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QUANDO O ZÉ MARIA PENSAVA SER ALÉRGICO AO LEITE
from Lusitano de Zurique
Conheciam-se há vários anos, dos seus tempos de Espanha, foi ainda seu aluno de português e deu-lhe a residência dos pais, na Rua do Pirão, para ter número de contribuinte e residência portuguesa.
- Diz ao teu amigo médico que recolha o correio, estou cheio de revistas e publicidade de medicamentos...
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- Para a semana vamos aí paizinho.
O António era um aluno aplicado, nunca faltou a qualquer aula do Zé Maria, e olhem que eram dadas à noite, na sua casa, já com um dia de trabalho sobre os ombros.
Vencido o idioma, veio para Portugal. A medicina não necessitava de tanto obstáculo, tanta Ordem dos Médicos...
O pior é que como espanhol, António tinha o sotaque “Extremenho” e continuava a dizer “coraçao”. Professor um dia, professor sempre.
- António, em vez de “çao” experimenta a dizer “çaum”.
Gostou e resultou, coraçaum, camiaum, cançaum...
- Estás a ver pá que é mais fácil?
Com aquele feitiozinho apenas respondeu:
POR A GONEZ MARQUES
- Logo já me não lembro de nada, além disso os meus doentes percebem tudo o que digo.
O seu sotaque lá ia melhorando, mas deixava sempre um resíduo como as garrafas de Vinho do Porto, mesmo que fossem mais velhas e, quanto mais velhas, mais resíduos.
- Qual sotaque e resíduos? “Assento”. Tenho “assento de Castela e já está!”
Zé Maria não contestou, conhecia-o bem, e não queria que se levantasse, aquela bata branca e comprida que a ele lhe ficaria como um pijama de hospital e não lhe era simpática. O homem era mesmo grande e ainda por cima, fazia ginástica, corria nas maratonas.
- Deixa-te estar sentado que assim temos o mesmo tamanho.
Quando o Zé Maria veio morar com a família para a Vila e sabendo que o médico do Centro de Saúde era o Dr. António, atrelou-lhe os parentes, mulher, filhas... pelo que ficou com toda a família excluído dos doentes, muitos, com este direito mas que não passam do papel. Assumiu esse trabalho com profissionalismo e mesmo quando andou por Timor esteve sempre descansado. Em termos de saúde, a família estava a salvo.
Foi a mulher do Zé Maria, que conhecedora daquele narizinho empinado, felizmente para o lado do “coraçaum”, percebeu que gostava pouco de doentes sem marcação:
- Se não têm consulta marcada que faz aqui este par de jarras?
O Zé Maria respondeu e sentiu uma pisadela da mulher:
- Não sou médico, não faço ideia do que são urgências ou não, mas isso não me impede de ter uma conversinha sobre o que não sei, com o meu médico, que por acaso és tu.
Salvou-o a Amelia, contando tudo o que se tinha passado nessa manhã.
- Vamos lá, conta. Que se passou?
Com olhos de inquisidor, daqueles que estão sempre tentando descobrir a ligação entre o que ele manda e a fogueira pronta a ser acesa, o António fazia correr o computador, como se não estivesse escutando nada. Foi então que se levantou, grande, intimidatório, o dedo apontado para mim. Eureka, descobri!
-A cura?
-Qual cura? Que não fazes o que te mando, é isso. Não te mandei há mais de um ano fazer uma colonoscopia? Onde estão os resultados?
-Ó António, meter um tubo pelo rabo acima?
- Não fizeste? Vais fazer!
Agora sim, veio sobre mim:
- Conheces o meu pai, cego, que criou a família a vender lotarias da ONZE.
Aproximou-se mais, nunca esteve tão irado e próximo. Via-lhe a saliva no canto da boca.
- Nunca vi o meu pai queixar-se e lá está sem um lamento, com uma coragem inabalável. Acalmou um pouco e sentou-se. Não ter feito a colonoscopia, era um falhanço do Zé Maria e já ele se não lembrava disso.
- Tens aqui uma carta urgente. Vou telefonar para o Hospital de Elvas. Com sorte tens lá uma colega do IPO que te pode orientar.
- Vens comigo?- perguntou Zé Luís à mulher. Meteu-se o Dr. António.
- Deixa a mulher em paz, não sabes ir sozinho?
_ Tá bem! Vou sozinho. – e para dentro- Chato do Caraças.
Já cá fora a Amelia disse-me logo:
- Está tranquilo que eu vou contigo.
