LOCUS SOLUS raymond roussel
Cultura e Barbรกrie
pseudocoleção de literatura
LOCUS SOLUS raymond roussel
Tradução e apresentação Fernando Scheibe Prefácio Raúl Antelo Pósfacio Pierre Bazantay
Cultura e Barbárie Desterro, 2013
Locus Solus Raymond Roussel Primeira publicação: Libraire Alphonse Lemerre, 1914 Copyright da tradução © Cultura e Barbárie e Fernando Scheibe, 2013 A tradução deste livro contou com o apoio do Centre National du Livre revisão técnica
Felipe Augusto Vicari de Carli e Fedra Rodríguez Hinojosa
| Estudos sobre a impossibilidade do movimento perpétuo [Codex Forster II, foglio 90v]: Leonardo Da Vinci, 1495-1497 e Locus Solus [Manuscrit]: Raymond Roussel, 1913 capa
capa e projeto gráfico
Marina Moros
imagens frente|La
Hie: Jean Ferry, 1965
apresentação e prefácio
| Machine for Packing Match Books and the Like. Application Apr. 9, 1914
marcador esquerdo|Totalisateur capítulo primeiro|Machine
[detalhe]: Francis Picabia, 1922
for Destroying Insects: L.L. Nail. Patented Dec. 29, 1914
segundo, terceiro e quarto|Carousel: quinto|Adding
A.Schadel, née Hoppener. Patented Dec. 8, 1914
and Listing Machine: F.C. Rinsche. Patented Oct. 27, 1914
sexto|Electric
Agitator: B.F. Bennet. Patented June 16, 1914
sétimo|Paper
Box Opener: F. Budlong. Patented Dec 15, 1914
R865l Roussel, Raymond, 1877-1933 Locus solus / Raymond Roussel/ tradução e apresentação Fernando Scheibe; prefácio Raúl Antelo; pósfacio Pierre Bazantay. – Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2013. 344p. – (pseudo - Coleção de literatura) Inclui bibliografia ISBN: 978-85-63003-16-4 1. Ficção francesa. 2. Literatura francesa – História e crítica. I. Scheibe, Fernando. II. Título. III. Série. CDU: 840-31 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Cultura e Barbárie Editora conselho editorial Alexandre Nodari, Diego Cervelin, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila e Rodrigo Lopes de Barros www.culturaebarbarie.org | editora@culturaebarbarie.org Caixa Postal 5015 - 88040-970 - Florianópolis/SC
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RAYMOND ROUSSEL
Apresentação | Fernando Scheibe
o leitor e Roussel (1877-1933) Que o leitor se apavore: não há níveis seguros para o consumo de rousselina, a droga mais pura da história da literatura. “Praza aos céus...” Roussel medusa. Roussel, o admirável; Roussel, o estranho; Roussel, o puro; Roussel, o ingênuo; Roussel, la vie; “com Lautréamont, o maior magnetizador dos tempos modernos”. Quando os surrealistas estavam indo com o fubá, Roussel já voltava com a broa. Aliás, os surrealistas nunca aprenderam a assá-la. A escrita automática nunca funcionou direito. Só o procedimento salva. Da chatice humana. Muito antes de Georges Bataille propor “o mito da ausência de mito”, Roussel, comedor de estrelas, já o fabricava. Michel Leiris: “É permitido supor que o jogo de palavras gerador de mito se impunha
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ao seu espírito com força coerciva, que era impossível para ele escapar deste poder alucinatório contido na linguagem.”1 Talvez se pudesse aventar ainda que Roussel consumou a verdadeira acefalia: até debaixo d’água (cf. capítulo III). Mas chega de bagunça. Em que um assistente de laboratório que faz fortuna graças a um pé de mamute congelado e enviado a Paris por um professor curioso pelo estudo das putrefações; em que uma humilde criada que ajusta com tanto fatalismo sua sorte à boa vontade do calendário – o mesmo que a fez nascer num dia cinza e a dotou de um escapulário de organdi por causa de superstições camponesas em torno de um pinheiro venerável –; em que a revelação num balão esférico dominando a guerra de 1870-71 do amor de um bispo por uma enfermeira e da importância dessa revelação para o destino de um anel enterrado em uma sarjeta medieval; em que esses magníficos episódios do bacará humano são mais escandalosos ou menos tocantes do que a aventura inesperada por que passou a virgem romena em um circo ensolarado na presença dos leões nascidos sob outro clima, do que o choque do amor de dois homens pela mesma mulher sob um astro hábil em recortar suas sombras sobre a areia das aleias com a mesma luz com que iluminou no mesmo lugar samambaias arborescentes, serpentes aladas, o amor noturno das formigas vermelhas ou o parto sem glória de uma virgem ignorada? Em que o destino do homem é menos “dramático” quando o assimilamos ao bizarro equilíbrio dos sóis e dos planetas?2
Também me pergunto.
1 Michel Leiris, “Comment j’ai écrit certains de mes livres” (1936). Tradução: Liliane Mendonça (trata-se de um texto de Leiris publicado na Nouvelle Revue Française sobre o livro homônimo de Roussel). O leitor encontrará esta tradução e muitas outras, citadas ou não nesta apresentação, no número especial (98) do panfleto Sopro dedicado a Raymond Roussel: http://www.culturaebarbarie.org/sopro/n98.html 2 Robert Desnos, “L´étoile au front” (1924). Tradução: Diego Cervelin.
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o livro Locus Solus foi inicialmente publicado como folhetim, sob o título Algumas horas em Bougival, no jornal Le Gaulois du dimanche, de dezembro de 1913 a março de 1914. No mesmo ano, sai a versão em livro, já com o título definitivo, pela editora Alphonse Lemerre. Em 1922, Locus Solus é representado no teatro em adaptação de Pierre Frondaie. Tudo, sempre, às expensas do autor. Foi um editor suíço, perto do final dos anos 50, a editora Rencontre de François de Muralt, que quis primeiro reeditar Roussel numa coleção intitulada “Cem obras-primas”, não sei por que feliz iniciativa. E como bons suíços muito práticos, eles fizeram algo que ninguém até então havia feito, procuraram os herdeiros de Roussel. Encontraram o duque de Elchingen, obtiveram autorização para reimprimir Locus Solus na coleção e esse foi o início de uma espécie de retomada de Roussel. Retomada muito limitada, não foi grande coisa. Mas o Nouveau Roman reivindicava Roussel, voltava-se a falar dele meio que em tudo quanto é lugar. Houve os estudos de Foucault, de Butor. E, além disso, em 1963, reeditei as Obras completas, e publiquei um número especial de Bizarre. Eu havia, portanto, adquirido os direitos de Roussel junto a esse adorável duque de Elchingen, bem caros, aliás. Ele era duro nos negócios. Na época, dei-lhe 50.000 francos de adiantamento, o que dá mais de 400.000 francos hoje. Em compensação, os 5.000 primeiros exemplares estavam livres de direitos de autor. Todo o mundo pensou que eu estava completamente louco, e todo o mundo tinha um pouco de razão. Eu achava que havia chegado a hora de Roussel, mas ela nunca chegou. Quinze anos depois, havia ainda na Hachette exemplares dessa primeira tiragem de 5.000 exemplares.3
