparado pelo revólver de propriedade do réu. Queria di­ zer o acusador que o réu não poderia, diante daquela prova concreta, negar a autoria do crime. Diante de tal fortíssimo argumento, a probabilidade matemática, o defensor, em tréplica, formulou aos jurados a seguinte pergunta retórica: "Suponhamos que eu tivesse um pequeno pote com cem balinhas de hortelã. E que eu, então, pegasse uma delas, tirasse do papel celofane que a envolve e, dentro dela, injetasse uma dose letal de um ve­ neno qualquer. Em seguida, que eu embrulhasse novamen­ te o caramelo letal, colocasse dentro do pote com outras 99 balinhas idênticas e misturasse todas. Teria algum dos jura­ dos coragem de tirar do pote um caramelo qualquer, desem­ brulhá-lo e saboreá-lo? Certamente que não. Pois, se nin­ guém se arrisca à morte ainda que haja 99% de chance de


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apenas se saborear um caramelo de hortelã, ninguém pode condenar o acusado, ainda que haja 99% de chance de ha­ ver disparado sua arma contra a vítima!" Conta-se que, lançando mão desse argumento, o de­ fensor conseguiu a absolvição de seu cliente. Analisemos o exemplo. Trata-se de um discurso em que duas partes defendiam posicionamentos contrários, cada qual com seu argumento. A acusação procurava comprovar ser o réu o autor de um crime, enquanto a defesa negava tal autoria. Daí que, quando a acusação trouxe um argumento forte, a defesa procurou enfraquecê-lo perante os jurados. Assim se esquematiza a argumentação: Acusação: argumento forte, com uma prova concreta 99 chances em 100 de que a arma que efetuara os disparos fosse a do acusado, o que o colocaria indiscutivelmente como autor do crime. Defesa: argumento mais fraco matematicamente: uma chance em 100 de que a arma não fosse a que efetuara os disparos. Todavia, esse 1% não autoriza a certeza, como de­ monstrou seu exemplo dos caramelos de hortelã. Note-se que, nessa argumentação, cada qual tinha sua parcela de razão, embora ambos procurassem comprovar teses totalmente opostas. Porém, ao mesmo tempo que valorizavam sua razão, ambos os argumentantes tinham sua parcela de falta de ra­ zão: ao argumento acusatório faltava revelar que realmente existia uma probabilidade de a arma letal não ser a do acu­ sado, enquanto ao argumento de defesa faltou dizer que, apesar da falta de certeza, as probabilidades apontavam far­ tamente para a razão da acusação. A boa argumentação consistiu, no caso concreto, em valorizar para o ouvinte, no caso os jurados, aquilo que é meramente provável como se verdadeiro fosse. Tanto não é ver­ dade que daquela porcentagem pertinente à criminalística se possa inferir ser um acusado real autor de um crime (porque 99% não são 100%), quanto não é de todo verdade a conclusão que a defesa pretende inferir: a de que o teste


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de balística não pode ser levado em consideração para a constituição da culpa do acusado. Porque o processo não é matemático, mas matéria hu­ mana, não existe uma conclusão única: acusação e defesa estão, ao mesmo tempo, certas e erradas! O argumento, en­ tão, antes de ser um modo de comprovação da verdadeb, é ape­ nas um elemento lingüístico destinado à persuasão. Argumento é elemento lingüístico porque se exterioriza por meio da linguagem. E, por isso, elemento que aparece inserto em um processo comunicativo, que deve ser o mais eficiente possível. Argumento é destinado à persuasão porque procura fa­ zer com que o leitor creia nas premissas e na conclusão do retor, ou seja, daquele que argumenta.

Os objetivos e os meios da argumentação Qual é o objetivo da argumentação? Quem argumenta tem, como objetivo final, fazer com que o destinatário da argumentação creia em alguma coisa, como já dissemos. Tal idéia, no entanto, não é unânime, pois há quem afirme que o objetivo principal da argumentação vai além de levar o leitor a crer em algo, uma vez que o escopo últi­ mo do retor seria o de fazer com que o destinatário viesse a agir da maneira como se prescreve. E a diferença é relevante. Quem defende que argumentar é primordialmente le­ var o ouvinte a agir de maneira determinada, no discurso judiciário, tem uma visão, curiosamente, ao mesmo tempo pragmática e utópica. Pragmática - explicamos já - porque é destinada ao resultado de modo bastante imediato. Defen­

6. João Mendes Neto (Rui Barbosa e a lógica jurídica, p. 27) comenta que a verdade é a conformidade do intelecto e da coisa (conformitas intelectas et rei). Entendemos que, para a argumentação, a definição é bastante válida, na medida em que o intelecto somente assume a coisa como um significante, uma representação.


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de, com sua parcela de razão, que o objetivo de quem argu­ menta é uma ação específica do ouvinte: o advogado que arrazoa um recurso, sustentando certa tese, intenciona que o magistrado - seu destinatário - pratique uma ação determi­ nada por ele: julgar a causa a seu favor. De nada adiantaria - defende essa corrente aparentemente pragmática - o m a­ gistrado crer nas razões do advogado argumentante, mas não agir deferindo-lhe o pedido. Porém os defensores dessa corrente tropeçam em um elemento da realidade que não se pode ignorar, sejam eles os casos em que fogem do alcance do trabalho argumentativo os motivos que ensejam a ação do ouvinte. Entre a cren­ ça do ouvinte e sua ação determinada existe um claro em que, infelizmente, a argumentação não pode interferir. Pode-se, com bons argumentos, convencer um fuman­ te de que muito maior do que o prazer que o cigarro pro­ porciona seriam os benefícios que imediatamente lhe viriam se deixasse o vício. Ele pode vir, por meio de elementos não raros de persuasão, a crer que é necessário abandonar o ci­ garro. Mas elementos exteriores à comunicação argumen­ tativa interferem na realidade - a exemplo da necessidade química de nicotina do fumante - e podem fazer com que ele não aja da maneira como se lhe prescreve. Melhor se o fizesse, mas a argumentação não pode, por si só, garantilo. O fumante crê, porém não age. Outro exemplo: um advogado defende excelentemen­ te uma tese perante o tribunal. Dos três julgadores do caso, relator e revisor não lhe dão razão, fundamentando a tese da parte contrária. O terceiro juiz, entretanto, pensando so­ bre os argumentos que lhes foram dirigidos, crê que a tese do nosso argumentante, a despeito da opinião de seus co­ legas, é a correta. Todavia, uma questão exterior à argumen­ tação se lhe coloca: se agir da maneira como prescreve o ar­ gumentante, terá de discordar de seus colegas. Isso lhe trará - pensa o magistrado - duas conseqüências desagradáveis, sendo a primeira delas o próprio fato de discordar de uma turma que há tempos é uníssona, e a segunda a necessidade


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de redigir um voto, imprescindivelmente bem fundamen­ tado por dissuadir de seus colegas. O comodismo indevido assola o julgador, e ele, contrariamente a seu dever, deixa seu livre convencimento e sua independência funcional de lado, e, embora creia na tese defendida pelo argumentante, não age da maneira como lhe fora prescrito. Acaba por acompanhar o voto dos colegas. Assim, para definir a argumentação não se pode apartar muito da realidade, devendo-se reconhecer que existe, en­ tre o crer e o fazer, um intervalo que a argumentação deveria alcançar, mas nem sempre o consegue, por mais eficiente que seja. Essa idéia tem valor prático, pois todas as vezes que ar­ gumentamos precisamos ter em mente que o leitor deve ser levado a crer em algo. Fazê-lo crer na tese representa o obje­ tivo da argumentação. E quais são os meios utilizados para esse objetivo? Para que o leitor creia na tese é necessário que ela lhe seja transmitida de forma que seu raciocínio venha aderir ao percurso transmitido pelo leitor. Nesse ponto, a atividade fo­ rense (o discurso judiciário) tem algumas peculiaridades. Quando um renomado jogador de futebol aparece na televisão e, em um comercial, afirma utilizar determinada marca de chuteiras, não há dúvida de que ele exerce um efeito de persuasão em seus espectadores. Em um anúncio como esse existe um argumento que não está expresso, mas pode ser resumido em: se esse atleta usa tal chuteira, é porque esse calçado é o melhor de sua categoria; afinal, um jogador desse gabarito só pode usar produtos de pri­ meira linha. Dúvidas não existem de que a figura daquele atleta re­ nomado, no comercial, funciona como uma forma de fazer crer na qualidade do produto anunciado. A figura do joga­ dor é, então, parte de uma argumentação que dispensa um raciocínio complexo a ser transmitido, mas que ali existe sim­ ples e implícito, caso contrário o comercial não teria ne­ nhum efeito prático nas vendas do produto. Pode-se afir­


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mar que, no anúncio, foram predominantes a imagem e o conceito do jogador, sendo o raciocínio lógico um elemento imprescindível, porém de menor importância. De qualquer modo, existiam argumentos. Se um indivíduo vai comprar um tênis esportivo, é fá­ cil (e muito provável) que valorize imagens associadas aos ídolos dos esportes. Mas quando um juiz avalia uma tese ju ­ rídica, pouco (mas não nada)7 lhe importa a figura do argumentante, mas sim o raciocínio que lhe apresentam as partes, pois é um raciocínio desse tipo, em um percurso determi­ nado, que deve refratar-se em sua sentença. O fator de persuasão mais válido no discurso judiciário é, então, o raciocínio jurídico, seja na interpretação da lei, seja na análise das provas. Acontece que esse raciocínio não é unidirecionado, como já explicamos, pois a lógica jurídica não é exata8. Ele depende dos argumentos para ser exteriorizado. E, ao se fazer essa exteriorização do raciocínio, o argumentante procura valorizar o que lhe é favorável, e isso se faz por meio de técnicas de argumentação. Assim, pode-se dizer que, se o objetivo da argumenta­ ção é fazer crer em uma afirmação, seus meios são a hipertro­ fia dos elementos favoráveis, ou seja, a valorização deles. 7. Não deve causar espanto ao iniciante o fato de se afirmar que o julga­ dor é persuadido, ainda que em menor grau, por elementos externos aos pró­ prios argumentos que fazem parte do aqui chamado raciocínio jurídico. O que não se deve é retirar deste trabalho o objetivo prático, e para isso é necessário observar a realidade. Por exemplo, é impossível negar que quando se cita, para fundamentar uma peça, a doutrina de um famoso jurista, em parte se está valendo de sua imagem, tal qual faz o esportista de nosso exemplo ao anun­ ciar a marca de chuteiras. 8. Vale conhecer como o professor Alaôr Caffé Alves expõe esse tema: "Por isso, a Lógica formal jamais poderá orientar a ação dos homens. Por con­ seqüência, ela não pode ser a lógica dominante nos assuntos humanos, de­ vendo ser, a teoria da argumentação retórica, a única forma de justificar os va­ lores e os atos morais dos homens. A argumentação retórica, ao contrário da lógica simbólica ou Matemática - caracterizada por universal e, por isso, im­ pessoal, neutra e monológica - , supõe sempre o embate (dialético) de opiniões ou o confronto das ideologias e consciências no interior de situações e cir­ cunstâncias históricas determinadas e particulares" (Lógica, pensamento form al e argumentação, elementos para o discurso jurídico, p. 165).


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Fazemos hipertrofias com freqüência, e elas não são m o­ nopólio do discurso jurídico. Desde a propaganda de uma famosa doçaria que diga que seus produtos propiciam sabo­ rosa energia ou doces momentos, em vez de dizer, obviamen­ te, que seus alimentos engordam demais, até um elogio a um colega de trabalho, afirmando-se que ele é muito compene­ trado em vez de lento em suas funções. Evidentemente, a argumentação jurídica desenvolve-se por meios mais com­ plexos, mas de mesma natureza: a valorização dos aspectos favoráveis à tese defendida. O advogado que defende uma tese em juízo procura um percurso argumentativo eficiente naquilo que é mais persuasivo a seu leitor: o raciocínio jurídico válido. Fortalecer o raciocínio jurídico válido é a tarefa de quem procura chegar a um resultado efetivo.

Características da argumentação Visto o que se entende por argumento e os meios da argumentação, cabe sistematizá-los em algumas breves ca­ racterísticas, que serão retomadas com maior profundidade no decorrer dos capítulos posteriores. A argumentação diferencia-se da mera demonstração porque tem o ouvinte, o interlocutor como alvo. A demons­ tração é absolutamente impessoal e, exagerando, poderia ser realizada por uma máquina, como já foi aqui afirmado, tal qual o computador resolve qualquer equação matemáti­ ca. E, assim, axiomática e segue um percurso definido por sistemas formais de raciocínio. Para que possa haver um raciocínio demonstrativo for­ mal, em sistema fechado, como aponta Olivier Reboul, é ne­ cessário que coexistam três condições: a) que não haja am­ bigüidades na significação dos signos - por isso a matemá­ tica se utiliza de uma linguagem artificial (o número um, o zero, o dois... são meros conceitos); b) o sistema deve ser coerente - não se pode afirmar dentro dele sua proposição e


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negação: assim os sistemas de raciocínio formal progridem de modo único e não encontram contradições e quebra de coerência; c) o sistema deve ser completo - vale dizer que para cada proposição formada em um sistema deve-se ter condições de demonstrar sua verdade ou falsidade. Em ou­ tras palavras, cada proposição feita no sistema axiomático deve trazer uma resposta única, um resultado inequívoco e não pode haver proposições, se aceitas pelo sistema, que não encontrem resultado seguro. Todas essas características de um sistema formal em muito se afastam de nosso esquema argumentativo. A ar­ gumentação traz, ainda aproveitando-nos de Reboul, cinco características que devemos compreender, para aprofundálas em momentos seguintes do nosso estudo. São elas: a) A argumentação dirige-se a um auditório. Sempre argumentamos para alguém, diante de alguém. Os argumentos e a progressão do discurso devem variar de acordo com aquele a quem este é direcionado. Tal caracte­ rística é objeto de nosso estudo, principalmente quando tratarmos a intertextualida.de. b) Utiliza-se de língua natural. Ponto muito importante. Quando argumentamos, utilizamo-nos da mesma linguagem com que nos comuni­ camos no dia-a-dia. E isso sujeita a construção argumentativa a diversas regras, que são as mesmas da comunica­ ção em geral. Se, por um lado, a língua natural dificulta o trato com os argumentos, já que eles não podem vir dis­ sociados de uma enunciaçâo, por outro confere-lhes uma série infindável de recursos: o trato com a palavra. Assim, os mesmos recursos da enunciaçâo em geral, da lingua­ gem como um todo, aplicam-se integralmente à constru­ ção argumentativa. Tais características serão exploradas neste livro, principalmente quando tratarmos de competên­ cia lingüística. c) Suas premissas são verossímeis. Essa característica foi matéria do presente capítulo, por­ que contida na classificação do argumento. Da realidade re­


O ARGUMENTO

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duzimos seu contexto, para fixar pontos de partida impres­ cindíveis ao início da construção do discurso. Esses pontos de partida, como os demais argumentos, não são prova de verdade, mas sim elementos de demonstração de probabili­ dade. Mais convincente o argumento quanto mais verossí­ mil for, e nisso também se enquadra a forma, a enunciação. d) A progressão depende do orador. Quando se argumenta se faz constante seleção de ele­ mentos lingüísticos que podem vir a compor o discurso. Co­ gitamos o melhor argumento, as melhores palavras, as cita­ ções mais adequadas, formulam-se introduções, conclusões, prolongam-se ou encurtam-se exemplos... Tudo à livre es­ colha daquele que constrói seu discurso, quer seja oral, quer escrito. Quem defende que, por exemplo, para a constru­ ção de um recurso judicial exista um padrão de progressão argumentativa indeclinável está evidentemente ocultando do estudante uma visão realista da atividade suasória, nes­ se caso no contexto jurídico. Fazer progredir um discurso é atividade do intelecto humano. A progressão da argumentação será abordada nos capí­ tulos que tratam da coerência e da ordem dos argumentos. e) As conclusões são controvertidas. Ao contrário da lógica formal, a argumentação permite conclusões controvertidas. Veja-se: a lógica formal, como lembra Atienza, move-se no terreno da necessidade. Um raciocínio demonstrativo ou lógico-dedutivo importa neces­ sariamente que a passagem de uma premissa para a conclu­ são seja determinada. Mas a argumentação move-se na mera probabilidade. Os argumentos, na retórica, não de­ monstram provas evidentes, por isso é possível chegar-se a conclusões controvertidas, quando se avança em raciocínios retóricos por trilhas distintas. Nenhuma conclusão é, por fim, absolutamente verdadeira, ainda que o orador a anun­ cie como verdade ímpar, como único raciocínio aceito. Um orador jamais afirmará que seu discurso é composto de afir­ mativas em mera probabilidade. Porém, na realidade, qual­


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quer raciocínio retórico é meramente razoável. Mas não está aí a beleza da argumentação? Compreendidas essas características do argumento e da argumentação, pode-se passar a uma leitura mais espe­ cífica de cada uma delas, já com novo alcance prático.


Capítulo III

Argumentação e fundamentação. Pensando no ouvinte Um discurso passa a ser argumentativo quando seu autor toma consciência de que tem um auditório, um ouvin­ te específico a ser persuadido. Assim, não expõe seu próprio raciocínio, mas aquele que entende ser mais adequado a seu interlocutor.

No capítulo anterior, dissemos que quem argumenta, em discurso judiciário, procura fortalecer um raciocínio jurídi­ co válido diante de outra argumentação que lhe é contrária. Nossa experiência em sala de aula indica, não raro, al­ guma relutância do aluno em aceitar a existência de uma grande diferença entre o trabalho argumentativo e o estudo do Direito em si. Por isso preparamos o presente capítulo.

O discurso científico O Direito não tem a mesma sistemática exata da mate­ mática, como já foi dito, mas nem por isso deixa de se cons­ tituir em uma ciência. A inexistência de fórmulas e diagra­ m as1na demonstração do raciocínio jurídico não lhe retira a cientificidade, ao contrário do que muitos pensam. Durante a universidade, embora a maioria dos livros de estudo sejam manuais que se preocupam mais com a didáti­ ca do que com a originalidade, nos é dada uma visão aprofun­ dada da ciência do Direito, ou seja, construções de raciocínio

1. Cf. ECO, Umberto. Como se faz uma tese, p. 21: "... Para alguns, a ciên­ cia se identifica com as ciências naturais ou com a pesquisa em bases quanti­ tativas: uma pesquisa não é científica se não se conduzir mediante fórmulas e diagramas."


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a respeito do ordenamento jurídico que têm um caráter gené­ rico, que buscam tangenciar a veridicidade científica2. Ao absorver o Direito por meio de teses desenvolvidas pela veridicidade científica, alguns de seus operadores têm dificuldade em dissociar aquelas teses da aplicação do Direi­ to aos casos concretos, em que se abandona, já como pre­ missa, o caráter genérico do discurso científico. Em termos mais simples: alguns operadores do Direi­ to prendem-se por demais a opiniões prontas, a teses sus­ tentadas na doutrina pela qual apreenderam a matéria e então deixam - sem consciência disso - de ver a ciência como instrumento importantíssimo do argumentante, pas­ sando a encará-la como único instrumento de demonstra­ ção da realidade. Quando o operador do Direito, especialmente na ad­ vocacia, confunde conhecimento jurídico com convencimento científico, encarando o que aprendera na faculdade como verdade intransponível, está no caminho para se tornar um mau argumentante. Pode até ser um bom jurista por certo tempo, mas um mau argumentante. O bom argumentante deve ter um brilhante conheci­ mento jurídico, conceitos bem firmados, mas não se pode prender, na argumentação, a seu convencimento puramen­ te pessoal. Deve sempre ter em conta que, em seu trabalho de argumentação, não procura a veracidade científica, que se opera erga omnes, mas sim o convencimento de uma ou mais pessoas determinadas, a respeito de uma tese que surge de determinada situação fática específica. Por isso, no discurso judiciário se utiliza da ciência do Direito como instrumento para o convencimento de um ter­ ceiro, o julgador. E o trabalho que leva à persuasão desse terceiro não é trabalho idêntico ao que existe na dem ons­ tração de uma tese científica, tal como em uma dissertação acadêmica de mestrado, doutorado ou livre-docência.

2. Cf. MARCHI, Eduardo C. Silveira. Guia de metodologia jurídica, p. 36.


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Pode parecer muito estranha uma colocação como essa, mas estas lições - reafirmo - perderiam seu fundamento prá­ tico caso se evitassem tais observações. E em sala de aula muitas vezes vimos estudantes que, nesta matéria, relutam em aceitar apresentar argumentos que se afastem de seu convencimento pessoal, como transpondo a si próprios no lugar do destinatário da argumentação. Isso importa, fatal­ mente, em pouca persuasão, como veremos a seguir.

Um corte de casimira O texto que segue é um conto de Moacyr Scliar3. São desnecessárias quaisquer considerações a respeito de sua qualidade, pois brevemente o leitor o apreciará. Este texto nos permitirá depreender uma distinção importante na atividade argumentativa. Para chegarmos a ela, é interes­ sante que façamos, em sua leitura, o exercício tal qual ora proposto. O leitor perceberá que se trata de uma carta deixada pelo marido a sua esposa, e que o conteúdo dessa carta é eminen­ temente argumentativo. Por um esforço de raciocínio, o enunciador procura convencer a esposa a respeito de algo. Leia o texto abaixo e, ainda sem grandes preocupações com a técnica, procure perceber quais são os principais argu­ mentos utilizados pelo autor da carta. Estou lhe escrevendo, Matilda, para lhe transmitir aqui­ lo que a contrariedade (para não falar em indignação) me impediu de dizer de viva voz. N ote, é a primeira vez que isso acontece em nossos trinta e cinco anos de casados, m as é a primeira vez que pode tam bém ser a última. Não é ameaça. É constatação. Estou profundam ente m agoado com sua ati­ tude e não sei se me recuperarei. Tudo por causa de sua teimosia. Você insiste, contra to ­ das as minhas ponderações, em dar a seu pai um corte de

3. "O s usos da casemira inglesa". In: Contos reunidos, p. 15-7.


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casem ira inglesa com o presente de aniversário. Eu já sei o que você vai m e dizer: é seu pai, você gosta dele, quer h o m e­ nageá-lo. M as com casemira, Matilda. Com casem ira ingle­ sa, Matilda. Q ue horror, Matilda. Raciocinem os, Matilda. Casemira inglesa, você sabe o que é isso? A lã dos m elhores ovinos, Matilda. A tecnologia de um país que, afinal, deu ao m undo a Revolução Indus­ trial. O trabalho de com petentes operários. E sobretudo tra­ dição, a qualidade. Esse é o tecido que está em questão, M a ­ tilda. A casem ira inglesa. Há m uitos aspectos nesse problem a, mas quero deixar de lado tudo o que m e parece m enos significativo, inclusive o preço. Sim, o preço. Você sabe que sou hom em de poucas posses e que um corte de tecido importado custaria bastan­ te, mas vam os admitir que isso seja secundário, vam os omitir esse detalhe; fixem o-nos na própria casem ira inglesa, M atil­ da. E da casem ira elim inem os aquilo que possa entre nós gerar controvérsia - por exemplo, a conveniência de dar a um hom em que sem pre se vestiu mal, que não dá a mínima importância já não digo à elegância, mas à limpeza, algo tão sofisticado, tão distinto. Não, não vam os discutir isso, não vamos discutir a sofisticação da casem ira. Vamos abordar ou ­ tro tópico. A duração. Sabe quanto tem po pode durar a casem ira inglesa, M atilda? Muito tem po, Matilda. Muito tempo. D isse-m e o ven­ dedor - porque tomei o cuidado de colher essas inform a­ ções, não estou polemizando pelo prazer de polemizar, e s­ tou querendo que você raciocine com igo - que um paletó de casem ira inglesa, bem cuidado e ao abrigo de traças (e com o há traças na casa de seu pai, Matilda, com o há traças lá), pode durar anos, décadas, séculos, talvez (ele falou em rou­ pas guardadas desde o século XVII, mas talvez haja exagero nisso, vendedor é vendedor, m esm o que esteja vendendo um fino artigo, com o é o caso). Isso, a casem ira inglesa. Agora, seu pai. Ele está fazendo noventa anos. E uma idade respeitá­ vel, e não são muitos os que chegam lá, mas - quanto tem po ele pode ainda viver? Sim, todos nós desejam os que ele ch e­


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gue ao centenário, mas, francam ente, Matilda, você acredita nisso? A gente fala em cem anos porque é um número re­ dondo, é um espaço de tem po expressivo, um século, mas quantos centenários há no mundo? E as chances de seu pai ser um deles... Aquela tosse, a falta de ar... Não sei, não. Mas m esm o que ele viva dez anos, m esm o que ele viva vinte anos, a casemira sem dúvida durará mais. Aí, depois que o sepultarmos, depois que voltarmos do cemitério, depois que receberm os os pêsam es dos parentes, e dos amigos, e dos conhecidos, terem os de decidir o que fazer com as coisas dele, que são poucas e sem valor - à exceção de um casaco confeccionado com o corte de casem ira que você pretende lhe dar. Você, em lágrimas, dirá que não quer discutir o a s­ sunto, mas eu terei de insistir, até para o seu bem , Matilda; os m ortos estão mortos, os vivos precisam continuar a viver, eu direi. Algumas hipóteses serão levantadas. Vender? Você dirá que não; seu pai, o velho fazendeiro, verdade que arrui­ nado, despreza coisas com o comprar e vender, ele acha que ser lojista, com o eu, é a suprem a degradação. Dar? A quem? A um pobre? M as não, ele sempre detestou pobres, Matilda, você lembra a frase característica de seu pai: tem de m atar esses vagabundos. Essas hipóteses todas estando esgotadas, você se voltará para mim e me pedirá, naquela sua voz súpli­ ce: fique com o casaco. E eu terei de dizer que não, Matilda. Em primeiro lugar, eu sou muito maior que seu pai, coisa que ele sempre fazia questão de m e lembrar, cham ando-m e de gordo porco, você lem bra? Você achava graça, dizia que era brincadeira, mas eu sabia que no fundo ele estava falan­ do sério. Gordo porco, Matilda. Ouvi isso durante trinta e dois anos. Mas m esm o que o casaco me servisse, Matilda, eu não o usaria. Você sabe que isso seria a capitulação final, M a­ tilda. Você sabe que com isso eu estaria renunciando para sem pre à minha dignidade. O casaco ficaria pendurado em nosso roupeiro, M atil­ da. Ficaria pendurado muito tempo lá. A não ser, Matilda, que seu pai dure mais tem po que o casaco. N ão apenas isso é impossível, com o rem ete a uma outra interrogação: e o se­ guro de vida dele, M atilda? E as jóias de sua mãe, que ele guarda debaixo do colchão? Q uanto tempo ainda terei de esperar?


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Estou partindo, Matilda. Deixo o meu endereço. Com o você vê, estou indo para longe, para um a pequena praia da Bahia. Trópico, Matilda. Lá ninguém usa casemira.

O texto é argumentativo porque se utiliza de vários ele­ mentos lingüísticos que procuram fazer com que a leitora ideal - a esposa do enunciante - seja conduzida a determi­ nada conclusão. Quem leu o texto procurando seus princi­ pais raciocínios de persuasão percebeu-os muitos, pois apa­ recem de modo exagerado, hiperbólico, como costuma acon­ tecer nos textos que buscam o humor. Mas esse conto nos ensina mais, e procuraremos dele aproveitar suas nuanças que se identificam em uma boa argumentação. Releia o texto e responda a estas questões: 1. Qual é a tese principal da qual o autor da carta pro­ cura convencer a esposa? 2. Qual é sua estrutura argumentativa principal, ou: em que se concentram seus argumentos? 3. Quais são os motivos ou fundamentos que levam o autor a escrever a carta? A resposta a essas perguntas nos estabelecerá concei­ tos relevantes. Portanto, leitor, alertamos mais uma vez: pense nas respostas antes de seguirmos. Perceba que a tese principal apresentada é aquela de que se pretende convencer o leitor. A primeira vista, pode parecer que ela estaria representada no tema de não compen­ sar ofertar ao sogro do autor da carta um corte de casimira. Mas esse é apenas um grande argumento do texto, não a tese. Esta aparece na primeira frase do segundo parágrafo: Tudo por causa de sua teimosia. O que o autor procura com­ provar, como objetivo final da argumentação, não é o fato de caber ou não o presente da casimira, mas sim o fato de o abalo no casamento dever-se ao comportamento da esposa, qualificado como teimoso. A tese principal é aquela idéia para a qual todos os ar­ gumentos convergem. Os argumentos passam pela imper­ tinência do corte de casimira pretendido pela esposa, e nis­


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so de fato se concentram, mas todo o conjunto converge para uma idéia que vai além: colocar a mulher como a única res­ ponsável pelo fim do casamento (conseqüência que somen­ te é apresentada na última parte do texto). Esse princípio nos é essencial: o objetivo final da argu­ mentação nem sempre representa a idéia principal mais aparente. Às vezes o percurso argumentativo tracejado pelo argumentante faz a tese depender muito da aceitação de um argumento principal, mas ele por si só não constitui a tese4. A tese é aquela que representa objetivo último do argumentante ao ouvinte. Conhecedores de sua tese, e percebendo que ela ultra­ passa o mero cerne da argumentação, vamos à segunda questão: quais foram os principais argumentos tracejados pelo autor? Essa questão é mais simples, dada a diferenciação an­ terior. Como elementos lingüísticos destinados à persuasão (no caso, a persuasão da esposa do autor da carta), temos vários raciocínios ali enunciados. A argumentação do autor é vasta, e vai de argumentos mais longos, com estruturas maiores, a outros menores, idéias curtas, mas também lançadas ao convencimento. O maior deles é a pertinência da casimira, pois, como visto, todo esse tema é apenas um vasto lugar argumentati­ vo de todo o texto, apartado da tese. Dentro dele, um per­ curso definido, permeado de diversas outras idéias com teor suasório indiscutível, podendo ser resumido em: a) a casi­ mira e seus aspectos: o preço, a conveniência, a qualidade e 4. Em sala de aula, motivamos aos alunos a notar como não é rara a técnica retórica de fazer com que o ouvinte se concentre tanto em um argu­ m ento que o interprete como em uma verdadeira tese. Isso ocorreu no exem ­ plo que citamos no capítulo anterior, a respeito do confronto entre os 99% do laudo de balística e a alegoria do veneno oculto na bala de hortelã. O advo­ gado daquele exemplo, porque sabia que tinha um argumento muito forte, diante da evidência transforma aos jurados a desconstituição da certeza do lau­ do em uma lese. Entretanto, sua tese era a negativa de autoria de que o laudo de balística - conclusivo ou não - era apenas um argumento. Essa técnica se denomina rcducionismo.


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a duração; b) o pai, sua idade, sua morte em intervalo de tempo curto, quanto mais se comparado à duração do teci­ do, e os destinos da casimira depois desse evento; c) a casimira e a hipótese de o pai durar mais tempo que o casaco. E enfim a conclusão, a fuga do autor-argumentante para um lugar onde não estará sujeito a todos esses problemas, por­ que nos trópicos "ninguém usa casemira". O leitor pode ter percebido muitos outros argumentos, dentro de nossa definição ampla. A título de exemplo, usase um forte argumento ao se dizer "Raciocinemos, Matilda". Aquilo que parece simplesmente um modo de preencher o texto e chamar a atenção do leitor é muito mais: transmite à destinatária do texto que lhe vai ser demonstrada uma conclusão fruto do melhor raciocínio - contrario sensu indu­ zindo a que o pedido inicial (a casimira) seria desprovido de razão, de raciocínio. Outros argumentos há, em um texto dessa qualidade, mas aqui o principal é procurar responder à terceira ques­ tão formulada para a leitura: quais são os motivos ou fu n da­ mentos que levam o autor a escrever a carta? Quem procurou responder às três perguntas formula­ das percebeu a evidente distinção entre argumento e motivos ou fundamentos que a induzem. Pois essa distinção - a seguir explicada - parece-nos o elemento mais característico do texto de Scliar, que funda­ menta seu forte elemento humorístico. E que o leitor man­ tém, na leitura do texto, um estranhamento constante: o fato de um marido buscar tantos recursos de raciocínios di­ versos a respeito de um corte de casimira, dando-se ao tra­ balho de lançá-los em uma longa epístola à esposa. Esse estranhamento, porque a atitude foge à normalidade, traz uma expectativa no leitor: não haveria um interesse do ma­ rido que transcendesse à compra da casimira? Com essa expectativa - que é característica da narrati­ va literária - o leitor aos poucos descobre outros detalhes da vida do casal que o lançam em uma contradição cômica: que os motivos que o levam a escrever são muito diferentes dos argumentos que o marido elenca.


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Em resumo: o que motiva o autor a escrever é o fato de querer terminar seu casamento e atribuir à esposa a culpa por tal ato; e os fundamentos do fim do casamento são: a) o des­ prezo do velho para com seu genro; b) as ofensas freqüen­ tes em decorrência desse desprezo, que se prolongam por 32 anos; c) a ruína econômica atual do velho; e d) a desis­ tência por aguardar o prêmio do seguro e as jóias como herança. Quando o autor enuncia esses fatos, o leitor percebe os verdadeiros fundamentos de sua argumentação: o casa­ mento termina devido a um martírio longo, composto por esses quatro elementos, além de outros que não vieram enunciados. Os fundamentos são, então, os elementos racionais que sustentam a conclusão daquele que enuncia o texto, daquele que, aqui, argumenta. Entretanto, no texto de Scliar, fica evidente que esses fundamentos não poderiam ser expostos à leitora, a esposa, pois nela não surtiriam nenhum efeito persuasivo. Em primeiro lu­ gar, porque a maioria dos fundamentos dirige-se diretamen­ te a defeitos do pai da leitora, os quais ela relutaria em aceitar por uma condição pessoal. Ninguém com bom relaciona­ mento familiar aceita objetivamente críticas ao próprio pai. Consciente disso, o autor da carta livra-se de pensar em como ele, autor, é convencido a abandonar o laço matrimo­ nial e passa a colher idéias que venham a surtir maior efeito na leitora. E assim aproveita a casimira, que não é fundam en­ to para o fim do casamento, mas que funcionou como argu­ mento, pois surtirá efeito no raciocínio da esposa, a quem direciona o texto. Ao escrever à esposa, o autor abandona a fundamenta­ ção em sentido estrito para dedicar-se à argumentação. Isso ocorre no exato momento em que ele pensa não em si, não em justificar como funciona seu raciocínio ou em explicar suas conclusões, mas sim no que convence o terceiro. E esse raciocínio, no texto, implicou também a elabo­ ração de uma outra tese. No momento em que o argumen-


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tante, o marido, percebeu que os motivos que os convence­ ram eram diferentes daqueles que efetivamente conven­ ceriam sua esposa, optou por este último percurso. E assim foi persuasivo. O argumentante adaptou seu discurso às condições pessoais do ouvinte. Tal conclusão nos é muito importante.

Argumentação x fundamentação: a distinção relativa Toda decisão judicial deve ser motivada ou funda­ mentada5. A fundamentação da sentença é elemento essencial não só para o processo, mas para toda a sociedade, que diante dos fundamentos da decisão tem condições de saber se o Ju­ diciário age com imparcialidade e se suas decisões são fru­ to da lei ou do arbítrio do prol a to r. A Constituição garante a fundamentação do julgado, bem como os códigos de procedimento. A motivação compreende "a exposição atinente às pro­ vas produzidas e aos respectivos critérios de avaliação"7. Quando o juiz faz sua fundamentação, elenca elemen­ tos que devem convencer as partes de que seu raciocínio é o mais correto, é o decorrente da lei, e de que seu livre con­ vencimento não provém da arbitrariedade, mas sim de uma boa avaliação de todas as provas e de todo o ordenamento legal. 5. Utilizam-se como sinônimos os termos fundamentação e motivação, pois aparentemente a doutrina nacional não lhe faz distinção relevante. A lei parece também utilizar como sinônimo, ao tratar e ao se referir à fundam enta­ ção na lei maior e no ordenamento processual civil (art. 93, IX, da CF 88, e arts. 165 e 458, II, do CPC) e m otivação na lei processual penal (art. 381, III). Impor­ tante será aqui a distinção entre esses termos e a argumentação, que tem efei­ tos práticos evidentes. 6. Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et alli. As nulidades no processo penal, p. 209. 7. CHIAVARRIO, Mario. In: FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional.


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Ao fundamentar, o julgador põe à prova seu método de raciocínio. Deve sempre motivar exaustivamente sua deci­ são, pois as partes merecem conhecer tanto o método de ra­ ciocínio do juiz quanto, e principalmente, a prova de que fo­ ram avaliados todos os elementos levados ao processo, in­ cluindo-se nesses elementos os argumentos argüidos pelas partes, um a um8. Assim, a fundamentação deve ser exaustiva, deve reve­ lar um percurso lógico bem detalhado, completo, que possa ser criticado em seu raciocínio pelos interessados em resul­ tado diverso daquele proferido na decisão. Quando fundamenta uma decisão, o juiz está preocu­ pado em exteriorizar seu próprio raciocínio, em explicar detalhadamente - os motivos pelos quais ele foi levado a de­ terminada conclusão, seja na avaliação das provas, seja na avaliação das teses a ele expostas. Sua conclusão só pode ser sujeita a críticas fundamentadas na medida em que o decisor exponha de modo claro os meios pelos quais fo i le­ vado a determinada conclusão. Ao menos assim deveria ser. Expondo os motivos de sua decisão, o juiz põe à prova seu raciocínio enunciado. A avaliação das provas, a solidez das premissas e o percurso até a chegada a suas conclusões, as idéias invocadas como fundamentos, as estruturas lógi­ cas, os elementos que podem vir subentendidos, os trechos do ordenamento jurídico invocados e aplicados ao caso em julgamento, os argumentos a ele lançados que fizera acatar e, principalmente, os elementos que fazem com que tenha deixado de aceitar a tese contrária ao direcionamento de sua decisão. Em resumo, ao que nos interessa neste tópico, quem fundamenta explica, em tese, sua própria decisão\ Veremos, adiante, que, em posicionamento mais aprofundado, pode-

8. Vide Capítulo XIV. 9. Essa decisão, claro, é objetiva, conforme a alegação das partes. Afinal, o juiz de Direito, ao contrário do jurado, julga secundum allegata etprobata partium, e não secundum propriam suam conscientiam.


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se acreditar que mesmo o julgador, em lugar de construir fundamentação, acaba convencendo-se por fatores muito diversos daqueles que elenca, e isso aproxima seu trabalho da argumentação propriamente dita, na medida em que tam­ bém pretende convencer as partes. Mas para esse comentá­ rio crítico remetemos a leitura posterior10. Quando lemos julgados ou participamos do estudo ou da produção científica do Direito, acostumamo-nos ao dis­ curso da fundamentação, ou seja, ao discurso em que as partes explicam suas próprias conclusões. É bem verdade que esse discurso nunca aparece puro11, e não é raro que mes­ mo em uma tese dotada da mais objetiva cientificidade ou em uma decisão das mais fundamentadas e imparciais encontrem-se elementos lingüísticos que busquem mais a per­ suasão que a demonstração, mas essa não é a regra. Porém aquele que argumenta, que defende um ponto de vista buscando primordialmente a adesão do leitor ou ou­ vinte não o pode fazer como se construísse uma funda­ mentação. O argumentante não apenas explica seu próprio motivo de convencimento, mas pode até afastar-se dele quando se preocupa em conseguir a adesão daquele a quem sua argu­ mentação se dirige. Para o advogado essa idéia é essencial: deve sempre ter em mente que os raciocínios que o levam a determinado con­ vencimento não coincidem necessariamente com aqueles que le­ vam o ouvinte ou leitor a aderir a esse mesmo convencimento12. Argumentar, em sentido estrito, é algo mais que a cons­ trução do bom raciocínio jurídico, para aqueles que operam o Direito. Argumentar significa partir do bom raciocínio ju ­ 10. Vide Capítulo XTV. 11. Por isso todo discurso judiciário é também argumentativo. 12. Exemplo simples: um advogado pode estar convencido de que de­ terminado cliente não é autor do crime porque o conhece há anos, sendo tes­ temunha de sua integridade. Este é um motivo próprio e predominante, mas não lhe serve de argumento, pois não é o que convencerá o magistrado. Terá de conseguir provas nos autos, embora independa delas, em raciocínio pró­ prio, para crer na inocência.


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rídico e preocupar-se com o conteúdo lingüístico necessário para que o leitor o aceite como verdadeiro (ou, ao menos, o aceite como o melhor dos raciocínios apresentados, no caso da dialética processual). Quando um advogado, argumentando, cita trecho de um julgado de um tribunal qualquer, está utilizando-se de um argumento por analogia. Apoiando-se na eqüidade, pede que para em fatos análogos o Judiciário aplique resultados idênticos. Ao lançar mão desse argumento - porque é argu­ mento, e não fundamento - , não está dizendo que ele, advo­ gado, tenha se convencido de sua tese por força do texto que recorta, mas sim que entende que aquele julgado funciona como fator de persuasão para quem pretende atingir. O advogado, porque defende um interesse, não expli­ ca seu raciocínio, mas sim expõe um raciocínio que leva, por seu percurso, a uma adesão. Essa adesão depende do inter­ locutor, e por isso atende às peculiaridades, aos gostos e à visão de mundo deste. Nesse contexto, não é exagero dizer que, enquanto a fundamentação tem seu centro de gravidade naquele que fala, a argumentação se concentra naquele a quem se fala. Retomemos exemplos aqui já fornecidos nesse sentido. No texto de Moacyr Scliar, o marido, ao dirigir sua carta à esposa, já tem claros os fundamentos de seu pedido. Mas eles não bastam: daqueles fundamentos, o enunciador tira a questão "que devo fazer para convencer a esposa acerca de­ les?". Ao fazer essa pergunta, hipotética, o enunciador trans­ porta o centro de argumentação dele para a destinatária. En­ tão percebe que os fundamentos que o convencem não são os argumentos eficientes para persuadir a esposa. Esta precisa, como argumento, de um raciocínio bem diverso. O mesmo ocorreu com o exemplo do tribunal do júri, no confronto entre os 99% do laudo e os 100% que autori­ zariam a certeza. Ao transportar o centro do raciocínio dele para os jurados, o advogado criou um raciocínio persuasivo: as balinhas de hortelã. Evidentemente elas não fazem parte dos motivos que o levaram a acreditar que o laudo não era digno de certeza da culpabilidade, mas representaram


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meio eficiente de levar os jurados a aderir a essa conclusão, ain­ da que por um caminho diverso. Mais que rechaçar o lau­ do, porque não contava com 100% de certeza, o advogado preocupou-se com um meio eficiente de exteriorizar esse racio­ cínio e atingir ouvintes específicos, e foi nesse momento que passou, em sentido estrito, a argumentar. Essa é a diferença principal entre fundamentação e ar­ gumentação que nos autorizou a iniciar o presente capítu­ lo, afirmando que nem sempre aquele que bem fundamenta faz boa argumentação. Alguns têm prática em exteriorizar seu próprio raciocínio, mas podem não alcançar resulta­ do prático de persuasão se não estiverem conscientes, a todo momento, de que a argumentação é o modo de atingir o interlocutor. Mas não digamos absurdos: em momento algum se afir­ ma que aquele que argumenta, no campo jurídico, dispensa a fundamentação. Ele parte dela, adotando teses que contam com sustentabilidade jurídica, para valorizar essas teses por meio de argumentos que devem se concentrar no destina­ tário. Da mesma forma, a decisão judicial não dispensa ar­ gumentos, pois o julgador também deve se preocupar em convencer as partes das razões de seu raciocínio, mas é o ra­ ciocínio próprio, pois ele não busca a adesão das partes em litígio a sua tese. Até porque isso seria impossível: uma das partes (ou ambas!) estará sempre insatisfeita. Conscientizar-se da diferença entre fundamentação e argumentação resulta em mais trabalho ao argumentante, mas também em maior liberdade e em resultados mais efi­ cientes. E disso que trataremos a seguir.

Uma eterna desvantagem: o ponto de vista comprometido E importante uma observação a respeito da atividade de argumentar. Vimos que quem argumenta procura atin­ gir o leitor, o ouvinte, o destinatário de suas normas, e para isso não basta expor os motivos de seu convencimento.


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Durante algum tempo essa idéia encontrou grande opo­ sição, como já dissemos no capítulo anterior. Acreditou-se que o bom raciocínio era sempre mais próximo da funda­ mentação que da argumentação, pois esta levaria à falácia, ao engodo, já que se procuraria a qualquer custo o conven­ cimento do ouvinte, sem se importar com a verdade. A oposição é válida, mas parte de premissa errada. Nunca se procura, ao argumentar, o convencimento do ou­ vinte a qualquer custo. A argumentação depara com princí­ pios éticos válidos e exigíveis, como a proibição de se levar ao engodo ou de se alterar os fatos em sua essência13. O anunciante que divulga qualidades que o produto anuncia­ do não tem ou o advogado ou promotor que afirma fatos que não existem nos autos abandonam o processo de persua­ são e caem, agora sim, na falsidade. Com a argumentação pretende-se valorizar um racio­ cínio para determinado leitor. E o que autoriza o argumen­ tante a buscar os elementos de persuasão específicos a um interlocutor - aquele a quem se dirigem seus argumentos é o fato de sua argumentação partir sempre de um ponto de vista comprometido. Expliquemos. Imagine que uma pessoa entre em uma concessionária de automóveis de uma marca específica, interessada em comprar um carro popular. Traz consigo seu filho, de ape­ nas onze anos de idade. Na concessionária, encontra o vende­ dor. Como está em dúvida entre o carro que irá comprar, pois o modelo similar - de outra marca - também traz atra­ tivos, o interessado pergunta ao vendedor, diante do auto­ móvel ali posto à venda: "Este carro é bom?" O filho, diante da questão levantada pelo pai, olha-o e faz a interpelação: "Que pergunta boba, pai! Que acha que o vendedor vai dizer?" O aparte do filho tem uma razão muito evidente. Em sua imaturidade, fez uma observação pertinente, a de que o

13. Vide Capítulo XIII.


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ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

vendedor, diante daquela questão, somente poderia dar uma resposta: a de que o carro é bom. Por isso a pergunta seria totalmente dispensável, boba mesmo. O que o menino observou ao pai é que a resposta do vendedor era conduzida por um interesse evidente. Tal é a condução de seu interesse que sua resposta é comprometida. Embora pelas várias maneiras diferentes que se possa dar essa resposta, ela somente pode dirigir-se a um sentido úni­ co: aquele que atende aos interesses pessoais daquele que fala, que no caso é quem quer vender o carro. O vendedor é, portanto, parcial. O que o menino talvez não tenha percebido é que o interesse do vendedor conduz e compromete sua resposta, mas não necessariamente a corrompe. Seu pai, ao perguntar ao vendedor se o veículo que este pretendia vender era bom, não ansiava apenas pela resposta, mas procurava fomentar uma argumentação. Talvez pudesse questionar: por que devo comprar este veículo? Encarregado da venda, o profissional lhe falará sobre as vantagens do carro, e terá de fazê-lo com argumentos, comprovando suas afirmações. Evidentemente, o preten­ so comprador "filtrará" seus argumentos, ou seja, dará a eles menor crédito a partir do momento em que sabe que não são "mentiras", porém nascem comprometidos com um interesse daquele que fala. Situação diversa ocorreria se esse mesmo comprador encontrasse um amigo de escritório que lhe falasse a res­ peito das vantagens daquele modelo de automóvel. O dono do automóvel, para convencer o amigo da compra de um modelo idêntico, precisaria de argumentos bem mais exí­ guos. Por não ter interesse aparente em convencer o amigo a semelhante compra, os fundamentos do dono do veículo parecem dignos de maior crédito. Não é impossível ao vendedor convencer o comprador da aquisição do automóvel, porque talvez este seja mesmo o melhor modelo do mercado e porque os argumentos elencados (a economia de combustível, a força do motor, a tec­


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nologia no painel, o espaço interno...) sejam todos basea­ dos na mais absoluta correspondência com a verdade. O fato é que o vendedor tem de buscar uma argu­ mentação mais eficiente para compensar o ponto de vista comprometido que tem. Assim, procura os argumentos que surtirão mais efeito naquele comprador (se tem uma família grande, o espaço interno; se faz um trajeto longo todos os dias, o baixo consumo; se viaja nos fins de semana, o por­ ta-malas...). Por isso é lícito ao vendedor que busque expor os argu­ mentos que interessam ao comprador, ainda que não re­ presentem seus motivos pessoais para a aquisição do veí­ culo (até porque é possível que, por convicção pessoal, o ven­ dedor prefira a marca concorrente, mas isso afronta seus interesses naquele momento). O vendedor, porque é parcial, busca, na força dos ar­ gumentos, a compensação do inevitável desvalor que suas idéias sofrem no ouvinte pelo simples fato de partirem de um ponto de vista comprometido, atrelado a um interesse. No Direito ocorre o mesmo. Para garantir a imparciali­ dade do juízo, as partes são parciaisu. Aquele que representa uma parte defende um interes­ se. Esse interesse implica um desvalor a todos os funda­ mentos lançados. Ao defender seu cliente, o advogado não pode ocultar que seu ponto de vista é comprometido por um sentido argumentativo: aquele que interessa a seu clien­ te. O mesmo faz o promotor de justiça, na defesa de seu ministério. Esse interesse não faz com que o advogado ou o pro­ motor, partes enfim, sejam vistos aprioristicamente como dispostos a produzir falácias de raciocínio, em atenção a suas pretensões. Ao contrário, dá-lhes liberdade de buscar 14. M esas de processo penal, Súmula 5 6 - 0 contraditório, representando o momento dialético do processo, exige a parcialidade das partes, para garan­ tir a imparcialidade do juiz. Por isso, não configura apenas direito público sub­ jetivo da parte, mas garantia do legítimo exercício da jurisdição (in: GRINOVER, Ada Pellegrini et alli. Recursos no processo penal, p. 433).


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ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

nas técnicas argumentativas (e não na pura fundamenta­ ção) a compensação ao incontestável desvalor a suas idéias que lhe impinge sua parcialidade funcional. Aí fica, então, uma premissa relevantemente válida para nosso estudo: a de que não existe um único caminho corre­ to na argumentação nem verdade absoluta no Direito. Razoabilidade e força persuasiva: são esses os conceitos prin­ cipais com que o argumentante deve lidar.


Capítulo IV

Ouvinte específico e discurso genérico. Intertextualidade Qualquer discurso, por mais completo que seja, traz informações sempre fragmentárias. Para atribuir sentido a um texto, o leitor ou ouvinte complementa os argumentos que lhe são proferidos com elementos de sua própria realidade e conhecimento de mundo. Estes passam, assim, a ser instru­ mentos de trabalho do argumentante.

Um advogado, colega de larga perspicácia, contou-nos fato muito ilustrativo: fora ele a uma sessão de julgamento no tribunal encontrar alguns desembargadores. Lá estavam todos os três magistrados que participariam do julgamento da causa em que atuava, na sessão da semana seguinte. Tra­ zia o advogado, dentro de um envelope grande, seus m e­ moriais, um texto curto entregue como última oportunida­ de argumentativa aos julgadores. Não desejando interromper a sessão, sentou-se e as­ sistiu a uma parte dela. Observou, então, de modo arguto, o comportamento do julgador já sorteado como relator da causa de seu interesse, agendada para a sessão da semana seguinte. "Quando expunha seus votos", disse o colega com natural exagero, "para cada cinco expressões que uti­ lizava, três eram contra legem. Desisti de entregar os m e­ moriais e voltei para o escritório para redigir outros, mais adequados. "Naqueles novos memoriais", contava, "fiz questão de indicar quase que somente o texto da lei em que se apoiava meu pedido. E disse, mais de uma vez, com grande realce, que aceitar o pedido da parte contrária seria desatender à lei positiva, seria referendar um resultado contra legem. E ganhei a causa." Ganhou mesmo, e não sem mérito. Percebera o pro­ fissional algo que, em grande parte, já expusemos nos ca­


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pítulos anteriores: que a argumentação centraliza-se no ouvinte, no destinatário, e foi isso que fomentou sua altera­ ção no texto que já estava pronto. A descoberta de caracte­ rísticas novas no desembargador que deveria ler os m emo­ riais fez com que estes tivessem de ser alterados, pois a ele se dirigiam. Levar o leitor em consideração já não é para nós novi­ dade1, mas sobrevive a pergunta: como fazê-lo?

O auditório universal Não existe argumentação erga omnes que valha contra todos, o tempo todo. O percurso de uma resolução matemática convence da retidão do resultado de uma equação a qualquer matemáti­ co, em qualquer confim do planeta. Trata-se de uma de­ monstração. Mas quando o advogado percebeu que o juiz seria mais facilmente persuadido se lesse a expressão que este utiliza­ va com muita constância, e assim resolveu alterar seus m e­ moriais, mostrou ter consciência de que seus argumentos têm de variar conforme a pessoa a que se destinam. Defendemos sempre que o discurso jurídico, por cons­ tituir matéria humana, carrega certa dose de subjetivismo. Quando se refere à adesão de espíritos de que trata Perelman,

1. Antônio Suarez Abreu resume com grande pertinência: "Argumentar é também saber persuadir, preocupar-se em ver o outro por inteiro, ouvi-lo, entender suas necessidades, sensibilizar-se com seus sonhos e emoções. A maior parte das pessoas, neste mundo, só é capaz de pensar em si mesma. Por isso, o indivíduo que procura pensar no outro, investir em sua auto-estima, praticamente não enfrenta concorrência" (A arte ác argumentar, p. 93). No mesmo sentido, Perelman: "... O grande orador, aquele que tem ascendência sobre outrem, parece animado pelo próprio espírito de seu auditório. Esse não é o caso do homem apaixonado que só se preocupa com o que ele mesmo sente. Se bem que este último possa exercer certa influência sobre as pessoas sugestionáveis, seu discurso o mais das vezes parecerá desarrazoado aos ou­ vintes..." (Tratado da argumentação, p. 27).


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ou seja, da arte de persuadir, há ainda maior dose de ade­ quação às necessidades do leitor. O que não importa em afirmar que se tecerá um discurso sentimental ou passional, o que é bem diverso. Ocorre que aqueles que fazem a apo­ logia da exatidão extrema dos discursos, como mera de­ monstração (puramente) racional das argumentações em matérias humanas, não raro, até por via de conseqüência, transbordam para idéias totalitárias, porque crêem que exis­ tem conceitos, apreciações e conclusões que se possam im­ por erga omnes. A argumentação tem algo de subjetivo, de pessoal. En­ cantos, gostos, preferências e idiossincrasias humanas es­ tão em estrito diálogo no momento da efetiva persuasão, tal qual no exemplo anterior. Um relógio que marque hora com exatidão é um instrumento objetivamente útil e neces­ sário, porém um Rolex agrega em si um valor maior, emi­ nentemente subjetivo, mas nem por isso menos importante, até porque acaba se refletindo em seu preço de mercado. Um Rolex ofertado como presente constitui um fino regalo, mas se seu destinatário sequer conhece a marca, muito pro­ vavelmente o considerará um instrumento como qualquer outro (talvez mais caro e pesado?), e assim o presente, como oferta que deve ser apreciada pelo seu receptor, per­ de seu valor. Aquele que ofertara o caro relógio a uma pessoa que não o valorizara certamente doou um excelente relógio, mas um mau presente. Este depende menos da qualidade objeti­ va do bem e mais de uma interpretação, um entendimento que dele faça o receptor, no caso o presenteado. Pois tal como um objeto de qualidade nem sempre é um bom presente, também uma idéia forte nem sempre constitui um bom argumento. Uma idéia, para que seja um bom argumento, necessita, além de seu conteúdo, de dois fatores a ela exteriores: primeiro, a compreensão e o entendimento do leitor; segundo, a coerência com os demais argumentos elencados no texto. Esse segundo fator, a


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ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

coerência, será objeto de nosso estudo um pouco mais adiante. Já se afirmou, talvez com algum exagero, que todo dis­ curso, na sua obtenção de sentido, é feito 50% pelo orador e 50% pelo receptor, pelo ouvinte. Isto significa dizer que, ao ler (ou ouvir) um texto, o interlocutor passa a ser um coprodutor2 do seu sentido, e o bom argumentante leva tal fa­ tor em alta consideração, caso contrário seu discurso pode cair no vazio. Quando alguém se dispõe ao ouvir uma argumentação, certamente se predispõe a interpretar o que diz o emissor. Quando o advogado escreve, por exemplo, alegações finais em processo-crime, certamente conta com que o juiz, cujo espírito deseja conquistar, interprete suas palavras e seus argumentos, complementando-os com seu conhecimento pró­ prio, seu arcabouço de vivência e conhecimento. Pareça ou não, todo texto tem lacunas, pois não se es­ tende ao infinito. Trabalha com fragmentos de sentido, que são sempre complementados pelo leitor/ouvinte, para que ali se estabeleça coerência de sentido e, então, seu potencial de convencimento. Se o procurador da parte diz a um juiz que se deve aplicar o princípio do contraditório em determi­ nado processo, evidentemente aquele, para compreender tal alegação, faz uso de um conhecimento prévio, armazenado em seu intelecto, que dispensa o emissor de lhe explicar de que se trata esse princípio. Caso tal procurador venha a construir uma longa explicação sobre esse contraditório, des­ perdiça em seu discurso precioso espaço em que poderia cuidar de trazer informações novas, provavelmente muito 2. "Através do processo de interação sujeito/linguagem gerado pela lei­ tura, o leitor será co-produtor do texto, completando-o com sua bagagem histórico-sociocultural. Para que essa co-produção se efetue é necessária a ativação de todo um processo cognitivo, desde a percepção do texto e sua posterior decodificação, passando pela compreensão, pelos processos inferenciais até a interpretação, que é um novo texto" (DELL'ISOLA, Regina Lú­ cia, "A interação sujeito-linguagem e leitura". In: As múltiplas faces da lingua­ gem, p. 73).


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mais relevantes ao objetivo de persuasão. De qualquer modo, a todo momento quem argumenta invoca do leitor seu co­ nhecimento, seja pela própria definição das palavras que utiliza - o idioma -, seja na citação de algum evento históri­ co, algum conceito teórico ou científico, a invocação da fi­ gura de uma pessoa ou personagem literário. Com esse co­ nhecimento, o leitor lhe completa as lacunas, como um verdadeiro diálogo. Melhor é a argumentação quanto mais se aproxima do pensamento do leitor, enquanto as lacunas do texto são mais rápida e eficientemente complementadas por aquele a quem o discurso é direcionado, e quanto mais próximas são as idéias de seu próprio raciocínio, de seu próprio gosto.

A intertextualidade O nome é complexo, mas o conceito é simples e bas­ tante útil: se nossa argumentação sempre depende da in­ terpretação do receptor, a intertextualidade é o diálogo que nosso discurso faz com os outros textos que montaram nos­ so próprio discurso e que podem ou não fazer parte do uni­ verso de conhecimento do receptor. Todo discurso que o ser humano compõe, como já temos adiantado, constitui-se de uma trama de outros textos diversos, perfazendo o raciocínio daquele que ar­ gumenta, perceba ele ou não. Se um argumentante utili­ za uma citação de Pontes de Miranda, espera que o leitor o conheça, caso contrário não valorizará a autoridade3 de seu argumento. Se o leitor conhece a obra do aludido professor, provavelmente o valoriza como doutrinador, e então seu argumento será eficiente; se o leitor, além de conhecer o doutrinador, admira suas opiniões como sen­ do sempre corretas, ainda é mais persuasivo o mesmo ar­ gumento.

3. Vide Capítulo VI.


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O nível de eficiência de cada argumento pode ser, gros­ so modo, medido também pela proximidade que o receptor tenha com os textos que são invocados no discurso do retor. Certa vez um amigo apresentou discurso curto, que procurou que fosse extremamente persuasivo. De grande erudição, articulava idéias que apresentavam a fragilidade do trabalho de alguns profissionais de sua área, em virtude de ensino deficitário; comparou esses mesmos profissio­ nais a outros de formação diferente, muito mais sólida, de­ monstrando a inegável disparidade entre a produtividade de uns e de outros. E finalizou, como em um arremate con­ clusivo: que não se compare Babieca a Rocinante\ A frase final poderia ter se constituído em um exce­ lente argumento. A imagem dos dois personagens é exem­ plo de diálogo intertextual: o discurso do colega invocou a presença de duas figuras da literatura espanhola: uma, sím­ bolo de vigor e força; outra, de fraqueza e fracasso. A repre­ sentação de um e de outro, na mente do autor do discurso, por certo importava em reforço extremamente persuasivo às idéias anteriormente apresentadas, e assim deveria fazer com que os ouvintes, acolhendo tal imagem, acreditassem em suas premissas. Mas o efeito não surtiu como devido, porque os ouvin­ tes não conheciam - como era de se esperar - os persona­ gens invocados. Babieca, a égua de "El Cid Campeador", forte e vigorosa, e Rocinante, o fraco e magro cavalo de Dom Quixote, foram personagens retirados de textos que eram do repertório do arguitientante, mas nada representavam (ao menos apenas pelo nome) aos ouvintes, que não os re­ conheceram. O diálogo textual foi ineficiente e, portanto, a argu­ mentação mostrou-se fraca. A não ser que o argumentan­ te tivesse a deliberada intenção de mostrar erudição e tor­ nar inquietos os ouvintes, deveria ter considerado que aqueles textos de que retirara ambos os personagens para

4. Sentido sem elhante ao ditado grego "comparar flauta a trom beta"


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a construção de seu argumento não eram de conhecimen­ to dos interlocutores, e então ali não surtiriam o efeito pre­ tendido. A idéia era corretíssima, mas, como argumento, foi fra­ ca, pelo mau diálogo intertextual. As lacunas do texto não foram devidamente completadas pelos interlocutores, e por isso seu sentido ficou prejudicado. O bom diálogo intertextual é aquele que compõe o discurso que não apenas faz sentido completo ao ouvinte, mas também aquele que se lhe faz próximo. Um exemplo re­ tirado de um fato recente e notório, a jurisprudência de um tribunal famoso e respeitado pelo leitor, a doutrina de um professor que conte com a admiração do interlocutor são sempre bons argumentos, desde que pertinentes ao racio­ cínio que se desenvolve. Por isso o trabalho argumentativo depende também da consciência que se tenha a respeito daqueles a quem é diri­ gido. Não existe argumentação que seja perfeita a qualquer público, pois a compreensão e a proximidade dependem do leitor. Um juiz pode respeitar a opinião de um tribunal e ter pouco apreço pelos julgados de outra Corte, aceitar como correto, às cegas, o posicionamento de um doutrinador e guardar restrições à teoria de outro, assim como um jurado pode acatar sempre como verdadeira a opinião de determi­ nado sacerdote religioso e predispor-se a rechaçar sempre o posicionamento de um representante de uma religião com a qual não simpatize. Nem sempre então a idéia mais erudita constitui o m e­ lhor argumento. O argumento forte é o elemento lingüísti­ co que encontra bom feedback em determinados interlocuto­ res. Grandes escritórios de advocacia trabalham com apro­ fundadas pesquisas quanto ao posicionamento de juizes, na busca de construir sua argumentação de acordo com as idéias e os textos mais facilmente aceitos por cada um dos julgadores; sabem que é mais fácil convencer o interlocutor falando-lhe de modo mais próximo, com sua própria lin­ guagem, seu mesmo trilho de raciocínio.


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Quem se preocupa em conhecer o ouvinte dá grande passo para o discurso mais persuasivo. Trataremos um pouco mais sobre intertextualidade em contexto específico no capítulo final, que cuida do estilo e da subjetividade.


Capítulo V

Progressão discursiva e coerência A unidade de sentido do texto e, conseqüentemente, sua força persuasiva dependem do nível de ligação entre as idéias nele enunciadas. Se o discurso, por definição, não é completo, deve ser coerente.

A coerência Para que uma boa idéia represente um forte argumen­ to, primeiro é necessário trabalhar a intertextualidade, na real medida em que o argumento é complementado pelo próprio interlocutor. Esta foi a matéria do capítulo anterior. Mas há um segundo ponto, como ali se adiantou. A boa informação deve ser pertinente a um percurso de­ terminado, para que possa representar na mente do destina­ tário um acréscimo à conclusão que se pretende que ele acei­ te, ao comportamento que se anseia seja adotado. Parece ób­ vio, mas o trabalho com a coerência, sem dúvida, constitui uma das matérias mais difíceis da argumentação, motivo pelo qual merece ser sempre matéria de atenção e reflexão. Para Plantin, "a argumentação é uma operação que se apóia sobre um enunciado seguro (aceito) - o argumento para chegar a um enunciado menos seguro (menos aceitá­ vel) - a conclusão"1. Nessa definição, o argumento transforma-se apenas em um apoio para um caminho a ser trilhado. É, pois, a or­ dem e o nível de ligação entre esses "apoios", os argumentos, que fazem chegar à conclusão. Dá-se realce, assim, à im­ 1. La argumentación, p. 39.


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portância da coerência como fator de ligação entre os argu­ mentos e de condução ao resultado final, de que o argumen­ to em si é mero instrumento. Se um advogado defende que o conceito de "clamor pú­ blico" não é suficiente para fundamentar a prisão cautelar de um indivíduo, pode socorrer-se da jurisprudência. Esta, en­ tretanto, somente vai se transformar em um argumento for­ te se convergir para essa mesma tese. Caso o advogado recor­ te um texto jurisprudencial que, ao contrário, aponte que, em certos casos, o clamor público pode efetivar a motivação da prisão excepcional, este julgado - ainda que contenha ex­ celente fundamentação jurídica - transforma-se em um mau argumento, pois não converge para a conclusão. A coerência é o nível de ligação entre as idéias do tex­ to, para que dele se retire a unidade de sentido. Quanto maior o nível de coerência entre as idéias, mais valorizadas elas se tornam no texto argumentativo, o que importa afir­ mar que se fortalece seu efeito suasório. Tal como a intertextualidade, a coerência é um fator exterior à própria idéia, porque depende da inter-relação dela com as demais lan­ çadas no discurso. Entretanto, a coerência depende pouco menos do uni­ verso de conhecimento de cada auditório, de cada receptor do texto argumentativo, ao menos se comparado com a intertextualidade. E que a coesão entre idéias do texto depen­ de pouco da interpretação do leitor e mais de um raciocínio lógico, ainda que não formal: a ruptura no percurso argu­ mentativo ofende a construção de pensamento do interlo­ cutor, e por isso - se ele a identifica - muito provavelmente rejeita a conclusão que o retor lhe pretende impingir. Certa vez participamos da avaliação de um trabalho universitário, em que se identificou grave erro de coerência, ainda que contasse com excelentes argumentos. Tentamos reproduzir trecho dele, em paráfrase: A evolução da tecnologia da inform ação transformou as relações hum anas em nível mundial, fazendo surgir o fen ô ­ m eno de contato de culturas chamado de globalização. T ran s­


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m issões via satélite, TV a cabo e internet trouxeram a possibi­ lidade e daí a necessidade de m aior entrosam ento entre os diversos cantos do planeta, assim com o o contato próximo com diversas culturas, antes até inatingíveis. Mas, com o não se pode evitar, o contato entre as culturas determina influên­ cias e, com raras exceções, vence a cultura superior, e hoje essa superioridade é econôm ica. N apoleão, general francês, em anotações à obra de M aquiauel, já observava o fenômeno, com en­ tando a possibilidade de transform ação da cultura fran cesa como hegem ônica, ao m enos em toda a Europa.

A argumentação parecia perfeita. Com boa vontade, po­ de-se entender que o argumentante, procurando comprovar a veracidade dos efeitos do contato das culturas, apresen­ tou um argumento histórico: os comentários de Napoleão. Assim como nas conquistas napoleônicas, a guerra atual, que é a tecnológica, implica imposição da cultura domi­ nante à dominada. Mas não é bem isso o que está escrito: diz o autor que o general francês já observava o fenômeno da aculturação hegemônica. E então pergunta-se: se Bonaparte já comentava o fenômeno, como afirmar que ele te­ nha surgido pela moderna tecnologia de comunicação? Ora, o argumento histórico, que parecia excelente e erudita idéia, pelo modo como apresentado no texto acaba por desconstituir a tese, ao invés de comprová-la. O "argumento" (à revelia da vontade do autor) demonstrou que a aculturação existia independentemente dos modernos meios de comunica­ ção. Ou seja, o inverso do que afirmava sua tese, a não ser que se possa imaginar Napoleão Bonaparte falando no te­ lefone móvel e navegando na internet. Não bastam ao argumentante as boas idéias, pois elas devem ser entravadas em um percurso coerente, que permi­ ta ao destinatário compreender, comodamente, a que serve cada um dos argumentos articulados. Se o interlocutor não ti­ ver plena compreensão da utilidade de cada um dos argu­ mentos, o discurso terá falhas de coerência. No exemplo acima, a coerência atingiu nível grave, a contradição. Entretanto, raras vezes se percebe um argumen­


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to contraditório, mas a mera ausência de contradição não implica necessariamente boa coerência. Isto porque ela se desenvolve em diversos níveis, no transcorrer do percurso argumentativo. Sua importância será analisada adiante.

