MIL Magazine Issue nº2

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MIL MAGAZINE Director Director Gonçalo Riscado Editora Editor-in-chief Mariana Duarte Coordenação Coordination Inês Henriques Autores Authors Aicy Ray Carin Abdulá Di Candido Hugo Barros Jota Mombaça J. Carlos Lara Liz Pelly Michael Connor Rodrigo Ribeiro Saturnino Rute Correia Victoria Ruiz Design e Paginação Design & Pagination Sara Luz Ilustração Illustration Angelina Velosa

MIL FESTIVAL Tradução Translation Jéssica Oliveira & Bruna Barros Marta Gamito Naomi Teles Fazendeiro Fotografias Photographs Adriano Ferreira Borges Ana Viotti Beatriz Felício Carlos Brum Melo Hugo Barros João Lima Luciano Viana yourdanceinsane Gráfica Print Shop Finepaper Nº de exemplares Nº copies 2.000 Edição Edition CTL Cultural Trend Lisbon & Gato Loco Productions

Direcção Direction Gonçalo Riscado Fernando Ladeiro-Marques Direcção Artística Artistic Direction Pedro Azevedo Coordenação da Produção Production Coordination Daniela Leitão Coordenação da Programação da Convenção Convention Programme Coordination Inês Henriques Teresa Pinheiro Coordenação de Comunicação e Conteúdos Communication and Contents Coordination Inês Henriques Ana Viotti Consultor de Projecto Project Consultant Fabien Miclet

SUPPORTERS

INNOVATION PROGRAMME

Co-funded by the Creative Europe Programme of the European Union


EDITORIAL PT O FUTURO DA CULTURA É O FUTURO DO AO VIVO (MAS NÃO SÓ) Anunciaram o fim dos encontros nas ruas, nos bares, nas salas de concertos, nos teatros, nos museus. O ao vivo metamorfoseou-se, digitalizou-se. O encontro com as pessoas e com a cultura virou-se para os ecrãs. Estranhou-se e, até certo ponto, entranhou-se. Há muito que o digital é destino inevitável, mas agora que se tornou paragem obrigatória, será mesmo por aqui o futuro? No segundo número da revista MIL pensamos a transformação digital, analisamos os seus vários prós e contras e quebra-cabeças. Olhamos para a inevitabilidade do hibridismo entre o presencial e o online. Questionamos quem detém o espaço digital e quem está a tentar democratizá-lo nesta era do capitalismo informacional, num momento-chave em que se assiste à (geo)politização da tecnologia. Propomos começar de novo aquilo que parece já não ter solução: o streaming . Reflectimos sobre como tornar a indústria musical num terreno mais justo para os trabalhadores e como estabelecer novos diálogos entre a academia e as artes, sem esquecer as pontes com o digital. Mostramos como o espaço virtual é terreno fértil para a violência (racial, de género, de classe), para a reprodução de desigualdades, para o surgimento de forças populistas. Mas, ao mesmo tempo, procuramos as comunidades e artistas que estão em contramão: na internet, sim, mas também nas ruas, nos bairros, em projectos que fazem cidade, em parcerias como a de Jota Mombaça e Aicy Ray que, através do afrofuturismo, nos apresentam tecnocorpos onde o ancestral e a ficção visionária se misturam. O avanço do digital veio para ficar. Neste momento, temos mais perguntas do que respostas, mas recuperemos as ligações ao vivo. Aquelas com toque, cheiro, com pessoas em cima de um palco e junto dele. Há um sentimento vital de pertença, proximidade e congregação que não se replica noutro lugar, venha o digital que vier. EN THE FUTURE OF CULTURE IS THE FUTURE OF LIVE (BUT NOT ONLY) They announced gatherings were over in the streets, at the bars, music venues, theatres, museums. Live itself was transformed, digitalised. Meetings with other people and with culture turned to the screens. It was weird until, to some point, bowed in. Digital has long been an inevitable destination, but now that it became a mandatory stop, is this really the future? In MIL magazine’s second issue, we think about digital transformation, analyse its many pros, cons and conundrums. We look at the inevitable in-person and online hybridity. We question who owns digital and who’s trying to democratise it in the so-called era of information capitalism, in such a pivotal moment where we are witnessing technology being (geo)politicised. We propose starting from scratch what seems to have no solution at all: streaming. We reflect on how to make the music industry a fairer space for its workers and how to establish new dialogues between the academia and the arts, not forgetting the bridges with digital. We show how virtual space is fertile ground for violence (towards race, gender and class), for the reproduction of inequalities and the rise of populism. But we look at the communities and artists that are going against the tide: online, of course, but also on the streets, in the neighbourhoods, in projects that make cities, in collaborations such as the one between Jota Mombaça and Aicy Ray that, through afrofuturism, show us technobodies where the ancestral is mixed with visionary fiction. The breakthrough of digital has come to stay. Right now, we have more questions than answers, but let’s win back live connections. Those that come with touch and smell, with people on top of a stage and near them. There’s a vital feeling of belonging, togetherness and congregation that can’t be reproduced anywhere else, no matter how digital it gets.

INSTITUTIONAL PARTNERS


CONTEÚDOS 04 Transformação digital na cultura: onde estamos e para onde vamos? Digital transformation in culture: where are we, and where are we going? POR / BY Mariana Duarte . TRADUÇÃO / TRANSLATION Naomi Teles Fazendeiro

26 Liberdade, partilha e resistência: os três sinónimos de comunidade Freedom, sharing and resistance: the three synonyms of community POR / BY Rute Correia . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

38 Li eh nós zona, Zambujal, eh sabi TEXTO E ENSAIO FOTOGRÁFICO POR / TEXT AND PHOTO ESSAY BY Hugo Barros . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

50 Para onde ir agora? Where to now? POR / BY Carin Abdulá . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

52 Há diálogo entre arte marginal e a academia? Is there a dialogue between marginal art and the academy? POR / BY Di Candido . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

55 Porque somos donos dos nossos meios de produção Because we own our means of production POR / BY Victoria Ruiz . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito


CONTENTS 58 O nascimento de Urana The birth of Urana POR / BY Jota Mombaça & Aicy Ray . TRADUÇÃO / TRANSLATION Jéssica Oliveira & Bruna Barros

62 Streaming socializado: em defesa do acesso universal à música

Socialized streaming: a case for universal music access POR / BY Liz Pelly . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

70 Um outro novo mundo. Os NFTs já não são apenas para gatos. O que significam para a arte digital? Another new world. NFTs aren’t just for cats anymore. What do they mean for digital art? POR / BY Michael Connor . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

76 Esse algoritmo é racista? Is this algorithm racist? POR / BY Rodrigo Ribeiro Saturnino . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

82 As redes sociais e os novos antros do extremismo político Social media and the new dens of political extremism POR / BY J. Carlos Lara . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito

88 Difícil de acompanhar Hard to keep up POR / BY Inês Henriques . TRADUÇÃO / TRANSLATION Marta Gamito


TRANSFORMAÇÃO DIGITAL NA CULTURA onde estamos e para onde vamos?