3 Jean-Jacques Pauvert, “História de leituras” (1983). Tradução: Pablo Simpson.
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a claque Durante o segundo ato, um dos meus adversários gritou para aqueles que estavam aplaudindo: “Hardi la claque” [Força, claque!]. Ao que Robert Desnos respondeu: “Nous sommes la claque et vous êtes la joue” [Nós somos o claque do tapa e vocês a bochecha].4
Que Raymond Roussel nos mostre tudo aquilo que não foi. Nós somos alguns a quem só essa realidade importa. [Paul Eluard, “Raymond Roussel: l’étoile au front” (1925). Tradução: Joca Wolff.] Paul Valéry assinalava esta relojoaria invasiva: a precisão do tempo, do lugar e da atividade dos homens; e que há cada vez menos jogo na mecânica, que nossas luzes não tremem mais e que a imaginação pura está condenada, se não se adaptar, a ser moída pela máquina. Raymond Roussel serviu-se dessa precisão moderna e da lógica estabelecida para construir fabulosos aparelhos destinados ao transbordamento do material poético. [Roger Vitrac, “Joueur d’échecs” (1928). Tradução: Marcelo Jacques de Moraes.] Roussel também me suscitava um grande entusiasmo naquela época. Admirava-o, porque ele produzia coisas que eu nunca tinha visto antes. Isso desperta em mim a admiração do meu ser mais profundo – algo completamente independente – nada tendo a ver com grandes nomes e influências. Apollinaire foi o primeiro a
4 Raymond Roussel, Comment j’ai écrit certains de mes livres (1935). Tradução: Fabiano Barboza Viana [no prelo pela Cultura e Barbárie]. A cena se desenrolou na estreia de L’étoile au front, no dia 5 de maio de 1924.
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dar-me a conhecer a obra de Roussel. Era poesia. Roussel pensava que era filólogo, filósofo e metafísico. Mas permanece um grande poeta. Fundamentalmente, foi Roussel o responsável pelo meu Vidro, A Noiva despida pelos seus celibatários, mesmo. Foram suas Impressões da África que me indicaram em suas grandes linhas a démarche que devia adotar. Essa peça, que vi com Apollinaire, ajudou-me muito numa vertente de minha expressão. Vi imediatamente que podia usar Roussel como influência. Pensava que, enquanto pintor, era melhor que fosse influenciado por um escritor do que por outro pintor. E Roussel me mostrou o caminho. A minha biblioteca ideal incluiria todos os escritos de Roussel – Brisset, talvez Lautréamont e Mallarmé que era uma grande figura. [Marcel Duchamp, Entretiens avec Pierre Cabanne (1946). Tradução (modificada): Zita Morais.] Roussel inventou máquinas de linguagem que, decerto, não têm outro segredo, afora o procedimento, além da visível e profunda relação que toda linguagem mantém, desata e retoma com a morte. [Michel Foucault, Raymond Roussel (1963). Tradução minha.] Seria impossível encontrar alguém mais extravagante do que Walser se Raymond Roussel não tivesse existido. Ele que vivia fechado em si mesmo, em sua rulote de persianas abaixadas, contemplando a luz incriada que nascia dentro dele próprio, no interior de sua obra, consagrada a uma espécie de cibernética
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aplicada à literatura e que produziu obras tão geniais quanto Locus Solus e Impressões da África. [Enrique Vila-Matas, Desde la ciudad nerviosa (2000). Tradução minha.] Nenhum elogio é excessivo ao escritor que escreveu só para encher o tempo, e fez dessa ocupação a única matéria de sua obra. Porque também poderia ter ocupado seu tempo escrevendo romances como os de Dostoiévski, ou poemas como os de Verlaine. Não teriam sido menos eficazes nessa incumbência. Mas então deveria ter escrito sobre seus sentimentos, ideias, experiências, e isso estava fora das intenções do grande dândi que foi Roussel. A literatura está toda feita de elementos extraliterários. O que aconteceria se lhe tirássemos tudo o que nela é informação, comunicação, ideologia, autobiografia, opinião...? Se conseguíssemos isolar o puro mecanismo do que faz literária a literatura? Acredito que teríamos algo como Locus Solus ou qualquer outro dos seus livros. Na sua concentração por encontrar formatos que lhe dessem uma plena ocupação do tempo, Roussel pôs de lado todos esses elementos, e deixou a literatura nua. [César Aira, “Raymond Roussel. La clave unificada” (2011). Tradução: Byron Vélez.]
a tradução O procedimento serve somente para gerar o argumento. Logo, uma vez escrita a história, o procedimento desaparece, fica oculto, é tão parte da história quanto o fato de o autor ter usado tinta azul ou tinta preta para escrever, ou qualquer outro dado desprovido da menor importância para entender ou julgar o texto, ou para desfrutá-lo. Nesse ponto, Foucault se equivoca, no seu livro sobre Roussel,
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ao dizer que aquele que não souber francês e, portanto, não captar os jogos de palavras subjacentes às histórias, perderá algo na leitura de Roussel. Acho um erro grave da sua parte. O procedimento é uma ferramenta do autor (de Roussel, porque não houve outro), e não concerne ao leitor. Uma ferramenta que lhe permitiu encontrar as histórias mais estranhas, as invenções mais esquisitas e surpreendentes, em que jamais teria pensado se houvesse confiado na sua própria invenção. Por isso traduzir Roussel não só é possível mas conveniente, e lê-lo em tradução a outra língua (pelo menos nas suas obras em prosa, quer dizer, as feitas segundo o procedimento) é o único jeito de apreciá-lo plenamente, visto que ao afastá-lo do francês se consuma o ocultamento da gênese.5
Traduzir Roussel é ainda mais divertido e delirante do que lêlo. Desencanado da gênese, tentei dar conta do espraiar linguageiro da invenção. Estas palavras de Jean Lévy, citadas por Michel Leiris, serviram-me de norte: “Jean Lévy observara que Roussel ‘só se serve de palavras de pelo menos dois sentidos’ e que um vocabulário desses se aproxima singularmente daquele manejado pelos “apaixonados por palavras-cruzadas, que, também eles, falam em maços de calceteiro, volantes, festos, sangas, meadas, sedenhos e sistros.’”6 Até onde sei, excetuado o capítulo primeiro, publicado em 2004 na revista Ficções, excelentemente traduzido por Carlito Azevedo, esta é a primeira tradução em português de Locus Solus. Iniciada em 2012, foi concluída, de abril a julho de 2013, graças a uma bolsa do Centre National du Livre, no Collège International des Traducteurs Littéraires, em Arles. Ainda em julho, foi discutida na Oficina de tradução português-francês e francês-português de Paraty.
5 César Aira, “Raymond Roussel. La clave unificada” (2011). Tradução: Byron Vélez. 6 Michel Leiris, “Cahier Raymond Roussel” (circa 1935). Tradução minha.
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Veio então o “delicioso pungir de acerbo espinho” da revisão. Alguns dos melhores achados, devo-os a estes dois monstros: Felipe Augusto Vicari de Carli e Fedra Rodríguez Hinojosa. Contei também com a cumplicidade constante de Patrick Besnier e Pierre Bazantay, autores do Petit dictionnaire de Locus Solus, e do tradutor mais porreta que conheço: Dominique Nédellec. A todos, muito, agradeço. Assim como ao Alexandre Nodari que, sem pestanejar, topou este projeto, e ao irmão rousseliano Fabiano Barboza Viana.