Coerência e percurso O texto abaixo é fragmento do poema "I-Juca-Pirama", de Gonçalves Dias2. Nele, o velho Tupi guerreiro amaldiçoa seu filho, ao saber que ele fora aprisionado pelos índios Timbiras, porque chorara diante da morte: Tu choraste em presença da m orte? Na presença de estranhos choraste? N ão descende o covarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De um a tribo de nobres guerreiros, Im plorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés. Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem pátria vagando, R ejeitado da morte na guerra, R ejeitado dos hom ens n a paz, Ser das gentes o espectro execrado; N ão encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz!

[...] Q ue a teus passos a relva se torre; M urchem prados, a flor desfaleça, E o regato que límpido corre, M ais te acenda o vesano furor; Suas águas depressa se tom em ,

2. In: Poesia indianista, pp. 58-60.


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Ao contacto dos lábios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas com asco e terror!

[...]

Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Q ue em presença da m orte choraste, Tu, covarde, meu filh o não és.

Irado com a revelação de haver o filho se acovardado diante do inimigo e ter sido "rejeitado da morte na guer­ ra", o velho índio passa a amaldiçoá-lo. Entretanto, para sustentar a gravidade de seus vaticínios, suas maldições, procura primeiro retirar-lhe a condição de filho e, para isso, argumenta afirmando que "não descende o covarde do forte". Fora de seu contexto, o argumento é falacioso, pois adota uma idéia que parece falsa, embora com algum índi­ ce de probabilidade. É provável que um pai corajoso tenha um filho também valente, mas isso não autoriza dizer-se, em hipótese alguma, que um pai valente não possa ter um descendente medroso. A afirmação "não descende o covarde do forte" não tem nenhum valor fora do poema. Cientificamente não pas­ sa de um absurdo: em uma ação de investigação de pater­ nidade, esta não poderia ser negada ao afirmar-se não po­ der haver relação biológica entre covardes e destemidos, tentando-se levar a crer que somente um pai medroso po­ deria gerar um filho patife. Mas no poema a idéia é perfeita e funciona como prin­ cipal ou único argumento. Todavia, percebe-se claramente que a relação de descendência a que se refere o enunciador não é a relação biológica, mas sim a afetiva e ideal. Nessa relação, agora sim, é possível afirmar que um pai valente não tenha um filho covarde, pois nessas condições quebrase o laço de afetividade, que é exatamente o que comprova o chefe tupi. Então, na forma em que a afirmação "não des­ cende o covarde do forte" encadeia-se com as demais do


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poema, ela serve como perfeito argumento para a conclu­ são final "Tu, covarde, meu filho não és"3. Do ponto de vista da argumentação, não há um argu­ mento útil fora de seu contexto4. Todo discurso é complexo, e a coerência estabelece o que é ou não pertinente como argumento, ou seja, como afirmação capaz de levar ao con­ vencimento do quanto é desejado. No tribunal do júri, por exemplo, uma brincadeira, uma frase de efeito pode ser mais útil para a persuasão que a leitura de uma peça importante dos autos, o que não significa ausência de uma séria argu­ mentação. Por vezes, a ocultação de uma informação ou o silêncio pode funcionar muito mais que sua exteriorização, e uma comparação imperfeita, uma ilustração figurativa pode ter maior valia que um longo percurso lógico a respeito de um conceito jurídico aplicável ao caso concreto. Nesse sentido, a coerência, mais refinada, vem carre­ gada de aspectos particulares, que cabe ao argumentante conhecer de seu próprio texto e, novamente, por vezes do próprio leitor. Veremos nos capítulos seguintes que existem tipos de argumento de que quase sempre é válido lançar mão. Os ar­ gumentos variados sempre persuadem mais o leitor, pois a repetição leva ao cansaço e ao enfaro. Mas o bom argumen­ to só o é porque pertinente a um percurso lógico, delimita­ do, progressivo e, por isso, consciente. Intencional. 3. Cf. Oswald Ducrot em lição em que aponta como as palavras podem ser argumentativamente orientadas, a partir do exemplo do vocábulo "am or­ nar", que pode significar "esfriar" ou "esquentar", em relação ao fim a que é dirigido (in: Provar e dizer: leis lógicas e leis argumentativas, pp. 226 ss.). 4. "... we cannot understand the meaning of a piece of reasoned discourse, unless we know what counter-positions are being implicitly or explicitly rejected. In the same way, we cannot understand the attitudes of an indi­ vidual, if we are ignorant of tye vvider controversiy in wich the attitudes are located. In other vvords, the meaning of a piece of reasoned discourse, or na expressed attitude, does not merely reside in the agregation of dictionary definitions of the wordsused to express the position: it also resides in the argumentative context. ..." (BILLING, Michael. Ideology and Opimons: Studies m Rhethorical Psychology. Apud TINDALE, Cristopher. Acts ofArguing: a Rhetorical M odel o f Argument, p. 77).


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O argumentante que não tem plena consciência do per­ curso que trilharão suas idéias, muitas vezes joga argumen­ tos que perdem coerência, e então não é raro que leiam seu texto ou ouçam seu discurso com aquela indagação: o que ele quis dizer aqui? Não percebi aonde quis chegar com essa idéia! Ou ainda: isso eu já sei, está se repetindo muito, sem trazer uma conclusão! Para evitar esse tipo de interferência, deve-se cuidar de construir um percurso argumentativo muito definido.

Estabelecendo a coerência A unidade de sentido no discurso se estabelece, em primeiro lugar, pela não-contradição. Se afirmo que um réu não merece pena porque não cometeu fato típico, não pos­ so assertar que seu ato, apesar de constituir fato típico, fora acobertado por situação excludente de antijuridicidade. Se o faço, caio em contradição, pois disse, no mesmo discurso, que um evento era e não era fato típico5. Podem ser estabelecidos graus de coerência. Um discurso não-contraditório pode ser incoerente. Basta que, para tanto, o interlocutor não encontre unidade de sentido. Se digo que em determinado caso o réu agira em estado de necessidade porque não gostava de andar ar­ mado, o ouvinte acha incoerente meu discurso, porque não observa relação direta entre não andar armado e estar em es­ tado de necessidade. Um discurso não-incoerente pode ser pouco coerente, na medida em que nele não se encontrem relações suficientes de sentido que levem a uma perfeita condução do raciocínio do leitor. A coerência maior do texto ou do discurso persuasivo dá-se na combinação dos argumentos-chave, que re­ presentam as marcas principais do percurso. Vejamos como 5. Vide Capítulo XIII.


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exemplo o texto abaixo, que é parte da fala da personagem Otávio Santarrita, de Dias Gomes6: Q uanto será que me resta? Dez, vinte anos? Isso só me preocupa porque ainda não term inei meu trabalho. N ão que tenha m edo da morte. Palavra que não tenho. M as não es­ tou preparado para envelhecer, essa é que é a verdade. P er­ der o vigor físico, a agilidade mental, a memória... isso me apavora. A velhice é um a trem enda sacanagem da natureza. O u de Deus, quem sabe? Também, o que se pode esperar de um deus que criou o universo provocando uma grande explosão? Deus é um terrorista!

Reclamando a respeito da falta de vigor físico, o perso­ nagem revolta-se contra a figura de Deus. Irritado, conclui a idéia de que Deus seria um terrorista, e para tanto traz um argumento: Ele teria criado o universo a partir de uma ex­ plosão. Evidentemente, entre a idéia de que o universo fora criado a partir do big-bang e a conclusão de que Deus im­ plantaria o terror existe coerência que, ainda que possa ser depreendida, é falha. O leitor reconhece o raciocínio do personagem, com ­ preendendo-o: os ativistas do terrorismo têm como meio preferido de ação a explosão de bombas - se Deus se uti­ liza da explosão para seu trabalho de criação, provavel­ mente é terrorista; a essa idéia soma-se vagamente o dis­ curso anterior do personagem, um provável gosto de Deus pelas mazelas humanas, no caso a velhice. Entretanto, ainda que reconhecendo o raciocínio do autor, o ouvinte não o aceita inteiramente, pois não se convence, claro, de que Deus seja realmente um ativista do terror. É que per­ cebe que apenas o big-bang não autoriza identificar Deus com tal predicado, assim como somente o uso de uma gra­ vata não permite identificar uma pessoa como advogado7. Desta forma, ainda que se compreenda o nível de ligação entre 6. Meu reino por um cavalo, p. 87. 7. "Barba non facit philosophum ” - A barba não faz o filósofo.


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um argumento e sua conclusão, esta não é aceita porque a coe­ rência foi pouca. No exemplo do texto de Dias Gomes, claro, a coerên­ cia é estabelecida por outros fatores exteriores ao argumen­ to do personagem: seu estado emotivo, de indignação, que se agrava no decorrer do texto, permite que ele estabeleça a criticada relação, que se faz coerente com o ponto de vista comprometido que tem em virtude de seu próprio estado de espírito. Na boca do personagem, enuncia-se a falácia para se chegar a outra conclusão: sua ira em relação ao es­ tado das coisas. No discurso argumentativo, a pouca coerência prejudi­ ca a persuasão. Tal qual no exemplo acima, em um texto de coerência comprometida o leitor compreende o texto, mas raramente é persuadido, pois percebe que o percurso é fa­ lho. No ambiente forense, em que a argumentação conta com o contraditório, o leitor é levado a preferir aquela que melhor conduz ao fim pretendido, e assim rejeita o texto em que as conclusões não derivam necessariamente das pre­ missas estabelecidas.

Coerência e sentido: a dependência do mundo exterior Vejamos o texto abaixo: Cachorro e burro são dois animais injustiçados. Burro é ofensa também. (Aqui entre nós, eu justifico. Conheci alguns burros mais burros que certos hom ens da minha carreira.) E n ­ tre esses hom ens, sou com um ente conhecido com o vira-lata, ou melhor, cão sem dono. De vira-lata me xingam. Mal sa­ bem eles que, para um cachorro, chamar de "sem -d on o" é o maior dos elogios. Para o hom em seria também... Vira-lata sou, com orgulho o digo. E adoro meus irmãos, com ou sem dono. Ten ho agüentado muita injustiça pessoal sem reagir. E vou agüentar ainda, com certeza. Mas à minha raça, na m inha frente, não tolero ofensa.


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É o início das Confissões de um vira-lata, de Orígenes Lessa8, brilhante autor de nossa literatura. No trecho, o pro­ tagonista, cachorro sem dono, tece explicações sobre sua própria condição, a circunstância de ser xingado de vira-lata ou elogiado com o predicativo de "cachorro sem dono". O texto procura estabelecer coerência, ligação entre as idéias nele expostas, a partir de seu próprio título: inevitável uma explicação, preliminar, para mostrar ao leitor quem é o "viralata", protagonista. A partir desse início, o autor já estabe­ lece a coerência com o título da obra e deixa fixada uma sé­ rie de condições, que aparecem nesse primeiro trecho, necessárias para que se atribua sentido à obra toda, princi­ palmente no que concerne às condições do personagem e da narrativa: um cachorro antropomorfo, com capacidade de expressão, que fará observações, sob seu ponto de vista, a respeito da condição humana. Tudo isso está, com excep­ cional enunciação, nesse pequeno trecho do texto. Mesmo naquela obra de ficção, em que o autor não tem a menor necessidade de vínculo com a realidade, deve se estabelecer coerência, fixar premissas que orientem o pen­ samento do leitor. Então a diferença entre a narrativa lite­ rária e a argumentação é apenas que a primeira não tem necessariamente estreito vínculo com o mundo exterior, en­ quanto a argumentação exige constante diálogo com a rea­ lidade, como veremos ainda a seguir, em leituras de valor bastante prático. Alijado da obrigatoriedade do vínculo com o mundo exterior, o narrador literário ainda assim zela, e muito, para que as idéias de seu texto combinem-se sempre, não permi­ tindo que o raciocínio do interlocutor possa encontrar frag­ mentação, não-intencional, o que faz com que o discurso perca sua unidade e então deixe de aderir à mente do inter­ locutor (e tal adesão é objetivo da narrativa literária tanto quanto o é da argumentação). Veja como Machado de Assis11

8. Confissões de um vira-lata, p. 14. 9. M emórias póstumas de Brás Cubas. Capítulo 138, p. 200.


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demonstra essa mesma preocupação, ao fazer com que Brás Cubas, narrador já morto, explique a coerência de seu escri­ to, respondendo à crítica de um leitor: A um crítico M eu caro crítico, Algumas páginas atrás, dizendo que eu tinha cinqüenta anos, acrescentei: "Já se vai sentindo que o m eu estilo não é tão lesto com o nos primeiros dias". Talvez aches esta frase incompreensível, sabend o-se o meu atual estado; mas eu cham o a tua atenção para a sutileza daquele pensam ento. O que eu quero dizer não é que esteja agora mais velho do que quando com ecei o livro. A morte não envelhece. Q uero di­ zer, sim, que em cada fase da narração de minha vida expe­ rim ento a sensação correspondente. V alha-m e Deus! é pre­ ciso explicar tudo.

Diante do comentário a respeito do envelhecimento, o "crítico" questionara a respeito da coerência do texto (como pode um morto envelhecer?), o que fez merecer a resposta acima transcrita, já dos capítulos finais das Memórias póstu­ mas. Ora, se o autor pretende fazer crer o leitor na verossimi­ lhança de sua história (e nesse ponto a própria ficção assume caráter suasório), natural é que zele pela coerência dos limi­ tes que ele próprio fixou (em Machado de Assis, um defunto autor, que também critica as mazelas da humanidade). Todo interlocutor é seduzido pelo bom raciocínio, e este é o que não se quebra, não se altera, não apresenta a incoe­ rência em nenhuma de suas fases, desde a mais absoluta contradição até seus níveis mais efêmeros, como o ritmo. O próprio discursante estabelece parâmetros para seu discurso, e por eles deve se orientar, caso contrário quebra a coerência e assim perde a adesão do leitor. Machado pôde, com a liberdade narrativa, estabelecer o defunto autor, desde que mantivesse - como manteve - a coerência des­ sas condições, até mesmo quando apontou que o narradorpersonagem, morto, sentia-se envelhecer. Na argumenta­ ção, esse mesmo princípio deve ser seguido: o autor esta­


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belece seus próprios parâmetros, suas próprias premissas, e deve segui-las para não quebrar a coerência. A única diferença é que o texto argumentativo, longe da licença da ficção, tem um estreito vínculo com a realidade, com o mundo exterior. Um argumentante não pode estabelecer, em um discurso político, por exemplo, que o Brasil é um país de Primeiro Mundo para, a partir disso, iniciar sua argumen­ tação. Se o fizer, seu texto também perderá a coerência. Essas considerações implicam afirmar que, na argu­ mentação jurídica, existe uma coerência externa e outra in­ terna. O ouvinte que estabelece a coerência do discurso que deseja compreender trabalha com elementos, por mínimos que sejam, de fatores e informações que não estão no pró­ prio texto, mas que fazem parte do mundo exterior, da rea­ lidade, e que sabe que o leitor leva em consideração. Para ilustrar, leiam-se os três fragmentos de texto abaixo, de penalistas de absoluto renome, que discutem - argumentam - a respeito de um tema polêmico: a imputabilidade penal do menor. I Antes de tudo, com esta tradicional afirmação, esquece-se o fato incontestável de que há loucos e psicopatas - e são muito num erosos - que com preendem bem a im oralida­ de e a criminalidade dos seus atos e sabem bem que estes são punidos. O m esm o se deve dizer das crianças que, nos casos de precocidade do crim e por tendência congênita, agem com discernim ento e sabem praticar coisas proibidas, m esm o quando estão em idade de absoluta irresponsabili­ dade presum ida (até os 9 anos, art. 53 do CP). Assim se deve dizer, tanto mais, dos criminosos habituais, que com freqüên­ cia conhecem o Código Penal m elhor do que algum seu d e­ fensor experiente... Mas depois, se a lei penal - em vez de se propor a tare­ fa, hum anam ente irrealizável, de proporcionar um castigo a um a culpa moral hum anam ente impossível de medir - e n ­ tende, pelo contrário, prover à defesa social, as suas disposi­ ções devem valer contra qualquer pessoa que com eta um ato


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por ele previsto com o prejudicial ou perigoso para a segu­ rança social. Pois a sociedade não deve ter o direito de legíti­ ma defesa que se reconhece ao indivíduo quando é injusta­ m ente agredido?1"

II E notório que as condições sociais de 1940, quando se fixou o limite mínimo da imputabilidade penal aos dezoito anos, já não são as de hoje. Tudo mudou, de forma radical e sensível: as condições sociais, que possibilitam condutas permissivas; os m eios de com unicação de massa, com a in ­ fluência poderosa da televisão, ensejam ao jovem conhecer am plam ente o mundo; e assim por diante. Por via de con se­ qüência, o pressuposto biológico não será mais o m esm o. O jovem de hoje, aos dezesseis anos, costum a ter plena capaci­ dade para entender o caráter ilícito do fato e determ inar-se de acordo com esse entendim ento. Com o então insistir em estabelecer aos dezoito anos o limite mínimo da im putabili­ dade penal?11

III O s adolescentes são muito mais vítimas de crimes do que autores, contribuindo este fato para a queda da expecta­ tiva de vida no Brasil, pois se existe um "risco Brasil", este re­ side na violência da periferia das grandes e médias cidades. Dado impressionante é o de que 65% dos infratores m enores vivem em família desorganizada, junto com a mãe abando­ nada pelo marido, que por vezes tem filhos de outras uniões tam bém desfeitas, e lutam para dar sobrevivência à sua prole. Alardeia-se pela mídia, sem dados, a criminalidade do m enor de dezoito anos, dentro de uma visão tacanha da "lei e da or­ dem ", que de má ou boa fé crê resolver a questão da crimina­ lidade com repressão penal, com o se por um passe de m ági­ ca a imputabilidade aos dezesseis anos viesse a reduzir co ­ m odam ente, sem políticas sociais, a criminalidade.12

10. FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal. Campinas, p. 127. 11. COSTA Jr., Paulo José da. Comentários ao Código Penal, p. 122. 12. REALE Jr., Miguel. Instituições dc direito penal, p. 213.


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Os três textos apresentam opiniões diversas sobre o mesmo tema, mantendo cada qual sua coerência. No texto I, o autor, positivista do início do século XX, defende que a lei penal deve ser aplicada sem diferenciação àqueles inimputáveis. Para tanto, estabelece seu fator de coerência: o de que o ordenamento penal não serve para "medir culpabili­ dade", mas sim para promover a defesa social. O texto II, moderno, defende, no ordenamento nacional, a redução da maioridade penal, levando em conta a capacidade do m e­ nor de 18 anos de absorver informações e valores no con­ texto social. O último fragmento, mais completo, aponta para a impossibilidade de a redução da maioridade ser de alguma valia para a diminuição da criminalidade. Para completar esse argumento, o autor leva em consideração a opinião generalizada que "alardeia-se pela mídia", e, para comba­ tê-la, aponta dados numéricos, de pesquisas realizadas, combinando-os a outras considerações que lhe valem de argumento. O que se percebe, em todos os textos, é que, defenden­ do seu ponto de vista (e, portanto, procurando persuadir o leitor), seus respectivos autores consideram as opiniões domi­ nantes contrárias. Para que possam persuadir, sabem que têm de estabelecer vínculo com idéias que não estão presentes em seu discurso, mas encontram-se arraigadas no leitor. Des­ ta maneira, consideram os autores que pouco profícuo seria seu discurso se não apresentasse, de alguma forma, como premissa, um vínculo com argumentos que, apesar de lhes serem contrários, estão presentes no mundo dos fatos. Diversamente do que ocorria nos textos de ficção, o ar­ gumentante do mundo jurídico, além de zelar pela coerên­ cia interna de seu discurso, deve considerar (em uma rela­ ção de intertextualidade) a coerência com idéias que não fa­ zem parte daquele, mas que estão arraigadas no leitor, ao menos quando essa atitude for estritamente necessária. Ca­ so contrário, ainda que o autor do texto suasório zele pela coerência de seu discurso (em uma boa fundamentação), o


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leitor (ou ouvinte, no discurso oral) pode repelir os argu­ mentos que lhe são dirigidos, estabelecendo por sí só lacu­ nas no texto em relação a argumentos estranhos a este, mas de que se recorda no momento da leitura. O ouvinte forma relações de sentido de acordo com sua experiência e visão de mundo, daí dizer-se que a coerência tem estrita relação com a intertextualidade, já abordada. Tais considerações não implicam a assertiva de que, para estabelecer coerência em seu texto, o argumentante tenha de considerar todas as opiniões que lhe possam ser contrárias (a não ser que lhe seja imposta tal obrigação, em casos excepcionais). Tal conduta não apenas seria impossí­ vel de realizar13, como também, se pudesse ser feita, enfra­ queceria sobremaneira o discurso. Entretanto, é imprescin­ dível entender que o argumentante, para atingir o interlo­ cutor, estabelece um vínculo com elementos da realidade externos a seu texto, dos quais não se pode furtar. Caso o faça, seu texto, ainda que pareça coerente (coerência inter­ na), pode ser considerado pelo leitor como reducionista, ou seja, texto que deixa de considerar fatores importantes, pre­ sentes no interlocutor, que ele imediatamente acessa ao ouvir o discurso que lhe é encaminhado, ainda que o discursante não levante tais fatores. Quando se constrói qualquer tipo de texto, selecionamse elementos da realidade que passam a fazer parte do dis­ curso. E imprescindível então, nessa seleção, que o autor absorva e comente algumas das idéias que sabe (ou pode saber) que o interlocutor não deixará de considerar na in­

13. Tércio Sampaio Ferraz Jr. ensina: "A liberdade faz, por isso, da situa­ ção comunicativa jurídica uma relação insegura e instável. Essa insegurança e instabilidade é incômoda e tende a ser reduzida (sic). O discurso jurídico re­ vela-se, assim, como um instrumento básico nessa redução. [...] Essas regras permitem que as partes estabeleçam entre si modalidades diversas de ação e reação em termos de que toda ação lingüística é questionável, mas, ao mesmo tempo, garantem que isso possa ocorrer. [...] Ora, é exatamente isso que tor­ na o discurso jurídico, em princípio, ambíguo em relação à verdade: é sempre reconhecida mais de uma possibilidade como ponto de partida de uma dis­ cussão" (Direito, retórica e comunicação, p. 62).


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terpretação de seu discurso. Todavia, deve-se fazê-lo com temperança, pois é impossível em uma argumentação, prin­ cipalmente nas mais sucintas, que se conciliem ou conside­ rem todas as opiniões distintas, em especial na ampla seara jurídica; nesses casos, o argumentante deve emprestar maior ênfase à coerência interna de seu texto.

Coerência e extensão da argumentação Chegamos aqui, rapidamente, a um ponto relevante do estudo da argumentação, que não raro desperta a aten­ ção dos operadores da retórica jurídica, principalmente na construção de textos escritos. Qual deve ser a extensão de um texto argumentativo? Em nosso trabalho de advocacia notamos que a exten­ são dos textos depende muito do estilo de cada autor. O es­ tilo é o conjunto de características que permitem atribuir individualidade14 a uma obra. Assim, alguns magistrados es­ crevem longas sentenças e outros traçam decisões curtas, o que por si só não representa melhor ou pior conteúdo de fundamentação. Do mesmo modo, observam-se em nossos alunos, advogados, o mesmo diferencial, ou seja, alguns se estendem em longas considerações, enquanto outros, dissertando sobre o mesmo tema, utilizam-se de linguagem quase telegráfica. O que tampouco implica melhor ou pior conteú­ do suasório. Aliás, o estilo e a subjetividade serão matéria de capítulo à parte (XVII). Mas reduzir a questão da extensão da argumentação a idiossincrasias seria furtar-se a conceder resposta à questão formulada. A extensão do texto relaciona-se diretamente à coerência, por isso é tratada nesta lição. A princípio é preciso reconhecer que todo leitor ou ou­ vinte tem em si, ainda que não perceba, uma lei indeclinável:

14. "Duo cum faciunt idem, non est idem" - Quando duas pessoas fazem a mesma coisa, a coisa não é a mesma.


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a de que o argumentante gastará mais seu tempo falando sobre o que é mais importante. Assim, a coerência do texto diminui quando o argumentante passa muito tempo expli­ cando uma premissa que não tem valor grave para a conclu­ são que se pretende impor. Se em razões de apelação o argu­ mentante se estende em páginas explicando um conceito jurídico que já está arraigado no julgador, não apenas des­ perdiça espaço que poderia ser reservado a questões mais de­ cisivas, mas também confunde o leitor, pois este entende, intuitivamente, que a questão em que mais se estendeu o ar­ gumentante seja a principal, porque assim deveria ser. Para estabelecer um texto coerente é necessário levar em conta, então, esse primeiro mandamento: estender-se sobre o que é mais importante. E o que é mais importante no texto argumentativo? O que melhor contribui para a persuasão. Essa observação tampouco encerra a questão e, ao con­ trário, impõe a necessidade de novas considerações em bus­ ca do que mais contribui para a persuasão, em cada caso concreto. Buscar a coerência é primeiro compreender em que m e­ dida o interlocutor necessita das informações e dos argu­ mentos expendidos. Vejamos este exemplo, relativo a coe­ rência narrativa: a) O advogado dr. João não conseguiu chegar ao fórum por­ que o prédio pegou fogo. Faltam inform ações para a boa com preensão, apenas nesse curto trecho de texto. Em bora pudesse o narrador ter perfeita idéia do que falava, o interlocutor não conse­ gue exatam ente estabelecer unidade de sentido: afinal, qual foi o prédio que pegou fogo? Pode ser o prédio do fórum, o prédio de seu escritório ou algum outro. A não ser que o ouvinte contasse com outras inform ações su­ bentendidas, seria preferível dizer: O advogado dr. João não conseguiu chegar ao fórum a tempo porque o prédio dos Correios pegou fogo, os


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bom beiros interditaram a avenida principal e assim o trânsito ficou caótico. Q uanto m ais extenso o texto - evidente - , mais d e­ talhes cabem e, portanto, m enor o risco de lhe faltarem inform ações. M as o excesso é deletério. N os exem plos abaixo, vêem -se situações diversas. b) O nobre aristocrata acendeu o charuto, e a fumaça in co­ modou todos que estavam na sala. c) Meu cliente pagou-m e, mas eu não sei onde pus o d i­ nheiro. O texto b não indica qual é a "fum aça" a que se refere, m as o leitor, ao contrário do que ocorria no texto a, não questiona "qual é a fum aça", pois de im ediato d ep reen ­ der-se que se trata da fumaça exalada pelo charuto, do m es­ m o m odo que em c é rápida a com preensão de que o "d i­ nheiro" é aquele fornecido pelo cliente. Im aginem os que o autor procurasse enunciar detalhes, e assim escrevesse: a) O nobre aristocrata acendeu o charuto, e a fum aça que saía do charuto que ele acendera incom odou todos que estavam na sala. b) Meu cliente pagou-m e, mas eu não sei onde pus o di­ nheiro que ele utilizou para efetu ar o pagam ento a qu e m e referi. E patente que as informações destacadas são dispen­ sáveis. Apesar de esclarecedoras, em nada contribuem para a coerência, pois não determ inam maior sentido ao discurso. Se o sentido, naquele trecho, já estava com pleto pelo próprio contexto, qualquer informação que o repita afasta o leitor da progressão do texto, ou seja, do transcor­ rer daquele percurso que poderia levar à persuasão.

Então começa-se a estabelecer um critério mais objeti­ vo para a extensão do texto, principalmente o argumentativo: ele deve conter as informações que contribuem para a


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persuasão e para a coerência, ou seja, para o estabelecimen­ to de sentido desejado na progressão do discurso. É importante que o argumentante tenha consciência da progressão da argumentação e como a extensão de cada argumento é significativa para o contexto suasório. Pode-se comparar - sempre sem exatidão - o processo argumenta­ tivo ao econômico: se aparecem argumentos demais ou enunciados muito extensos, mais do que o conteúdo supor­ ta, a argumentação como um todo se desvaloriza. Tal qual um processo monetário inflacionário: com moedas demais sendo impressas, cada uma delas, por igual, perde seu va­ lor. A economia que não sustenta muita moeda é como o contexto que não sustenta a extensão ou a quantidade dos argumentos: faz desvalorizar cada um deles. Em nosso con­ texto, então, por vezes é muito mais proveitoso que um tex­ to apareça curto, o que pode implicar maior força em cada argumento. Assim, quando se citam vários julgados para comprovar uma tese em um recurso jurídico, cada um deles perde valor diante dos demais. Em um ou outro caso con­ creto pode ser mais valoroso citar um julgado único, mais pertinente à tese, que terá no leitor efeito mais incisivo. Questões de noção e sustentabilidade, nas quais nos apro­ fundaremos adiante.

Texto e ritmo Toda comunicação impõe seu ritmo, e o interlocutor, conscientemente ou não, busca-o para a compreensão do discurso que lhe é transmitido. Façamos uma analogia. Quem assiste à novela de televisão, que dura meses em episódios diários, sabe que ela tem um ritmo lento de evolução. Por isso o telespectador torna adequadd seu nível de atenção a ela: interrompe enquanto a novela é transmi­ tida, falando ao telefone, lendo, jantando, quando não per­ de capítulos inteiros; sabe que os trechos realmente rele­ vantes ao enredo aparecem em certos momentos já deter­ minados, e não raro são repetidos no dia seguinte. Quando


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o telespectador assiste a um filme feito para o cinema, seu nível de atenção deve alterar-se radicalmente: é quase im­ possível perder qualquer uma das cenas, pois, se o fizer, prejudicará grande parte da coerência, sendo difícil resta­ belecer a unidade de sentido; por isso o espectador se fixa altamente na evolução do enredo, e aí, no cinema, qual­ quer cochicho que atrapalhe tal concentração é reprimido por um pedido enérgico de silêncio. O enredo de cinema não é por definição melhor ou pior que de telenovela apenas por ser muito mais curto. Cada texto tem suas características, mas o autor do enredo de um ou de outro deve ter consciência do ritmo esperado para cada um. Assim, no enredo do filme um fato decisivo pode ser exteriorizado em uma cena curtíssima, talvez só sugeri­ do com uma imagem breve; na telenovela, o mesmo fato decisivo deve ocupar uma cena longa, com reflexo expresso nas demais, se possível repetido no episódio seguinte. Se esse ritmo for violado, o espectador frustra-se e per­ de o teor da mensagem transmitida. O filme que não traz progressão no conflito torna-se monótono, tal como a tele­ novela que exibir cenas muito importantes em poucos ca­ pítulos poderá perder audiência, pois os espectadores não acompanharão o desenrolar da história, que deve respeitar o ritmo que ela própria se estabeleceu. A argumentação também segue seu ritmo como um dos fatores determinantes de sua extensão. Longa ou curta, deve-se regrar pelo estabelecimento de um ritmo determi­ nado e criterioso. O interlocutor, na leitura de um texto ar­ gumentativo, adota um ritmo de interpretação e frustra-se se ele é violado. Costumamos, em sala de aula, apresentar exemplo claro a respeito do modo como o leitor adota um ritmo de leitura do texto, seja quanto ao macrotexto - os argumentos principais e a coerência -, seja quanto ao microtexto - a es­ trutura das frases e sua coesão. Um atleta é convidado a correr. Conhece os limites de seu corpo e então lhe é apre­ sentado um ponto de partida: deve correr a partir dele. Mas isso não basta ao atleta, pois, antes de iniciar a corrida, ele


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tem de conhecer a extensão do percurso que terá de enfren­ tar. Só assim saberá qual ritmo impor a seu exercício, por­ que uma corrida de cem metros não pode ser feita de modo semelhante a outra de 42 quilômetros. Quando algum interlocutor lê um texto, faz constantes medições para esta­ belecer o ritmo de sua leitura, não apenas vendo inicial­ mente sua extensão (quantas páginas tem?), mas procu­ rando saber qual a carga informativa de cada trecho, quan­ to é necessário estar atento para compreender o que lhe é transmitido. Chegamos então a estabelecer um critério mais seguro para a argumentação. Ela deve ser feita conforme um pla­ nejamento de tempo (no discurso oral) ou de espaço (no dis­ curso escrito). Como já dito, todo leitor espera que aquilo em que o discurso mais se ocupa seja o mais importante. Portanto, se pretendo escrever um texto que busque comprovar que certo evento ocorreu, agindo o réu em legí­ tima defesa, devo estabelecer um esqueleto do texto que de­ termine quais são as informações e os argumentos mais re­ levantes. Se tenho de fazer uma longa narração prévia para que se entendam condições preliminares do fato, nada há de mau, desde que eu me lembre de que devo reservar a mesma importância ao fato principal, que mais contribui para a comprovação da legítima defesa. Sobre esse fator, mais importante, devem-se concentrar mais argumentos. Se o texto é, no todo, curto, eles devem ser colocados de modo mais sucinto; se o texto é, no todo, longo, a esses mesmos argumentos devem-se agregar outros, secundários, que es­ tendam o percurso e tragam mais detalhes. Dessa maneira evita-se o grave erro de construir um percurso argumentativo que se encurta no raciocínio mais relevante, o que da­ ria a entender ao leitor que aquela idéia teria menor impor­ tância, porque o autor se prendera menos a ela; a conse­ qüência de um erro como esse seria a não-apreensão, pelo leitor, de um relevante argumento, porquanto, ao perceber um texto longo, estabeleceu um ritmo de leitura mais veloz, e conseqüentemente prendeu menos sua atenção a argu­ mentos menos extensos.


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Com os recursos do computador, alguns textos escritos, argumentativos, apelam para a estética da tipografia para dar realce a argumentos mais importantes: itálicos, negritos, sublinhas, fontes maiores, de estilos diferentes, são todos recursos bem-vindos, mas por si só não estabelecem coe­ rência. Talvez a estética. Usados com pouca moderação, têm efeito reverso: poluem o texto e pouco resolvem quanto à clareza do percurso argumentativo. Nesse sentido, aliás, vale reproduzir a observação de Umberto Eco, citada por Marchi'1: "O computador não é uma máquina inteligente que ajuda pessoas burras; ao contrário, é uma máquina burra que só funciona na mão de pessoas inteligentes." O texto abaixo, adaptado de petição de aluno, serve como exemplo: O réu conhecera a autora em um bar, denom inado S u ­ per Bar. O bar é localizado na avenida Rui Barbosa, centro da cidade. Era por volta das duas da m anhã, e o réu en costa­ ra seu carro, um M ustang novinho, à porta do estabeleci­ mento. Sozinho, entrou, avistou seu primo, que àquela hora conversava com a autora; pelo aludido parente foram ambos apresentados e logo passaram a dialogar, apenas os dois. Segundo relatos da autora, conversavam sobre assuntos co ­ m uns porque eram ambos universitários, falaram das festas que ocorreriam, de um ou outro professor que conheciam ; informaram suas idades, já demonstravam interesse de maior intimidade quando revelaram os lugares onde residiam, oportunidade em que o réu reconheceu que viviam em casas muito próximas, apesar de jam ais haverem se visto. D urante a conversa, o réu bebia bastante, e já estava muito alcoolizado quando trouxe a autora para seu autom ó­ vel. Prom etendo deixar a autora em casa, fez com o carro m anobras im prudentes e, apesar do pedido dela para que diminuísse a velocidade, chocou o veículo contra o poste, causando à autora as seqüelas adiante noticiadas. Esse fato é o gerador da indenização que será pleiteada.

15. Apud MARCHI, Eduardo C. Silveira. Guia de metodologia jurídica, p. 21.


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O texto, ainda que narrativo, ou seja, que apenas rela­ te fatos, evidentemente tem teor argumentativo, na medida em que visa persuadir (veremos essa distinção no capítulo seguinte). Mas ele peca pela quebra na coerência, em seu nível mais minucioso, ou seja, o ritmo. Deve-se perceber que quando o leitor nota que existem bastantes detalhes no relato logo de início, descendo-se a minúcias como o as­ sunto discutido por réu e autora, supõe que o texto tenha um ritmo lento de evolução. Entretanto, em um parágrafo mais curto, o escritor, logo em seguida, relata o único fato juridicamente relevante, com pouquíssimos detalhes: o aci­ dente e a culpa do réu. Qual o problema de se construir um discurso com essa falha de coerência? Evidentemente, como a falha não é grande, o leitor compreende o discurso, mas corre-se o risco de ele não dar a atenção necessária a fatos importantes porque deles o au­ tor pouco se ocupou. E com falhas dessas, progressivamen­ te, perde a capacidade de persuasão. Agora, sim, podemos estabelecer melhor critério para a extensão do discurso e seu interesse para a argumenta­ ção. Basta definir. A extensão de um discurso não interfere, como condi­ ção única, no fato de ele ser bom ou ruim, persuasivo ou não. Mas certamente é fator relevante para o estabelecimento da coerência. A extensão - estando bem consciente dela o ar­ gumentante - determina o espaço que deve ocupar cada argumento ou informação, bem como a pertinência ou não de idéias menores, que acabam por prolongar outras, maio­ res, que devem merecer esse complemento. Dependendo da extensão e do nível de detalhes e in­ formações novas expostas, o discurso adquire um ritmo que impõe ao interlocutor um nível específico de atenção. Esse ritmo não deve ser quebrado, a não ser que se trate de um recurso intencional do autor.


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Coerência, intertextualidade e intenção: quebrando regras Ao analisar os presentes aspectos do discurso argumentativo, sempre convergimos para um mesmo ponto, para o qual alertamos desde o início deste livro: o de que o melhor discurso é sempre o mais consciente; vale dizer, o que tem intenção mais determinada. O estudo da coerência do discurso, na progressão dos argumentos, até a sensibilidade para a chegada ao ritmo do texto e sua influência na persuasão são sempre recursos que auxiliam a tomada de consciência de níveis mais deta­ lhados da construção suasória. Entretanto, a quebra de uma regra, desde que conscien­ te, pode deixar de ser uma falha e transformar-se em um re­ curso útil na performance de um ou de outro discurso. Claro que desde que essa regra seja quebrada conscientemente, atendendo a uma intenção definida (e muito bem definida!). Se uma das regras do bom discurso judiciário é que ele tenha linguagem sóbria e formal, não se pode dizer que a utilização de um vocábulo chulo (que representaria tam­ bém uma quebra de coerência) não possa apresentar-se, na enunciação do discurso, como recurso bastante representa­ tivo. Necessita, porém, a intenção determinada: mostrar in­ dignação, tomar informal o ambiente, chamar a atenção de um auditório distraído etc. O texto abaixo é um poema do escritor espanhol José Angel Valente16: Sobre a areia traço com meus dedos um a linha dupla, interminável, com o sinal da infinita duração deste sonho.

16. No am ancce el cantor.


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A falta de coerência é o grande atrativo do poema: a infinita duração do sonho, expressamente afirmada no texto, aparece em contraste com a inconstância e a falta de soli­ dez do traço sobre a areia. Caso se tratasse de uma compa­ ração (que em regra resulta bons argumentos), teria essa alegoria efeito inverso, pois, em vez de comprovar infinita duração, mostraria um fim muito próximo. Mas era essa a intenção do autor. E a quebra de coerência não é monopólio da licença poética, embora dela se aproxime apenas na ousadia do au­ tor, que tem de conhecer os exatos (ou melhor, os mais exatos possíveis) limites da interpretação de seu auditório, para não correr grandes riscos de ser mal compreendido, deixando os interlocutores de aceitar a quebra de coerência como recurso intencional. Certa feita, um advogado enunciou discurso oral que pode ser assim reproduzido: M eu cliente é dono de uma em presa que pede dinheiro emprestado e não paga, suborna fiscais do governo para não o multarem em suas infrações, deixa de recolher ao fisco di­ nheiro descontado do pagam ento de seus funcionários, deve a vários fornecedores, declara movim ento m enor do que o que realm ente existe. O u seja, tem um a conduta absolutam en­ te norm al de empresário do país, nesta crise caótica em que o colocaram nossos governantes. Quid delirant reges, plectuntur achini - quando os reis deliram, os gregos são açoitados.

Enunciando uma série de condutas moral e criminalmente condenáveis, o advogado parece mais atacar que defender os interesses de seu cliente. Na última frase, en­ tretanto, quebra a coerência de seu discurso e passa a apon­ tar para o verdadeiro sentido da tese que pretende compro­ var: a de que de seu cliente era, naquele contexto nacional - provavelmente um plano econômico qualquer -, inexigí­ vel conduta diversa. Claro que correu um grande risco, mas sua intenção foi bem determinada: confessando aqueles pri­ meiros erros, chamou a atenção do auditório para a enun-


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ciação de sua tese e, mais, demonstrou grande segurança, determinação e planejamento de seu percurso argumenta­ tivo, o que importa em persuasão. Aliás, se cabe uma dica bem vaga mas relevante, não há interlocutor que não se predisponha à argumentação que pareça mais bem planejada, e nesse sentido todos os recur­ sos lingüísticos, que também estão na coerência, são váli­ dos se usados com consciência e temperança.

Falar algo, dizer outra coisa No mês de novembro de 2003, o presidente do Brasil, em visita à Namíbia, disse a seguinte frase: "Quem chega a Windhoek não parece que está em um país africano. Pou­ cas cidades do mundo são tão limpas, tão bonitas arquite­ tonicamente e têm um povo tão extraordinário como tem essa cidade." Questão política evidentemente à parte, o dis­ curso, como enunciava um jornal, "provocou constrangi­ mento na comitiva brasileira". Porque a coerência depende, como já visto, sempre do conhecimento de mundo também do ouvinte, certo é que o sentido de um argumento pode ser ampliado àquilo que não foi lingüisticamente enunciado. Portanto, ao se afirmar que uma cidade é tão limpa que nem parece a África, certamen­ te isto significa - ainda que não assim elaborado - que a África é, em geral, suja. Claro, uma gafe que não será repetida, mas que fez par­ te do risco daquele que discursa. Ao constituir sua assertiva expressa, acabou por insinuar uma afirmação indesejada, porque ela era inevitável premissa de sua fala. Sem que se formasse aquela premissa indesejada, a afirmação efetiva­ mente enunciada não teria nenhum sentido. Construção como essa, que no exemplo do presidente foi feita por equí­ voco, pode ser realizada intencionalmente, e assim apresen­ tar-se como recurso de enunciação, como se alguém disses­ se: "João é honesto, apesar de ser advogado." Nesta asserti­


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va, duas afirmações concorrem: a primeira, explícita, de que João é honesto, e a segunda, mais forte porém implícita, de que os advogados são em geral desonestos. Essa segunda afir­ mação aparece porque é condição para que a primeira afirma­ ção, explícita, obtenha sentido, guarde coerência. Vejamos como ocorre algo semelhante no texto abaixo, retirado da peça Vida de Galileu, em tradução de R. Schwarz. Na cena, Galileu Galilei, preso pela Inquisição, é convidado a responder a indagações do arcebispo a respeito de sua po­ sição em relação à ciência e à fé. De sua cela, dita à filha, en­ carregada de redigir este trecho de carta: Agradeço a Vossa Em inência muito especialm ente pela maravilhosa citação da Epístola aos Efésios. Estimulado por ela, fui encontrar outra frase, em nossa inimitável Imitação. "Ele, a quem fala a palavra eterna, está livre das muitas per­ guntas." Peço vênia, nesta ocasião, para falar de mim m es­ mo. Até hoje m e repreendem porque outrora usei da língua do mercado para escrever um livro sobre os corpos celestes. N ão era minha intenção propor ou aprovar que se redigis­ sem no jargão dos pasteleiros os livros de importância maior, como, por exemplo, os que tratam de teologia. Aliás, o argumento em favor da liturgia latina m e parece pouco fe­ liz - quando se apóia na universalidade dessa língua, a qual permitira aos povos todos ouvir a santa m issa de m aneira igual; os blasfem adores, que estão sem pre atentos, pode­ riam responder que assim povo algum entenderá o texto. Renuncio de bom grado à com preensão barata das coisas sa ­ gradas. O latim do púlpito protege a verdade eterna da Igre­ ja contra a curiosidade dos ignorantes, e desperta confiança ao ser pronunciado pelos padres das classes inferiores, em cuja fala se conserva o acento do dialeto local.17

Galileu faz afirmações incisivas contra o sistema ecle­ siástico da época, fingindo estar se retratando das acusações que lhe foram formuladas. Defende veementemente que,

17. BRECHT, Bertolt. Vida de Galileu, p. 157.


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tal como se faz hoje, as missas fossem enunciadas na língua local e não no latim, mas aparenta negar por completo essa idéia. Todavia, a força de seu argumento, para o leitor m e­ diano, salta mais corporificada que sua enunciaçâo, e daí se percebe que Galileu utilizava-se do recurso da ironia, do sarcasmo. Ao mesmo tempo, dava mostras de que sua ar­ gumentação levava, e muito, o leitor em consideração: cer­ tamente o destinatário de sua retratação não compreende­ ria dela o conteúdo irônico, mas outro que viesse a ler o texto poderia depreender por detrás de suas afirmações a mais completa anuência àquilo que expressava combater: a idéia dos "blasfemadores". Tal recurso é possível porque a necessidade do leitor de estabelecer coerência em sua leitura força-o a atribuir o sentido reverso daquele efetivamente enunciado. Veja-se o exemplo abaixo, mais corriqueiro: As provas no processo criminal são subm etidas a co n ­ traditório, para que possam defesa e acusação fiscalizar to ­ dos os atos, retirando a retidão da prova da confluência de interesses díspares. Já no inquérito policial não há contradi­ tório, mas isso é certo, porque na atividade policial não se faz necessária nenhum a fiscalização, pois lá nunca se teve notícia de corrupção de interesses.

A conclusão a que o texto conduz é evidente: há maior necessidade de contraditório na atividade policial que no próprio processo judicial. Mas talvez não fosse o texto tão persuasivo se seu último trecho não apelasse para o raciocí­ nio maior do leitor, compreendendo que a última afirmação - a inexistência de notícias de corrupção - trata-se de um sarcasmo. A coerência do texto é estabelecida pela intenção do autor, que deve ser compreendida pelo interlocutor, caso contrário o texto perde todo o seu efeito persuasivo. Percebe-se como um recurso como a ironia, se feito em justa medida, convida o ouvinte a transformar em seu ra­ ciocínio aquilo que lhe é transmitido, o que significa fazê-lo participar de uma interação com o interlocutor. Assim sen­


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do, o uso da coerência como elemento de persuasão vai além da mera construção não-contraditória do percurso ar­ gumentativo, podendo também funcionar como forma de estímulo à atenção do ouvinte. Claro que se deve levar em consideração o interlocutor e suas condições: se ele, por qualquer motivo, não estiver preparado para entender a ironia como tal, o recurso pode funcionar ao reverso. São níveis mais aprofundados de tra­ to com a qualidade da coerência.

Quatro dicas a respeito da coerência O destinatário da argumentação, ainda que jamais te­ nha estudado algo a respeito de coerência, adere mais às idéias que se lhe apresentam em um percurso bem forma­ do. Isso importa em dizer, sem nenhuma dúvida, que o ar­ gumentante deve se esforçar para que seus argumentos se­ jam encadeados da melhor forma, ou seja, pareçam o mais possível lógica e indeclinavelmente coesos. Claro que quanto mais complexa for a argumentação, mais ela vai exigir de trabalho e consciência dessa qualida­ de do discurso. Neste capítulo, a noção e a preocupação com o percurso argumentativo já em muito contribuem para a coerência mais robusta. Como aqui tem sido nosso méto­ do, é melhor o aluno conhecer cada conceito e característi­ ca do texto, com exemplos os mais claros possível, que es­ tabelecer regras a serem seguidas ou dicas enunciadas. Isto porque as regras e as dicas são reducionistas e nunca darão conta de todas as situações argumentativas. Mas mesmo assim, sobre a progressão discursiva, ousa­ mos expressar alguns conselhos que podem ser de valia para muitos dos interessados em aperfeiçoar o discurso, princi­ palmente aqueles mais extensos. 1. Em primeiro lugar, aquele que constrói o discurso deve ter para si bem fixado que existem inúmeras possibili-


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dades de progressão do texto. Por isso não é de estranhar que, no decorrer de sua construção argumentativa, confunda-se com qual será o melhor meio de construir seu discur­ so ou sinta-se de certa maneira irritado porque todas as idéias que lhe vêm à mente não cabem em uma única progressão. É algo absolutamente natural: se encaixadas todas as idéias que o argumentante traz em sua mente, seu discurso torna-se confuso. Por que isso ocorre? Em virtude de algo que já vimos: nem toda idéia é boa quando em determina­ do percurso. Deve-se selecionar os argumentos que cabem em um percurso, e por isso é natural que muitos tenham de ser excluídos, e tal exclusão é salutar. Preocupar-se com espaço ou tempo existente para a enunciação do discurso é algo intrínseco à argumentação, diversamente do quanto ocorre com a demonstração. Um matemático, ao resolver uma equação, não se aflige com questão como o espaço no papel que tenha para resolvê-la, mas um advogado a quem se concedem apenas vinte mi­ nutos para uma sustentação oral certamente tem no limite de tempo uma questão de coerência discursiva: encaixar os assuntos, as premissas e os argumentos que caibam naque­ le interregno determinado. E a exclusão de muitas idéias desse contexto é conse­ qüência da necessidade de seleção de que tratamos e evita confusão de duas partes: o argüente e o interlocutor. 2. Decorrência dessa mesma não-definição apriorística da progressão do discurso é nossa segunda dica, pertinente ao encadeamento. Vimos outrora a característica da argu­ mentação de que a passagem de uma premissa para uma conclusão é meramente verossímil. Mas essa verossimilhan­ ça não implica dúvida ou insegurança nessa fronteira de uma idéia para outra. Assim dizemos porque, principalmente em texto escri­ to, é natural a preocupação do argumentante em enunciar elementos de ligação de idéias (principalmente entre os parágrafos) para que a condução de seu discurso pareça se­ gura. Recheia-se então o texto - em regra, o início dos pará­


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grafos - de conectivos como: dessa maneira, assim sendo, da mesma forma, portanto, conseqüência disso, destarte... e daí por diante. Esse excesso de elementos de ligação ex­ pressamente enunciados acaba, se empregados de forma exagerada, tendo efeito deletério: revelam insegurança na progressão das idéias, na passagem de uma a outra. Lembre-se: as idéias estão coerentes, independente­ mente de que venham "destarte", "portanto" ou "desta for­ ma". Nem sempre é necessário enunciar a ligação, deixan­ do que o leitor a faça por si mesmo. 3. Outra dica importante é relacionada à questão topo­ gráfica do texto. Todo discurso tem projeção espacial, porque o leitor, como já se disse, sempre aguarda que se o entretenha mais naquilo que é mais importante. Isso conduz a um conselho bastante profícuo, que se recomenda seja segui­ do: o argumentante deve fazer um rascunho de seu discur­ so, planejá-lo em tópicos. Quem inicia, por exemplo, as razões de apelação sem ter já planejado, ainda que grosso modo, o percurso de seus argumentos, dá um grande passo para a construção de um texto confuso e, assim, não-persuasivo. Não raro terá, em meio à progressão de idéias, de enunciar longas informa­ ções que já deveriam ser premissa de seu discurso, mas que não foram ainda expressas no texto porque, antes de se in­ vocar um novo argumento, pareciam dispensáveis. Terá en­ tão de interromper a progressão do discurso para relatar algo fático e, assim, interrompe o raciocínio do leitor, como interrompeu o seu próprio. Discurso e planejamento prévio, pois o tempo gasto em afiar o machado nunca é desperdiçado. O intervalo que se perde na elaboração de um bom rascunho ou plano será recuperado na facilidade de construção do discurso e em seu resultado em coerência. E essa regra não costuma ter exceções. Aliás, costumávamos dizer, em aula de redação, que a comparação do resultado final do texto com seu planeja­ mento prévio dá boa noção do nível de intencionalidade e


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consciência de escrita de cada um. Mais conhece sua escri­ ta quem antevê, ao fazer um rascunho, quantos subtítulos, parágrafos ou linhas gastará ao enunciar um percurso argu­ mentativo. Então, um bom planejamento de texto (rascu­ nho, apontamentos, tópicos) serve, no mínimo, de elemen­ to eficaz de treino. 4. Última dica para o estabelecimento da coerência vem, de novo, relacionado à intertextualidade. Nada preju­ dica mais a coerência do que explicações que vêm repetidas ou em excesso, ou, pior, explicações ou premissas que fal­ tam ao leitor para a compreensão de um discurso. Para que se estabeleça a coerência, o argumentante deve realmente se preocupar em colocar-se no lugar do leitor e prever o que para ele é necessário compreender, a fim de que o raciocí­ nio do interlocutor acompanhe o percurso que lhe é inten­ cionalmente traçado. Decerto os leitores deste livro têm níveis argumentativos diversos, bem como necessidades distintas. Sem pro­ blemas, porque a diversidade é salutar. Mas a coerência sempre pode ser aprimorada. Desde duas idéias em um tex­ to que efetivamente não se encaixam ou são contraditórias até, em um nível elevado, uma pequena palavra - um adje­ tivo que possa ser colocado ou retirado - que interfira no tamanho da frase e na extensão do discurso. São todos subtipos da coerência, se bem que em níveis diferentes. M e­ lhor estará o discurso quanto mais intencional for, ou seja, aqui, quanto maior for a consciência de sua forma de progressão.


Capítulo VI

Narrando os fatos Na narrativa dos fatos não há, primordialmente, idéias que se combinam, mas personagens que, mediante ações, alte­ ram seu ambiente; como essas ações ordenam-se pela passa­ gem do tempo, diz-se que a progressão narrativa é temporal.

Até aqui, cuidamos da argumentação e definimos o ar­ gumento como enunciado que leva à persuasão. Vez por ou­ tra demos um exemplo de discurso narrativo sem uma de­ finição precisa do que seja a narração. Quem argumenta procura levar ao convencimento, uti­ lizando-se de combinação coerente de enunciados aceitos. Por isso trabalha com temas, com enunciados genéricos, ainda que às vezes só bem assimilados por grupos específi­ cos, conforme estudamos. Mas, antes de argumentar, de procurar apresentar uma tese que convença o interlocutor, é necessário fixar premis­ sas amplamente aceitáveis, que sirvam como base de percur­ so argumentativo. É essa a utilidade primeira da narração dos fatos, a de permitir ao interlocutor compreender os limi­ tes e as premissas da argumentação que terá de desenvolver. Nos processos judiciais, a narrativa dos fatos precede sempre a argumentação jurídica propriamente dita. D en­ tro de uma visão simplista, dir-se-ia que a narrativa dos fatos tem um conteúdo meramente informativo porque as­ sume apenas essa função de esclarecer uma situação so­ bre a qual ainda se vai tirar o processo argumentativo. Mas é claro que esse conteúdo informativo não é puro, porque contaminado pela constante vontade do argumentante de persuadir, ainda que, em tese, o momento seja apenas de informar.


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Por causa desse evidente papel suasório que tem a nar­ ração, podemos traçar alguns breves comentários sobre ela. Entretanto, para não fugir ao tema deste livro, é melhor abor­ dar apenas o que é essencial à atividade argumentativa.

Características da narrativa: figuratividade Ao narrar, apresentam-se os fatos sobre os quais recai­ rá a argumentação. Assim, se pretendo comprovar que exis­ te dano moral indenizável na conduta de uma pessoa ao acusar injustamente outra de haver cometido determinado delito, devo a princípio mostrar como os fatos originários ocorreram e em que circunstâncias. A narrativa é, portanto, auxiliar da argumentação, mas desenvolve-se em progressão bastante diversa porque tem características essencialmente diferentes. A primeira característica que a narrativa tem é a figura­ tividade. Ela se desenvolve por meio de figuras, ou seja, per­ sonagens que atuam sobre a realidade de determinada m a­ neira, transformando-a. Veja como o texto abaixo é eminentemente narrativo: Fiquei imóvel por dez minutos, o suficiente para tomar m etade da sopa e com er alguns biscoitos, depois fui para o telefone. M ordecai não tinha encontrado nada. Consultando os classificados, com ecei a telefonar para corretores e serviços de locação de apartam entos. Depois pedi um carro com chofer, de um a locadora de automóveis. Tom ei um longo banho de chuveiro para relaxar os m úscu­ los doloridos. Meu m otorista se chamava Leon. Sentei na frente, ao lado dele, tentando não fazer um a careta cada vez que o car­ ro passava por um buraco.1

O texto narrativo é representado por figuras, sejam elas pessoas (no texto acima, o protagonista, Mordecai e Leon) e 1. GRISHAM, John, O advogado, p. 36.


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coisas (sopa, biscoitos, telefone, classificados, automóvel...). Essas pessoas e coisas interagem para determinar a mu­ dança de uma realidade. A mudança na realidade, ou seja, a alteração do status quo ante, representa o núcleo de toda a narrativa, e somente pode ocorrer pela ação e combinação das figuras apresentadas. Em um homicídio consumado exis­ te a alteração da realidade anterior pela intervenção de per­ sonagens: alguém que era vivo perde, no transcurso do tempo, essa qualidade, pela intervenção de um segundo per­ sonagem que, com determinada ação, vem provocar a mor­ te do primeiro. Quando narramos os fatos, então, mais do que nos con­ centrar em idéias, apresentamos a relação com as figuras. São elas o fator determinante do texto, e daí a narrativa dos fatos que conceda pouca atenção a elas, desviando em di­ gressões a temas mais genéricos, perde clareza e prejudicase em coerência. Características da narrativa: transcurso do tempo A primeira característica da narrativa que apresenta­ mos, como diferença da argumentação, é que ela dá maior relevo à ação de personagens e coisas. Essas figuras são apresentadas ao leitor de acordo com uma ordem também característica, qual seja, o transcurso do tempo. Entre uma ação e outra, determinante das alterações operadas pelos personagens, há um lapso temporal, que deve ser indicado para o leitor como eixo principal da coe­ rência narrativa. A indicação do transcurso do tempo é essencial ao dis­ curso narrativo e pode aparecer de modo explícito (como a determinação de data e hora), ou de modo implícito (a re­ ferência a um marco histórico ou a própria seqüência das ações, que permita ao leitor depreender o passar do tem ­ po etc.)2. 2. Lembra Rupert Cortright: "A primeira idéia é a de tempo. Tanto os oradores com o seus ouvintes precisam aprender a ligar a noção de tempo à


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Assim, enquanto a progressão da argumentação é ló­ gica, representando o encadeamento de idéias que se com­ binam, a progressão da narrativa é temporal, pois, indicado ou não, o tempo é o único elemento que ordena as ações narradas. Tal diferença entre os eixos narrativo e argumentativo é que fundamenta a separação usual no discurso forense es­ crito, ou seja, os fatos - a narrativa, e o direito - a argumentativa. Não se trata apenas de construir uma separação or­ ganizacional, padronizada como uma praxe jurídica cris­ talizada, mas também de separar discursos que correm por progressões diversas, na medida em que a argumentação não se rege pela passagem do tempo. É claro que a distinção entre narrativa e argumentação é conceituai, pois não existe texto narrativo puro nem m es­ mo discurso argumentativo em que a narração não interfi­ ra. Quando, em argumentação, damos um exemplo, faze­ mos uma analogia ou mesmo relembramos fatos a título de argumentos específicos para determinado efeito suasório, recorremos à figuratividade e ao transcurso do tempo por­ que nos servem naquele momento, tomando de emprésti­ mo o eixo de progressão específico da narrativa. Veja, como exemplo, o discurso abaixo, de Plutarco3: O lavrador não pode tornar fecunda qualquer árvore, nem o caçador domar o primeiro animal que chegar; eles procuram, então, outros m eios de tirar proveito, o primeiro, da esterilidade vegetal; o segundo, da selvageria animal. A água do m ar é pouco potável e tem mau gosto; mas sustenta

ocorrência dos fatos, descrições, inferências e generalizações sobre o que se discorre, acompanhando-os de referência de data, hora etc. Muito bateboca inútil, em meio a conferências, tem decorrido seja de nos esquecermos inteiramente de datas, seja de divergirmos quanto à precisão delas no que toca ao seu relacionamento com os nossos postulados. João Qualquer, 1959, difere tanto de João Qualquer, 1949, quanto diferem entre si os automóveis produzidos, respectivamente, nessas datas" (Técnicas construtivas dc argumen­ tação e debate, p. 153). 3. Como tirar proveito de seus inimigos, p. 5.


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os peixes, favorece os trajetos em todos os sentidos, é uma via de acesso e um veículo para aqueles que a utilizam. Q u an­ do o sátiro contem plou pela primeira vez o fogo, desejou b eijá-lo e abraçá-lo; então, Prom eteu lhe disse: "D e tua barba de bode chorarás a perda." O fogo queim a quem o toca; m as fornece luz e calor, serve a uma infinidade de usos para aqueles que sabem utilizá-lo.

Para comprovar como o inimigo pode trazer proveito­ sos frutos, Plutarco recorre a exemplos e comparações que são figurativas: em seu núcleo, rege-se por personagens e coisas, e não por idéias em si. Desse modo, relata atitudes de diversos personagens (lavrador, caçador...) e relembra a mitologia de Prometeu e seu diálogo com o sátiro, para comprovar sua tese. Entretanto, o autor bem sabe que, em ­ bora se utilize da figuratividade e daí, obrigatoriamente, do transcurso do tempo, ela é mero auxiliar de uma progres­ são argumentativa. Por isso os exemplos são curtos, os diá­ logos, mínimos. Afinal, apenas se utiliza das figuras enquan­ to servem ao percurso argumentativo, pois sua intenção ali é primordialmente a de argumentar, e não a de relatar fa­ tos (o que ocorreria, em um discurso primordialmente nar­ rativo, se a intenção do autor fosse a de contar o drama de Prometeu). O texto argumentativo utiliza-se também do discurso narrativo porque é impossível a argumentação pura, mas mantém sua progressividade lógica, não se aprofundando no transcurso do tempo. O texto narrativo, por sua vez, tem o transcurso do tempo como fator regente principal, mas não único. Por isso a técnica narrativa do texto assume sempre a progressão temporal. No momento da enunciação, o discursante atribui um marco temporal em seu texto, um cen­ tro que tem como presente o instante do momento da fala, do momento da enunciação e, a partir dali, situa os fatos narrados como anteriores, concomitantes ou posteriores a


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esse marco temporal. O ato de enunciação instaura um m o­ mento presente, que é fundamento de toda a relação tem ­ poral narrativa4. É que assim como a argumentação se utiliza da narra­ tiva, esta se aproveita daquela, como veremos no tópico seguinte.

Função argumentativa da narrativa dos fatos. A questão do ponto de vista do narrador Grande parcela de razão têm aqueles que defendem que, em muitos procedimentos judiciais, importa mais no convencimento do leitor a narrativa dos fatos que a argu­ mentação propriamente dita, ou seja, que em algumas pe­ tições o julgador dá maior atenção à narrativa dos fatos que à persuasão referente ao direito. Mas isso não ocorre apenas em petições, em textos escritos do cotidiano forense. Mui­ tas sustentações orais, profícuas, de advogados, concen­ tram-se no esclarecimento d e fatos ocorridos durante o pro­ cesso, seguindo sua fala um percurso eminentemente nar­ rativo, regido pelo transcorrer do tempo. E nem assim são pouco persuasivos. Por quê? Para responder, leiamos um trecho da defesa de Ferri5:

4. Ensina José Luiz Fiorin: "S e o agora é gerado pelo ato de linguagem, desloca-se ao longo do fio do discurso permanecendo sempre agora. Tom ase, portanto, um eixo que ordena a categoria topológica da concomitância vs. não-concomitância. Esta, por sua vez, articula-se em anterioridade vs. posterioridadc. Assim, todos os tempos estão intrinsecamente relacionados à enuncia­ ção. O momento que indica a concomitância entre a narração e o narrado per­ manece ao longo do discurso e, por isso, é um olhar do narrador sobre o transcurso. A partir dessa coincidência, surgem duas não-coincidências: a an­ terioridade do acontecimento em relação ao discurso, quando aquele já não é mais e, por conseguinte, deve ser evocado pela memória, e sua posteridade, ou seja, quando ainda não é e, portanto, surge como expectativa" (As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo, pp. 142-3). 5. D efhisas penales, p. 105.


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N a pensão D ienensen está a Ham ilton? Ali está... D ãolhe o único departam ento disponível, bem próximo ao seu, no m esm o andar. A senhora tinha o quarto 33 e a ele coube o quarto 39. Diz que desejava tom ar banho porque nos países do Norte o banho é um hábito muito freqüente. E acabava de fa­ zer um a viagem de 36 a 40 horas ininterruptas, tinha necessi­ dade de tomar um banho. Mas a camareira disse que levaria m eia hora para preparar-lhe o banho, e ele, atormentado pela pressa, renuncia ao banho. Faz então um a toalete rápi­ da, arruma-se, sai, pergunta onde pode encontrá-la. Pergun­ ta ao porteiro, que, com o os senhores viram aqui, não tem um a estrutura gigantesca, seja corpórea, seja por sua função na pensão. Ele responde: "Provavelm ente no Hotel Regina, no H otel Excelsior, lá servem um chá pela tarde..." Vai, busca ansiosamente, não encontra; regressa à pensão; há quem te ­ nha visto sua amada. Sabe que está por ali, sente-se de novo sob sua influência, sabe que respira seu m esm o ar, que seu torm ento de amor está realm ente próximo. [;•■]

É som ente no instante fatal e funesto da ação fulm inatória que a idéia preordenada do suicídio evoca tam bém de improviso a idéia da m orte de outro, e o desesperado am an­ te chega à idéia de suicídio, mas turbada pelo homicídio, um a vez que os freios de sua vontade já não funcionam. E n ­ tão ele, em um ím peto que obscurece os sentim entos e a vontade, com a pistola à queim a-roupa, com a luz acesa, dispara três tiros contra a mulher que se encontra nua sobre o leito.

Não é difícil perceber que o enunciador atua em defe­ sa do réu, o qual, conforme o texto, acaba por cometer um homicídio. Não há, entretanto (ou aparentemente), argu­ mentos lançados no texto, mas apenas elementos informa­ tivos, o que ocorrera com o personagem - o réu - até o m o­ mento do fato delituoso, o irrefreável instinto da vontade que culmina na morte da mulher. Aliás, será que não exis­ tem mesmo argumentos? Os argumentos (como elementos lingüísticos que vi­ sam à persuasão) estão no texto, mas diluídos de modo que


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não apareçam explicitamente. Explicamos. O texto acima é evidentemente narrativo, pois mostra a ação dos persona­ gens, sua transformação no espaço e no tempo, buscando informar o ouvinte (no caso, os jurados) a respeito de fatos relevantes para o julgamento. Mas, como criação do inte­ lecto humano, como ocorre com qualquer discurso, a nar­ rativa assume um ponto de vista que parte de seu enunciador. Esse ponto de vista rege o percurso trilhado e determina que, ainda que o enunciador não o possa revelar explicita­ mente, a narrativa seja construída de acordo com uma in­ terpretação pessoal. Tal interpretação pode ser uma tese a ser comprovada adiante, quando a argumentação propria­ mente dita iniciar-se, como acontece com freqüência no dis­ curso judiciário. Veja-se. Ao construir uma narrativa, o enunciador, grosso modo, transforma fatos em elementos lingüísticos. Portanto, é obri­ gado a selecionar de uma realidade os fatos mais importan­ tes para um fim pretendido. O narrador esportivo encarrega­ do da transmissão, pelo rádio, de um jogo de futebol sabe que é impossível relatar ao ouvinte tudo o que vê (a ação de cada um dos 22 jogadores, o comportamento da torcida, do juiz, dos bandeirinhas, dos policiais, em atitudes todas con­ comitantes), por isso escolhe os fatos mais importantes: ge­ ralmente, o comportamento dos jogadores que interferem na trajetória da bola, se é que não há uma peleja mais inte­ ressante na arquibancada. É o ponto de vista do narrador esportivo que constrói o percurso dos fatos que os espectadores vão conhecer, de acordo com sua intenção. Não se pode dizer que a narrati­ va daquele locutor esportivo não vise à informação; mas a informação não é pura, tanto que um comentarista tenden­ cioso pode ser identificado: pelo modo como relata os fa­ tos, torce para este ou aquele time6. 6. Os próprios profissionais da imprensa asseveram que a informação pura, no discurso, é impossível. Sobre o tema, nota o jornalista Carlos Alberto di Franco que: "A imprensa honesta e desengajada tem um compromisso com


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O bom narrador, como no exemplo de Ferri, seleciona elementos da realidade que conduzem, no transcurso do tempo, o interlocutor a um ponto de vista que ele preten­ derá demonstrar. Não pode afastar-se da verdade, pois tem vínculo estreito com os fatos comprovados no processo, mas pode selecionar os fatos que mais contribuem para o contexto, sobre o qual certamente defenderá sua tese: a turbação mental do autor do crime, apaixonado, que deve­ rá levar a uma reprovabilidade menor de sua conduta. Essa tese não é parte da narrativa, mas nela ficará sedimentada. Portanto, a narrativa, conduzindo-se pelo eixo tempo­ ral, não abre espaço a argumentos explícitos, mas apenas a um fio condutor, relacionado, entre outros fatores, pela se­ leção dos fatos e sua disposição, que dão margem à aceita­ ção de uma tese, a qual somente pode ser exposta em outro discurso, o argumentativo propriamente dito. Nesse raciocínio, duas considerações relevantes devem ser feitas a respeito do efeito suasório do texto narrativo. A primeira delas é que, se o enunciador, no relato, deixar transparecer o comprometimento de seu ponto de vista com a tese que posteriormente irá defender, sua versão na mesma medida perderá credibilidade. À primeira vista essa colocação pode parecer estranha, mas representa apenas mais um dos efeitos práticos da distinção entre argumenta­ ção e narrativa dos fatos. A argumentação tem um ponto de vista explícito. Ferri, na defesa que aqui lemos, poderia dizer aos jurados: "Vou provar, com diversos argumentos, como a paixão e o ciúme podem tornar a pessoa absolutamente desconhecedora da a verdade. A neutralidade é uma mentira, mas a imparcialidade deve ser per­ seguida. Todos os dias. A busca de isenção enfrenta a sabotagem da manipu­ lação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. O jornalista engajado é sempre um mau repórter. [...] A grande surpresa no jor­ nalismo de qualidade é descobrir que 'quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos', sublinha Bernstein. O bom repórter esquadrinha a realidade, o jornalista preconceituoso constrói a história" ("Desafios do jorna­ lismo", OESP 22/7/02, p. A2).