DIGITAL TRANSFORMATION IN CULTURE where are we, and where are we going? POR / BY Mariana Duarte


Os caminhos são múltiplos e as respostas estão a ser ensaiadas, com todas as complexidades e potencialidades, perigos e receios que isso implica. Seja na indústria da música, nas instituições culturais, nas estruturas que há muito fazem do digital o seu viveiro. Mas uma coisa é certa: é preciso proteger o presencial, o palco, o corpo-a-corpo.

The roads are many and the answers are in progress, with all the complexity and potential, danger and reluctance entailed therein. This is happening in the music industry, in cultural institutions, and on platforms that have long since made their beds in the digital world. But one thing is certain: we must protect the in-person, the stage, the face-to-face.


TRA N SFORMA ÇÃ O DI GI TA L N A CULT URA

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PT Com a pandemia da Covid-19, e a respectiva migração de múltiplas experiências e vivências para o plano digital, várias dimensões do nosso quotidiano passaram a ser determinadas pelo online de uma forma ainda mais intensa, praticamente inescapável. Um dos territórios onde isso aconteceu de maneira mais explícita - com entusiasmo e receio, inventividade e aborrecimento em doses iguais - foi o das artes e fruição cultural. De repente, com tudo de portas fechadas, com artistas e programadores em casa, a cultura passou a estar maioritariamente no mundo virtual, o que simultaneamente trouxe à tona e acelerou um processo já em curso: a transição digital da produção artística e, por arrasto, de um ecossistema financeiro, curatorial, social, afectivo que a sustenta e que está a ser reconfigurado neste outro plano, em moldes ainda pouco consolidados, alguns deles obscuros e armadilhados, mas definitivamente em fase de experimentações e possibilidades várias.

EN Given the COVID-19 pandemic and the resultant migration of various experiences and events to the digital realm, numerous aspects of our daily lives suddenly became more intensely - practically unavoidably - determined by the internet. One of the areas in which this was most explicit – with enthusiasm and reluctance, inventiveness and boredom in equal measures – was that of the arts and the enjoyment of culture. Suddenly, with all doors closed, artists and programmers at home, culture moved almost entirely to the virtual realm, which simultaneously brought to the fore and accelerated a process that was already under way: the digital transition of artistic production, dragging behind it its own sustaining financial, curatorial, social and emotional ecosystem, which is also being reconfigured for this new digital stage in as-of-yet fragile moulds, some obscure and full of traps, but definitively in the experimentation phase of multiple possibilities.

Esta transição não se materializa numa substituição do presencial pelo digital, como vimos e vemos pela continuidade de actividades culturais em espaços físicos ainda que com uma série de limitações e percalços - , à medida que as restrições sanitárias foram, e vão sendo, aliviadas. Mas sim naquilo que é o grande hot topic, e dilema, do momento: uma realidade híbrida, uma coexistência entre os dois mundos, sobretudo na música, nas artes performativas, nas artes visuais e na arte multimédia, que já andava a ser construída e ensaiada, porém sem a projecção e a abrangência registadas nos últimos tempos. Em Portugal, onde o debate sobre estes tópicos ainda é prematuro, encontramos algumas instituições culturais que já assumiram levar avante esta complementaridade.

This transition does not constitute a digital substitution of the in-person experience, as we have seen and continue to see in the continuation of live cultural activities – although still with a set of limitations and obstacles - as health restrictions are lifted. Rather, it is the great hot topic, and dilemma, of the moment: a hybrid reality, a coexistence between two worlds, above all in music, performing arts, visual arts and multimedia art, which was already under construction and being tested, yet without the reach and scope recorded in recent times. In Portugal, where discussion of such topics is still young, we find some cultural institutions that have already taken it upon themselves to move forward with this complementarity.

O Teatro Municipal do Porto, por exemplo, vai passar a ter dupla existência, no digital e no presencial, depois de uma série de experiências ao longo da última temporada, incluindo uma edição mista do DDD - Festival Dias da Dança.

Teatro Municipal do Porto, for example, is going to lead a double existence, both digital and in-person, following a series of experiences over the past season, including a hybrid edition of DDD – Festival Dias da Dança.

O gnration, em Braga, lançou um novo ciclo de programação com periodicidade mensal, o Órbita, pensado exclusivamente para o formato online e alimentado por obras encomendadas de raiz onde são estabelecidas pontes com o programa presencial, cruzando música, arte e tecnologia, adianta o director artístico Luís Fernandes. “Estamos numa fase que deu, dá e dará origem a utilizações menos felizes da tecnologia, mas acredito que também abrirá caminho para coisas super interessantes. Estamos a aprender a lidar com o digital como meio de exposição de conteúdos artísticos e como meio de criação.”

gnration, in Braga, has launched a new monthly programming cycle, Órbita, designed exclusively for an online format and fed by works commissioned from scratch, building bridges with the live programme, spanning music, art and technology, says the artistic director, Luís Fernandes. “We’re in a phase that has given rise to, continues to and will still give rise to less fortunate uses of technology, but I believe it will also pave the way for super interesting things. We’re learning to handle digital as both a means of displaying artistic content and a means of creation.”


DI GI TA L TRA N SFORMATI ON I N CULT URE

“O hibridismo veio para ficar, sem dúvida”, declaram Guilherme Marques e Natália Machiavelli do MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. A pandemia fez com que a equipa do festival brasileiro concretizasse uma ideia que já andava a germinar nas suas cabeças há vários anos: uma plataforma digital que funcionasse como um tentáculo do evento e onde coubesse o seu acervo, desde espectáculos filmados a cenas de bastidores e entrevistas com criadores, mas também como uma extensão reforçada da vertente pedagógica do projecto, com seminários, aulas abertas, oficinas, olhares críticos. Assim nasceu a MIT+. Depois de uma experiência-piloto no ano passado, transmitindo online os espectáculos que não puderam subir a palco na recta final do festival por causa do raiar da pandemia, esta plataforma foi lançada oficialmente em Março. Continua activa, com acesso gratuito e pondo em prática políticas de acessibilidade como a linguagem gestual e a audiodescrição (políticas essas que se têm tornado mais comuns nas programações online). Para Novembro está previsto uma pequena mostra com espectáculos inéditos brasileiros e uma retrospectiva de peças, também nacionais, das três últimas edições do evento.

“Hybridism is here to stay, no doubt about it”, states Guilherme Marques and Natália Machiavelli from MITsp – São Paulo International Theatre Festival. The pandemic led the Brazilian festival team to foment an idea they’d been mulling over for a few years: a digital platform that works as a component of the event and where its own archive is kept, from filmed performances to behind-the-scenes shots and interviews with creators, but also as a reinforced extension of the project’s pedagogical side, with seminars, open classes, workshops and critical perspectives. Thus MIT+ was born. Following last year’s trial run, broadcasting shows online that couldn’t be staged during the final stretch of the festival because of the emerging pandemic, this platform was officially launched in March. It remains active and free to access, employing accessibility policies such as sign language and audio description (policies that have become more common in online programming). For November, there’s a small festival lined up with new Brazilian shows and a look back at national pieces from the last three editions of the event.