Roussel, la vie | Raúl Antelo
Raymond Roussel figura no centro de uma galáxia em que brilham Marcel Duchamp (ou antes, Rrose Sélavy, isto é, Roussel, la vie), Guillaume Apollinaire, Francis Picabia, Giorgio de Chirico, Jean Cocteau, Paul Éluard, Robert Desnos, Salvador Dalí, Georges Perec, Alain Robbe-Grillet, Júlio Cortázar, John Ashbery ou Joseph Cornell. Mas, provavelmente, vem de Minas o primeiro leitor brasileiro de Locus Solus. Com efeito, Aníbal Machado transcreveu, em 1953, um verdadeiro fantástico de biblioteca, um sonho em que a absoluta contingência do encontro com um cidadão que diz ser Raymond Roussel se produz, nítida e contundentemente, “no pátio da chácara de Sabará”, muito embora a identidade do visitante não passe de cisão e rasura, autêntico vazio, porque “nunca o senhor será para mim o R. Roussel, o autor de Locus Solus... o outro... o grande é irreal... perdido na distância...”.1 Como mestre Canterel, Aníbal aplica ressurrectina em Roussel e assim reaparece não só o ambiente
1 Machado, Aníbal. “1953 – Julho – 13”. Ficções, nº 10. Rio de Janeiro, 2003. p.5051. Analisei os desdobramentos desse texto em Antelo, Raul. “A biblioteca pegou fogo”. Em: Chiara, Ana; Rocha, Fátima Dias (eds.). Literatura Brasileira em foco V: realismos. Rio de Janeiro: Casa 12 / UERJ, 2012. p.200-222.
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aristocrático de Proust, mas também um certo desdém pelo mundo objetivo e exterior, ou antes, tal como em Proust, uma passagem do individual ao anônimo, já que a matéria da obra literária é a vida passada, não necessariamente, em seus aspectos épicos ou notáveis, mas até mesmo nos mais frívolos, na indolência, na ternura, na dor, acumulando como a semente os alimentos de que se nutrirá a planta, sem adivinhar-lhe nunca o destino nem a sobrevivência.2 O sonho de Aníbal Machado coincide, aliás, com a publicação de Um estudo sobre Raymond Roussel, de Jean Ferry, prefaciado por Breton, quem, em 1937, já estampara, na revista Minotaure, uma nota que se incluiria, finalmente, na Antologia do humor negro (1940). Por essa época, o surrealista Jacques Brunius propunha a primeira “máquina para ler Raymond Roussel”, ativada, de fato, em 1938, também em artigo para a Minotaure, “Na sombra onde os olhares se alimentam”, um fragmento de seu livro À margem do cinema francês (1954). Nesse momento, Michel Leiris, que ainda menino conhecera Roussel, assina um artigo sobre ele na Critique, a revista de Georges Bataille e, por essa via, chegaríamos a dois nomes cruciais para a fortuna de Roussel: Michel Foucault e Gilles Deleuze. Foucault conhece Roussel pela mediação do editor dos surrealistas, José Corti, justamente quando começa seus estudos sobre a loucura, dividido e insatisfeito que estava entre a fenomenologia e a psicologia existencial, mas decidido a ultrapassar o horizonte de Sartre e Merleau-Ponty. A escritura de Roussel, segundo Foucault, teria captado de modo exemplar a existência, na linguagem, de uma espécie de distância essencial, um deslocamento ou desmembramento, que obedece
2 Proust, Marcel. O tempo redescoberto. Tradução de Lúcia Miguel Pereira. Rio de Janeiro: Globo, 1957. p.145.
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a quatro ações: relato, procedimento, acontecimento e repetição. Deleuze, por sua vez, retira de Roussel a ideia de que não falta sentido à literatura, mas nela faltam signos para o sentido se sustentar e é por isso mesmo que o problema literário por excelência é o vazio, um vazio que se abre no interior de cada palavra, como onomastomância disseminada, que é a tese, aliás, de Proust e os signos. Em seu texto de 1963 sobre o horror ao vazio em Roussel3, Deleuze argumenta que a repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de suas várias ocorrências. Mas isso não configura a impossibilidade da repetição, como Roussel compreendeu muito bem, já que o autor de Locus Solus busca aumentar o vazio ao máximo, tornando-o determinável e mensurável, para poder preenchê-lo com toda uma fantasmagoria que religa e integra as diferenças à mera repetição. Assim sendo, Deleuze julga imperioso que essa aparente pobreza da linguagem se torne sua autêntica riqueza, algo que Foucault caracterizaria não já como a repetição das coisas ditas e reditas, mas como uma reiteração que passa por cima da não-linguagem e que deve o seu próprio ser poesia a esse vazio transposto por extraordinárias máquinas ou por não menos estranhos atores-artesãos. Não só as coisas e os seres acompanham a linguagem; mas tudo, nos mecanismos e nos comportamentos, não passa de imitação e reprodução. Portanto, esse relato nunca se refere a algo único. É como se as máquinas de Roussel tivessem tomado para si a técnica do procedimento e o escritor se limitasse a elaborar séries e mais séries iterativas, que liberam fluxos, vida. Por isso Deleuze considera que Roussel aponta um caso limite da escrita experimental: as obras primas sem procedimento são, justamente, o
3 Deleuze, Gilles. L’Île déserte e autres textes (1953-1974). Editado por David Lapoujade. Paris: Minuit, 2002. p.102-4.
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avesso do próprio procedimento, porque nelas o que se coloca de maneira precípua é o problema de falar e fazer ver ao mesmo tempo, ou seja, falar e dar a ver aquilo que se resiste a ser visto. Por exemplo, a vida póstuma. No episódio da ressurrectina de Locus Solus, mestre Canterel reanima e empresta nova vida a oito cenas, congeladas numa galeria e, injetando ressurrectina, fluido de sua invenção, consegue que esses cadáveres recentes representem o incidente mais importante de suas vidas. Por meio de uma abertura lateral, a ressurrectina enrijecia em volta do cérebro e aí bastava colocar um ponto do invólucro interior em contato com o vitalium, metal escuro, fácil de ser introduzido como uma haste curta no orifício da injeção, para que os dois novos corpos, inativos um sem o outro, liberassem uma eletricidade poderosa, que, penetrando o cérebro, triunfasse sobre a rigidez cadavérica e dotasse o sujeito de uma impressionante nova vida. Leonardo Sciascia repetiria a operação com o próprio Roussel.4 Mas o pós-homem assim obtido reproduzia imediatamente, com total exatidão, os menores movimentos por ele realizados em momentos marcantes de sua vida e repetia assim, indefinidamente, a mesma invariável série de gestos, realizando a ilusão da vida absoluta. Essa “outra coisa” que a ressurrectina (destruição constante) e o vitalium (iteração contínua), assim combinados, dariam a ver, num texto secreto e póstumo, é o segredo de que ele deve permanecer póstumo, assim como a morte nele desempenha a função indutora, vital. Daí, como explica Foucault, que, após esse procedimento,
4 Sciascia, Leonardo. Atti relativi alla morte di Raymond Roussel. Palermo: Esse, 1971
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já não possa existir, a rigor, nenhum outro: a linguagem oculta na revelação só revela que mais além não há nenhuma linguagem e que aquilo que nela fala, tacitamente, é já o silêncio. Portanto, a morte vive na linguagem última que, ao escancarar-se, descobre tão somente que seu prazo já expirou. Game over. Essa questão abre, como podemos constatar, as portas a uma dimensão hiperpolítica já que, conforme Martin Hägglund argumenta em Radical Atheism, nada se torna inquestionável e, mais ainda, a lógica do ateísmo radical até transforma os próprios pressupostos acerca do que seria desejável na vida em comum. A verdadeira vida, essa à qual a arte dá acesso, não é bem uma outra vida desligada dos laços circunstanciais da existência, mas é a própria vida passada, acrescida da intervenção da arte e, assim, duplamente revivida.5 Como se vê, está aí o germe de uma teoria da obra de arte enquanto inoperância ou desobra, uma operação negativa de desativação ou ociosidade que, em toda instância, pulsa e percute de maneira sutil. Em outubro de 1985, numa aula de seu curso sobre Foucault, Deleuze ainda insistiria sobre o caráter de exterioridade da escrita em Raymond Roussel: nela a condição sempre impõe ao condicionado um regime de dispersão (Mallarmé), de disseminação (Derrida), porque a linguagem é uma forma de exterioridade com relação aos enunciados. Portanto, não há enunciado que não suscite o visível, nem visibilidade que não prolifere enunciados. Entre ambos há captura mútua; mas há também determinação infinita. Porém, como a emergência (ou como diria Nietzsche, a Entstehung) designa sempre um confronto (ou em palavras de Foucault, “l’émergence se produit
5 Macherrey, Pierre. “L´art comme philosophie”. Em: Proust: entre littérature et philosophie. Paris: Editions Amsterdam, 2013. p. 189-299.