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gravidade dos eventos que provocara." Trata-se apenas de haver explicitado sua tese argumentativa. Porém imagi­ nemos se Ferri dissesse: "Vou narrar os fatos de tal m anei­ ra que Vossas Excelências, senhores jurados, convençam-se de que o acusado estava de tal maneira entorpecido pela paixão que nem percebeu a gravidade de seu ato." Com essa fala, condenaria todo o seu discurso, pois o jurado espera que a narrativa dos fatos seja meramente informativa, não comprometida com pontos de vista. O ponto de vista existe, permeia toda a narrativa dos fatos, mas nela jamais deve ser revelado. Daí a dizer que, ao contrário da argumentação, na narrativa o ponto de vista tem de ser implícito. E é impossível que a intenção do autor deixe de in­ fluenciar no processo de criação, como o texto discursivo. Em sala de aula, trazemos um exemplo ilustrativo. Imagine que dois amigos, Pedro e Paulo, caminhando no centro da cidade, encontram um amigo comum, que havia longa data não viam. Trata-se de Hermes, que estava vestido de paletó e gravata, esta meio frouxa no colarinho; bem mais obeso que da última vez que o encontraram, tinha a barba por fa­ zer e, sorridente, descendo de seu Mercedes-Benz ano 1980, conversível, brilhando muito porque bem encerado, cum­ primentou rapidamente ambos os amigos, deu-lhes um car­ tão da empresa em que trabalhava, pediu para que os dois não deixassem de visitá-lo, escusou-se por estar apressado, despediu-se também sorridente, entrou novamente em seu carro e foi embora. Paulo sempre gostara muito de Hermes, mas Pedro ninguém o sabia - tinha com ele uma desavença antiga, pois lhe roubara uma namorada, ainda nos tempos de colégio. Relatando o encontro com Hermes, Pedro e Paulo apresen­ taram versões diferentes. Versão de Paulo: Encontram os H erm es. Estava muito bem, ficou felicís­ simo em nos ver. Deve estar muito bem de vida! Gordo, co ­ rado, um ar desleixado, o protótipo do big boss, de quem está


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por cim a mesmo: barba por fazer, gravata frouxa, blasée. Saiu de um M ercedes-Benz enorm e, limusine m esm o, que bri­ lhava de doer os olhos, bancos de couro que eu não via há anos. D em onstrou toda satisfação com o encontro e, muito apressado - com o todo hom em de negócios - , insistiu b ra­ vam ente para que voltássem os a nos encontrar.

Versão de Pedro: Encontram os H erm es. Foi bastante cordial quando nos viu, não muito mais que isso. Coitado, não deve estar muito bem de vida não. Muito obeso e fora de forma, malvestido, a gravata frouxa. Barba por fazer, um desleixo que dava um mau aspecto. Saiu de um carro velho, daquelas banheironas m esm o, sabe? Tudo bem , tentou dar uma valorizada e, pra disfarçar, lascou tanta cera naquela lata velha que ela brilha­ va de doer os olhos. Rapidam ente deu a desculpa de que e s­ tava apressado e saiu correndo, deu-nos o cartão e disse para ligarmos pra ele; aquela história, formalidades, nem in ­ sistiu muito.

Nenhum deles mentiu quanto aos fatos, e foram dis­ cretos ao expressar juízos de valor. Não revelaram expres­ samente seus pontos de vista porque, se o fizessem, seu re­ lato perderia a credibilidade. Todavia, mostram realidades totalmente distintas ao interlocutor, baseadas nos mesmos fatos. Na narrativa, pode estar presente a dialética, mas sempre de modo implícito. Segundo fato importante a se notar, a respeito do efeito suasório da narrativa, é decorrência do primeiro. Se a explici­ tação do ponto de vista prejudica a narrativa, esta, quando aparentemente informativa, encontra no interlocutor maior probabilidade de atenção que a própria argumentação. Responda rápido: o que convence mais: a propaganda política de determinado candidato em horário eleitoral, ou um noticiário de televisão que, aparentemente independen­ te de qualquer opinião política, noticie fatos amplamente benéficos à imagem do mesmo candidato? Evidentemente, a segunda hipótese. Qualquer candidato trocaria seus cinco


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minutos no horário eleitoral por cinco minutos de infiltra­ ção de suas idéias diluídas em notícias, ainda que em con­ teúdo meramente narrativo, em um telejornal de grande audiência. Do mesmo modo, muito mais vale um merchandising inserto em uma novela, em que um personagem despretensio­ samente use determinada marca de sabão em pó, visível ao telespectador, que aparecer a mesma atriz, fora de seu perso­ nagem, em horário comercial, anunciando com vários argu­ mentos as vantagens daquele mesmo produto de limpeza. Sendo assim, o efeito suasório da narrativa pode ser menor porque esse tipo de discurso não assume grandes enunciados argumentativos, mas traz a vantagem de contar - desde que respeitados seus estreitos limites - com grande atenção do interlocutor. Temos insistido, em vários trabalhos, que o efeito de persuasão da narrativa deve ser mais valorizado pelo pro­ fissional do Direito. A função de persuasão da narrativa dos fatos é de grande valia, e assim as técnicas de progressão desse tipo de texto merecem estudo aprofundado. A coe­ rência narrativa representa um diferencial que o argumen­ tante deve adquirir, pois a liberdade que existe na exposi­ ção dos fatos e sua característica nodal de exposição da novi­ dade são elementos que despertam interesse no destinatário do discurso, e pode ser esse o momento principal da for­ mação da opinião7.

Coerência narrativa Sobre a narrativa e sua progressão há muito para dizer, mas aqui faremos um apanhado mais sucinto, novamente restringindo-nos à diferenciação entre a construção argumentativa e a narrativa e os efeitos de uma sobre a outra. 7. Vide o Capítulo XVIII, em que mais se expõe a respeito dos efeitos do discurso inovador.


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A narrativa é figurativa e tem ponto de vista implícito, não revelado (ao contrário da argumentação, em que o pon­ to de vista tem, necessariamente, de ser explicitado para que o interlocutor compreenda o que dele se pede). A nar­ rativa tem seu percurso regido pelo transcurso do tempo, o que implica diferenças graves no estabelecimento de sua coerência. Todo interlocutor, conscientemente ou não, estabelece como eixo progressivo de uma narrativa o transcurso do tempo, por isso sempre está em busca de referências tem­ porais em seu texto; quando um leitor inicia um romance ou quando o jurado ouve o relato do fato criminoso, quer, já a princípio, uma primeira orientação cronológica: quan­ do ocorre o primeiro fato narrado? As ações que compõem a narrativa se dispõem no tem­ po e por isso, em discursos mais longos, grande parte da falta de clareza pode ser atribuída à falta de referência tem­ poral. Entretanto, antes de estabelecer a progressão tempo­ ral da narrativa o enunciador deve escolher quais os fatos a selecionar para a informação do ouvinte. Nesse momento, tal qual na coerência argumentativa, seleciona os fatos mais importantes e agrega outros, menos relevantes, apenas como forma de esclarecer ou dar maior realce aos primeiros. A narrativa que muito informa sobre aquilo que não é o cerne do conflito estabelecido também desconta a compreensão e o interesse do ouvinte. Desvaloriza a leitura, tal qual ocor­ re na argumentação em sentido estrito. Costumamos, por didática, estabelecer quatro tipos de fatos na narrativa do discurso judiciário: a) os fatos juridica­ mente relevantes: são aqueles sobre os quais recai conseqüên­ cia jurídica direta, geralmente representando o cerne da ar­ gumentação; b) os fatos que contribuem para a compreensão dos juridicamente relevantes: são aqueles responsáveis pela criação do contexto para os primeiros, para que o ouvinte possa compreender o processo e as circunstâncias em que ocorrem os juridicamente relevantes. Representam condi­ ções mínimas para essa compreensão e, diz-se, para que


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uma narrativa possa ser minimamente entendida, deve res­ ponder a sete questões: o quê?, quem?, como?, quando?, onde?, por quê?, por isso...; c) os fatos que contribuem para a ênfase de outros mais importantes: são aqueles que esta­ belecem circunstâncias com finalidade suasória, com vistas a uma argumentação; e d) os fatos que satisfazem a curiosi­ dade do leitor ou despertam seu interesse: são aqueles que contribuem para a progressão de um conflito no discurso narrativo, que fazem com que o ouvinte anseie pelo seu des­ fecho, aumentando sua atenção. Geralmente estes últimos são adequados apenas à narração literária; aliás, o que dis­ tingue a narrativa da narração é a presença, nesta, da cons­ ciente progressão de um conflito. O estabelecimento dessa classificação serve para evitar, na seleção dos fatos, a menor coerência pelo agregamento de informações pouco úteis ou da falta de circunstâncias relevantes. Diz-se então que somente podem ser enuncia­ dos os últimos fatos - que contribuem para a progressão do conflito - se os anteriores estiverem esgotados, como em uma cadeia de importância. A exposição do transcurso do tempo, na narrativa, de­ pende de dois fatores principais: a ordem de disposição dos fatos no discurso e a indicação dos intervalos entre as ações relatadas. Diz-se que os fatos, no discurso, estão dispostos em or­ dem cronológica quando enunciados na seqüência temporal em que ocorreram, ou seja, seguindo o decurso do calendá­ rio ou do relógio; estão os fatos em ordem alinear ou altera­ da quando sua disposição, no discurso, não segue a dispo­ sição temporal. Pergunta-se: por onde se deve começar uma narrativa? Pelo fato mais importante? Pelo fato que ocorreu primeiro? A regra é que, na narrativa do discurso judiciário, se­ jam os fatos dispostos em ordem cronológica. Dessa m a­ neira, fica fácil responder à questão: deve-se iniciar a nar­ rativa expondo o fato que primeiro ocorreu e em seguida os demais. Se, fixado esse método, ainda não se sabe com


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que fato iniciar, o problema é outro: ainda não houve cor­ reta seleção dos fatos que devem ser expostos no discurso narrativo. Mas excepcionalmente pode-se escolher ordem nãolinear para a narrativa dos fatos no discurso judiciário. Para que se permita a subversão da ordem cronológica, tecnica­ mente, deve-se voltar ao ponto em que insistimos relutan­ temente: essa subversão tem de ser fruto de um processo consciente, de uma intenção determinada, aliás, muito bem determinada. Quando a subversão da ordem cronológica não é in­ tencional (e é comum isso ocorrer), é fruto de um mau pla­ nejamento do autor do discurso: esquecendo-se de haver narrado um fato anterior, apresenta-o em momento poste­ rior, e isso quebra a coerência preestabelecida, não raro ge­ rando confusão na mente do interlocutor. Intencional, entretanto, a narrativa não-cronológica tem grandes utilidades, sendo a mais comum o propósito de dar pouco realce ao transcurso do tempo. Então, se a narrativa cronológica ajuda a orientar o ouvinte quanto ao transcur­ so do tempo, a alinear o desorienta em relação a esse mes­ mo aspecto. As vezes o transcurso do tempo tem efeito de­ letério no fator argumentativo, como ocorre no discurso do advogado no tribunal do júri que, em busca de fazer valer a tese de que o réu agira em violenta emoção logo após in­ justa provocação da vítima, narra os fatos em ordem altera­ da. Com esse recurso, se sua intenção é impor, com sua carga informativa, menor relevo ao (longo) transcurso do tempo havido entre a injusta provocação e o crime, consegue fazê-lo com sucesso. Inverter a ordem cronológica transforma-se em recurso. Na narrativa pertencente à ficção literária, a narrativa alinear desempenha funções diversas, não só para a pro­ gressão do conflito (com a antecipação de um fato que crie expectativa no leitor), mas também revelando o fluxo de pen­ samento, ou seja, descrevendo os fatos na reflexão do perso­ nagem, como lá efetivamente ocorreriam: mesclados a lem­


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branças mais remotas, permeados por fatos ocorridos re­ centemente, com noção de tempo alterada por emoções etc. Leia-se, como exemplo, trecho da ficção de Lygia Fa­ gundes Telles8: Voltei ao gravador, a gente sem pre volta. Estou m enos brilhante do que ontem , a saliva engrossando na boca, a co n ­ tece a m esm a coisa com os bichos, Rahul com eça a salivar e lam ber o focinho quando está com medo. Na m anhã em que Gregório - enfim , naquela m anhã de horror em que ele foi embora, enquanto eu corria de um lado para outro na atazanação do desespero, olhei para o Rahul que estava na sua posição de esfinge. Lambia o focinho. E não sei por que m e vem de novo a história do rio b o ­ tando para fora aqueles peixes, talvez os m elhores, os mais belos, os mais limpos. Mas ele viajou porque foi preciso ou?... - perguntou A nanta quando falei no assunto. Fiquei olhan­ do com cara de idiota a sua cara idiota. Não, queridinha, ele saiu daqui ventando só para dar um a olhadela lá na M ona Lisa do Louvre, Ô m eu Pai [...].

Houve vantagem evidente, no fragmento de Lygia, para seu fim específico, da inversão da ordem narrativa. Aparece a verossimilhança do pensamento tal qual ele existe na mente humana, repleto de entrecortes, recordações e con­ fusões. A desvantagem óbvia da não-linearidade narrativa é a quebra da coerência, que diminui, sempre, o nível de com­ preensão do interlocutor. Toda vez que o enunciador desejar subverter a ordem cronológica, deve sopesar esses fatores. Vejamos, como nova ilustração, o que ocorre no texto abaixo de Gabriel Garcia Márquez9: No dia em que o matariam, Santiago Nasar levantou-se às 5h30m in da m anhã para esperar o navio em que chegava

8. As horas nuas, p. 189. 9. Crõmca de uma morte anunciada, p. 2.


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o bispo. Tinha sonhado que atravessava um bosque de gran­ des figueiras onde caía uma chuva branda, e por um instan­ te foi feliz no sonho, mas ao acordar sentiu-se com pleta­ m ente salpicado de cagada de pássaros. "Sem pre sonhava com árvores", disse-m e sua mãe 27 anos depois, evocando os porm enores daquela segunda-feira ingrata. "N a sem ana anterior tinha sonhado que ia sozinho em um avião de papel aluminizado que voava sem tropeçar entre as am endoeiras", disse-m e.

O protagonista Santiago Nasar narra, como se vê, des­ pertando no dia em que seria morto. Mas essa cena consti­ tui apenas o primeiro marco temporal do texto recortado. Perceba como o texto, nesse curto trecho, desloca-se entre tempos distintos: 1) o despertar, às 5h30min; 2) o sonho, marcado pelo pretérito anterior ("tinha sonhado"); 3) o re­ torno ao momento em que acordou ("mas ao acordar"); 3) a mãe do protagonista enunciando, em momento bem posterior ("27 anos depois"); 4) o retorno à primeira cena ("aquela segunda-feira ingrata"); 4) um tempo ainda ante­ rior à primeira cena ("na semana anterior tinha sonhado"); 5) a volta ao tempo mais recente ("disse-me") e 6) tudo isso enunciado por um tempo ainda posterior a todos eles, demarcado pelo narrador, já que, ainda descrevendo o últi­ mo fato a que se refere (o que dizia a mãe), utiliza-se do tempo verbal pretérito. Trata-se de um texto literário de ficção, e talvez para nós não sirva de parâmetro a ser imitado: o excesso de câm­ bio em relação ao tempo da narrativa pode prejudicar a intelecção pelo leitor. Mas ao menos reforça a quase impossi­ bilidade de narrativa estritamente cronológica e linear dos fatos, por isso a necessidade de fazer percorrer o discurso narrativo com várias referências temporais, que deixem cla­ ro o percurso ao leitor. Sendo, então, o primeiro fator de indicação da coerên­ cia temporal na narrativa a ordem de enunciaçâo dos fatos, o segundo fator é a própria enunciaçâo lingüística de mar­ cos temporais. Referências a datas, horas, intervalos expres­


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samente enunciados (uma hora, duas horas, um ano...), advér­ bios ou locuções indicando tempo (logo após, remotamen­ te...), alusões a marcos históricos (à época do governo Vargas...) são todos elementos que orientam de modo mais explícito o leitor quanto ao eixo de coerência narrativa.

Conclusão A narrativa representa ao argumentante, no discurso judiciário, uma premissa e uma grande oportunidade. Pre­ missa porque, como vimos, é dos fatos que surgem os dire­ cionamentos da argumentação, e as informações necessá­ rias para que o interlocutor a compreenda e, logo, a aceite; e grande oportunidade porque, ainda que não admita uma atividade suasória expressa, tem a narrativa, diluído em seu conteúdo, grande poder de persuasão, ao informar o inter­ locutor para que ele aceite uma versão dos fatos verdadeira e verossímil, que contribua para a conclusão a ser apresen­ tada no momento argumentativo próprio. Respeitada sua estrutura e coerência específicas, a nar­ rativa dos fatos deve ser objeto de estudo do argumentante.


Capítulo VII

Argumento de autoridade: apelando para a opinião do experto Uma assertiva pode ser considerada válida apenas por­ que provém de fonte confiável. Entretanto, não se pode supervalorizar o argumento de autoridade: ele deve submeterse a alguns critérios para que seja digno de confiabilidade.

Apresentação: os tipos de argumento Até aqui trouxemos questões genéricas da argumenta­ ção jurídica: a apresentação da função do argumento, a es­ trutura argumentativa, a coerência, a intertextualidade e a narrativa. São todos pontos importantes, mas sem qual­ quer dúvida o leitor deseja aprofundar-se em aspectos mais práticos. É hora de apresentar tipos de argumento usuais àquele que argumenta em juízo. Somente nos vale, nesta introdu­ ção, dedicar algumas palavras ao método de seleção desses argumentos e à utilidade de seu estudo. Sendo os argumentos meios lingüísticos de persuasão, eles têm uma gama enorme de tipos. Sua classificação se­ gue pontos de vista distintos, dependendo do teórico e do método utilizado para sua validação. Seria impossível apre­ sentá-los todos, porque uma classificação criteriosa tenderia ao infinito, já que infinitos são os modos de persuadir pela linguagem. Qualquer classificação é inexoravelmente obso­ leta: quando construída, já deixou de abarcar uma série de recursos que a linguagem comum inventa a todo tempo. Nosso método, aqui, seguirá um caminho muito sim­ ples: apresentaremos os tipos de argumento mais comuns, mais usuais no Direito, procurando deixar bem claro seu aspecto eminentemente prático. Todavia, preocupamo-nos


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com a apresentação de um mínimo de embasamento teóri­ co, caso o leitor tenha algum interesse mais aprofundado ou, ainda, precise utilizar, em um caso seu, da discussão da ade­ quação do valor de cada um dos argumentos ou fundamen­ tos expendidos pela parte adversa. Preocupamo-nos em que o leitor desta obra, ao co­ nhecer ou aprofundar-se em cada tipo de argumento jurí­ dico, tanto acrescente cada um dos tipos de argumento a seu discurso, refletindo a respeito de seu valor, como tam­ bém conheça técnicas de desarticulá-lo, quando utilizado pela parte contrária. Então, por esse contexto nosso traba­ lho não foge à veridicidade científica: estabelece as vanta­ gens de cada argumento na persuasão humana ao mesmo tempo que - pretendemos - ficará fixado em que medida cada argumento pode tenderão sofisma, à falácia ou ao en­ godo em um discurso. Veremos, em capítulos posteriores, que a grande utilida­ de de conhecer tipos novos de argumento consiste no fato de o melhor discurso não ser aquele que traz argumentos em quantidade, mas sim o que (principalmente em auditó­ rios heterogêneos) articula argumentos diversificados, evitando-se a repetição da técnica e seu esgotamento. Iniciaremos, então, com o argumento de autoridade. Este merece considerações mais aprofundadas, aqui por dois motivos: primeiro, porque traz fundamentos que se apli­ cam quanto a outros tipos dele dependentes, que veremos adiante; segundo, por tratar-se de um dos mais relevantes argumentos do discurso judiciário atual. Por assumir tal va­ lor, merecerá também algumas críticas, que se farão sem querer ofuscar a importância ímpar que ele revela em nos­ so cotidiano.

A autoridade Muitas das verdades que aceitamos estão baseadas no conhecimento de autoridades. Se procuramos saber a pre­ visão do tempo, confiamos na opinião de autoridades, de


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expertos em meteorologia, para que nos passem um diag­ nóstico que, sozinhos, com nosso conhecimento leigo, não somos capazes de obter. Do mesmo modo, se temos um problema de saúde, consultamos um médico especialista, procurando nos fiar em suas conclusões e recomendações, diante do quadro clínico que ele nos estabelece, após pedir exames, submetidos à avaliação de outros especialistas que o realizam. Acreditamos na opinião do médico e do meteo­ rologista porque confiamos, de algum modo, que eles so­ mente venham a lançar manifestações oriundas de obser­ vações científicas aplicadas à realidade colocada à sua frente: o corpo do paciente, as condições climáticas de uma região a uma época específica. Dentro desse conceito, em um mundo em que, cada vez mais, nosso conhecimento estreita-se em aprofunda­ mento sobre áreas tão mais específicas (non multa, sed multum), muito do que acreditamos nos foi passado por meio de manifestações de autoridades. Quando crianças, experi­ mentamos sensações diversas, desconfiando das afirmações que nos são transmitidas por quem já as viveu: colocamos o dedo na tomada e sentimos o primeiro choque, e é raro aquela criança que teme um cachorro sem que algum já não lhe haja ao menos ameaçado um ataque. No transcor­ rer do tempo, entretanto, vimos, pela impossibilidade de experimentar e conhecer todas as áreas do saber humano, repousando nossa fidelidade em pronunciamentos estabe­ lecidos por aqueles que são, no senso comum, reconhecidos como dotados de conhecimento que autorize a convincen­ te manifestação de opinião a respeito de assuntos determi­ nados: cremos que a luz tem massa e caminha em direção curvilínea porque assim assentou Einstein, ainda que - ao menos a este cidadão leigo - não conheçamos os meios de colocar à prova essas afirmações. Esse conhecimento técnico baseado apenas em decla­ rações de autoridades consegue, refletindo em um panora­ ma mais amplo, criar uma verdadeira ditadura de autorida­ des, porque parece pouco sensato que um ser humano lo­


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gre refrear todas as colocações pronunciadas por aqueles que se estabelecem como dotadas de conhecimento apro­ fundado. Por um lado, o saber humano amplia-se e, por ou­ tro, reduz-se o tempo das pessoas para que possam estabe­ lecer conhecimento e colher dados suficientes a respeito das origens de cada matéria ou problema abordado, restan­ do a cada interessado a alternativa de estabelecer premis­ sas ou conclusões baseadas naqueles que sejam donos de uma experiência arraigada, ou que tenham reconhecidamen­ te se dedicado a estudar determinada matéria em questão. São eles os especialistas ou expertos. Como aponta Douglas Walton1, o estereótipo do pro­ blema da autoridade nos dias atuais tem sido composto pela figura do Big Brother, a criação de Orwell, em que uma oligarquia fixava pensamentos e conceitos, por um sistema de controle ferrenho, ditando às pessoas o modo de agir e pensar. Exageros à parte, a força que tem o conceito das au­ toridades estabelecidas, por influência de fatores como ciên­ cia, religião, mídia e imprensa em geral e cultura de massa contemporânea, faz com que o argumento de autoridade as­ suma, nas mais diversas áreas do conhecimento, força ini­ gualável, em que vale nos aprofundar. Antes, porém, de fazê-lo, é necessário compreender o conceito de argumento de autoridade.

Argumentum ad verecundiam Argumento de autoridade é aquele que se utiliza da li­ ção de pessoa conhecida e reconhecida em determinada área do saber para corroborar a tese do argumentante. 1. Cf. WALTON, Douglas S. Appeal to Expert Opinion, p. 2: "...Instead we have to assume and guess and, very often, trust or rely on the opinion of those who have presumably taken the effort to study the matter - the experts. So we have to fix on or accept certain opinions or beliefs as the best information or advice we have to act on for the moment. But there is also a widespread tendency to fix onto these beliefs that cannot be questioned."


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O argumento de autoridade é também chamado de argumentum magister dixit ou ad verecundiam. Esta última de­ nominação foi criada por John Locke2. Ele o definiu como uma espécie de argumento utilizado para fazer prevalecer seu posicionamento ou silenciar um opositor. Significaria utilizar-se da opinião de uma terceira pessoa, que "construí­ ra seu nome" e ganhara sua reputação no senso comum como pessoa de certa autoridade. Segundo Locke, uma pes­ soa, quando adquire certa reputação ou autoridade na so­ ciedade, realça a modéstia dos terceiros, que pouco questio­ nam o posicionamento daqueles que têm essa qualificação específica. Dessa maneira, qualquer um que não conheces­ se a opinião das autoridades poderia ser colocado, em uma discussão, como imprudente ou ignorante, fazendo com que um discursante adverso gozasse de maior crédito, se de acordo com a opinião daqueles que construíram bom nome. Utilizar-se do argumentum ad verecundiam significa tra­ zer, em uma discussão, a opinião de um experto, que se pre­ suma tenha conhecimento aprofundado sobre determina­ do assunto. Vejamos o exemplo abaixo: O réu não pode figurar no pólo passivo desta demanda, porque, com o mero entrevistado, não é legítimo autor de crime contra a honra em lei de imprensa. Se um jornalista transcreve no jornal a entrevista com determ inado persona­ gem público e, nela, redige ofensas a terceiros, atribuindo sua autoria à pessoa entrevistada, é ele, jornalista, o único responsável por eventual delito contra a honra, enquanto não fizer inequívoca prova de que copiara, no texto publica­ do, fielmente aquilo que o entrevistado dissera. Ademais, o entrevistado deve autorizar a publicação das ofensas proferi­ das - se é que as proferira caso contrário continua o jo rn a ­ lista sendo responsável por todas as ofensas publicadas na imprensa. É assim que pontifica Darcy Arruda Miranda:

2. WALTON, Douglas S. Informal Logic: a H andbookfor Criticai Argumentation, pp. 172-3: "A denominação 'argumentum ad verecundiam' literalmente significa 'o argumento da modéstia' e foi John Locke quem pela primeira vez a usou para referir-se a uma tática ou técnica que pode ser usada por uma pessoa contra outra."


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"[...] se nos conceitos emitidos pelo entrevistado h ou ­ ver ofensa à honra de alguém, o ofendido deverá agir contra o diretor ou redator-chefe do jornal ou periódico [...] res­ ponsável pela divulgação, tal seja a hipótese, caso não se prove, desde logo, que o entrevistado autorizara a divulgação (...). A responsabilidade do entrevistado só se fixaria se ti­ vesse dado a entrevista por escrito e ali apusesse a sua assi­ natura. N inguém pode ser responsabilizado pelo que não escre­ veu e não disse. E o repórter ou jornalista que publica ou transm ite um a entrevista, sem a cautela de sua autenticação pelo entrevistado, principalm ente quando nela se contêm expressões ofensivas a qualquer pessoa, assume a responsa­ bilidade pela divulgação se seu nom e constar da publicação [...], com o autor da entrevista e, caso contrário, responsável será o diretor ou redator-chefe" (Com entários à Lei de Im pren­ sa: 1969. S ão Paulo: Revista dos Tribunais, vol. II, p. 681; II, p. 681). Pela lição do em inente professor, indiscutível se faz a ausência de responsabilidade criminal do entrevistado, ao m enos no estágio probatório atual.

Para comprovar a veracidade de sua tese, o autor da ar­ gumentação judiciária recortou lição de professor conheci­ do e reconhecido em sua área de atuação. Talvez as idéias do argumentante fossem pouco aceitas se não apelasse à au­ toridade do jurista citado, e não há dúvidas de que o poten­ cial suasório de seu discurso aumentou incrivelmente alu­ dido argumento. Se aumenta a capacidade suasória, não há dúvidas de que se trata de um eficiente recurso e, portanto, seu uso é recomendável. A citação da doutrina representa o uso mais comum de argumento de autoridade em nosso discurso forense atual. Reconhecendo-se professores com vasto conhecimento e obras de notório valor científico, buscam-se manifestações suas que estejam de acordo com a tese estabelecida pelo argumentante, de tal modo que prevaleça sua opinião con­ trária em relação à parte adversa. Quando se estabelece essa coerência entre a tese esta­ belecida pelo autor (ou ao menos um ponto forte que se de­


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seje comprovar) e o posicionamento da autoridade, o argu­ mento ad verecundiam aperfeiçoa-se. Mas o que fundamenta seu efeito suasório, sua capaci­ dade de convencer? Grosso modo, a autoridade invocada apresenta um aval para a veracidade do posicionamento sustentado pelo ar­ gumentante. Ao citar Arruda Miranda, o argumentante do exemplo acima acresceu ao seu discurso a opinião daquele que tem vasto conhecimento jurídico; o argumentante usa, então, da presunção de que qualquer manifestação do cita­ do jurista seja reflexo de seu saber reconhecido, e então o toma de empréstimo para fundamentar sua tese, se seus po­ sicionamentos forem de fato coincidentes. Mas há outra vantagem no uso do argumento ad vere­ cundiam, e ela se aplica muito mais especificamente ao discurso judiciário. Trata-se da presunção de imparcialida­ de. Toda vez que um autor expõe seu argumento na dialé­ tica processual, parte de um ponto de vista comprometido com os interesses que defende, porquanto, como já disse­ mos em lições anteriores, assume a condição de parte. Isso não condiciona sua argumentação à falácia, mas sempre faz com que o interlocutor, que deve ser convencido, vin­ cule de certa maneira essa parcialidade à possibilidade de existência de uma argumentação que leve ao engodo. Quando o argumentante lança mão do posicionamento de uma autoridade, principalmente ao recortar trecho de obra publicada havendo algum tempo, em grande medida desfaz tal impressão, pois sabe o leitor que aquela opi­ nião, defendida pela autoridade, não atende a interesses outros que não a veracidade científica, ao menos presumi­ velmente. Portanto, o fortíssimo efeito suasório do argumentum ad verecundiam repousa em um duplo efeito: de um lado, a presunção de conhecimento e, de outro, a presunção de impar­ cialidade da autoridade e de seus posicionamentos acerca da tese que se pretende comprovar.


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Ciência e verdade O que se busca no (bom) argumento de autoridade é, principalmente, que ele seja reflexo de um pensamento confiável e científico. Em nossa sociedade moderna, os m o­ delos científicos estão espalhados por todas as áreas do conhecimento, e as reflexões subjetivas, ainda que sorra­ teiramente apareçam em considerações de lógica informal, são rechaçadas como depoimentos apaixonados, de pouca técnica. Descartes procurou modelos geométricos de ra­ ciocínio, iniciando com premissas indubitáveis e represen­ tando inferências unicamente por etapas que não poderiam levar do certo ao falso; assim, um raciocínio poderia tender ao infinito sem que se afastasse de uma veridicidade com ­ provada. Ocorre, aparentemente, que, em nossa técnica diária, não temos tempo, espaço ou conhecimento hábil para de­ senhar essas mesmas etapas, então nos contentamos em fi­ xar raciocínios já prontos, de fontes seguras. Não é difícil, entretanto, imaginar que essas fontes seguras, as autorida­ des, ainda que representem o raciocínio científico tão an­ siado por nossa sociedade imediatista e tecnológica, po­ dem constituir uma falácia: a de impor um raciocínio como verdadeiro apenas porque ele provém de uma fonte segura ou renomada. Em primeiro lugar, é necessário deixar evidente que, mesmo em bases científicas seguras, as fontes podem trazer resultados equivocados e contraditórios. Vale a pena copiar, neste ponto, o exemplo pertinente fixado por Walton3: M uitas pessoas acatam essas descobertas científicas e opiniões com tam anha seriedade, e agem conform e elas, m esm o lem brando que essas opiniões freqüentem ente m u ­ dam com rapidez e podem ser frontalm ente contrapostas por outros cientistas. Um caso excelente descrito por Cynthia

3. Appeaí, cit., p. 6.


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Crossen é a mania de farelo de aveia (oat bran) da década de 1980. Em uma época em que as pessoas estavam com eçando a preocupar-se com as influências do colesterol nas doenças cardíacas, os resultados de uma pesquisa parcialmente pa­ trocinada pela Q uaker O ats Com pany foram publicados por um a equipe da N orthw estern University no Journal o f the A m erican Dietetic A ssociation. O estudo mostrou que, de 208 casos, adicionar o farelo de aveia a sua dieta resultava em significativa queda da taxa de colesterol. A Quaker, con se­ qüentem ente, passou a anunciar seu cereal com farelo de aveia como um alim ento redutor de colesterol, que baixava os riscos de ataque cardíaco, e a mídia acatou tal alim ento com o um miraculoso ingrediente na comida. Farelo de aveia foi adicionado a mais de trezentos produtos, incluindo b ata­ tas fritas, alcaçuz e cerveja. Em janeiro de 1990, um novo e s­ tudo foi publicado por dois pesquisadores de Harvard, con ­ cluindo que o farelo de aveia não funciona quase nada no com bate às doenças cardíacas.

Para o consumidor leigo, que desconhece até mesmo a essência do colesterol, a seriedade de um estudo publicado em jornal especializado, com a chancela de uma universi­ dade norte-americana, com certeza representa autoridade ou ciência. Não interessa saber, no exemplo, se o farelo de aveia tem ou não efeito na prevenção das doenças cardía­ cas, mas é importante notar que os dois estudos, científi­ cos, contrapuseram-se frontalmente. A busca da opinião de uma autoridade, ainda que em estudo aparentemente cien­ tífico - fixe-se - não é cem por cento segura. Mas ainda que longe da exatidão, a ciência a persegue. As ciências humanas estão em franca desvantagem nessa busca, porém continuam na batalha. Por isso é natural que o raciocínio do magistrado guie-se, na atividade jurídica e na interpretação do Direito, pelo raciocínio que se aproxime da construção científica e, daí, da exatidão. Esta, evidente­ mente, não é plenamente alcançada, ao menos no Direito, mas o argumentante, quando lhe aprouver, defenderá a exatidão do raciocínio científico jurídico e, não podendo re­ construí-lo todo, etapa por etapa, até a premissa mais re­


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mota do ordenamento jurídico, apresenta um texto com presunção de veracidade científica. Na interpretação e aplicação do Direito como ciência, o julgador vai sempre procurar o embasamento com maior quantidade de provas, o que permite lembrar a advertência de Kant, em Crítica do juízo4: Toda argumentação... não deve som ente persuadir, se­ não convencer ou ao menos contribuir à convicção... porque de outra forma o intelecto fica seduzido, mas não convencido.

Para contribuir para a convicção, a argumentação, quan­ do se imiscui na ciência, busca seus modos de convenci­ mento. E a ciência recomenda a localização e a indicação de boas fontes para que se exponha um raciocínio válido em seu âmbito, como ensina Marchi, dissertando sobre a veridicidade científica5: Esta interpretação ou entendim ento da fonte, todavia, deve quase sem pre ser comprovada substancialm ente pela citação ou referência a outro (ou outros) autor, cuja opinião em base (parcial ou inteiram ente) aquela interpretação. Este outro autor, porém, não pode ser qualquer um. D everá ele constituir-se, de preferência, em um cien tista-jurista renom ado, já reconhecido e legitimado com o tal na co ­ munidade científico-jurídica. A exigência desta prova substancial se justifica pela n a ­ tureza da ciência jurídica. Não sendo ela uma ciência exata, isto é, inexistindo uma prova inquestionável do resultado proposto (como 2 + 2 = 4), não há com o se provar uma solução (ou afirmação) propos­ ta a não ser em basando-a nos "resultados" (= interpretações ou opiniões) de autores já legitimados cientificam ente.

Não resta então nenhuma dúvida de que a opinião do experto é reiteradamente necessária na metodologia cientí­ 4. Apud CASCIO, Vincenzo. Gramática dc la argumentación, p. 250, 5. Guia dc metodologia, citv p. 38.


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fica, e, portanto, vale também na argumentação jurídica como meio de convencimento objetivo, que procura impor ao leitor, desde que adequada a opinião da autoridade à tese defendida, a validade do raciocínio exposto.

A confiabilidade da opinião da autoridade:

quia nominor leo Alfredo Gaspar define argumento de autoridade como sendo "argumento psicológico de grande peso (e tanto que alguns autores o tratam como argumento quase-lógico ou mesmo lógico), aquele em que o orador abona sua opinião no ensinamento de um autor renomado, ou de um texto consagrado, fora de qualquer suspeição'"’. Como argumen­ to, não há dúvida de que o melhor é sempre aquele que conta com maior aceitação do auditório, mas é pouco pro­ vável que se possa definir o argumento magister dixit como sendo apenas aquele que provém de fonte fora de qualquer suspeição. Suspeitas sempre existem, ainda que consagra­ dos os textos citados. Por isso, não basta um texto de uma autoridade para comprovar uma tese, devendo ser ela apenas parte de um raciocínio mais complexo e aprofundado do próprio ar­ gumentante. A nossa praxe judiciária, entretanto, tem hi­ pertrofiado o valor do argumento magister dixit, transformando-se ele, indevidamente, algumas vezes, em único recurso persuasivo de discursos judiciários, fonte e fim de todas as discussões jurídicas práticas, conforme exemplo a seguir. Conta-se que o leão estava faminto e procurava caçar a zebra, mas não conseguia. A zebra embrenhava-se na mata, corria e corria; volta e meia a caça, na fuga, invadia o rio, onde, com pernas mais longas, escapava do rei da floresta. Furioso, o felino, sob os conselhos sábios da leoa,

6. Instituições de retórica forense, p. 63.


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propôs ao crocodilo uma união de esforços: o crocodilo e sua esposa espreitariam a zebra na água, enquanto o leão e a leoa a perseguiriam em terra. Não haveria escapatória. Com a união de esforços, foi realmente impossível, e a ze­ bra sucumbiu à boca do crocodilo. Chegou o momento, então, de dividir a presa entre os quatro caçadores, e o leão anunciou: "Dividimos a zebra em duas metades. A pri­ meira metade será dividida igualmente: um terço ao cro­ codilo, por ter matado a caça; outro terço a sua esposa, por ter feito a tocaia; o último, à leoa, por haver planejado tudo com perfeição... e a outra metade é minha, porque meu nome é Leão." Quia nominor leo. A autoridade do leão determinou-lhe a razão, ainda que sua explicação não fosse lá a mais razoá­ vel. Se pensarmos em argumentação como modo de levar à persuasão a qualquer preço, podemos nos aproveitar de uma única opinião de um autor consagrado para sustentar nossa tese, como absoluta dispensa de nos aprofundarmos em o que levara a autoridade a concluir desta ou daquela maneira. Se um médico consagrado me prescreve certo remé­ dio, eu o tomarei sem questionar: uso o remédio porque me foi recomendado por um profissional reconhecido da Medicina. Mas, se ele não me faz nenhum exame, clínico ou laboratorial, se sua consulta é rapidíssima e eu posso perceber que sequer deu-se conta de meu estado de saúde, poderia aceitar aquele mesmo medicamento sem exigir do profissional explicação minimamente aprofundada a res­ peito dos motivos que o levaram a recomendar-me o trata­ mento? Parece evidente que não. O problema agrava-se quando se nota que, nos dias de hoje - permita-nos que seja dito algumas empresas e meios de comunicação elegem ou até mesmo criam autoridades que estão longe de ser equiparadas a outros especialistas, estes com alto gabarito e conhecimento em suas áreas de estudo e atuação. Não é raro que os grandes sábios, real­ mente especialistas, sejam preteridos por outros que têm


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maior acesso à mídia7: o médico, o advogado, o professor, o nutricionista que mais aparece na televisão ou que é mais di­ vulgado pela editora por ser autor de best-sellers da área téc­ nica, com pouquíssima originalidade científica. Acontece. Por isso, ainda que seja absolutamente funcional, na ar­ gumentação, o apelo à autoridade, aproveitando-se da hu­ mildade do interlocutor a reconhecer seu desconhecimento, ou, ao menos, um conhecimento menor a respeito da maté­ ria sobre a qual a autoridade disserta, alguns princípios de­ vem ser observados para que não se tome (apenas) a fonte como absoluto meio de atribuição de valor a uma conclu­ são, já que até essa fonte pode ser algo duvidosa. Quando o argumento de autoridade desvirtua-se de sua função de presunção razoável de certeza da opinião de um verdadeiro expert para que se dê maior crédito a uma tese, passa a constituir a falácia da autoridade.

Estabelecendo a validade do argumento A regra de validade do argumento de autoridade é esta8: X (alguma pessoa ou organização que deve sabê-lo) disse que Y. Portanto, Y é verdade.

7. O acesso à mídia, que coloca com grande agilidade nomes em evi­ dência, conduz (ou pode conduzir) à falácia da popularidade, pois com facili­ dade as pessoas embarcam nas crenças da maioria, como explica Govier Trudy: "A claim may be widely believed only because it is a common prejudice. Thus, the fact that it is widely believed is irrelevant to its rational acceptability. Argumentsin wich there is a fallacious appeal to popularity are based on premises that describe the popularity of a thing ('Everibody's doing it', 'Everibody believes it'), and the conclusion asserts that the thing is gook or sensible. The arguments are fallacious because the popularity of a product or a bielief is in itself irrelevant to the question of its real merits. The fallacy of appealing to popularity is also sometimes called the bandwagon fallacy, or the fallacy of jumping on a bandwagon" (A Practical Study ofArgument, p. 189). 8. Cf. WESTON, Anthony. Las claves de la argumentación, p. 55.


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Como argumento, então, vale a afirmação porque pro­ vém de alguém que deve sabê-lo. Mas há várias maneiras de pôr à prova o argumento de autoridade, para que ele não se transforme em uma falácia. Apenas a título de exem­ plo: sabe-se que, quando se faz a citação de determinado autor em um texto jurídico, indica-se o ano da edição da obra transcrita. Por que isso é feito? Porque a autoridade pode mudar seu posicionamento9 em obra posterior, retificando-o, admitindo um engano ou uma ilusão passageira. Assim, uma citação de pessoa famosa pode constituir um posiciona­ mento cientificamente errado, mas se tal falha não é apon­ tada no contraditório, passa como boa afirmação, argumen­ to persuasivo. Quem se depara com o argumento de autoridade utili­ zado pela parte contrária deve colocá-lo à prova, estabele­ cendo sua validade. Mas não só: para aquele que, mais que seduzir, pretende realmente convencer com técnica, é reco­ mendável que também questione a validade do argumento de autoridade que utiliza. Faremos mais algumas considerações importantes a respeito desse tipo de argumento e de sua validade porque, como já adiantamos no início deste capítulo, dessas carac­ terísticas do argumentum ad verecundiam outros tipos de argumentos também se aproveitam, e então nos poupare­ mos, mais adiante, de dissertar sobre elas. Vale já, entretanto, considerarmos o modo de aferição de validade da conside­ ração da autoridade, por meio de seis perguntas, de Walton, que apresentam cada uma um dos requisitos para a validade pretendida. Imaginemos que um experto (E) apresente determina­ da afirmação (A), que é aproveitada em discurso de um ar-

9. "If [the cited expert] is a great authority and the consensus of authorities is large, then the argument becomes stronger. But it's never 100 percent conclusive. Ali the authorities in the world might agree on something that they later discover to be wrong. So we shouldn't think that something must be so because the authorities say it is" (GENSLER, Harry. Logic: Analyzing and Appraising Arguments. Apud WALTON, S. Appeal, cit., p. 234).


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güente, em consonância com sua tese. Um argumento de autoridade, para que seja válido, deve ter respondidas afir­ mativa ou satisfatoriamente a todas estas questões: 1. A questão do experto: Qual é o crédito de E como uma fonte científica? 2. Questão da área: E é experto na área em que se en­ contra A? 3. Questão da validade da opinião: O que E disse que realmente implica A? 4. Questão da confiabilidade: E é pessoalmente confiá­ vel como uma fonte? 5. Questão da consistência: A está de acordo com as afirmações de outros expertos? 6. Questão das provas: A assertiva A é baseada em provas? A resposta a essas questões garante a validade do ar­ gumento ad verecundiam, afastando-o da falácia, do engodo do pronunciamento sem validade científica. Analisemos ra­ pidamente cada uma delas.

A questão do experto Qual é o crédito do experto como uma fonte científica? A autoridade deve ser credenciada como tal. Nas cita­ ções de doutrina na argumentação jurídica, sempre se deve procurar uma autoridade cientificamente autorizada, ou seja, em geral um professor universitário de gabarito. Pare­ ce natural, pois, que se o fundamento do argumento de au­ toridade é a presunção de razão em virtude da boa fonte do pronunciamento utilizado, mais forte será o argumento quanto melhor for tal fonte. Nesse ponto, entretanto, algumas observações podem ser feitas com grande segurança. É fato certo que, em questões teóricas do Direito, o es­ tudo universitário é o maior fator de crédito da autoridade. A ciência jurídica tem seu melhor desenvolvimento, técnico


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e mais preciso, dentro das universidades. Elas são o campo autorizado para o crescimento do conhecimento jurídico propriamente dito, portanto á sempre preferível utilizar-se da autoridade que tenha reconhecida atividade acadêmica. Ela, presume-se, foi colocada à prova várias vezes e galgara seu conhecimento com a amplitude e o aprofundamento necessários para que não construa teses ou pensamentos com desconhecimento de fatores imprescindíveis a suas manifestações. Com a certificação do crédito do experto como autori­ dade, principalmente acadêmica, o primeiro grande risco afasta-se da falácia do argumento magister dixit: o de que se escolham como autoridade pessoas de sucesso, de renome em determinada área, mas que não se possam colocar, tec­ nicamente, na qualidade de autoridades, porque não dis­ põem do devido credenciamento para tanto, ainda que se­ jam de larga fama. Esse tema já foi abordado no tópico anterior: os inte­ resses de propaganda e de mídia que levam ao engodo de pessoas de não tão vasto conhecimento em sua área serem afamadas como grandes conhecedoras. O crédito de auto­ ridade não se alcança, ou melhor, não se deveria alcançar por meio de propaganda, aparição reiterada na mídia ou venda de produtos que levam seu nome. Sem generaliza­ ções, claro: a fama pode também advir de uma iniludível competência técnica e científica, mas é esta que deve valer à autoridade. Cabe ressaltar ainda que não se deve confundir a auto­ ridade técnica com o poder. No ambiente jurídico, em que essa confusão é muito comum, costumamos afirmar que autoridade jurídica não é o mesmo que autoridade judiciá­ ria ou autoridade legal. Um cargo público bem elevado e reconhecido ou uma carreira de sucesso na advocacia não determinam a autoridade jurídica no pronunciamento cien­ tífico. Somente se pode confiar na autoridade do pronun­ ciamento pela experiência ou pelo cargo se a matéria abor­ dada, como se verá adiante, for específica dessa mesma ex­


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periência, como se um desembargador de notável carreira escrevesse sobre o ofício de julgar, ou um governador do Estado se pronunciasse sobre a árdua tarefa de comandar um governo. Vale, apenas a título de ilustração, o discurso de Sancho Pança, que, conduzido ao cargo de governador insular, assenta, com os ditados característicos de suas falas, que sua autoridade, recém-imposta, acobertará sua ignorância e fará prevalecerem suas opiniões: "Bien sé firmar a mi nombre - respondió Sancho que cuando fui prioste en mi lu­ gar aprendi a hacer unas letras como de marca de fardo, que decían mi nombre; cuando más, que fingiré que tengo tullida la mano derecha, y haré que firme otro por mí, que para todo hay remedio, sino para la muerte; y teniendo yo el mando y el paio haré lo que quisiere; cuanto más que el que tiene el padre alcalde, seguro va al juicio... y siendo yo gobernador, que es más que alcalde, llegaos, que la dejan ver!"10 Mais uma vez, é claro que a autoridade também de­ pende em certa medida do público a que se dirige. As pala­ vras do romano pontífice para os católicos são sempre do­ tadas de razão11, porque proferidas pelo legítimo sucessor de Pedro, e nem por isso seus pronunciamentos deixam de conter raciocínio lógico e fundamentação desenvolvidos. Do mesmo modo, a prescrição de um médico a um pacien­ te que se sujeita e aceita seu tratamento raramente será con­ testada, ainda que outro possa entendê-la incorreta, pois ao paciente seu médico representa ali máxima autoridade em sua saúde. A primeira questão, então, de validade do argumento de autoridade investiga o arcabouço científico daquele que se apresenta como especialista. Enganos há aos montes, 10. CERVANTES, Miguel. El ingcnioso hiáalgo Don Quijote de la M ancha, p. 737. 11. Por isso, v.g., no Código de Direito Canônico, as sentenças proferi­ das pelo papa não comportam recurso (c. 1629, §1°).


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com autoridades que se apresentam como tal mas não o são. Resta sempre lembrar que, quanto maior a representatividade daquele invocado como expert, mais forte é o argu­ mento dele retirado. Todavia, apenas a autoridade não de­ termina o argumento.

Questão da área Exemplo pouco técnico, mas bastante esclarecedor: Três sábios cientistas chegam de carro a uma cidade do interior em que jamais estiveram. Eles participarão de um importante congresso no salão nobre da prefeitura da cida­ de, mas não têm a menor idéia de onde seja a sede do go­ verno municipal. Perguntam, então, a um munícipe que por eles passa, um caboclo iletrado, que carrega espigas de mi­ lho em um balaio de palha. Certamente, o homem saberá responder-lhes onde é a prefeitura. Naquele momento, qual das quatro personagens é a autoridade? Evidentemente, o caipira analfabeto. Qualquer resposta que ele proferir (a não ser que diga que a sede do governo é em Marte) é digna de todo o crédito, pois naque­ la matéria - a topografia da região - ele é entre todos o úni­ co especialista, e não há que se dizer que em toda a região haja alguém mais indicado que ele para proferir a resposta. Caricaturas à parte, é evidente que não basta a creden­ cial científica da autoridade para que ela possa ser encarada como fonte segura para a manifestação em qualquer assun­ to. A autoridade é especialista em sua área de conhecimen­ to e, fora dela, tem opinião como outro qualquer, que requer fundamentação vasta, pois não se presume que seja produ­ to de vasto conhecimento. Conta-se que Albert Einstein, que como cientista alcan­ çou grande sucesso ainda vivo, era procurado pela impren­ sa para manifestar-se continuamente sobre questões políti­ cas e sociais, na comunidade norte-americana e européia. Evidentemente, Einstein era autoridade na física, mas não


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em questões políticas, em que deveria funcionar apenas como comentarista leigo, não obstante contasse com inteli­ gência privilegiada. Na televisão, em programas de meio de tarde, artistas de novela são chamados a discutir questões nacionais, como se fossem grandes especialistas em economia ou sociolo­ gia. Claro, apenas alguns poucos dão crédito àquelas opi­ niões como se emanassem de alguém que faça presumir se­ rem verdadeiras todas as suas manifestações, de tal modo que a influência (às vezes surpreendentemente grande) dos juízos do artista é de tal maneira subjetiva que deve ficar a cargo do estudo dos publicitários. Mas no discurso judiciário não é raro ocorrer desvirtuamentos da manifestação da autoridade, que aproximam o argumento da falácia. Algumas autoridades em determi­ nada área do Direito, em pareceres e outras manifestações, por vezes opinam em matérias que em nada se aproximam daquelas em que são realmente expertos. São raros os ca­ sos, mas às vezes algumas autoridades aproveitam-se de seu reconhecimento público para intrometer-se em áreas que, de fato, conhecem pouco, ou conhecem menos que um verdadeiro especialista no assunto, porém de renome m e­ nor. Nesse caso, o argumento perde seu valor12. O tema das especialidades na área do Direito é algo em que, aqui, buscando apenas o efeito argumentativo, não vamos avançar muito, até porque, é bem oportuno dizer, fugiria a nossa temática de estudo. É pertinente apenas fa­ zer a ressalva de que, embora as especialidades e as disci­ plinas do Direito estejam em constante crescimento, alguns renomados juristas, por seu amplo conhecimento do orde­ namento legal como um todo, podem atrever-se a opinar em área diversa, conservando seu status de fonte credencia­ da, porquanto seguem, em campo estreito, um raciocínio jurídico mais amplo que efetivamente dominam. Mas é ne­ cessário cautela.

12. "Ne supra crepidam sutor iudicaret" - Não julgue o sapateiro mais do que a sandália.


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Se alguém é credenciado experto em determinada m a­ téria e se sua afirmação diz respeito a ela, o argumento de autoridade já ganhou grande força. Caso contrário, perdeu um de seus sustentáculos. Mas há mais.

Questão da validade da opinião O que E disse que realmente implica A ? Essa, em nossa opinião, é a questão mais importante do argumento ad verecundiam, a validade da opinião da autoridade. Questão complexa, porque envolve diretamen­ te o conceito desse argumento: sendo a autoridade real­ mente especialista em determinada área do conhecimento, e se for seu pronunciamento atinente a essa mesma área, importa em que todos os ouvintes aceitem como verdadei­ ro esse pronunciamento, porque se presume que a autori­ dade não se engana naqueles limites. Todavia, ainda que provindo de uma boa fonte, melhor o argumento em que forem acrescidas outras razões, explicações da própria au­ toridade. É claro que, se, v.g., um argumentante faz uma citação de Nelson Hungria, corroborando sua tese, tem ele argu­ mento magister dixit-, ainda que outros penalistas adotem posicionamento diverso do daquele professor, nunca se irá dizer que Hungria manifestara idéia absurda, descabida: o conteúdo do todo de sua obra faz presumir, com seguran­ ça, que jamais articularia idéia infundada sobre Direito penal, ainda que não se exponham os fundamentos que o levaram àquela conclusão, de que o argumentante se aproveita. Mas a questão se agrava quando o argumento é sub­ metido ao contraditório, quando a parte contrária combate o argumento ad verecundiam com a manifestação de outra autoridade, em que advoga tese diversa: Nelson Hungria defendera determinado posicionamento, mas Aníbal Bruno divergia, e sustentava tese distinta. Duas autoridades, dois


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posicionamentos diferentes13. Que fazer? Qual o melhor? Evidentemente, a disputa argumentativa, no uso de duas autoridades diversas, não se vai resumir às questões levan­ tadas nos tópicos anteriores; não se trata de uma compe­ tição de egos e medalhas, de qual dos dois é a maior au­ toridade. Isso porque o argumento magister dixit não se resume a apontar o credenciamento da autoridade citada; deve tam­ bém apresentar suas razões, e o argumentante tem de cuidar de fazê-lo. Se assim não fosse, as autoridades não seriam mestres, mas semideuses (como no exemplo da declaração de Sancho Pança quando governador). Pode ser, por exem­ plo, que um comentário de Nelson Hungria seja versado em artigo da Constituição anterior, ou de cânone legal já alterado, motivo pelo qual seu posicionamento deve ser re­ visto, não obstante sua autoridade permaneça. Quem cita a autoridade, evidentemente usa do fator persuasivo que tem a credencial e o valor do mestre ou ex­ perto citado, mas deve permitir ao auditório, ao menos o mais especializado, que possa acompanhar os motivos que levaram a autoridade a alcançar a conclusão que é utilizada como tese pelo argumentante. Esse percurso argumentativo da autoridade deve ser mostrado por dois motivos: o primeiro, permitir ao ouvinte atestar o raciocínio lógico da autoridade, validando sua con­ clusão. E o segundo é o próprio fator persuasivo do raciocí­ nio do experto: se é realmente uma autoridade, saberá fun­ damentar sua conclusão melhor que qualquer outro. Tal exposição dos fundamentos da autoridade não ne­ cessita ser exaustiva. Aliás, em se tratando de citação (e é esse o modo mais comum de uso do argumento ad vere­ cundiam), deve-se sempre ser breve. Nenhum ouvinte é per­ suadido pela argumentação deixada a cargo dos funda­ mentos da citação: o argumentante deve utilizar a citação

13. "Quod capita, tot sensus" - Quantas cabeças, tantas sentenças.


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magister dixit apenas como um de seus argumentos e apro­ veitar-se da presunção de razão da autoridade para resu­ mir seus fundamentos. Caso contrário, o argumento perde seu sentido, pois se tratará de mera repetição de raciocí­ nio alheio.

Questão da confiabilidade O experto E é confiável como uma fonte? A questão é bem esclarecedora, e o bom leitor já a in­ tuía, motivo pelo qual há pouco a dizer. A autoridade, o experto, tem características objetivas que o fazem figurar nessa condição, e isso já foi analisado. Mas parece indis­ pensável que a autoridade tenha retidão de caráter, e isso é uma característica subjetiva. A honestidade, não apenas no sentido de corrupção financeira, mas a honestidade m o­ ral, a retidão de manutenção da própria opinião e posi­ cionamento científicos são características importantes da autoridade. Se o argumento ad verecundiam é o argumento do hu­ milde, da veneração àquele que merece o status de autori­ dade, sem dúvida há entraves em se questionar de um m es­ tre sua confiabilidade, exatamente porque argumentante e auditório, para que bem funcione o argumento, respeitam ao máximo o especialista cujo posicionamento é invocado. Mefistófeles, em Fausto'1, de Goethe, adverte sobre a decep­ ção que pode haver diante do mestre: N em que a verdade alguém aos jovens leve, A que um fedelho desses não subscreve, Mas que, após anos, talvez se revele, Q uando a sente arranhar-lhe a própria pele, Julga que o próprio miolo a luz encete. Asserta então: "O Mestre era um pateta."

14. Fausto, p. 274.


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É, pois, da natureza do argumento magister dixit que não se questione a retidão de opinião daquele que é reconheci­ do como mestre. Mas ao argumentante, em sua dialética, desde que não recaia em ofensas pessoais, denominadas ad hominem, é absolutamente lícito questionar a respeito da confiabilidade da autoridade. Nullius addictus iurare in verba magistrP, dizem os que advogam a autonomia intelectual. É muito raro, mas às ve­ zes os mestres falham em sua personalidade16, e isso provoca uma mancha em sua reputação, que deixa dúvidas quanto à retidão do pronunciamento daquela autoridade. Um pronunciamento fundamentado de uma autorida­ de em determinada área do saber pode ocasionalmente não refratar seu verdadeiro conhecimento. A autoridade pode ceder a pressões das mais diversas, defender uma teoria que pouco conhece mas está na moda, ceder a uma amizade, a uma pressão política ou até, quem sabe, a uma oferta de pa­ gamento, por assim dizer irrecusável. Quando isso ocorre, a autoridade cai em descrédito, e assim o argumento perde seu valor. Quem se depara, por exemplo, com um parecer de um jurista, geralmente recor­ re à sua doutrina escrita, buscando saber se o posiciona­ mento sustentado no parecer é reflexo de sua doutrina, com coerência. Se não o for, diz-se que a autoridade tem forked tongue, língua bifurcada, a língua de cobra. A autoridade pode cair em contradição também quan­ do não se aprofunda no estudo da matéria sobre a qual se pronuncia, talvez por desídia, excesso de trabalho etc. As contradições são, sempre, causa de descrédito à fonte. Exem­ plo é a narrativa literária do julgamento de Jim Willians, no romance de Jon Berendt17. Em plenário, no quarto julgamen­ to do caso, o advogado Seiler ganha a causa desacreditando 15. "Ninguém é obrigado a jurar sobre as palavras de um mestre" - cita­ ção de Horácio. 16. "Nemo mortatium omnibus horis sapit" - Nenhum mortal é sensato o tempo todo. 17. M eia-noite no jardim do bem e do mal, p. 391.


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os peritos: "Seiler ridicularizou a promotoria pelas inconsis­ tências nos depoimentos dos peritos chamados por eles principalmente no do dr. Larry Howard, diretor do labora­ tório estadual. Num dos julgamentos, o dr. Howard tinha afirmado que Williams não poderia ter dado todos aqueles tiros em Hansford de detrás da escrivaninha; num outro, disse que Williams poderia ter feito isso. Em momentos di­ ferentes, Howard dissera que a cadeira de Danny Hansford ora caíra para trás, ora para o lado, ora para a frente [...]" Evidentemente, como já vimos, todo experto ou cien­ tista pode mudar sua opinião, valores e conceitos no decor­ rer de sua experiência, mas deve ser claro ao registrar essa transformação, como sendo sedimento de seu conhecimen­ to, e não sua destruição. A confiabilidade da fonte, então, aparece mais nas ca­ racterísticas subjetivas da autoridade, mas não deixa de ser quesito importante para a validade do bom argumento, des­ de que bem respeitados os estreitíssimos limites que a hon­ rada argumentação impõe às questões de cunho subjetivo18.

Questão da consistência A afirmação A está de acordo com a opinião de outros expertos? A ciência não se faz isolada, e a divergência é nas maté­ rias humanas algo corriqueiro, para o bem da argumenta­ ção. Todo pronunciamento é mais consistente quanto mais uníssono for em relação a outros do mesmo gabarito. Quan­ do se trata de uma matéria que dominamos, como o Direito, é fácil pesquisar e saber se o pronunciamento de uma auto­ ridade é convalidado por outras de saber igual ou maior. Unanimidade não pode haver; é rara e, como disse o dramaturgo..., burra. Mas a comparação do pronunciamen­ 18. Vide, no Capítulo XIII, falácia ad hominent e, no Capítulo X, argu­ mento ad honiinem.


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to da conclusão de uma autoridade com o de outras serve, no mínimo, para fomentar o debate, comparar pontos de divergência e criar um contra-argumento. Ou então validar ainda mais o posicionamento da autoridade. Quem se depara com um argumento ad verecundiam ar­ ticulado pela parte adversa deve sair em busca de outros que digam inversamente, sendo-lhe, por conseqüência, favorável. Aquele que tem a seu favor um bom argumento de au­ toridade, caso se depare com outra autoridade que advogue tese distinta, não está obrigado a citar, pois diminuiria a coerência de seu texto. Ademais, citar a doutrina contrária é trabalho da parte adversa, que deve achá-la e trabalhar com ela em seu proveito, caso contrário não haveria uma argumentação, mas certamente um texto apenas informati­ vo ou didático, ou a investigação científica. Quanto maior for a aclamação do mesmo princípio por várias autoridades, de maior força reveste-se o argumento; este, assim, é mais consistente quanto menos isolado vier. Questão das provas A assertiva A é baseada em provas? Para que um argumento ad verecundiam seja eficiente, deve também fazer prova material de suas conclusões. A prova, na metodologia jurídica, significa a citação de docu­ mentos que permitam ao leitor comprovar as fontes de todo o raciocínio desenvolvido. Assim, se faço uma citação de Magalhães Noronha, devo indicar com detalhes de onde a retirei: nome da obra, lugar da edição, nome da editora, ano da publicação, página em que se encontra no livro. So­ mente com isso permito que o leitor e a parte contrária fa­ çam prova, se quiserem, da veracidade daquilo que utilizei para comprovar o raciocínio1". 19. O uso de citações não-verdadeiras, mais do que repreensível, não é fenômeno recente. Sabe-se que no século V d.C. os imperadores romanos Teodósio II e Valentiniano III, em virtude das citações falsas que advogados le­ vavam ao juízo, constituíram a chamada Lei das Citações. Nas palavras de Mo-


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Do mesmo modo, se um perito criminal, que é autori­ dade em sua área de conhecimento, atesta que determinada substância que lhe fora enviada para exame é droga ilícita, deve guardar parte dessa substância para posterior contraprova. Permite, então, que seu parecer magister dixit seja sub­ metido ao devido questionamento. O trabalho probatório é, também, requisito do bom argumento de autoridade, para que se evite a falácia e o engodo. Neste último ponto, vale polemizar um pouco, assen­ tando-se que existem citações falsas, fruto de trabalho equivocado ou maldoso de alguns argumentantes. Essas citações podem se perpetuar pela desídia de argumentan­ tes posteriores de pesquisar a fonte primária do texto cita­ do já de segunda mão. Apenas para ilustrar como é sim­ ples fazer citações desprovidas de provas, veja-se como Luis Fernando Veríssimo20 satiriza essa situação na crôni­ ca "Citações": Nada com o um a boa citação para dar um toque de classe ao texto. Q ualquer texto. A citação é uma espécie de testem unho insuspeito que a gente invoca para reforçar ou, pelo m enos, para tornar mais respeitáveis - nossos ar­ gum entos. Principalm ente quando os nossos argum entos, com o diria Toynbee, "n ã o valem m eia bola de gude". Toynbee, é claro, nunca disse isto, mas esta é a vantagem da cita­ ção falsa. D á a im pressão de erudição m as na verdade dis­ pensa a erudição. N a frase de Sartre "A A parência precede

reira Alves, "essa constituição imperial criou um verdadeiro tribunal de m or­ tos, pois estabeleceu que somente poderiam ser invocados em juízo os escri­ tos de cinco jurisconsultos (Gaio, Papiniano, Ulpiano, Paulo e Modestino), bem como as opiniões dos autores citados por qualquer deles, desde que o original fosse trazido a juízo. No caso de divergência de opiniões, prevalecia a da maioria; se houvesse empate, preponderaria a opinião de Papiniano; e, caso, enfim, este, na última hipótese, não se tivesse manifestado, o juiz segui­ ria orientação que lhe parecesse melhor" (Direito romano, 13a ed., Rio de Ja­ neiro, Forense, 2002, p. 44, vol. 1). 20. "Citações". In: O rei do rock, p. 60.


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a Essência. A não ser nos casos em que isso não acontece. Sei lá."[...]

A arte do cronista serve para despertar a atenção a res­ peito de como a falta de acuidade à origem do texto citado pode ser prejudicial à confiabilidade da argumentação.

As perícias em geral As perícias em geral são modo de produção do argu­ mento ad verecundiam. O perito profere manifestação fun­ damentada a respeito da matéria que, presume-se, domina, aceitando-se daí como verdadeiras suas conclusões. Não obs­ tante, seu laudo deve trazer fundamentação suficiente para permitir contraditório, como bem assenta Zarzuela21, ao de­ finir laudo pericial em criminalística: Laudo pericial consiste na exposição minuciosa, cir­ cunstanciada, fundam entada e ordenada das apreciações e interpretações realizadas pelos peritos, com a porm enoriza­ da enum eração e caracterização dos elem entos materiais e n ­ contrados no local do fato, n o instrum ento do crime, na peça de exame e na pessoa física, viva ou morta. A perícia é uma modalidade de prova destinada a levar ao juiz elem entos instrutórios de ordem técnica, podendo consistir em uma d e­ claração de ciência, na afirm ação de um juízo ou em ambas as operações sim ultaneam ente.

Como modalidade de prova, as perícias em geral têm pouco interesse para um manual de argumentação. Apenas quando utilizadas em composição lingüística é que se trans­ formam em argumento, e assim servem as demais conside­ rações já expressas.