Sem ter como objectivo “fazer um festival virtual”, até porque “o teatro no presencial é insubstituível”, Guilherme Marques e Natália Machiavelli querem fazer crescer esta plataforma. “Eu e a Natália estamos conversando sobre a possibilidade de ter um banco de espectáculos - espectáculos históricos, que quase já não circulam - que o público possa ver de forma acessível e que as companhias possam ser remuneradas por isso”, revela Guilherme, criador do festival juntamente com Antonio Araujo. “A plataforma terá de ficar muito mais completa para podermos passar a cobrar uma mensalidade, por exemplo, mas teremos sempre conteúdos gratuitos”, informa Natália, artista multimédia e responsável pela plataforma. “Por outro lado, a ideia é também criar uma ferramenta de busca que seja útil para pesquisadores do teatro e académicos, ao mesmo tempo que o público não especializado consiga navegar por várias temáticas”, acrescenta. “Eu vejo a MIT+ com o mesmo peso em termos de cultura e pedagogia.”

Without wishing to “create a virtual festival”, because “live theatre is irreplaceable”, Guilherme Marques and Natália Machiavelli want to see this platform grow. “Natália and I are in conversation about the possibility of having a show bank – past shows, which are almost out of circulation – that the public can access easily and companies can receive compensation for it”, reveals Guilherme, creator of the festival along with Antonio Araujo. “The platform would have to be much more complete to be able to charge a monthly fee, for example, but we’ll always have free content”, states Natália, multimedia artist in charge of the platform. “On the flipside, there’s also the idea of creating a search tool that would be useful for theatre research and academics, while the general public could browse by topic”, she adds. “I consider MIT+ to be as significant in terms of culture and pedagogy.”

Em relação a estruturas e eventos culturais do circuito institucional, que gozam de estabilidade financeira, é certo que a entrada no digital passou muito pela banal e pouco recompensadora transmissão de espectáculos, gravados ou em live streaming . Contudo, aquilo que alguns conseguiram trazer de minimamente diferenciador foi, por um lado, o tratamento online e a disponibilização ao público dos seus arquivos (a Culturgest criou uma biblioteca virtual através da qual se tem acesso a micro-sites temáticos, vídeos de conferências e espectáculos, áudios, fotografias ou documentação), e, por outro, a aposta redobrada, ou mesmo triplicada, em actividades com um pendor altamente pedagógico e reflexivo que cruzam as artes com a produção e a partilha de pensamento em vários espectros (como aconteceu no Teatro do Bairro Alto).

With regard to cultural structures and events of an institutional circuit, which enjoy financial stability, their entry into the digital world manifested as the mundane and unrewarding broadcasting of recorded or live streamed shows. And yet, what some managed to bring with notable difference was, on the one hand, online treatment and the availability of their archives to the public (Culturgest created a virtual library for accessing thematic micro-sites, videoconferences and shows, audio files, photographs and documents), and, on the other hand, double or even triple the commitment to activities of a highly pedagogical and reflexive inclination, which combine the arts with production and shared thought across various spectrums (as was the case for the Teatro do Bairro Alto).

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Prós e contras

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Pros and cons

“Com algumas excepções, as instituições culturais sempre foram conservadoras no que toca à internet. Ou seja, sempre a utilizaram como um órgão de comunicação, uma vitrine, e com a pandemia ela teve de passar a ser a plataforma produtora e apresentadora de conteúdos”, observa o português João Fernandes, director artístico do Instituto Moreira Salles (IMS), que se desdobra em três unidades no Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Poço de Caldas). Tem sido um dos bons exemplos de como reperspectivar as actividades de um museu/centro/organização cultural no plano online, a par de entidades como o New Museum (EUA), Centro Cultural São Paulo (Brasil), Kiasma (Finlândia), FACT Liverpool (Inglaterra) ou a plataforma LUX (Inglaterra), pioneira na ponte entre o físico e o digital. “É fundamental, hoje, uma instituição ser produtora de conteúdo cultural e artístico online e não apenas uma transmissora ou retransmissora. Essa é a grande transformação que está a acontecer nas instituições culturais e julgo que não vai parar.” Para o ex-director artístico do Museu de Serralves e ex-subdirector do Reina Sofía, esta transformação terá de ser manobrada sempre numa dinâmica “de enriquecimento recíproco ”entre o digital e o presencial - “porque isso cria maiores possibilidades de riqueza de conhecimentos” -, sublinhando que a vida online ao longo deste período “mostrou-nos muita coisa”.

“With a few exceptions, cultural institutions have always been conservative regarding the internet. That is to say, they’ve always used it as a means of communication, a window, but the pandemic meant that it had to become the platform for producing and presenting content”, observes Portuguese João Fernandes, artistic director of the Instituto Moreira Salles (IMS), which has three units in Brazil (São Paulo, Rio de Janeiro, Poço de Caldas). It has provided one of the good examples of how to refocus a museum’s/ cultural centre’s activities for moving online, on a par with entities such as the New Museum (USA), Centro Cultural São Paulo (Brazil), Kiasma (Finland), FACT Liverpool (England) and the LUX platform (England), a pioneering bridge between the physical and digital realms. “These days it’s fundamental for an institution to produce online cultural and artistic content and not simply broadcast or retransmit it. That’s the big transformation taking place in cultural institutions, and I don’t think it will end.” For the former artistic director of the Serralves Museum and deputy director of Reina Sofía, this transformation will have to be negotiated always with a “reciprocally enriching” dynamic between digital and in-person – “because this will bring about greater possibilities for enriching knowledge” – highlighting that the online way of life over this period “has shown us a great deal”.

“A pandemia confrontou as instituições com a sua forma de estar, de trabalhar, de agir, e esta quase ignorância e este desdém em relação às culturas online têm de ser do passado.”

“The pandemic confronted institutions’ way of being, working, behaving, and this almost ignorance and disdain for online cultures must belong to the past.”

Não é por acaso que o debate sobre os museus e as galerias enquanto espaços elitistas, para os mesmos de sempre (sejam estes artistas, curadores e espectadores) tem vindo a ganhar tracção no último ano e meio, em grande medida turbinada por quem esteve e está na dianteira desta discussão: criadores, investigadores e outros dinamizadores da arte digital, agora com maior visibilidade. “A acessibilidade da arte digital fora do cubo branco tem mostrado que há novos públicos a que as galerias, museus e institutos de arte não conseguem chegar nem conectar-se com. Isto é algo que não podem ignorar”, considera Zaiba Jabbar, artista multimédia, curadora independente e fundadora da HERVISIONS, agência curatorial online e offline centrada no cruzamento entre arte, tecnologia e cultura, e orientada para mulheres e pessoas não binárias.

It is not by chance that the debate on museums and galleries as elitist spaces, always for the same people (whether artists, curators or spectators), has gained traction over the past year and a half, spearheaded in large part by those who were and are at the forefront of the conversation: creators, researchers and other digital art enthusiasts, now with greater visibility. “The accessibility of digital art outside the white cube has highlighted that there are new audiences whom galleries, museums and art institutes are not reaching or connecting with. This is something they can’t ignore”, considers Zaiba Jabbar, moving image artist, independent curator and founder of HERVISIONS, a curatorial agency both online and offline that focuses on the crossover between art, technology and culture, aimed at women and non-binary people.