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toujours dans un certain état des forces”), não é mais possível pensar o espaço como algo fechado ou autônomo, digamos, um campo, à maneira de Bourdieu, nem mesmo podemos pensar nos contendores como dois agentes em pé de igualdade, do que se conclui que a emergência é um não-lugar, uma pura distância, um locus solus. Roussel, la vie: mode d´emploi.
Ă€ minha irmĂŁ, a duquesa de Elchingen, mui ternamente. R.R.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Naquela quinta-feira de começante abril, meu sapiente amigo, mestre Martial Canterel, convidara-me, com alguns outros de seus íntimos, a visitar o imenso parque que rodeia sua bela vila de Montmorency. Locus Solus – a propriedade se chama assim – é um calmo refúgio onde Canterel gosta de levar adiante, com toda tranquilidade de espírito, seus múltiplos e fecundos trabalhos. Nesse lugar solitário, ele está suficientemente protegido das agitações de Paris – e, no entanto, pode chegar à capital em quinze minutos quando suas pesquisas exigem uma estadia em tal biblioteca especial ou quando chega o momento de fazer ao mundo científico, numa conferência prodigiosamente concorrida, alguma comunicação sensacional. É em Locus Solus que Canterel passa quase todo o ano, rodeado de discípulos que, cheios de uma admiração apaixonada por suas contínuas descobertas, secundam-no com fanatismo na realização de sua obra. A vila tem várias peças luxuosamente arranjadas como laboratórios-modelo operados por diversos auxiliares, e o mestre consagra sua vida inteira à ciência, suprimindo de saída, com sua grande fortuna de solteiro isento de encargos, qualquer dificuldade
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material suscitada no curso de seu labor incansável em busca dos diversos objetivos que estabelece para si mesmo. Acabavam de soar três horas. O tempo estava bom, e o sol resplandecia num céu quase uniformemente puro. Canterel nos recebera não longe de sua vila, ao ar livre, sob velhas árvores cuja sombra envolvia uma confortável instalação que compreendia diversas cadeiras de vime. Depois da chegada do último convocado, o mestre se pôs em marcha, guiando nosso grupo, que o acompanhava docilmente. Grande, de cabelos castanhos, fisionomia aberta e traços regulares, Canterel, com um fino bigode e olhos vivos onde brilhava sua maravilhosa inteligência, não parecia ter seus quarenta e quatro anos. A voz quente e persuasiva conferia grande atrativo a sua elocução cativante, cuja sedução e clareza faziam dele um dos campeões da palavra. Caminhávamos havia pouco por uma alameda ascendente muito íngreme. A meia encosta, vimos, na beira do caminho, de pé num nicho de pedra bastante profundo, uma estátua estranhamente velha que, parecendo ser feita de terra enegrecida, seca e solidificada, representava, não sem encanto, um sorridente menino nu. Os braços se estendiam para a frente num gesto de oferenda – as duas mãos abrindo-se para a cobertura do nicho. Uma plantinha morta, de extrema vetustez, se elevava no meio de sua destra, onde outrora lançara raiz. Canterel, que seguia distraidamente seu caminho, teve que responder a nossas questões unânimes. “É o Federal com uma semen-contra visto no coração de Tombuctu por Ibn Battuta”, disse ele mostrando a estátua – cuja origem nos desvelou a seguir.
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*
O mestre conhecera intimamente o célebre viajante Échenoz, que, quando de uma expedição africana realizada ainda em sua primeira juventude, fora até Tombuctu. Tendo mergulhado, antes da partida, na bibliografia completa sobre as regiões que o atraíam, Échenoz lera várias vezes certo relato do teólogo árabe Ibn Battuta, considerado o maior explorador do século XIV depois de Marco Polo. Foi no fim de sua vida, fecunda em memoráveis descobertas geográficas, quando teria todo o direito de saborear em repouso a plenitude de sua glória, que Ibn Battuta tentara uma vez mais um reconhecimento longínquo e vira a enigmática Tombuctu. Durante a leitura, Échenoz teve sua atenção atraída pelo seguinte episódio: Quando Ibn Battuta entrou sozinho em Tombuctu, uma silenciosa consternação pesava sobre a cidade. O trono pertencia então a uma mulher, a rainha Duhl-Séroul1, que, com vinte anos recém-completados, ainda não escolhera um esposo. Duhl-Séroul sofria às vezes terríveis crises de amenorreia, das quais resultava uma congestão que, atingindo o cérebro, provocava acessos de loucura furiosa.
1 Como observam Patrick Besnier e Pierre Bazantay, autores do Petit dictionnaire de Locus Solus, “a segunda parte do nome da rainha de Tombuctu apresenta um evidente anagrama de Roussel”. [N.T.; as notas numeradas são do tradutor, as marcadas com asterisco, do autor, conforme a edição original]
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Essas perturbações causavam graves problemas aos naturais, visto o poder absoluto de que dispunha a rainha, propensa, a partir de então, a distribuir ordens insensatas, multiplicando sem motivo as condenações capitais. Uma revolução poderia ter estourado. Mas, fora desses momentos de aberração, era com a mais sábia bondade que Duhl-Séroul governava seu povo, que raramente experimentara um reinado tão afortunado. Em vez de se lançar ao desconhecido, derrubando a soberana, suportavam-se pacientemente os males passageiros, compensados por longos períodos florescentes. Entre os médicos da rainha, nenhum pudera até então erradicar o mal. Ora, à chegada de Ibn Battuta, uma crise mais forte do que todas as precedentes minava Duhl-Séroul. Devia-se a todo instante, a uma palavra sua, executar inúmeros inocentes e queimar colheitas inteiras. Abalados pelo terror e pela fome, os habitantes esperavam dia após dia o fim do acesso, que, prolongando-se contra toda razão, tornava a situação insustentável. Na praça pública de Tombuctu erguia-se uma espécie de fetiche ao qual a crença popular atribuía um grande poder. Era uma estátua de criança inteiramente composta de terra escura – e feita outrora em curiosas circunstâncias sob o reinado de Forukko, ancestral de Duhl-Séroul. Possuindo as qualidades de sensatez e de doçura encontradas em tempos normais na rainha atual, Forukko, promulgando leis e se empenhando pessoalmente, levara a prosperidade de seu país a um alto patamar. Agrônomo esclarecido, ele próprio supervisionava as culturas, a fim de introduzir diversos frutuosos aperfeiçoamentos nos métodos caducos de semeadura e colheita.
