2 minute read
PEREGRINAR NO SONHO
from Lusitano de Zurique
Biografia
Maria Luísa Galiano Tavares Moreira (Portalegre, 1960) é autora de duas novelas Nu Feminino (2000) e Por Coisa Nenhuma (2002), e de um livro de crónicas, Prateleiras de Insignificâncias (Filigrana Editora, 2018). Publica na Imprensa Regional desde 1990. É professora de literatura no ensino secundário (Escola Secundária de S. Lourenço em Portalegre) e adjunta no Centro de Formação de Professores (CEFOPNA). Passará a colaborar com a Revista Lusitano de Zurique, mas as suas crónicas podem não ser todos os meses, pois a Formação de Professores e as suas atividades profissionais como professora de várias turmas, deixam-lhe pouco tempo livre.
Advertisement
Define-se como Mulher. Mãe. Avó. Professora. Lagóia. Marcada pela Serra de S. Mamede, pela imensidão do Alentejo, pela essência da terra que pisa. Viajada por amor. Filhos e netos são emigrantes em pontos diferentes da Europa.
Esta revista dá as boas vindas a Maria Luísa Moreira.
Separou a roupa, a interior, as camisolas de lã, o mais urgente, o indispensável, o dispensável também. Procurava ser meticulosa, na roupa como não era na vida, segura da necessidade de procurar uma lógica, uma ordem talvez, no caos do quotidiano. Todos somos viajantes, pensava. Peregrinos dentro e fora de nós. Caminhantes num espaço, num tempo, onde a peça insignificante que somos tem de encaixar. Com ela sempre fora assim. Ora ficava larga, ora não cabia no lugar necessário. Calcou as camisolas grossas. Haveriam de a aquecer, lá longe, no país onde vivia e, apesar de tudo, era feliz.
O velho hábito de roer as unhas voltou, e irritou-se ao ver a nica acabada de fazer no verniz vermelho. Gelinho, o vício do diminutivo do seu Portugal, o que transformava um prato de feijão com couve numa sopinha, uma garrafa de tinto num vinhozinho de qualidade. Lá, no seu novo país (deítico talvez abusivo, sem dúvida real) não havia esta ternurenta pequenez. Olhou a mala. Há quantos anos fazia e desfazia malas?
Deixou entrar a memória, sentiu a proximidade do seu poeta de eleição, e lembrou as primeiras malas. Fora a mãe quem comprara a primeira Samsonite, jovem, vermelha brilhante a gritar juventude. Perdera-a uma vez, no aeroporto de Roma, vivera dois dias com as mesmas cuecas, sem trocar de soutien, mas com a enorme aflição de poder não recuperar a sua Samsonite. Felizmente aparecera. O que é vivo sempre aparece, e nem sabia já onde, ou quando, deixara de a usar. Depois vieram outras, com rodas, moles, duras, brilhantes, opacas, grandes, pequenas, lugares onde cabia o pouco que não carregava na alma. Sim, sem dúvida era na alma, sem marca, que levava o maior carrego. De início a curiosidade, o sonho, a vontade de olhar para além do seu espaço, de ser mais do que a sua própria paisagem, sendo sempre essa mesma paisagem. Depois, o desejo de regressar a um espaço que fizera seu.
Não pertencemos ao lugar onde nascemos, mas sim ao espaço onde nos encontramos, dizia muitas vezes. Ao lugar onde amamos. Ao lugar onde, pensava, nos encontramos na peregrinação interior. E era verdade.
O seu espaço eram as montanhas, os dias escuros, o frio intenso, o gorro, as luvas e a t-shirt em cada espaço interior. O seu espaço era o apartamento de vidro duplo sem cortinas, o sol tímido, o andar descalça em casa, a caneca de chá forte sempre ao alcance da mão. Era o olhar sem limite, o horizonte sem linha na aprendizagem segura de que o mundo não tem cantos e todos os passos a levavam a ela mesma. E a mala esperando.
Se dobrasse os sonhos, se os fizesse estreitinhos, não caberiam no espaço maior, mas recusava fazê-lo. Utopia era o seu guia. A certeza de que sonhar é querer fazer e, por isso, só fazendo o sonho acontece.
Fechou a mala maior. Olhou a cama e sorriu. Ainda faltava muita coisa! As fotografias das férias, as lembranças, a roupa que não coubera na mala maior. Meteu mãos à obra, cumpriu o obrigatório, alinhou tudo junto à porta e pensou, com segura certeza, que era bom voltar a casa. À sua casa.
Ao seu eu construído lá longe, num chão não herdado, com memórias singulares. Exclusivas. Voltou a olhar as mãos, ah a mania de roer as unhas! Estivesse onde estivesse, era sempre ela e as suas pequenas manias.