“Enquanto mulher racializada da classe trabalhadora, eu nunca tive a sorte de me poder considerar artista num sentido tradicional. Por isso é que comecei a olhar para as margens, para estas práticas multidisciplinares e antidisciplinares, e quis explorar a arte nos novos media e nas redes sociais”, continua Jabbar. “A mudança em direcção ao digital,

“As a working class woman of colour I didn't feel lucky to ever consider myself an artist in a traditional sense. That’s why I started looking at the margins, to these multidisciplinary and anti-disciplinary practices, wanting to explore new media art or art on social media”, Jabbar continues. “The shift towards digital,


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intensificada pela pandemia, foi atiçada por artistas digitais que já existiam em comunidades de nicho, a par do apelo a artistas que trabalham em disciplinas mais tradicionais para começarem a explorar este tipo de espaços.” Se, por um lado, há uma maior democratização nestas plataformas, este novo foco de atenção pode adubar terreno para replicar e perpetuar hierarquias e desigualdades do IRL, considera a curadora. E isso mete ao barulho a nova economia criativa que se tem vindo a desenvolver no online, ancorada, em parte, nas promessas da Web3, uma nova era da internet em teoria mais descentralizada e horizontal [ver a secção Di�ícil de Acompanhar desta revista].

accelerated due to the pandemic, really has been ignited by the artists that were existing in the niche community, coupled with a new awareness to artists working in more traditional disciplines that they should be exploring this type of space. ” If, on the one hand, these platforms are more democratised, this new focus could lay the groundwork for replicating and perpetuating IRL hierarchies and inequalities, the curator proposes. And that sets in motion the new creative economy that has been brewing online, anchored in part to the promises of Web3, a new era of the internet, in theory more decentralised and horizontal [see the Hard to Keep Up section of this magazine].

S4RA, artista digital com base em Lisboa, assinala que “o obstáculo do digital em aceder ao circuito mainstream da arte” tem-se devido, em parte, “à dimensão imaterial e à dificuldade em monetizar estas obras, que muitas vezes estão acessíveis online e daí não terem estatuto de propriedade/ autenticidade”. Nota que os NFTs [ ver artigo de Michael Connor na página 70 ] vieram “resolver parte deste problema, mas acentuar e perpetuar ainda mais o desnivelamento entre quem capitaliza e os artistas que alimentam a blockchain na esperança do cripto milagre”.

S4RA, a Lisbon-based digital artist, points out that “the main obstacle for digital in reaching the mainstream art world” has in part been “its immaterial dimension and the difficulty in monetising these works, which are often available online and therefore have no ownership/authenticity statute.” S4RA notes that the NFTs [see the analysis article by Michael Connor on page 70] came “partly to solve that problem, but accentuate and perpetuate even further the imbalance between those who capitalise on and the artists that feed blockchain in the hope of a crypto-miracle”.

“A dinâmica de mercado é muito semelhante e desmoralizadora na perspectiva de um futuro próximo sustentado num sistema descentralizado. No entanto, parece ser o passaporte para a validação da entrada no mercado da arte porque materializa um suporte que pode finalmente ser comercializado”, aprofunda S4RA. Zaiba Jabbar também partilha da visão de que há vários flancos e possibilidades em confronto. “O mercado dos NFTs ainda é muito dominado pelos bros da tecnologia, mas acredito, ao mesmo tempo, que há uma oportunidade gigante para que os artistas digitais possam monetizar a sua força de trabalho e o valor do digital.” Do lado das instituições culturais mais tradicionais, estas movimentações poderão ser também uma ocasião para pensar o digital não só enquanto espaço de exposição, criação e promoção, mas também como ferramenta de monetização. Estamos, portanto, num momento em que está tudo em aberto. Para o bem e para o mal, entre múltiplos prós e contras.

“The market dynamic is very similar and demotivating from the perspective of a near future sustained within a decentralised system. However, it seems to be the passport to validating art’s entry into the market, because it materialises support that might eventually be commercialised”, S4RA continues. Zaiba Jabbar also shares the view that there are various aspects and possibilities to be confronted. “The market of NFTs is still dominated by tech bros, but I believe there’s a huge opportunity for digital artists to monetise on the labour and the value of digital.” As for more traditional cultural institutions, these movements might also be a chance to view digital as not just a space for displaying, creating and promoting, but also as a monetisation tool. We are at a point where everything’s on the table. For better or worse, among the many pros and cons.

“Embora se esteja a assistir a uma fetichização em torno dos valores astronómicos de vendas sem precedentes, a espelhar o lado menos bom do mercado IRL, também se potenciou o aparecimento de plataformas geridas por artistas e o desenvolvimento de criptomoedas mais ecológicas”, refere S4RA. “Outros modelos foram adoptados em espaços virtuais como o Cryptovoxels, onde

“Although witnessing a fetishization around the unprecedented, astronomical sale figures, which reflect the less positive side of the IRL market, we also have the appearance of platforms managed by artists and the development of more ecological cryptocurrency”, mentions S4RA. “Other models have been adopted in virtual spaces such as Cryptovoxels, where you can

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é possível adquirir uma galeria virtual e transaccionar NFTs ou videojogos em que se ganha tokens e se compra assets em criptomoeda. Da necessidade de criar exibições online desenvolveram-se plataformas virtuais, como a New Art City, geridas por artistas de forma a serem o mais inclusivas possível e acessíveis para quem quiser ter o seu próprio espaço navegável online no Mozilla Hubs, VRChat ou AltspaceVR. Deste metaverso, ou processo de replicar a realidade através de meios digitais, ainda há espaço e potencial de expansão em ambos os sentidos.”

acquire a virtual gallery and trade NFTs or video games in which you win tokens and buy assets in cryptocurrency. Out of the need to create online exhibitions, virtual platforms have been developed, such as New Art City, managed by artists in order to be as inclusive as possible and accessible to anyone who wants to have their own navigable online space on Mozilla Hubs, VRChat or AltspaceVR. With this metaverse, or process of replicating reality via digital means, there is still space and possibility for expansion in both senses.”

Num meio em que o espírito de comunidade é reivindicado e nutrido com especial cuidado [ver reportagem Liberdade, partilha e resistência ], tanto S4RA como Zaiba Jabbar defendem que as pontes entre o digital e o presencial devem ser arquitectadas sem antagonismos, de modo a permitir uma intersecção de várias identidades e backgrounds nas duas dimensões e evitar que se caia numa mera virtualização da cultura. Nesse sentido, S4RA - neste momento a colaborar com uma equipa interdisciplinar numa performance ancorada “num formato híbrido entre o real/material e o virtual em palco”, a estrear num teatro de Lisboa - sublinha que é preciso apostar na “criação de projectos multidisciplinares, ou transmedia, que se estendam ao virtual e dêem espaço a outras vozes que são também outros contextos”. Entre vários exemplos, destaca o videojogo/ arquivo online interactivo Black Trans Archive, de Danielle Brathwaite-Shirley.