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Maravilhadas com esse estado de coisas, as tribos limítrofes se aliaram a Forukko para tirar proveito de seus decretos e pareceres, não sem guardar cada uma sua autonomia, com o direito de retomar a seu critério uma independência completa. Tratava-se de um pacto de amizade e não de submissão, pelo qual se comprometiam ainda a se coligar em caso de necessidade contra um inimigo comum. Em meio a um louco entusiasmo, desencadeado pela declaração solene da imensa união realizada, resolveu-se criar, à guisa de emblema comemorativo capaz de imortalizar o brilhante acontecimento, uma estátua feita unicamente da terra extraída do solo das diversas tribos reunidas. Cada uma enviou seu lote, escolhendo terra vegetal, símbolo da abundância feliz que a proteção de Forukko anunciava. Com todos os húmus misturados e amassados conjuntamente, um artista de renome, engenhoso na escolha do tema, erigiu um gracioso menino sorridente, que, verdadeiro rebento comum das numerosas tribos fundidas numa só família, parecia consolidar ainda mais os laços estabelecidos. A obra, instalada na praça pública de Tombuctu, recebeu, em razão de sua origem, uma denominação que, traduzida em linguagem moderna, daria essas palavras: o Federal. Modelado com uma arte encantadora, o menino, nu, o dorso das mãos virado para o chão, esticava os braços como que para fazer uma oferenda invisível, evocando, através de seu gesto emblemático, o dom de riqueza e de felicidade prometido pela ideia que representava. Logo seca e endurecida, a estátua adquiriu uma solidez persistente. Confirmando a esperança geral, uma idade de ouro começou para os povoados associados, que, atribuindo sua sorte ao Federal,
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devotaram um culto apaixonado a esse todo-poderoso fetiche, capaz de atender inumeráveis preces. Sob o reinado de Duhl-Séroul, a associação dos clãs ainda subsistia e o Federal inspirava o mesmo fanatismo. A atual loucura da soberana piorando sem parar, o povo resolveu ir em massa pedir à estátua de terra a imediata conjuração do flagelo. Vista e descrita por Ibn Battuta, uma grande procissão, sacerdotes e dignitários à frente, postou-se ao pé do Federal para longamente lhe dirigir, segundo certos ritos, ferventes orações. Naquela mesma noite, um furioso furacão passou pela região, espécie de tornado devastador que atravessou rapidamente Tombuctu, sem danificar o Federal, abrigado pelas construções circundantes. Nos dias seguintes, frequentes tempestades resultaram da perturbação dos elementos. Enquanto isso, a vesânia aguda da rainha se acentuava, ocasionando a cada hora novas calamidades. Todos desesperavam já do Federal, até que, uma manhã, o fetiche apresentou, enraizada dentro de sua mão direita, uma plantinha prestes a desabrochar. Sem hesitar, viram ali um remédio miraculosamente oferecido pelo menino venerado para curar a afecção de Duhl-Séroul. Prontamente desenvolvido pela alternância de chuva e sol ardente, o vegetal engendrou minúsculas flores amarelo pálido, que, colhidas com cuidado, foram, assim que secaram, administradas à soberana, então no paroxismo do desvario. O fenômeno retardatário se produziu incontinente, e DuhlSéroul, enfim aliviada, reencontrou a razão e sua equânime bondade. Ébrio de alegria, o povo, numa imponente cerimônia, deu graças ao Federal e, preocupado em erradicar as próximas crises, resolveu
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cultivar, com a ajuda de uma irrigação regular, deixando-a por supersticioso respeito na mão da estátua, sem ousar semear seus germes em nenhum outro lugar, a planta misteriosa que, até então desconhecida na região, autorizava uma única hipótese: transportada nos ares pelo furacão desde longínquas regiões, uma semente, atingindo em sua queda a destra do ídolo, brotara na terra vegetal regenerada pela chuva. De acordo com a crença unânime, o onipotente Federal tinha ele próprio desencadeado o ciclone, conduzido a semente até sua mão e provocado cada aguaceiro germinador. Essa era, no relato de Ibn Battuta, a passagem favorita do explorador Échenoz, que, uma vez em Tombuctu, indagou sobre o Federal. Uma cisão ocorrida entre as tribos solidárias privara-o de qualquer significado, e o fetiche, banido da praça pública e relegado a ser uma simples curiosidade entre as relíquias de um templo, afundara havia muito tempo no esquecimento. Échenoz quis vê-lo. Na mão do menino, intacto e sorridente, erguia-se ainda a famosa planta, que, agora seca e mirrada, tinha outrora – o explorador ficou sabendo – conjurado durante vários anos, até produzir uma cura completa, cada nova crise de DuhlSéroul. Possuindo sobre a botânica as noções que sua profissão exigia, Échenoz reconheceu no antigo resquício hortícola um pé de artemisia maritima – e lembrou que, absorvidas em quantidade mínima, sob a forma de um medicamento amarelado chamado semen-contra, as flores secas dessa radiada constituem, de fato, um emenagogo muito ativo. Tomado de uma fonte única e pobre, fora justamente em pequenas doses que o remédio sempre agira sobre Duhl-Séroul.
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Pensando que o Federal, visto seu atual abandono, podia ser adquirido, Échenoz ofereceu um bom preço, logo aceito – então trouxe para a Europa a singular estátua, cujo histórico despertou fortemente a atenção de Canterel. Ora, Échenoz morrera havia pouco, legando o Federal a seu amigo, em lembrança do interesse demonstrado por este pelo antigo fetiche africano. * *
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Nossos olhares, fixando o simbólico menino, para nós agora recoberto, assim como a velha planta, da mais atraente glória, foram logo solicitados por três altos-relevos retangulares, talhados diretamente na pedra, na porção inferior do bloco elevado onde o nicho estava escavado. À nossa frente, entre o chão e o nível da plataforma calcada pelo Federal, as três obras, finamente coloridas, alongavamse horizontalmente uma sob a outra e, já muito gastas em alguns pontos, davam o sentimento, assim como todo o bloco pétreo, de uma fabulosa antiguidade. O primeiro alto-relevo representava, de pé numa planície relvosa, uma jovem extasiada, que, com os braços apesentados por um buquê de flores, contemplava no horizonte esta expressão: ORA, esboçada no céu por estreitos cirros que o vento recurvava suavemente. As cores, embora desbotadas, subsistiam em toda parte, delicadas e múltiplas, ainda nítidas nas nuvens, cheias de rubros reflexos crepusculares. Mais abaixo, o segundo quadro escultural mostrava a mesma desconhecida, que, sentada numa sala suntuosa, aproveitava uma
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abertura na costura para extrair, de uma almofada azul com ricos bordados, um fantoche vestido de rosa e privado de um de seus olhos. Perto do chão, o terceiro fragmento colocava em cena um zarolho com roupas rosas, que, contraparte viva do fantoche, designava a diversos curiosos um bloco médio de venoso mármore verde, cuja face superior, onde se encaixava em parte um lingote de ouro, exibia a palavra Ego levemente gravada com cetra e data. No segundo plano, um curto túnel, munido interiormente de uma grade fechada, parecia conduzir a uma imensa caverna escavada nos flancos de uma marmórea montanha verde. Nas duas últimas cenas, algumas cores guardavam certa força, especialmente o azul, o rosa, o verde e o ouro. Interrogado, Canterel nos informou sobre essa trilogia plástica. Cerca de sete anos atrás, tendo ficado sabendo que uma sociedade estava sendo formada para trazer a lume a cidade bretã de Gloannic, destruída e coberta de areia no século XV por um formidável ciclone, o mestre, sem nenhum espírito de lucro, subscrevera inúmeras ações, com o único objetivo de encorajar um grandioso empreendimento, capaz de gerar, segundo ele, apaixonantes resultados. Pela voz de seus representantes, os maiores museus dos dois mundos logo estavam disputando as tantas relíquias preciosas, que, devidas a escavações hábeis feitas nos lugares certos, vinham sem demora sofrer em Paris a queima dos leilões públicos. Canterel, presente a cada novo desembarque de antiguidades, lembrou-se de repente, certo anoitecer, à vista de três altos-relevos pintados que ornavam a parte da frente da base de um grande nicho vazio recentemente desenterrado, desta lenda armoricana contida no Ciclo do rei Artur.
