Juca Ferreira, Ministro da Cultura do Brasil, e a crise que vive seu país:
“O impeachment é um golpe com aparência de legalidade” Na segunda-feira passada, a comissão parlamentar que investiga supostas adulterações nas contas públicas cometidas pela Presidenta Dilma Rousseff recomendou dar início a seu processo de destituição. A crise, que foi agravada por denúncias de corrupção em todos os partidos políticos, além da profunda contração que vive a economia, ameaça se transformar em um grave problema institucional. No governo, afirmam que a oposição e os meios de comunicação buscam dar legitimidade a um golpe de Estado. Nas últimas semanas, milhares de brasileiros manifestaram seu repúdio à acusação. “Os artistas, os intelectuais, os produtores, os indígenas, e todos os movimentos sociais do Brasil estão mobilizados contra o golpe”, diz Ferreira. A cultura apoia Dilma, afirma com convicção. A primeira coisa que Juca Ferreira, sociólogo de 67 anos, diz do outro lado do telefone, é que tem muito carinho pelo Chile. Seu vínculo com nosso país é antigo. Em 1971, depois de ter sido presidente da União de Estudantes Secundaristas do Brasil, em plena ditadura, chegou a Santiago como exilado. O atual Ministro da Cultura do Brasil e militante do Partido dos Trabalhadores (PT) viveu durante quase dois anos no paradero 14 de Vicuña Mckenna, em La Florida, e depois se mudou para a Suécia e posteriormente para a França. Ferreira conta que a ditadura foi uma das piores etapas de sua vida. Aquelas lembranças voltaram à sua cabeça nos últimos meses, agora que o Brasil vive um instável cenário político, econômico e social: crise econômica, o escândalo da Petrobras, políticos acusados de corrupção, meios de comunicação que pedem a renúncia da Presidenta Dilma Rousseff, passeatas com multidões que pedem sua destituição, contramanifestações que a defendem, e um parlamento que nas próximas semanas deve decidir se a mandatária cometeu irresponsabilidade fiscal, sob o argumento de que teria adulterado as contas públicas.
Este último ponto, que foi utilizado pela oposição para levar a cabo o impeachment contra Rousseff, é talvez o que mais preocupa Ferreira. O Ministro diz ter fundadas suspeitas de que no Brasil a democracia está à beira do colapso. Um colapso diferente de todos que aconteceram no continente nas últimas décadas. Querem dar um golpe de estado na Dilma? Os golpes na América Latina não são mais golpes militares, são golpes jurídicos, com aparência de legalidade, mas na verdade são interrupções do processo democrático. Há dois cenários. O primeiro é que o impeachment da Presidenta aconteça. Se isto ocorrer, o Brasil vai entrar em um período de instabilidade e durante muito tempo vamos viver um conflito incontrolável, porque neste momento uma parte considerável da cidadania está mobilizada contra o golpe. A outra possibilidade é que o golpe não seja vitorioso e que a Presidenta se mantenha no cargo. O Secretário Geral da OEA disse alguns dias atrás que não acreditava que houvesse antecedentes suficientes para acusar a Presidenta. É a isso que o senhor se refere como um “golpe legal”? O impeachment existe em nossa constituição, mas para que isso se dê há certas condições, como o presidente ser responsável por crime na administração, e nesse caso isso não existe. A Presidenta Dilma é uma pessoa honesta e o impeachment é um golpe de Estado com aparência de legalidade. Nas primeiras manifestações contra o governo, havia fotos de pessoas pedindo o apoio dos militares. Isso é muito pequeno, é a extrema direita. São um grupo que não tem maior importância, porque a memória do período da ditadura ainda está viva na América Latina. Quem, então, está por trás dessa tentativa de golpe? O Brasil não é uma ilha, somos parte da América Latina, que está sofrendo uma ofensiva conservadora contra todos os governos populares e democráticos. Isto é parte de uma rearticulação da direita na região, em
aliança com a direita norte-americana, que buscam desestabilizar o continente. Segundo, o Brasil é um país importante, então os interesses da economia aqui são globais. Isso está sendo apoiado pelos setores do capital financeiro, os latifundiários, a elite do Brasil, e a maioria dos meios de comunicação, que são conservadores, que apoiaram o golpe de 1964 e que agora estão fazendo a mesma coisa. Neste momento, uma grande parte da classe média está sendo manipulada para acusar Dilma e o PT como responsáveis pela crise econômica e pela corrupção, mas o povo está reagindo contra isso. Os movimentos sociais, camponeses, trabalhadores, intelectuais, artistas convocaram grandes mobilizações. Apesar da propaganda em massa, há muita gente manifestando-se contra o golpe. Quão divididos estão os brasileiros? Há muito tempo que a sociedade brasileira não estava tão interessada em política como agora. As ruas estão permanentemente cheias de gente manifestando-se em favor da democracia e do Estado de Direito. A direita também tem tido capacidade de mobilizar uma parte da classe média e uma opinião pública despolitizada que aceita as manipulações da mídia. Estamos vivendo um momento de enfrentamento das classes e grupos sociais, contra e a favor da democracia. Como o mundo da cultura tem reagido a esta tentativa de golpe? Os artistas, intelectuais, produtores, indígenas e todos os movimentos sociais do Brasil estão mobilizados contra o golpe. Na segunda-feira passada, tivemos uma manifestação gigantesca no Rio de Janeiro, com o lema “Cultura pela democracia”. Dali sairá o fortalecimento da coesão social do Brasil. Está se produzindo de forma espontânea uma grande frente ampla pela democracia, sem participação dos partidos políticos. Houve algum viés machista nesta discussão? Em uma revista semanal saiu uma capa como se Dilma estivesse tendo uma crise histérica, que é uma imagem muito pejorativa das mulheres, e a fotografia que colocaram era uma em que ela comemorava um gol na Copa do Mundo. Os meios de comunicação têm utilizado o machismo e a
discriminação contra a Presidenta, mas as mulheres têm feito grandes manifestações em favor da democracia e contra a discriminação.