21. Laudo pericial, aspectos técnicos e jurídicos, p. 36.


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Os pareceres Com relação aos pareceres, já fizemos a eles várias alu­ sões, pois representam, no dia-a-dia forense, modo comum de utilização do argumento de autoridade. O parecer é a opinião do experto, aplicada. Deve ser fundamentada e contar com provas, confiabilidade e con­ sistência, como requisito de todos os argumentos de autori­ dade válidos, conforme já explanado nos tópicos anteriores. É usual que professores de Direito, em geral doutrinadores, sejam contratados pelas partes para proferirem pareceres em processos específicos. Assim, seu escrito transforma-se na aplicação da doutrina ao caso concreto. O parecer espelha-se na solução de um caso concreto, em geral mais complexo e intrincado. O consulente formu­ la perguntas, questões à autoridade parecerista, que, obje­ tivando responder a elas, estuda a questão em um prévio arrazoado. Então, um parecer com redação técnica é aquele que traça, em sua fundamentação, percurso que dá aporte às questões que ainda estão por ser respondidas. Assim, é necessário que o parecerista apresente seu currículo, se já não é reconhecidamente público (questão do experto); de­ monstre de início ou diluída em todo o texto sua experiên­ cia com o tema sobre o qual disserta (questão da área); ex­ ponha, em percurso lógico-argumentativo, todos os pontos sobre os quais se baseia sua opinião (questão das provas); confronte seu resultado com a doutrina de outros expertos (questão da consistência) e, principalmente, demonstre que seu posicionamento já fora adotado, por ele próprio, em ou­ tras ocasiões (questão da confiabilidade). Mas o consulente que encomenda parecer, pretenden­ do utilizá-lo como argumento de autoridade, obviamente conhece o sentido para o qual as respostas do parecer de­ vem apontar. Por isso, não é raro, para que não se diga que é extremamente usual, que as questões formuladas nos pa­ receres que têm por objetivo a argumentação magister dixit sejam todas perguntas retóricas, ou seja, aquelas cuja res­ posta, em linhas gerais, já é conhecida do inquiridor. Com


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respostas fundamentadas, que atendam aos quesitos do bom argumento ad verecundiam, o parecer transforma-se em ex­ celente argumento e passa a contar com as vantagens típi­ cas do magister dixit: a presunção de conhecimento (de ve­ racidade) e a presunção de imparcialidade. A presunção de imparcialidade do magister dixit perde terreno em alguns - alguns, diga-se bem - casos em que o próprio parecerista deixa de fundamentar para argumentar em sentido estrito22. Seu interesse ultrapassa o primordial (por­ que nunca o é puro) discurso científico, a fundamentação, para lançar-se a um trabalho puramente argumentativo, ou seja, centrado no próprio leitor. Nesse sentido, como já vi­ mos no Capítulo III, o parecerista abandona a exposição de seu próprio convencimento para expor as idéias que tenham maior efeito suasório em seu leitor específico, seja o imedia­ to (o consulente), seja, principalmente, o imediato (o juiz de direito ou a autoridade administrativa, no caso de pareceres formulados para serem juntados aos autos). Se esse desvirtuamento do parecer ocorrer, o argu­ mentante deverá estar alerta para perceber que, de imediato, ele passa a carecer da imparcialidade, o que representa uma das forças argumentativas do magister dixit. Afinal, diferen­ temente do que ocorre com a doutrina citada em uma peça copiada de um livro ou revista posta à publicação por puro interesse científico, o parecerista revela-se, nesses casos, como pessoa com um ponto de vista comprometido, já que defende um interesse. Não se pode dizer - como nunca se diz em matéria de argumentação - que o parecerista esteja pronto para mentir ou enganar, mas é certo que o ponto de vista comprometido com um interesse a ser defendido reti­ ra o pilar da imparcialidade, que é um (embora não o prin­ cipal) dos que sustenta o argumento ab auctoritatem2i. 22. Vide Capítulo III. 23. O ponto de vista comprometido, que corrompe a imparcialidade do parecer, pode acontecer também na esfera pública: um pronunciamento mi­ nisterial, quando prolatado por alguém que representa parte acusatória no processo, deve ser encarado como argumentação, se comprometido com os interesses da parte.


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Mas essa falta de imparcialidade não aparece por pre­ sunção, devendo ser comprovada por aquele que pretende demonstrar ou corromper a validade do pronunciamento magister dixit no parecer. Caso mais delicado ocorre quando o parecerista, em seu pronunciamento específico, contra­ diz posicionamento anteriormente escrito em sua doutrina. Quando o faz, corrompe a autoridade do pronunciamento quanto à confiabilidade (vide subtítulo retro), e, desse m o­ do, o parecer, como argumento, perde seu valor, deixa de persuadir. Alguns operadores do Direito, no lidar diuturno com os pareceres jurídicos encartados em autos de processo, apon­ tam para a possibilidade não rara de pronunciamentos em falta de coerência com a opinião prolatada na doutrina an­ terior do parecerista. Têm, para tanto, um argumento con­ vincente: o de que seria dispensável contratar o parecer de uma autoridade se ela já tivesse, em sua doutrina, exposto a tese que deve ser defendida, porquanto bastaria copiar, em citação, o excerto da doutrina pertinente ao caso concreto. Argumento convincente que realça o alerta para a validade dos pareceres, que muitas vezes inflam processos com con­ siderações tomadas pela parte. Todavia, é necessário muito cuidado ao tentar desvalo­ rizar-se uma autoridade, pois o dever de coerência constan­ te de opinião daquele que fundamenta (e não meramente argumenta) é observado pelos sábios. É indispensável averi­ guar se o caso concreto não traz peculiaridades que tomem diversa a opinião do parecerista em relação a uma hipótese genérica ou a outro caso concreto sobre o qual proferira pro­ nunciamento. Como é difícil, aliás impossível, que dois ca­ sos concretos sejam idênticos, suas diversidades podem im­ plicar conclusões muito diferentes, como comentaremos, depois, em relação aos argumentos de autoridade. Somente então, depois de se constatar que existe discrepância entre a opinião fora dos aspectos peculiares da discussão24 do caso 24. Cf. Eemeren: "The tu quoquc variant of the argumentum ad hominem can also cause complícations. This form of falllacy is, for example, committed


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concreto, é que se pode demonstrar que a autoridade, em seu parecer, utiliza falácia tu quoque, a língua bifurcada. O parecer é argumento de autoridade, na medida em que seu redator conhece a matéria sobre a qual se pronun­ cia, e esse conhecimento funciona como presunção de ve­ racidade da tese para a qual aponta. Tem sido largamente utilizado no cotidiano jurídico em nosso país, por isso vale absolutamente como técnica de persuasão. Entretanto, é necessário apontar para seus requisitos, como em todo ar­ gumento magister dixit.

Combatendo o argumento ad verecundiam Quando se estuda um tipo de argumento, deve-se co­ nhecer seus pontos fortes e fracos. Durante este capítulo, diluímos vários modos de desva­ lorizar esse tipo de argumento, principalmente afirmando que, no discurso judiciário, ele tem sofrido hipertrofia inde­ vida, ou seja, tem se dado maior crédito à fonte que aos fun­ damentos de sua afirmação, quando, evidentemente, deveria ser o contrário. Em resumo, dois caminhos distintos existem para des­ truir um argumento magister dixit. O primeiro deles é des­ virtuar a discussão da pessoa da autoridade para seus pró­ prios fundamentos: a autoridade não pode, apenas por seu conhecimento notório, livrar-se do ônus de fundamentar if one reject one's opponent's standpoint on the grounds that he held a different opinion at some time in the past. Yet no fallacy is committed by pointing out contradictions in the standpoints na arguments that the opponent has advanced in the course of the discussion. On the contrary, such criticism is highly relevant contribution to the resolution process. Admitting inconsistent statements within one and the same discussion makes it impossible to resolve the dispute. It is therefore necessary to differentiate betw een discrepancies inside and outside the discussion. Only in the second case can there be a tu quoque. Unfortunately, where exactly one discussion ends and the next begins is in real life sometimes hard to determine" (EEMEREN, F. H. e GROOTENSDORST, Rob. Argumentation, Communication and Faltacies: a Pragma-Dialectical Perspective, p. 114).


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todos os seus pareceres, sob pena de, por assim dizer, ser uma "autoridade arbitrária". E isso não se admite, ao m e­ nos na área científica. Não apenas no Direito elegem-se autoridades que pas­ sam a fazer pronunciamentos, os quais são supervalorizados. Com o "poder" da autoridade, muitos doutrinadores, cientistas, professores manifestam-se sem já terem de se preocupar em demonstrar os fundamentos de suas conclu­ sões. E mesmo assim persuadem, porque o pronunciamen­ to autoritário é a conseqüência do poder. Como gostamos de ilustrar25, lembramos a história de Carpaccio, contada por Luis Fernando Veríssimo. Carpaccio era um bobo da corte, de um reino medieval, famosíssimo por sua competência. Fazia rir aos bichos e às pedras, como se dizia. Tinha, por conta disso, todas as mordomias do reino a seus pés, talvez mais que o próprio rei. Certo dia, insatisfeito, expõe ao rei que ele, o bobo Carpaccio, pretende ser a própria majesta­ de, que estava cansado de ser bobo. Seguiram-se então, na pena de Verissimo, no diálogo entre o rei e o palhaço, estas ilustrativas palavras26: O rei ergueu-se e abriu os braços. - Eu estou lhe oferecendo um reino. O m eu reino. Com todas as vantagens... Carpaccio fez a sua cara de pouco-caso, fam osa em toda a Europa, que todos julgavam ser uma máscara côm ica e era a sua cara mais real. A boca parecia a de um grande peixe triste. - Q ue vantagens? - Riqueza, servos, mulheres. Um lugar na m esa com os nobres. Um lugar certo no céu. Por que mais alguém quer ser rei? - Para decidir. Para mudar as coisas, para decretar que pedra é bicho e bicho é pedra. Para tirar a H istória do nariz.

25. Veja as funções da ilustração, como dar concretude ao texto, no Ca­ pítulo IX. 26. "Bobos II". In: Outras do analista de Bagé, pp. 58-9.


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- Mas isso é a desvantagem do poder! - Isso é o poder. O resto até um bobo consegue, se viver bastante.

A autoridade, por maior que seja, não se pode acomo­ dar na presunção da boa fonte de seu pronunciamento. As­ sim adquire o poder e pode passar a dispensar razões necessárias a muitas de suas assertivas, ou, pior, pode ser tentada a inovar, sem humildade científica, a cada pronun­ ciamento seu (em hipérbole, a "dizer que pedra é bicho e bi­ cho é pedra", como na ilustração anterior). Por isso a possi­ bilidade de aquele que se deparar com o argumento ad ve­ recundiam encontrar uma falácia ab auctorictatem. O segundo modo de desvalorizar o argumento é bus­ car outras autoridades que desmintam a afirmação magister dixit que se pretende combater. Para isso, ao menos no que se refere à doutrina jurídica, é essencial a leitura exaustiva, valendo o alerta de Umberto Eco27: E isto a hu m ild ade cien tífica. Tod os podem e n sin a rnos alguma coisa. Ou talvez sejam os nós os esforçados q u an ­ do aprendem os algo de alguém não tão esforçado com o nós. Ou então, quem parece não valer grande coisa tem quali­ dades ocultas. O u ainda, quem não é bom para este o é para aquele. As razões são muitas. O fato é que precisam os ouvir com respeito a todos, sem por isso deixar de exprimir juízos de valor ou saber que aquele autor pensa de modo d iferente do nosso e está ideologicam ente distante de nós. Até nosso m ais feroz adversário pode sugerir-nos idéias. Isso pode depender do tem po, da estação ou da hora. [...] M as com este episódio aprendi que, quando querem os fa ­ zer um a pesquisa, não podem os desprezar nenhu m a fo n ­ te, e isto por princípio. A í está o que cham o hum ildade científica.

27. Como se fa z uma tese, cit., p. 112.

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Diante do argumento de autoridade, a melhor arma é a boa pesquisa e o aprofundamento na matéria, pois, se há opinião diversa, muito provavelmente outra autoridade a haverá articulado. O valor da manifestação magister dixit, como se pretende haver provado, é substancialmente forte na argumentação, mas não absoluto.

Nada contra os clássicos. Mas... Não se incomode o leitor com o excesso de críticas que são lançadas ao argumento de autoridade. Sempre se refor­ ça que não se diz que ele valha pouco, muito ao contrário: procuramos atribuir a ele seu devido valor, e para tanto é ne­ cessário critério. Pois agora, então, observa-se um erro mui­ to comum em nosso discurso forense, que merece alguma censura: o excessivo gosto por citações clássicas ou de au­ tores antigos, sem o devido critério. Imagine-se que Tício, hoje, vá ao médico. Este diz a Tício que precisará submeter-se a uma cirurgia, e, claro, nos­ so personagem não gosta nada da notícia. "Uma interven­ ção, em mim?", questiona ao médico, assustado. O doutor, então, percebendo o medo em seu paciente, olha-o fixamen­ te nos olhos e assenta: "Não se preocupe, Tício. Não é uma cirurgia arriscada. Nela utilizarei a melhor técnica cirúrgica, idêntica à que utilizavam os médicos do século XVII. Pode confiar." E de se achar que o médico quer matar Tício do cora­ ção, não? Como utilizar técnica do século XVII, há tanto ul­ trapassada? Tício gostaria de ouvir que nele fosse utilizada a técnica cirúrgica mais moderna, o último grito em tecnolo­ gia médica. Do mesmo modo, se Tício fosse à concessioná­ ria de veículos escolher seu "carro zero", certamente não gostaria de ouvir um vendedor dizer que seu carro novo tem a mesma tecnologia de motor que um veículo da década de 1960, por mais apaixonado que seja ele por um Ford V-8,


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desses que não se fazem mais. Em sua compra, Tício gosta­ ria de comprar o carro mais moderno. Natural. Pois o contexto jurídico - mudando o que deve ser mu­ dado - muitas vezes aproxima-se muito da nossa historinha do médico. Quantas vezes o advogado ou o juiz não gosta de citar clássicos, absolutamente desatualizados, como se neles houvesse assertivas pertinentes a nosso Direito atual. Citam-se excertos de autores que jamais conviveram com nosso sistema legislativo, grandes nomes de juristas que, a seu tempo (note: a seu tempo) foram vanguarda jurídica e hoje não são mais que história. Editoras entopem o merca­ do com reedições de obras escritas séculos atrás, sem ne­ nhum prefácio ou atualização que indique que aquela litera­ tura tem representatividade histórica no Direito, mas é ul­ trapassada. Os textos de algumas obras, chamadas clássicas, se não interpretados dentro de seu contexto temporal, transformam-se em literatura recheada de preconceitos e falta de técnica. Se o Direito é uma ciência, evolui e aprimora-se como as demais. O que há de mais moderno é mais aprimorado, o que não significa dizer que todo texto juridicamente novo seja uma maravilha. Veja-se: quando um estudante constrói um trabalho científico (dissertação de mestrado, tese de doutorado), sem­ pre faz um escorço histórico do instituto que deseja anali­ sar. E por que o faz? Para que possa citar cada autor que achou em sua pesquisa em seu contexto histórico, dando a ele seu devido valor. Se assim não o fizer, poderá cometer grandes equívocos científicos. Mas nosso tema, aqui, não é em regra o trabalho cien­ tífico, mas a argumentação em si. Esta raramente abre es­ paço para uma criteriosa evolução histórica, daí o risco de citar os clássicos. Não se pode formular como dogma a impossiblidade de que autores antigos ou clássicos venham a compor um discurso suasório, mas sua utilização como ar­ gumento de autoridade requer cuidados: que apareçam em seu contexto.


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Em outras palavras, na argumentação magister dixit uma citação atualizada pode valer muito mais que invocar lições que vêm fora de seu tempo. Como diz a máxima latina, "Amicus Plato, sed magis amica veritas"28.

28. Gosto de Platão, mas prefiro a verdade.


Capítulo VIII

Argumento por analogia: o uso da jurisprudência A regra da justiça impõe que se concedam soluções idênticas para casos essencialmente semelhantes. Mais persuasiva a analogia quanto mais estreita a proximidade entre o caso concreto e o paradigma.

A analogia e a ilustração O argumento por analogia é aquele em que se transita de um caso concreto a outro, arrazoando-se que, devido ao fato de serem ambos os casos semelhantes em alguns aspec­ tos, são também semelhantes em outros mais específicos1. Vejamos o exemplo abaixo, de texto de Chico Buarque2: Oh, pedaço de mim Oh, m etade exilada de mim Leva os teus sinais Que a sau dade d ói como um barco Q ue aos poucos descreve um arco E evita atracar no cais. Oh, pedaço de mim Oh, m etade arrancada de mim Leva o vulto teu Que a sau dade é o revés de um parto A saudade é arrumar o quarto Do filh o que já morreu. Oh, pedaço de mim Oh, m etade amputada de mim

1. Cf. WESTON, Anthony. Las claves, cit., p. 47. 2. Ópera do malandro, pp. 171-2.


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Leva o que há de ti Q ue a sau dade dói latejada É assim com o uma fisgada N o m em bro que já perdi.

Na conhecida letra, para enunciar a dor causada pela saudade, o autor utiliza metáforas e comparações, demons­ trando semelhanças entre aquele sentimento e as imagens por ele criadas. A dor da perda é muito bem revelada pela imagem daquele que arruma o quarto do filho que já morreu, ou da fisgada no membro que já perdi. Condições poéticas à parte, é certo que o enunciador tem expressivo recurso a seu favor, transmitindo sua mensagem com força que jamais alcançaria se não se utilizasse dessas imagens. Com as semelhanças havidas entre, de um lado, a sau­ dade e, de outro, as imagens ali destacadas, pode-se dizer que o autor persuade a respeito da intensidade da dor que sente, o que era, finalmente, sua intenção. Tal como no tex­ to abaixo (que tem cunho argumentativo), a imagem, cria­ da pela descrição lingüística, seduz muito mais que qualquer outra explicação que se possa conceber a respeito do tema que se desenvolve: Anoiteceu e faz frio. M erde, voilà Yhiver, é o verso que, segundo X enofonte, cabe dizer agora. Aprendi com ele que p alavrão em boca de m ulher é com o lesm a em corola de rosa. Sou mulher, logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poem a.’

O ser humano raciocina muito pela semelhança, pela analogia. As comparações são sempre constantes, na con­ versa do dia-a-dia, na exemplificação (ainda que o exemplo seja uma questão um pouco mais específica), e, nesse con­ texto, o argumento a simili, por analogia, assume papel re­ levante em qualquer discurso suasório. 3. TELLES, Lygia Fagundes. Antes do baile verde, p. 35.


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No contexto jurídico fazemos uma distinção entre a ana­ logia propriamente dita e o exemplo e a ilustração, sendo a primeira mais específica, tratada neste capítulo. No próximo, abordamos exemplo e ilustração, também relevantes. No discurso judiciário, o argumento por analogia assu­ me relevância ainda maior, porquanto tem-se como regra evidente a de que o fundamento da justiça é o de tratar de maneira idêntica situações essencialmente semelhantes.

Jurisprudência: analogia e autoridade A jurisprudência representa fonte do Direito, como construção contínua de entendimentos pelo Poder Judiciá­ rio. Sua utilidade repousa principalmente no princípio da eqüidade, porque a justiça deve transpor resultados equiva­ lentes a casos que, em essência, sejam semelhantes. O uso da jurisprudência transforma-se em argumento a simili (ou por analogia) na medida em que determinado julgado é utilizado como parâmetro ou paradigma para o re­ sultado que se pretende alcançar. Abaixo temos um exem­ plo desse tipo de argumento: Ao órgão acusatório, que é, por definição, parcial, não se pode dar o poder de, por intervenção única sua, determ i­ nar a prisão processual, pelo sim ples acréscim o de qualifica doras ao homicídio, antes de qualquer apreciação maior - e imparcial - do Poder Judiciário. N esse sentido, colocar-se ao talante apenas da acusa­ ção a capitulação legal, e, por via de conseqüência, chegar-se à prisão processual obrigatória, representa total ilegalidade. Por isso, as decisões reiteradas do Suprem o Tribunal Fede­ ral, no sentido de que a capitulação por crime hediondo não vincula a prisão processual, a exemplo do quanto assentou o ministro Celso de Mello, no recente julgam ento do H abeas Corpus nu80.719-4, que se recorta em trecho: "[...] Entendo - tal com o pude enfatizar na decisão que concedeu a medida liminar - que os fundam entos subjacen­ tes ao ato decisório em anado da ilustre magistrada da C o­


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marca de Ibiúna/SP, que decretou a prisão cautelar do ora paciente, conflitam com os estritos critérios jurisprudenciais consagrados pelo Suprem o Tribunal Federal, em tem a de prisão preventiva. Im pende assinalar, desde logo, que a configuração ju rí­ dica do delito de hom icídio qualificado com o crime h ed ion­ do não basta, só por si, para justificar a privação cautelar da liberdade individual do réu. O Suprem o Tribunal Federal, a esse propósito, tem ad ­ vertido que a natureza da infração penal não se revela cir­ cunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução crim inal in s­ taurada pelo Estado. Esse entendim ento vem sendo observado em sucessi­ vos julgam entos proferidos no âm bito desta Corte, ainda que o delito im putado ao réu seja legalm ente classificado com o crime hediondo (HC n? 80 .0 6 4 -S P , rei. Sepúlveda Pertence, R H C n.° 71.954-P A , rei. Min. Sepúlveda Pertence, RH C n? 79.200-BA , rei. Min. Sepúlveda Pertence) [...]." É reiterado o entendim ento, tanto no Suprem o quanto nesse Superior Tribunal, que a lei dos crim es hediondos não pode sobrepujar o princípio da presunção de inocência, sob pena de utilizar-se a capitulação da denúncia para, parafra­ seando o ministro Celso de Mello, presum ir-se a cu lpabilidade do réu, assim antecipando-lhe a prisão penal, o que seria construir, p er saltum , ilegal antecipação, por óbvio aleatória, do veredito do órgão com petente para julgar o m érito da ação, neste caso um Conselho de Sentença popular, que nem sequer está formado.

Recortando o julgado, o argumentante, sem necessitar enunciar - porque essa é a força do próprio argumento a simili -, requer a seu caso tratamento idêntico àquele que in­ voca como paradigma: se o ministro do STF, em julgamen­ to de um processo específico, decide que a capitulação legal não é suficiente para a decretação da prisão cautelar, esse princípio deve alcançar todos aqueles que se encontram nas mesmas condições, caso contrário o Direito se afastaria de seu ideal maior, a isonomía. Essa analogia é, portanto, implícita ao recorte da juris­ prudência na argumentação e muito segura, na medida em


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que não é coerente que, com um mesmo ordenamento ju ­ rídico a aplicar, situações idênticas sejam submetidas a tra­ tamentos diversos. Juridicamente, é claro, pode-se defen­ der que a independência funcional do julgador permite que ele faça de cada situação a interpretação que bem entenda, desde que devidamente arrazoada e, assim, justificável do ponto de vista do Direito e da persuasão racional. Mas o ar­ gumento da jurisprudência, que se recorre da similitude dos casos, vai além: o desejo, inatingível, da homogeneidade da aplicação do Direito, o que representa, antes de tudo, segu­ rança aos jurisdicionados. O anseio por essa segurança é reconhecido em nosso ordenamento jurídico, a partir da própria Constituição Federal, que prevê (art. 105, III, c) a solução, pelo Superior Tribunal, do dissídio pretoriano, ou seja, a divergência entre os tribunais. Mas a jurisprudência reveste-se também, em certa m e­ dida, da força da autoridade. Não a autoridade jurisdicional apenas, mas a autoridade científica, tal qual exposta na lição anterior, do argumento ad verecundiam. Ela tem também, como fator suasório, a presunção de que o relator do julga­ do invocado como paradigma bem conheça o Direito (jura novit curia) e, como conseqüência, tenha pouca probabili­ dade de construir um mau pronunciamento em questões jurídicas. Conforme se sabe, tem em tese maior efeito suasório um julgado de um tribunal superior que a decisão de um único magistrado de primeiro grau de jurisdição, porquan­ to presume-se (como ocorre quase sempre em matéria de argumentação) que o arcabouço científico-jurídico do mi­ nistro do Judiciário seja maior que o do magistrado em iní­ cio de carreira. Se a jurisprudência tem como um de seus prismas o argumento magister dixit, especialmente quando recortada dos tribunais superiores, está ela, como argumento, atrela­ da às condições de validade elencadas na lição anterior, para o pronunciamento ad verecundiam. Mas prevalece a analogia.


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Uso da jurisprudência: quantidade e qualidade Como ocorria com o argumento de autoridade, o uso do argumento a simili pode seguir regras para maior efi­ ciência. Cumpre esclarecer que essas regras, antes de bus­ carem a lógica formal, continuam na esteira do quanto nos propusemos desde o início deste trabalho: preocuparmonos com a persuasão do discurso. E o discurso persuasivo é o discurso sólido, aquele em que se afastam as falácias, os enganos, seguindo-se um percurso que, embora possa sem­ pre ser contestado, faz-se coerente. A analogia, conforme ensina Perelman4, estabelece uma proporção: a está para b, assim como c está para d. Essa pro­ porção é assimétrica, portanto distingue-se da matemática, em que são sempre estabelecidas proporções de simetria, de valores iguais, entre elementos homogêneos. Chamase, na lógica informal, foro a relação conhecida (entre c e d, no exemplo) e tema a relação menos conhecida, objeto da discussão. Pela assimetria dos valores existentes na proporção es­ tabelecida pela analogia (como relacionar, diretamente, para nos utilizarmos do primeiro exemplo deste capítulo, figuras tão díspares como a dor da saudade e uma fisgada no membro que já se perdeu?), requer esse tipo de argumentação uma série de idéias menores, que comprovem a proporção exis­ tente em campos diferentes5. Mesmo que alguns leigos possam sustentar o contrá­ rio, não existe em nossos foros dois processos, dois casos idênticos. Melhor para nós, operadores do Direito, pois se assim não fosse a inteligência humana seria dispensável 4. Cf. Lógica jurídica, pp. 176 ss. 5. "O que faz a originalidade da analogia e o que a distingue de uma identidade parcial, ou seja, da noção um tanto corriqueira de semelhança, é que em vez de ser uma relação de semelhança, ela é uma semelhança de relação. E isso não é um mero trocadilho, pois o tipo mais puro da analogia se encon­ tra numa proporção m atemática..." (CRAZALS, M. Apud PERELMAN, C. Tra­ tado, cit., p. 424).


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dos procedimentos, uma vez que o computador ocuparia o lugar do homem no mero processamento de dados. A essência da analogia é a aproximação desses valores díspares, para que seja eficiente, persuasiva ao interlocutor a proporção que se pretende fixar. Daí que a qualidade des­ sa comparação de distintos importa muito mais que sua quantidade. Quando tratamos, então, da citação da jurisprudência como argumento, temo-na por dois prismas diversos: se compreendida como persuasão ad verecundiam, como ex­ plicamos no momento oportuno, é muito valorosa que se­ jam, em uma argumentação, expostos vários julgados, de tribunais diversos, para demonstrar que um julgado, que se elege como opinião de autoridade, tem apoio em po­ sicionamento de autoridades diversas. Busca-se então a idéia de unanimidade do posicionamento defendido, na mesma medida em que se persuade o julgador, qualquer que seja, que decidir de forma diversa seria ir contra uma maioria, o que nunca é recomendável, ao menos no senso comum. Entretanto, ainda que se possa firmar o entendimen­ to de que é relevante encarar o uso da jurisprudência como argumento de autoridade, o excesso de julgados recorta­ dos em um discurso judiciário (como se vê em petições que abusam do utilíssimo recurso de repertório de julgados armazenados em CD-ROM) raramente contribui para a persuasão. Em um auditório mais selecionado, sabe-se que o trabalho intenso do Poder Judiciário produz decisões em grande número, e então não é bem a quantidade que representa fator de convencimento no recorte da juris­ prudência. Ela persuade pela autoridade do órgão prolator (tribu­ nal mais respeitado - como argumento de autoridade), por sua atualidade e pela proximidade entre foro e tema, em que estas últimas características (atualidade e proximidade) são valores intrínsecos ao argumento por analogia.


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Segue: valor e uso da jurisprudência Portanto, o melhor elemento do uso da jurisprudência é o nível de proximidade entre foro e tema, ou seja, entre o caso que se discute e a solução que a ele se pretende dar, refletida em um acórdão paradigma. Isso serve de alerta aos argumentantes mais afoitos, que muitas vezes constroem discursos escritos repletos de recortes de ementas, que pou­ co contribuem para a efetiva persuasão do destinatário. As ementas são resumo do julgado, que geralmente vêm em letras em destaque, nos acórdãos dos tribunais. Permi­ tem, e bem, a pesquisa para o interessado, mas raras vezes são eficientes no discurso argumentativo em si, salvo em ca­ sos especiais. Em geral a ementa de julgado toma-se recurso persuasivo em dois casos diversos: quando o julgador é lei­ go e não se interessa por entender mais que o perfunctório necessário para sua decisão (no caso de questões eminen­ temente jurídicas no tribunal do júri) ou quando a questão é tão incontroversa que não merece, na coerência do discur­ so, maior aprofundamento, reservando-se então mais espa­ ço para temas de menor certeza ao interlocutor. Mas um ponto discutível para aquele que usa a juris­ prudência é a questão de sua extensão. Se, pois, desacon­ selha-se o uso de meras ementas e recomenda-se grave­ mente a comprovação da estreita relação entre tema e foro, ou entre caso concreto e acórdão paradigma, entende-se que o julgado paradigma deva ser transcrito na íntegra, ou, ao menos, em longo trecho seu, para que se possa com­ preender a relação de paralelismo atinente a esse tipo de ar­ gumento. Essa idéia seria contraposta a uma grave recomen­ dação dos professores de redação, os quais sempre aconse­ lham a que se evitem longas transcrições. Realmente, qualquer transcrição ou citação ipsis litteris conta com mínima atenção do leitor. Todo interlocutor pre­ tende originalidade, e, por assim dizer, não gosta de ter o trabalho de ler (ou ouvir) aquilo que o autor/argumentante não teve o trabalho de elaborar, mas apenas de copiar.


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Imaginemos que um professor entre em sala de aula e diga aos seus alunos que, como seu livro-texto tem toda a matéria daquele dia exposta em detalhes, melhor do que ele poderia recriar em nova elaboração, poupar-se-á de dar uma aula convencional e passará, durante cinqüenta minu­ tos, a ler o livro de sua autoria, conclamando a atenção dos estudantes. O que estes fariam? Certamente se distrairiam ou abandonariam a aula. Embora o conteúdo do livro seja o mesmo ou até melhor do que aquele que o professor pode­ ria recriar em aula, a leitura da transcrição é desinteressan­ te. Por isso toda citação longa é pouco recomendável. Todo ouvinte ou leitor merece a cortesia da originalidade. Dosar a citação na jurisprudência é mais um trabalho de coerência argumentativa. Se muito curta, ela perde seu valor de analogia e não persuade o interlocutor. Se muito longa, desestimula a leitura ou a atenção do ouvinte, e, por mais detalhada que seja, cairá no vazio (muito provavel­ mente, no texto escrito, o leitor não terá o menor escrúpulo de pulá-la, partindo para o próximo texto). O mais recomendável, no uso da jurisprudência, é que se escolha o acórdão paradigma e este seja transcrito em detalhes, o quanto for imprescindível para a comprovação do paralelismo. Mede-se essa necessidade pelo nível de aproveitamento que as idéias copiadas têm no próprio dis­ curso do argumentante, antes ou depois da citação.

Combatendo o argumento de analogia Para combater o uso da analogia deve-se desconstituir ao ouvinte o paralelismo entre foro e tema que a parte con­ trária apresenta. Pode-se assim proceder ao cobrar-se da parte contrária demonstração eficiente do paralelismo que pretende com­ provar. Quem recorta jurisprudência em ementas raramen­ te faz a proximidade suficiente que devem ter caso e para­ digma para que se aceite o julgado. Todavia, essa ausência


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de requisitos suficientes tem de ser mostrada àquele que deve ser persuadido, caso contrário, por inércia da argu­ mentação oposta, a analogia acaba se perfazendo em efi­ ciência. Também é possível, em busca da desconstituição da­ quele paralelismo, demonstrar cabalmente a própria dispa­ ridade entre foro e tema. E isso não é nada raro: há excesso de recortes de julgados que se aproximam tão pouco do efe­ tivo conteúdo do argumentante que não é difícil demons­ trar que há um mero tangenciamento ou até mesmo contra­ dição entre o julgado citado e a tese que se pretende fazer prevalecer. Se, por exemplo, um autor recorta uma juris­ prudência que diz: "Age em estado de necessidade quem, sem maus antecedentes, necessitando de calçados, subtrai um par em estabelecimento comercial"6, traz efetivamente poucos dados para permitir a analogia, pois não informa se o necessitar de calçados do julgado significa não ter o que cal­ çar ou então necessitar de calçados mais novos, em melhores condições. Se o julgado, na íntegra, esclareceu ser lícita a primeira interpretação e o retor pretendia comprovar a se­ gunda (calçados mais novos), evidentemente estabeleceu falha em sua argumentação. O último meio de se combater o argumento a simili é achar outra analogia que possa fazer frente à primeira. No exemplo da jurisprudência, vários julgados existem, defen­ dendo posicionamentos díspares, e os bons repertórios já preparam suas antíteses. É meio desgastado, porém útil, in­ dicando que também deva ser hora de realçar o aspecto a verecundiam de que se reveste a jurisprudência.

6. TACrim - SP - Ap. Crim. Rei. Nelson Schiesari - JUTACRIM 68/387.


Capítulo IX

Exemplo, figuratividade e ilustração do discurso O recurso à figuratividade (exemplos e ilustrações) pode ser fator de eficiente aproximação ao ouvinte, desde que conhecidos seus limites na progressão argumentativa. Uma figura inserta no discurso pode ficar muito mais pre­ sente ao interlocutor que um conceito ou uma progressão ló­ gica alinhavada como argumento.

O exemplo O argumento pelo exemplo é largamente conhecido. É comum que, nas discussões que mais envolvem o senso co­ mum, os discursantes procurem exemplos. Certa vez um alu­ no bem observou: "Preste atenção às conversas que saem num bar, quando os argüentes já têm o pensamento turba­ do pelo álcool; o que mais se ouve, nas exaltadas argumen­ tações, é o famoso 'por exemplo...'" Os quase ébrios retores de botequim sabem, ou ao menos intuem, que o exemplo serve para confirmar uma regra e é efetivamente um excelente recurso para o con­ vencimento, ainda que naquele ambiente esse resultado seja alcançado mais pelo tom de voz e pela disposição do ouvinte de manter ou não amigável o necessário diálogo. Mas o exemplo, bem colocado, funciona em grandes ar­ gumentações, como se pode ler no texto de Bernardino Gonzaga1: Ora, a Inquisição equiparou-se a uma Justiça Penal, de sorte que naturalm ente adotou os m odelos que vigiam nos tribunais laicos. Eram m étodos processuais que mereciam total beneplácito dos mais renom ados juristas e que estavam

1. A inquisição em seu mundo, pp. 120-1.


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de acordo com os costumes. O s hom ens que com punham a Igreja eram hom ens daquele tempo e não podiam deixar de subm eter-se às suas influências. [...] Em todo o desenvolvim ento da hum anidade, até m u i­ to recen tem en te, as práticas repressivas sem pre foram s e ­ veríssim as. C risto m orreu entre dois ladrões. Ao penalista não passa d espercebid o o fato e que dois hom ens, um dos quais aliás na últim a hora m ostrou ter b oa índole, so fre­ ram o trem end o castigo da crucifixão, apenas por serem ladrões. O procedim ento dos tribunais inquisitoriais é, para a mentalidade atual, inaceitável. Mas, apesar disso, represen­ tou um abrandam ento perante o que se passava nos seus congêneres do Estado. N ão podem os julgar o que eles fize­ ram sem focalizá-los com o órgãos condizentes com certo teor de vida, investidos de uma m issão sobrenatural e social a cumprir, que se ocupavam de crimes a seus olhos gravíssi­ mos e que terão agido, em regra, com zelo, equilíbrio e h o ­ nestidade.

A tese do autor, grosso modo, é a de que, se entende­ mos os procedimentos inquisitoriais hoje como inaceitáveis do ponto de vista penal e processual, em sua época eles re­ presentavam abrandamento da crueldade. Para isso, traz como forte argumento, maior, o fato de que os outros pro­ cedimentos criminais, até o fim da Idade Média, eram ain­ da mais draconianos. Na intenção de confirmar essa regra, apresenta um caso particular, a crucifixão de Cristo, ao lado de dois bandidos. Cristo não aparece, ali, como modelo de conduta, porque não é esse o realce que faz o autor. Mas utiliza-se de fato, de conhecimento, pode-se dizer, de todo o público a que se destina o livro, ou seja, o bom ladrão e a grave pena que re­ cebera. A regra é confirmada: não se pode dizer que o pro­ cesso penal era brando e racional sequer sob as luzes do Império Romano, tendo em vista a reprimenda impingida aos ladrões: a morte com sofrimento. O exemplo confirma a regra que se pretende provar. Se o exemplo encontra imediato feedback no leitor, como


EXEMPLO, F1GURAT1VIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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no caso da leitura do Evangelho, tanto melhor, porquan­ to sua aceitação (se perfeito o exemplo) é ainda mais imediata. Exemplo é espécie de argumento que vai do fato à re­ gra2. E, então, modo de argumentação diferente da analogia, porquanto esta compara dois casos para destes extrair uma pretensão ou regra final. O exemplo pode servir ora ape­ nas como uma ilustração - como diremos mais adiante -, ora como efetivo meio de se comprovar regra útil ao discurso. Para que um argumento desse tipo efetivamente com­ prove a regra ao leitor, é necessário que ele cumpra alguns requisitos.

Requisitos do exemplo O exemplo exige que exista falta de consenso entre a regra que se pretende comprovar, caso contrário deixa de ser exemplo para ser mera ilustração, embora a linguagem corriqueira chame ambos pelo mesmo nome. Assim como a ilustração, o exemplo é figurativo1, ou seja, apresenta um fato concreto e não apenas a relação en­ tre conceitos. Por isso diz-se que é argumento que vai do fato à regra. Na denominação de Perelman, elemento lin­ güístico que fundamenta a estrutura do real. A questão mais natural que se coloca a respeito do exemplo é se ele pode mesmo confirmar a regra. As ciên­ cias geralmente procuram, antes de formular uma regra qualquer, pescar uma série de exemplos distintos, para que se possa buscar uma generalização que evite a falácia. Veja-se como é formulado o exemplo no texto abaixo, co­ nhecida (e brilhante) argumentação de Luis Fernando Verissimo4:

2. Cf. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica, pp. 181 ss. 3. Vide Capítulo V. 4. "O gigolô das palavras". In: O nariz e outras histórias, p. 77.


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Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um m eio de com unicação e que deve ser julgada exclusivamente com o tal. Respeitadas algumas regras básicas da gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispen­ sáveis. A sintaxe é um a questão de uso, não de princípios. E s­ crever bem é escrever claro, não necessariam ente certo. Por exemplo: dizer escrever claro não é certo, m as é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover... Mas aí entram os na área do ta ­ lento, que tam bém não tem nada a ver com gramática.) A gramática é o esqueleto da língua. Só predom ina nas línguas mortas, e a í é de interesse restrito a necrólogos e professo­ res de Latim, gente em geral pouco com unicativa. A quela som bria gravidade qu e a gente nota nas fotog rafias em grupo dos m em ­ bros da A cadem ia Brasileira de Letras é de reprovação pelo P or­ tuguês ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e e s­ crever sua autópsia definitiva.

Verissimo aproveita o consenso de que a gramática é o esqueleto da língua (argumento de senso comum) para des­ virtuar a argumentação: o esqueleto, como imagem de estru­ tura, passa a ser imagem de morte, pois só predomina em línguas mortas5. Assim chega a seu exemplo principal, que se desenvolve contrario sensu, a confirmar sua regra: gramática não é essencial à comunicação. Exemplo: professores de latim são excelentes gramáticos, mas péssimos comunicadores. Ao utilizar o exemplo dos professores de latim, o enun­ ciador confirma sua regra. Claro que o tom humorístico do texto permite-lhe deixar de apresentar dados mais concre­ tos, que mais pertenceriam à ciência, como uma pesquisa que demonstrasse que efetivamente os professores de la­ tim mal se comunicam, mas o fato é que o exemplo foi persuasivo6.

5. Vide Capítulo XIII, em comentário sobre o mesmo texto, em relação à argumentação sofismática. 6. A seguir, Verissimo coloca-se também como exemplo, dessa vez po­ sitivo, a confirmar a m esm a tese: "... E adverti que minha implicância com a


EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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Todavia, o exemplo que efetivamente confirma a regra, no discurso judiciário, deve ser mais que uma ilustração, que uma observação da realidade fugaz, hipótese em que será facilmente desconstituído. Para que o exemplo funcio­ ne como fator de persuasão eficiente, a principal recomen­ dação é a de que venha seguido de vários outros, que pos­ sam confirmar a mesma regra. Nesse sentido, manifesta-se Perelman7: Q uando são evocados fenôm enos particulares uns em seguida dos outros, m orm ente se oferecem alguma sim ilitude, ficarem os inclinados a ver neles exemplos, ao passo que a descrição de um fenôm eno isolado seria tom ada m ais por um a simples informação.

Recomenda-se gravemente que se articule mais de um exemplo na argumentação, para que ele não se aproxime da mera ilustração, e possa vir a confirmar uma regra. Sem apresentar mais de um exemplo, como ressalta Weston8, o exemplo pode ser apenas a exceção que, como se diz no sen­ so comum, existe para que a regra seja confirmada. E desse modo o exemplo surte efeito reverso. O exemplo, como recurso à figuratividade, deve ser curto, pois se apresenta, como já tratamos em lição anterior, tal qual fuga ao eixo temático da lógica argumentativa, ain­ da que vá reforçá-la. No exemplo longo, o interlocutor pode, ao procurar compreender seus detalhes, perder a idéia de sua pertinência, no caso a relação entre a ilustração e a idéia gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas - isso eu disse - vejam vocês, a intimidade com a gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria." 7. Tratado da argumentação, cit., p. 400. 8. "U m exemplo simples pode ser usado, às vezes, para uma ilustra­ ção. O único exemplo de Julieta pode ilustrar os matrimônios júvenes. Mas só um exemplo não oferece praticam ente nenhum apoio para uma generali­ zação. Pode ser um caso atípico, a 'exceção que confirma a regra," (Las cla­ ves, cit., p. 35).


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que se pretende provar. A coerência é preservada na argu­ mentação que reforça a relação entre exemplo e regra, pois assim o orador ilustra seu texto com aquilo que realmente colabora para a persuasão. Veja o discurso abaixo, retirado de sustentação em plenário: A acusação afirm a que o réu deve ser responsabilizado pelo hom icídio, adm itindo que sua participação foi apenas a de vender a arm a ao verdadeiro executor. Afirm a que pouco im porta se conh ecia o motivo para o qual a arm a s e ­ ria usada, já que a venda era ilegal. Para tanto, apresen ta o artigo 13 do Código Penal, con sidera-se causa a ação ou o m is­ são sem a qu al o resultado não teria ocorrido. Sustenta a acu ­ sação, então, que, se a arma não fosse vendida ao executor, ele não poderia m atar a vítima, e portanto o resultado não teria ocorrido. A regra que a acusação pretende fazer valer não é acei­ tável. Ora, se ela fosse verdadeira, um motorista de ônibus que transporta, dentre outras dezenas de passageiros, um executor de um delito, sem saber de quem se trata, deveria responder pelo evento, pois sem o ônibus o facínora não chegaria ao local do crime e assim não haveria o resultado. Claro, é necessário querer aquele resultado, conh ecê-lo ou saber de suas possi­ bilidades, ou então se regressará ao infinito.

O exemplo utilizado (o caso do motorista de ônibus) é curto, mas confirma a regra porque é retomado pelos ele­ mentos temáticos do discurso argumentativo, que a exibem com toda a sua pertinência. É interessante notar no texto acima outro ponto impor­ tante da argumentação pelo exemplo: percebe-se que o ar­ gumentante utilizou um caso particular, mas não um fato; era algo hipotético, fruto de sua criação. Ora, para que se possa confirmar uma regra, o mínimo que se espera é que o caso particular apresentado seja verídico. O caso anterior não era verídico, mas funcionou no exemplo porque era ex­ tremamente verossímil, ou seja, trata-se de seqüência de fatos tão comum e corriqueira que o ouvinte não lhe cria a menor dúvida.


EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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Melhor o exemplo quando feito por fato notório. Nada pior que um exemplo de que o interlocutor duvide. O fa­ moso "já aconteceu uma vez comigo" é volátil e banal como (agora sim) o papo de botequim que iniciou este capítulo. Os bons argumentos são notórios e eruditos, fatos de do­ mínio público ou ao menos do público a que o texto é dirigido. Novamente, a intertextualidade. Quando, no texto aqui recortado, ao dissertar a respei­ to da Inquisição o professor citou o calvário de Cristo, não se pode dizer que algum leitor ignore o exemplo, e por isso ele é efetivamente persuasivo. Fatos históricos dão ótimos exemplos, assim como elementos da realidade atual: o últi­ mo crime amplamente noticiado, a situação atual dos paí­ ses mais pobres, o golpe militar do país latino ocorrido na última semana. O exemplo isolado e o exemplo subjetivo, que não ul­ trapasse os limites daquele que o profere, raramente confir­ mam uma regra.

Representatividade do exemplo A questão principal do argumento pelo exemplo é sa­ ber se ele é capaz de confirmar a regra que se propõe. Se proponho como exemplo, real, o fato de fulano de tal, pobre e analfabeto, ter se tornado milionário achando um bilhete de loteria premiado ou sendo descoberto pela mídia e se transformado em um popstar, não posso apresentar a regra segura de que nossa sociedade dá a todos a oportunidade de alcançar excelente padrão de vida. Posso, isso sim, con­ firmar com esse exemplo que alguns têm muita sorte, ou que há casos interessantíssimos de grandes fortunas que surgi­ ram do zero. Não mais que isso. Pois todo exemplo tem seu nível de representativida­ de. Ele não pode extrapolar seus limites, ou seja, o alcance de determinada regra, pois, se assim o fizer, atingirá a falácia, podendo chegar às raias do absurdo ou do preconceito.


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Nesse contexto, o grave conselho de que o exemplo, salvo a hipótese de grande representatividade, não deve vir isolado de outros tipos de argumentos que confirmem a pro­ posição trazida, a não ser se o nível de coerência o permitir, como temos sempre revelado, concedendo-se menor im ­ portância à regra proposta.

Falando em ilustração O ouvinte trabalha com imaginação e, já dissemos, com um ritmo de interpretação dos elementos a ele lançados. Toda atenção, em certo momento, esvai-se, pois o homem tem como uma de suas misérias o cansaço e a conseqüente distração. O que se faz por demais abstrato cansa e dificul­ ta o entendimento9. O professor que leciona a matéria sabe que seu aluno se distrai depois de certo tempo de explicação, e o advogado do tribunal do júri tem conhecimento de que as duas horas que tem para a primeira sustentação não podem ser gastas integralmente na explicação do processo; é necessário va­ riar, distrair. Um dos modos de rapidamente distrair o auditório ou o leitor é a ilustração. A ilustração é a parte figurativa da ar­ gumentação que, sem se afastar do tema defendido, porque é intrinsecamente ligado a ele, fortalece-o, sem que necessa­ riamente comprove uma regra. Vejamos como isso ocorre em Machado de Assis10: Curto, mas alegre Fiquei prostrado. E contudo era eu, nesse tem po, um fiel com pêndio de trivialidade e presunção. Jam ais o proble­ ma da vida e da m orte me oprimira o cérebro; nunca até esse

9. “Cito rumpes arcum, semper si tenum habueris" - Logo romperás o arco, se o mantiveres sempre teso. 10. Memórias póstumas de Brás Cubas. Capítulo XXIV, p. 62.


EXEMPLO, F1GURATMDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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dia m e debruçara sobre o abism o do Inexplicável. Faltavame o essencial, que é o estímulo, a vertigem... Para lhes dizer a verdade toda, eu refletia as opiniões de um cabeleireiro, que achei em M ódena, e que se distinguia por não as ter absolutam ente. Era a flor dos cabeleirei­ ros; por mais demorada que fosse a operação do toucado, não enfadava nunca. Ele intercalava as penteadelas com muitos m otes e pulhas, cheios de um pico, de um sabor... Não tinha outra filosofia. N em eu.

Brás Cubas quer demonstrar a seu leitor que jamais se preocupara com a morte, porque lhe faltava o estímulo. Até aquele momento, não pensava esse ilustre persona­ gem em questões filosóficas. Poderia descrever amplamente essa situação de ceticismo ou despreocupação com várias palavras, mas preferiu uma imagem. Descrevendo a figura do cabeleireiro de Módena e sua ocupação estrita com o trabalho, a ilustração transmitiu (está certo que com a arte descritiva machadiana), também como em uma analogia bastante imperfeita, mas muito eficiente, a pouca inquie­ tação do personagem com a morte. Era esse o objetivo do texto. No discurso machadiano, a imagem do cabeleireiro de Módena teve, então, dupla função: a didática, de facilitar o entendimento, o que traz por conseqüência direta o pou­ par de outras explicações mais enfadonhas, caso a im a­ gem não ficasse arraigada diretamente no leitor; e a se­ gunda função, também muito comum à figuratiuidade do discurso - a própria distração do leitor, que subjetivamente tem muito maior estímulo a imaginar a peculiar figura do cabeleireiro que a receber explicações objetivas ou técni­ cas sobre o estado de espírito do cético narrador-personagem. Aliás, essas duas características refratam-se no pró­ prio título do capítulo, denominado "Curto, mas alegre". Curto porque a imagem do cabeleireiro tornou possível melhor coerência, dispensando o narrador de dizer mais a respeito de seu estado à época, e alegre porque, efetiva­ mente, sabia ser inesperada e, assim, digna de humor a fi­


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gura de um barbeiro discreto e sem opiniões, o que é de­ veras raríssimo. Talvez o mais importante de se perceber em relação à figuratividade ou ilustração do discurso é que ela, apesar de assemelhar-se ao exemplo e à analogia, que são argu­ mentos mais complexos, não tem as mesmas pretensões. O exemplo do barbeiro lacônico de Brás Cubas não compro­ vou, à evidência, que os barbeiros são pessoas que têm pouca opinião a respeito do mundo, pois a generalização era impossível. Não era, portanto, exemplo no sentido es­ trito que a argumentação lhe confere, mas mera imagem. Todavia, de um ponto de vista mais abrangente, a impor­ tância daquela imagem no discurso pode ser por vezes maior que a de um exemplo ou analogia perfeita, sempre em estrita dependência com o leitor e o momento em que é produzido.

Ilustração e argumento A importância didática e, por assim dizer, lúdica da ilus­ tração, como vimos no exemplo de Machado, também está presente na argumentação. Mas a boa ilustração assume im­ portância ainda maior quando utilizada com senso de opor­ tunidade. Vejamos o fragmento de Juan Luis Lorda11: Em outras épocas, especialm ente na im ediatam ente anterior à nossa, durante a Revolução Industrial, muitos trataram a natureza com o se pudessem explorá-la indefini­ dam ente, com o se não se gastasse ou não se estragasse. Esta m entalidade que ainda está espalhada na prática, e m ­ bora não tenh a tantas m anifestações externas, tende a c o n ­ siderar a natureza com o res nullius, isto é, com o propriedade de ninguém; e relaciona-se com as coisas com uma avidez sem medida, tal como uma criança se relaciona com um bolo de

chocolate. 11. M oral: a arte de viver, p. 98.


EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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Na comparação estabelecida pelo autor, a imagem do homem que se relaciona com a natureza como uma criança se relaciona com um bolo de chocolate ultrapassa os limites da compreensão e do divertimento. O leitor do texto já havia, obviamente, compreendido que o autor discursava sobre a consciência ecológica, ou mais propriamente sobre o trato do homem com a natureza, o respeito. A necessidade de freio ã avidez na relação homem-natureza for reforçada, e muito, pela imagem da criança que come o bolo, indiscrimi­ nadamente, com gula e sem pensar em guardar para de­ pois. Não precisou entrar nesses detalhes, aliás, porque tudo ficou subentendido na força da imagem. Essa ilustração, curta, tem força evidentemente persuasiva. Sua função no texto, mais do que ser claro ou quebrar o ritmo filosófico que se desenvolvia, é aumentar a presença dos argumentos na consciência do ouvinte ou leitor. Percebe-se que, sem o acompanhamento dos argumentos temáticos que já se haviam desenvolvido, a comparação não surtiria nenhum efeito, até porque sequer seria compreendida. Mas a imagem que o ouvinte faz da criança e do bolo, após entender no dis­ curso a crítica sobre a relação homem-natureza, retoma todos os argumentos anteriores de modo breve e claro. Se uma pessoa fosse colocada para ouvir o texto intei­ ro de Lorda, talvez não se lembrasse do teor de todos os ar­ gumentos temáticos, mas certamente repetiria a figura, a imagem a que foi convidado a construir em sua mente a criança e o bolo. Não se trata apenas de um truque de memória, mas um efeito persuasivo: guardando a ilustração, no momento em que ela foi transmitida, o ouvinte capta todos os seus elementos periféricos, o discurso que o levará à aceitação da conclusão que se lhe pretende impingir. A ilustração, repita-se, não é tão criteriosa como o exemplo, porque não pretende credibilidade ou representatividade, mas apenas alcançar o leitor para que ele aceite com maior ênfase uma idéia que conta com maior consen­ so, mas necessita ser reforçada e compreendida. E a com­ preensão é um elemento essencial no discurso, porque, en­


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quanto não existe o entendimento de uma idéia que deva ser fixada como premissa, o argumentante não pode passar ao elemento efetivamente persuasivo, que atinge aquilo que em seu discurso goza de menor consenso. Daí que a ilustração é um excelente meio de estabele­ cimento de coerência no texto argumentativo. Ela prepara o ouvinte para a apreensão de outros argumentos mais con­ vincentes, e o interlocutor pode trazê-la à tona toda vez que for preciso para estabelecer a imprescindível ligação com os elementos que compõem seu percurso. Observemos como, neste texto de Einsteín12, o elemento figurativo é im­ prescindível para a compreensão do discurso que ele inicia a desenvolver: O que mostra o relógio? O s conceitos físicos são criações livres do espírito h u ­ m ano e não são, com o se poderia acreditar, unicam ente d e ­ term inados pelo m undo exterior. N o esforço que fazem os para com preender o mundo, assem elham o-nos um pouco ao hom em que tenta com preender o m ecanism o de um re­ lógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em m ovi­ m ento, ouve o tique-taque, mas não tem m eio algum de abrir o relógio. Se for engenhoso, poderá formar alguma imagem do m ecanism o, que ele tom ará responsável por tudo o que observa, m as jam ais estará seguro de que sua im agem seja a única capaz de explicar suas observações. Jam ais terá condições de com parar sua imagem com o m ecanism o real, e não pode im aginar a possibilidade ou a significação de tal comparação.

O discurso inicia-se com a comparação com a imagem do relógio, e nele continua, como figura essencial para sua compreensão. E patente que apenas a comparação não faz com que o leitor aceite as idéias elencadas, que continuam muito além do fragmento recortado, mas sem elas o inter­ 12. EINSTEÍN, Albert e INFELD, Léopold. In: IDE, Pascal. A arte de pen­ sar, p p .143-4.


EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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locutor não atingiria o leitor do modo necessário para po­ der dar continuidade a seu discurso, sem lançar mão de ex­ plicações mais longas e, talvez, muito menos persuasivas. Quem desperdiça o efeito suasório das imagens abre mão de grande parte da conquista de adesão de espíritos que é pretendida na argumentação. Os paradoxos, as antíteses, as comparações, as sinestesias são recursos corriqueiros na argumentação, que têm valor ilustrativo evidente e aproxi­ mam o texto da realidade do leitor, fazendo-o compreen­ der e aceitar o que lhe está sendo proposto. Nos discursos orais, os momentos de ilustração, como em uma compara­ ção, servem ao interlocutor em grande medida, pois é prin­ cipalmente ao ouvir a ilustração que o ouvinte mais mani­ festa, em sua expressão corporal, o nível de aceitação do quanto lhe está sendo transmitido: ri, assente com a cabe­ ça, abre mais os olhos ou permanece impassível. Esta últi­ ma reação, claro, é mau sinal. De qualquer modo, aquele que argumenta deve levar em consideração que tem a seu alcance opções expressivas di­ ferentes. Tais opções passam pela escolha das ilustrações do texto, das diversas maneiras de se expor uma mesma idéia, de modo mais ou menos concreto, mais ou menos próximo da mente de cada leitor, de cada ouvinte. Essas opções de expressão refletem-se tanto na importância da ilustração (efeito da concretude)13 quanto na possibilidade de varia­

13. Sobre o tema, comenta Elisa Guimarães: "O pressuposto de que há duas maneiras básicas e equivalentes de dizer as coisas - uma própria e outra figurada - levou a análise retórica a uma visão paradigmática do sentido figu­ rado, pois este resultaria da substituição de dois significantes entre si, no caso das figuras. O problema das opções expressivas era ponto importante para a retórica e dizia respeito a um princípio mais geral compreendido no conceito aptum, ou, na forma grega, prepon, isto é, a virtude de harmonizar as partes de um todo, conferindo-lhes unidade. Por esse princípio, as várias for­ mas de linguagem deveriam estar de acordo com as diferentes situações em que são empregadas: pessoa, lugar, gênero literário etc. Daí a necessidade de se ter à disposição um léxico amplo e diferenciado para atender aos múltiplos contextos" ("Figuras de retórica e argumentação". In: Retóricas de ontem e de hoje, p. 151).


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ção semântica, com o acesso a um léxico diferenciado e cri­ terioso, o que é tema do Capítulo XI.

Mau uso da ilustração A ilustração representa o recurso à figuratividade, em que não se comprova uma regra específica, mas faz-se pa­ ridade entre o que existe de temático - as idéias defendidas - e as figuras nela enunciadas. Ela é importante, mas seu uso é também restrito. Não se pode abusar da ilustração como não se pode abusar de nenhum argumento. Novamente, repetimos a regra que vale para todos eles: a ilustração deve ser consciente, por isso a estudamos. Em outras palavras, o discursante deve utilizar a ilustração respeitando suas limitações, conhecendo seu verdadeiro alcance. O erro mais comum no mau uso da ilustração é ser ela empregada a título de argumento ad exempla. Neste tópico, ao início da explanação sobre argumento pelo exemplo, fezse claro que o requisito do exemplo é que ele procure confir­ mar uma regra sobre a qual não há consenso, por isso n e­ cessita ser representativo. Contrario sensu, a ilustração somente pode ser utilizada se existem outros argumentos que trazem consenso à idéia que se procura ilustrar, pois a figurativida­ de por si só não convence ninguém, a não ser por pura emotividade, em casos excepcionais. A ilustração, portanto, não é exemplo. É criação figura­ tiva do autor e não pode ter a menor pretensão de confirmar uma regra, mas apenas de deixar claro aquilo que já é de co­ nhecimento do leitor. Adoniran14faz isso com maestria: Pafunça O teu coração sem amor, S e esfriou, se desligou,

14. Transcrito de Meus momentos: Adoniran Barbosa, EMI Music.


EXEMPLO, FIGURATM DADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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Inté parece, Pafunça, Aqueles elevador Que tá escrito "não fununça" E a gente sobe a pé, E pra me judiar Pafunça, N em meu nom e tu pronunça.

Mas o argumentante não pode abusar das figuras de comparação, pois o leitor percebe sua imperfeição. A analo­ gia entre Pafunça e o elevador que não "fununça" é frágil, se colocada do ponto de vista lógico, ainda que informal. Bas­ tante persuasivo, reconheça-se, mas não funciona como exemplo, à ausência de regra a ser confirmada. Quando o argumentante abusa da ilustração, constrói discurso inconsistente. O ouvinte está acostumado a aceitá-la apenas como reforço, mas não como razão em si mes­ ma. Ademais, se o exemplo já deve ser curto, por se tratar de figuratividade, a ilustração deve ser mais sucinta ainda. O prolongamento da ilustração no texto argumentativo des­ via o leitor do raciocínio persuasivo e lhe desfavorece a coe­ rência, como já analisamos com outros argumentos.

Tendência atual da figuratividade A proposta deste livro, como frisamos desde o início, é a de investigar os métodos atuais de persuasão. Isso impor­ ta dizer que não voltaremos a uma retórica antiga, como tan­ tos fazem, revisitando apenas os grandes clássicos - sempre importantíssimos - da Antiguidade, pois seu efeito prático, para esta proposta, não seria tão representativo; tal propos­ ta, todavia, tampouco importa em nos afastarmos de ins­ trumentos teóricos de grande valia. Retoma-se essa proposta porque a figuratividade é a grande tendência de nossos discursos atuais, pois a articu­ lação temática do discurso hodierno tem pedido cada vez mais a ilustração. As crônicas que se vêem nos jornais são


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textos de conteúdo eminentemente argumentativo, pois de­ fendem uma tese essencial, mas não dispensam uma histó­ ria, figurativa, que inicia e termina o texto. Se não houvesse essa história inicial certamente o destinatário se desinteres­ saria de lê-la; o recurso de que se utiliza o escritor, para de­ fender uma idéia e ao mesmo tempo atrair para a leitura, é o de inserir a figuratividade no texto, iniciando-o, por exem­ plo, com a narrativa de um fato que ocorrera com ele m es­ mo. Os ensaios, por seu lado, expõem questões por vezes de cunho científico ou filosófico, mas fazem predominar o estilo15, não raro com recursos lúdicos, porque caso contrá­ rio a leitura toma-se desinteressante. Assim, o texto expositivo-argumentativo mescla-se a modernos recursos literá­ rios, na tentativa de livrar-se do enfadonho. Em obra publicada sobre redação, defendemos grave­ mente que não se deve buscar a literatura no discurso ju ­ rídico, mas deve-se utilizar dos recursos necessários para convidar à leitura ou à audição atenta do discurso, mesmo aos que tenham constitucional obrigação de apreciar to­ dos os pedidos relacionados a possível lesão ou ameaça a direito. Por isso recomendamos o uso do texto figurativo, da ilustração no discurso jurídico, dentro de seus estreitos li­ mites, como fixado no tópico anterior. E a saída que o jor­ nalismo e a literatura científica e filosófica encontram na crô­ nica e no ensaio e que, embora não sejam gêneros novos e possam ter tipologia pouco definida, representam efetiva­ mente uma tendência. Ora, se é atraente ao interlocutor, é eficiente argumento. Não se pode defender a banalização que a mídia ofere­ ce a seu discurso geral: notícias curtas, imagens substituin­ do palavras, aversão a qualquer percurso mais aprofundado ou raciocínio logicamente arquitetado com alguma com­ 15. Cf. ÁLVAREZ, Miriam. Cuadem os de lengua espanola, p. 40: "El ensayo, por tanto, queda definido como vehículo de ideas, intentando siempre (como senala su etimologia) fijar su identidad entre lo rigurosamente científi­ co y el predomínio de lo estético."


EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E ILUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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plexidade. Mas pode-se dizer que no Brasil o discurso jurí­ dico é capaz de flexibilizar-se tanto em linguagem - como será exposto ao tratarmos do argumento de competência lingüística - como no competente uso da figuratividade. Discussões jurídicas fechadas, que parecem discur­ sos prontos, fazendo da argumentação nos processos ape­ nas uma alternância entre doutrina e jurisprudência (às vezes tão pouco pertinentes), dão lugar, em nome da so­ briedade, somente à pobreza do discurso e ao desinteres­ se do interlocutor, que muitas vezes pula leitura de lon­ gos trechos de textos de petições, e com todo o direito, pois já sabe seu conteúdo. Exemplos, ilustrações e pequenos trechos narrativos são um modo de tornar o competente discurso jurídico atraente e adequado, ainda que seja ne­ cessário ousar. Mas que (bom) argumentante não é ousado?

A imagem e sua importância: a questão da presença Anteriormente afirmamos que as ilustrações têm o po­ der de aumentar a presença de algum tema importante na mente do interlocutor. É de Perelman a lembrança de um relato da cultura oriental que interessa ilustrar neste tópico. Narra que um rei via passar, diante de si, um boi que seria levado a imolação, em certa cerimônia presidida pelo monarca. S en ­ tiu piedade do animal e assim, de imediato, ordenou que não o matassem, mas o substituíssem por um carneiro. Posteriormente, o monarca foi indagado sobre o motivo da substituição. Sua resposta foi simples: mandara salvar o boi porque o vira. Como não viu o carneiro, seria ele o sa­ crificado. O relato serve a Perelman para demonstrar que "a pre­ sença atua de modo direto sobre nossa sensibilidade". Quan­ do argumentamos, selecionamos elementos da realidade que devemos fazer presentes à mente de interlocutor.


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Quando o promotor de justiça, em plenário, mostra aos jurados a fotografia do cadáver da vítima, transfigurado, pre­ tende que essa imagem se torne presente àqueles que estão encarregados da decisão. Claro, todos os jurados que saibam estar julgando um crime de homicídio consumado concluem pela existência inequívoca de um cadáver, e, muito prova­ velmente, se invocados a imaginar o corpo sem vida do viti­ mado, não formulariam imagem muito diferente da que lhes é mostrada pela acusação. Mas o promotor bem sabe que, ao mostrar a fotografia, ela se faz presente. Não é necessário raciocínio muito elaborado para com­ provar que uma guerra entre nações é praticamente irracio­ nal, mas a foto da capa de jornal que mostre uma mãe chorando ao ver o lar e a família dizimados por um ataque militar; ou a imagem de uma criança correndo nua, fugin­ do das armas químicas; ou aquela imagem do oriental que, sozinho, faz parar um comboio de tanques de guerra em protesto contra a ditadura em seu país; ou o disco do cantor americano que traz como tema o regime de segre­ gação racial sul-africano - todos comovem o mundo: fa­ zem a realidade, que existe independentemente da ilus­ tração, presente ao interlocutor. Motivam uma reação mais forte de todos os cidadãos. Como o olhar do boi tornou presente a crueldade do sacrifício ao rei que conduzia a cerimônia. Por isso a argumentação pode ser encarada também como a arte de tomar os elementos mais importantes pre­ sentes na mente do leitor. Não se trata apenas de imagens visuais, embora seja inegável que elas tenham maior poder, como ilustração, de atingir a mente do ouvinte. Um recurso lingüístico, uma citação literária, um toque de humor, uma fotografia, os documentos que são juntados, embora pos­ sam dizer o que já se sabe (existe uma vítima de homicídio, o sacrifício é cruel, a guerra é injusta, a segregação racial é inaceitável...), podem, sem que o interlocutor note, aumen­ tar-lhe a presença de determinado argumento e, assim, tor­ ná-lo preferível a um arrazoado da parte contrária, o qual,


EXEMPLO, FIGURATIVIDADE E iLUSTRAÇÃO DO DISCURSO

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ainda que correto, não se encontra tão arraigado no inter­ locutor no momento de tomar sua decisão. Faça, leitor, esse pequeno exercício: quantas vezes você não ficou influenciado ou comovido não por dados estatís­ ticos da realidade, mas por pequenas cenas, imagens ou máximas criadas pela ficção de um escritor ou diretor de ci­ nema, captadas pelas lentes de um fotógrafo ou ditas por um cidadão comum em um momento de especial inspira­ ção? Por que, então, temer que seu interlocutor utilize esses recursos, por exemplo, anexando aos documentos de uma peça uma importante fotografia, acreditando estar se afas­ tando do quanto seja "jurídico"? Com boa dose de comedimento, as imagens e as ilus­ trações podem ser recurso muito eficiente no percurso dis­ cursivo.

Conclusão O exemplo confirma uma regra, e por isso é submetido a condições de validade; já a ilustração tem outros atrativos (como ser didática, aumentar a presença de outros argu­ mentos na mente do leitor, fazer pausa em discussão que se torna enfadonhamente temática, permitir a retomada após explicações paralelas ou mais aprofundadas etc.), mas não consegue confirmar nenhuma regra, pois não tem representatividade. Ambos são figurativos e parecem muito próximos, mas têm funções verdadeiramente distintas, que não podem ser confundidas. Para combater o exemplo, o melhor é atacar sua representatividade, tratando-o como caso isolado, o que não é raro. Assim, achar um contra-exemplo, ou seja, um caso diferente que não confirme a regra, é o melhor meio de fazê-lo. A ilustração não necessita combate, pois é apenas um recurso retórico, que pode ceder diante de argumentos mais sólidos. Apontar a ilustração utilizada pela parte contrária


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como mero recurso didático, sem nenhum compromisso com a verdade ou com a coerência lógica, pode ser também útil, em um ou outro caso. Se a ilustração é utilizada como se fos­ se exemplo, por erro ou malícia da parte contrária, pode-se, então, apontar sua falta de poder para confirmar qualquer regra, como já é sabido.


Capítulo X

Estrutura lógica e argumento: a fortiori, ad absurdum e ridículo Alguns tipos de argumento, porque constituem racio­ cínios comuns no Direito, fazem-se típicos do discurso judi­ ciário e, portanto, são muito persuasivos nesse contexto, se enunciados com coerência.

O argumento jurídico Não se pode dizer que exista um argumento jurídico propriamente dito, porque, como meio lingüístico que bus­ ca a persuasão, todo tipo de argumento pode ser utilizado no discurso forense. Entretanto, há argumentos criados e fomentados com maior intensidade no discurso judiciário, seja por se relacionarem ao trabalho probatório, seja por se fundamentarem em princípios jurídicos, da interpretação da norma. O argumento de autoridade e o argumento a simili ti­ nham também sua especificidade no discurso judiciário, mas nesta lição procuramos agrupar técnicas argumentativas um pouco mais específicas e também usuais. Os racio­ cínios contrario sensu, a fortiori e ad absurdum são corriquei­ ros do discurso judiciário.

O argumento contrario sensu Tem como principal fundamento o conhecido princí­ pio da legalidade, que em nossa Constituição encontra-se no inciso II do artigo 5?: "Ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei."