O médico ignorou e disse-lhe:
- Nada de águas nem de comidas. Levas este medicamento e tomas para limpar os intestinos. Vais levar estes dias bastante diarreia para fazer – e riu-se, como se me estivesse a castigar.
Lá agarrei nos líquidos polidores de intestinos. Que fome de leão nessa sexta-feira. Até o periquito comia se me deixassem e isto por estar borrado, mas desta vez de medo. Meti-me no carro com a Amelia e fomos a Elvas.
- Achas, que um cafezinho fazia mal?
-Deixa-te de ideias é em jejum! Pronto. Não esperaram muito. Uma senhora apareceu e chamou o seu nome – Zé Maria- ele cá vai- e foi atrás dela. A mulher daí já não pôde passar e nova aventura iria começar.
Era um quarto com quatro camas e duas cortinas a fingirem biombos e foi-me dito:
-Esta é a sua cama. Aqui está o camisolão com a abertura para trás. Aqui uma casa de banho para meter a sua roupa.
- Dispa-se todo, cuecas, meias, tudo, e vista a camisola, abertura para trás que da parte da frente não lhe queremos ver nada.
- Senhora Enfermeira, os chinelos cabem-me na unha do pé. É um S. não tem um XL?
- Aqui são todos iguais., vá, agora a meter-se na caminha. Já o vimos buscar.
-Vou de cadeira de rodas?
- Não, vai deitadinho na cama.
- Quando acordar já aqui está, depois é vestir-se e ir para casa.
O silêncio de quem ocupava as outras camas esperando a sua vez, ouviam tudo o que lhes interessava, mas nem abriam o bico, não fosse o diabo tecê-las.
4. A Colonoscopia
Bateram à porta da casa de banho.
- Já está?
- Quase – respondeu Zé Maria.
A enfermeira informou:
- Alianças, pulseiras, fios e próteses, guardem num dos vossos bolsos.
Zé Maria pensou:
- A das próteses, deve ser para o velhote que tem um pé preso à perna, que se vê que é postiço, mas como metia o pé no bolso? Bem, se calhar mais um avanço da medicina e acaba por ser insuflável...
Com tudo pronto, Zé Maria abriu a porta devagarinho.
A enfermeira organizou:
- Pode deitar-se, descansar um pouco, dentro de muito pouco tempo já acabou. Agora com a anestesia geral, isto são favas contadas.
Notou que a enfermeira olhava para ele:
- Falta-lhe um dente?
- Tatuagens de Timor-Leste faltam-me mais, uso dentadura.
- Não lhe mandei guardar as próteses num bolso?
- Desculpe, pensava que eram próteses maiores, isto são os meus dentes postiços.
- Vá, tome, uma caixinha. Guarde-os aí dentro e tente descansar.
Passou o tempo.
O meu vizinho da cama do lado, foi transportado por dois matulões que transformaram a cama num patim gigante.
- Boa sorte – disse-lhe eu.
Não me respondeu, afinal ia dar um passeio de cama sem ser ele a conduzir.
Admirado ficou Zé Maria com a rapidez. Viu-o ir e passado muito pouco tempo viu-o chegar, já estava despachado do exame, mas dormindo como um anjinho.
Acordou.
Falava pelos cotovelos, talvez por ter concluído o momento que tanto temia.
- Não dei por nada.
Chegou uma enfermeira que lhe disse:
- Sr. Francisco, já está despachado. Custou muito?
- Nada. Uma boa sesta.
- Eu não lhe tinha dito? Pronto, agora ficará deitado entre vinte a trinta minutos. Depois, vestir e casa!
Zé Maria não viu nada que lhe tivesse metido medo. Rápido. Não deu por nada e já estava a vestir-se na casa de banho. Com ele, também seria assim. Estava muito mais tranquilo.
O Sr. Francisco apareceu vestido, penteado, vertical e feliz.
- Posso ir-me embora Srª Enfermeira? Posso já sacudir-me?
Este “Sacudir” revelava que o Sr. Francisco era de Campo Maior.
- Está despachado. Desejo-lhe um bom almoço. Depois receberá uma carta em casa com o resultado, mas tranquilo, está tudo bem.
A enfermeira deixou-o tão calmo, tão satisfeito, que o primeiro sítio onde parou foi na Taberna do Facha, onde bebeu devagar uma cerveja tão fresca que acabou por limpar a ansiedade de uma semana, que tinha chegado ao fim.