A CORRUPÇÃO Como o Brasil chegou a esta crise? Temos uma confluência de três crises. Primeiro, a econômica. Fomos um dos países mais beneficiados pelo desenvolvimento da China, pela demanda de commodities minerais e agrícolas que o Brasil possui, mas a queda dos preços nos trouxe problemas econômicos muito sérios. Segundo, a crise política. O ex-Presidente Lula foi eleito e depois reeleito, e seu governo trouxe muitas conquistas para toda a população, mas principalmente para os pobres. Depois veio o primeiro mandato de Dilma e em seguida sua reeleição. Nesse momento, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o principal opositor, começou a conspirar contra o governo. Queriam expulsar o PT da cena política e criminalizar Lula, que aparecia como possível candidato para as eleições de 2018. Isso criou um ambiente de instabilidade semelhante ao da Venezuela. E a terceira crise, é que efetivamente há um nível de corrupção muito grande na política brasileira. Há uma cumplicidade da mídia e da oposição para se aproveitar da corrupção e caracterizá-la como se fosse só um problema do governo, quando na verdade a corrupção e a promiscuidade entre o setor empresarial e a política vêm desde a ditadura. Como se chegou a estes níveis de corrupção? A corrupção no Brasil é histórica. Desde que os portugueses chegaram, com Pedro Álvares Cabral, sempre tivemos graves problemas com este tema e nunca o combatemos de verdade: há corrupção na sociedade, no cotidiano social, e em todas as instituições. Este problema precisa ser tratado de forma sistêmica, mas lamentavelmente a corrupção está sendo utilizada como um instrumento político para enfraquecer o governo. O juiz Sérgio Moro, que comanda a operação “Lava Jato”, não tem interesse nos políticos da oposição que estão envolvidos, só se concentra em provar que os petistas são os verdadeiros corruptos do Brasil. Também não há
interesse da oposição em fazer uma grande reforma política para diminuir a possibilidade de corrupção e proibir as doações de campanha do setor empresarial para os parlamentares. Aí começa a promiscuidade que cria este campo fértil para a corrupção. Há uma perseguição do juiz Moro contra Lula? Está cada dia mais claro que se trata de uma perseguição. Ele tem militância contra o PT e não se importa de aparecer muito próximo da oposição. É um juiz que está utilizando a estrutura do Ministério Público para fazer política partidária. Foi montado um espetáculo midiático? O golpe militar utiliza a força, mas o golpe legal precisa de sustentação midiática, e no Brasil os meios de comunicação são conservadores de direita. Eles estão fazendo o trabalho sujo de manipular a opinião pública para que o golpe tenha a aparência de legalidade. A nomeação de Lula como Ministro tensionou a relação com o poder judiciário? Lula tem direito de ser ministro, ele não é réu em processo algum. O juiz Moro tem investigado possíveis benefícios que Lula pode ter recebido depois de ter saído do governo, mas não há nenhum processo contra ele. Então, não há ilegalidade em sua nomeação. Lula é muito importante para reorganizar o governo, porque a Presidenta Dilma está precisando dos melhores quadros políticos da esquerda para sair da crise. No Chile acontece algo muito parecido com doações ilegais que parte da esquerda chilena recebeu de alguns empresários. Que autocrítica deve fazer a esquerda latino-americana com relação a estes casos de corrupção? Uma autocrítica profunda. Não há possibilidade de um partido democrático popular se muitos militantes estão vivendo na promiscuidade da corrupção. Os partidos de esquerda no Brasil adotaram a metodologia da direita, que sempre usou a corrupção para o enriquecimento e para a perpetuação política.
A esquerda está em um processo de retrocesso? Não, é um ciclo político. O ciclo político que marcou a América Latina nos últimos 20 anos está superado e é preciso construir um novo ciclo daqui pra frente. É preciso fortalecer a democracia em nossos países, superar o problema da corrupção, fortalecer a participação política, incentivar um desenvolvimento econômico que nos tire da dependência, e aprofundar a sustentabilidade de nosso continente. A crise econômica que vivemos atualmente se deve ao fato da América Latina ser praticamente dependente de commodities, e por isso é necessário diversificar nossas economias, deixar de depender da fabricação e produção de matérias primas e entrar nas economias com valor agregado, impulsionar a economia criativa. A América Latina tem que deixar de ser um território marcado pela colonização. Tradução: Gustavo Pacheco