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Sua origem como argumento, no âmbito judiciário, está na invocação ao interlocutor de que, se a norma jurídi­ ca prescreve uma conduta e a sua transgressão uma sanção (direta ou indiretamente), devem-se excluir de sua incidên­ cia todos os sujeitos que não sejam alvo literal daquele pre­ ceito. Dessa maneira, se o artigo 29 do Código Penal dispõe que "quem, de qualquer modo, concorre para o crime inci­ de nas penas a este cominadas...", tem-se, contrario sensu, que quem não concorre para o crime não pode incidir nas suas penas. O argumento contrario sensu (de interpretação inversa) não é utilizado apenas para interpretar dispositivos legais, pois ele pode ser articulado quando afirmações em sentido inverso são invocadas em favor da tese que o argumentan­ te precisa comprovar. É usual o raciocínio contrario sensu, como forma de persuasão, no aproveitamento da doutrina e da jurisprudência, quando tratam de casos distintos, de sentido oposto à pretensa analogia. Assim, se a jurispru­ dência afirma ser lícita a prisão cautelar quando houver fortes indícios de autoria, pode-se defender, contrario sensu, que, à ausência desses fortes indícios, a prisão cautelar torna-se ilegal. Assim também no exemplo abaixo: A testem unha afirmou em plenário que, porque não ti­ vera aula naquela noite, chegara cedo a casa. D isso inferese, contrario sensu, que era seu costum e chegar tarde a casa, nos dias de aula.

Entretanto, a validade do argumento contrario sensu deve ser aferida caso a caso, pois não raro ele pode tender à falácia, sendo o que torna seu poder de persuasão muito menor. Veja como isso ocorre no caso abaixo: O artigo 27 do Código Penal dispõe que os m enores de dezoito anos são penalm ente inim putáveis. Assim, contrario sensu, os m aiores de dezoito anos são crim inalm ente res­ ponsáveis.


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Correto o raciocínio? Não. Nem todos os maiores de de­ zoito anos são penalmente imputáveis, pois os doentes men­ tais inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito de seus atos, ainda sendo maiores de dezoito anos, também são agraciados pela inimputabilidade. Diz o fam oso autor que "o funcionário público que se apropria de bens, móveis ou imóveis, com ete crim e". P or­ tanto, aquele que se apropria de bens alheios, não sendo fu n­ cionário público, não com ete crime.

Novamente inaceitável o raciocínio. Somente o fun­ cionário público, na definição criminal do termo, comete o crime de peculato, o que não significa que a atitude de apropriar-se indevidamente de bens alheios somente seja con­ duta criminosa para o agente funcionário público. Diz a Súm ula n? 282 do Suprem o Tribunal Federal que: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando não venti­ lada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada." P or­ tanto, se, com o ocorre no caso concreto, o v. acórdão recor­ rido faz expressa m enção à questão federal objeto do pre­ sente recurso extraordinário, deve ser ele admitido.

Raciocínio inválido. Pode-se dizer que, se o acórdão em tela faz menção à questão federal suscitada no recurso in­ terposto, este não pode deixar de ser admitido com base no preceito da súmula citada. No entanto, vários outros requisi­ tos são necessários para essa admissibilidade, que não es­ tão elencados no preceito interpretado ao contrário. O reducionismo é falácia comum ao argumento contra­ rio sensu, e deve ser evitado, pois o interlocutor que percebe a falácia não é persuadido. Consiste o reducionismo em se retirarem da argumentação elementos essenciais a ela1, im­ prescindíveis à sua validade, pois o discurso argumentativo tem, como já se expôs, um sério comprometimento com a

1. Vide Capítulo XIII.


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realidade: ainda que a interpretação dos fatos observáveis nunca possa ser abrangente o bastante para descrever e con­ siderar todos os fenômenos atinentes a eles, pode-se ofen­ der o interlocutor caso se deixe de considerar elementos que como premissa já entenda essenciais. Portanto, o raciocínio contrario sensu é válido recurso argumentativo, até porque tem comprovada origem lógicoformal, desde que não tenda ao reducionismo.

O argumento ad absurdum O argumento do absurdum é outro típico do discurso ju ­ rídico. Também denominado argumento apagógico, é aque­ le que procura demonstrar a falsidade de uma proposição estendendo-se seu sentido e aplicando-lhe regras lógicas do Direito, até alcançar um resultado que o interlocutor en­ tenda como impossível. A impossibilidade do resultado faz com que o interlocutor rechace sua gênese, o que é o prin­ cipal objetivo do discursante. Exemplifica-se com o texto abaixo um tipo de argumen­ to ad absurdum de construção bem singela: O réu está preso por porte ilegal de arma de fogo. A acusação quer que se lhe negue o direito à liberdade provi­ sória, pois afirm a que o crime é grave e a lei não lhe permite 0 benefício. M as, pensem os: estatística recente assenta que perambulam, nesta cidade de São Paulo, aproximadamente 1 m ilhão de arm as ilegais. Se existem 1 m ilhão de armas ile­ gais, há a m esm a quantidade de pessoas com etendo o m es­ m o delito que o ora acusado. Sendo a justiça igual para to ­ dos - e isso parece inegável deveria haver, neste m om ento, 1 milhão de paulistanos presos cautelarmente, sob a m esma acusação. Isso im porta em afirmar que, pelo mais sensível e banal princípio jurídico, nem se o m aior bairro de São Paulo fosse transform ado em um presídio haveria com o alocar to ­ dos os presum idos detentos!


ESTRUTURA LÓGICA E ARGUMENTO

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O exemplo é ilustrativo. Percebe-se que, submetendo a proposição da parte contrária (a prisão cautelar do réu de­ vido à gravidade do delito) à aplicação de outras regras ló­ gicas e elementos verossímeis da realidade, induz-se a um resultado absurdo que o interlocutor não aceita (que se trans­ forme o maior bairro da cidade em presídio para alocar aque­ les que praticam o mesmo delito). Trouxe-se ao discurso uma premissa verossímil (embora não comprovada em um texto oral) de que existam em São Paulo 1 milhão de armas clandestinas. Logo em seguida, protestou-se pela aplicabi­ lidade do princípio jurídico básico de que a justiça deve dis­ pensar privilégios, sendo aplicável a todos que cometeram o delito. O resultado desse raciocínio, como lá construído, é inaceitável: a prisão de quase dez por cento da população da metrópole. Talvez haja nesse exemplo algum exagero nos núme­ ros, mas é certo que é persuasivo. Percebe-se que o ouvinte não acredita necessariamente na viabilidade do resultado absurdo, mas certamente é levado a concluir que a premis­ sa que se pretende destruir é pouco razoável. No exemplo, existe um substrato de que o argumentante se utilizou sem necessitar enunciar: a tolerância ao delito de porte ilegal de arma, seja por parte do Estado ou da sociedade paulistana, faz com que o crime não possa, em tese, ser entendido como gravíssimo. A aplicação de premissas verossímeis até chegar a re­ sultados inaceitáveis tem aplicação brilhante no texto "Usos da casemira inglesa", de Scliar, transcrito no Capítulo III deste livro. Recomenda-se que o leitor, para um exercício ilustrativo, retorne, ao fim deste tópico, à leitura desse tex­ to e reveja como vários argumentos ad absurdum encadeiamse para desconstituir, na mente da interlocutora, sua pre­ tensão de conseguir para o pai um corte de casimira como presente de aniversário. Mas, para que sigamos as reflexões sobre o argumen­ to ad absurdum, é importante deixar estabelecido: o que se­


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riam premissas verossímeis? Quando o argumentante, no texto anterior, disse que na metrópole paulistana have­ ria 1 milhão de armas de fogo ilegais, ou quando, no aludi­ do texto de Scliar, o marido assentou que o velho sogro não passaria dos cem anos, trouxe premissas verossímeis, ou seja, que são aceitas pelo ouvinte no decorrer da argu­ mentação. O transcurso argumentativo aceita o verossímil (que não é o mesmo que o verdadeiro) como aquilo que funcio­ na tal qual o apoio do percurso argumentativo sem que lhe represente um entrave, sem que seja questionado naquele momento da argumentação pelo ouvinte, ou, em outras palavras, o verossímil é aquilo que aparece como verdadeiro no transcorrer do percurso argumentativo. Reboul fundamenta bem esse conceito, e é útil trans­ crevê-lo2: O que é então o verossímil? Para encurtar: tudo aquilo em que a confiança é presumida. Por exemplo, os juizes nem sem pre são independentes, os m édicos nem sem pre capa­ zes, os oradores nem sempre sinceros. M as presum e-se que o sejam ; e, se alguém afirma o contrário, cabe-lhe o ônus da prova. Sem esse tipo de presunção, a vida seria impossível; e é a própria vida que rejeita o ceticismo.

Para os juristas, que conhecem todos os conceitos de praesumptio juris tantum, fica muito acessível a explicação de Reboul para a verossimilhança. Pois ela é mesmo uma espécie de presunção, aquilo que o orador sabe que pode utilizar sem que conte diretamente com a contestação do ouvinte, pois caso contrário a argumentação não se aper­ feiçoa. Esse é um dos elementos constituintes do compro­ misso que o argumentante tem com a verossimilhança. É importante notar que, como observa Caffé, a verossi­ milhança depende da aceitação do interlocutor, porque é 2. Introdução à retórica, cit., pp. 95-6.


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necessária a presença de um sujeito para quem o enuncia­ do em questão seja verossímil, ou seja, está presente a ne­ cessidade de uma atitude de crença (por alguém) de que um enunciado seja verdadeiro3. Essa questão é aqui colocada com maior ênfase porque é na argumentação apagógica que o ouvinte (e a parte con­ trária, no caso da dialética produção de sentido do discurso judiciário) questiona-se sobre a validade das premissas que lhe são colocadas à reflexão, porquanto depara-se com um resultado que lhe ofende o bom senso (resultado, aliás, em que repousa toda a força do argumento). Claro, a força do argumento apagógico está mesmo na pouca aceitabilidade do resultado que se propõe como fi­ nal. Entretanto, o interlocutor deve ficar suficientemente convencido de que é o percurso apagógico lícito para con­ duzir àquele resultado inaceitável, ou, em outras palavras, que o que há de inaceitável no raciocínio é a premissa ini­ cial4, e não qualquer daquelas idéias acessórias que levam ao resultado, pois todas elas devem ser verossímeis. A progressão do argumento ad absurdum é matéria de grande atenção também do interlocutor, pois ao perceber o resultado inverossímil, sua primeira reação é a de procurar no percurso argumentativo um dado não-verdadeiro que tenha permitido o desvio do raciocínio. No exemplo, o in­ terlocutor questionaria os números apresentados e, se fos­ sem patentemente exagerados, rejeitaria o argumento por completo. A possibilidade de construção de silogismos con­ tínuos, como em uma verdadeira demonstração científica aproximando-se do raciocínio exato, é a maior arma da­ quele que argumenta ao absurdo. Embora a argumentação como um todo tenda a traba­ lhar mais com a verossimilhança que com a verdade (ape­ sar de esta última aparecer em dados indubitáveis no dis­ 3. ALVES, Alaôr Caffé. Lógica, cit., pp. 397-9. 4. "Nihil est in effectu quod non sit in causa" - Nada está no efeito que não esteja na causa.


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curso argumentativo, como quem diz que um homem é mor­ tal) e mais com o provável que com o certo, já foi dito que a aparência de demonstração exata sempre permeia o discur­ so. Por isso, o cuidado ao enunciar o argumento ad absurdum deve ser redobrado, fixando-se com vagar todas as premis­ sas utilizadas, com ritmo lento, para que o interlocutor per­ ceba sua verossimilhança, que lhe soe como absoluta ver­ dade. O raciocínio lógico sempre seduz, ainda que possa desviar-se da demonstração absoluta. No exemplo da posse ilegal de arma, perceba-se que há dados que podem tornar-se pouco verossímeis, ainda que o argumento como um todo seja excelentemente persuasivo: o número de 1 milhão de armas parece exagerado e, se hou­ ver, muitas delas devem estar sem condições de uso. Algu­ mas pessoas podem ser proprietárias de várias dessas armas, o que diminuiria sensivelmente o número de criminosos; ademais, algumas delas podem sequer ter donos, estando à deriva ou nos depósitos oficiais, de modo que tampouco seriam computadas para o fim que se lhe pretendeu. Entre­ tanto, essas idéias não puderam aparecer na construção do discurso, pois são de responsabilidade da parte contrária, e assim o raciocínio tornou-se forte. A argumentação ad absurdum é, por fim, excelente­ mente persuasiva. No discurso judiciário há predileção pelo raciocínio que parece bem conduzido, mas verdadeira ojeriza à possibilidade de chegar a resultados inaceitáveis, que ofendam a lógica jurídica, ainda que esta seja fruto da cria­ ção suasória do argumentante. Deve-se, entretanto, cuidar para que todas as premissas pareçam verossímeis, pois fora disso toda a construção argumentativa enfraquece ou m es­ mo desaba. E nesse sentido que, comentando o argumento ad ab­ surdum, João Mendes Neto afirmava5:

5. Rui Barbosa e a lógica jurídica: ensaio de prática da argumentação, p. 77.


ESTRUTURA LÓGICA £ ARGUMENTO

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D em onstra-se o absurdo de um texto restabelecendose a verdade que nele deva estar contida. Para isso, partindo do texto julgado absurdo, apresenta-se o sentido eqüitativo, criterioso, reto, a que o princípio que o inspirou deverá levar e, após, ressaltam -se as conse­ qüências absurdas não previstas pelo legislador nem adm iti­ das na sistemática jurídica. E, pois, um a argum entação indi­ reta e tem por fundam ento o princípio lógico de que duas idéias contraditórias não podem ser sim ultaneam ente ver­ dadeiras e falsas.

Para combater o argumento ad absurdum basta demons­ trar que existem regras aplicadas à pretensão que não cor­ respondem à verdade, embora pareçam verdadeiras. Assim, no exemplo da arma de fogo, bastaria pedir-se uma prova de que houvesse 1 milhão de revólveres clandestinos na ci­ dade; mas, como se percebe, corre-se o risco de o ouvinte continuar entendendo a premissa verossímil, e então a contra-argumentação funcionaria ao revés, fortalecendo a idéia que se pretendia destruir. Aliás, na argumentação vale a re­ gra: o argumento que não persuade, prejudica. Alternativa para combater o argumento apagógico é tam­ bém uma espécie de argumento de fuga, muito comum no discurso político atual, mas frágil ao ouvinte mais atento. Aproxima-se do estratagema 33 de Schopenhauer*’: "Isto pode ser correto na teoria; na prática é falso." Com esse sotism a ad m item -se os fundam entos, porém n egam -se suas conseqüências, em contradição com a regra a ratione ad rationatum v alet consequentia [de uma razão ao seu efeito vigora a conseqüência]. A afirm ação citada gera uma impossibilidade: o que é correto na teoria deve valer tam bém na prática: se isso não se confirm a é porque há a l­ guma falha na teoria; algo passou despercebido e não foi levado em consideração e, por conseguinte, é falso tam bém na teoria.

6. A arte de ter razão, p. 68.


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Todo estudo jurídico é construído para que possa valer absolutamente, não se podendo - ao menos no próprio discurso jurídico - construir um abismo entre teoria e prá­ tica, porque isso representa evidente fuga à discussão jurí­ dica que muitas vezes o raciocínio ad absurdum procura entabular. Ainda que o estudo da realidade pelo prisma ju ­ rídico sempre deixe a desejar na explicação de muitos fe­ nômenos, é certo que a discussão dogmática tem lugar e deve ser enfrentada, mesmo que chegue a resultados pouco críveis. Mais fácil é, como expôs Schopenhauer, achar uma falha na teoria, algo que passou despercebido e não fo i levado em consideração. E como há fatos ocultos nos argumentos! Pois se eles são fruto da redução simbólica da realidade que deve haver para a construção do próprio texto discursivo, muito, como já se viu, há de ficar subentendido ou invocado como pre­ missa. Questões da argumentação.

O uso da ridicularização O uso do argumento ad absurdum leva-nos à breve referência ao uso da ridicularização também como meio de persuasão. O raciocínio ridículo é aquele que merece a re­ provação do riso7 porque eleva-se a um nível de não-aceitabilidade humorística. Quando existe consenso ou veros­ similhança em determinada afirmação, qualquer outro ra­ ciocínio que a contrarie pode levar ao ridículo. O ridículo leva ao riso, e o riso é humorístico. Ridendo castigat mores, aponta a máxima latina, e então o humor é eficiente meio de repreender aquilo que não se deseja desafiar frontalmente, seja por ser cansativo, seja por não se poder fazê-lo por temor ou por não se desejar, na co e­ rência do discurso, prolongar-se naquilo que não é tema central.

7. Cf. PERELMAN. Tratado da argumentação, cit., p. 233.


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Elevar ao ridículo é parte do argumento ad absurdum, e pode-se dizer que o humor bem colocado tem o condão de ser mais persuasivo - pela questão da presença, que já tra­ tamos - do que críticas longas à argumentação da parte con­ trária, pois, grosso modo, o ouvinte que tem seu humor ele­ vado pela argumentação sempre tende a aderir ao orador que o alegra. Fkra ilustrar, leia o trecho da "Fábula dos dois leões", de Stanislaw Ponte Preta. Nele, o cronista conta que dois leões fugiram do zoológico, sendo encontrados tempos depois. Um, magro e maltratado, e o outro, gordo e vigoroso, voltaram ao cativeiro e então encontraram-se. O fragmen­ to que segue é seu trecho final, o diálogo entre os dois animais8: Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira para as florestas da Tijuca disse pro coleguinha: - Puxa, rapaz, com o é que você conseguiu ficar na cidade esse tem po todo e ain­ da voltar com essa saúde. Eu, que fugi para as m atas da Tiju­ ca, tive que pedir arrego, porque quase não encontrava o que com er, como é então que você... vá, diz com o foi. O outro leão então explicou: - Eu meti os peitos e fui me esconder numa repartição pública. Cada dia eu comia um funcionário e ninguém dava por falta dele. - E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcio­ nários? - Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É que eu com eti um erro gravíssimo. Comi o dire­ tor, idem um chefe de seção, funcionários diversos, ninguém dava por falta. No dia em que eu comi o cara que servia o ca ­ fezinho... me apanharam.

Qualquer um que leia o texto percebe a crítica à inefi­ ciência do funcionalismo público com grande efeito de per­ suasão, talvez maior que um discurso repleto de estatísticas e de repetição de informações conhecidas sobre o mau sis­

8. Primo Altamirando e elas, p. 154.


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tema burocrático. Com o humor, a argumentação ultrapas­ sa o que seria o teor meramente expositivo para alcançar o resultado suasório. Aí está, mais do que evidente, o efeito persuasivo do humor, somado à figuratividade alegórica com que o cro­ nista trabalha. Bem, mas trata-se de uma crônica, de autoria de um ver­ dadeiro personagem social da época, Stanislaw Ponte Preta. Características suas permitiam criar um ambiente e um gru­ po de interlocutores (seus leitores fiéis) que aceitam de bom grado o efeito humorístico fino e anseiam pelo humor ao lerem seus textos. No discurso judiciário, o papel do humor é bastante discutível, e talvez estes breves estudos não possam ousar aconselhar quando o toque humorístico pode ser eficiente, e em qual ambiente. O que se pode dizer é que o ar sorumbático de alguns operadores do Direito não se justifica, pois o bom humor nunca retira a seriedade de nenhum traba­ lho; entretanto, o aprofundamento e a respeitabilidade do ambiente em que se desenvolve o discurso judiciário auto­ riza reprovação severa a bobices que sejam inoportunas, que surjam como verdadeira fuga a uma discussão mais apro­ fundada da matéria colocada sob a dialética suasória. Ade­ mais, a generalização é a grande tendência do humor, e pode ir de encontro a princípios éticos seguros, o que nunca é desejável. Mal colocado, o ridicularizador torna-se ridículo9.

O argumento a coherentia O argumento a coherentia é, nos dizeres de Perelman, aquele "que, partindo da idéia de que um legislador sensa­ to - e que se supõe também perfeitamente previdente - não pode regulamentar uma mesma situação de duas maneiras 9. “Inciciit in faveam qui prinius fecerat illam" - Cai na cova quem a cavara.


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incompatíveis, supõe a existência de uma regra que permi­ te descartar uma das duas disposições que provocam a an­ tinomia"10. O argumento pretende demonstrar que, na exis­ tência de duas normas jurídicas que aparentemente regulam o mesmo fato, deve haver um diferencial que faça com que apenas uma delas incida sobre um caso concreto. Evidente­ mente, o argumento tende a demonstrar que a norma jurí­ dica que incide sobre o caso é aquela mais benéfica à parte cujo interesse se defende. O texto abaixo dá conta desse tipo de argumento: O réu, segundo diz a inicial do M inistério Público, h a­ veria feito propaganda enganosa de produto. Isso porque o inculpado é proprietário de uma loja de móveis e, querendo divulgar a oferta de seu produto, veiculou propaganda em jornal local, anunciando a venda de estantes padrão mogno, a um preço muito baixo. Policiais da D elegacia do Consumidor, em diligência no local, verificaram que a estante anunciada não era de m ogno maciço, mas de madeira de inferior qualidade, apenas reves­ tida com uma película que imita a cor da madeira de mogno. Em virtude da existência de tal publicidade enganosa, entende a acusação que o ora réu deve estar incurso na pena do artigo 7? da Lei n? 8.137, que dispõe que: Art. 7? Constitui crime contra a relação de consum o: VII. induzir o consum idor ou usuário a erro, por via de indicação ou afirmação falsa ou enganosa sobre a natureza, qualidade do bem ou serviço, utilizando-se de qualquer meio, inclusive a veiculação ou divulgação publicitária. Pena - detenção, de 2 a 5 anos, ou multa. No entanto, a defesa tem visão muito diversa da aplica­ ção do ditame legal retro recortado. Na verdade, se for ad­ mitida que a propaganda objeto da presente ação é de fato enganosa, o réu deveria estar incurso em outro dispositivo

10. Lógica jurídica, pp. 78-9.


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legal, qual seja o artigo 66 do Código de D efesa do Consumidor, que assim dispõe: Art. 61. Constituem crimes contra as relações de consu­ mo previstas neste Código, sem prejuízo do disposto no C ó ­ digo Penal e leis especiais, as condutas tipificadas nos arti­ gos seguintes. Art. 66. Fazer afirmação falsa ou enganosa, ou om itir informação relevante sobre a natureza, característica, qualida­ de, quantidade, segurança, desem penho, durabilidade, p re­ ço ou garantia de produtos ou serviços: Pena - detenção de três m eses a um ano e multa. Ora, com o pode haver dois dispositivos legais vigentes, com inando pena para a m esm a conduta, a de publicidade enganosa? Com o um cânone legal pode impor a pena m áxi­ ma de cinco anos para uma conduta enquanto outro, para a m esm a conduta, im põe pena máxima de apenas um ano? Teria cochilado o legislador? Entendem os que não: o artigo 7° da Lei n? 8.137 deve ser aplicado quando exista um consum idor lesado, enquanto o artigo 66 do Código do Consumidor, com reprimenda m e ­ nos grave, tem cabível sua aplicação quando a publicidade enganosa não causa dano efetivo, mas a mera pontencialidade dele. O u seja, quando nenhum consumidor é efetiva­ m ente levado a erro. No presente caso, com o não houve prova de a publici­ dade enganosa haver logrado algum consumidor, deve-se aplicar o artigo de m enor reprimenda, qual seja o do CDC.

Diante de dois artigos de lei que reprimiam a mesma conduta, a publicidade enganosa, com penas muito diferen­ tes, o argumentante procurou a aplicação da lei mais bené­ fica à parte que defendia. Não admitiu que o legislador hou­ vesse prescrito duas normas para o mesmo fato e, então, encontrou um diferencial: a efetiva lesão do consumidor. Assim, procura persuadir o leitor pela aplicação do artigo que prescreve menor sanção. O efeito persuasivo desse tipo de argumento é bastan­ te contundente, na medida em que, até subjetivamente, ne­


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nhum operador do Direito está predisposto a admitir que o legislador, em sua tarefa, caia em contradição. É tarefa her­ menêutica dirimi-la, pela unidade e harmonia do ordena­ mento. Desse modo, qualquer argumento que invoque jus­ tificativa para configurar como ilusória a contradição do le­ gislador, reforçando a coerência do ordenamento jurídico, é persuasivo. Tem-se como máxima jurídica que quem exerce direito seu a ninguém prejudica. Desse modo, denunciar um deli­ to cometido por alguém não pode constituir dano moral ao delinqüente, pois, se a denúncia é direito garantido pelo or­ denamento, este mesmo não pode impor-lhe sanção, ainda que meramente civil, uma vez que se presume seja o orde­ namento coerente, e qualquer antinomia ou conflito entre normas é mera aparência, passível de ser resolvida por re­ gras gerais de hermenêutica ou princípios gerais de Direito. Trata-se de um raciocínio a coherentia. Para combater o argumento a coherentia não há regra evidente, pois deve ser analisado caso a caso. Em geral, o ar­ gumento a coherentia implica comparação de valores diver­ sos, e a doutrina e a jurisprudência tratam de resolver anti­ nomias do próprio ordenamento, o que está mais próximo da hermenêutica e de suas regras clássicas.

Lei ou brechas da lei? Quando tratamos da coerência do ordenamento jurí­ dico, sob o ponto de vista da argumentação, fazemos um breve parêntese para abordar uma questão que com fre­ qüência se coloca: o trabalho do operador do Direito com as "brechas" da lei. Para quem já lida com o Direito freqüentemente, o te­ ma pode parecer pueril: conhece do sistema jurídico suas antinomias e resolve lacunas ou conflitos de normas sem grandes dificuldades. Mas a alguns ainda resta a visão - lu­ gar-comum, ao certo - de que o operador do Direito, e no


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mais das vezes o advogado, trabalha com as aludidas "bre­ chas": procura falhas na enunciaçâo do conjunto normativo para criar argumentos que, à evidência, contrariam a von­ tade da lei. Pois é a observação de que ainda subsiste a alguns essa idéia de desvirtuamento do contexto normativo por meio da argumentação que faz com que tal tema seja aqui nova­ mente invocado. Um dos entraves à busca da boa argumen­ tação, e do próprio trato com o Direito, é observar a lei como dogma inatingível, indiscutível ou impossível de alte­ rar-se. Em um sistema dogmático, certo é que a lei deve ser observada, pois a decisão judicial é a aplicação do Direito, e este como direito posto. Todavia, a complexidade do siste­ ma normativo cria nele, sim, contradições e interpretações das mais diversas, próprias do raciocínio humano. Novas tendências doutrinárias, peculiaridades do caso concreto, interpretações jurisprudenciais, combinação com valores maiores - por vezes até do próprio sistema normativo - im­ põem que uma norma específica deva ter seu significado fle­ xibilizado ou agudizado, de acordo com a coerência de um raciocínio, um percurso argumentativo. E, assim, isso que os leigos chamam de trabalhar com brechas da lei nada mais é do que assumir como premissa que a lei é um objeto de criação do raciocínio humano; e, porque humano, sujeito à submissão a outros percursos que a combinem, interpre­ tem ou relativizem. A norma não aparece, no sistema argu­ mentativo, como uma verdade absoluta, mas como uma di­ retriz dogmática da decisão do juiz, sujeita à construção argumentativa. Observe o texto a seguir, retirado da peça Antígona, de Sófocles” (em tradução de J. Melville), escrita quatro sécu­ los antes de Cristo. Antígona, filha de Edipo e Jocasta, pre­ tendia enterrar seu irmão Polinice. Entretanto, Creonte, tio de Antígona e rei de Tebas, proibira, por norma sua, tal sepultamento, porque Polinice houvera combatido contra sua pátria. Antígona, por desobedecer a Creonte e dar sepultu­ 11. Antígona, p. 96.


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ra ao corpo de Polinice, acreditando que o sepultamento era um dever sagrado, foi condenada à morte. Estabelece-se, assim, o conflito entre duas ordens: a lei religiosa, que Antígona pretende seguir, e a proibição secular, fruto do gênio do rei Creonte. O trecho recortado é uma das falas mais contundentes da obra: CREONTE - E, contudo, tiveste a ousadia de desobedecer a essa determ inação? A N TIG O N A - Sim, pois não foi decisão de Zeus; e a Ju sti­ ça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, ja ­ m ais estabeleceu tal decreto entre os hum anos; tam pouco acredito que tua proclam ação tenha legitimidade para co n ­ ferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, nunca escritas, porém irrevogáveis; não existem a partir de ontem , ou de hoje; são eternas, sim! e ninguém pode dizer desde quando vigoram! D ecretos com o o que proclam aste, eu, que não tem o o poder de hom em algum, posso violar sem m erecer a punição dos deuses! Q ue vou morrer, bem o sei; é inevitável; e morreria m esm o sem o teu decreto. E para di­ zer a verdade, se m orrer antes do meu tem po, será para mim um a vantagem ! Q uem vive com o eu, envolta em tanto luto e desgraça, que perde com a m orte? Por isso, a sorte que me reservas é um mal de bem pouca m onta; muito mais grave seria aceitar que o filho de m inha mãe jazesse in se­ pulto; tudo o mais m e é indiferente! Se julgas que com eti um ato de dem ência, talvez mais louco seja quem me acusa de loucura!

Antígona discute com o tio a legitimidade de sua or­ dem. Observa nela a obra do arbítrio humano, no caso cor­ rompido por momentâneos interesses, e assim a sopesa, diante de outros valores que estabelece para si: invoca a ine­ vitabilidade da morte e o que a pena estabelecida pelo rei lhe significa, particularmente. Ilustrativo o trecho: a lei não é feita para ser desobede­ cida, mas sua origem humana impõe que seja sempre ana­ lisada a coherentia, e por isso o Direito reserva o dever de


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fundamentação e a possibilidade constante de argumenta­ ção na aplicação de qualquer norma. Não existe por detrás da lei uma vontade insuperável, que permita dizer que um raciocínio completo, razoável e persuasivo de sua interpre­ tação seja um injusto aproveitamento de suas "brechas". Dentro, claro, dos limites da razoabilidade, da progressão aceitável de um contexto argumentativo. Daí o grande valor dos argumentos apresentados nes­ te tópico.

Argumento a fortiori O argumento a fortiori é típico do raciocínio jurídico porque impõe a distinção entre normas proibitivas e per­ missivas. E muito difundido, pois é comum na dialética fo­ rense. A fortiori significa com maior razão. Argumentando a fortiori, o discursante impõe uma analogia com um p/ws: o de que seu raciocínio tem ainda maior razão para valer do que aquele que seria fruto da analogia perfeita. Veremos casos mais concretos. Ele divide-se em dois tipos distintos: o argumento a minori ad maius e o a maiori ad minus. Em ambos há o mesmo princípio de que, se uma norma jurídica impõe uma condu­ ta a alguém, com ainda mais razão determina uma conduta que tenha as mesmas características, mas com ainda maior intensidade, gravidade ou razão. O argumento a minori ad maius aplica-se no caso de prescrições negativas. Formulemos a seguinte hipótese: se uma lei prescreve que não se pode trafegar de noite com os faróis do veículo apagados, a fortiori deve-se entender que é proibido trafegar de noite com um veículo sem f a ­ róis. Se a lei proíbe o menor, evidentemente deve proibir o maior. O argumento a minori ad maius tem aplicação prática quando se investiga a jurisprudência e a doutrina, e se en­ contra, em julgados ou em obras da literatura jurídica, posi­


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cionamento ainda mais incisivo que aquele que se pretende demonstrar. Veja como isso ocorre no exemplo abaixo: O contrato trazido à execução não serve para alicerçar a ação executória pretendida. Isso porque falta ao contrato a assinatura de duas testem unhas, um dos requisitos do título executivo extrajudicial, de acordo com o artigo 585, inciso II, do Código de Processo Civil. A jurisprudência pátria tem e n ­ tendido, ademais, que o docum ento m eram ente rubricado por duas testem unhas não preenche os requisitos do título executivo, com o se lê no julgado abaixo: "[...] A rubrica não perm ite identificar-se quem é que a lavrou no docum ento. Assim não atende ao escopo do artigo 585 do CPC, que é o de trazer duas outras pessoas que fir­ m em a validade do docum ento. [...]" Ora, se tem -se entendido, com o acima provamos, que a m era rubrica da testem unha não serve para conferir ao d o­ cum ento particular o status de título executivo, porquanto a lei exige seja ele assinado, um título em que sequer consta a rubrica das testem unhas deve ser entendido, com mais ra­ zão, como inapto para sustentar ação de execução.

O trecho mostra a aplicação de argumento a minori ad maius. Se existe o entendimento de que a norma proíbe a executoriedade do documento meramente rubricado por duas testemunhas - porque rubrica não é o mesmo que as­ sinatura - , com mais razão se deve entender que ela proíbe a executoriedade do título sem assinatura e sem rubrica. O segundo tipo de argumento a fortiori é o argumento a maiori ad minus, o qual é bem enunciado no brocardo quem pode o mais pode o menos. Seu raciocínio é análogo ao tipo exposto acima, mas com aplicação para normas permissi­ vas em vez de proibitivas: se a lei concede certo benefício a alguém, com certeza concede um benefício menor, que está contido nele. Se uma jurisprudência recortada em um dis­ curso defende que aquele que cometeu crime com abuso de violência possa responder a processo em liberdade, com mais razão deve livrar-se solto aquele que cometeu o mes­ mo delito sem o uso da violência.


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Um argumento a maiori ad minus é exposto no exem­ plo abaixo, que, ainda que longo, demonstra evidente e per­ suasivo raciocínio a fortiori: O réu é acusado pela contravenção de vias de fa to , por­ que haveria empurrado sua ex-esposa para fora de casa, d es­ ferindo-lhe tam bém leve bofetada, no intuito de fazer cessar seus berros descontrolados. É certo que o delito de vias de fato se configura pela briga sem lesão corporal, conform e assenta toda a doutrina e a jurisprudência, com o se lê, por exem plo, na lavra do d e ­ sem bargador M unhoz Gonçalves, com destaques nossos: "A agressão a socos e pontapés, de qu e n ão resulta ferim en tos na vítim a, caracteriza contravenção de vias de fato " (R T

451/466). Em virtude da anim osidade m o m en tân ea que houve entre o casal, no m o m en to da ação contraventora, a v iti­ m ada q u eixou -se na delegacia, dando azo ao início da persecu ção crim inal que redundou no presen te processo. E ntretanto, a vitim ada, agora já passada a em oção p a ssio ­ nal daquele m o m en to, n ão pretend e de form a algum a dar continuidade ao p resen te processo, conform e declarou em juízo. Ainda assim, o Ministério Público pretende levar adian­ te a ação penal, por entender ser ela de natureza pública, não condicionada à representação, com o ocorre com todas as contravenções penais. O corre que a Lei dos Juizados Especiais Crim inais, em seu artigo 88, inseriu, para determ inados crim es de m enor m onta, um a medida despenalizadora específica, qual seja a exigência de representação do ofendido. A ssim dispõe o aludido artigo de lei, abaixo copiado, com d esta ­ ques nossos: Art. 88: A lém das hipóteses do Código Penal e da le ­ gislação especial, dependerá de represen tação a ação p e ­ nal relativa aos crim es de lesões corporais leves e lesões culposas. M as o que é a lesão corporal dolosa leve? Nada mais que a contravenção de vias de fato de que adveio resultado, a lesão. Então, se a lei determ ina que a ação penal para lesão


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corporal leve depende da condição da representação, a fo r ­ tiori deve exigir para a contravenção de vias de fato, que nada mais é que a agressão sem lesão. Assim, se a efetiva lesão é agraciada com a condição da representação, o m ero perigo de lesão - as vias de fato - tam bém m erece o m esm o benefício, a medida despenalizadora. Dessa forma, a presente ação deve ser condicionada à existência de representação do ofendido.

O argumento do peticionário é simples e bastante persuasivo: se a lei concede um benefício para um delito mais grave, a lesão corporal leve, com mais razão (a fortio­ ri) deve conceder o mesmo benefício a um crime menos grave, a contravenção de vias de fato. Esse argumento tem por base a lógica jurídica, a proporcionalidade entre as pe­ nas e, assim, os benefícios legais devem também resguardar um mínimo de proporcionalidade. Quem pode o mais pode o menos. O argumento a fortiori é extremamente persuasivo, porque seu arcabouço lógico é incontestável e cabível em inúmeros casos. Sua construção, entretanto, leva por ve­ zes à falácia, porquanto se procura ampliar ou restringir interpretação da lei vedada explicitamente pelo próprio Direito. No entanto, argumentar a fortiori não significa apenas estender o sentido da norma jurídica. Significa, sim, estendê-lo com maior razão, como ocorre no exemplo acima. Para combater o argumento a fortiori basta buscar imperfeição na analogia, já que é a analogia seu primeiro substrato. No exemplo da distinção entre vias de fato e lesão corporal leve, basta recorrer ao princípio da reser­ va legal para demonstrar-se que os favorecimentos ju rí­ dicos devem ter interpretação estrita e, assim, se a lei não fizer exata alusão às vias de fato, aquele que as praticou não merece o favor iuris. Mas isso não descarta a validade e a força persuasiva do raciocínio lógico desse tipo de ar­ gumento.


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O córax O argumento do córax é aquele que, conforme Reboul12, consiste em dizer que uma coisa é inverossímil por ser veros­ símil demais. Argumento corriqueiro para os operadores do Direito penal, embora esteja vivo em outras searas. Os operadores do Direito que têm experiência em lides forenses sabem quão complexa é a produção probatória, como é difícil encontrar uma construção de uma versão só­ lida em meio a provas que apontam para sentidos às vezes diametralmente opostos. Documentos que faltam, versões diferentes para cada testemunha, insegurança em reconhe­ cimentos, lapsos de memória, intimidações, troca de nú­ meros, tudo isso forma lacunas preenchidas pela argumen­ tação, pelo raciocínio lógico, pela razoabilidade. O argumento do córax procura demonstrar que, à au­ sência dessas lacunas, aparece a imperfeição da versão apre­ sentada. Paradoxal, porque a perfeição acaba sendo a causa da imperfeição, mas na verdade a pseudoperfeição é apenas o modo pelo qual se manifesta o engendramento do ser hu­ mano, manipulando a própria realidade. Não foram nem serão poucas as vezes que os defenso­ res do tribunal do júri demonstrarão que depoimentos pres­ tados em delegacia por várias testemunhas foram escritos pela mesma pena incriminadora, apenas porque descrevem o mesmo fato sem qualquer contradição. De tão pouco contraditórios, os depoimentos passam a ser inverossímeis. Do mesmo modo funciona o argumento daquele que jura, aos brados, na mesa do bar, que matará Tício, e Tício apa­ rece morto no dia seguinte. A incriminação daquele que ju ­ rara a morte é tão evidente que chega a ser mais provável que outro inimigo do vitimado, mais oportunista, tenha se aproveitado da ameaça para cumprir seu intento crimino­ so11. Ao menos é disso que se vale esse tipo de raciocínio.

12. Introdução, cit., p. 3. 13. Exemplo literário de morte tão evidente que parece inverossímil está na obra Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel Garcia Márquez, em que


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Não deixa de ser curioso que a perfeição torne-se alvo de crítica, mas o córax fundamenta-se na vaidade e na ga­ nância da mente humana, tão complexa e impenetrável que sempre representa material argumentativo riquíssimo ao argumentante: quando existe a simulação ou a mentira, apa­ rece a tendência da hipervalorização do aparente, que su­ pera a própria realidade. Assim, o relógio falso é - aos olhos do leigo - mais bonito que o verdadeiro, mas essa beleza denuncia ao expert a falsidade do produto, do mesmo modo que a testemunha que guarda detalhes extremos daquilo que diz ter presenciado mais parece, na verdade, não ter visto absolutamente nada. Para combater o argumento do córax cabe apenas refor­ çar as provas perfeitas, demonstrando que o argumentante que invoca o córax o encontrou como única saída, falacio­ sa, diante da contundência da prova que deveria enfrentar. Mas não se pode negar que, em certos casos peculiares, o argumento do córax aparece como raciocínio absolutamen­ te persuasivo.

Argumento ad hominem Toda argumentação, porque direcionada a um auditó­ rio, ainda que não determinado especificamente, pode-se dizer dirigida ad hominem, aos homens, a não ser que se tra­ te de uma argumentação ad humanitatem, buscando-se um auditório universal14. Entretanto, diz-se argumento ad hotodo o povoado conhece o fato de a personagem Santiago Nasar estar na imi­ nência de ser assassinado, como no trecho que ora transcrevemos: "...Victória Guzmán, por sua vez, foi terminante na resposta de que nem ela nem a filha sabiam que estavam esperando Santiago Nasar para m atá-lo. Mas, ao longo de seus anos, admitiu que ambas já o sabiam quando ele entrou na cozinha para tomar café. Disse-lhe uma mulher, que passou depois das cinco para pe­ dir um pouco de leite por amor de Deus, e revelou também os motivos e o lu­ gar onde o estavam esperando. 'N ão o preveni porque pensei que era conver­ sa de bêbado', disse" (p. 23). 14. PERELMAN, Tratado, cit., p. 125.


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minem aquele que busca criticar mais determinado homem do que as idéias que ele profere15. Muitos autores assentam ser esse tipo de argumento uma falácia, porquanto os ataques pessoais não desquali­ ficam suas fontes, e, portanto, não se poderia construir uma argumentação sólida com base em ataques às pes­ soas que proferem argumentos fortes. Os argumentos va­ lem por sua materialidade lógica e seu confronto com a realidade, e não pelas boas ou más características do ora­ dor que a profere. Todavia, seria exagero qualificar o argumento ad hominem somente como ofensa pessoal, falta de decoro que deve ser evitada a qualquer custo, pois há breves exceções que transformam esse tipo de argumento em elemento lingüís­ tico oportuno, verdade que em ocasiões excepcionais. A regra, de fato, é a de que os ataques pessoais à parte contrária apenas prejudicam aquele que os profere, porque no mais alto grau de discussão, mormente no discurso ju ­ diciário, aquele que pretende julgar pouco se interessa pe­ las figuras dos argumentantes, mas vê (ou deveria ver) maior representatividade no conteúdo de seu discurso. Weston cita o bom exemplo de von Mises, explicando os ataques ilegíti­ mos à pessoa do economista Ricardo1'’: A teoria de Ricardo é espúria aos olhos dos marxistas porque Ricardo era um burguês. O s racistas alem ães cond e­ nam a m esm a teoria porque Ricardo era judeu, e os n aciona­ listas alem ães porque era um inglês... Alguns professores alem ães form ulam conjuntam ente esses três argum entos contra a validade das lições de Ricardo.

É evidente que os ataques à pessoa de Ricardo não bas­ tam a qualquer professor para que possa desqualificar suas lições, notadamente se envolvem questões originárias de

15. Cf. WALTON, Douglas. Informal Logic, cit., p. 134: "is the kind of argument that criticizes the arguer rather than his argument". 16. Las clnves, cit., p. 64.


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preconceito, injustificáveis, portanto. Desse modo, o argu­ mento ad hominem só pode realmente ser entendido como insulto, sendo desde logo acatado pelo interlocutor como uma fuga à verdadeira discussão que se trava. Entretanto, quando tratamos longamente do argumen­ to ad verecundiam, fizemos várias recomendações a respeito da propriedade de se questionar da autoridade suas qualifi­ cações pessoais para figurar em tal posto, de modo a poder fazer presumir que seus pronunciamentos são todos corre­ tos. Ora, então a argumentação ad hominem pode ser licita­ mente levantada em um discurso sem que importe, de ime­ diato, em levar o discurso às raias da ofensa pessoal e da falta de brio, como acontece corriqueiramente nos debates políticos mais acalentados. Walton divide tal tipo de argumento em três classes di­ versas. O primeiro deles, o argumento ad hominem abusivo, em que se centra o ataque diretamente à pessoa do argu­ mentante, incluindo-se o vilipêndio a sua confiabilidade como pessoa ou a seu próprio caráter. Esse tipo de argu­ mento é aquele em que se tende à ofensa pura, como que puxando à discussão elementos que efetivamente nela não cabem, tal como no exemplo anterior, em que a nacionali­ dade ou a origem étnica do autor foram trazidas ao discur­ so como meio de combater as idéias objetivas levantadas pelo professor Ricardo. É corriqueiro no (mau) discurso po­ lítico, quando se ouvem falas como "Você é um ladrão e, portanto, não deveria sequer falar de corrupção na políti­ ca", como se a má reputação do argüente fosse causa bas­ tante para apagar toda uma série de razões objetivas que demonstram uma efetiva denúncia de corrupção. Ou então colocações do tipo: "um candidato que foi traído pela mu­ lher não merece meu voto", furtando-se a discutir ou ouvir seu programa de governo, ou "quem é aquele professor, bê­ bado famoso, que acha que pode me ensinar Direito, se não sabe nem zelar pela própria bebedeira?", como se o possí­ vel alcoolismo afastasse totalmente a possibilidade de ser uma autoridade em determinada matéria.


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O argumento ad hominem abusivo17- pode-se perceber por sua própria denominação - não se justifica em nenhu­ ma hipótese que não a retorsão a uma ofensa pessoal (mas nesse caso, entendemos, afasta-se o estudo da argumenta­ ção, que não pode oferecer nenhuma teoria em momentos em que a discussão passa a exceção absoluta). O segundo tipo de argumentação ad hominem, na con­ cepção de Walton, é o argumento ad hominem circunstan­ cial. É aquele em que se infere ou se demonstra que a posi­ ção do argumentante não é compatível com o teor das idéias ou argumentos que ele apresenta. Nessa circunstância, o argumento ad hominem passa a ter certo valor, sem que cons­ titua ofensa grave, em termos de discurso. Assim, se alguém se coloca em posição de aconselhar que um governo não possa endividar-se (o que representa uma idéia correta e objetivamente apresentada), pode-se dizer que aquele que defende essa idéia não deveria sustentá-la, pois sua gestão criara grande dívida ao Estado. O argumento continua sen­ do direcionado ad hominem, ou seja, mais à pessoa que pro­ priamente às idéias que profere, mas o reforço da incompa­ tibilidade entre estas e aquela serve como excelente meio de persuasão. É natural que se espere consistência daquele que advo­ ga determinada idéia, embora sempre se procure evitar o envolvimento das pessoas que argumentam na matéria dis­ cutida. Assim, age em argumento ad hominem circunstancial o promotor de justiça do tribunal do júri que diz aos jurados que o advogado só defende as barbaridades que o acusado cometera porque ganhara de seu cliente uma vasta quantia em dinheiro a título de honorários, e que portanto não esta­ ria intimamente convencido daquilo que diz. Ainda que possa ser verdade, a argumentação ad hominem torna-se fa­ laciosa, pois não combate os argumentos que deveria en­ 17. Pode-se traçar um paralelo entre o argumento ad hominem abusivo e o que Perelman chama de argumento ad personam, a pura ofensa pessoal (cf. Tratado, cit., p. 127).


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frentar, desviando-se de um coerente percurso para a fuga às idéias objetivas colocadas pela parte contrária. Porém há excepcionais momentos em que o argumen­ to ad hominem não representa uma má argumentação, uma falácia. A pessoa que argumenta é em regra elemento peri­ férico, circunstancial, mas às vezes é de tamanha relevância o que ocorre com essa pessoa que ela pode se transformar, licitamente, em objeto da própria discussão. O terceiro tipo de argumento ad hominem, então, é o não-falacioso. Vejamos os versos que se declamavam à época do império18: Nós tem os um rei Cham ado João... Faz o que lhe mandam. Come o que lhe dão. E vai para Mafra Cantar cantochão.

Diante do endurecimento de Napoleão em suas rela­ ções com Portugal e à subserviência dessa metrópole ao rei­ no inglês, dom João, regente português em fuga no Brasil, governando em lugar de dona Maria I, a Viradeira, estabe­ leceu o domínio inglês no mercado brasileiro, abriu os por­ tos àquela nação e depois retornou a Lisboa, atendendo à vontade de Carlota Joaquina, rainha. Demonstrou sua fra­ queza, seja diante do império francês, do reino inglês ou dos próprios governantes estabelecidos em Portugal. Parece evi­ dente que a fraqueza pessoal do governante, demonstrada por episódios dessa monta, expanda-se a seu governo; as­ sim se faz tremendamente lícito, nesse contexto, a cobran­ ça do povo dirigida diretamente à personalidade do seu pretenso chefe de Estado. Quando a crítica, como nos versos satíricos do Brasil colônia, apontam diretamente à pessoa do rei, não se pode

18. ROCHA, Jucenir. Brasil em três tempos: a história é essa?, p. 40.


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dizer que não seja objetiva a argumentação em face da sua conduta diante do govemo que exerce. Ele, pelo papel so­ cial que representa, deve responder por seus atos pessoais que impliquem conseqüências em relação à sua conduta com o governo. Nesse mesmo contexto não se faz falácia uma referência ad hominem como a abaixo reproduzida: A defesa (ou o defensor) leu vários depoim entos te n ­ tando conduzir à inocência do acusado. N ão leu aos sen h o ­ res jurados, entretanto, os depoim entos mais isentos, pois essa leitura não interessa ao posicionam ento que a defesa advoga.

A referência a interesses é tão explícita que não chega a ser ofensiva, mas pode ser extremamente útil no caso do discursante, se ele entender ser hora de reforçar aos inter­ locutores, os jurados, as diferenças de conduta entre acusa­ ção e defesa. Aludir às pessoas pode não ser recomendável, mas, como se vê, há momentos em que se torna razoável, princi­ palmente quando a parte contrária utiliza-se de valores pes­ soais em seu favor, como ao dizer "sou mais velho, conheço bem mais a vida que o outro advogado", ou "meu conheci­ mento é muito maior porque sou especialista nessa área". Em suma, não se pode absolutamente recomendar a argumentação ad hominem, pois o ideal seria a argumenta­ ção que jamais recaísse nas pessoas que se digladiam. Por ou­ tro lado, não se pode pretender, em uma obra de objetivos também práticos, alcançar uma separação total entre o argüente e suas idéias, pois isso seria uma quimera. Argumen­ tação e argumentante estão, na prática, indissociavelmente ligados, e não é raro que o interlocutor atente para as carac­ terísticas físicas daquele que fala, sua roupa, seu modo de se expressar, e todos esses detalhes que fazem parte da orató­ ria; ou até mesmo para a assinatura daquele que propõe um pedido ou argumentação escrita, como se essa valesse mais que o próprio conteúdo da petição. No último capítulo, tra­ tando de estilo, voltaremos a este assunto.


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A argumentação então algumas vezes tangencia as pes­ soas envolvidas no debate, oral ou escrito; basta lembrar que é pela argumentação ad hominem que se refuta o argumen­ to de autoridade”. Portanto, é cabível esse tipo de argumenta­ ção, desde que não represente indevida fuga à causa, sendo fonte (talvez em raras vezes) de grande força suasória, como - usa-se para concluir - aparece na ficção de West20, narran­ do a resposta de Giordano Bruno aos cardeais inquisidores gerais do Santo Ofício, que sob a acusação de heresia fora expulso de todas as ordens eclesiásticas: Frei G. Bruno: Neste exato m om ento penso Que m aior do que o medo que vos tenho E o medo que tendes, senhores, De mim.

Conclusão Os argumentos que se desenvolvem com maior espe­ cificidade no discurso judiciário têm características diversas e poderiam ser agrupados de modo mais ortodoxo, que se­ ria entretanto menos funcional. Este livro seria uma cópia de outros, caso se restringisse a uma reprodução da sistematização argumentativa feita com o brilhantismo de Aris­ tóteles ou com o estudo de renomados estrangeiros que no contexto hodierno realçam suas teorias com grande apro­ fundamento, ainda que surjam obras inteiras de paráfrases de um ou outro estudo mais denso. Nossa preocupação não é enumerar tipos de argumen­ tos em grande quantidade, o que seria simples buscando 19. "There are two ways of undermining your opponent's use of authority, either by an ad hominem attack on his specific authorities, or by providing counter authorities..." (CAPALDI, Nicholas. The Art o f Deception: an Introductton to Criticai Thinking, p. 101). 20. O herege, p. 195.


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subclassificações de cada um dos que foram aqui apontados. Interessa esmiuçar cada tipo de argumento mais usual, expli­ cando-o com ilustrações e apontando suas falhas, para que também possa servir de material de consulta breve para aque­ le que se depara com um argumento aparentemente forte da parte contrária. Não queremos, com isso, perder de vista um pouco do rigor científico, já que são costumeiras as opi­ niões pouco credenciadas sobre a argumentação. Vale, então, continuar a exposição dos argumentos mais usuais do discurso judiciário, passando ao senso comum e seu papel em nosso contexto.


Capítulo XI

Argumentação fraca: fuga e senso comum Argumentar pelo senso comum não é, claro, a melhor técnica jurídica. Mas haverá momentos em que será necessá­ rio enunciar o óbvio na progressão discursiva.

A argumentação corriqueira A argumentação tem altos e baixos. Existem momen­ tos tópicos da construção de um discurso, em que idéias complexas se combinam para levar o interlocutor a aceitar determinado resultado: argumentos encontram-se e se­ param-se, convergem para uma mesma conclusão por um mesmo caminho ou por trilhas diversas, dependendo da estratégia do orador. Por vezes, percorrem raciocínios complexos, como o córax ou o argumentum ad absurdum; mas também há momentos em que o discurso não pode pretender alcançar grande profundidade, por desviar-se da pretensão do discursante, de uma coerência que beire a perfeição. A cozinheira que faz um bom arroz com feijão não é melhor nem pior, na culinária, que um chef estrangeiro que prepare uma sofisticada lagosta com molhos de ervas. Ape­ nas cada um se presta a seus momentos e sua realidade, e aplica-se a fazer bem aquilo a que se propôs: uma boa co­ mida caseira ou um prato top de um restaurante caro. Mas (continuando na culinária), em contrapartida, o cliente do nosso refinado restaurante não suporta comer todos os dias a mesma lagosta com ervas, e pode um dia achar esplêndi­ do um baião-de-dois, que talvez o requintado chef não sai­ ba preparar.


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Há momentos e oportunidades para cada argumento, e nem sempre a complexidade e a sofisticação reinam na argumentação. Há horas em que uma idéia corriqueira, apa­ rentemente óbvia, figura mais persuasiva que um raciocínio aprofundado. Nessas oportunidades, aparece o argumento de senso comum.

O argumento de senso comum O argumento de senso comum é aquele que se apro­ veita de uma afirmação que goza de consenso geral, não sendo contestada por nenhum dos interlocutores. O senso comum é aquele conhecimento amplo e gené­ rico que não possui lastro científico aprofundado, mas que está amplamente difundido no seio da sociedade. Portanto, se alguém afirma que a função do Direito é distribuir justiça ou, também na mesma esteira, afirma que sem a educação o país não vai adiante, está usando do senso comum. Tal senso comum transforma-se em argumento, então, quando é aplicado no discurso para fundamentar determi­ nada idéia. Uma tese, ou seja, a idéia principal que se pre­ tende comprovar, não pode ser de senso comum, pois se o for não necessita de argumentos, já que é aceita por unani­ midade em qualquer auditório. A vantagem do argumento de senso comum é essa qualidade que ele tem de ser absolutamente incontestável. E sedutora a idéia de utilizar-se um argumento que não ad­ mite contradita, pois realmente seu uso não comporta retorsão: quem pode dizer que a educação não é solução para o país? Qual argumentante pode afirmar que o Direito não visa à justiça? Diante desse argumento, a parte contrária, à primeira vista, deve calar-se. É bem verdade que o argumento de senso comum não admite contraditório específico, mas isso é compensado (sempre há uma compensação) por sua pouca força. Esse tipo de argumento é sempre muito brando, vago, obtuso, e


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por isso são raras as vezes que sua colocação em um discur­ so opera a vitória, exclusivamente. Por outro lado, é também certo que, em momentos de pertinência, principalmente no discurso oral, a exposição de algo que é puro senso comum pode fermentar idéias a ponto de torná-las próximas da aceitabilidade geral, e assim impingir ao interlocutor - por vezes em construção que beira à falácia - uma idéia contes­ tável como se inconteste fosse. Não é difícil que, de tão obtusa que é a argumentação por senso comum, ela valha para ambas as partes oponen­ tes no discurso. Desse modo, o político de ultradireita e o de esquerda radical se opõem na discussão de seus planos de governo. O comunista, dizendo espelhar-se na experiência soviética, propõe: "Darei prioridade à educação, pois, para mim, sem ela não se forma o país." O político fascista, por seu turno, dizendo imitar a sociedade austríaca, advoga o mesmo: "Eu também só me preocuparei com escolas, pois elas formaram a Europa como é hoje." Percebe-se que o que existiu não foi apenas um consenso entre ambos, mas sim uma argumentação que, ainda que se digladiando, os oponentes trouxeram idéias idênticas. Invocaram, cada um, o consenso a seu favor, e por isso foi inevitável a concórdia. Para o elei­ tor mais atento, claro, a discussão foi absolutamente infru­ tífera, pois os argumentos são fracos: importaria saber quais são os planos de cada um para intervir pela boa edu­ cação no país. Os argumentos são fracos, nesse exemplo, mas mesmo assim bastante corriqueiros no discurso político. Por quê? Porque às vezes, como dissemos na Introdução, é preciso dizer o óbvio, ou melhor, é frutífero enunciar o consenso. Pen­ semos no mesmo debate de políticos candidatos ao governo, em que um deles assim enuncie: O que nosso país faz com os aposentados é uma vergo­ nha! Velhinhos, que contribuíram a vida toda para a constru­ ção da história de nosso Brasil, passam dias nas filas do Segu­ ro Social, esperando por um a aposentadoria irrisória, vergo­ nhosa até. Maltratados, m orrem em filas de hospital, não têm


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direito sequer a rem édios e são as pessoas que, m atem atica­ m ente, m ais pagaram impostos ao governo, o m esm o gover­ no que sequer os assiste. Essa situação precisa mudar, pois, além de insuportável, representa a maior das injustiças.

Quem ousaria contestar qualquer um desses argumen­ tos articulados? Claro, eles parecem muito mais uma expo­ sição que um discurso propriamente argumentativo, mas não há nenhuma dúvida de que um político que articule um discurso assim (que, admita-se, não são raros) pretende convencer a respeito de sua plataforma de governo. Pois en­ tão, está argumentando. O argumento de senso comum, tal como visto acima, é efetivamente um ponto de contato en­ tre a mera exaltação (discurso epidíctico, na classificação aristotélica) e o discurso dialético, de persuasão. Todavia, pode funcionar com êxito na medida em que a própria enuncia­ ção levará o interlocutor a fazer ilações que, embora não ex­ plícitas, são fatores de persuasão (por vezes apenas pela expressividade da exposição do argumento). O candidato que proferisse esse discurso em favor dos aposentados com certeza conseguiria vários votos daqueles tantos que recebem quantia mensal irrisória da Previdên­ cia. Não pensaram os idosos eleitores, evidentemente, que algum outro candidato não achasse que as aposentadorias fossem irrisórias ou que seja justo os aposentados morre­ rem na fila de aguardo da pensão ou de tratamento do hos­ pital. Entretanto, a mera enunciação daquilo que é óbvio fez, em nosso exemplo hipotético, com que os aposentados pre­ sumissem que o discursante está mais preocupado com eles do que aquele que nada disse a respeito da situação dos idosos. O candidato discursante, então, percebeu a oportu­ nidade de dizer aquilo que é consenso, as vantagens de tra­ zer para si o que era de domínio de todos, ou seja, de usar do senso comum. É bom ressaltar, antes de continuarmos a ver a força do argumento do senso comum na arte de realçar o inconteste, que muito da força suasória desse tipo de argumento pode repousar em sua expressividade, na adesão dos espí­


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ritos àquilo que tem como maior qualidade sua forma. É as­ sim, por exemplo, que os provérbios e refrões populares ga­ nham corpo quando invocados em contexto que os susten­ te, como grande reforço da persuasão de um discurso, como acontece neste trecho de Cervantes1: V oy a parar - dijo Sancho - em que vuestra m erced m e senale salario conocido de lo que me há de dar cada m es el tiem po que le sirviere, y que el tal salario se me pague de su hacienda, que no quiero estar a mercedes que llegan tarde, m al o nunca; yo queiro saber lo que gano, poco o mucho que sea; que sobre um huevo pone la gallina y muchos pocos hacen

um mucho, y mientras gana algo no se pierde nada. A fala de Sancho Pança, defendendo seu salário diante de seu senhor, ao dizer que sobre o ovo põe a galinha, muitos poucos fazem um muito e enquanto se ganha alguma coisa não se perde nada, evidentemente suporta seu pedido com argu­ mentos incontestáveis, ditados conhecidos de seu povo, a que se soma seu grande valor expressivo. Não se pode com­ bater tal argumentação senão desviando-se da força e do consenso provocado pelos provérbios invocados pelos argumentantes. No exemplo abaixo, o mesmo valor expressi­ vo e suasório2: Tem um ditado tido com o certo, Que "cavalo esperto não espanta boiada" E quem refuga o m undo resmungando Passará berrando essa vida marvada. Compadre m eu que envelheceu cantando Diz que rum inando dá pra ser feliz

O valor do ditado tido como certo, conforme diz o autor, evidentemente lhe vale como consenso para a idéia que co­ meça a defender, a calma durante a vida. Ao enunciar o di­ 1. Don Quixote. In: ÁLVAREZ, Miriam. Cuadem os, cit., p. 34. 2. Rolando Boldrim, de Grandes sucessos, RGE.


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tado, já conta com o consenso e a baixíssima reprovabilidade do ouvinte, que o aceita sem reservas (a que se soma, lembre-se, a força expressiva da figuratividade, com grande valor subjetivo, como já visto). Mais expressivo será o argu­ mento de senso comum quanto maior for a pertinência da idéia amplamente aceita ao discurso enunciado. A argumentação baseada exclusivamente no senso comum, como se sabe, não ultrapassa a mera exposição, e assim não persuade, mas a invocação da idéia do consenso a favor de um conjunto lógico mais representativo pode significar ponto decisivo do discurso, até mesmo daquele articulado no ambiente forense. Nas petições jurídicas, eles são utilizados mais para dar reforço, ênfase a determi­ nada colocação mais específica, como um recurso retórico. Fora do contexto jurídico, os argumentos de senso comum são menos raros, em discursos políticos demagógicos ou em propagandas que dizem o óbvio. Vejamos mais alguns exemplos: a) Nosso partido tem consciência de que o país deve olhar por seu povo. Efeito persuasivo muito pequeno, salvo se o ou­ vinte já é simpatizante do partido, que faz discurso vazio de sentido. Como ênfase ou complemento, o argumento de senso comum assume efeito persua­ sivo: Propomos sejam os recursos públicos ora utili­ zados para pagamento de juros externos desviados para a construção de moradias para os desabrigados. O país deve olhar primeiro para seu povo. Realçando o que é evidente, mas invocando, pelo reforço dos outros argumentos menos abran­ gentes, porém mais incisivos, o senso comum cres­ ce na persuasão, pois o argumentante traz para si o monopólio da preocupação com o povo, o que era sua verdadeira intenção. b) O consumidor deve escolher o melhor produto. Compre nossa marca.


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É senso comum que o consumidor deve esco­ lher o melhor. Aliás, sempre, em qualquer situação, o ser humano busca escolher o melhor. Argumento pouco persuasivo. Entretanto, utilizado como ênfa­ se ou conclusão, tem efeito persuasivo: Nossa mar­ ca, apesar de menos famosa, tem maior qualidade, por vários motivos. Em vez de comprar a marca, o consumidor deve escolher o melhor produto. Abaixo, um argumento jurídico: c) É essencial que o juiz seja equânime. Afirmação evidente, pouco persuasiva. A per­ gunta é: em que consiste a eqüidade? O argumen­ tante deve evitar esse tipo de construção. Prefira: Como foi demonstrado, o magistrado deu muito mais oportunidades de manifestação para a parte contrária do que para a parte ora requerente. Isso desequilibrou o processo, sendo necessário que se garanta a eqüidade dos atos. Não se pode afirmar que o argumento não continue di­ zendo o óbvio, mas agora o faz em reforço (em conteúdo e em forma) ao que anteriormente foi sustentado, com argufnentos mais sólidos. Outros argumentos arrazoaram, podese dizer pouco tecnicamente, enquanto o senso comum, bem invocado, persuadiu. As oportunidades para utilizar o argumento de senso comum devem ser, claro, observadas pelo discursante, mais uma vez tendo em conta a coerência de seu texto e a acei­ tação do auditório. Para argumentações de ritmo mais len­ to, torna-se esse tipo de argumento muito pertinente, pois permite a reflexão sobre outros temas ou informações que podem se somar e tornar-se confusas na ausência de refor­ ço a princípios e premissas que já são de conhecimento do interlocutor, mas que lhe vêm fortalecidas como se fossem conclusão. No percurso argumentativo, então, o argumento de senso comum aparece quase como petição de princípio, ou


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seja, o erro em se esforçar em argumentar ou comprovar uma tese que o interlocutor já admitiu. Quem vem pedir "justiça!" em um discurso perante um representante do Po­ der Judiciário cai, se não reforçar sua tese com um objetivo mais específico e contestável, em petição de princípio, pois quer convencer o interlocutor daquilo que ele já está plena­ mente convicto: que deve ser justo. É difícil combater o argumento de senso comum por­ que sua natureza é a de invocar aquilo que é absoluto con­ senso. O que se recomenda fazer é demonstrar como a am­ plitude do argumento o faz fraco: o Direito determina que se dê a cada um o que é seu, mas, afinal, o que é de cada um? O ditado diz que o burro precavido morreu de velho, mas o que significa ser precavido? Quando, ao contrário, é necessário ousar? São exemplos de contradita, mas fracos, sendo mesmo o melhor não se aprofundar na resposta ao que já não é aprofundado.

Argumento de fuga O enxadrista sabe que, ao salto do cavalo, o rei parte em fuga. A figura do xadrez é ilustrativa: estando o rei sob xeque imposto por qualquer uma das pedras inimigas, pode pro­ teger-se deslocando ao meio do caminho um dos outros personagens de seu reino: o bispo, a rainha, um peão... Mas, se o rei sofre xeque do cavalo, tem de se mover, pois este, com seu estranho campo de ação, pula qualquer outra pe­ dra. Diante dele, ao rei somente resta a fuga; mas nem por isso todo xeque do cavalo é xeque-mate. Em alguns momentos, o argumentante coloca-se como o rei diante do cavalo: desvia o assunto, pois não pode enfrentá-lo diretamente, mas nem por isso está faltando com a boa atividade suasória. Vejamos como isso ocorre na hi­ potética argumentação a seguir:


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O réu é pessoa idônea, já com seus respeitáveis 55 anos de idade. E certo que com eteu, com o de fato confessara, ato injusto ou ilícito, desviando dinheiro de seus clientes para o pagam ento de contas prem entes de sua empresa. Q uando o réu desviou o dinheiro que lhe fora confiado por seus clientes para o pagam ento das despesas com seu estabelecim ento, certam ente cria poder devolver a m esm a quantia m om entos depois, quando fosse cobrado. No e n ­ tanto, seus rendim entos não permitiram essa devolução, e por isso o réu é neste m om ento acusado. N ão foi apenas o réu que teve dificuldades financeiras. N esses últimos tem pos, com a crise econôm ica em que vive­ mos, várias em presas tiveram de fechar suas portas. As dívi­ das frente aos bancos aum entaram muito e o inadimplemento é recorde, com o noticiam diariamente nossos jornais. A apropriação havida não tinha o dolo de deixar os viti­ mados sem seu dinheiro, é evidente, mas a situação econôm i­ ca de toda nossa sociedade acabou fazendo com que o réu não pudesse devolver a quantia de que se apropriara em um m om ento de desespero. N ão se há de negar com o é desesperador ver uma empresa, estabelecida como idônea há anos, desequilibrar-se diante de um contexto econôm ico todo con ­ trovertido, com o o atual. N ão se pode conceber que o réu, já em idade respeitá­ vel, sem nenhum a mácula em sua vida com o empresário, te ­ nha esperado por todo esse tem po para dar o golpe. O que houve foi uma ação precipitada, diante da tentativa, natural do ser humano, de evitar que anos de trabalho fossem jo g a ­ dos à ruína.

A tática argumentativa do discursante foi a de desviar a discussão para aquilo que não era o cerne argumentativo naquele momento. O procedimento criminal ali ilustrado, que discutia apropriação indébita, obviamente não foi ins­ taurado para discutir a idade do réu, sua situação financei­ ra ou a crise que se abateu sobre o país, mas, naturalmente, como a história dá a entender, pela inversão da posse de uma quantia que lhe fora confiada por clientes. O defensor, no entanto, achou oportuno fugir à discussão que já estava estabelecida para trazer ao contexto questões que, ainda


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que antes não pertinentes, passam a ter valor na conclusão que pretenderá impor. Talvez não comprove que deve ser excluída a culpabilidade de seu cliente por causa da situa­ ção financeira da nação, mas, enquanto reflete sobre esses fatores, deixa de aprofundar-se na questão que lhe é am­ plamente desfavorável. Assim faz o advogado do tribunal do júri que discute o valor da pena que pode advir do veredito dos jurados: ex­ põe os prós e os contras da pena mais grave, o que o acusa­ do pode vir a tornar-se se for preso, a família que dele de­ pende, seus filhos, o emprego que deixará. É evidente que foge à discussão do processo, mas assim, bailando em ques­ tões periféricas, tem condições de ser mais persuasivo do que seria ao procurar enfrentar uma discussão mais especí­ fica, por exemplo, ao negar a existência de uma qualificadora para cuja configuração aponta todo o contexto probatório. O argumento da fuga não é por definição inidôneo. Há certos momentos em que desviar a discussão é necessi­ dade do argumentante, pois a parte contrária sempre vai buscar que o percurso argumentativo trilhe aqueles ele­ mentos que lhe são mais favoráveis, sobre os quais não há bons argumentos do adversário. Imaginemos, então, o se­ guinte diálogo: Defensor. A testem unha Tício disse, ao depor em juízo, que não reconhecia o acusado com o aquele autor do crime: "N ão parece ser a m esm a pessoa que vi sacar da arm a", afir­ mou Tício, em mais uma evidente m ostra de que o réu não é o verdadeiro homicida. Promotor: U m aparte, doutor. N a delegacia, no calor dos fatos, a m esm a testem unha reconheceu positivam ente o acusado. O senhor poderia ler aos jurados o depoim ento de Tício no distrito policial. D efensor: Não, não poderia. A acusação teve sua opor­ tunidade de falar e de replicar, e o nosso processo penal, ju s­ to ao m enos na teoria, concede a mim, com o defesa, o m es­ mo tem po que teve o senhor, só que agora para articular aquilo que vem em fa v o r do m eu cliente. Oxalá tivéssem os nós, sem pre, um a sociedade tão igualitária com o é a distri-


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buiçao de tempo no Tribunal do Júri, a m esm a oportunidade de exposição para todos os interesses em conflito com o a te ­ m os nós, tribunos, no plenário. N ão farei o papel que lhe in ­ cumbe, doutor, porque se assim o fizer m e transformo em um mau advogado, de um mau advogado a um mau profis­ sional, de mau profissional a um ser inútil socialm ente e, de inútil socialm ente, em breve em um criminoso. Seu pedido, doutor, é impossível de ser atendido, m e perdoe.