In an environment where community spirit is claimed and nourished with special care [see the article Freedom, sharing and resistance ], both S4RA and Zaiba Jabbar argue that bridges must be built between digital and in-person without antagonising, to enable the intersection of various identities and backgrounds in both dimensions and avoid falling into the mere virtualisation of culture. In this vein, S4RA – currently collaborating with an interdisciplinary team on a performance anchored “in a hybrid format between the real/material and the virtual on stage”, to be premiered at a theatre in Lisbon – emphasises the need to invest in the “creation of multidisciplinary or transmedia projects, which extend to the virtual and create space for other voices that are also other contexts”. Among various other examples, S4RA highlights the interactive video game/online archive Black Trans Archive, by Danielle Brathwaite-Shirley.

Eventos no digital e o dilema da democratização

Events in the digital dimension and the dilemma of democratisation

Dentro do circuito musical, o sector mais afectado pela pandemia, festivais como o Rewire, Unsound, No Ar Coquetel Molotov e CTM (que em 2022 terá um modelo híbrido) montaram edições online em que as conexões entre tecnologia, música e as potencialidades artísticas e comunitárias do digital foram trabalhadas diligentemente. Fizeram-no através de concertos transmedia, performances audiovisuais colaborativas, ambientes 3D, projectos interactivos, workshops, programas de mentoria, clubbing em plataformas virtuais, filmes, videoarte, programas de rádio e conversas que ecoaram as transformações e experiências em curso na indústria musical nesta transição digital. Ao mesmo tempo, abrindo espaço para reflectir e debater em conjunto sobre as implicações sociais, políticas, culturais e psicológicas da pandemia.

Within the music world, the cultural sector most affected by the pandemic, festivals such as Rewire, Unsound, No Ar Coquetel Molotov and CTM (which in 2022 will take a hybrid form) put together online editions in which the interconnections between technology, music and the artistic and community potential of going digital were diligently elaborated. They did this via transmedia concerts, collaborative audio-visual performances, 3D atmospheres, interactive projects, workshops, mentoring programmes, virtual clubbing, films, video art, radio programmes and conversations that echoed the transformations and experiences taking place in the music industry during this digital transition. At the same time, opening up space for joint reflection and debate on the social, political, cultural and psychological implications of the pandemic.


DI GI TA L TRA N SFORMATI ON I N CULT URE

Mundo 3D criado pelo festival brasileiro No Ar Coquetel Molotov em parceria com a banda Rosabege 3D world created by Brazilian festival No Ar Coquetel Molotov in partnership with the band Rosabege

“Na primeira edição do Coquetel Molotov.EXE fizemos uma programação que durou 12 dias com oficinas, masterclasses , uma festa surpresa inaugurando a plataforma SpatialChat e um dia de música com quatro ‘palcos’ imersivos pelo Zoom e salas surpresa”, conta a directora Ana Garcia. “Mais de quatro mil pessoas participaram. Foi óptimo receber mensagens de pessoas de todo o Brasil falando como foi incrível a primeira experiência no Coquetel Molotov.”

“In the first edition of Coquetel Molotov.EXE, we created a 12-day programme with workshops, masterclasses, a surprise launch party for the platform SpatialChat, and a day of music with four immersive ‘stages’ via Zoom and surprise rooms”, recounts director Ana Garcia. “Over four thousand people participated. It was brilliant receiving messages from people all over Brazil talking about how incredible their first experience of Coquetel Molotov was.”

Sem querer simular “o físico”, mas mantendo “a identidade do festival”, foram criados outros desdobramentos do evento, como a série audiovisual Coquetel Molotov - Etapa Minas Gerais, que deu protagonismo a artistas da cena contemporânea local, e o segundo round do Coquetel Molotov.EXE, em formato revista digital, com performances musicais gravadas, oficinas, textos, trabalhos de fotografia, podcasts ou videoarte de artistas pernambucanos (descobrir em coquetelmolotov.com.br.exe). “Este projecto nasceu de um edital que foi aberto para socorrer a cadeia cultural local”, explica Ana Garcia. “Focamo-nos em obras inéditas e priorizamos novos criadores: muitos deles se lançaram durante a pandemia, não podendo circular pelos palcos locais e também não podendo chamar a atenção de um festival online padrão”, observa. “De certa forma, isto reverbera no princípio de um bom festival de música, que é ser palco para novos nomes.”

Without intending to simulate “the physical”, but maintaining “the festival’s identity”, other offshoots of the event were created, such as the audio-visual series Coquetel Molotov – Etapa Minas Gerais, led by artists from the local contemporary scene, and the second round of Coquetel Molotov.EXE, in the form of a digital magazine, with recorded musical performances, workshops, texts, photography, podcasts and video art by Pernambucan artists (discover more at coquetelmolotov.com.br/exe). “This project arose from a call for proposals that was opened to help the local cultural chain”, explains Ana Garcia. “We focus on unedited works and give priority to new creators: many of them were launched during the pandemic, so were unable to do the rounds on local stages, nor attract the attention of a standard online festival”, she observes. “In some way, this reflects the beginning of a good music festival; a stage for new names.”

Marina Sena e Nath Rodrigues na série audiovisual Coquetel Molotov - Minas Gerais, filmada no jardim botânico do Instituto Inhotim / Marina Sena and Nath Rodrigues in the audio visual series Coquetel Molotov - Minas Gerais, recorded at Inhotim Institute’s botanical garden / @ Luciano Viana

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Coletivo Afrobapho / @ João Lima

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Também com o objectivo de estimular os criadores e apoiá-los financeiramente numa fase particularmente dramática - não só devido ao abismo sociopolítico do Brasil agravado pela crise pandémica, mas também por causa do desmonte da cultura levado a cabo pelo governo de Bolsonaro -, o IMS lançou, em Abril do ano passado, o programa Convida, comissionando novas obras para o seu site de 171 artistas e colectivos das periferias das grandes cidades brasileiras e de regiões fora do eixo São Paulo-Rio. Ventura Profana, Leona Vingativa, Grace Passô, Takumã Kuikuro, Ajeum da Diáspora ou o Coletivo Afrobapho foram alguns dos contemplados. “Partindo dos nossos saberes e experiências na instituição, e tendo em conta que o IMS programa e tem acervos nas áreas do cinema, fotografia, iconografia, música, literatura, mais a programação de artes visuais, juntamos todas as áreas, inclusive a educativa, para construir um programa online que fosse um incentivo aos artistas e que se pautasse por critérios de diversidade racial, de género, de orientação sexual e também regional”, contextualiza João Fernandes. “Se nós tivéssemos de nos movimentar para ir ao encontro de todos deles, em tantos lugares, isso teria sido impossível sem o online.”