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Nos tempos de outrora, em Gloannic, sua capital, Kourmelen, rei de Kerlagouëzo –, região selvagem no extremo ocidente da França – sentiu, ainda jovem, declinar rapidamente sua saúde, havia muito tempo precária. Fazia um lustro que Kourmelen ficara viúvo da rainha Pléveneuc, que morrera dando à luz sua primeira filha, a princesinha Hello. Tendo vários irmãos invejosos, ávidos pelo trono, Kourmelen, pai extremoso, pensava com terror que, depois de seu trespasse, sem dúvida próximo, Hello, destinada pela lei do país a sucedê-lo sem partilha, seria, em função de sua tenra idade, alvo de muitas conspirações. Desprovida de joias, mas compensando sua falta de luxo por uma extrema antiguidade, a pesada coroa de ouro de Kourmelen, tendo, sob o nome de a Maciça, cingido desde um tempo imemorial cada fronte soberana de Kerlagouëzo, tornara-se, com o passar dos anos, a própria essência da realeza absoluta, e, privado dela, nenhum príncipe teria podido reinar um só dia. Em consequência de um ardente fetichismo, capaz de prevalecer contra toda legitimidade, o povo reconheceria por mestre qualquer pretendente hábil o suficiente para se apossar do objeto, prudentemente trancado num lugar seguro, munido de sentinelas. Um ancestral de Kourmelen, Jouël, o Grande, tinha, em longínquas eras, fundado o reino de Kerlagouëzo e sua capital, e fora também o primeiro a usar a Maciça, fabricada por ordem sua. Morto quase centenário após um reino glorioso, Jouël, divinizado pela lenda, transformou-se em astro do céu e continuava a velar por seu povo. No país, todos sabiam vê-lo no meio das constelações para lhe dirigir votos e preces.
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Confiando no poder sobrenatural de seu ilustre antepassado, Kourmelen, minado por suas angústias, adjurou-o a lhe enviar em sonhos alguma salutar inspiração. Para tirar a seus irmãos toda e qualquer esperança de sucesso, ele pensara longamente em selar, fora do alcance deles, num misterioso esconderijo, a coroa reverenciada, indispensável a qualquer entronização. Mas era preciso que, uma vez em idade de desafiar seus inimigos, Hello, para se fazer proclamar rainha, pudesse encontrar o antigo círculo de ouro – e a prudência o impedia de lhe contar o refúgio escolhido, já que a força ou a astúcia podem facilmente arrancar um segredo à infância. Obrigado a escolher um confidente, o rei hesitava, comovido pela gravidade do caso. Jouël escutou a prece de seu descendente e o visitou num sonho para lhe ditar uma sábia conduta. A partir de então, Kourmelen só agiu seguindo as instruções recebidas. Mandando fundir sua coroa, ele obteve um lingote de banal forma oblonga e se dirigiu a Morne-Vert, montanha encantada celebrizada outrora por uma viagem de reconhecimento de Jouël. Perto do fim de sua vida, percorrendo seu reino com solicitude para controlar o bem estar popular e a honestidade de seus governantes, Jouël acampara uma noite numa região solitária inteiramente nova para seus olhos. A tenda real fora montada ao pé do Morne-Vert, monte caótico, surpreendente por sua nuance glauca e seus reflexos de mármore finamente venado. Jouël, intrigado, tentou subi-lo enquanto o pernoite era organizado, batendo o tempo todo, com um bastão de ferro, como que para reconhecer sua natureza, o chão, sempre resistente. Um golpe o surpreendeu, provocando uma vaga ressonância
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subterrânea. Detendo-se, bateu fortemente em diversos pontos do lugar suspeito e percebeu um eco surdo, que, propagando-se pelos flancos da montanha, denotava a presença de uma grande caverna. Pressentindo ali um bom abrigo para a noite, que se anunciava fria, Jouël, sem escalar mais, mandou seus homens procurarem alguma falha que desse acesso ao antro imprevisto. Contrariado pelo fracasso de toda investigação, o rei, pensando na possível existência de uma abertura coberta de areia, ordenou que desobstruíssem, abaixo do lugar sonoro, a montanha, cuja base estava tomada por um fino cascalho. Alguns trabalhadores, munidos de ferramentas improvisadas, puseram a nu, em pouco tempo, o topo de uma abóbada que deixava passar exatamente o corpo de um homem. Jouël, penetrando, tocha à mão, no estreito corredor, logo descobriu uma caverna esplêndida, toda em mármore verde guarnecido, por um estranho fenômeno geológico, de enormes pepitas de ouro – que representavam por si só uma incalculável fortuna, suscetível de ser decuplicada por aquelas certamente contidas na espessura do maciço. Maravilhado, Jouël quis, reservando-as para eventuais épocas de ruinosos infortúnios, preservar de toda cupidez essas riquezas fabulosas, inúteis naquele momento para um reino feliz que gozava de uma calma prosperidade devida ao gênio de seu fundador. Calando seus pensamentos, o rei chamou a si seu séquito, e a noite decorreu tranquila na hospitaleira caverna. No dia seguinte, um vaivém se estabeleceu com a aldeia mais próxima, e os trabalhadores puseram mãos à obra sob a chefia de Jouël. Liberada por seus cuidados de toda a areia acumulada , a estreita passagem primitiva se tornou um túnel espaçoso, a meio caminho do
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qual, depois da evacuação da grota, foi instalada uma grande grade de dois batentes, desprovida de fechadura por ordem formal do rei. Então, diante de todos, Jouël, que praticava a magia, pronunciou dois solenes encantamentos. Pelo primeiro, ele tornava o exterior do morro eternamente invulnerável às mais duras ferramentas – e fechava imperiosamente, pelo segundo, a grossa e alta grade imunizada ao mesmo tempo contra o arrombamento e o deslacre. Depois, o monarca fez aos assistentes preciosas revelações. Naquele momento, ignorada por ele próprio, impotente para reconquistar, caso o quisesse, as riquezas proibidas, certa frase mágica relatando um acontecimento pessoal sobre-humano que tornaria sua morte ilustre, seria capaz de abrir momentaneamente a grade a cada impecável enunciação. Uma única vez no curso dos séculos futuros, em caso de grandes desastres públicos cujo desencadeamento ou expectativa poderia solicitar o aporte desses tesouros, Jouël teria a faculdade de desvelar a um de seus sucessores, por meio de um sonho, a proposição cabalística. Ele revelava antecipadamente a substância do sésamo para que muitos temerários, com suas tentativas periódicas, salvassem a importante jazida do esquecimento forçado a que a relegaria um aprisionamento absoluto. Um mês depois, de volta a Gloannic após o término de seu périplo, Jouël, numa noite límpida, morreu, carregado de anos e de glória – e, de repente, um astro novo brilhou no firmamento. Reconhecendo nisso o incidente sobrenatural recentemente predito por Jouël para a hora de sua morte, o povo não teve dúvida em saudar na estrela imprevista a própria alma do defunto, que velaria eternamente pelo destino de seu reino. Sabendo desde então que fato deveria exprimir a fórmula capaz de liberar os imensos bens do Morne-Vert, o novo soberano, ambicioso