Evidentemente, a fala do advogado, no discurso final, fugiu ao que lhe fora proposto, porque não lhe interessava dar continuidade à argumentação tal qual pretendia direcio­ nar a acusação, promovendo o aparte. A igualdade no pro­ cesso penal não era objeto principal de discussão, e seria amplamente favorável ao defensor se pudesse trazer outros argumentos que dessem continuidade à exposição probató­ ria do processo, mas, como ele próprio afirmara, se o fizesse estaria minando seu próprio percurso argumentativo. A fuga é lícita na argumentação, desde que o tema de­ senvolvido pareça ao interlocutor, ainda que em mínimo grau, pertinente à discussão (como, no exemplo dado, o ad­ vogado desenvolve sua argumentação articulando tema mais próximo possível daquele que pretende evitar, algo acerca do processo penal no tribunal do júri). Porque é o argu­ mentante quem cria seu percurso temático, tem sempre o talante de eleger o melhor tema, desde que não fuja ao cer­ ne da discussão, como o rei ameaçado pelo cavalo não pode fugir de seu ataque mais que um passo. Porque construção lingüística que se apresenta inequi­ vocamente persuasiva, a fuga ao tema, quando intencional, transforma-se em argumento útil.

Conclusão O argumento do senso comum e o argumento de fuga não figuram como os mais importantes da argumen­ tação jurídica, mas são sem dúvida comuns. Desde que


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representem verdadeira intenção do argumentante, servem no mínimo para estabelecer boa coerência, prolongando um argumento mais importante e complexo ou, ao con­ trário, desviando a atenção daquilo que não interessa que o interlocutor compreenda profundamente. São técnicas válidas.


Capítulo XII

Quando a linguagem é argumento Ao ouvinte do discurso é impossível dissociar conteú­ do e forma. Ele não os separa. Conseqüência disso é que a boa linguagem do argumentante faz presumir que o conteú­ do discursivo é verdadeiro, e nesse sentido ela - a linguagem - constitui argumento de extrema força suasória.

Predisposição à argumentação Todo discurso tem por base um acordo mínimo entre o discursante e seu interlocutor. Para que exista argumenta­ ção efetiva é necessário que alguém se disponha a discursar e, evidentemente, outra pessoa coloque-se na disposição de escutar. Não é sempre que se tem a atenção do interlocutor, e contar com ela é algo de grande valor na argumentação, con­ forme já comentamos. Como bem lembra Perelman: "Não esqueçamos que ouvir alguém é mostrar-se disposto a acei­ tar-lhe eventualmente o ponto de vista."1 De fato, quando alguém se predispõe a escutar uma argumentação, o faz por­ que pode mudar seu ponto de vista, aceitando aquilo que lhe é transmitido pelo discursante, ou concordar diretamen­ te com ele, se ambos já compartilhavam da mesma visão sobre o assunto discutido ou apresentado. Conseguir a atenção do interlocutor não é tarefa sim­ ples: esforços homéricos são opostos pelos publicitários em busca de fazer-se ver diante de tantos outros comerciais, em sociedade saturada de argumentos de venda. No con­ texto jurídico, como já observado, seria muito rasa a obser­ vação de que a obrigatoriedade do provimento jurisdicional 1. Tratado, cit., p. 19.


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dispensa recursos para tornar atento o interlocutor, incre­ mentando sua capacidade de absorver os argumentos e in­ formações que se lhe devem transmitir. Alcançar bons níveis de atenção do interlocutor deman­ da técnicas das mais variadas. Para o orador, a roupa apre­ sentável, os gestos firmes e adequados, a entonação de voz pertinente, um ou outro recurso mais extravagante para chamar a atenção, como a simulação de um esquecimento, de um improviso antes tão planejado, dentre outros; para o texto escrito, sempre é eficiente a utilização de um bom pa­ pel, de impressão limpa, de fontes maiores que permitam a leitura mais cômoda, subtítulos que mostrem ao leitor qual o assunto que será tratado nas linhas que o seguirem, den­ tre outros. Cuidaremos ainda dos meios de iniciar o discurso, de deixá-lo mais atraente, mas não se pode negar que o bom uso da linguagem é um dos modos mais eficientes de cha­ mar a atenção do leitor, de fazê-lo atento ao discurso que por meio de palavras se expressa. Quando alguém se colo­ ca para ouvir determinada argumentação, repara primeiro na forma e depois no conteúdo, e isso é bastante natural: antes de experimentarmos um prato, sentindo seu gosto, reparamos em sua aparência, em como ele nos é apresen­ tado; do mesmo modo, aquele que vê um discursante repa­ ra na maneira como ele se apresenta para falar, ou na forma que seu texto escrito assume2. Depois, continua levando em consideração a forma, pela absorção da linguagem do discursante. Sabe que o conteúdo lhe será transmitido, mas por meio da linguagem, por isso sua importância em todo discurso. É diferencial do ser humano a admiração do belo. Um animal pode ter instintos e afetos, mas não repara na bele­ za de uma obra de arte. Um quadro de Goya a enfeitar um ambiente, ao olhar de um cachorro, não é mais que mera parede. O belo é da natureza, mas apenas o ser humano o

2. Vide Capítulo XVI.


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reproduz intencionalmente. Assim, a seleção das palavras, a forma de expor o raciocínio procura ordem e harmonia. Um tanto lírico, porém verdadeiro. Este pequeno trabalho não tem por objetivo tratar de linguagem ao leitor, sendo matéria específica dos bons m a­ nuais de redação. Mas a linguagem transforma-se em argu­ mento na medida em que importa, mais do que à transmis­ são dos discursos, à persuasão, à adesão do leitor. No m o­ mento em que a boa linguagem adequada serve de meio para fortalecer uma idéia, seu interesse ao estudo da retórica passa a ser relevante. Daí se dizer que existe um argumen­ to lingüístico.

Palavra Todo discurso tem, como aponta Plantin3, um fundo cognitivo, ou seja, de exercer um pensamento justo, de reve­ lar informações, noções a respeito da realidade. O discurso é feito de palavras, e a palavra evidentemente informa por­ que é meio de produção de conhecimento. De fato, todos os nossos pensamentos atuais são exer­ cidos por palavras. Quando um cientista descobre alguma novidade em seu meio, tem como primeira atitude batizála, dar um nome àquela novidade. Somente a partir de seu nome é que com ela vão se construir novos pensamentos, novos conceitos, que se combinam para chegar a conclu­ sões importantes. A apreensão de novas palavras, nesse contexto, implica a apreensão de novos raciocínios antes de significar, sem dúvida, um novo recurso para expressar-se com maior clareza. Quando um leitor consulta um verbete no dicionário, vocábulo cujo significado desconhecia por com­ pleto, não apenas acrescentou novo recurso a seu modo de expressar-se, mas, principalmente, somou a seu raciocínio

3. La argumentación, cit., p. 25.


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o conceito que aquele termo novo traz consigo. Esse concei­ to poderia estar até adormecido na mente dessa pessoa, mas desperta por meio do conhecimento da palavra porque é por intermédio de seu nome, e somente dele, que aquele conceito pode passar a fazer parte do discurso, de qualquer pensamento lógico daquele ser humano. Assim, um leigo em Direito que aprenda o que é uma nulidade não apenas trouxe aquela palavra para seu vocabulário passivo mas, principalmente, pode articular raciocínios por esse conceito novo que aprendeu e pode entender o que é um processo nulo, uma nulidade relativa ou absoluta, uma causa de nu­ lidade, ou a nulidade que ocorrera no processo em que ele é parte. Othon M. Garcia cita pesquisa realizada por membro do Laboratório de Engenharia Humana de Boston, que afir­ ma haver testado o vocabulário de cem alunos de determi­ nado curso, feito com executivos. Relatou o pesquisador es­ trangeiro que, cinco anos depois, "verificou que os dez por cento que haviam revelado maior conhecimento (vocabu­ lar) ocupavam cargos de direção, ao passo que dos 25 por cento mais fracos nenhum ocupara igual posição"4. Sem conhecer os métodos de tal pesquisa, que pega­ mos "de segunda mão", seus resultados parecem bastante razoáveis. A posse de vasto vocabulário é fator diferencial não só daqueles que se aventuram pela literatura, mas para todos os que trabalham com as matérias humanas e, como se disse, não apenas na desenvoltura de exteriorizar racio­ cínios, mas também ao apreendê-los e elaborá-los. E fácil então concluir por que reparamos tanto nas palavras da­ queles que falam em público, no modo como expressam e articulam suas frases, antes mesmo de nos atermos com in­ teresse ao conteúdo: o bom vocabulário faz presumir bom conhecimento, e é nesse sentido que ele se transforma em argumento.

4. Comunicação em prosa moderna, p. 155.


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Conteúdo e forma O argumento de competência lingüística é aquele em que conteúdo e forma misturam-se para levar à persuasão. Na medida em que todo discurso é transmitido por meio de palavras, pode-se dizer, grosso modo, que a boa escolha delas é também um tipo de argumento, e por isso se imis­ cui com o próprio conteúdo, em um amálgama difícil de ser resolvido, pois argumentação é fusão contínua de raciocí­ nio e expressividade, ou, em outra variante, retórica é união íntima entre estilo e argumentação. Os operadores do Direito estão acostumados a valori­ zar a forma, sobre a qual há discussões infindáveis no pla­ no jurídico, todas importantes, porquanto é ela um instru­ mento de garantia para uma série de direitos substanciais. Não resguardada a forma, a substância, o que há de mate­ rial, raras vezes seria igualmente preservado ou exercido, pois ela dá validade ao ato; trata-se de questão jurídica na qual não necessitamos nos aprofundar, mas há um paralelo muito grande entre esse valor essencial da forma no Direi­ to e a forma na argumentação. Para entender, é interessante a leitura deste (embora longo) fragmento do discurso de Rui Barbosa, ainda no Im ­ pério, em defesa da eleição direta5: Mas não mudou; porque acima das nossas dissidências jurídicas quanto à forma, reunia-nos a mais unânim e unani­ midade num pensam ento superior, numa convicção política; e era que faltaríamos ao nosso dever pondo na forma a n o s­ sa questão; era que cum pria-nos aceitar a forma, fosse qual fosse, contanto que se salvasse a substância; era que, fosse por constituinte, fosse por lei ordinária, o nosso em penho definitivo e essencial consistia na eleição direta. "A forma é uma grande questão, a forma é tudo", responde-nos, porém, uma voz do Senado. Senhores, não nego

5. Discurso proferido na Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro, na sessão de 21 de junho de 1880. In: BARBOSA, Rui. Escritos e discursos seletos, p. 127.


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que, nos provarás de um jurista, toasse deliciosam ente esse apotegma; m as, na boca de um hom em de Estado, é m o n s­ truoso; é a negação de tudo quanto, nestes assuntos, se tem aprendido; porque, particularmente em coisas políticas, ou na m ente de toda a experiência acumulada pelo gênero h u ­ m ano, ou a grande questão é sem pre a questão de m orali­ dade, a questão de utilidade, a questão de necessidade, e a forma não passa de um acidente, modificável segundo as exi­ gências de um a ocasião. Mas, insistem de lá, a forma é a Constituição. E a C ons­ tituição que é? A Constituição, segundo as im pressões sen ti­ mentais de um nobre senador, é um a frágil individualidade, cuja vida pende do fio dos nossos punhais; segundo a im agi­ nação pinturesca de outro, um Himalaia severo, imóvel, su­ perior aos séculos, que embalde tentaríam os abalar, com a base eterna de rochas no seio da terra e o topo nas nuvens do céu. O ra, Sr. Presidente, se não há um simples som niua aegri em am bos esses perfis contraditórios da Constituição é o caso de levarem as mãos à cabeça os devotos supersticio­ sos da Carta, pedindo a Deus, com o Paulo Luís Courier que lhes acuda, que valha às instituições contra a peste da m etá ­ fora; porque, afinal, com estas e outras, sombra, aqui de m ontanha indestrutível, imagem, acolá, de débil criatura h u ­ m ana, essa desfigurada Constituição corre o risco de perder, aos olhos do público, a sua realidade objetiva, até o ponto de passar por um a simples ilusão individual, por um a cond en­ sação da fantasia de cada um - aparência vaporosa, ondeante, efêm era, "com o as névoas que descem sobre o m on te", na frase de um dos poetas do centenário, que não sei se dám e a honra de estar entre nós.

Rui Barbosa é sempre exemplo de boa argumentação, não sem razão. Discute, nesse fragmento, a superioridade, no contexto político, da substância à forma, sendo esta re­ servada às discussões jurídicas. E inicia seu discurso com ar­ gumento que procura angariar a simpatia de seu amplo au­ ditório: colocando-se como ente que, em nome de seu ideal - as eleições diretas - procura superar as divergências jurí­ dicas, que seriam todas formais. Procura dispensar a forma, porque ela não pertenceria ao contexto político, mas à sea­


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ra jurídica, objeto então de estudo dos cultores do Direito (aos que, naquele momento, ele não se incluía). Mas o curioso é perceber que, embora dispense a for­ ma (jurídica) da discussão política, é pela form a (lingüística) que seu discurso se realça. Seus recursos, depois da leitura do texto, não necessitam ser em grande número apontados ao leitor: a seleção de palavras, os trechos hiperbólicos {a mais unânime unanimidade, o apotegma monstruoso, "é o caso de levarem as mão à cabeça os devotos supersticiosos da Carta" etc.), as imagens freqüentes (Himalaia, as névoas...), as citações (Courier, um poeta do centenário...), entre outros. Não se pode dizer que as idéias políticas de Rui Barbosa fossem todas inovadoras, nem que argumentos semelhan­ tes aos seus não houvessem sido invocados com freqüência por seus pares, mas o modo, a form a pela qual aqueles ar­ gumentos são transmitidos é ímpar, daí a força do discurso da Águia de Haia, lembrada até hoje como símbolo da ar­ gumentação eficiente. Difícil, assim, dissociar forma e conteúdo em argumen­ tação, ao contrário do que fez Rui Barbosa em relação às eleições diretas. A forma do discurso argumentativo vem li­ gada a seu conteúdo de forma intrínseca, e só a podemos isolar para fins exclusivamente didáticos: as idéias de Rui têm fator persuasivo elevado porque partem de um discur­ so formalmente impecável, ao menos para os padrões lin­ güísticos de seu tempo. Portanto, a boa retórica, a argumentação contundente não é apenas aquela que constrói bons raciocínios, mas também que os externaliza, enuncia-os de modo eficiente. Como essa enunciação também contribui para a persuasão, é argumento.

A linguagem adequada Certa vez um vendedor de pneus nos disse, com muita propriedade, que não compensava o investimento em qual­ quer peça de um automóvel se não se cuidasse, antes, de


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comprar bons pneus. "O s pneus são a única parte do carro que toca no chão", dizia, e, como exclusivo ponto de conta­ to, sempre representavam um bom investimento. De que adianta um motor potente se os pneus não o segurarem? Interessante a argüição, e efetivamente imagem muito persuasiva. Pois, em comparação bastante imperfeita, todo o nosso raciocínio é exteriorizado por palavras, e nelas qualquer in­ vestimento é bem recompensado. Um raciocínio perfeito que culmine com um vocabulário imperfeito ou com uma palavra mal empregada pode ser tão trágico quanto o carro potente de pneus carecas, cujo potencial ao desastre nosso zeloso vendedor procurava evitar. Quando construímos um discurso jurídico, temos de se­ lecionar palavras adequadas para exteriorizar nossas idéias e argumentos. Os vocábulos são vários, e muitos deles po­ dem ser postos em uso para expressar um mesmo significa­ do, ou, mais tecnicamente, significados muito próximos. O trabalho de seleção vocabular é, então, tarefa bastante im­ portante do retor. As boas palavras são aquelas que revelam competên­ cia, e mais atingirão ao interlocutor quanto mais próximas forem de sua compreensão. As palavras são o ponto de con­ tato do raciocínio do autor do discurso com seu interlocutor e, para continuarmos nos aproveitando da imagem já for­ mada, ao auditório devem aderir com grande propriedade. Para nos aprofundar, vejamos o texto abaixo, retirado de uma mensagem da internet, de autor anônimo, como tan­ tos (bons) textos que por aquela rede vagueiam. Trata-se de questões de vestibular, supostamente para uma universida­ de do crime: Questãos 1. Piolho tem um a A K -47 com pente pa 40 bala. Se ele perdê seis de dez pipoco e atirar treze veiz em cada um dos m ano da outra quebrada, quantos vão pro saco antes de recarregá a arma?


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2. Zoinho ganha 200 conto pra guindá uma BM, 250 por um Audi e 100 por um a Cheroki. Se ele tiver robado duas BM e treis Cheroki, quantos Audi ele tem que tungá pra com pletá 800 conto? 3. M aninho cumpre seis ano de reclusão por homicídio. Pela encom enda, ele em bolso 10 mil mango. Se a velha dele torra 100 conto por m ês, quanto vai sobrá quando ele saí do xadrez e quantos ano ele vai pegá por ter dado cabo da vaca que torrou a grana dele? 4. A lem ão L oco robô 10 real do filho dele pra com prá um a p etequ inh a que dá pruns 5 tirinho. Se ele fizé um a préza de dois tirinho pro m ano do bote, quantos tirinho ele vai dá?

O texto satiriza, com grande propriedade, a gíria da periferia paulistana, ligando-a ao universo do crime. Paia quem desconhece o vocabulário, as questões parecem inin­ teligíveis, mas certamente seriam muito próximas daqueles candidatos à vaga na fictícia universidade6. As questões são todas de matemática, simples, sem qualquer complexidade, mas a arte de enunciá-las, naquele texto, para sua finali­ dade de escárnio, reflete-se na seleção vocabular muito tra­ balhada, de excelente observação da linguagem vulgar. O aludido texto, óbvio, nada nos significa no contexto jurídico, mas nos serve para uma importante noção preli­ minar: a de que nosso vocabulário, em língua portuguesa, assume variantes extremas. Ainda mais se compararmos o exemplo anterior ao texto de Rui Barbosa, notaremos como a comunicação é complexa, assumindo trocas de mensa­ gens em níveis muito díspares. Cada qual, claro, adequado a seu meio: não se pode pretender que a mesma linguagem utilizada no início do século XIX por um discursante da Câ­ mara dos Deputados seja a mesma do criminoso da perife­ ria do grande centro urbano, duzentos anos mais tarde7. 6. "Balbum melius balbí verba cognoscere" - O gago entende melhor as pa­ lavras de outro gago. 7. Cabe ressaltar, como mera observação, que, embora a linguagem de um e de outro não seja a mesma, a língua ou idioma é o mesmo: o idioma por­


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O vocabulário varia, dependendo de quem se pretende atingir, principalmente em nosso idioma, em que a diferen­ ça entre a linguagem culta e a popular é acentuada. No con­ texto jurídico, predomina a linguagem culta, de modo que ela é a única que, em regra, tem valor como argumento de com­ petência lingüística.

O discurso jurídico Em alguns aspectos, nosso mundo atual dá grande va­ lor à linguagem. Do mesmo modo que se desvalorizam as regras do idioma e pouco se atende à precisão lingüística no discurso do dia-a-dia, a linguagem científica vai assu­ mindo cada vez maior valor. Porque é grande a tecnologia, é vasta a linguagem técnica, pois, como frisamos logo de início, a cada nova descoberta, a cada novo conceito, surge um nome. A observação é curiosa e útil para nosso estudo de ar­ gumentação: ainda que cada vez menos pessoas concedam importância às regras aprofundadas do idioma, a lingua­ gem aparentemente técnica tem valido ouro nesta socie­ dade de informação: desconfiamos do médico que não uti­ liza o vocabulário médico, tal como o economista que fale com grande clareza pode ser entendido como pouco técni­ co; ou do jurista que não se utilize da linguagem específica de seu meio se tira a imagem de alguém que desconhece a matéria sobre a qual deveria comentar. Com algum exagero, conhecer a técnica é conhecer sua linguagem específica. Conhecer a linguagem que deve ser utilizada em determinado discurso é, então, bom argumen­ to, na medida em que o interlocutor sempre presume que tuguês, que abarca todas as manifestações de linguagem da pátria que o utili­ za. Por isso nunca concordamos com a denominação da matéria "português jurídico", que se vê por aí difundida, já que não nos parece que haja mais de uma língua portuguesa, como se houvesse um "português médico" ou "eco ­ nôm ico". A língua é a mesma.


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aquele que tem melhor linguagem, ou seja, que constitui melhor enunciação de suas idéias, conhece com mais pro­ fundidade a matéria sobre a qual disserta. Essa presunção de que aquilo que assume melhor for­ ma é o que tem mais conteúdo constitui a verdadeira força do argumento de competência lingüística. E está baseada em inequívoca observação do real: não se compra um livro pela capa, mas presume-se que o livro mais bem acabado, com edição mais cara, tenha merecido maior atenção da editora que investe em bom conteúdo. Do mesmo modo, aquele que melhor articula seus argumentos faz presumir ao interlocutor que conhece mais a matéria sobre a qual disserta, e isso é extremamente observável. Quem há de negar que, por mais culto e ilustrado que seja um expositor, se ele gagueja e tem pouca intimidade com a fala em públi­ co, desagrada em sua exposição? A razão desse desagrado por parte do público é evidente: ainda que todo o auditório saiba que a timidez e a tartamudez não guardam nenhuma relação com o conhecimento da matéria, o tímido gago pa­ rece inseguro em sua exposição, e essa insegurança é ime­ diatamente transportada pelo ouvinte ao presumido (des)co­ nhecimento da matéria que deve ser exposta. Por isso dissemos, logo de início, que o vocabulário do discursante é objeto de imediata atenção do interlocutor, que o tem como cartão de visitas. O vocabulário técnico-jurídico é, no discurso judiciá­ rio, então, o mais importante a ser dominado, embora não o único. Bem articulando a linguagem técnica do Direito, a denominada terminologia jurídica, o bom orador já traz em seu discurso, ainda que diluído em toda enunciação, um portentoso argumento, a presunção de bom conteúdo por meio da forma eficiente. Mas (sempre existe um mas) confundem-se muito aque­ les que especificam, como boa linguagem jurídica, o deter­ minado jargão jurídico. Este não constitui argumento de com­ petência lingüística, sendo, então, necessárias algumas pou­ cas palavras para explicitar essa distinção.


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Linguagem técnica x jargão Quando um interlocutor se impressiona com a capaci­ dade de articulação de palavras técnicas de determinado orador, por certo não o está julgando pela habilidade em co­ lecionar e repetir jargões. Jargão é a gíria profissional, a linguagem que se desen­ volve como meio distintivo de determinada classe. A gíria nós conhecemos, principalmente lembrando-nos do exem­ plo dos jovens: têm sempre uma linguagem específica de seu meio, como modo de diferenciar-se e, por vezes, de fa­ zer com que os adultos, os estrangeiros a seu grupo em ge­ ral, não os compreendam. O jargão tem exatamente essas mesmas funções: de diferenciar aqueles que o conhecem daqueles que o ignoram e de evitar que estes últimos com­ preendam a mesma linguagem. Exemplo simples de jargão jurídico: A exordial m inisterial assenta que o condutor da viatura dera voz de prisão ao m eliante, o qual em preendeu fu g a do lo­ cal dos fa to s, saindo em desabalada carreira, ingressando em um estabelecim ento com ercial de venda de roupas; ato contínuo, quando o m eliante fa z ia m enção de entrar em em bate corporal com um popular, o condutor disparou a arma, alvejando a perna do m eliante, que passou a claudicar, motivo pelo qual teve de ser im ediatam ente conduzido ao nosocôm io mais próximo, onde o facultativo de plantão passou a faz er-lh e in­ tervenção cirúrgica im ediata.

O jargão jurídico é constituído por aquelas palavras que não possuem nenhum arcabouço técnico, apenas um meio específico de os profissionais de determinada área se expressarem. Talvez nem fosse necessário, ao leitor mais atento, mostrar que algumas substituições de linguagem seriam extremamente cabíveis para deixar o discurso mais claro sem prejudicar-lhe minimamente o sentido origi­ nal, como:


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Exordial m inisterial = denúncia. Empreendeu fu g a do local dos fa to s = fugiu dali. Enpreendeu fu g a do local dos fa to s + saiu em desabalad a carrei­ ra = fugiu dali correndo. Ingressando em um estabelecim ento com ercial de venda de rou­ pas = entrando em uma loja de roupas. Fazia m enção de entrar em em bate corporal com um popular = ia brigar com alguém. Passou a claudicar = passou a mancar. Facultativo de plantão = m édico de plantão. Passou a fazer-lh e intervenção cirúrgica im ediata = subm eteu-o a cirurgia.

Afinal, o que há de tecnicamente jurídico em chamar de exordial a denúncia? E de nosocômio o hospital? Eviden­ temente, a linguagem jurídica, como argumento que faz pre­ sumir o conhecimento da matéria, não se trata de jargão, mas sim de verdadeira linguagem técnica. Esta última é a lin­ guagem que nasce na teoria, ou seja, que tem arcabouço teórico aprofundado porque seu uso invoca desde logo um conceito científico recheado de sentido. Exemplo de linguagem técnica está no trecho abaixo: O processo está contaminado por nulidade absoluta, pois o indeferim ento da oitiva das testem unhas referidas violou a am pla defesa, e a ausência de intim ação para m anifestação sobre a quota do M inistério Público implicou ofensa ao con­ traditório.

A linguagem técnica é aquela carregada de sentido científico, em nosso caso avalizada pela doutrina jurídica. Nulidade absoluta pode parecer termo estranho ao leigo, mas é parte importante da doutrina jurídica, tendo assumi­ do essa denominação. Quando se fala em nulidade absolu­ ta, é invocado todo um sistema jurídico de garantias à for­ malidade dos atos e a inequívoca sanção a sua violação, que aqui não cabe aprofundar, mas que está contido naquele termo. Do mesmo modo, ampla defesa não é o mesmo que defesa ampla, porquanto se trata de expressão técnica, cheia de significado científico: a ampla defesa traz em si uma série


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de conseqüências que estão contidas nessa expressão, e, se assim não fosse, não seria letra da norma constitucional. E que dizer de contraditório? O que iria pensar um leitor leigo em letras jurídicas? Que algo contraditório é algo incoeren­ te, sem sentido, como dizer que algo é e não é ao mesmo tempo. Claro, contraditório é termo técnico, e como tal sua invocação faz parte do bom argumento, pois se o leitor não utiliza sequer esse termo, desconhece todos os conceitos que lhe estão por detrás. Linguagem técnica é aquela que vem recheada de sen­ tido científico, de conceitos, e isso a autoriza a diferenciar-se, na argumentação, da linguagem corrente. O jargão, ao contrá­ rio, representa uma diferenciação da linguagem corrente sem nenhuma justificativa técnica, e por isso seu uso não aparece como competência lingüística, salvo nos casos em que o discursante o faça intencionalmente. O que costuma ocorrer, como erro grave da argumenta­ ção, é utilizarem os jargões como se fossem linguagem técni­ ca. Assim, em lugar de representarem argumento, prejudicam a expressividade e tomam-se enfadonhos, mais afastando o interlocutor do que trazendo-o para o necessário contato que deve haver com o argumentante8. 0 discurso recheado de jar­ gões toma-se chato, pouco coeso e, pior, nada técnico. Sobre o tema, (mais uma vez) é impossível deixar de lembrar a percepção que Machado de Assis, com seu talen­ to inesgotável, faz sobre a importância da linguagem jurídi­ ca, quando o personagem Brás Cubas dedica-se a recordar o tempo de seu bacharelado. Acompanhe o texto, para dele retirar conclusões9:

8. O Dicionário Aurélio, ao definir uma das acepções de jargão como g í­ ria profissional, traz como ilustração interessante o texto de Lima Barreto, reti­ rado da obra H istórias e sonhos, de que aqui nos apropriamos: "Para eles [os doutores javaneses] é boa literatura a que é constituída por vastas compila­ ções de cousas de sua profissão, escritas laboriosamente em um jargão enfa­ donho com fingimento de língua arcaica." 9. M emórias póstumas de Brás Cubas. Capítulo 24, p. 62.


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Não tinha outra filosofia. N em eu. N ão digo que a U n i­ versidade m e não tivesse ensinado alguma; mas eu decoreilhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a com o tratei o latim; em bolsei três versos de Virgílio, dous de H o ­ rário, uma dúzia de locuções m orais e políticas, para as d es­ pesas da conversação. T ratei-os com o tratei a história e a ju ­ risprudência. Colhi de todas as cousas a fraseologia, a casca, a ornam entação... Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a m inha mediocridade; advirto que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.

Brás Cubas afirma mais de uma vez que estudou Direi­ to muito mediocremente, e que recebera, como uma grande "nomeada de folião", o grau de bacharel "com a solenidade de estilo, após os anos da lei"10. E pôde retirar do Direito, mais do que sua ciência, "a fraseologia, a ornamentação". A possibilidade que Machado de Assis aponta, já a seu tem­ po, é a de que alguns elementos de linguagem, que nada mais representam que a casca de uma ciência, venham a ser utilizados como se ela fossem. A crítica não é anacrônica. Ainda hoje o jargão jurídico aparece como conjunto de palavras desprovidas de conteú­ do significativo, mas com aparência de cientificamente fun­ damentada. Nesse sentido, o jargão é algo que interessa muito pouco à boa argumentação.

Competência lingüística e linguagem corrente Muito comum na linguagem jurídica é que se utilizem os denominados preciosismos, cuja espécie que se destaca é o arcaísmo. Preciosismo é a linguagem desnecessariamente rebuscada, que assume ares de culta, mas não o é. Para ser claro, palavras difíceis não significam direta­ mente competência lingüística, pois a boa argumentação é

10. Idem, Capítulo 20, p. 56.


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aquela que se transmite com fluência, com objetividade, e não, ao contrário, com palavras que dificultem a com­ preensão". Quem abusa das palavras difíceis não raro que­ bra a coerência do discurso: se pretendemos fazer um dis­ curso em linguagem que demonstre excessiva erudição, pelo conhecimento de vasto vocabulário, temos de mantê-lo no mesmo nível durante todo o percurso; de nada adianta meia dúzia de palavras escolhidas a dedo no dicionário, com nebuloso significado ao interlocutor, em enunciação per­ meada de erros gramaticais e impropriedades lexicais. No Direito, competência lingüística significa lingua­ gem precisa, direta, culta e clara. O patamar da linguagem culta, entretanto, diferencia-se da linguagem preciosa, da fal­ samente pomposa. O vocabulário empregado deve ser rico, vasto, mas da linguagem corrente, que não cause confusão ou destoe do resto do discurso. Todo termo mais raro deve contar com sustentabilidade na enunciação, ou seja, deve-se inserir em contexto adequado. Isso é importante que seja ressaltado, pois muitos autores confundem linguagem cul­ ta com uso de termos inusitados, antigos, arcaicos e de sig­ nificado pouco preciso para o leitor médio. Vejamos, para exemplificar, o texto abaixo, retirado da obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago: Um estôm ago que trabalha em falso acorda cedo. A l­ guns dos cegos abriram os olhos quando a m anhã ainda vi­ nha longe, e no seu caso não foi tanto por culpa da fome, mas porque o relógio biológico, ou lá com o se costum a cham arlhe, já se lhes estava desregulando, supuseram eles que era dia claro, então pensaram, D eixem -m e dormir, e logo com ­ preenderam que não, aí estava o ressonar dos com panhei­ ros, que não dava lugar a equívocos. Ora, é dos livros, mas muito mais da experiência vivida, que quem madruga por gosto ou quem por necessidade teve de madrugar, tolera mal que outros, na sua presença, continuem a dormir à perna

11. "Proicit ampullas et sesquípedalia verba” - Rejeita o estilo empolado e as palavras de pé e meio.


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solta, e com dobrada razão no caso de que estam os falando, porque há uma grande diferença entre um cego que esteja a dormir e um cego a quem não serviu de nada ter aberto os olhos12.

Perceba o leitor que as palavras utilizadas no texto, de autor português, são variadas e assumem sentido preciso e bastante claro, não obstante o estilo próprio de Saramago, de frases longas, com mescla de pensamentos distintos. Aqui não nos interessa o estilo literário dele, mas simples­ mente a seguinte observação: existe alguma palavra, no texto recortado, arcaica, rebuscada ou de sentido obscuro? A toda evidência, não. Todos os vocábulos utilizados são de lingua­ gem corrente. Não se pode dizer que o autor se utiliza de linguagem pouco culta, coloquial, e muito menos que seu texto não é eficiente, pois não foi gratuitamente que o conjunto de sua obra mereceu o Nobel de literatura. Na verdade, o que de­ termina a eficiência e o estilo do texto não é o emprego de algumas poucas palavras raras colhidas a dedo, mas sim a seleção constante de termos claros e precisos para enun­ ciar a idéia que se quer transmitir ao interlocutor. O que determina a boa seleção de vocábulos é sua coe­ rência, não uma ou outra palavra rara. Estas estão afastadas da competência lingüística. Ademais, a linguagem corrente implica certa flexibili­ zação, até mesmo nas regras gramaticais extremamente rí­ gidas. Se o leitor observar um texto de jornal, poderá ver, por exemplo, algumas colocações pronominais afastadas da norma culta, mas que respeitam a sonoridade e a proximi­ dade da linguagem oral. No discurso jurídico não se deve afastar a gramaticalidade, mas a existência de uma norma culta que em muito se distancia do discurso coloquial é fa­ tor a ser considerado13. 12. Ensaio sobre a cegueira, p. 99. 13. Sobre o tema é ilustrativo o conto "O colocador de pronomes", de Monteiro Lobato. O protagonista, Aldrovando Cantagalo, que "veio ao m un­ do em virtude dum erro de gram ática", acaba por morrer ao ver um erro de


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Carga semântica Como vimos, a boa enunciaçâo significa também um argumento, pois o interlocutor é levado a presumir que idéia mais bem enunciada, mais bem transmitida, é a que conta com maior razão. Por isso, forma e conteúdo não são inde­ pendentes no contexto argumentativo. Mas há que se realçar, ainda, que na vastidão vocabular da língua portuguesa (como em qualquer idioma moderno) o conhecimento da força das palavras é fator também rele­ vante àquele que argumenta. A cada vocábulo (conjunto de letras que representam sons) é acoplada uma idéia, certo sig­ nificado. Esse vocábulo, jungido a seu significado, denomina-se termo. Os vocábulos que têm o mesmo significado são chamados de sinônimos, e o dicionário, conjunto ordenado de vocábulos de um idioma, é responsável por listá-los to­ dos, ou ao menos indicar essa coincidência de significados. Variar as palavras de mesmo significado (ou, mais tec­ nicamente, de significados parecidos) não implica apenas questão estilística. A carga de significado de cada termo tem sua importância argumentativa, da qual o discursante não pode descuidar. Quando um ministro afirma que, com o aumento do preço do petróleo no contexto mundial, pode haver flexibi­ lização dos valores das tarifas públicas em geral, certamen­ te está se utilizando de um argumento de enunciaçâo, de competência lingüística. Ainda que flexibilizar possa signi­ ficar tom ar flexível, ou seja, aumentar ou diminuir, no caso está evidente que é impossível a diminuição das tarifas pú­ blicas; descartada essa hipótese, somente se pode entender que as tarifas públicas, conforme o discurso do ministro, irão aumentar.

colocação pronominal no livro que publicara porque o gráfico decidiu alterar uma frase, talvez em nome da sonoridade. Com ironia, Lobato descreve a cena como o momento em que "morreu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da Colocação dos Pronomes". Crítica interessante à rigidez das normas gramaticais e o apego a elas, em nosso idioma.


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Flexibilização e aumento têm o mesmo significado? Po­ dem levar mensagem semelhante ao interlocutor, mas o dis­ cursante, ao utilizar o primeiro termo, não ignorava que seu discurso seria mais persuasivo (menos áspero, já que trans­ mitia más notícias) ao evitar a qualquer custo a odiosa pa­ lavra aumento. Quando o defensor, no tribunal do júri, afir­ ma que seu cliente transgrediu a lei, enquanto o promotor diz que o réu assassinou ou, ainda menos tecnicamente, cha­ cinou três pessoas, referem-se ao mesmo ato, mas a carga de significado de cada uma das expressões acompanha seu contexto argumentativo. Muitos nomes servem a pontos de vista argumentativos, e por isso devem ser utilizados adequadamente. São conteúdo do próprio argumento, em simbiose conteúdo/for­ ma: certamente, se um historiador refere-se a determinada cruzada como "batalha contra os infiéis", com certeza de­ monstra seu ponto de vista apenas pelo vocabulário que utilizou para enunciar o fato, sem necessitar, para isso, re­ velar explicitamente, pelo conteúdo de sua tese, qual será seu posicionamento: contra ou a favor das batalhas de fun­ damento religioso. Do mesmo modo, o rico industrial dirá que sua atividade é a de gerar lucro, enquanto o sindicalista representante de seus empregados falará em acumular capi­ tal; alguém que é favorável ao aborto chama-o de "inter­ rupção voluntária da gravidez", e assim evita aquele pri­ meiro nome; em essência, é o mesmo, mas argumentativamente é bastante diverso.

Expressões latinas e brocardos jurídicos Ao tratar de carga semântica, de força do significado das palavras, é importante cuidar, no contexto jurídico, dos chamados brocardos jurídicos e das expressões latinas. Qual seu verdadeiro sentido no contexto da argumentação? Permita-nos uma digressão. Há algum tempo, recente, era corrente a recomendação de que, no exame de admis­


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são para a Ordem dos Advogados, o candidato fizesse uso de, no mínimo, três expressões latinas. Sem termos nenhum conhecimento do que envolve o exame da Ordem, tratáva­ mos de desmentir - sem nenhuma autoridade para isso, já que ignorávamos seus métodos - aquela recomendação. Não se poderia medir a capacidade de redação jurídica (e muito menos de argumentação) pelo uso de uma língua morta. Na dúvida, e esse era o ponto mais interessante de toda a história, os candidatos que impropriamente nos consultavam, não querendo correr nenhum risco de serem reprovados, revelavam-nos a inteligente recomendação que haviam ouvido: que utilizassem três expressões latinas ge­ néricas que cabem em qualquer peça. Geralmente, disseme um deles, usamos data venia, ab ovo e ex positis; quando muito, um rebus sic stantibus. Ora, o que os candidatos faziam, ao selecionar as expres­ sões genéricas apenas para cumprir um hipotético requisito da prova, era enunciar expressões absolutamente vazias de sentido. O problema é que esse erro se repete no cotidiano do Direito: peças e sentenças permeadas de expressões latinas que nada acrescentam a seu equivalente em português, ape­ nas tornando a linguagem pouco límpida e objetiva. Como argumentação, as expressões latinas podem ter duas funções: como demonstração de competência lingüísti­ ca, têm o efeito persuasivo de mostrar ao interlocutor de­ terminado domínio da matéria jurídica que o faça presumir autoridade na enunciaçâo da tese. Esse efeito, entretanto, cai por terra quando essas expressões são genéricas e, antes de revelar qualquer conhecimento mais aprofundado da ciência jurídica ou, ainda menos, do latim, mostram apenas que o discursante usa algumas expressões latinas como curingas na manga, na intenção de tornar mais culto um dis­ curso que não sustenta o arcaísmo da língua morta. A segunda função da expressão latina - essa sim mais freqüentemente usada com eficiência suasória - é a de re­ velar que determinado princípio é tão antigo e amplamen­ te aceito que deve ser interpretado como senso comum. E


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nesse sentido que apresentamos, em rodapé, algumas de­ las, quando pertinentes ao contexto. Grosso modo, a ex­ pressão latina carregada de sentido mostra que determinado princípio é tão antigo que se cristalizou em língua morta; a isso soma-se um mais claro argumento de competência lingüística, já que a expressão carregada de sentido revela erudição do discursante. As expressões carregadas de sen­ tido são os denominados brocardos, os axiomas jurídicos, as máximas que revelam princípios amplamente aceitos, por isso sua proximidade com o argumento de senso co­ mum. Essas expressões não são exclusivas da área jurídica, mas é no discurso judiciário que mais aparecem. Podem ser extremamente persuasivas, se bem encaixadas no con­ texto do discurso, sustentadas, sem que pareçam pedan­ tes. Assim, se alguém, ao pedir o indeferimento da oitiva de uma testemunha, porque medida somente protelatória, já que todas as provas já estão no processo, argumenta que Ursi cum adsit vestigia quaeris ou que In silvam... ligna f e ­ ras14, sem dúvida invoca para si a linguagem como meio de persuasão, já que as pequenas sentenças valem muito mais que longas explicações a respeito dos motivos pelos quais deve haver o indeferimento. Senão, no mínimo, re­ forçam com grande capacidade de adesão os argumentos já enunciados.

Conclusão A criação do discurso é ato personalíssimo. Se cons­ truímos um texto, oral ou escrito, em determinado dia, ele é essencialmente diferente daquele que seria enunciado se deixássemos para fazê-lo no dia seguinte. Tratando-se de linguagem, os meios de enunciação são infinitos e influen­ ciam muito na persuasão. Aqueles que defendem o raciocí­

14. "Em presença da ursa, não procures suas pegadas", e "levarias lenha ao bosque". In: TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas, p. 222.


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nio puramente lógico desprezam o resultado suasório de uma frase de efeito, de palavras bem colocadas, de um dis­ curso fluente. O argumento de competência lingüística é um dos m o­ dos de explicar o efeito suasório da expressividade, dos infi­ nitos meios de enunciar uma mesma idéia. Importa em afir­ mar que qualquer investimento em linguagem é rentável em efeito persuasivo. Toda cultura, todo vocabulário, toda correção gramatical, todo cuidado na montagem de frases e parágrafos ou na construção sintática do discurso oral re­ presentam, em última análise, um meio de persuasão. A esse meio soma-se a idéia, inequívoca, de que a linguagem do indivíduo é freqüentemente medida pelo ouvinte, ainda que não tenha ele grande intimidade nessa matéria. Os meios de expressividade do discurso são inúmeros, e amiúde estão a cargo dos bons manuais de redação, de gramática e de literatura, afora as construções enunciativas que se encontram recomendadas em livros de argumenta­ ção. Conhecer a linguagem e aperfeiçoá-la é tarefa para o resto da vida, na formação de um estilo enunciativo pessoal, que também é constantemente sujeito a ser aprimorado. Sem confundir linguagem culta com linguagem preciosa e arcaica, estudar os meios de enunciação sempre convergirá para um discurso mais convincente. Ainda que aparente­ mente em estreita medida, qualquer termo novo é útil15. Lembrando novamente a ilustração do nobre vende­ dor, o discurso com grande conteúdo e pouca forma está m e­ nos para o bom livro com capa feia que para o carro de mo­ tor possante e pneus carecas. A boa linguagem sempre é argumento.

15. sombra.

"Etiam capillus unus habet umbram suam" - Até um fio de cabelo faz


Capítulo XIII

Honestidade da argumentação e ordem dos argumentos O argumento seduz. Porém, trata-se de uma sedução intelectual: a progressão discursiva deve agradar o raciocínio lógico do interlocutor, e é nesse sentido que as falácias de­ vem ser evitadas.

No capítulo anterior, com a competência lingüística, terminamos nossa exposição sobre os tipos de argumentos mais comuns. É importante que eles sejam sempre varia­ dos, pois, como veremos, serão maiores as probabilidades de persuasão. Há, por certo, muitos outros tipos de argumento, mas julgamos que seria pouco útil simplesmente apresentar no­ menclaturas e exemplos retirados de outros autores, pois o mais importante é refletir sobre a eficiência de cada um de­ les, ainda que por denominações menos específicas, como temos procurado fazer aqui. Agora, superada essa visão panorâmica dos tipos de ar­ gumentos, voltamos ao estudo da argumentação mais ge­ nérica, para abordar a construção e a combinação de todos eles na organização do discurso.

Honestidade e falácia Criar argumentos significa manejar os elementos lin­ güísticos aptos a persuadir. A melhor argumentação é aque­ la que mais convence, e uma das características da argumen­ tação convincente é que seja honesta. Não existe nada pior ao interlocutor que perceber que o argumentante delibera­ damente procura induzi-lo a erro.


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O que é a argumentação honesta? Recorremos a Reboul1: Ora, se uma argum entação é mais ou m enos desonesta, não é porque seja m ais ou m enos retórica. Caso contrário Platão, cujos textos são infinitam ente m ais retóricos, pelo conteúdo oratório, que os de Aristóteles, seria m enos h o n es­ to que este! Então, segundo quais critérios avaliar a h on esti­ dade dum a argum entação? O primeiro que vem à m ente é o da causa. U m a argu­ m entação valeria pela causa a que serve. Mas com o explicar que um a causa excelente seja às vezes defendida por uma m á argum entação? E, principalm ente, com o sabem os que um a causa é boa? O critério supõe que o valor da causa seja conhecido antes da argumentação encarregada de estabele­ cê-lo: o que eqüivale a julgar antes do processo, a eleger an ­ tes da cam panha eleitoral, a saber antes de aprender. Não existe dogm atism o pior.

Articular argumentos não significa qualquer forma de fugir à honestidade, porque, como comentamos largamen­ te nos primeiros capítulos, a efetiva aplicação do Direito ocorre apenas por meio da argumentação, de modo que, se é ela a forma lícita de efetivar o Direito, não pode, ao m es­ mo tempo, ser a forma ilícita de expô-lo. Não se mede a honestidade da argumentação, como bem observa o texto transcrito, pela causa que se defende. Existem seguidores que apóiam incondicionalmente o po­ sicionamento de um líder, porque acreditam ser ele boa fon­ te de pensamentos, sejam religiosos, políticos etc. Mas isso não significa boa argumentação, pois esta somente é medi­ da como boa ou má em seu percurso, e não previamente, o que no discurso judiciário implica prejulgamento. A argumentação passa a ser desonesta quando tende à falácia, o erro2 que prejudica a verossimilhança, porquanto desvia o percurso argumentativo da razoabilidade lógica. Já 1. Introdução, cit., p. 98. 2. Cf. W ESTON, A. Las claves, cit., p. 123.


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vimos, no decorrer da classificação de argumentos, as prin­ cipais falácias, ou seja, o momento em que o argumento f a ­ lha. Ele falh a porque foge à percepção do discursante que a idéia que lança, em vez de colaborar para a condução do interlocutor à conclusão, afasta-o dela, porquanto o argu­ mento, imperfeito que é, tende à desonestidade. Vale rever, muito brevemente, com alguma sistemática, as falácias já enunciadas: Preconceito e generalização: o argumento de senso co­ mum é muito eficiente quando enuncia um preceito que não pode ser contestado, como quando se diz que um ser hu­ mano que passa fome não pode dar importância a questões intelectuais. Entretanto, o argumento perde força quando enuncia generalização indevida, como quando se diz que os moradores da favela são todos voltados para o crime. Reducionismo: outro tipo de falácia consiste no esqueci­ mento de causas diversas, para argumentação, também de­ nominada ignoratio elenchi. Aparece tanto nos casos em que se analisa um fenômeno de modo a retirar dele elementos importantes (por exemplo, quando o advogado diz que seu cliente está preso apenas por ter antecedentes criminais, quando deixa de dizer que existem contra o réu indícios for­ tes de autoria de um novo delito, motivo que verdadeira­ mente motivara seu encarceramento); ou ao deixar de res­ ponder às questões e aos argumentos daquele que tenta fazer vingar uma tese e que cobra manifestação legítima por parte daqueles que devem explicar seu posicionamento (como quando, em embargos de declaração, exige-se do julgador que se manifeste minuciosamente sobre os motivos que o fizeram deixar de acolher os argumentos articulados em m o­ mento oportuno3). Falácia ad hominem consiste no indevido ataque à pes­ soa do argumentante ou da autoridade, sem que se enfren­ tem suas idéias, ou, neste último caso, suas qualificações. Já

3. Vide Capítulo XIV.


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nos referimos a ela no Capítulo IX, quando cuidamos do argumento ad hominem. Perelman denomina argumento ad personam a pura ofensa pessoal ao argumentante ex-adverso, e então é cer­ to que esse tipo de recurso deve ser evitado, pois raramen­ te conta com crédito do ouvinte ou do leitor, ao menos do mais criterioso. Entretanto, quando a parte contrária utili­ za-se da autoridade de determinada pessoa como modo de valorizar seu raciocínio, não parece falacioso, como contraargumentação, destituir a autoridade citada, encontran­ do-lhe histórico de contradição ou de pouca honestidade científica4. Falácia ad misericordiam é aquela que apela à piedade5 como argumento em favor de uma causa, a exemplo do pro­ curador que assume que seu cliente, pela lei, merece grave reprimenda penal, mas sua prisão deixará a família sem sustento. O percurso estruturado de forma aparentemente lógi­ ca e que, por isso, conta com aparente validade, denominase sofisma. Ele ocorre pelo desvio de sentido no percurso lógico, quando uma proposição não leva necessariamente a uma conclusão. Exemplo desse tipo de construção já foi ana­ lisado no texto de Veríssimo, O gigolô das palavras, quando faz a afirmação: "A gramática é o esqueleto da língua. Só pre­ domina em línguas mortas." Esqueleto, na primeira proposição, sendo imagem de es­ trutura, passa a, na segunda proposição, representar imagem de morte, e esse desvio, proposital, leva o autor a concluir, 4. Comenta Eemeren: "In the third variant of argumentum ad hom i­ nem, na attempt is made to find a contradictiona in one's oponent's words or between his words and his deeds na to undermine heis credibility in doing so. Usually, such a discrepancy between a person's statemant or between his ideas and his actions in present and past is referred to by its Latin name tu quoque. Tu quoque, in its basic form, ocurs when someone casts doubt on a stand point of wich he himself is na adherent" (EEMEREN, F. H. e G ROOTENSDORST, Rob. Argumentation, cit., p. 81. 5. Cf. WESTON, A. Las claves, cit., p. 127. Ver, também, Argumento de fuga.


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erroneamente, que a gramática só predomina em línguas mor­ tas. Muitos raciocínios sofismáticos são encontrados na ar­ gumentação jurídica, como no exemplo abaixo: O réu alega que é pobre e nunca teve envolvimento no crime de tráfico de drogas, pois se o fizesse teria m elhor con ­ dição econôm ica. Entretanto, contratou para defendê-lo um dos m elhores advogados do país, e, sabe-se, bons advogados são caros. Um profissional com o esse não seria co n tra ta ­ do por um pobre e, por isso, não é verdade que o réu não te ­ nha envolvimento com atividade criminosa, pois som ente dela poderiam vir os proventos para os honorários do res­ peitável defensor.

A estrutura é aparentemente lógica, mas o excessivo reducionismo que se oculta em cada proposição lançada no discurso torna a conclusão inadequada às proposições ini­ ciais. O discurso poderia ser resumido assim: Um bom advogado é caro (exige dinheiro). O réu contratou um bom advogado. Logo, o réu tem dinheiro. H onestam ente, o réu não pode ganhar muito dinheiro. Logo, o réu não vive honestam ente (é ligado ao crime de tráfico).

Proposições desvirtuadas fazem com que a argumen­ tação seja logicamente falha. Seu resultado não é de todo inaceitável, pois não se trata de uma argumentação ab ab­ surdum, mas há uma série de desvios que afastam o bom in­ terlocutor da verossimilhança. Nem sempre o bom advoga­ do exige dinheiro, pois pode trabalhar em algumas causas para fazer um trabalho social, para ajudar algum amigo, para ganhar notoriedade ou experiência, dispensando assim qual­ quer pagamento. Isso já desconstitui o primeiro silogismo. No segundo, as falhas são ainda mais evidentes: não se pode dizer que honestamente o réu não ganhe dinheiro, por mais desqualificado que seja em relação aos estudos, pois essa


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afirmação não passa de preconceito; além disso, pode con­ tratar seu advogado com recursos de familiares que quei­ ram vê-lo em liberdade por amor a seu ente, e para isso reúnam patrimônio razoável; ainda que pague seu defensor com dinheiro desonesto, não se autoriza afirmar que esse recurso provenha do tráfico de drogas, que seria a tese final a que o discurso quer conduzir. Mesmo que o interlocutor não faça todo esse raciocí­ nio para desqualificar o argumento lançado, o intui, e assim o ataque pessoal ao advogado, porque poroso, soa pouco honesto. Não nos deteremos por demais nas construções falacio­ sas, pois a liberdade argumentativa, baseada na verossimi­ lhança, é pressuposto que não se pode derrogar na argumen­ tação, e por isso quase todo argumento pode ser apontado como arrimado em uma premissa de mera probabilidade, como já apontamos. É falha, e portanto inaceitável, a argu­ mentação cuja conclusão não provenha de uma premissa seguramente provável, tal qual nos casos apresentados, em que a combinação de probabilidades fracas acaba por retirar do argumento a credibilidade mínima para o convencimen­ to do interlocutor. A honestidade na argumentação passa, então, pela construção do discurso apto a conduzir a uma conclusão aceitável, sem que se desvirtuem conscientemente de uma razoabilidade, uma probabilidade plausível, que faça com que o interlocutor deposite crédito no discurso, lembrando-se sempre que uma informação propositadamente des­ virtuada da verdade ou da verossimilhança pode pesar tanto ao interlocutor, que ele venha a rejeitar todo o discurso. Inevitavelmente, a desonestidade em um argumento con­ tamina todos os demais. Por fim, a boa argumentação é também aquela que não foge à defesa de uma tese clara, que sempre começa com um posicionamento bastante evidente. No discurso judiciá­ rio - ao contrário do que pode acontecer no epidíctico, de mera exaltação - não há espaço para muitas ambigüidades e


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dissimulações: a falta de clareza e objetivo sempre afasta o interlocutor, a quem interessa conhecer qual é o pedido que faz o discursante, da conclusão a que se pretende levar. No discurso político, em que são vigentes princípios bastante diversos daqueles dialéticos da argumentação fo­ rense, o pouco ético cardeal Mazarin, sucessor de Richelieu, recomendava: "Consulta com freqüência os tratados dos grandes retóricos: estes sabem não apenas provocar o ódio, mas também voltá-lo contra os que o provocaram; são capazes de excitá-lo ou de atenuá-lo. Eles te ensinarão igualmente como acusar ou te defender com maior eficácia. O mais importante é aprender a manejar a ambigüidade, a pronunciar discursos que possam ser interpretados tanto num sentido como no outro a fim de que ninguém possa decidir."6 A ambigüidade, no discurso judiciário, tem rara função, mas o discurso político, na aversão que tem a pro­ vocar qualquer desagrado, encontra maior serventia na ar­ gumentação baseada no senso comum, que, como já vi­ mos, tem pouca capacidade suasória, mas é eficiente para os fins pretendidos nesse específico tipo discursivo. Toda argumentação é válida, mas a fuga à verossimi­ lhança ofende o leitor, quebra a coerência e põe fim à capa­ cidade suasória do discurso.

Ordem dos argumentos A disposição dos argumentos é questão de relevante interesse na prática do discurso judiciário. Em sala de aula, muitos alunos questionam por onde iniciar a argumentação, e não há nenhuma dúvida de que este é ponto crucial na análise do discurso. Para responder a essa questão, entretanto, é preciso que esclareçamos alguns breves pontos que funcionam como premissa.

6. Breviário dos políticos, p. 117.


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Em primeiro lugar, é necessário frisar a diferença entre narrativa e argumentação. Como têm eixos de progressão distintos (temporal a primeira e lógica a segunda), não se podem misturar por longos trechos, como outrora se afir­ mou. Porque cuidamos da estrutura narrativa em sua lição específica, aqui trataremos apenas da ordem da argumen­ tação em sentido estrito. Esta se inicia quando já houver in­ formações suficientes no interlocutor que autorizem o ar­ gumentante a iniciar um percurso argumentativo claro, sem ter de proferir um discurso que se prolongue por de­ mais na ação de personagens no decorrer do tempo, ou, em outras palavras (menos técnicas), quando puder direta­ mente argumentar em vez de informar. De maneira prática, o argumentante preocupa-se com a ordem da argumenta­ ção depois de expostos todos os fatos, embora já saibamos que essa distinção pura entre narrativa e argumentação seja algo ideal. Em segundo lugar, é necessário nos lembrarmos da di­ ferença entre demonstração formal e argumentação. Na argumentação não é necessária (e quase sempre é impossí­ vel) a construção de uma cadeia causa/conseqüência abso­ lutamente linear, e isso leva a maior liberdade de constru­ ção de discursos, podendo-se iniciar com a exposição do posicionamento e da tese principal ("A defesa provará, nes­ tes minutos de fala, que o réu agira em legítima defesa, e isso será indubitável aos senhores jurados quando mostrarmos todas as provas do processo sobre as quais ora passamos a dissertar...") ou reservar para o desfecho esse mesmo pedi­ do ("A defesa, neste processo, tem visão bastante diversa daquela acusatória. Antes, entretanto, de adiantarmos aos senhores jurados qual será o pedido, é necessário que apre­ sentemos provas que a acusação, atendendo a seus inte­ resses, deixou de informar a Vossas Excelências"). Entre­ tanto, qualquer que seja o raciocínio formulado, indutivo ou dedutivo, a combinação argumentativa não segue um per­ curso rígido como a demonstração, esta sempre linear, tal qual as exposições matemáticas.


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O simples anagrama de Reboul7 ilustra muito bem as diferenças entre argumentação e demonstração: Demonstração:

A — B — C — D ...------► = Z B

Argumentação:

A

Z ' D

A ordem dos argumentos é de escolha do orador ou do autor do texto escrito. Depende dos momentos de ênfase que pretende estabelecer, da coerência em seus mais diver­ sos níveis, do ritmo do texto, da estrutura lógica. Como já se afirmou no capítulo referente à coerência, o mais importan­ te é que a estrutura seja planejada anteriormente, com o maior nível de consciência possível do transcorrer do texto. Com a prática, o argumentante consegue prever m en­ talmente qual será a estrutura de seu discurso. Entretanto, enquanto a prática não vem, ou nos casos mais complexos, essencial se faz que se trace um esboço, um rascunho da es­ trutura argumentativa, ao menos em seus pontos mais im­ portantes: os argumentos mais relevantes e sua ordem, sua extensão, as idéias menores que cada um deles comporta. As vezes até mesmo as piadas e as aparentes improvisações, nada escassas nos discursos de maior repercussão e profis­ sionalismo, são planejadas com antecedência em um per­ curso intencional.

M omentos principais da argumentação Fixamo-nos na segura asserção de que a ordem dos ar­ gumentos depende da coerência preestabelecida pelo dis­ cursante. Entretanto, alguém já disse que o discurso asse­ 7. Introdução, cit., p. 97.


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melha-se ao vôo do avião, que gasta a maior parte de suas energias no momento da decolagem e do pouso, sendo o transcorrer do vôo sempre mais econômico, calmo e seguro. Verdade que o piloto que fez boa decolagem tem m e­ nor preocupação com a aeronave no transcorrer de sua rota. Assim é também na argumentação, oral ou escrita: seu exórdio, seu início bem colocado economiza energia com escla­ recimentos e recursos de manutenção de atenção posteriores. Todo interlocutor, seja leitor, seja espectador, guarda gran­ des expectativas para o início do discurso, como se guarda para qualquer texto. Aquele silêncio antes do início do dis­ curso oral ou a margem e o cabeçalho do papel dele fazem parte, como bem ensina Platão Savioli8, e então funcionam como criadores de expectativa do interlocutor, da mesma forma que existe no começo de um filme: de que se trata? O que pretende transmitir-me? Damos ênfase a essa noção de expectativa pelo exórdio porque, não raro, a prática dos discursos forenses a que as­ sistimos, principalmente em sustentações orais - permitanos dizer -, desperdiça essa oportunidade. Sustentações que se iniciam com longas saudações e nada realçam ao come­ ço efetivo da argumentação, lançando-se mão de chavões, lugares-comuns insossos para essa introdução do discur­ so, acabam por não criar no interlocutor o menor interesse para ouvir o que se tem a dizer. Talvez por insegurança, tal­ vez por falta de ousadia ou, pior, por sequer refletir a res­ peito, os textos (orais ou escritos) fazem pouco uso de boas construções introdutórias. Ora, um avião que queira pou­ 8. Vale a pena copiar sua lição: "A segunda característica de um texto é que ele é delimitado por dois brancos. Se um texto é um todo organizado de sentido, ele pode ser verbal (um conto, por exemplo), visual (um quadro), ver­ bal e visual (um filme) etc. Mas, em todos esses casos, será delimitado por dois espaços de não-sentido, dois brancos, um antes de começar o texto e ou­ tro depois. É o espaço em branco no papel antes do início e depois do fim do texto; é o tempo de espera para que o filme comece e o que está depois da pa­ lavra Fim; é o m om ento antes que o maestro levante a batuta e o momento depois que ele a abaixa etc." (SAVIOLI, Francisco Platão e FIORIN, José Luiz. Lições de texto, p. 17).


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par combustível na pista de decolagem por certo não sairá do chão1*. Se é imprescindível (e efetivamente é) no discurso ju­ diciário que se façam saudações extensas, por vezes surgi­ das de um exagerado protocolo, em texto oral ou escrito, o discursante pode, depois deles, estabelecer claros que deli­ mitem o início efetivo do discurso original, apartado já do protocolo: um subtítulo no texto escrito, um breve intervalo de tempo entre as saudações de praxe e o início da argu­ mentação propriamente dita, no texto oral (este último re­ curso bastante utilizado pelos advogados do tribunal do júri, mas, aparentemente, pouco explorado por aqueles que fa­ zem as sustentações orais regimentais, de aproximadamen­ te vinte minutos). Esse claro permite a criação de um início real do discurso, a introdução que prenda a atenção do in­ terlocutor, esclarecendo os motivos que o convidam a aten­ tar para o discurso. Vários são os modos de prender a atenção ao discurso, aproveitando a expectativa que tem o interlocutor ao exórdio, no texto escrito ou oral. As perguntas retóricas de Cí­ cero, nas Catilinárias10, são exemplo irretorquível: IX Mas, por que falo? Q u e coisa nenhum a te dobra? Que tu te corrijas? Que tu m editas um a fuga? Que tu pensas de qualquer m aneira em um exílio? O h! Te inspirassem os deu­ ses im ortais um tal pensam ento! Ainda que eu preveja que terrível tem pestade de ódio recairá sobre mim, em bora não para o m om ento, quando é recente a lembrança dos teus cri­ mes, certam ente para o futuro, se tu, esm agado pela m inha palavra, resolveres ir para o exílio. M as tanto faz: contanto que esta desventura recaia sobre ti e esteja livre de perigo para o Estado. (...) Tu não és hom em , Catilina, que um sen­ so de honra te impeça um a infâmia, ou o tem or um perigo, ou a reflexão um ímpeto de loucura.

9. "Portam itineri dici longissimam esse" - Dizem que numa viagem o per­ curso mais longo é o da porta. 10. As catilinárias, p. 104.


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A pergunta retórica - aquela questão cuja resposta é desnecessária, pois já vem determinada no contexto em ­ bora não exija a interação do interlocutor, é sempre recurso útil para mudar de ritmo o discurso e fomentar a atenção do ouvinte. Aqui, utilizada na introdução do trecho do dis­ curso, chama a atenção para a indignação do autor, desper­ tando no interlocutor a curiosidade dos motivos de tama­ nha revolta, ao mesmo tempo que anseia por saber a que ela conduzira e com que razões. Mas nem sempre os recursos retóricos mais inusitados são imprescindíveis para a boa introdução do discurso, quer oral, quer escrito. Tomemos como exemplo o texto abaixo, fragmento inicial da réplica de Juarez Távora ao manifesto de Luís Carlos Prestes11: D iscordo do último m anifesto revolucionário do G en e­ ral Luís C. Prestes. N ão julgo viáveis os meios de que preten­ de lançar mão, para executar um futuro m ovim ento, nem aceito a solução social e política que preconiza para resolver, depois dele, o problem a brasileiro. Tem os tido - todos nós que hoje palm ilham os o cam i­ nho da revolução - um m esm o ponto de partida: - a descren­ ça na eficácia dos processos legais, para a solução da crise que asfixia a nacionalidade. Depois, os rumos se abrem, as opiniões se desencon­ tram, no lhe atribuírem as causas, no lhe prescreverem os re­ médios. H á os que de tudo criminam os hom ens, e há os que culpam, antes, o am biente vicioso em que eles se agitam.

O exórdio do texto é muito convidativo: o autor já se posiciona quanto à questão que vai desenvolver: opõe-se ao manifesto de Prestes (àquela altura muito conhecido, bem utilizando o autor da intertextualidade) e diz não aceitar a solução social e política preconizada no discurso a que se opõe. Depois, mostra concordar com um ponto de partida:

11. Brasil, p. 144.

Em 31 de maio de 1930. In: FENELON, D. R. 50 textos de história do


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a revolução e a necessidade de mudanças. Assim, o leitor já tem como proposta, enfática e atraente, daquilo que forço­ samente tem-se a desenvolver: as soluções sociais e políticas que o discursante deve propor, persuadindo a respeito de sua eficiência. Ao contrário do discurso político pouco inci­ sivo que vimos no tópico anterior, este passa a ser atraente pelo fato de propor um posicionamento evidente e uma tese a ser defendida de imediato, aí então muito se asseme­ lhando aos bons discursos judiciários. O risco de fazer-se um exórdio incisivo, revelando o po­ sicionamento e a tese, é o efeito deletério do discurso cujos argumentos não dão sustentabilidade devida à pretensão postulada: com uma introdução clara e enfática, o interlo­ cutor cobra mais os bons argumentos, pois a eles estará mais atento. Se não os houver, o discurso perderá efeito. E se muitos discursos pecam pela falta de ousadia em seu exórdio, o mesmo ocorre em se tratando do desfecho. Há poucas falhas piores na argumentação que terminar um discurso sem deixar claro ao interlocutor o que dele se pre­ tende, e é esse o ponto principal da peroração argumenta­ tiva: fazer com que o interlocutor aceite a conclusão e com­ preenda o pedido, sem ter oportunidade de pensar que os argumentos expendidos não tenham contribuído para tal tese, sobre a qual havia controvérsia. Em curso de redação, proferimos uma aula somente sobre os pedidos finais: o magistrado deve sempre saber o que se lhe pede, com efi­ ciência, até para facilitar sua decisão. Mas não é só do pedi­ do que é construída a peroração, o desfecho do discurso: um desfecho bem enunciado, em que se alarga o espaço para a emotividade, eventualmente para a descontração, a ilustração ou a digressão sobre um tema mais relevante, desde que pertinente, traz a vantagem de atingir mais de modo mais próximo o interlocutor, e preservar-lhe o pedi­ do na memória. Da mesma forma que sua atenção cresce pela curiosi­ dade ao início do discurso, também o ouvinte se atenta mais ao fim dele, quando percebe que está próximo, por saber


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ser trecho importante. A última cena do filme, o último ca­ pítulo do livro ou as palavras finais da petição são sempre os mais lembrados, não sem motivo. Aproveitar o início e o fim de cada discurso como fato­ res decisivos para a atividade suasória, e não apenas como "pontas" protocolares da argumentação, é dica importan­ tíssima. Pois o que seria de Cícero se não dissesse "Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra"? 12

Criando argumentos Em seis capítulos (VII a XII) vimos os tipos de argu­ mento. Nosso objetivo, como esclarecido, foi apresentar os meios mais comuns da argumentação, seus fatores de per­ suasão e seus pontos fracos. A classificação serve para am­ pliar a gama daqueles argumentos de que já fazemos uso, e com uma sistemática fica mais prático lembrar idéias a se­ rem lançadas a título de argumento: autoridade, senso co­ mum, competência lingüística, exemplo... São, entretanto, generalizações. É necessário conhecer cada caso, saber com profundidade cada um que se discute. A afirmação parece óbvia (ou é óbvia), mas relevante que seja frisada, se pretendemos responder a questão tantas ve­ zes a nós repetida: como criar bons argumentos? Aqui pedimos licença para observações pouco mais subjetivas, afastando-nos (mais) um pouco do rigor técnico para chegar à resposta objetiva da questão que levantamos, por nos parecer útil a este pequeno trabalho. Dividiremos a consecução dos argumentos em duas fa­ ses: a primeira delas, o conhecimento amplo da matéria a ser discutida. O professor que não estuda a fundo aquilo que pretende ensinar pode ser o mais didático do planeta, e ainda assim dará uma péssima aula. Do mesmo modo, o tribuno do júri de mais brilhante erudição e oratória pode

12. Conhecido exórdio das Catilinárias.


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perder o plenário frente a um adversário gago, iniciante e pouco erudito, que se tenha dedicado horas intermináveis a conhecer cada letra do processo que iria a julgamento. Não há outra maneira de alcançar bons argumentos que não o estudo e o conhecimento da matéria principal que se deve discutir. Esse trabalho é imediato e deve ser feito caso a caso. Vale a pena ler o fragmento do discurso de Langdell, no fim do século XIX, citado por Vandevelde13: Foi indispensável estabelecer pelo m enos dois pontos: primeiro, que o Direito é uma ciência; segundo, que todo o m aterial dessa ciência está disponível nos livros. [...] Tem os insistido tam bém na idéia de que a biblioteca constitui a ofi­ cina adequada de professores e estudantes; de que ela repre­ senta, para nós, o que os laboratórios da universidade re­ presentam para os químicos e físicos, o que o museu de h is­ tória natural representa para os zoólogos e o que o jardim botânico representa para os botânicos.