Also with the objective of stimulating creators and supporting them financially during these particularly trying times - not just because of Brazil’s socio-political gulf, worsened by the pandemic, but also the cultural dismantling brought to a head by Bolsonaro’s government – the IMS launched the Convida programme in April last year, commissioning new works for its site from 171 artists and collectives from the outskirts of large Brazilian cities and from regions outside the São Paulo-Rio highway. Ventura Profana, Leona Vingativa, Grace Passô, Takumã Kuikuro, Ajeum da Diáspora and Coletivo Afrobapho were some of those considered. “Starting from our knowledge and experiences within the institution, and taking into account that the IMS creates programmes and collections in the areas of cinema, photography, iconography, music, literature, plus the programming of visual arts, we collected all those areas, including education, to put together an online programme that incentivised artists and that was guided by diversity criteria in race, gender, sexual orientation and region”, explains João Fernandes. “If we’d had to travel to find all of them, in so many places, that would’ve been impossible offline”.

Por cá, festivais de música como o Boom e o Semibreve ensaiaram, de maneiras distintas, uma presença no digital. No caso do primeiro, a estratégia passou essencialmente por “pegar no lado do Boom associado ao conhecimento e dar ferramentas às pessoas para lidarem com a questão pandémica”, diz Artur Mendes, co-manager do evento. No site do festival é possível encontrar um conjunto de rubricas, entre elas a série de vídeos Boom Toolkit for Covid-19, em que promotores, artistas, terapeutas, cientistas e outros profissionais de diversas valências reflectem sobre temas como a saúde mental na indústria da música (e fora dela), a sustentabilidade e a biodiversidade

As for here, music festivals such as Boom and Semibreve tested their digital presence in distinct ways. The former’s strategy was essentially “to pick up on the side of Boom associated with knowledge and to provide tools for people to deal with the issue of the pandemic”, says Artur Mendes, co-manager of the event. You can find a set of headings on the website, among which is the video series Boom Toolkit for COVID-19, where promoters, artists, therapists, scientists and various other professionals reflect on topics such as mental health in the music industry (and beyond), sustainability and biodiversity


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(marcas identitárias do festival), a natureza e a arte enquanto ferramentas terapêuticas, ou a vigilância digital no capitalismo. Mais uma vez, tal como noutras entidades ligadas à cultura, a produção de pensamento e reflexão revelou-se um dos principais pontos de intervenção neste período.

(identifying features of the festival), nature and art as therapeutic tools, and surveillance capitalism. Once more, as with other culture-related entities, thought production and reflection proved to be one of the key points of intervention during this period.

Houve ainda “uma parte de celebração”, com um streaming realizado a partir da Boomland, “em que o conceito era juntar arte, música, natureza e a arquitectura paisagística do festival, além das suas memórias”, e também a co-criação da plataforma colaborativa internacional de livestream UNITE - Let the Music Unite Us. Contudo, o responsável insiste que, “mais do que dar divertimento às pessoas, o importante é dar-lhes ferramentas numa fase de tanta instabilidade”. Até porque decidiram, desde logo, que não queriam “entrar na nova moda da virtualização da experiência” de um festival. “Não somos contra quem o faz, mas o Boom, pela sua essência, não é de todo replicável num ambiente digital e, ao mesmo tempo, não nos revemos nesta videogaimi�icação dos festivais e da música”, atira Artur Mendes. E a verdade é que há indicadores de que esta “videogaimi�icação” possa vir a tornar-se numa tendência em crescimento - como notou a investigadora Cherie Hu no seu Twitter, grandes agentes da indústria musical, como a Sony Music, já estão a investir em mundos 3D e a abrir vagas para profissionais ligados à área do gaming.

There was also “a celebratory part”, with a streaming made from Boomland, “in which the idea was to join art, music, nature and the festival landscape, along with its memories”, and also the co-creation of an international collaborative livestreaming platform called UNITE – Let the Music Unite Us. However, Artur Mendes emphasises that, “more than giving people a fun time, what matters is providing them with these tools during a period of such instability”. They also decided right from the start that they didn’t want to “enter into the new trend of virtualising the experience” of a festival. “We’ve nothing against those who do it, but Boom, in essence, cannot be replicated in a digital environment and, at the same time, we don’t identify with this videogami�ication festivals and music”, Mendes continues. And the truth is that there are indicators that this “videogami�ication” might find itself in a growing trend – as researcher Cherie Hu noted on her Twitter page, big agents in the music industry, such as Sony Music, are already investing in 3D worlds and creating job opportunities connected to gaming.

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Sonda , obra de Ventura Profana para o programa digital Convida do Instituto Moreira Salles / Sonda , Ventura Profana’s artwork for the digital programme Convida by Instituto Moreira Salles


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Já no Semibreve 2020, festival bracarense voltado para a música electrónica e a arte digital, a aposta foi desenhar um modelo híbrido, mas de uma forma contida, sem tentar “replicar formatos” e ceder ao facilismo do livestreaming. Pela primeira vez, e além das habituais conversas centradas na indústria musical, apostaram “numa linha temática” que valorizou a escuta e uma certa ideia de reclusão. Por um lado, através de encomendas de obras sonoras a artistas como Beatriz Ferreyra, Kara-Lis Coverdale, Ana da Silva ou Jim O’Rourke, tendo em conta as características acústicas e espaciais do Mosteiro de Tibães, onde estas peças puderam ser ouvidas em loop por um número reduzido de público, ao mesmo tempo que ficaram disponíveis no site do festival. Por outro lado, através de filmagens de performances (sem público) de nomes como Klara Lewis, Laurel Halo ou Oliver Coates, que estiveram em residência artística em Mire de Tibães. Os registos das actuações foram exibidos online e no Mosteiro.

As for Semibreve 2020, a festival in Braga based around electronic music and digital art, the test was drawing up a hybrid model, but in a contained way, without trying to “replicate formats” and giving in to the ease of livestreaming. For the first time, and besides the usual conversations focused on the music industry, they bet on “one thematic line” that valued listening and some idea of isolation. On one hand, they commissioned sound pieces from artists such as Beatriz Ferreyra, Kara-Lis Coverdale, Ana da Silva and Jim O’Rourke, taking into account the spatial and acoustic features of Monastery of Tibães, where these pieces could be heard on a loop by a select public audience, at the same time that they were available on the festival website. On the other hand, they filmed performances (without an audience) from names such as Klara Lewis, Laurel Halo and Oliver Coates, who were resident artists in Mire de Tibães. The recorded performances were displayed online and in the monastery.

Estas performances, nota Luís Fernandes, foram transmitidas em parceria com o Canal 180 e a Fact Magazine, atingindo visualizações “em torno dos 5, 6 mil” por cada vídeo. “Seria impossível chegar a esses números num espectáculo presencial, mas a relação que as pessoas estabelecem com o conteúdo online é totalmente diferente. É muito menos profunda, é mais de consumo rápido. Este ano houve carradas de conteúdos online e isso cria confusão; é muito difícil estar a par de tudo”, observa o programador, também director artístico do gnration. “No fundo é uma falácia, porque a medição em números talvez não reflicta a força da tua proposta artística. E depois há os algoritmos… É uma experiência mediada por muitos factores que estão fora do nosso controle.”