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filho de Jouël, pronunciou diante da grade enfeitiçada um sem número de textos lacônicos, relatando de mil maneiras diferentes a transformação do falecido rei em astro dos céus. Mas não atingiu o justo dizer, pois os batentes permaneceram fechados. E foi sempre em vão que, depois disso, semelhantes tentativas voltaram a ser feitas. Ora, essa proposição rebelde, Kourmelen, durante seu sonho, a recebeu dos lábios de Jouël, autorizado a revelá-la pela ameaçadora tempestade política suspensa sobre o reino. À soleira do Morne-Vert, ele a emitiu nestes termos, de que os aventureiros, no curso dos séculos, haviam apenas se aproximado: “Jouël arde, astro nos céus.” A grade se abriu de par em par – depois voltou a se fechar, transposta pelo visitante, que penetrou na grota verde. Por ordem de Jouël, cujos motivos compreendia, Kourmelen vinha esconder ali todo o ouro de sua coroa. Onde encontrar um refúgio mais seguro do que esse antro, há tanto tempo inviolado a despeito de mil esforços? Além disso, mesmo no caso em que um intrigante chegasse, de tanto tentar, ao sésamo exato, a presença na caverna de inumeráveis pepitas, de que a Maciça, transformada por sua fundição, em nada se distinguia, constituía uma garantia contra a usurpação temida. De fato, visto o fetichismo popular, somente uma fronte cingida pela coroa ancestral incontestavelmente reconstituída com seu ouro primitivo poderia se tornar real. E de que meio se disporia para identificar o lingote venerável entre tantos outros espécimes semelhantes a ele? Extraindo sem maior dificuldade uma longa pedra presa pela metade na superfície de um bloco isolado de mármore verde, Kourmelen obteve uma cavidade perfeita onde o precioso objeto pesado se encaixou com perfeição, oferecendo a partir de então o
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mesmo aspecto que as diversas amostras de ouro engastadas por toda parte no ofito da caverna. Mas um anonimato demasiado estrito do lingote teria tirado toda a possibilidade de reinado à própria Hello, que, um dia, antes de lhe devolver, para sua fronte, a forma de uma coroa régia, seria forçada a provar ao povo, graças a uma marca irrefutável, sua proveniência quase divina. Com a ponta de seu punhal, Kourmelen, sempre seguindo as injunções de Jouël, começou a assinar sobre a plataforma do bloco verde, arranhando, mas finamente, o mármore. Desde a origem, os reis de Kerlagouëzo apunham sobre os atos importantes, em vez de seu nome, a palavra Ego, que reforçava seu prestígio fazendo de cada um, durante seu reinado, o eu supremo, a uma só vez fonte e culminância de tudo. A letra e a data compensavam essa uniformidade silábica designando duplamente em cada peça o soberano em questão. Não hesitando, numa semelhante ocasião, em escolher seu selo predominante, Kourmelen gravou seu Ego habitual – depois datou, não sem recobrir imediatamente a inscrição inteira com uma fina camada de areia. Por meio dessa última precaução, o rei, que escolhera de propósito a mais escura região da grota, tornava quase impossível, para qualquer explorador desavisado que por uma sorte inaudita tivesse conseguido pronunciar o verdadeiro sésamo, a descoberta do indício inerente à epígrafe. Kourmelen, com os cinco vocábulos poderosos, reabriu, para sair, a grade, que logo voltou a se fechar atrás dele. De volta de sua expedição, declarou publicamente, mas calando todos os detalhes, que a Maciça, agora fundida, repousava no MorneVert, do qual Jouël, em sonho, lhe entregara a mágica senha. Era
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importante que o povo, para manter sua fé no porvir, soubesse que, guardado em lugar seguro, o ouro sagrado, cuja suposta perda reduziria todos a um perigoso desespero, continuava apto a dar sua sanção a futuros soberanos. Sentindo já o cerco da morte, Kourmelen, apressadamente, acabou de executar as ordens de Jouël, que, com diversas recomendações anexas, exortou-o a tomar sem temor, para desempenhar o indispensável ofício de confidente universal, um certo Le Quillec, bobo da corte. Zarolho e hediondamente feio, Le Quillec, para exacerbar o grotesco de sua figura, objeto da zombaria geral, vestia-se sempre de rosa como o mais janota dos donzéis e, espirituoso nas réplicas, escondia sob seu invólucro cômico uma alma direita e boa, sinceramente devotada ao rei. Inicialmente espantado com tal escolha, Kourmelen, após reflexão, admirou a sabedoria de Jouël. Mandatário mais seguro do que qualquer outro, Le Quillec, enquanto ser vil e ultrajado, indigno aos olhos de todos de ser eleito como depositário de um grande segredo, estaria, além do mais, ao abrigo de toda insistência ou ameaça buscando fazê-lo falar. O rei, sem restrições, revelou ao bobo a fórmula introdutória, o lugar do famoso lingote e a existência da assinatura comprobatória. Quando chegasse o momento oportuno de agir, Hello, avisada, como filha de raça soberana e divina, por um desses sinais celestes recusados aos simples humanos como Le Quillec, viria por sua própria conta encontrar o zarolho e reivindicar seus segredos. Somente nesse dia, a fim de que uma involuntária marca de interesse ou de favor não viesse despertar prematuramente as suspeitas do círculo da corte, o estranho
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confidente seria designado à órfã – por um meio que o próprio Le Quillec devia ignorar, votado desde então a uma longa espera passiva. Despedindo-se do bobo, Kourmelen pegou numa reserva de brinquedos destinados a sua filha um fantoche vestido de rosa, de que arrancou um olho. A rainha Pléveneuc, durante a gravidez, bordara, sem nenhuma ajuda, um luxuoso coxim azul que, em seu pensamento, manteria perto dela, em sua cama, a criança que esperava, até o fim do resguardo. Kourmelen sempre se esforçara por inculcar o respeito por essa relíquia em Hello. Ainda que sua pobre mãe, surpreendida pela morte, não tivesse podido utilizá-la. Abrindo um pedaço do chuleio, enfiou o fantoche bem no fundo das plumas, depois ordenou a uma camareira que recosturasse o buraco, devido, segundo ele, a um acidente. O rei contou, sem testemunhas, a Hello, intimada a manter segredo sobre esse encontro, que um presente a esperava fechado no coxim azul, cujos flancos ela só deveria explorar mediante uma ordem celeste. Até o final, Kourmelen não fizera mais do que seguir em tudo as prescrições de Jouël, cuja previdente penetração louvava em seu foro íntimo. Destinada, com efeito, a só receber o aviso celeste quando armada pela idade contra seus antagonistas, Hello, remexendo no interior da almofada, que, dada sua augusta proveniência não corria o risco de se perder, seria forçada a procurar algum símbolo na insólita oferenda feita a um adulto de um simples brinquedo ingênuo. Com o tempo, a roupa rosa e o olho ausente do fantoche evocariam fatalmente em seu pensamento, posto a trabalhar, o bobo Le Quillec, que ela iria então interrogar. Além disso, se, odiosamente opressores, os príncipes colaterais arrancassem a Hello, ainda criança e fraca, o