Langdell, no Direito anglo-saxônico, defendia a idéia de que os casos jurisprudenciais, todos recolhidos e edita­ dos em livros, servem ao jurista para que deles pudesse adu­ zir as regras de Direito, em um método indutivo. Sem nos aprofundarmos no pensamento de sua escola e na proprie­ dade de se inferirem regras jurídicas com base em princí­ pios jurisprudenciais, o fragmento é correto ao afirmar que é a leitura o ponto de partida para o desenvolvimento de qualquer raciocínio, em nosso caso o argumentativo: sem a leitura (e a compreensão) exaustiva do caso e da matéria ju ­ rídica a respeito, qualquer início de argumentação pode re­ dundar em fracasso. A segunda fase não pode ser feita imediatamente, e depende do acúmulo de conhecimento lento, mas impor­ tante. Da mesma forma que não há argumentação que pos­ sa ser feita sem o conhecimento aprofundado da matéria 13. Pensando como um advogado, p. 149.


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específica, não há bom orador ou escritor que não seja dado à cultura geral, à erudição como um todo. Grandes ques­ tões da humanidade podem ser resolvidas não em discur­ sos técnicos, mas em uma conversa sobre pintura, música, história, personalidades e outros temas mais genéricos, e isso é fato. Não cabe ao discurso judiciário analisar tais questões, mas pode-se dizer que a maior abrangência do argumento abre espaço no interlocutor para a persuasão: as ilustrações e os exemplos, que já foram estudados; se não o fizer, no mínimo contribuirá para o argumento de compe­ tência lingüística, pois a boa enunciação não vem da técnica jurídica, mas do trato com as matérias humanas em geral. Aliás, a grande vantagem do Direito, para os argumentantes, é que, como matéria humana, aceita em tese quase qualquer tema em seu discurso: filosofia, sociologia, antropologia, psicologia, história e... até mesmo a matemática já se encai­ xou tão bem em exemplos argumentativos que aqui anali­ samos. É a grande dinâmica de nosso discurso. Ousamos repetir: para o argumentante, não há leitura que seja desperdiçada, pois é no acúmulo dela que se com­ plementa essa segunda fase argumentativa: as digressões, ilustrações e exemplos que funcionam como embreagem dos argumentos mais rígidos, atingindo a adesão dos espíri­ tos o contato com o interlocutor, até mesmo no discurso es­ crito. Novamente, é nos livros que se procuram os argu­ mentos, como bem lembrou o velho Sousa, personagem de Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha14: A fonsinho - Não, Sousa, m em orandum é pra lembrar e dem orandum é quando demora m uito... Entrem entes, é assim... Queria viver na Rom a Antiga... no Senado, formado pelos senectos, os velhos, os antigos... Aquela gente adorava a v e ­ lhice, a velhice dava ibope... Sousa - E... m as veio o Gutenberg, inventou a imprensa, e a experiência agora está nos livros. Saím os de moda.

14. Nossa vida em fam ília, p. 90.


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Não é certo que a experiência seja substituível, como quer mostrar o personagem, mas é bem verdade que é de­ les que os indivíduos de leitura constante têm repertório ar­ gumentativo mais amplo. Por isso, conselho de ordem bem prática: uma biblioteca organizada e o interesse pelos livros em geral fazem o pano de fundo da argumentação. Daí basta estudar o processo argumentativo, dele tirar noções concretas como aqui se demonstra, e assim toda nova leitu­ ra, ainda que feita em mero momento de lazer, poderá ser dirigida à formação de uma argumentação posterior. Traba­ lho longo, mas sempre frutífero15. Quanto à forma de estimular o raciocínio para a cria­ ção de argumentos, vale consultar o último capítulo, que cuida da criatividade.

Argumentar ou mostrar erudição? No capítulo seguinte, trataremos um pouco dos exces­ sos argumentativos, quando argumentar demais prejudica o interlocutor. Mas, já neste ponto, cabe uma dica específi­ ca: ainda que os bons argumentos venham da erudição, da leitura crítica do material que se dispõe, com vistas a trans­ formar a informação em argumento, os excessos podem ter efeito deletério, como aliás todo excesso. Essa observação parece-nos importante porque existe a tendência, entre os pseudo-eruditos", de construir argu­ mentações com excessos de citações e referências, aten­ dendo ao que diz o jargão: "Não ensine nada, apenas mostre que você sabe." Argumentações não são tablado para cita­ ções nem exercícios de reprodução de textos alheios: ape­ nas mostrar pesquisa geralmente não é fator de persuasão, 15. "Litterarum radices amaras, fructus dulces” - As raízes da cultura são amargas, mas seus frutos são doces. 16. '‘Altíssima quaque flum ina mínimo sono labi" - Quanto mais profun­ dos os rios, menos ruidosa a correnteza.


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mas, não raro, de grande desinteresse do leitor. A informa­ ção, pois, é argumento na medida em que colabora para a tomada da decisão, e não apenas quando é matéria teórica relacionada ao tema sobre o qual se disserta. Por isso, a dica tão prática: Seja interessante: não diga tudo o que sabe, m as ap e­ nas o que os leitores querem saber.17

Pois a argumentação é um constante equilíbrio.

Conclusão Além dos tipos de argumento, a atividade suasória de­ pende de outros fatores para seu sucesso. A coerência, a intertextualidade, que já havíamos estudado, e, aqui, a hones­ tidade e a boa disposição dos argumentos. Pensar em ser leal com o interlocutor e com a parte contrária não é apenas um princípio ético, já que tem seu efeito pragmático: basta lembrar que não há mentira que se sustente por muito tem­ po ou que seja irredutível a uma mente mais crítica. Quanto à ordem dos argumentos, o essencial é lem­ brar que ela depende de cada discurso, mas que seus mo­ mentos principais não podem ser desperdiçados. Utilizar um lugar-comum para o exórdio ou a conclusão do discur­ so apenas para ter como começar ou terminar pode represen­ tar o insucesso de um contexto de argumentos altamente persuasivos.

17. In: CONQUET, André. Como escrever para ser lido, p. 91.


Capítulo XIV

Espaço da argumentação jurídica: sentença e teses subsidiárias A sentença judiciária também é lugar da argumenta­ ção. Como processo suasório, a ela não basta enunciar com coerência uma tese ganhadora, mas convencer a parte sucumbente de que suas razões não foram aceitas por motivo razoável.

Depois de analisadas as técnicas argumentativas gerais, reservamos este capítulo para alguns breves comentários, sobre duas questões peculiares do discurso jurídico, que en­ tendemos não poder deixar de lado, principalmente pelo quanto nos ensina, de maneira contínua, a efetiva operação nos procedimentos judiciais. Mantendo, claro, o prisma de análise na argumentação jurídica, não queremos sequer tangenciar o Direito proces­ sual, pois isso demandaria um estudo diferenciado, afastan­ do-nos de nossos objetivos. Se o fizermos, entretanto, será somente para não fugir à análise mais completa, ainda que sucinta, da problemática que se colocará em nosso contex­ to discursivo.

Sentença como espaço argumentativo No Capítulo III, cuidamos da diferença entre funda­ mentação e argumentação. Grosso modo, lembramos que a fundamentação tem seu centro na pessoa que enuncia, en­ quanto a argumentação tem como cerne a pessoa a quem se enuncia. Quando o juiz fundamenta, explica seu próprio ra­ ciocínio segundo as provas apresentadas, os motivos que o levaram a decidir, ao passo que quem argumenta, além de constituir um raciocínio logicamente aceitável e persuasivo,


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preocupa-se em enunciá-lo com elementos lingüísticos, de conteúdo e de forma, que facilitem a aceitação do interlocu­ tor sobre a tese que procura fazer valer. A sentença é, pois, discurso decisório. Quem julga de­ cide, e decide pelo melhor. A fundamentação da sentença é, então, a justificativa arrazoada da decisão, e deve ser bem detalhada, para explicar às partes sobre sua razão, também manifestando aos jurisdicionados, como já se disse, que ela não é fruto de mero arbítrio, em nenhum de seus trechos, mas sim de um raciocínio lógico e justo de aplicação da lei ao caso concreto. O único limite para a decisão do juiz é, pois, sob o ponto de vista argumentativo, o uso do áesarrazoado, pois qualquer teor decisório pode ser prolatado, des­ de que suas razões sejam efetivamente convincentes, em um percurso lógico. Mas esse raciocínio, correto, de que o limite da deci­ são judicial é o uso do desarrazoado, ou seja, que ao julga­ dor somente é defeso decidir aquilo que deixar de funda­ mentar, com - no mínimo - o ordenamento jurídico e as provas colhidas no processo, tem levado a uma interpreta­ ção que, a nosso ver, é fraca e errônea: a difundida falta de obrigação do julgador de responder, uma a uma, às alega­ ções das partes. Em nossos tribunais, ao menos por ora, tem-se fixado o posicionamento jurisprudencial de que o juiz, quando en­ contra um fundamento suficiente para a prolação de seu ato decisório, não necessita responder, uma a uma, às alegações das partes. Tal posicionamento, entendemos, merece inter­ pretação absolutamente restrita. Pouco adiantaria - e isso é pacífico em nossa doutrina - o ordenamento processual zelar tanto pela oportunidade de manifestação das partes, pela ampla defesa e contradi­ tório efetivos se, em contrapartida, não houvesse garantia de que todas essas manifestações fossem efetivamente res­ pondidas no provimento jurisdicional1. Mas não é apenas 1. Vide arts. 5 o, XXXIV, LIV e LV, e 93, IX, da Constituição Federal; art. 165 e 458, II, e 381 do CPP.


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esse fundamento evidente, de cunho processual, que faz com que entendamos que a decisão judicial deve ter, como teor obrigatório, a explicação dos motivos por que não são aceitos os argumentos expendidos durante o curso de todo o procedimento submetido a exame. É que o ato de decisão não é o mesmo que o de demons­ tração. A demonstração é própria do raciocínio exato2, tão afastado da realidade dialética das lides processuais. Quan­ do um matemático demonstra que o resultado de uma equa­ ção é três, não precisa demonstrar por que não é quatro, cin­ co ou seis. Se o resultado é três, todos os demais algarismos, contrario sensu, estão obrigatoriamente afastados daquela resposta. Não existe resultado melhor ou pior no raciocínio demonstrativo, assim como não há um resultado mais justo para uma equação matemática, mas apenas um único, exa­ to. Neste caso, exato, e somente neste, apontar um único fundamento (por exemplo, um único método de resolver uma equação) já é o suficiente para a demonstração, pois qualquer outro caminho aceitável para resolver o mesmo problema alcançará idêntico resultado. Mas quando se submete uma controvérsia a uma deci­ são, a situação é muito diversa. Já vimos, no capítulo apro­ priado, que o discurso judiciário pode se desenvolver na dis­ puta entre dois certos, ou seja, pode haver dois discursos completamente antagônicos, sem que qualquer um deles seja certo ou errado, sendo ambos verossímeis, cada um a seu modo, cada um com sua perfeita coerência. Cabe decidir qual é o melhor e em que condições. Nesse contexto, seria simples o ato decisório se consis­ tisse em apenas reproduzir os motivos de anuência com um dos discursos argümentativos das partes litigantes. Afi­ nal, se o discurso de uma das partes não for contraditório (e essa contradição é muito rara), bastaria ao texto decisório parafraseá-lo, e então, só por isso, já nasceria uma decisão

2. Vide Capítulo III.


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judicial perfeita. Não é assim: o grande trabalho do ato de decisão, fundamentada, a nosso ver, é a explicação à parte perdedora (ainda que ambas sejam sucumbentes) dos moti­ vos pelos quais cada uma de suas alegações não foi aceita. Isto é decidir. Portanto, entendemos que o juiz pode deixar de respon­ der uma a uma as alegações da parte, nos trechos a que hou­ ver dado provimento ao pedido a que tais alegações houve­ rem se direcionado. Todavia, os argumentos dirigidos a pe­ dido não provido devem ser respondidos um a um, sob pena de grave falha na fundamentação do julgado, abrindo espaço ao arbítrio. Pois esse procedimento pode levar a total des­ consideração das alegações de uma das partes.

Teses subsidiárias e efeito argumentativo Certa vez, em sala de aula, provocamos com um exercí­ cio uma proveitosa discussão, que, se resultou em uma pes­ quisa com critérios tão imperfeitos que não nos autoriza a usar suas conclusões, ao menos fomentou boas reflexões a respeito de um tema com o qual os operadores do Direito amiúde se deparam, mas pouco comentam: a pertinência e os fatores persuasivos da tese subsidiária. O exercício era um caso criminal, em que os alunos de­ veriam apresentar por escrito as alegações finais do artigo 500 do Código de Processo Penal. O réu, denunciado por la­ trocínio, queria participar de crime menos grave, o de rou­ bo, e, pelo que a prova apontava, não podia prever a morte da vítima, executada por seu comparsa; aliás, sua participa­ ção, até no roubo, era de menor importância. Se as alega­ ções conseguissem provar essa tese, a pena do acusado, em comparação com a pretendida na denúncia, seria ampla­ mente minorada3. 3. Arts. 13, 129, §§ 1? e 2° 157, caput e § 3?, todos do CP.


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Entretanto, havia no processo provas seguras (embora não irrefutáveis) de que o mesmo réu não haveria participa­ do do crime, pois, naquele caso fictício, nenhuma testemu­ nha o reconhecia pessoalmente; existiam outros indícios que apontavam sua culpa, mas não vem ao caso mencio­ ná-los. A negativa de autoria, se aceita, era, sem dúvida, mais favorável ao réu, todavia era difícil - mas não impos­ sível - comprová-la. O problema era evidente: dever-se-ia defender a nega­ tiva de autoria ou a participação de menor importância? Optar pela mais vantajosa ao réu (negativa de autoria), porém com menos provas, ou pela menos interessante (participação de menor importância), com maior conteúdo probatório? Ou ambas deveriam ser articuladas? Neste último caso, nada incomum em nosso Direito, a evidente falta de coerência entre as teses: se o réu não co­ meteu o crime, porque não participou da cena criminosa, como dizer-se, depois, que sua participação era de menor importância? Não se trataria de uma argumentação autofágica, em que uma tese destruiria a outra, e daí a probabili­ dade de nenhuma delas sair vencedora? Nesse contexto, a negativa de autoria seria a tese prin­ cipal, mais vantajosa, e as demais, menos vantajosas, funcio­ nariam como teses subsidiárias, ou seja, aquelas que apenas devem ser levadas em consideração no caso de a principal ser descartada. As perguntas, então, anteriormente articula­ das, são comuns a todos os casos de tese subsidiária, até mesmo na enunciaçâo de questões preliminares antes de se adentrar no meritum causae. No intuito de enfrentá-las, do ponto de vista argumen­ tativo, algumas considerações devem ser feitas.

Argumentar é colocar em dúvida Para iniciar a discussão, invoquemos um pronuncia­ mento do intelectual Noam Chomsky, respondendo à im­


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prensa sobre a política estadunidense haver ou não dado causa ao atentado no World Trade Center4: Os EUA não pediram por esses atentados? Eles não são uma conseqüência da política americana? O s atentados não são um a conseqüência direta da p o­ lítica am ericana. M as, indiretam ente, são: não há mínima controvérsia a esse respeito. Parece haver pouca dúvida quanto ao fato de os responsáveis virem de uma rede de terrorism o que tem suas raízes nos exércitos m ercenários que foram organizados, treinados e armados pela CIA, Egito, Paquis­ tão, pela inteligência francesa, pelos fundos provenientes da Arábia Saudita e similares. A história desse episódio per­ m anece de alguma form a obscura. A organização dessas forças iniciou -se em 1979, se derm os crédito ao consultor de Segurança N acional do governo Carter, Zbigniew Brzezinski. Ele afirma, e pode não estar contando vantagem , que em m eados de 1979 estimulou um apoio secreto à luta dos mujahidin contra o governo do Afeganistão, de m odo a atrair os russos para o que cham ou de arapuca afegã, um a expressão que vale a pena reterm os n a m em ória. [...] O s EUA, ju ntam ente com seus aliados, reuniram um enorm e exército m ercenário, com posto talvez de m ais de 100 mil hom ens, arregim entados dos setores mais radicais que pu ­ deram encontrar, que eram justam ente os islâm icos radi­ cais, tam bém cham ados de islâm icos fundam entalistas [...]. Bin Laden ju ntou-se a esse exército em algum m om ento dos anos 1980.

O discurso de Chomsky é bastante exemplificativo: afirma, primeiro, que não há nenhuma controvérsia a res­ peito de a política americana haver indiretamente sido responsável pelo ataque terrorista em território norte-ame­ ricano; todavia, ao mesmo tempo que assenta de forma ex­ pressa não haver tal dúvida a respeito, disserta longamente sobre a política norte-americana de formação de um corpo mercenário, ao qual aquele apontado como principal res­

4. 22 de setembro, p. 94.


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ponsável pelo atentado às torres gêmeas ter-se-ia juntado em 1980. Com qual intenção Chomsky desenvolve esse con­ teúdo informativo? Apenas para ensinar ou mostrar sua erudição? À evidência não, pois o intelectual não mais pre­ cisa desse recurso. Chomsky disserta a respeito da política norte-america­ na porque, apesar de afirmar não haver controvérsia sobre a ligação entre ela e o atentado de 11 de setembro de 2001, quer comprovar essa mesma ligação a seu interlocutor. E então a conclusão é inevitável: se o discursante pretende mostrar essa ligação, persuadindo o interlocutor sobre sua existên­ cia, é porque ela, na realidade, não é incontroversa5. Sobre o que é incontroverso não são necessários argumentos, e todo interlocutor sabe bem disso. A desvantagem de impor uma argumentação é o pres­ suposto, anteriormente enunciado, de que toda conclusão a que se pretende chegar é controversa, caso contrário a argumentação é despicienda, passa a ser mero discurso de exaltação. Por isso, toda a argumentação começa - queira ou não o argumentante - por mostrar uma dúvida a res­ peito daquilo que se pretende comprovar, e em certas ocasiões isso pode ter efeito deletério; assim, quando os argumentos não são mais fortes ou persuasivos que o pressuposto da dúvida de quem começou a defesa de de­ terminada tese. Valemo-nos de Perelman, em explicação sucinta6: Cabe lembrar que toda argumentação é o indício de um a dúvida, pois supõe que convém precisar ou reforçar o acordo sobre um a opinião determinada, que não estaria su­ ficientem ente clara ou n ão se imporia com força suficiente. A dúvida levantada pelo simples fato de argumentar a favor

5. No discurso, a afirmação de Chomsky de que "não há mínima contro­ vérsia a esse respeito" significa "nenhum a controvérsia entre os especialistas", mas há controvérsia em relação ao ouvinte, caso contrário a argumentação se­ ria absolutamente desnecessária. 6. Tratado, cit., p. 544.


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de uma tese será tanto maior quanto mais fracos parecerem os argumentos utilizados, pois a tese parecerá depender d es­ ses argumentos.

Quando Chomsky passou a argumentar a favor da tese que disse incontroversa, ela imediatamente passou a depen­ der dos argumentos que ele expendia, e então já não podia adotá-la como premissa, mas apenas como fato a ser com­ provado. Seus argumentos, claro, sustentaram bem sua tese, e era essa sua intenção, portanto nada há que criticar. Mas o exemplo nos serve para mostrar o quanto a ar­ gumentação pode ser prejudicial quando a fazemos em excesso7. Pois é senso comum que o silêncio, em oportuni­ dades apropriadas, pode ser muito mais persuasivo que mui­ tos argumentos8. Por cuidar-se de coerência - e aqui a temos abordado continuamente não se pode dizer que a abundância nun­ ca é prejudicial. Argumentos supérfluos podem afetar a coe­ rência e, o que é pior, implantar dúvida a respeito daquilo que já estava a caminho de parecer ao interlocutor premis­ sa indiscutível. Agora, sim, podemos voltar às teses subsidiárias.

Tese subsidiária e aceitabilidade em juízo Pela teoria da argumentação já se percebe o posiciona­ mento sobre as teses subsidiárias em juízo, ainda que im­ plique pequeno raciocínio contrario sensu: por mais que se usem artifícios de enunciação como por amor ao argumento, "na absurda hipótese de não aceitação da tese principal (de negativa de autoria, de ilegitimidade de parte, de falta de jus­ ta causa, de exoneração da fiança, de inexistência de dívi­

7. "Septem convivium, novem vero convicium" - Sete fazem um banquete; nove, uma balbúrdia. 8. "Non minus interdum oratorium esse tacere quam dicere" - Às vezes ca­ lar nâo é menos eloqüente do que falar.


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da...)", a mera enunciaçâo da tese e sua argumentação le­ vam logicamente ao interlocutor a densa possibilidade de a tese subsidiária ser provável, e por vezes até mais forte que a principal: se esta valesse de todo, o enunciante não se da­ ria ao trabalho de articular outra, sobressalente9. Sem dúvida, a enunciaçâo da tese subsidiária enfraque­ ce a principal, por passarem ambas a sustentar-se por argu­ mentos diversos, competindo entre si, o que abre a possibi­ lidade de a subsidiária aparecer como mais fundamentada e equilibrada. Mas isso é muito diferente de afirmar que exista incom­ patibilidade lógico-jurídica entre tese principal e subsidiá­ ria, ainda que ambas apontem para caminhos distintos que não se coadunem. Todo magistrado conhece, ou deveria conhecer, o princípio de que o defensor tem por obrigação sustentar todas as alegações que sirvam aos interesses a que atende, dentro de princípios éticos. Assim, o que pode ser incompatível perante a impropriamente denominada ló­ gica comum, no contexto jurídico deve ser aceito natural­ mente, sem nenhum prejuízo. Em última análise, entende­ mos que pode ser ofensa ao artigo 5?, XXXV, da atual Cons­ tituição Federal, que trata do acesso ao Poder Judiciário e do direito de petição. Em nosso caso comentado no início do presente capí­ tulo, então, parece evidente que a tese de negativa de auto­ ria e a participação de menor importância, à primeira vista incompatíveis, podem ser sustentadas em paralelismo, sem que isso importe enfraquecimento de nenhuma das duas teses. Ao menos ao magistrado técnico; no tribunal do júri, seria gravemente recomendável que o discursante susten­ tasse apenas uma delas e deixasse a outra de lado, como se não existisse, pois será difícil explicar todo o percurso da subsidiariedade ao jurado, com matéria de prova mais im­ portante a ser discutida. 9. res obter.

"Noli rogare, quotn impetrare nolueris" - Não peças quando não quise-


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A fundamentação do juiz: demonstrativa ou argumentativa? Em relação à fundamentação da sentença, pode-se co­ locar questão relevante ao estudo argumentativo. Garantida a fundamentação de todos os julgados por força constitu­ cional, e sabendo-se que essa fundamentação atende a prin­ cípios de construção de discurso, com língua natural, pre­ missas verossímeis e percurso selecionado pelo argumentador, pode-se impor a questão: o texto motivador da sentença re­ presenta efetivamente o caminho que o magistrado criou para chegar a sua conclusão? Ou, por outro lado, trata-se de um discurso criado para dar arrimo a uma conclusão já for­ mada, talvez por motivos que não coincidem com aqueles que serão expressos no texto fundamentador? Miguel Reale Jr. defende, expressamente, que: "Por es­ tas razões a justificação não é reconhecida como o 'iter formativo da decisão', mas um discurso fundamentador que o julgador realiza ex post, para demonstrar as razões de sua convicção, construindo e não reconstruindo o caminho ra­ cional que o levou a reconhecer que um determinado fato ocorreu de fato, e que se adapta a uma figura normativa, interpretada de uma determinada forma"10. Para os limites deste capítulo, a polêmica mostra-se nuclear. Porque, caso se admita que o juiz, ao iniciar sua fundamentação, já tem formada sua convicção por outros fatores que não aqueles que aparecem ou aparecerão em seu texto, é certo que utiliza as técnicas de argumentação para construir um discurso que não é exatamente fiel a seu pen­ samento e suas convicções. Não se pode negar que a persuasão do magistrado dáse em um contexto repleto de subjetividade. Caso fizésse­ mos essa negativa, grande parte das técnicas aqui apresen­ tadas desde logo cairia por terra, porque visa a essa mesma 10. "Razão e subjetividade". Revista da Associação Brasileira de Professo­ res de Ciências Penais, p. 239.


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subjetividade. Por isso, correto é o autor citado ao asseverar que: "Há situações, portanto, psicológicas e sociológicas que condicionam a compreensão do fato e da norma, levando a valorações antecipadas, como decorrência da educação fa­ miliar, do círculo cultural a que se pertence, da posição so­ cial que se ocupa, da história de vida. Esse realismo psico­ lógico, na expressão de Zaccaria, conduz, sem dúvida, a uma visão subjetiva e emocional de pré-compreensão, que se antepõe à busca de uma decisão não arbitrária, racional­ mente fundada." Nesse ponto, constrói-se a idéia do juiz como um argu­ mentante comum. Com suas convicções pessoais, que não são puramente emocionais, mas também o são, construiria seu texto fundamentador como forma de justificar às partes a razão de seu decisório, no sentido de convencê-las (o que não significa agradá-las) de que ele, quem decide, está cor­ reto. Assim, o juiz está, em certa medida, também adstrito à regra de que os raciocínios que o levam a determinado con­ vencimento não necessariamente coincidem com aqueles que le­ vam o ouvinte ou leitor a aderir a esse mesmo convencimento, como expusemos no Capítulo III. Chegar a essa convicção significa, na atividade forense, valorizar ainda mais as técnicas de convencimento, reco­ nhecendo outra vez que elas não seguem um percurso úni­ co e exato, o que é apenas um mito. Aquele que decide é influenciado por posicionamentos morais, políticos11, por motivações psicológicas, ainda que elas possam não apare­

11. Nesse sentido, a observação de Roberto Bergalli, da Universidade de Barcelona: "Com o se sabe, con la demostración de la función política de la jurisdicción ha caído el mito político dei apoliticismo de los jueces que es, sin duda, el principio más celosamente defendido por aquellos sectores de la m a­ gistratura que se refugian en él como reflejo de una precisa acción política. Ser apolítico es declararse tal para esos sectores de jueces no significa en efecto estar fuera o por encima de la política sino, al contrario, adherirse pasivamente a los valores políticos e ideológicos dominantes, consecuencia de los cuales el poder es siempre 'apolítico', mientras 'políticas' son sólo las fuerzas que ejercen la oposición" (in: Jueces y juristas en la ínterpretación y aplicación dei derecho, p. 29).


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cer em seu discurso de fundamentação, ou ao menos não expressamente. O fato de se entender que a decisão judicial é tomada por fatores ex ante e que, ao fundamentar, o juiz atende às mesmas regras de intertextualidade e de consideração do auditório que, por exemplo, o advogado, não desmerece a devida fundamentação, exaustiva. Afinal, a fundamentação da decisão continua a ser um dos fatores que pode permitir sua reforma, já que não se pode obrigar a sociedade a aterse a idiossincrasias do julgador, mesmo que as tolere, por constituir fator do ser humano. Ainda assim, a questão não aparece resolvida. Porque se entendemos que a fundamentação do magistrado acaba por recair nas técnicas de argumentação em sentido estrito, nossa distinção entre uma e outra cai por terra (vide Capí­ tulo III). De fato, a distinção subsiste. A fundamentação da sentença assume técnicas de ar­ gumentação visando convencer as partes, mas não o faz ex­ plicitamente. Porque, se o fizer, acabará por retirar algo da segurança da decisão judicial. Portanto, ainda que na sen­ tença apareçam as técnicas de argumentação, o discurso que ali surge deve ao menos simular reproduzir um percur­ so de raciocínio feito pelo próprio magistrado, as razões fundamentadas de sua convicção segundo o que lhe é ale­ gado e comprovado. O que recai, mais uma vez, em uma atividade intencional de construção de texto, muito argu­ mentativa. Novamente o papel das técnicas de argumenta­ ção é valorizado.

Conclusão No filme Os bons companheiros, um clássico de Scorsese, Robert de Niro, interpretando um gângster famoso, chefia um assalto muito bem-sucedido. A toda sua equipe de ladrões paga o combinado: grande soma em dinheiro e ou­ tras recompensas pelo sucesso da operação criminosa, m e­


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nos a um deles, que insiste a todo momento em receber sua parte. De Niro não verbaliza, mas deixa claro que o outro personagem não recebe seu dinheiro apenas porque o pede com excesso de obstinação. Talvez o fato de tanto insistir revele que, no fundo, o personagem não se ache tão mere­ cedor de sua satisfação. Se não insistisse tanto, teria sua paga. Coisas de gângsteres. Todo interlocutor consegue perceber quando o excesso de argumentação prejudica, mas o bom operador do Direito não pode agir como o personagem do cinema, desprezando aquele que, por excesso de zelo, ex­ cede-se no pedido. Quando se trata de argumentação jurídica, deve-se le­ var em conta o interlocutor principal, juiz de Direito. Como juiz, conhece seu dever de provimento jurisdicional. Por isso, exige dos responsáveis pelo julgamento atenção à ar­ gumentação expendida, e isso se faz por meio da funda­ mentação, com a apreciação de todas as teses articuladas. As subsidiárias, ainda que possam tender ao excesso, não representam elementos aptos a prejudicar teses principais, mesmo que logicamente incompatíveis. Ao menos no con­ texto jurídico.


Capítulo XV

Peculiaridades do discurso oral O recurso aos gestos e ao movimento, em aspecto vi­ sual mais presente, somado ao uso do som - a voz confe­ rem ao discurso oral distinções relevantes, objeto de estudo da oratória.

Discurso oral e discurso escrito A argumentação pode ser transmitida, como já tratamos neste livro, de diversas formas. Raro o discurso que não te­ nha primordialmente o escopo suasório, a vontade do discursante de convencer o interlocutor. Mas as formas de comunicar-se são bastante diversas. Aliás, qualquer ação humana tem um sentido comunicati­ vo, desde que transmitida em um comportamento social; até a omissão humana, a inércia, também pode ser encara­ da como um omitir comunicativo, o "silêncio eloqüente" de muitos discursos. Variando os meios de comunicação, as formas de comunicar-se, diversificam-se também os argumentos, já que es­ tes, como anteriormente definidos1, são elementos lingüísticos destinados à persuasão do ouvinte. No discurso judiciário muito se questiona a respeito da forma que os argumentos assumem, do modo como são transmitidos. Ainda que en­ tre nós esteja vigente o princípio da oralidade nos processos2, é certo que a praxe leve a que a maioria das razões expostas no discurso judiciário apareça em texto escrito. Sobre a téc­

1. Vide Capítulo II. 2. Cf. arts. 474, 554, 538, § 2o, 610, 613, III, do CPP, e c. 1.657 e 1.658 do Código Canônico, entre outros.


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nica da produção do texto escrito se falará no capítulo pos­ terior. Quanto ao discurso oral, representa também matéria atinente à oratória, uma das vertentes do estudo da argu­ mentação. Não se pode definir qual seja o melhor meio para a ex­ posição da argumentação. Cada qual tem seus próprios re­ cursos e suas próprias limitações. Por exemplo: se, de um lado, na argumentação escrita há a grande desvantagem de o leitor poder ser convidado a uma leitura menos aten­ ta, "pulando" muitos trechos a serem lidos, por outro há a vantagem de que a predisposição do interlocutor é maior, na medida em que ele mesmo está propulsivo à leitura, co­ loca-se diante do texto escrito e regula sua própria concen­ tração. Entretanto, a impossibilidade de o discursante acom­ panhar as reações do interlocutor faz com que seu discur­ so não possa variar de acordo com a aceitabilidade de cada argumento; por outro lado, ao não agir de improviso, o texto escrito permite muito maior pesquisa, completitude e perfeição. Para cada meio, sua forma peculiar. O diretor de cine­ ma pode achar impossível realizar uma boa peça de teatro pela ausência de recurso aos efeitos especiais; o diretor de teatro pode achar dificílimo gravar um filme pela impossi­ bilidade de contato do ator com a platéia, com a frieza do telão, pela ausência física dos atores. E evidente, entretan­ to, que a forma influencia o conteúdo, e o argumentante deve sempre planejar seu conteúdo, os fundamentos e principal­ mente os argumentos, considerando a mídia, o meio de que se utilizará.

Discurso oral, papel e evidência Toda vez que discursamos, constituímos uma relação interpessoal. Nessa relação, travamos discussões que são regidas por normas de condutas sociais, pois a sociedade aguarda de cada um de seus componentes certo tipo de com­


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portamento, ao qual o homem toma-se adequado, sob pena de fugir às normas sociais, o que representaria, na maioria das situações, uma atitude comunicativa não desejada. A ação humana, no contexto social, tem qualidades dramatúrgicas, representações que determinam situações-padrão aos ouvintes. Por exemplo, o vestir branco do médico, o terno e a gravata sóbrios do parlamentar ou até mesmo o sotaque regional de um candidato a governo que pretende com ele a identificação de sua origem, idêntica a muitos de seus eleitores etc. Quando o discursante busca a aceitação de seu discurso e de sua imagem, pretende não apenas ser aceito, mas ser aceito de determinada maneira, que infere das regras sociais, ou, no mínimo, de seu próprio auditório. Em qualquer ação, em virtude da necessária adequação social, encontram-se certos padrões de estilo que aproxi­ mam - é lícito dizer - a ação humana da representação tea­ tral3; essa representação está presente em nosso comporta­ mento, na medida em que a todo momento representamos determinado papel social, advogado, juiz, pai, aluno, profes­ sor, vendedor, comprador, cliente, visitante, anfitrião etc. Grosso modo, diante das convenções sociais, e cons­ cientes de sua existência e seus limites, representamos a todo momento, não como forma de fingimento, mas sim de ade­ quação a normas de convívio social, em um agir conforme o que a sociedade espera. Ora, se o objetivo da argumenta­ ção é o de que o interlocutor aceite nossas idéias e opiniões, a regra (que, como tal, tem exceções) é que o argumentan­ te busque o cumprimento dessas mesmas normas, facilitan­ 3. "Para ciertos proósotis las personas controlan ele estilo de sus acciones (...) y lo sobreponen a otras actividades. Por ejemplo, el trabajo puede ser realizado de um modo que se ajuste a los princípios de una representación dramática con el fin de proyectar una cierta impresión de la gente que está trabajando a um ispector o a um directivo (...) em realidad lo que la gente está haciendo rara vez queda adecuadamente descrito como solamente comoe o solamente trabajar, siempre tiende ciertos rasgos estilísticos que poseen signi­ ficados convencionales asociados com tipos reconocidos de papeles dramáti­ cos" (GOFFMAN. In: HABERMAS, Jürgen. Teoria de la acción comunicativa I: Racionalidad de la acción y racionalización social, pp. 131-2).


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do a permeabilidade da mente do interlocutor às idéias e opiniões que profere. O cumprimento dessas normas aparece no texto escri­ to: desde a boa linguagem, o cumprimento das regras gra­ maticais, o texto que procura fazer cômoda sua leitura, até o tamanho quase padronizado do papel, a boa impressão, a limpeza. Porém é no discurso oral que o cumprimento, por vezes dramático, dessas normas de adequação social torna-se mais claro, porquanto o discursante é colocado em evidência. Observadas todas as regras relativas à argumentação aqui já expendidas, na exposição do discurso oral deve o dis­ cursante, como primeiro ponto, levar em consideração que será colocado em evidência, ou seja, à observação livre de todos os seus interlocutores. Se o discursante pretende fa­ zer com que os ouvintes assumam seus pensamentos, deve desejar despertar a atenção de todos eles, e é essa atenção (o colocar-se em evidência) que traz peculiaridades a seu discurso. Ter para si direcionados olhares atentos importa, en­ tão, em grandes diferenças entre o falar comum e o discur­ sar oralmente, ao menos se se pretende um discurso fecun­ do. Quando a figura, a imagem do corpo transforma-se em objeto de análise visual do interlocutor, este principia a ob­ servar formas em que antes jamais houvera reparado: uma pessoa que tem a coluna torta, uma postura pouco adequa­ da, quando discursando, colocada à apreciação pública pode, se não cuidar de endireitá-la, transmitir a seu público a imagem de pessoa fraca, quando não de uma deficiência física grave, que sequer existe. Um pequeno gaguejar, uma roupa pouco limpa ou apertada demais, tudo transformase em objeto de apreciação do espectador, já que assiste a um discursante colocado em evidência. Quantas vezes não reparamos, ao vermos pela televisão um entrevistado, que o nó de sua gravata está torto, que ele tem determinada di­ ficuldade de fala, que repete sobremaneira uma palavra em cacoete? Várias! Quantas vezes reparamos nesses mesmos detalhes em uma simples conversa de negócios, em um al­


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moço ou reunião com alguém? Muito poucas, com certeza. O discurso oral do argumentante deve ser muito mais cuidadoso e alerta quando este se coloca à apreciação pú­ blica, ou seja, em evidência. Sem que o espectador possa perceber, ele se torna muito mais crítico à imagem que lhe é colocada em evidência, e isso deve fomentar transforma­ ções graves no discursante, no orador. O advogado, quando se coloca diante dos jurados, pretende prender-lhes a aten­ ção durante, no mínimo, o tempo de sua primeira fala, de aproximadamente duas horas. Durante esse lapso, colocarse-á à observação pública, e será, gesto a gesto - assim é o que pretende - atentamente acompanhado pelos olhos do seu público. Tendo consciência disso, deve atentar para de­ talhes que, em razão da magnitude da atenção que passa a ter de seus ouvintes, constituem elementos relevantes: apre­ sentação, dicção, gestos, expressão facial. A magnitude da atenção permite também expressivi­ dade mais exacerbada4: os gestos maiores, mais firmes como os de um político acostumado a inflados discursos podem parecer, diante de uma platéia diminuta, como a reunião de uma empresa ou uma audiência em pequena sala no fó­ rum, ato de absoluto desequilíbrio. E, contrario sensu, exi­ gem do orador maior compenetração e cálculo (intenção) em seus gestos e suas palavras: um discurso pouco inflama­ do, adequado a uma calma exposição a uma banca ou a pou­ cos ouvintes, pode parecer, em uma platéia mais extensa, falta de segurança, de coragem ou de personalidade do ou­ vinte; talvez, timidez. Quando o orador coloca-se diante da platéia, supre, então, a expectativa desta. Deve, em primeiro lugar, ter cons­ ciência que o fato de ser observado com atenção fermenta todas as suas qualidades e os seus defeitos, e portanto zelar 4. Como ensina Reinaldo Polito: "Uma boa regra a ser observada para os gestos é que quanto maior a platéia e mais inculta, maiores e mais abran­ gentes deverão ser os gestos, e quanto menor e mais bem preparado intelec­ tualmente for o público, menor e mais moderada deve ser a gesticulação" (www.polito.br/artigos) .


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pela imagem nunca é exagero. Em segundo lugar, deve le­ var em conta que a platéia exige a representação de um p a ­ pel social, o que implica um conjunto de comportamentos que são essenciais no momento da enunciação do discurso.

Predisposição à argumentação no discurso oral Em relação ao texto escrito, costuma-se apontar a vanta­ gem do discurso oral, por ser ele mais estritamente dialógico. Isto significa dizer que aquele que argumenta tem como dire­ cionar seu discurso à platéia, fazê-lo de acordo com suas rea­ ções, em uma estrita interatividade. Essa idéia, entretanto, nem sempre corresponde à realidade, pois existem muitos auditórios hostis, que não se encontram em nada predispos­ tos a sequer escutar o orador, quanto mais a alterar determi­ nado posicionamento que já tenham assumido, por conta de argumentos que lhe sejam lançados oralmente. Conquistar um auditório apenas com palavras não é tarefa fácil e depende muito do fator ilocucionário do dis­ curso, ou seja, daquilo que não é expresso: o poder do ora­ dor e o interesse que cada ouvinte possa ter no tema de­ senvolvido. Certamente, um deputado terá maior facilida­ de em conquistar a atenção dos ouvintes quando a matéria sobre a qual discursar for controversa, assim como o advo­ gado consegue maior atenção dos desembargadores para quem sustenta razões se sua tese trouxer alguma novidade, ou se a causa que defende contar com grande interesse pú­ blico ou acadêmico. São todas questões com as quais deve contar o orador, e que não se apresentam necessariamente no texto escrito, de modo tão dinâmico. O interesse na matéria objeto da sustentação deve ser fomentado pelo orador5. Rara tanto, lança mão não apenas da entonação de voz e da gesticulação, mas de argumentos 5. W inston Churchill bem enunciou a dificuldade de prender a atenção da platéia com palavras: "D ez mil pessoas na platéia? Dez vezes mais viriam a meu enforcam ento." Citado na revista Veja, 14/8/2002, p. 82.


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que procuram realçar ao leitor a necessidade de ouvi-lo com atenção, o fato de que aquele discurso traz, em si, alguma novidade, esta que prende o intelecto do leitor. Se o orador partir apenas do pressuposto de que seus ouvintes são passivos e merecem tão-somente idéias pron­ tas, fáceis de entender, porque assim não gerará nenhuma dúvida ou questão e poupará seus ouvintes do exercício de raciocínio (e muitos defendem esse tipo de construção, em uma utópica defesa da clareza do discurso oral), poderá estar utilizando técnica equivocada ou mesmo deletéria, em vir­ tude do maior caráter dialógico do texto oral: diante da pos­ sibilidade de interagir, ou ao menos de perceber a presença física do orador, o ouvinte encontra-se sujeito a maiores es­ tímulos a seu próprio raciocínio. Sem sentir-se estimulado, o ouvinte tende a imaginar como óbvias ou repetitivas as palavras do discursante, o que lhe reduz a atenção. Por isso, no tribunal do júri, o defensor que sabe con­ tar, no início de sua fala, em geral com pouca atenção dos jurados - pois a expectativa pelo conhecimento dos fatos re­ lativos ao processo já se esvaiu com toda a produção proba­ tória em plenário, seguida da exposição da acusação -, sem­ pre procura trazer elementos novos a seu discurso, expondo expressamente ao jurado que fatos serão narrados de forma diversa daqueles revelados durante toda a instrução e ex­ posição anteriores. Assim, estimula o jurado à interação dialógica, e, ainda que este não possa se manifestar sobre o m é­ rito da causa, expressa concordância ou dissentimento em relação ao discurso da defesa, o que é melhor que demons­ trar apatia ou desatenção. Para o tribunal do júri, o problema da falta de atenção ao debate não é novo. Bettyruth Walter, estudiosa norteamericana, elaborou pesquisa a respeito da influência dos debates nos jurados, desejando saber, em suma, se estes retiravam-se para a sala secreta para votar tendo estado aten­ tos à produção probatória e aos debates ou apenas àquela primeira fase, seguida da acusação. A intenção da pesquisa­ dora, se assim fosse possível, seria produzir, em um caso


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real, dois tipos de julgamentos: um em que os jurados fos­ sem apresentados às provas do processo, assistissem a to­ dos os atos do plenário, exceto a o s debates, e outro ouvindo todos os debates, na íntegra, como acontece normalmente, para que se comparasse a divergência de resultados. Um caso real desse tipo de pesquisa seria impossível, mas, por outros métodos (grosso modo, perguntando aos jurados o que acre­ ditavam que os debates de acusação e defesa representa­ vam), trouxe conclusões bastante significativas6, e talvez nada animadoras ao argumentante. Das várias conclusões importantes que a pesquisa al­ cança, aqui vale destacar esta última. Foi perguntado aos jurados: "Você mudou sua opinião após ouvir os debates de promotor e advogado?". Responderam:

Promotor

Defensor

Sim

14%

11%

Não

82%

85%

4%

4%

Não me lembro

Esmagadora maioria, então, dos mais de 250 jurados ouvidos, apontou não haver mudado de opinião após ouvir as razões dos discursantes. Claro que dois fatores devem contar para orientar qualquer tomada de conclusões dos números acima: a primeira, a de que isso é o que os jurados julgam haver acontecido, e a segunda, a de que o fato de não haverem mudado de opinião não significa, necessariamente, que não tenham estado atentos. Não é tarefa fácil influenciar ouvintes, mesmo no dis­ curso oral. Entretanto, pode-se aproveitar da interativida­ de, do diálogo travado à presença do ouvinte para se lhe

6. Vide WALTER, Bettyruth. The Jury Summation as Speech Genre; M eaning o f the Summation to Jurors, pp. 193-9.


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testar as reações e estabelecer a coerência do discurso, que já estudamos, de acordo com o que mais lhe provoca inte­ resse. Diante das conclusões daquela pesquisa, está claro que menos influenciado será o ouvinte que for comoda­ mente deixado em sua passividade, enquanto será fonte de atenção aquele que for convidado, estimulado à participa­ ção, pois, ainda que não possa se manifestar, criará ao m e­ nos a expectativa de ser levado a uma conclusão diferente. Nesse ponto, o de levar ao estímulo, muito do conteú­ do argumentativo do discurso oral pode inovar. O bom orador passa a saber que o núcleo de seu discurso não é o de transmitir sua tese em uma ordem lógica impecável, como se faz na redação de uma dissertação científica; o orador sabe que, se não despender seus esforços para a captação da atenção, argumentos brilhantes poderão cair no vazio. O professor que dá aula apenas expositiva vai percebendo que, por mais perfeita que seja a matéria exposta em seu discur­ so, não logra motivar seus alunos, os quais, salvo raras ex­ ceções, desconcentram-se com grande facilidade. Por isso, para todos os oradores, a necessidade de pausas calibradas, gestos diferentes, movimentação (quando possível) come­ dida mas presente, entonação de voz intencional, e não m o­ nocórdica. Mas não só: a necessidade, também, de um con­ teúdo que estimule a participação, o raciocínio: as pergun­ tas retóricas, a leitura de textos, a demonstração de imagens e de figuras, com vistas a estimular, ainda que não seja esse propriamente o melhor caminho lógico do discurso. Exemplos dessa interatividade não são raros7: o promo­ tor que percebe um jurado menos atento em plenário não

7. Em sala de aula, trabalhamos com os alunos um trecho da obra Pollyana, de E. Porter, traduzida por Monteiro Lobato. Em um curto diálogo, a protagonista, com seu famoso comportamento simpático, chama à discussão, ainda que irritando-o, um ancião que com ninguém falava. Fomentado a falar de si próprio, o homem acaba abrindo sua atenção para a interlocutora, e as­ sim, como ocorre repetidas vezes na obra, mais um ouvinte acaba concordan­ do com as idéias da protagonista. Trata-se de interessante ilustração, que pro­ cura deixar gravado no aluno que a participação, a interação com o ouvinte é


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pode lhe pedir que leia uma peça do processo, mas entrega os autos às mãos desse desatento, rogando-lhe que acom­ panhe sua leitura; o professor, diante do aluno menos inte­ ressado, utiliza-o como exemplo, faz-lhe uma pergunta fá­ cil, mas estimulante, cuja resposta ele conheça, encami­ nhado à ilusão de estar demonstrando grande conhecimen­ to à classe, ou então desvia-se rapidamente o assunto para algo que seja de interesse do ouvinte específico; o advoga­ do, diante do desembargador menos atento, cita trecho de seu livro ou seu acórdão, para que ele motive-se à partici­ pação; ou até mesmo (acontece) aquele advogado ou pro­ motor que simula um tropeço ou a queda de uma caneta ao chão, fazendo uma pausa importante para a retomada de seu discurso, agora já com maior atenção dos ouvintes. São os modos de explorar os recursos do discurso oral que, ob­ viamente, acabam por alterar o conteúdo planejado de al­ guns pronunciamentos. Para compensar a falta de atenção do ouvinte, esses re­ cursos são válidos e, desde que intencionais e respeitosos, podem aumentar, e muito, as possibilidades de efetivos re­ sultados no discurso oral.

Carisma e empatia: uma difícil definição Se nos dedicamos ao discurso especificamente dialógico, em que o ouvinte interage muito mais com o orador, não nos permitimos deixar de tecer algumas breves considera­ ções a respeito de uma questão que, embora não possamos dominar completamente, não pode faltar à persuasão na oratória: o carisma, a simpatia. Para ilustrar, vejamos um trecho da biografia do eminen­ te jornalista e político Carlos Lacerda, em passagem impor -

grande argumento no discurso oral. Para tanto, o interlocutor deve se sentir encorajado a aproximar suas próprias experiências ou (quando possível) com ­ partilhar opiniões, caso contrário não é estimulado à participação.


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tante de nossa história. Narra a eleição para a sucessão ao governo da Guanabara, cujo titular era Lacerda, em setem­ bro de 1965. Carlos Flexa Ribeiro era, então, o candidato: As pesquisas de opinião pública, no início da segunda quinzena de setem bro, indicavam que N egrão estava à fren­ te de Flexa, figura inexpressiva na campanha. Flexa e outros pediram a Raphael de Alm eida M agalhães que fizesse L a ­ cerda participar mais ativamente, discursando ao lado de Flexa nos comícios. O governador concordou; o resultado, porém , foi o constrangim ento das relações entre o candidato e o governador. O candidato se irritou porque, quando estavam juntos em comícios, o governador quase não o deixava falar. Em um a dessas ocasiões, quando Flexa estava preparado para seguir Lacerda com um discurso, para sua surpresa o gover­ nador voltou-se para padre G odinho, convidando-o a tom ar a palavra. Posteriorm ente, Lacerda observou: "Tem sujeito que é bom de um a, tem sujeito que é ruim de urna, em matéria de eleição. O Raphael, por exemplo, seria bom de urna. O Flexa era ruim de um a, não era sim pático pessoalm ente."8

Lacerda, com inequívoca autoridade para fazer obser­ vações sobre procedência e a técnica de discursos orais, as­ sentara que a falta de simpatia de Flexa Ribeiro recomen­ dava que ele simplesmente não discursasse, como demons­ tra o trecho transcrito. A falta de simpatia do candidato tanto era notória e expressiva que sua derrota nas urnas para Negrão de Lima foi um fato, levando o jornalista a re­ trucar ao ex-candidato: "[...] eu conhecia as razões pelas quais toda essa gente forçou sua candidatura e só você não percebeu. Eu sabia que você ia ser derrotado e sabia que, quando fosse derrotado, iam acabar com as eleições no Brasil"9.

8. DULLES, John W. F. Carlos Lacerda: a vida de um lutador, p. 395. 9. Idem, p. 406.


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Mas, afinal, como definir essa "simpatia" da qual o can­ didato era desprovido? Sem dúvida, ser simpático não pode significar ser agra­ dável o tempo todo, integralmente. Se assim fosse, Lacerda não poderia tomar para si essa característica, pois suas frases duras, como a anteriormente recortada, retiram-lhe a facul­ dade de agradar. Mas é certo que há, no discurso oral, algo sempre muito subjetivo, de atração pela figura que discursa, pelo ser humano que, presente à enunciaçâo, busca coerên­ cia entre as palavras que profere e toda a sua imagem (timbre e entonação de voz, gestos, aparência, idade, vestuário). Não há como definir exatamente os requisitos do ca­ risma, porque existem figuras carismáticas há muito imita­ das, sem absoluto sucesso. Entretanto, para a argumentação, pode-se voltar à representação de um papel social. A socie­ dade e os ouvintes aguardam de cada orador determinado tipo de comportamento, a que deve corresponder ou, ao menos, deve procurar impor. Aguarda-se do juiz a sobrieda­ de da justiça, do promotor a energia da acusação, do advo­ gado a serenidade daquele que se põe a defender a parte mais fraca. Fugindo dessa expectativa, o orador até pode impor a seu auditório imagem diversa, também simpática, mas terá contra si o trabalho de quebrar uma expectativa: um padre falastrão, um advogado muito nervoso, um acusa­ dor calmo demais. Por diversas vezes temos definido que a argumentação é o trabalho com o provável, com o verossímil. E, se todo discurso é formado de elementos lingüísticos, que são ar­ gumentos quando têm a finalidade de convencer, a simpa­ tia, como correspondência às expectativas do ouvinte, é tam­ bém argumento. Os argumentos que são proferidos pela pessoa carismática parecem mais verdadeiros que outros, de quem tem menor aproximação com o ouvinte, aqueles cujas idéias repelem pela própria fonte. Estudiosos desen­ volvem grandes análises sobre personalidades protótipos de imagens carismáticas10, pois são figuras que despertam, 10. Cf. O Estado espetáculo, de Roger-Gérard Schwatzenberg.


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cada qual, determinado sentimento no ouvinte: o ancião que fala com a voz da experiência, o jovem que parece arrojado, o rico que dá ares de bem-sucedido, o obeso que aparenta bonachão e acolhedor, a mulher que parece libertária. São esses protótipos uma maneira de aproximar eventuais can­ didatos à simpatia dos padrões ansiados pelos próprios ou­ vintes, em determinadas situações específicas. De maneira análoga, um discurso de uma pessoa que treme, que está insegura ao falar pode parecer menos ver­ dadeiro que o de um orador de larga experiência, pois o ou­ vinte é levado a presumir que aquele que fala bem domina (e conhece) a matéria que desenvolve, enquanto daquele que se mostra inseguro (talvez apenas por vergonha de apa­ recer em público) presume-se a falta de conhecimento so­ bre o que diz. Em outro extremo, aquele que fala muito pode aparecer mais apto a mentir, pois sua verborragia pode apa­ rentar ser um modo de não deixar pausas para o raciocínio do ouvinte. Mas a redução a protótipos não constrói carisma. Definir o comportamento simpático ou carismático não é tarefa fácil, mas pode-se afirmar que a melhor maneira de encontrá-lo é perceber, com a experiência, qual é o com­ portamento que mais identifica o ouvinte com a figura do orador e seu papel social. Essa descoberta pode levar muito tempo, mas faz parte da adequação do discurso, da boa oratória. Vale, nesse ponto mais efêmero que é a empatia, lembrar a lição de Cortright, ao apontar que o ouvinte pode distorcer idéias com sua percepção, já que "não vemos so­ mente com os olhos, porém igualmente com as nossas emoções. Até certo ponto, vemos aquilo que efetivamente queremos estar vendo, e ouvimos o que estamos desejando ouvir. Todas as nossas percepções podem sofrer alguma pe­ quena distorção pelo nosso estado d'alma, nossas passadas experiências e nossos preconceitos"11. O trabalho com a

11. Técnicas construtivas de argumentação e debate, p. 179.


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emoção do ouvinte, para quem profere discursos orais, é ta­ refa obrigatória, haja ou não distorções no percurso. Observações de especialistas ou a própria experiência podem fazer encontrar o caminho mais fácil para o carisma. Este nunca operará erga omnes, mas pode, indiscutivelmen­ te, tomar algumas idéias, nos discurso oral, mais facilmente aceitas pelo ouvinte. E isso é argumento.

Discurso parlamentar Porque falamos em política e em discurso oral, cabem algumas considerações sobre o discurso parlamentar. Os discursos parlamentares têm por natureza o discur­ so epidíctico ou deliberativo. Se comparados aos da susten­ tação inicial do tribunal do júri, que dura duas horas12, os discursos parlamentares são geralmente curtos, tendo, via de regra, duração entre cinco e vinte minutos13, em que se dis­ cutem questões de livre escolha de cada parlamentar ou dis­ cursa-se sobre assuntos predeterminados na ordem do dia. Ao manter-se diante de seus pares para discursar, o parlamentar sabe que dividirá a atenção de seu pronuncia­ mento com outros elementos que possam retirar a atenção de seus ouvintes: outros trabalhos, conversas paralelas, de­ satenção eventual. Portanto, deve tornar seu discurso inte­ ressante ao ouvinte, seja pelo conteúdo (a matéria sobre a 12. Art. 474 do CPP. 13. Vide, por exemplo, no Regimento Interno da Câmara dos Deputa­ dos do Estado de São Paulo, a sustentação de cinco minutos do Pequeno Ex­ pediente (art. 113, § 5?) e de quinze do Grande Expediente (art. 116), sobre as­ sunto de livre escolha, ou, no Regimento do Senado, o artigo 158, aqui trans­ crito: "Art. 158. O tempo que se seguir à leitura do expediente será destinado aos oradores da Hora do Expediente, podendo cada um dos inscritos usar da palavra pelo prazo máximo de vinte minutos. § 1? A Hora do Expediente po­ derá ser prorrogada pelo Presidente, uma única vez, pelo prazo máximo de quinze minutos, para que o orador conclua seu discurso, caso não tenha esgo­ tado o tempo de que disponha, ou para atendimento do disposto no § 2° após o que a Ordem do Dia terá início impreterivelmente.''


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qual deve se pronunciar), seja pela forma - a enunciaçâo que busca a atenção maior do leitor. Para seus pares, o parlamentar deve buscar a postura coerente com a imagem que firmara: o jovem empreende­ dor, o representante das classes mais baixas, o elitista pro­ gressista etc. Para o eleitor, o argumentante busca o discur­ so coerente - além de sua imagem já formada em relação à representatividade que anseia - com a capacidade para a função públicau. Implica afirmar que o anseio pela função pú­ blica impõe ao político um discurso coeso à imagem que o leitor faz do ideal do poder público: honestidade, serenida­ de, higidez. Para isso, muito mais que o discurso e as pro­ messas - que são cada vez mais amplas e de menor valor cabem cuidados com construção de protótipos de empatia, anteriormente analisados, mais afetos ao trabalho do pu­ blicitário e do assessor de imprensa do que propriamente do argumento jurídico. Aquele que constrói discurso parlamentar deve levar em consideração a distinção que existe entre o discurso es­ crito e o oral. Assim como um bom livro não resulta neces­ sariamente um bom roteiro para filme no cinema, um dis­ curso escrito interessante pode não importar em uma fala brilhante do parlamentar, mesmo que não o leia. Se o ler di­ retamente, ainda pior. As diferenças circunstanciais entre a expressão escrita e a oral15 devem contaminar o conteúdo do texto. Um discurso feito na formal linguagem escrita, com seus fatores de coesão e coerência, pode soar artificial e pedante quando recitado sob as características de um ora­ dor. Do mesmo modo, um excelente discurso oral, que em o­ ciona multidões, e assim extremamente eficiente, pode pa­ recer bobo e piegas quando reduzido a termo, no papel. O autor dos discursos parlamentares deve pesquisar muito bem as caracterísiticas do orador que, pode-se dizer, interpretará seu texto. Novamente, há que se levar em conta 14. Cf. OSAKABE, Haquira. Argumentação e discurso político, p. 72. 15. Vide Capítulos XVI e XVII.


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que não existe um bom texto erga omnes e, portanto, o dis­ curso deve adaptar-se a elementos relevantes, como a ima­ gem do orador, suas intenções e o contexto a que se dirige.

Discurso no tribunal do júri A instituição do júri representa o auge da argumenta­ ção e da oratória. Deveríamos dedicar a ele capítulos intei­ ros, mas decidimos permear seus exemplos no decorrer da obra, diluí-los em nossas lições. Justificamos esse compor­ tamento, aqui, com poucas palavras, de cunho pessoal, em exposição mais livre. Temos nos especializado na atuação com o Direito pe­ nal, como o leitor pode perceber, já que a maioria dos exem­ plos aqui prolatados tangencia essa área do conhecimento. Portanto, entendemos que discorrer puramente sobre a ar­ gumentação no júri sem despender o vínculo estreito com as teses ali defendidas, que são todas pertencentes ao Di­ reito penal, seria repetir as lições aqui já ditas, apenas sob um novo nome. Dessa maneira, reservamo-nos o direito de, oportuna­ mente, aplicar estas lições ao discurso específico das teses de defesa e acusação dos crimes contra a vida, o que demanda exposição aprofundada de matéria atinente apenas à seara criminal. Mas isso não significa que as lições aqui apresentadas, principalmente as referentes à intertextualidade e à orató­ ria, não sejam de todo proveitosas para o discursante no tri­ bunal do júri. Diante do julgador leigo e do vasto tempo (em relação ao reservado a outros discursos) disponível para a argumentação, o tribuno depara-se com alguns pontos a considerar sobre a matéria. O primeiro deles, já aqui tratado, é a pouca atenção re­ servada ao discurso. Ouvindo, ainda que aparentemente com atenção, as palavras dos debatedores, poucos jurados crêem ser influenciados efetivamente por seus discursos.


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Essa reação é natural: (re)produzidas todas as provas possí­ veis em sua presença, é certo que os jurados tendem a dis­ pensar comentários sobre o que já conhecem, sobre o que já sabem. Mais ainda isso acontece na fala do defensor, sub­ seqüente a uma longa e detalhada exposição dos fatos, de­ lineados pela parte acusadora. Assim, são necessárias as téc­ nicas já aqui apresentadas: a inovação, ainda que por vezes tênue, dos fatos, enunciada inequivocamente ao jurado. Se não pensar tratar-se as considerações do discursante de idéias novas, que estimularão seu raciocínio, a reação natu­ ral é a desatenção e a percepção do discurso repetitivo ape­ nas como uma fala longa e cansativa. O segundo ponto é o menor critério do jurado na valoração da prova, o que nos parece indiscutível. Levado por outros elementos de convicção, os jurados tendem a valori­ zar argumentos distintos daqueles sopesados e considera­ dos pelo julgador togado. Imagens, frases de efeito, peque­ nos enlaces e desenlaces de discussões atravessadas no meio do debate, aparência de testemunhas e do próprio réu são mais valorizados pelo julgador leigo, desabituado ao critério de valoração da prova e à necessidade de persuasão racional de seu convencimento, até por ser desobrigado de qualquer fundamentação a respeito dele. Esses fatores não transformam o júri em um teatro, como dizem aqueles que pretendem desfazer-se de tão democrática instituição, mas, sem nenhuma sombra de dúvida, fazem com que o orador repense toda a sua estrutura argumentativa para trilhar aque­ la que consegue aproximar-se do jurado, com seu raciocí­ nio, seus sentimentos e idiossincrasias. Não, o júri não é teatro. Mas a visão técnica que aqui se apresentou a respeito da argumentação dá-nos a faculdade de poder dizer que seus meios argumentativos e seus m é­ todos de atribuir presença na mente do interlocutor têm que ser planejados bem diversamente do que se faz quando se trata de direcionar um discurso a um julgador não leigo. Outro discurso, outro raciocínio.


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ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Conclusão O discurso oral tem seu estilo próprio, atinente ao es­ tudo da oratória. Quando nos propomos a estudá-lo, temos de aceitar suas peculiaridades, que são diversas e abrem cam­ po para outra série de conhecimentos. Procuramos apresen­ tar algumas delas apenas respondendo ao anseio de alguns leitores que, com razão, cobraram considerações a respeito da argumentação na fala. E importante não esquecer que, quando o discursan­ te coloca sua imagem em evidência, está sujeito à obser­ vação constante do ouvinte, e isso lhe traz uma série de res­ ponsabilidades, de cuidados, que devem ser desenvolvi­ dos ao longo da experiência. Aos grandes oradores jamais faltou treino.


C ap ítu lo XVI

Peculiaridades do texto escrito A escrita tem inúmeros diferenciais e técnicas, mas realça-se um: o argumentante nunca pode obter garantia de que seu texto será lido. Por isso, deve construir uma redação coesa, que constantemente estimule o interlocutor à leitura.

Um capítulo não é o bastante para abordar o que a es­ crita traz de peculiar e relevante para o tema da argu­ mentação. Todavia, esta obra não tem como tema central a reda­ ção, de modo que se limita a expor ao estudante alguns ele­ mentos diferenciais do discurso escrito, que, se aprimorados, muito contribuirão para a capacidade argumentativa. Cabe a ressalva, logo de início, que todos os temas aqui expostos podem ser aprofundados - se for do interesse do estudante consultando-se livros específicos de redação e construção de texto escrito. Se nos for permitida, rapidamente, uma consideração pessoal, procuraremos demonstrar desde logo o gosto pelo tema. Há anos dedicamo-nos, tanto quanto possível, a estu­ dar o tema redação e, durante considerável tempo, leciona­ mos esse tema especificamente no ambiente jurídico. E de­ paramos, não raras vezes, com alunos que, bons operadores do Direito, tinham dificuldades extremas quando se tratava de construção do texto escrito. São então comuns assertivas neste estilo: "Sou ótimo para argumentar. Em discurso oral, disserto longamente so­ bre minha tese, convenço meus ouvintes com facilidade. No entanto, quando vou escrever... minhas idéias parecem tra­ var! Meu discurso não progride!" Não é nosso intento, aqui, trabalhar com essas dificuldades específicas, mas elas ser­


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vem para ilustrar que, de fato, as técnicas do discurso es­ crito têm suas peculiaridades, porque este apresenta dife­ rencial: a ausência dos recursos de sons e gestos do argu­ mentante, e o extremado valor da construção das frases e parágrafos. Trataremos agora essencialmente dessas características.

Uma premissa: quem lê o que escrevemos? Correndo o risco de parecermos grosseiros - porque a arte da escrita revela muito mais do que o quanto adiante se dirá -, fixamos como premissa, para a argumentação, esta característica, generalizante, sobre o texto escrito: o de que nunca aquele que argumenta redigindo terá a garantia de que seu texto será lido, ao menos com atenção. Explica-se: quando se constrói um discurso oral, quan­ do se está na presença do ouvinte, pode-se exigir dele que ouça o que lhe é proferido. Diante dos jurados, o advogado ou o promotor têm certeza de que aqueles ouvem seu dis­ curso. Vá lá que talvez não lhe concedam a devida atenção, abstraiam-se em seus próprios pensamentos, mas o escu­ tam. Sua distração pode, por outro lado, ser notada pelo argüente, que cuidará de repetir parte importante de sua fala, dessa vez com recursos argumentativos que lhes roubem a atenção. Mas o mesmo não ocorre no discurso escrito. Nunca se pode garantir que um leitor verá com devido tento o que lhe é redigido, por mais que se possam garantir meios para que ele venha a comprovar a realização da leitura. Tratando a respeito da argumentação, não nos alcança a assertiva de que o juiz, para o devido provimento jurisdicional, tenha a obrigação de ler integralmente o que lhe argumentam as partes em uma lide. Está-se aqui em patamar discursivo, su­ perior: mesmo diante de excelentes razões de recurso, nin­ guém obsta que, muitas vezes sem perceber, o leitor "pule"


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trechos de texto ou evite conceder atenção a uma frase mui­ to longa, a um texto com pontuação confusa, com repetições constantes, com estrutura frasal ruim. Teste, leitor, consigo mesmo: quantas vezes, em seu estudo, acelerou a leitura em trechos que menos lhe pareciam importantes? Quantas vezes não observou, nesta obra, subtítulos dos capítulos, para saber se lhe interessava ou não a leitura do trecho do texto? Pois então... essa realidade é comum a todos, e o argumen­ tante que redige deve estar preparado para lidar com ela e disso tirar proveito. Tal alerta é necessário por dois motivos principais. O primeiro deles é que o estilo da argumentação jurídica dife­ re do estilo literário. Não teríamos nenhuma autoridade para desprezar este último porque somos muito ligados a ele. Mas deve-se observar que quem constrói literatura goza de um grande interesse do leitor, o que não ocorre com aquele que tece argumentação jurídica. James Joyce estende-se por dezenas de páginas em apenas uma frase, Garcia Márquez e Camilo José Cela confundem o leitor com uma miríade de personagens com pouca intervenção no enredo, Olavo Bilac utiliza palavras difíceis, que forçam a consulta ao dicionário, e todos produziram ou produzem cada um a seu tempo, estilo e com seus objetivos - excelen­ te escrita. Todos, entretanto - lembre-se da intertextualida­ de - , assim o fazem porque direcionam seu texto a um pú­ blico cujas características conhecem: o leitor literário, que se dispõe a experimentações e, ao ler a obra, nutre por ela natural interesse. Não pode haver nenhuma dúvida de que aquele que muito lê, que melhor aprecia a literatura, acaba naturalmente, por imitação, tendo maior facilidade na es­ crita. Porém muitos recursos, tão adequados à literatura, tornam-se exagerados ou equivocados no texto argumen­ tativo, porque este não tem como premissa o mesmo inte­ resse do leitor. Tal consideração conduz à segunda parte de nosso aler­ ta: se o leitor da argumentação não tem tamanha disposi­


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ção e interesse, é natural que o argüente-redator sempre considere que deve, ao redigir, estar convidando o interlocu­ tor a essa leitura. Um capítulo muito extenso, uma frase lon­ ga e muito entrecortada, uma cópia desnecessária de artigo de lei, uma remissão fora de espaço podem estar corretos, ao mesmo tempo que funcionam como grande desestímulo à leitura, porque proporcionam dificuldade de intelecção. E de que adianta o bom argumento se sequer for considerado pelo leitor? Pode-se ilustrar com um exemplo simples: um estilo de fonte muito pequeno em uma petição pode ser um grande incentivo ao leitor para que observe o texto com menor aten­ ção possível, porque a leitura dos caracteres minúsculos can­ sa-lhe a vista. Que fazer, senão considerar tais questões? Vejamos algumas delas.