These performances, notes Luís Fernandes, were streamed in partnership with Canal 180 and Fact Magazine, reaching “around 5 or 6 thousand” views per video. “It would be impossible to achieve these numbers with an in-person show, but the relationship people establish with online content is completely different. It’s far less profound, more immediate consumption. This year there were truckloads of online content, and that creates confusion; it’s hard to keep up with everything”, observes the programmer, who is also the artistic director of gnration. “Deep down it’s a fallacy, because measuring in terms of numbers might not reflect the impact of your artistic offering. And then there are the algorithms… it’s an experience mediated by many factors that are beyond our control.”

Performance de Laurel Halo no Semibreve 2020, filmada no Mosteiro de Tibães e transmitida online pela Fact Magazine e pelo Canal 180 / Laurel Halo’s performance at Semibreve 2020, filmed at the Monastery of Tibães and streamed by Fact Magazine and Canal 180 / @ Adriano Ferreira Borges


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Para Artur Mendes, “os algoritmos são mais potentes do que qualquer conteúdo”. Por isso acredita que o maior alcance geográfico da internet não é, necessariamente, sinónimo de um acesso mais democrático e transversal. “Infelizmente existem as barreiras das grandes corporações tecnológicas, ligadas à mercantilização do acesso à informação.” João Fernandes aprofunda o dilema. “A democracia dentro de uma instituição cultural tem de responder a questões éticas da acessibilidade, que excluem tantas pessoas da vida social e cultural. Isso continua a ser um dos principais problemas de qualquer instituição cultural”, considera. “A grande questão é como é que esta cria os utensílios para ser questionada, interpelada, e para construir uma visão crítica sobre aquilo que faz, e sobre o mundo em que se insere, juntamente com os seus visitantes e utilizadores. E isso a tecnologia não garante por si só: a tecnologia pode ser a expressão dos velhos sistemas de manipulação, de imposição de imagens e de discursos.”

For Artur Mendes, “the algorithms are more powerful than any content”. That’s why he believes that the greater geographical reach of the internet is not necessarily synonymous with more democratic and transversal access. “Unfortunately, there are the barriers of tech giants, linked with commercialising access to information”. João Fernandes expands on the dilemma. “Democracy within a cultural institution has to answer ethical questions of accessibility, which exclude so many people from the social, cultural life. That continues to be one of the main problems for any cultural institution”, he adds. “The big question is how this creates the instruments necessary for questioning, challenging, and building a critical view of what we do, and of the surrounding world, along with its visitors and users. And technology alone cannot guarantee that: technology can be the expression of old processing systems, of imposing images and discourses.”

O director artístico do IMS confessa que é “assustador” pensar em como os algoritmos funcionam. “Nós já percebemos que se transmitirmos um espectáculo que tenha um conteúdo patrocinado em plataformas virtuais, o algoritmo trabalha a favor do evento e algo que chegaria a 10 mil pessoas chega a 40 mil. Mas o problema é como se chega a essas 40 mil e para o que é que se chega. A questão não pode ser apenas ter milhões de seguidores; tem de ser aquilo que se faz com as pessoas.” João Fernandes - tal como Ana Garcia do Coquetel Molotov, tal como os responsáveis do MITsp - acredita que a disseminação geográfica ampliada pela internet é extremamente importante num país de dimensões continentais como o Brasil, onde poucos têm condições materiais para se deslocar aos eventos que acontecem nas principais cidades. Porém, Fernandes alerta que as estruturas culturais não se devem “dedicar de uma forma entusiasta ao culto dos algoritmos”, mas sim desempenhar “um papel importante nessa discussão” junto dos públicos, já que estes mecanismos “também reproduzem sistemas de saber e da economia dominantes, bem como as consequentes exclusões determinadas por eles”.

The artistic director of the IMS admits that it’s “scary” to think about how algorithms work. We already understand that, if we broadcast a show that contains sponsored content on virtual platforms, the algorithm works in favour of the event and something that would reach 10 thousand people reaches 40 thousand. But the issue is how and why it reaches those 40 thousand people. It can’t simply be a matter of having millions of followers; it must be what we do with those people.” João Fernandes – just like Ana Garcia from Coquetel Molotov and those in charge of MITsp – believes that the geographical dissemination amplified by the internet is extremely important in a country the size of Brazil, where few have the material comforts for travelling to events in the main cities. However, Fernandes warns that cultural structures mustn’t “devote themselves too keenly to the cult of algorithms”, rather they should play “an important role in this conversation”, along with audiences, since these mechanisms “also reproduce dominant knowledge and economic systems, as well as the exclusions determined by them.”

Além das possibilidades supostamente mais participativas que estão a ser desbravadas na Web3, incluindo uma “economia da interdependência” que pode aliar o offline ao online [ver no final a conversa com Mat Dryhurst], contrapor esta ditadura dos algoritmos com “cadeias de cumplicidade, solidariedade e contacto” com artistas, em que estes possam ser também “propulsores” dos seus pares como sucedeu no programa Convida do IMS, como tem vindo a suceder com a inspiradora mobilização internacional de rádios comunitárias online, entre elas a palestiniana Radio Alhara e libanesa Radio Karantina - é uma “das reflexões e práticas diárias” que devem ser ensaiadas, sugere João Fernandes. E se isso não implica subestimar as redes formadas no digital, também é certo que tem de passar, necessariamente, pelas comunidades presenciais. No caso específico da música, pelo ao vivo.

Besides the supposedly more participatory possibilities that are being explored on Web3, including an “economy of interdependence” that could unite the offline with the online [see the conversation at the end with Mat Dryhurst], and counter this dictatorship of algorithms with “chains of complicity, solidarity and contact” with artists, in which they can also be “driving forces” behind their partners – as happened in the IMS programme Convida , and as has come to pass with the inspiring international mobilisation of online community radios, among them Radio Alhara from Palestine and Radio Karantina from Lebanon – is one of the “daily reflections and practices” that should be tested, suggests João Fernandes. And while this doesn’t necessarily imply underestimating digitally formed networks, for sure one has to pass through in-person communities. As for the specific case of music, this is live performance.