Zé Maria começou por olhar o teto e pensou, ele que há tanto tempo não rezava – Será que ainda sei rezar o terço?- tentou, mas se não fosse a correr perdia-se tanto no Pai Nosso como nas Avé-Marias. Aquilo tinha que ser estilo maratona, estilo papagaio, bastava uma pequena paragem, um pensamento atravessado e estava uma comedela de palavras que a oração ficava partida em fragmentos. A Salve Rainha, essa foi uma vergonha, as Glórias, escaparam. O Terço inteiro, numa escala de 1 a 20 tinha sido mais de 10. Não estava mal. Depois, e segundo o padre Heitor que se esforçou para eu aprender latim, era ele o professor da disciplina, dizia muita vez:
- Não se importem de se perderem no meio do terço. Pensem que estão a dar um ramo de rosas à Virgem e que ela não se importa se algumas rosas estão meio desfolhadas, rezem, rezem sempre.
Para o que havia de dar a Zé Maria, ele que se não lembra de entrar numa igreja embora tenha sido escuteiro e sacristão, ele que passou a ser um duvidoso e a concordar com a avó, que toda a gente ia para o céu, pois no último minuto não há ninguém que se não arrependa dos seus erros, ele cada vez mais afastado da fé, agora com a miúfa da sala de operações, até rezou e teve positiva na oração. Mais de 10 é obra. Depois do terço, pensou dormitar, tinha sido um bom esforço, mas pensando bem, se se deixava dormir e depois não lhe davam a anestesia suficiente?
Tivesse ele uns fósforos espanhóis de cera e já tinha metido um em cada pálpebra para que o vissem bem acordado e que um tubo de ferro no rabo, não era brincadeira nenhuma, para ser feito a frio como antigamente (meia dúzia de anos) que o mundo tem andado a uma velocidade louca, para o bem e para o mal.
Não esperou muito tempo. Apareceram dois maqueiros que disseram o seu nome em voz alta: Sr. José Luís!
- Sou eu.
- Pois está na hora do passeio.
Levaram-lhe a cama e gostou da experiência. Aquela correria pelos corredores, vendo a mudança das texturas e cores do teto era mais uma aprendizagem agradável.
Lembra-se de ter entrado num elevador, julga ele, de onde antes de lhe entrarem a cama, fizeram sair uma série de sacos pretos, transportados por umas moçoilas com a palavra “Limpeza” serigrafada nas costas. Quando o elevador parou, continuou o passeio. Mete- ram-lhe a cama junta de outra de metal. Rodaram-no e passaram-no para a de estrutura metálica. Sentiu frio. Não só o metal mas mesmo a temperatura da séptica sala de operações. Com o quentinho da sua cama e agora aquela, que parecia tirada do congelador da cozinha da sua sogra.
Ainda se lembra de ver uma argola grande, cheia de luzinhas fortes a apontarem para o local em que estava deitado. Depois, não se lembra de mais nada até estar novamente no seu quarto, desperto e com um alívio e sensação do fim das chatices todas, ficou à espera de que a enfermeira o mandasse vestir.
Raro.
Outras camas chegavam, esperavam, vestiam-se e despediam-se: -Boas Melhoras – e ele? Onde estava o raio da enfermeira? Era o único ainda ali deitado. Se calhar foi almoçar, que chatice e a Amelia esperando lá fora, sem saber de nada.
Ó finalmente, Virgem Santíssima, graças a Deus. Já estava a perder a cabeça.
-Tudo bem?
- Tudo, posso já vestir-me?
- Pode e deve, mas não vá para fora do hospital. Há uma sala à direita, com cadeiras confortáveis e azuis. Espere aí que a médica já vem falar consigo.
- E a minha mulher? Que está lá fora?
- Isto vai demorar muito pouco. Se quiser posso ir à sala de espera avisá-la de que o exame está feito e que apenas espera a médica.
- Agradeço Senhora Enfermeira, assim fica descansada.
A enfermeira saiu e Zé Maria começou por apalpar as cadeiras – são boas – pensou – esta na minha sala frente à lareira dava-me um jeitão.
Chegou a médica, nova, bonita. De olhos fechados na operação não vemos nada, deveria ainda ser o efeito da anestesia. Sentou-se ao meu lado e, ó diabo, colocou a mão sobre a minha. Já me tinham dito que mesmo com os meus 65 anos continuava a ser um homem com charme e aquela situação levou-me ainda a acreditar nisso. Depois, começou a fazer-me umas festinhas no braço. Mas afinal, que me queria aquela mulher?
Ela respirou fundo e começou:
- Já sei que é uma pessoa com boa disposição e com formação suficiente para o não estar a enganar. Você tem um cancro no intestino. Eu trabalho também no IPO e segunda-feira, telefono-lhe.