Escrita e coesão textual No discurso escrito, introduz-se com maior ênfase uma qualidade que é sua, a chamada coesão textual. Todo texto, mas com muito maior ênfase o escrito, deve ser dotado de coesão. Ela é o nível de ligação entre as pala­ vras que compõem um texto. A coesão textual é, então, o nível de ligação entre as palavras de um texto. Quando se constrói um texto escrito, ao contrário do quanto possa parecer, as palavras não se en­ contram preenchidas de sentido e dependem das outras para que se aperfeiçoem como elementos de significação, ou seja, como fator de comunicação. Para exemplificar, leia com atenção o texto que segue, publicado no Jornal da Tarde (de 22/10/1998), e faça o breve exercício de leitura que se propõe: Presos m atam policial de escolta, fogem e fazem cinco reféns Um investigador morto, outro baleado em um carro da Polícia Civil e cinco pessoas m antidas com o reféns em um sobrado. Esse é o balanço da tentativa de fuga de dois presos


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do 14? Distrito Policial, ontem , em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, quando retornavam, sob escolta, de uma con ­ sulta médica. Após três horas e m eia de negociação, eles se entregaram. A arma usada no crime era de um dos policiais e foi tomada pelos detentos, que estavam no banco traseiro, algemados. O transporte dos presos para tratam ento do ProntoSocorro da Lapa com eçou às l l h . Dois carros do 14? Distrito Policial, um G ol e um Santana, saíram com quatro detentos para levá-los ao médico. O s presos tinham inflamações na pele. Em cada um dos veículos, dois investigadores e dois detentos. O Gol foi o primeiro carro a voltar. Logo atrás veio o Santana, com os presos Paulo M endes das Neves, de 20 anos, e M auro Borges da Silva, de 36. Na esquina das Ruas Sim ão Alvares e Inácio Pereira da Rocha, N eves aproveitou um des­ cuido do investigador W illian Ruy Teixeira, de 38, e tomou sua pistola calibre 380. Foram pelo m enos dois disparos: um na cabeça de Tei­ xeira e outro na nuca do investigador Mauro Aparecido G o ­ mes, de 35, que morreu. Além de estar com as mãos algem a­ das para frente, Neves tinha os braços entrelaçados com os de Silva. Os dois saíram do carro e correram cerca de 100 m etros pela Rua Simão Álvares, onde invadiram uma sede da Associação Com ercial de São Paulo. M endes dominou três funcionários que estavam no tér­ reo do sobrado. Todos subiram para o piso superior, onde mais dois funcionários foram tomados com o reféns. O s poli­ ciais baleados foram levados ao Hospital das Clínicas. Mais de 100 policiais cercaram o sobrado. A negociação com eçou com M endes exigindo um carro e m unição para fu­ gir. Com o a fuga foi negada, exigiu a presença da imprensa, do ju iz corregedor M aurício Lem os Porto A lves e de seu pai, Osias Hermes Alves. A todo m om ento, aparecia na janela com a arma apontada para a cabeça de um refém. Por volta das 13h20, fez um disparo em direção à pare­ de da sala. Dez minutos depois, com a chegada do juiz, o pri­ meiro refém foi solto. Às 14h, ao ver o pai, soltou uma refém. O delegado Carlos Eduardo Duarte de Carvalho, do Grupo Especial de Resgate (GER), negociou a rendição do detento, que tirou o pente da arm a e o jogou para o delegado.


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O leitor, ao interpretar o texto acima, que vem com destaques nossos, entende já que ele conta com unidade de sentido, narrando um evento criminoso, retomando elemen­ tos anteriores que permitem ao interlocutor entender o que se passara com os presos que eram transportados nas via­ turas policiais. Diante da leitura da matéria jornalística, procure res­ ponder com certeza: quem é “o pai" cuja presença o crimi­ noso Paulo Mendes das Neves exigiu para que os reféns fos­ sem libertados? A resposta, ao contrário do que parece, não é evidente. A origem da confusão está na frase: "Como a fuga fo i nega­ da, exigiu a presença da imprensa, do juiz corregedor Maurício Lemos Porto Alves e de seu pai, Osias Hermes Alves." Reveja o texto, no excerto recortado. Do modo como foi escrito, a frase traz uma ambigüidade. Perceba que não é possível identificar se Osias é pai do preso ou pai do juiz corregedor. O pronome seu, no caso, pode fazer referência tanto ao fugitivo quanto ao juiz corregedor, termo este que lhe é imediatamente anterior. Essa falta de clareza prejudica a intelecção do texto, porquanto a ligação entre os elementos que o compõem, como se vê, não é clara. O leitor pode argüir, em discordân­ cia com o apontado, que a ambigüidade da oração destaca­ da (fator interno) não contamina todo o texto, pois outros elementos, externos, dão-lhe unidade de sentido. Nesse caso, então, o autor teria contado com um mínimo de co­ nhecimento de mundo do leitor, sendo lógico que o fugiti­ vo, ao ser cercado pela polícia, não teria nenhuma razão para chamar a presença do pai do juiz corregedor, mas sim de seu próprio pai, o que é muito mais razoável. Mas quem tentar sanar a dúvida sem recorrer a esse elemento exterior, caçando no texto outros fatores internos que façam essa identificação, pode chegar a conclusão di­ versa. Seria fácil determinar a relação familiar se compara­ dos os nomes das pessoas envolvidas. Assim, se o homem chamado pelo fugitivo fosse pai deste, deveriam ambos ter


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sobrenomes relacionados. Se o leitor fizer essa compara­ ção, mudará de idéia: Osias Hermes Alves é o nome do "pai", Paulo Mendes das Neves é o nome do fugitivo e Mau­ rício Lemos Porto Alves é o nome do juiz corregedor. Por­ tanto, também tendo em conta um elemento exterior ao texto, a possível coincidência de sobrenomes que pode ha­ ver entre pai e filho, o leitor será levado a convencer-se de que Osias, o homem que foi chamado a comparecer à cena do crime, é pai do juiz corregedor, pois somente entre esses dois personagens há identidade de nomes. Então, se seria razoável que o detento chamasse a sua presença o próprio pai, também seria razoável que seu pai tivesse com ele um sobrenome em comum, o que não ocor­ re, se considerado o filho como sendo o fugitivo. Permane­ ce a ambigüidade, não sendo possível dar ao texto sentido único, na leitura daquela frase. O autor teve outra oportunidade de desfazer o equívo­ co: no último parágrafo, escreve: Dez minutos depois, com a chegada do juiz, o primeiro refém foi solto. Às 14h, ao ver o pai, soltou uma refém. Desperdiçou essa oportunidade. Na frase, já no fim da matéria, a ambigüidade (duplicidade de sentido) permane­ ce: "ver o pai" significa "ver o próprio pai", ou "ver o pai do juiz", retomando a palavra juiz, imediatamente anterior a essa oração? Reveja, no corpo do texto citado, e note também esse excerto. Tratou-se, claro, de uma infelicidade momentânea, que pode ocorrer a qualquer um que redige, mas nos serve como peculiar exemplo de escrita. Quando vemos tal exemplo, per­ cebemos algo que, no contexto da construção do discurso escrito, muito nos interessa: as palavras não assumem sentido sozinhas. Veja: todos sabemos o que significa a palavra "pai", não? Todavia, quando incluída em um texto, ela somente ganha sentido na dependência de outro elemento, outra palavra:


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no caso, a indicação do "filho". Enquanto não aparecer o filho, a palavra "pai" é vazia de sentido. Pai de quem? Pai somente em relação a um filho, que deve vir determinado no texto. Da mesma forma, um verbo transitivo (fazer) apenas assume sentido na frase se lhe aparece um complemento (fazer o quê?), com um sujeito (quem fez?). Se escrevo o no­ me "João", ele só adquire sentido se atribuo, no mais das ve­ zes, uma ação (verbo) a ele (João comeu a maçã). O texto coeso é aquele que permite leitura rápida, por­ que as relações de sentido formuladas entre as palavras na frase estão sempre evidentes ao leitor. Em frases curtas, a re­ lação de sentido é clara, mas em construções frasais mais complexas (de que necessitamos para argumentar), essa imediaticidade passa a ser mais difícil. Um texto escrito com ambigüidade, com frases longas, com erros de pontuação, com uso equivocado de pronomes tende a não ser coeso, e assim tomar a leitura menos fluente, mais difícil e confusa. Não nos aprofundaremos no tema, mas nos serve de reflexão: a coesão é uma qualidade do texto escrito intima­ mente ligada à estrutura da frase. O texto é um tecido, um emaranhado de relações de significado, em que as palavras estão em constante interdependência de sentido. E o texto coeso é aquele que permite a leitura fluente porque o significado das palavras é diretamente identifica­ do pelo leitor. O texto que tem pouca coesão traz um pre­ juízo enorme à argumentação: enquanto o leitor tem de esforçar-se para desvendar o sentido de uma frase, retira sua atenção do conteúdo de fundo, da profundidade dos argu­ mentos, ao mesmo tempo que sofre grave desestímulo à continuidade de sua leitura. Portanto, aquele que escreve deve estar muito atento à coesão de seu texto. E para se atribuir essa qualidade à redação, permitindo a leitura fluente, inequívoca, agradá­ vel, não existe outra saída: deve-se iniciar pela gramaticalidade.


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Gramaticalidade e pontuação Para atribuir a um texto escrito a qualidade da coesão, permitindo a leitura fluente, várias condições devem ser no­ tadas. Não nos aprofundaremos em todas elas, mas pode­ mos ilustrar, por exemplo, com a boa seleção vocabular. Quem diz que "A colheita do que fora plantado pelos agricul­ tores não esteve a contento dos mesmos porque caiu uma geada muito forte" tem uma frase menos coesa do que aquele que enuncia que "A colheita não fo i satisfatória porque geou", ape­ nas por falta de seleção vocabular adequada. Ém um discur­ so oral talvez as falhas passassem despercebidas, mas no escrito foi imperdoável: se houve colheita é porque se plan­ tou; se existe geada, ela só pode cair, porque não se há de imaginá-la subindo. Todavia, ainda que outros fatores de redação importem em boa ou má coesão textual, um deles aqui merece realce: a pontuação. Consideramo-la especialmente por pura ex­ periência, pois muitos alunos julgam ser o uso da vírgula o grande fator de dificuldade da escrita. E, no intuito de aperfeiçoar a pontuação, procuram-se na gramática várias regras de uso da vírgula, como se assim solvessem seus problemas. Encontram, surpreendentemen­ te, poucas regras a esse respeito, estudam-nas, memorizamnas, mas ainda têm dificuldade. Por quê? Porque as regras de vírgula são realmente muito parcas e, se estudadas isoladamente, de nada adiantam. Elas de­ pendem do conhecimento e efetivo uso de outras noções gramaticais, em especial das estruturas sintáticas. Não nos aprofundaremos nelas aqui, mas talvez caiba uma noção cuidando da peculiaridade do discurso escrito - a título de estímulo ao estudo. Intimamente ligada à coesão, a vírgula é uma pausa, como todos sabem. Todavia, não é uma pausa "para respi­ rar", como afirmavam, à nossa época, algumas professoras de primeiro grau. É uma pausa de pensamento. E uma pau­ sa para marcar ao leitor que uma estrutura a que ele está acostumado está sendo quebrada.


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Quando lecionávamos especificamente o tema, prefe­ ríamos dizer que a vírgula é como um degrau. Um degrau existente, por exemplo, entre a sala e a cozinha de um apar­ tamento não surge por si só: ele foi colocado ali porque, en­ tre aqueles dois cômodos, existe uma descontinuidade do piso. Assim, estudar a vírgula como mera separação entre pe­ quenas palavras é tão míope quanto procurar entender a presença de um degrau sem considerar qual o intervalo de piso que ele separa. A vírgula marca, via de regra, o rompimento de uma estrutura que o leitor espera. E essa estrutura é a ordem di­ reta da oração ou do período, a qual tem natureza, antes de tudo, gramatical. E, assim, na estrutura sintática da oração e dos períodos que estão os principais pontos que levam à boa pontuação e, conseqüentemente, a um dos grandes fatores de coesão textual. Não se vai afirmar que o ponto mais importante de todo um processo comunicativo é a correção gramatical; todavia, aquele que pretende boa construção de frases não deve se iludir: ela é o primeiro fator da pontuação. Porque aqui não vamos nos estender em tema de gramática nor­ mativa (impossível concorrer com cursos tão bons no mer­ cado, além de não ser mais essa nossa especialidade). Fica apenas a dica tão importante: não se deve tentar começar a construção da casa pelo telhado. Falseia a verdade quem diz ter boa construção de frases e pontuação perfeita sem fazer uso do conhecimento de temas de gramática normativa, al­ guns deles abaixo nominados, somente para trazer à m e­ mória do estudante: a) frase, oração (conjunto de palavras em torno de um verbo), período (conjunto de orações); b) termos essenciais da oração (sujeito e predicado); c) ordem direta da oração (sujeito - verbo - comple­ mento verbal - adjunto adverbial); d) relação de coordenação e de subordinação entre as orações do período;


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e) orações subordinadas com função de substantivo (subjetivas, objetivas diretas e indiretas, predicativas, completivas nominais e apositivas); f) orações com função de adjetivo e sua distinção (res­ tritivas e explicativas); g) orações com função de advérbio (temporais, causais, consecutivas, condicionais, comparativas, conformativas, concessivas, proporcionais e finais); h) orações reduzidas de particípio, gerúndio e infi­ nitivo; i) orações coordenadas sem conjunção; j) orações coordenadas sindéticas (aditivas, adversativas, conclusivas, explicativas e alternativas); 1) uso de uma conjunção por outra etc. O estilo e as intenções, o ritmo, os casos facultativos, todos podem ocasionalmente determinar o uso da vírgula. Entretanto, o alicerce da pausa no discurso escrito, ao con­ trário do discurso oral, não é o ritmo da fala, mas sim, a prin­ cípio, a estrutura gramatical da oração e do período. Depois dela, o resto é acréscimo. Assim se mostra em grande medida a diferença entre a argumentação oral e a escrita. Nesta, o ritmo é, em suma, determinado por uma estrutura sintática, a qual, embora es­ teja presente no discurso oral, não é lá tão determinante em sua fluência, em sua progressão concebida pelas estru­ turas menores, as palavras. A fluência da leitura, pelo interlocutor, depende, em grande medida, da noção de gramaticalidade da frase pelo autor do texto escrito. Identificar, ao escrever, as estruturas sintáticas que se está introduzindo é o único meio de deter­ minar com segurança a existência da pontuação, lembran­ do-se sempre que, para o leitor, uma pontuação mal elabo­ rada é sempre fator de confusão, ainda que ele quase nada se lembre das regras do uso da vírgula.


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Algumas dicas de construção Tendo consciência da estrutura gramatical que forma o período (conjunto de orações - estende-se da letra maiús­ cula ao ponto final) e a oração (palavras ligadas a um núcleo verbal), podem ser enumeradas algumas pequenas dicas, muito didáticas, sobre questões da enunciação escrita. É in­ teressante que o estudante acompanhe essa enunciação, mesmo que somente para ter a ciência de como o estudo da redação traz matérias peculiares que devem ser revistas por aquele que pretende boa argumentação. Veja algumas di­ cas em relação ao período: a) Procure colocar a idéia principal do período como oração principal. Compare os dois períodos: O juiz Tício, que é muito honesto, deferiu a nossa liminar. O juiz Tício, que deferiu a nossa liminar, é muito ho­ nesto. Ambos os períodos trazem ao leitor duas informações distintas: - que o juiz Tício é muito honesto; - que o juiz Tício deferiu a liminar. Todavia, embora os períodos tragam exatamente as mesmas informações, é certo que as expressam de maneira diversa. Nesse período composto por apenas duas orações, a diferença de expressão pode até não ser muito relevante, mas ela se torna maior quanto mais complexo for o período. Na primeira frase, a idéia de que "o juiz Tício deferiu a liminar", por constituir a oração principal, tem maior realce que a idéia de que "Tício é honesto", uma vez que essa apre­ senta-se como oração subordinada (adjetiva explicativa). Na segunda frase, ao contrário, a idéia de que "Tício é mui­ to honesto" assume maior realce por ser oração principal. Assim, o conhecimento das relações de subordinação é es­ sencial para atribuir sentido e coesão ao texto.


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Veja, nos exemplos abaixo, como as idéias que constam das orações principais (em negrito) assumem, para o leitor, maior relevo. Porque chovia muito, não consegui chegar ao fórum. Chovia tanto que não consegui chegar ao fórum. Quando a vítima morreu, o acusado encontrava-se em via­

gem ao exterior. A v ítim a m o rre u quando o acusado encontrava-se em via­ gem ao exterior.

Portanto, ao construir períodos compostos, procure es­ tabelecer, em primeiro lugar, a oração principal, formada pela idéia central. A partir dela, seu sentido complementar pode ser conferido pelas orações subordinadas. b) Evite, em regra, as inversões nos termos da oração. As inversões são muito comuns no discurso forense. En­ tretanto, nem sempre elas trazem um resultado eficiente em relação à coesão. Sem intenção determinada, apenas preju­ dicam a fluência da leitura, a exemplo de: Pede o perito sejam elaborados quesitos mais claros. Disse a promotora de justiça que não cabe suspensão do processo no presente caso. Antecipa o requerente sua falta de disposição para fir­ m ar acordo.

Nota 1: A colocação das palavras deve observar a cla­ reza. Não raro a colocação pouco criteriosa traz ambigüida­ des. Vejamos: O policial efetuou a prisão do fugitivo portando uma metralhadora.

Quem portava metralhadora? O policial ou o fugiti­ vo? Para evitar ambigüidade, deve-se preferir colocação diversa.


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O policial, portando uma metralhadora, efetuou a pri­ são do fugitivo. O policial efetuou a prisão do fugitivo, o qual portava uma metralhadora.

Veja outro exemplo: A apelação da sentença de primeiro grau, que está qua­ se ilegível nos autos, foi protocolada a destempo.

Afinal, o que está ilegível: a sentença ou a apelação? Note-se, entretanto, que a ordem das palavras na ora­ ção pode implicar significado ou expressividade distinta, como no exemplo abaixo: O velh o ad v og ad o sustentou sua tese. O ad v ogad o v e lh o sustentou sua tese.

Portanto, a colocação de palavras deve observar, no mí­ nimo, a clareza e o significado dos termos da oração. Via de regra, as inversões da ordem direta da oração são pouco re­ comendáveis, pois tendem a trazer menor clareza ao pe­ ríodo. Quando feitas tais inversões, devem seguir uma in­ tenção clara. c) Evite os ecos na escrita. O poeta pode rimar. O texto poético permite a repetição de sons que tornam belo o ouvir das palavras em combina­ ção. Mas no texto em prosa, no texto técnico, a repetição de sons é pobreza de estilo, porque não intencional, e torna a leitura estranha. Faz parte do trabalho de selecionar palavras, também, a seleção de sons que não se repitam, de modo a evitar os chamados ecos, ou seja, a rima no texto em prosa. Então, evite construções como: Juridicamente, não há fo m en to para o aum ento da ver­ ba honorária. Sua cliente, astuciosam ente, buscava outros m eios para a solução da questão.


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Mal alfabetizada, a empregada foi encorajada a freqüen­ tar um a escola especializada em ensino básico a adultos. N ão pode haver verdade m aior que essa.

Nesses casos, sempre há um modo ou outro de evitar inconveniente rima: Juridicamente, não há razão para a m ajoração da verba honorária. Com astúcia, sua cliente buscava outros meios para s o ­ lucionar a questão Com parca alfabetização, a empregada m otivou-se [ou m otivaram a em pregada] a freqüentar uma escola especial para ensino básico a adultos. N ão pode existir verdade maior que essa.

d) Evite o excesso de informações em um só período. Este ponto merece atenção especial. Quando construí­ mos um texto, temos várias informações a passar. Na argu­ mentação em sentido estrito ou na narração procuramos organizar uma série de elementos, figurativos ou temáticos, que têm de ser incluídos no texto. Na frase, cabe apenas parte dessas idéias. Mas qual parte? Ou, em outras pala­ vras, quando é hora de iniciar e quando é hora de terminar um período? A resposta para tal questão não é simples, mas subsis­ te em todo aquele que escreve. Como toda questão atinente à redação, não se lhe pode dar uma solução segura, mas há como desenvolver algumas diretrizes para a adoção de um estilo claro quanto à extensão dos períodos. A princípio, deve-se refletir sobre um fator: a leitura. Se me proponho a ler um texto em voz alta e nele há uma interrogação, dou acento específico de pergunta à frase. Mas impõe-se uma questão: se leio aquele texto pela primei­ ra vez, como entonarei a pergunta, se tenho de iniciar o pro­ cesso no meio da frase e o ponto de interrogação somente aparece em seu fim? Porque, mesmo sem perceber, eu, leitor, ao iniciar a leitura de uma frase, procuro seu fim. Já o vimos em ritmo de texto, quando tratamos de coerência.


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Assim como um praticante de atletismo, ao iniciar a corrida, quer saber o tamanho do percurso que deve enfren­ tar, para poder calcular seu ritmo de passadas, o leitor mede seu ritmo de leitura de acordo com os intervalos que lhe são impostos. Isto significa afirmar que, via de regra, impõe-se a frases mais longas menor esforço de intelecção, e às frases mais curtas, maior atenção. Em resumo, pode-se construir frases mais longas quan­ do o assunto é de fácil entendimento pelo leitor; ele até as prefere porque tomam a leitura mais fluente, sem grandes ou freqüentes interrupções. Mas deve-se construir frases mais curtas quando se tratar de temas mais complexos, pois, caso não o faça, o lei­ tor, no esforço de compreender o período que se lhe coloca, terá de criar por si pausas que não estão demarcadas no texto, o que lhe será grande fator de confusão. Novamente, como em todo tema de argumentação, não há regras seguras, mas um grande sopesar que depende do conhecimento do auditório - do leitor ou conjunto de leito­ res - a que se direciona o discurso. Escrita como fator argumentativo Quando, anteriormente, tratou-se de argumento de competência lingüística, frisou-se que, em nosso tema, é im­ possível dissociar conteúdo e forma. A competência lingüística serve ao argumentante para a adesão dos espíritos, e não se pode negar que um texto mal escrito, por mais idéias de fundo, pertinentes, que pos­ sa conter, não persuade. Aqui não vamos cuidar de todos os temas tão interes­ santes da redação, mas cabe lembrar que o texto escrito tem suas peculiaridades. Elas passam principalmente pela exigência de uso mais estrito da coesão e da gramaticalidade, para que, para muito além de enunciar corretamente o texto, este faça um constante convite à leitura. Fator, claro, que o argumentante não pode desprezar.


Capítulo XVII

Argumentação, estilo e subjetividade Fase avançada da argumentação é imprimir-se ao dis­ curso traços de personalidade; mas isso não pode ser con­ fundido com centrar o discurso em si mesmo, na pessoa do argüente. A argumentação jamais é construída para si, mas para o outro.

Para iniciar este capítulo, os textos abaixo devem ser li­ dos. O primeiro é fragmento do livro Momo e o senhor do tempo, de Michael Ende'. Na narrativa, Momo é uma meni­ na que vive sozinha, isolada em uma pequena praça, na cercania de uma cidade da Europa. Os moradores da cida­ de aproximam-se dela e, procurando saber de sua vida, tra­ vam este diálogo: - Quer dizer, você não precisa voltar para casa? - Minha casa é aqui - respondeu ela, prontam ente. - Mas de onde é que você veio, m enina? M om o fez um gesto vago na direção do horizonte. - Então, quem são seus pais? - insistiu o homem. A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e encolheu os ombros. Todos se entreolharam , suspirando. - Não precisa ter m edo - continuou o hom em . - N ão vam os m andá-la embora. Q uerem os ajudá-la. M om o m eneou a cabeça, calada, sem muita convicção. - Você disse que seu nom e é M om o, não é? -É .

- É um nom e bonito, mas que eu nunca tinha ouvido antes. Q uem lhe deu esse nom e? - Eu mesma.

1. M om o e o senhor do tempo, pp. 6-7.


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- V o c ê m esm a?... -É.

- Q uando você nasceu? M om o pensou um pouco e, finalm ente, disse: - Tanto que eu m e lembre, sem pre existi.

O segundo fragmento é o "Soneto de Natal", de Ma­ chado de Assis2: Um hom em , - era aquela noite amiga, Noite cristã, berço no Nazareno, Ao relem brar os dias de pequeno, E a viva dança, e a lépida cantiga, Quis transportar ao verso doce e ameno As sensações da sua idade antiga, N aquela m esm a velha noite amiga, Noite cristã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto... A folha branca Ped e-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca, A pena não acode ao gesto seu. E, em vão lutando contra o m etro adverso, Só lhe saiu este pequeno verso: "M udaria o Natal ou mudei eu?"

Ambos ilustram uma realidade que, se bem aproveita­ da, em muito pode contribuir ao argüente, já nesta fase fi­ nal do estudo. Trata-se da subjetividade e seu efeito na enun­ ciação do discurso. Perceba como a menina Momo, que vivia isolada de seus pares, quando questionada sobre sua idade, responde: "Tanto que eu me lembre, sempre existi." Um pensamento e tanto, não? Efetivamente, de seu ponto de vista, ela existe desde sempre. Antes de seu nascimento, impossível a ela aquilatar se havia existência: de seu ponto de vista, o mun­ do nasceu a partir dela, e não o inverso. Algo semelhante ocorre com o soneto de Machado de Assis, conquanto de modo oposto. O poeta, já avançando

2. "Soneto de Natal". In: Poesias Completas, p. 376.


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em anos, percebe que o Natal não mais lhe inspira como outrora. Reflete, entretanto, com maior maturidade que, antes de afirmar que o Natal já não é mais o mesmo ("a viva dança e a lépida cantiga"), tem de colocar-se à reflexão: não seria ele, poeta, que estaria vendo a realidade de modo di­ verso? "Mudaria o Natal ou mudei eu?" Pois toda vez que descrevemos uma realidade, transfor­ mando-a em ponto de partida de um discurso, imprimimos nossas impressões pessoais, queiramos ou não. Quando enunciamos um texto argumentativo, é de má técnica utilizar enunciações de subjetividade, a exemplo de "na minha opi­ nião", "eu acho", "sob meu ponto de vista", mas é certo que qualquer enunciaçâo ou construção discursiva, porque são frutos do raciocínio de um sujeito, sempre refratam sua opi­ nião, seus anseios, preconceitos e experiências. Não é apenas na literatura. Onde um juiz, em julgado seu, afirma que "a doutrina diz que essa é a interpretação válida do texto legal", deve-se ler, à evidência, "a doutrina que eu conheço (ou que eu li) diz que essa é a interpretação válida do texto legal". Por mais objetivo que pretenda ser o julgado, ele trabalha com as informações e experiências que têm uma mente humana determinada, com seus sentimen­ tos e seu conhecimento de mundo tão pequeno, se compa­ rado ao todo do saber humano. É bem verdade, então, que o argumentante não deve enunciar-se diretamente no texto, revelando seu eu, com suas limitações e defeitos, pois o ideal é sempre que a argumen­ tação alcance a maior objetividade possível. Entretanto, já em nosso nível de estudo do tema, podemos claramente afirmar que o fato de essa subjetividade não aparecer enun­ ciada não significa que não deva ser considerada, em qual­ quer exercício discursivo, pelo argumentante. Pois é do caráter subjetivo da argumentação - e do aler­ ta para que o argumentante se aperceba dele - que trazemos duas conseqüências diversas, como instrumento de refle­ xão em nosso estudo: a construção do estilo e a humildade do argumentante.


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ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Os dois pontos que seguem podem, então, parecer con­ traditórios, se o estudante não lhes conceder o devido valor. Sopesar - como em toda matéria humana - as vantagens e desvantagens do quanto será exposto para seu nível atual de trato com a construção do discurso é responsabilidade, obviamente, de cada estudante.

Construir um estilo, edificar uma imagem A primeira conseqüência da subjetividade é o evidente fato de a imagem do argumentante ser indissociável de seus argumentos. Mesmo que o interlocutor jamais tenha refle­ tido especificamente acerca deste tema, certo é que associa o conteúdo das idéias que lhe são lançadas àquele que as profere, como se notou ao trabalhar-se com a argumenta­ ção ad hominem e, de certa maneira, com o argumento de autoridade. O interlocutor concebe essa associação indivíduo-idéia porque busca coerência no todo da construção discursiva. É, portanto, obrigação do argüente preocupado com a efi­ cácia de seu discurso estabelecer tal coerência, que vem de sua própria imagem que ele constrói para si. Observe, a título de ilustração, o pertinente comentá­ rio de Schwartzenberg3: O hom em político vem procurando cada vez mais im ­ por uma im agem de si m esm o que capte e fixe a atenção do público. Essa im agem é uma reprodução mais ou m enos fiel dele m esm o. E o conjunto de traços que ele preferiu a p re­ sentar à observação pública. É um a seleção, um a re co m ­ posição. Esta m aquete reduzida constitui portanto um a represen­ tação figurada da realidade. E, ao m esm o tempo, uma recons­ trução da realidade.

3. O Estado espetáculo, p. 3.


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Essa reconstrução lem bra o trabalho do artista. Mas desta vez o artista tom a a si m esm o com o material de traba­ lho - como na autobiografia, no auto-retrato. Mas, desta vez, o escultor esculpe sua própria estátua. Am assa a sua própria argila. É ao m esm o tem po artista e modelo, criador e criação.

Não se prega aqui o narcisismo e o culto da personali­ dade, própria dos políticos e estadistas. Mas é certo que, ao longo do tempo, a construção de uma imagem que pareça coerente ao interlocutor é fator de persuasão complemen­ tar, a que um estudo aprofundado não pode deixar de fazer menção. Se um argumentante se faz suficientemente co­ nhecido porque muitas vezes escreve textos ou faz discur­ sos orais defendendo determinadas idéias, o interlocutor passa, em sua intertextualidade, a contar com aqueles ou­ tros discursos para complementar o sentido daquele que lhe é proferido. Certa vez um advogado do tribunal do júri, de larga competência, sentindo que os jurados estavam comovidos com seu discurso, percebeu que poderia enunciar tese de legítima defesa em favor de seu cliente, sendo que houvera planejado pedir o benefício da violenta emoção. Demoveuse da idéia, apesar da possibilidade de, com alguma justiça, absolver seu cliente. Depois, explicou: "Correria grande ris­ co se o fizesse. Não apenas de sair perdedor, mas de firmar minha imagem como advogado que faz pedidos inverossí­ meis. Isso me seria altamente prejudicial." Verdade: o advo­ gado considerou que um dos jurados que o assistisse, em próxima defesa sua, poderia usar do pedido desarrazoado de legítima defesa para constituir uma má predisposição para o novo discurso: a imagem do argumentante como falseador da razoabilidade, que, indissociável de seu novo dis­ curso, não se renova com facilidade. Mais uma faceta da coerência. Pois o nível de intencionalidade na construção da ima­ gem do argumentante também é parte de seu discurso e da técnica argumentativa. Como é impossível deixar de gravar traços de personalidade em todo discurso que constrói, ele


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utiliza esses mesmos traços como fator de coerência, de­ monstrando, intencionalmente - ainda que de modo não ex­ plícito - , que tais marcas pessoais seguem no mesmo senti­ do que os argumentos efetivamente enunciados. E de tem ­ pos passados que nasceu a máxima "A mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta". A tarefa de constituir uma imagem coerente nada tem, no Direito, de criticável: na publicidade, o gordo não será chamado para fazer comercial de adoçante, nem o careca para anunciar tônicos capilares. A subjetividade aparece também na construção do es­ tilo. Ao longo do tempo, as convicções, idiossincrasias, a se­ leção vocabular e a própria imagem constituem traços de pessoalidade discursiva, que podem ser identificadas pelos interlocutores. Esse estilo, quando bem utilizado, é marca característica que funciona como fator de persuasão, na medida em que representa um diferencial com o qual o des­ tinatário pode identificar-se e que pode servir de fator com­ plementar de sentido a um texto. De qualquer modo, o importante é que esse fator seja trabalhado com intencionalidade e consciência. A coerência em relação à formação da imagem e do estilo pode ser fator de excelente persuasão, se consideradas todas as circunstân­ cias que envolvem essa técnica. Veremos mais adiante.

O segredo final: a humildade No início do capítulo vimos como as impressões pes­ soais daquele que constrói o discurso são indeclináveis. Elas aparecem para aquele que é bom observador, queira ou não o argüente. O que se proclama, como técnica argumentativa, é que o argumentante tenha consciência desses traços pessoais que imprime em seu discurso e deles se uti­ lize como fator de coerência. Para imprimir sentido a seu discurso, o interlocutor pode estar conjugando uma miríade de fatores em relação àquele que argumenta: seu currículo, seus pronunciamentos anteriores, suas citações, sua lin­


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guagem, sua aparência, seu tom de voz, seus gestos, sua segurança... Mas construir uma imagem não significa falseá-la e, muito menos, ter soberba de si mesmo, erguendo em torno da personalidade um personagem sólido e inflexível. Ao contrário. Se já tratamos do tema em relação à intertextualidade, aqui o abordamos sob outro prisma: o bom argumentante sabe, antes de tudo, ser humilde. Não humilde por fraque­ za de caráter ou timidez, mas para saber que o centro de to­ das as atenções, no discurso, é o ouvinte. Sem pensar no interlocutor - e não em si mesmo como centro do discurso, o argüente faz construções proli­ xas, recheadas de informações, desnecessárias, mas corre­ tas, e torna seu percurso complexo e ininteligível. Imaginando-se o centro da argumentação, o argüente (quantas vezes!) lembra-se da correção gramatical, mas es­ quece-se das regras de coesão, desestimulando a leitura e assim lançando a ninguém seus argumentos. Julgando-se o centro da argumentação, o argüente crê criar um estilo pessoal, introduzindo diferenciais em seu discurso, enquanto aos olhos do interlocutor só faz acumu­ lar vícios e manias, construindo um percurso repetitivo e de enunciação pobre. Crendo ser o centro da argumentação, o argüente crê demonstrar sua erudição - e o faz - sem calcular o prejuízo que causa ao ouvinte, interessado na objetividade. Faz-se, portanto, seguro afirmar que aquele que estu­ da argumentação para demonstrar argumentar bem está a um passo de construir um discurso nada persuasivo. Como naquela historinha - conta-se com bastante liberdade - do violinista que adentrou no palco e encontrou a platéia cheia de espectadores para assistir-lhe. Resolveu, então, à sorrelfa do maestro, entonar um longo solo, fechando os olhos para concentrar-se. Seus dedos passaram a voar pelo violi­ no, as notas saíam-lhe com perfeição e rapidez, a velocida­ de inacreditável; mostrava ser o mais habilidoso dos instru­ mentistas, quiçá do continente inteiro. Quando abriu os


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olhos, a platéia estava vazia. O violinista não percebeu o que o maestro tão bem sabia: que o público não viera para ver exibição de habilidade, mas para ouvir música. Pois assim é que argumentar passa a significar a trans­ formação das capacidades pessoais (trato com a linguagem, erudição, raciocínio, conhecimento jurídico etc.) em recursos que atraiam o próprio interlocutor, o auditório. Nesse sentido, o operador do Direito deve se ver como um profissional da comunicação exercendo uma atividade comunicativa, de transferência de mensagem: agir como age o escritor, como age o publicitário, como faz o vendedor - com a vista centra­ da no auditório. Constituir uma imagem e um discurso coe­ rentes com toda a argumentação que se profere não pode sig­ nificar, de modo algum, deixar de estar sempre pronto para alcançar novas técnicas discursivas, que podem implicar mu­ danças verdadeiras na forma de enunciação ou até mesmo na forma ou na capacidade de construção de raciocínio. E um aspecto que, no contexto jurídico, não é demais insistir.

Conclusão A construção do estilo é questão importante para aque­ le que pretende um aprimoramento completo e contínuo de sua capacidade argumentativa. Ao lado da imagem defi­ ne-se a coerência entre o discurso e diversos outros fatores - entre eles, outros discursos - que vão se sedimentando para a atribuição de sentido pelo interlocutor. Trata-se de um fa­ tor para ser pensado mais a longo prazo, em exercício tam­ bém constante. Mas imaginar a definição do estilo e da imagem não pode implicar soberba. O estilo define-se se tiver sempre como foco principal o interlocutor. Ele é quem deve ser atin­ gido pelo argumento e é para ele que se constrói o discur­ so suasório. Rememorando, quem elabora um texto tendo como foco o próprio raciocínio está a um passo de fazer um belo exercício, mas uma péssima argumentação.


C ap ítu lo X V III

Argumentação e criatividade Até o argumentante mais experiente pode cair no erro de cristalizar argumentos e formas de enunciação, que farão repetitivo seu discurso. E a repetição não é suasória. Buscar a constante renovação do discurso é um fomento à construção dos meios pessoais de criatividade.

Se compreendemos a argumentação como atividade co­ municativa dentro do Direito, e a forma de argumentar como aquela que envolve técnicas de persuasão, sujeitas a alguns aspectos que tangenciam a subjetividade, como a compe­ tência lingüística, o estilo e a intertextualidade, certo é que o tema da criatividade pode aparecer, senão como funda­ mental, ao menos como muito pertinente. Nossa função, nesta obra, talvez seja transportar para o campo da atividade jurídica algo que, nas demais áreas da co­ municação, é corriqueiro. O tema da criatividade permeia o marketing, a propaganda, a administração de empresas, a gestão de pessoal, a literatura e, sobretudo, as artes. No Di­ reito, uma herança que o aproxima das ciências exatas, acerca do que muito aqui já se discutiu, além do conservadorismo natural de uma ciência, que, por suas próprias condições, segue as mudanças sociais sempre com largo retardo, tal­ vez não se abra devido espaço para discutir o tema do pro­ cesso criativo. Mas é sempre tempo de pensar de modo diverso, ao menos quando tratamos de argumentação. Ao largo destas reflexões foram pinceladas idéias que estimulam o processo criativo, os exemplos literários, as frases com efeito suasó­ rio reconhecido, as ilustrações. Nosso ponto de partida é acre­ ditar que discurso deve sempre se renovar e que a mente humana pode ser estimulada de determinadas maneiras,


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sendo que esse estímulo tem efeitos inequívocos nos ar­ gumentos. Entretanto, antes de estudá-lo é necessário que sejam afastados todos os eventuais obstáculos que se impõem no processo criativo, caso contrário o estimular da criatividade não passará de semeadura em terreno infértil. Por isso é imprescindível que sejam realçados dois elementos distin­ tos que já foram afirmados em nosso estudo. O primeiro é o de que a argumentação tem limites éticos, por isso é pací­ fico que nem toda grande idéia cabe no contexto argumen­ tativo jurídico. O segundo é o de que níveis de discurso dis­ tintos assumem graus de liberdade criativa também distintos. Assim, um percurso científico é menos aberto a inovações criativas que a persuasão no tribunal do júri ou na redação de razões de apelação. Mas nos três casos, como fruto da mente humana, a criatividade está presente, e em larga medida. O operador do Direito, em especial o advogado, são baluartes, bandeiras da atividade criativa. Seu cotidiano impõe que sempre sejam alimentadas novas idéias, novos campos de argumentação, novos modos de encarar antigas situações ou até mesmo as situações inusitadas, que não contam com previsão legal ou não reverberam na, por as­ sim dizer, remansosa jurisprudência. Nesse sentido, reflexões sobre criatividade no Direito são necessárias, ainda que representem novidade. Trata-se até mesmo de atividade metalingüística: é necessário ser criativo para falar e refletir a respeito da criatividade. Desta forma, ela não pode ser um estudo estanque, travado em regras, pois estas contradiriam a própria natureza daquela. Vamos, portanto, às mudanças.

M edo de mudanças ou medo de que as coisas não mudem? O criativo é diferente. Mas parece instinto natural do ser humano a repulsa ao que é diferente, porque gera insegurança. Um instinto


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de preservação indica que o desconhecido é sempre peri­ goso. O ser humano tem a tendência de preservar costumes e tradições porque eles, comprovadamente, mantêm-se den­ tro de padrões que importam o afastamento de riscos. Mas o mundo moderno - ou pós-moderno, como pre­ ferem alguns - trouxe como uma de suas conseqüências a volatilização das relações humanas. Nesse processo, como em qualquer processo humano, há vantagens e desvanta­ gens, sobre o que cabe refletir, brevemente, nos estreitos li­ mites que interessam à argumentação. "Tudo que é sólido desmancha no ar." A frase, conhe­ cida, é do Manifesto Comunista. Ideologias à parte, em 1848 Marx e Engels bem descreviam o que representaria a mo­ dernidade, quais seriam seus valores principais. Marx desta­ cava que a revolução incessante, a constante transformação era regra da sociedade que então se instalava: A burguesia só pode existir com a condição de revolu­ cionar incessantem ente os instrum entos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as re­ lações sociais. A conservação sem alterações do antigo modo de produção constituía, pelo contrário, a condição primeira da existência de todas as classes empreendedoras anteriores. Essa revolução contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação perm anente e essa fal­ ta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes. (...) Tudo o que era sólido e estável evapora-se, tudo o que era sagrado é profanado e os hom ens são, final­ mente, obrigados a encarar com serenidade suas condições de existência e suas relações recíprocas.1

As relações sociais "tornam-se antiquadas antes de te­ rem um esqueleto que as sustente" - essa era a afirmação de Marx, já a seu tempo. No ano de 1981, Marshall Berman, em sua obra Tudo que é sólido desmancha no ar, recupera a frase de Marx. O b­ 1. MARX, K. e ENGELS, F. M anifesto do Partido Comunista, p. 79.


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serva o niilismo da sociedade moderna em sua busca por desenvolvimento, e o faz a partir da análise de obras literá­ rias. Em sua famosa leitura de Fausto, de Goethe, comenta, em palavras que aqui entendemos muito próprias: A força vital que anim a o Fausto goethiano, que o dis­ tingue dos seus antecessores e gera m uito de sua riqueza e dinam ism o, é um impulso que vou designar com o desejo de desenvolvim ento. Fausto tenta explicar esse d esejo ao diabo, porém não é fácil fazê-lo. N as suas primitivas en car­ nações, Fausto vendia sua alm a em troca de determ inados bens, claram ente definidos e universalm ente desejados: d i­ nheiro, sexo, poder sobre os outros, fam a e glória. O Faus­ to de G oeth e diz a M efistófeles que, sim, ele d eseja todas essas coisas, m as não pelo que elas representam em si m esm as. O que esse Fausto deseja para si m esm o é um processo dinâm ico que incluiria toda sorte de experiências hum anas, alegria e desgraça ju ntas, assim ilando-as todas ao seu interm inável crescim ento interior; até m esm o a d es­ truição do próprio eu seria parte integrante de seu d ese n ­ volvim ento.2

Na observação de Berman, a falta de segurança de Faus­ to é a grande metáfora da sociedade moderna, motivo pelo qual a utiliza na observação da sua leitura sobre o pós-m o­ dernismo. Assim, lembra: Ser m oderno é viver uma vida de paradoxo e contradi­ ção. É sentir-se fortalecido pelas im ensas organizações b u ­ rocráticas que detêm o poder de controlar e freqüentem en­ te destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para m udar o seu mundo, transform ando-o em nosso mundo. É ser ao m es­ m o tem po revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas das aventuras m odernas con ­

2. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade, p. 47.


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duzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda quando tudo em volta se desfaz.3

O mundo pós-moderno permite maior criação, ainda que daí surja um paradoxo. A vontade do ser humano de criar e de experimentar, que aparece em Fausto, é a mesma que gera uma sensação de insegurança4, em virtude do con­ tínuo encarar com o novo. Vantajoso ou não, o que aqui importa é que o processo criativo, no mundo pós-moderno, acaba por ser sobrevalorizado, não sem razão. A capacidade de adaptar-se ao novo, a velocidade do raciocínio, o encontrar de novas soluções e novas linguagens aparecem como critérios seletivos daque­ le que atua com o intelecto. E na seara jurídica não poderia ser diferente. A linguagem moderna mais dinâmica, os exemplos mais persuasivos, a capacidade de adaptar-se ao tempo progres­ sivamente exíguo e ao raciocínio imediatista são valores a ser consagrados na atividade do ser humano. Não poderia ser diferente na argumentação jurídica: a capacidade de criar novas soluções para novos ou antigos problemas é digna de valor e, portanto, cultivá-la significa preparar-se melhor para a capacidade suasória. A premissa da criatividade significa, nesse primeiro pla­ no, desvincular-se dos bloqueios que possam existir para as novidades. Parece repetição bastante próxima do lugar-comum, mas não é: muitos profissionais criativos têm como principal obstáculo a falta de confiança em relação à aceita­ bilidade de suas soluções. Como, por exemplo (caso real), a insegurança que gerou em certo advogado a possibilidade de ilustrar sua petição inicial com fotografias altamente persuasivas, mescladas ao texto, por representar um inovar na linguagem que - entendia - não seria bem-aceito pelo jul­ gador. Padrão da modernidade: o computador agora lhe

3. Idem, p. 12. 4. É a idéia da sociedade de risco, de Ulrich Beck, que data da segunda metade da década de 1980.


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permite editar um texto com fotografias de altíssima reso­ lução, mas seu padrão de produção escrita, jurídica, atémse a um costume formado em época ainda recente, em que o amálgama entre a imagem e o texto era quase impossível para aquele que não dispusesse de um aparato gráfico qua­ se industrial. Sobre o tema, é impossível deixarmos de citar a refle­ xão idiossincrática, porém tão ilustrativa, do narrador-personagem de Clarice Lispector. E não m e esquecer, ao com eçar o trabalho, de me pre­ parar para errar. N ão esquecer que o erro muitas vezes se ha­ via tom ado o meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia - é que se fazia enfim um a brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem, já teria entrado por ela. Mas eu sem pre tivera medo de delírio e erro. Meu erro, no entanto, devia ser o cam inho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo. Se a "verdade" fosse aquilo que posso entender - terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tam anho.5

Sem dúvida, a criatividade, na argumentação jurídica, encontra o entrave do medo de enfrentar o erro, o exagero. Mas não seria demais dizer que na pesquisa que promove­ mos já há tempos lecionando esta matéria, os argumen­ tos mais persuasivos são inusitados, criativos. A novidade tem maior poder de atração, e isto talvez compense a re­ pulsa natural que tem o operador do Direito a raciocínios ainda não consolidados, a argumentos não cristalizados em doutrina e jurisprudência. Daí que a ousadia e a criatividade, em certa medida, caminham juntas. As reflexões sobre a modernidade, que aqui são feitas a título de introdução, no mínimo fomentam a questão: não seria imprescindível, mesmo no Direito, um esforço constante do profissional atualizado em alterar sua realidade e rever formas e argumentos? Disto tratar-se-á adiante. 5. A paixão segundo G. H., p. 183.


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Criatividade e informação Estudar a criatividade importa liberdade no trato com o tema. Acompanhe os dois textos abaixo transcritos e note como ambos, escritos em tempos e contextos diversos, apro­ ximam-se em relação ao fundo temático: o primeiro, um fragmento de 1984, de Orwell, e o segundo um trecho de A história sem fim, de Michael Ende:

I Quando a boca da mulher não estava ocupada por pre­ gadores e roupa, cantava com poderosa voz de contralto: Era apenas uma ilusão sem esperança que passou com o um d ia de abril; m as aqu ele olhar, aqu ela palavra e os sonhos que atiçaram m e roubaram o coração. Essa canção era m ania em Londres havia várias sem a­ nas. Era uma das produções da subseção do Departam ento de Música, destinada aos proles. A letra dessas canções se com punha sem qualquer intervenção humana, utilizando-se um aparelho chamado "versificador". Mas a mulher a canta­ va com tão bom gosto que o horrível ritmo convertia-se em sons quase agradáveis.6

II Havia ali um grande grupo de pessoas, hom ens e m u­ lheres, novos e velhos, todos vestidos das maneiras mais es­ tranhas, mas sem falar. N o chão havia um m ontão de gran­ des dados, que tinham letras nas seis faces. Aquelas pessoas jogavam continuam ente os dados e depois observavam -nos fixamente durante muito tempo. - Que estão fazendo?, murmurou Bastian. Q ue jogo é aquele? Com o se cham a? - É o jogo do acaso, respondeu Argax. Acenou aos jo ­ gadores e gritou: Muito bem , meus filhos! Continuem! N ão desistam! 6. Orwell, G. 1984, p. 141 (tradução livre).


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Depois voltou-se outra vez para Bastian e m urmuroulhe ao ouvido: - Já não são capazes de contar histórias. Esqueceram a fala. Por isso lhes inventei esse jogo. Para passar o tempo, com o você vê. E é muito simples. Pensando bem , tem os de concordar que, no fundo, todas as histórias do mundo se com ­ põem de apenas vinte e seis letras. As letras são sem pre as m esm as, só a sua com binação varia. Com as letras form am se palavras, com as palavras frases, com as frases capítulos e com os capítulos histórias. O lhe o que aquilo deu: Bastian leu: HGIKLOPFMWEYVXQ YXCVBNMASDFGHJKLOA

[...] - Sim, gargalhou Argax, é quase sempre assim. M as quando se joga este jogo sem parar durante muito tem po, durante anos, algumas vezes form am -se palavras por acaso. Podem não ser muito significativas, m as são palavras. Por exemplo, "espinafre am arelo" ou "salsicha-escova" ou "p in ta-p escoços". Porém , se se continua a jogar este jogo duran­ te centenas, milhares ou centenas de milhares de anos, é pro­ vável que algum a vez, por acaso, se obtenha um poema. E se se jogar eternam ente, terão de surgir todas as poesias e to ­ das as histórias do mundo, e tam bém todas as histórias das histórias, e até m esm o esta história em que estam os os dois conversando. É lógico, não acha? - É horrível, disse Bastian.7

Ambos os textos trazem como tema central a aguda crítica à falta de criatividade. O romance de Orwell, clássi­ co na descrição do totalitarismo e da homogeneização de pensamentos, relata como o regime do Grande Irmão cui­ dou de deixar a cargo da sorte a criação das letras das can­ ções, que raras vezes faziam sentido, aproveitando-se da ausência de questionamentos na mente dos comandados. Em A história sem fim , Bastian depara-se com aqueles que "já não são capazes de contar histórias"; logo, não são cria­

7. A história sem fim , pp. 338-9.


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tivos. Sua capacidade criadora é aqui também deixada à sorte, nos dados com letras em suas faces. Na história de Ende, em perfeita harmonia com o título da obra, a lógica exata do número infinito é quem recebe o encargo da ativi­ dade criadora coerente. A crítica que está por trás dos fragmentos é evidente. A capacidade criadora, diferencial do intelecto humano, sur­ ge da combinação de elementos, como matéria bruta para uma escultura, tijolos para um muro. Não há nenhuma idéia que possa brotar do nada. Até o mundo, na descrição do Gênese, teve início no Verbo. Mas o excesso de material informativo, como os dados lançados exaustivamente no "jogo do acaso", não criam por si só as grandes idéias. Pode afigurar-se como um paradoxo, mas também pode ser extremamente coerente o fato de o ex­ cesso de informação funcionar mais como um fator de confu­ são que como uma catálise à criação, caso a capacidade cria­ dora não progrida. Nesse sentido, a crítica que aparece nos dois fragmentos ilustra bem o fenômeno do mundo moder­ no: muitos elementos à disposição do ser humano (como os dados lançados ou as informações do versificador), que con­ figuram evolução tecnológica constante, mas não necessa­ riamente ativam o intelecto e a criação. Ao contrário. Basta exemplificar que Aristóteles sequer deveria saber que o san­ gue corre dentro de veias ou que a Terra era redonda, assim como, em outra seara, Sófocles ou Esquilo, e os três foram capazes de criações que até hoje inovam e emocionam. A informação é fator de criatividade, mas não isolada­ mente. A mente humana cabe o uso dos elementos informa­ tivos para seu aproveitamento no discurso. As formas de ad­ quirir a informação, bem como os meios mentais de adaptar, na linguagem, o aprendizado contínuo, são sem dúvida infi­ nitos. A impressão de que, na construção de um texto per­ suasivo, os argumentos acabaram não é mais que ilusória8.

8. O s artistas, em metalinguagem, não raro relatam crises de criativida­ de de artistas: Camões pede que não lhe ajudem o engenho e a arte na reda­ ção dos Lusíadas; o poeta do "So n eto de N atal", de Machado de Assis (vide


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Acompanhe este fragmento de Manuel Bandeira, redi­ gido na década de 19309: Poem a tirado de um a notícia de jornal João G ostoso era carregador de feira-livre e morava no [morro da Babilônia num barracão sem número Um a noite ele chegou no bar Vinte de Novembro Bebeu Cantou Dançou Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

O fragmento serve para dele retirarmos dois princípios distintos, ainda que bastante próximos. O primeiro impor­ ta na renovação da linguagem. Autor modernista, Bandeira segue a tendência da negação à métrica clássica, à criação que aparecia travada nos anseios da beleza da forma, da aparência. O texto não tem rimas, muito menos a métrica de um soneto. Mesmo assim, conta com sonoridade e rit­ mo. Questões literárias de lado, o fato é que o mundo m o­ derno (isso em texto de décadas atrás) implica alterações na linguagem, no modo de comunicar, qualquer que seja ele. Essas alterações seguem a tendência, cada vez mais sa­ lientada, de permitir maior fluxo criativo. Mas essa questão é secundária, ainda que relevante. O que o texto melhor nos mostra é que o autor inspirou-se, para seu poema, em uma notícia do cotidiano. Claro está que aquele poema surgiu de um relato, muito mais denso e certamente menos artístico, publicado no jornal. A ativida­ de do poeta consistiu em tornar o relato sucinto, recheando as palavras de maior significado, colocando-as em uma mé­ trica ritmada, ainda que moderna. E assim comunicou.

capítulo anterior), também se coloca em crise diante da folha branca; o prota­ gonista de M ala cducacíón, de Almodóvar, é um roteirista de cinema que não consegue inspiração para iniciar um novo roteiro, entre tantos outros exem ­ plos que dão conta, pela arte, de que a capacidade de inovação é um fator per­ seguido por aqueles que devem criar. 9. In: CASTELLO, J. Aderaldo. Presença da literatura brasileira, p. 50.


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Bons argumentos são retirados das informações do diaa-dia, tal qual o poema surgiu do recorte de jornal. No con­ texto jurídico, a citação da jurisprudência e da doutrina especializada, como já abordamos nesta obra, representa ar­ gumento extremamente persuasivo, mas a análise dos bons discursos, também jurídicos, mostra que eles vêm permea­ dos de conteúdos significativamente mais amplos: exem­ plos históricos, ilustrações com atualidades, comparações inusitadas. Todos esses argumentos, que em grande medida ten­ dem à figurativização, foram aqui analisados, ainda que em parte. Mas importa, neste capítulo, ressaltar que é n e­ cessário, para a argumentação criativa, a efetiva utilização dessas informações como elementos incorporados ao con­ teúdo do texto. A valorização de elementos que, isolados, são simples e sem valor persuasivo é uma das grandes características do percurso argumentativo intencional. O texto, como combi­ nação de palavras e idéias, permite que elementos discursi­ vos adquiram, progressivamente, significado e força quan­ do enumerados para tanto. O fato de a argumentação ter, como características, a língua natural e o percurso que depende do orador, impli­ ca dupla conseqüência: se, de um lado, impõe algumas di­ ficuldades no que tange à escolha de palavras e do norte dos argumentos, de outro permite que se adapte uma infi­ nidade de idéias que, a rigor, não seriam cabíveis a um dis­ curso meramente demonstrativo. Trabalhando com discur­ sos políticos, muitas vezes somos forçados a encaixar em trilhas argumentativas alguns elementos, figurativos ou te­ máticos, que devem sobressair no discurso (em especial no gênero epidíctico: as belezas naturais de uma região, as con­ quistas de determinado cidadão local, o resultado das últi­ mas pesquisas). Não é trabalho impossível: o discurso flexibiliza-se para amoldar-se às suas necessidades. Assim alcança-se a almejada valorização dos elementos lingüísti­ cos enunciados.


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Por isso ao argumentante nunca é demais alertar: ha­ vendo o necessário zelo pela coerência, em seus diversos níveis, os argumentos novos, em conteúdo e forma, raríssimas vezes são pouco bem-vindos. A impressão de que a inserção de uma notícia da atualidade ou de um elemento figurativo é totalmente descabida é, na maioria das vezes, realmente apenas uma impressão, mera insegurança. Inserta com intencionalidade, a informação inusitada, típica da atividade criativa, confere ao discurso o caráter de novi­ dade que o retira do lugar-comum e o transforma em agra­ dável e persuasivo, conforme veremos a seguir.

Novidade e persuasão A capacidade da mente humana é inesgotável. Mas o ser humano muitas vezes sente bloqueio em sua criatividade. Percebe o momento em que deve ter uma idéia original, porém ela não vem. No contexto jurídico, a como­ didade, a falta de tempo e o esgotamento da criatividade constituem grave incentivo para a repetição de novas teses. É certo, então, que a criação mental vem, antes de outro momento, de um esforço. Um esforço, poderíamos dizer, como o de um músculo, e isso aparece em quase todos os manuais, que agora se tornaram conhecidos, de criatividade. Contra o pensamento criativo, a maior mazela é então a tão enunciada lei do menor esforço. O não-criativo é cô­ modo, pois não impõe o trabalho de rever, de pesquisar, de reconstruir. Desse modo, o livro de doutrina que, em lugar de pesquisar o posicionamento divergente, reproduz o tex­ to da jurisprudência dominante, tem menor força para criar o Direito, fazê-lo evoluir, pois a reflexão ali aparece restrita, ao menos no sentido de originalidade. Do mesmo modo, a doutrina que cita sempre o mesmo livro, este que já era có­ pia de jurisprudência, não apenas esgota a criação original como remonta a um círculo de alta perniciosidade, a crista­ lizar situações estanques.


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O caminho inverso pode ser altamente aproveitado para a argumentação. Aquilo que exige esforço é em regra criativo, pois motiva o raciocínio. Veja como esse fenômeno ocorre no fragmento abaixo, recortado de Guimarães Rosa10. Aquele m undo de fazenda, sumindo nos sussurros, os trastes grandes, o conforto das arcas de roupa, a cal nas p a­ redes idosas, o bolor. Aí o que pasmava era a paz. Pensei por que seria tudo alheio demais: um sujo velho respeitável, e a picumã nos altos. Pensei bobagens. Até que escutei assoviação e ritos, tropear de cavalaria. "A h, os cavalos na m adru­ gada, os cavalos!..." - de repente m e lembrei, antiqüíssimo, aquilo eu carecia de rever. Afoito, corri, comparei num a ja ­ nela - era o dia clareando, as barras quebradas. O pessoal chegava com os cavalos. O s cavalos enchiam o curralão, prazentes. Respirar é que era bom tomar todos os cheiros. R es­ pirar a alma daqueles cam pos e lugares. E deram um tiro. Deram um tiro, de rifle, mais longe. O que e eu soube. Sem pre sei quando um tiro é tiro - isto é - quando outros vão ser. Deram muitos tiros. Apertei m inha correia na cintu­ ra. Apertei m inha correia na cintura, o seguinte emendado: que nem sei com o foi. A ntes de saber o que foi, me fiz nas m inhas armas. O que eu tinha é fome. O que eu tinha era fom e, e já estava em balado, aprontado. Às tantas o senhor assistisse àquilo: uma confusão sem confusão. Saí da janela, um hom em esbarrou em mim, em carreira, outros bramaram. Outros? Só Zé Bebelo - as or­ dens, de sobrevoz. Aonde, o quê? Todos eram mais ligeiros do que eu? M as ouvi: - "... Mataram o Sim ião..." Sim ião? Perguntei: - "E o D oristino". -"Ã ã ? H om em , não sei..." Alguém me respondendo [...] Atiravam nas construções da casa. Diadorim sacripante se riu, encolheu um om bro só. Para ele olhei, o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. Eu não era eu. Respirei os pesos.

O leitor vê, no texto acima, a descrição de uma matan­ ça de cavalos. Pode sentir, no ritmo da descrição, de que se recortou apenas fragmento, todo o desespero e o cli­ 10. Grande sertão: veredas, pp. 283-4.


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ma de ação e velocidade que se instaura, alterando o sta­ tus quo ante, de calma e tranqüilidade daquele "mundo de fazenda". A comparação não é perfeita, mas cabe neste estudo amplo: Guimarães Rosa, nessa obra, atreveu-se a criar. Sua criatividade atingiu níveis tão elevados que os neologismos não foram raros. Porém seu trabalho seguiu critérios: per­ ceba o leitor como, mesmo diante de palavras novas e m é­ trica aparentemente confusa, consegue-se depreender qua­ se sempre o sentido da descrição dos personagens. Enquanto a enunciaçâo inusitada deixa mais confusa a leitura, prende o leitor, que procura despertar sua sensibilidade e, princi­ palmente, seu intelecto, na interpretação daquele trecho. Além, é claro, do evidente efeito de aproximação do pensa­ mento rústico do personagem, que é outra intenção dentro da narrativa. Quando o autor da obra literária ousa escrever de modo diverso daquele que é comumente empregado, com enunciação ousada, sabe que desperta a atenção do leitor. Ele é es­ timulado quando necessita produzir sentido ao inusitado. Pois é possível, no contexto do discurso forense, utili­ zar o mesmo princípio. Basta adaptá-lo, com bom senso, às peculiaridades do meio jurídico, em que a liberdade de for­ ma não alcança fronteiras tão amplas. Todo argumento novo, criativo, apenas por sua novidade já é fator suficiente de persuasão, e o bom argumentante sabe disso. O discurso repetitivo, ainda que formalmente correto, não desperta interesse no interlocutor. Nas causas mais complexas, nos discursos que têm a forte tendência de le­ var o ouvinte ao cansaço e ao desinteresse, os modos sub­ jetivos de atrair a atenção devem ser criados pelo discur­ sante. Para tanto, deve-se abandonar os tipos de argumen­ tos corriqueiros, que podem passar a impressão ao interlo­ cutor de que as idéias lhe vêm repetidas. E idéias repetidas não alteram o processo decisório, e menos ainda estimu­ lam a atenção.


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Renovando o discurso Capacidade argumentativa todo ser humano tem. M o­ mento a momento é chamado a debater, a transformar a opi­ nião de alguém, a defender seu ponto de vista, sua atitude, seus planos. Rara quem deseja aprimorar-se na capacidade argumen­ tativa, todo debate, desde os mais corriqueiros, é um treino perfeito. É impossível preparar-se apenas para os grandes discursos sem fazer de toda construção textual um exercício de aprimoramento. Mas o treino pode ser ainda mais eficaz quando ela­ borado e direcionado para a criatividade específica. Para os professores de criatividade em geral, várias são as téc­ nicas, individuais ou coletivas, que fazem despertar a ca­ pacidade criadora. Muitas delas aparecem em livros espe­ cializados, que expõem métodos diversificados de estímulo à criação e combinação de idéias, com inspiração na pro­ paganda ou nos princípios psicológicos ou neurolingüísticos em geral. Aqui nos atemos a um discurso específico. Para o discursante forense, um método antigo tem ex­ tremo valor: a paráfrase. O exercício da paráfrase é a tradu­ ção, na mesma língua, de um texto argumentativo. Aqueles que estudam argumentação em níveis mais aprofundados, o exercício é corriqueiro. O método é simples: ao aluno propõe-se determinado texto a ser parafraseado. O aluno deve lê-lo e transcrevê-lo com suas próprias palavras. Mas essa transcrição tem suas peculiaridades: ela deve preservar ao máximo as idéias do texto original, ao mesmo tempo que deve evitar repetir suas palavras. No primeiro momento, a paráfrase serve como modo de aquisição de vocabulário ativo e estímulo à busca de recursos mais variados para a enunciação. Em um segun­ do momento, estimula a própria criação de idéias. Veja, no exemplo a seguir, como isso ocorre:


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Texto-proposta O s m édicos tam bém estão envolvidos em muitos crimes desse m esm o tipo. Em bora seja extrem am ente difícil com ­ provar fraudes em casos individuais, existem evidências co n ­ clusivas de que eles recebem bastante dinheiro ao realizar procedim entos desnecessários. Muito mais claros são os ca ­ sos em que esses profissionais apresentam solicitações de seguro m édico fraudulentas. Em alguns acontecim entos, os m édicos cobram por procedim entos que nunca foram reali­ zados; em outros, apresentam várias contas pelos m esm os serviços. O utro crime comum entre anestesistas, psiquiatras e outros profissionais da área de saúde que cobram por hora consiste em apresentar as contas com núm ero de horas au­ mentado.

Texto parafraseado O s profissionais da medicina tam bém fazem parte de muitos delitos da m esm a natureza. Ainda que não seja sim ­ ples dem onstrar fraudes em casos particulares, há provas ca ­ bais de que eles ganham altas quantias por fazerem trata­ mentos supérfluos. M ais evidentes são os fatos em que esses médicos exibem pedidos de seguro m édico falsos. H á oco r­ rências de m édicos que exigem pagam ento por serviços que nunca foram prestados; em outros casos, exibem várias fatu­ ras pelos m esm os procedim entos. O utro delito com um e n ­ tre anestesistas, psiquiatras e outros facultativos que recebem por hora consiste em mostrar contas com núm ero de horas exacerbado.

No exercício da paráfrase, o aluno treina seu processo criativo porque o texto-proposta representa-lhe forte ten­ dência à repetição. O texto-proposta, que na verdade é ape­ nas uma entre as quase infinitas impossibilidades de enun­ ciar uma idéia, exerce grande força para que a enunciaçâo do autor da paráfrase gravite em tomo dele. Da mesma forma, quando estamos habituados a repetir argumentos não nos damos conta de que eles são apenas uma entre várias formas de defender uma idéia, de enunciar um pensamento. A paráfrase então estimula a variação das idéias e faz com que aquele que a pratica reconheça seus próprios m é­


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todos criativos, sua própria forma de encontrar novas alter­ nativas para uma enunciação que, por si só, já vinha resol­ vida no texto-proposta. Do modo como apresentado aqui, ela estimula principalmente o vocabulário, agregando maior vocabulário ativo àquele que a pratica. Assim, o aluno des­ cobre a importância do uso do dicionário ou da leitura em geral para a aquisição de novas formas enunciativas. Mas a paráfrase pode servir não apenas no plano da for­ ma, como também no conteúdo. Em sala de aula, em clas­ ses de Direito, fornecemos a alunos textos argumentativos jurídicos que devem seguir uma paráfrase mais criativa. Pre­ servando-se a estrutura e o posicionamento do texto origi­ nal, deve-se criar outro, mas desta vez ainda mais inédito: os argumentos também devem ser substituídos, sem se revela­ rem influenciados pela idéia primeira. Ao construir essa pa­ ráfrase de conteúdo, o exercitante descobre seus próprios métodos de criação de novas idéias, na obrigatoriedade de fugir a idéias que já lhe vêm cristalizadas. Com o tempo, o objetivo é que aquele que se exercita em argumentação perceba que deve parafrasear seu pró­ prio discurso. Em outras palavras, renová-lo, tanto em con­ teúdo como em forma. A consciência do esforço necessá­ rio para renovar o discurso com certeza estimula alternati­ vas para a criatividade, quando cada argumentante se dá conta do processo que melhor lhe permite criar os meios e instrumentos necessários para a renovação. Mais um exercício que se impõe, com resultados pro­ veitosos.

Conclusão A possibilidade de construções de discurso é infinita, inesgotável. Por isso aquele que argumenta não tem ne­ nhuma escusa para deixar de fazer, a cada discurso, uma construção nova e criativa, por mais rígidos que sejam os padrões sociais do auditório ou do leitor a quem apresenta


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suas idéias. Sempre cabe um novo argumento, um pensa­ mento mais exato em substituição a um antigo que outrora parecia intocável. Argumentar não significa repetir idéias; transformar, porém, pensamentos em valorosos elementos lingüísticos é arte do discursante. Cada qual deve, então, descobrir suas próprias manei­ ras de, utilizando as técnicas apresentadas em toda esta obra, criar novas formas pessoais de persuasão, adaptando a seus objetivos e suas características.


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