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segredo do coxim azul – embora não tivessem razão para insistir, dada a aparente integralidade da prenda, até o tão essencial reconhecimento do sinal celeste a aguardar – a emersão fora do recheio da almofada, em lugar do precioso documento esperado, de um estranho boneco engraçado, tão bem adaptado à idade da destinatária, pareceria revelar unicamente o terno capricho de um pai cioso de dobrar o atrativo de seu presente pelo imprevisto de um engenhoso esconderijo. O objeto, sem consequência palpável, seria devolvido a Hello, que, limitandose então a usá-lo em suas brincadeiras, só mais tarde, no dia da manifestação celeste, diria bruscamente para si mesma que chegara a hora de sondar o coxim. Então, percebendo a dissonância entre a puerilidade do dom e o florescimento de sua juventude, mergulharia em fecundas reflexões e, graças às duas gritantes particularidades do brinquedo, faria a aproximação desejada que prontamente a conduziria a Le Quillec. Logo Kourmelen morreu. Seus irmãos, aproveitando-se da minoridade de Hello para formar partidos, desencadearam a guerra civil, cada um tratando de conquistar o poder. Mas, na falta do ouro sagrado capaz de reconstituir a Maciça, nenhum deles conseguiu se fazer admitir como rei. Em vão novas palavras foram tentadas para abrir a inflexível grade do Morne-Vert, ainda mais fascinante desde então como habitáculo do lingote monárquico. Assediada pelas perguntas de seus tios como provável depositária de alguma revelação paterna capaz de levar ao objetivo, Hello soube guardar inteiramente seu segredo. Desde então, a anarquia minou o reino, já que a própria Hello, antes de possuir a Maciça, não podia ser rainha. Sempre enfarpelado de rosa, Le Quillec, provido de uma pensão vitalícia legada por Kourmelen, continuava fazendo todos rirem
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durante os passeios, replicando finamente às zombarias dos antigos habitués da corte. O tempo passou, e Hello, já com dezoito anos, pôs-se a pensar sem trégua no sintoma celeste predito por seu pai, na esperança de que lhe fosse oferecido um meio de salvar o país, definitivamente arruinado por um lapso ininterrupto de caos e lutas intestinas. Uma noite de julho, como a jovem princesa voltasse sozinha, os braços carregados de flores, a um castelo ancestral onde residia no verão, suntuosos reflexos vermelhos, nascidos do sol recémdesaparecido, incendiaram longas nuvens deitadas no horizonte. Parando para admirar o encantamento crepuscular, Hello viu alguns flocos estreitos curvarem-se estranhamente sob a ação da brisa até formarem em letras vagas essa locução: ORA. O conjunto logo dissipou-se nos ares. Mas Hello, o coração em disparada, reconhecera, por sua natureza celeste, o pré-aviso anunciado. Agora ela devia agir. De volta ao castelo, abriu o coxim azul, em relação ao qual jamais se desmentira sua mais devotada solicitude, demasiado justificada pelo contato santificador das mãos maternas para ter parecido suspeita. Inicialmente desapontada ao encontrar ali apenas o fantoche, meditou longamente, incitada a pesquisas penetrantes pela discordância estabelecida entre o brinquedo e sua idade. Subitamente, pelo tom da roupa e pela vacuidade da órbita, a jovem adivinhou, no enigmático boneco, uma evocação de Le Quillec. Chamou o bobo ao castelo e o instruiu de tudo.
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Le Quillec, por sua vez, transmitiu-lhe os segredos confiados à sua honra, adjurando-a a seguir incontinente para o Morne-Vert, obedecendo assim com dócil presteza à ordem das nuvens – ordem imperiosa, enviada, com discernimento, num momento bastante propício, já que nenhum dos eventuais usurpadores, que acabavam todos de se enfraquecer mutuamente por meio de lutas excessivas, poderia entravar eficazmente a marcha da rainha legítima quando, portando o lingote fetiche, suscitasse atrás de si o entusiasmo universal. Instalada numa vasta liteira, Hello partiu imediatamente, escoltada pelo bobo, que, expondo de propósito aos quatro ventos o objetivo real da viagem, suscitava a adesão ao cortejo de muitos fanáticos, impacientes por ver o acontecimento memorável que faria cessar a era de anarquia e de ruína. A jovem princesa chegou então ao Morne-Vert no seio de uma multidão imensa, para regozijo de Le Quillec, ávido de testemunhas para sua cena de identificação. Abrindo a grade com a frase eficaz pronunciada secretamente em voz baixa, o bobo andou pela grota até o lugar indicado, enquanto, a seu pedido, uma parte da multidão o seguia para constatar em seus menores gestos uma perfeita ausência de cumplicidade. Designado por Le Quillec, e então erguido por numerosos braços, o bloco marmóreo de Kourmelen foi transportado para fora, e a grade, ainda aberta, só se fechou, dada a extrema brevidade da visita, após a saída do ultimo invasor. O bobo, tirando a camada de areia dissimuladora, fez todos verem, na face superior do bloco, a assinatura do falecido rei, perto do lingote dinástico, assim autenticado.
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Hello dirigiu-se a Gloannic, levando consigo o bloco verde, colocado intacto junto a ela num canto de sua liteira. Em meio a ovações febris, desencadeadas pelo sucesso da expedição, seu cortejo popular crescia a cada etapa. Foi em vão que os pretendentes, tentando barrá-la no caminho, arengaram seus soldados, que, sabendo da insigne recuperação, vieram todos, fascinados pela glória mágica do lingote, enfileirarem-se por si mesmos sob o estandarte da feliz princesa. Carregada em triunfo até seu palácio, Hello, com o ouro reconquistado, recriou a Maciça e a cingiu um dia publicamente aos berros delirantes de “Viva a rainha!”. Naquela noite, o astro Jouël foi visto brilhando ainda mais do que de costume. A soberana quis a seguir reerguer o país com os milhões da caverna, cuja exploração foi prontamente organizada. Divulgada, a fórmula da grade permitiu a entrada ou a saída de trabalhadores armados de picaretas e, logo, graças ao ouro extraído em massa das profundezas internas do mármore verde, o reino prosperou. Enfim sorridente, e querida por seu povo, Hello cumulou Le Quillec de benefícios. Num elã de exaltação alegre, executou-se uma estátua que, representando a jovem rainha, coroa à fronte, foi colocada como se fosse a de uma santa no fundo de certo espaçoso nicho, sob o qual três altos-relevos coloridos comemoravam a sublime aventura. * *
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Ora, o exame o comprovava, foi esse mesmo nicho que encontraram as mais recentes escavações realizadas pela sociedade de que Canterel era acionista.
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Uma fácil investigação demonstrou que a estátua ausente, quebrada em mil fragmentos, jazia, no momento da descoberta, sob o obscuro abrigo do nicho, projetado para a frente pelo longínquo cataclismo soterrador. O mestre cobiçou essa peça venerável, cuja simples existência conferia à lenda uma curiosa parte de realidade. Dando altos lanços, tornou-se, quando de sua venda, o feliz adjudicante e, instalando-a em seu parque, deixou vazia por seis anos a guarita de pedra, por falta de uma estátua digna, por sua idade e valor, de tão precioso nicho – merecido recentemente pelo antigo e glorioso Federal, que ali recebeu um abrigo contra o vento e a chuva. Após um último olhar lançado sobre a dupla curiosidade, seguimos Canterel, que já começava a se distanciar de nós na alameda ascendente.