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SKOOLA: UMA ACADEMIA DE MÚSICA INFORMAL ABERTA À COMUNIDADE

3 PERGUNTAS A MARIANA DUARTE SILVA, DIRECTORA DO VILLAGE UNDERGROUND (VU) E IDEÓLOGA DA SKOOLA

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De que forma é que este projecto procura sublinhar a relevância da música e das interacções presenciais nos domínios da sociabilidade, da partilha entre culturas, do bem-estar psicológico? O que a música e a sua aprendizagem em grupo fazem é um despertar para a criatividade e para o pensamento crítico, para imaginar outros mundos, aproximar pessoas, aumentar a auto-estima e o sentido de pertença. Por isso, a forma como ensinamos música - o seu lado mais urbano e contemporâneo, aquela que os jovens ouvem - é estruturada em três eixos. Produção musical, criação/ composição e performance, através de um desenho curricular que alia os princípios básicos dos instrumentos às novas possibilidades de fazer música com tecnologia. Cria-se uma comunidade onde todos contribuem para o desenvolvimento de cada um. Qual é o público-alvo? A Skoola é uma academia aberta a jovens de todos os contextos sociais. Temos residentes em bairros como Chelas, Quinta do Loureiro e Liberdade, outros que vivem em casas da Santa Casa da Misericórdia, outros com problemas cognitivos de escolas públicas (todos estes não pagam, são bolseiros) e miúdos e miúdas cuja situação financeira familiar permite pagar a Skoola. Vê-se uma simbiose entre todos quando estão a criar música, bem como nos intervalos: jogam basquete, dançam, desenham, conversam, além de terem grupos no WhatsApp. Entre as muitas histórias que nos revelaram talentos, amizades, artistas e outros possíveis futuros, há a do Ricardo, um jovem de 14 anos da Guiné que vive em Portugal ao abrigo de um protocolo de saúde, porque está a tratar de um problema no olho que o está a cegar. Ele chegou à Skoola com a cara tapada pelo seu hoodie e sem comunicar, mas depois de perceber que podia tocar piano, cantar, escrever letras e ainda aprender a subir a um palco e a mexer numa mixer de DJ, acabou por querer fazer não só a aula com o grupo da sua idade mas também as outras sessões. Agora, o Ricardo liga ao Pedro Coquenão e ao Karlon Krioulo [da equipa de facilitadores do projecto] e vai fazer música com eles para o nosso estúdio. Este tipo de iniciativas podem mostrar, junto dos governantes e não só, que a música - tantas vezes vista como mero entretenimento - é também um importante veículo pedagógico? Com o que disse anteriormente acabo por responder a essa questão. Falámos com directores, psicólogos e assistentes sociais de escolas públicas, cujos jovens frequentaram a Skoola, e todos eles referem a urgência de se implementar este tipo de projectos nas escolas de uma forma regular e construtiva. Posso adiantar que a Escola Básica Marquesa de Alorna, depois de ter assistido ao nosso curso de Verão onde participaram três dos seus alunos, pediu-nos um orçamento para estarmos semanalmente na escola com a Skoola durante o próximo ano lectivo.


Skoola / @ Beatriz Felício

SKOOLA: AN INFORMAL MUSIC ACADEMY OPEN TO THE COMMUNITY

3 QUESTIONS FOR MARIANA DUARTE SILVA, DIRECTOR OF VILLAGE UNDERGROUND (VU) AND THE BRAINS BEHIND SKOOLA In what way(s) does the project seek to highlight the importance of music and in-person interaction with regard to our social nature, cultural exchange and mental wellbeing? Music – and learning it as a group – is also an awakening for creativity and critical thinking, imagining other worlds, approaching people, increasing self-esteem and a sense of belonging. That’s why our way of teaching music – the more urban and contemporary side that young people hear – is structured into three axes: music production, creation/ composition, and performance, via a curriculum design that unites the basic principles of musical instruments with new possibilities for making music using technology. This has created a community where everyone contributes to each person’s development. What’s your target-audience? Skoola is an academy open to young people from all social backgrounds. We have people from neighbourhoods such as Chelas, Quinta do Loureiro and Liberdade, others who live in Santa Casa da Misericórdia homes, others with cognitive issues from state schools (none of whom pay, they all have scholarships), and boys and girls from families whose financial situation enables them to pay to attend Skoola. There is a symbiosis between them all when making music, as well as during breaktime: they play basketball, dance, draw and chat, and have their WhatsApp groups. Amongst the many stories that have revealed talents, friendships, artists and other possible futures, is the one of Ricardo, a 14-year-old from Guinea-Bissau living in Portugal on a health visa for treatment of a problem in his eye, which is making him blind. He came to Skoola with his face covered by his hoodie, not saying anything, but once he discovered he could play the piano, sing, write lyrics and learn how to get up on a stage and mix like a DJ, he ended up wanting to participate in not just the lesson for his age group, but all the other sessions, too. These days, Ricardo calls up Pedro Coquenão and Karlon Krioulo (project staff members) and goes to make music with them in our studio. Do you think this type of project can show, both to the government and others, that music – so often viewed as mere entertainment - also has an important pedagogical aspect? My answer to the previous questions has answered this one, too. We’ve spoken to headteachers, psychologists and social workers from state schools, whose young people have attended Skoola, all of whom spoke of the urgent need to implement this kind of project in schools regularly and constructively. Marquesa de Alorna school, for example, having witnessed three of their students attending our summer course, has already asked us to quote for weekly Skoola lessons during the coming academic year.

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Espectáculo de abertura do festival Tremor de 2019, que reuniu a Escola de Música de Rabo de Peixe, Associação de Surdos da Ilha de São Miguel e a ondamarela / @ Carlos Brum Melo


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Tremor festival opening show in 2019, which brought together Rabo de Peixe Music School, São Miguel Deaf Association and ondamarela / @ Carlos Brum Melo


@yourdanceinsane

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O presencial é insubstituível

In-person is irreplaceable

“Tivemos um alcance maior de público com as transmissões das performances, mas claramente foi unânime esta sensação de perda, de saudade do presencial. Por isso decidimos logo no início do ano, sem saber se iria ser possível por causa das regras sanitárias, voltar a fazer um Semibreve físico em Outubro, ainda que com um complemento digital”, afirma Luís Fernandes. Também a equipa do Tremor, na ilha de São Miguel, nos Açores, decidiu ir em frente com a edição deste ano. “Achamos mesmo importante as coisas acontecerem. Mesmo que seja num formato diferente, mesmo que tenhamos de lidar com contingências em termos de booking e de público, mesmo que tenhamos de perder coisas como o clubbing ou a circulação entre vários espaços”, declara Márcio Laranjeira, um dos responsáveis pelo festival.

“We had greater public reach with performance broadcasts, but there was clearly a unanimous sense of loss, of longing to be present. That’s why we decided right from the start of the year, without knowing whether it would be possible because of health restrictions, to return to Semibreve in person in October, even if with a digital supplement”, affirms Luís Fernandes. The Tremor team, on the island of São Miguel in the Azores, also decided to go ahead with a production this year. “We consider it truly important that these things should happen. Even in a different format, even if we have to have a contingency plan for bookings and audiences, even if we have to cut things like clubbing or moving between different stages”, states Márcio Laranjeira, one of the people in charge of the festival.

Em compensação, conceberam um programa expositivo em que “usam a ilha como uma galeria”, com instalações artísticas ligadas à música; desenharam trilhos pedestres acompanhados por composições sonoras site-speci�ic; fortaleceram a aposta em artistas portugueses, o que permitiu “concretizar desejos antigos”, como ter os Clã no line-up , além de com isso sublinharem que “as bandas portuguesas não servem só para abrir cartazes de festivais”. A continuação das residências artísticas com comunidades locais como a Escola de Música de Rabo de Peixe, ondamarela e a Associação de Surdos da Ilha de São Miguel adquiriu, este ano, uma relevância redobrada.

To compensate, they came up with an expository programme in which they “use the island as a gallery”, with art installations connected to music; they drew up walking trails accompanied by site-specific sound pieces; and they strengthened the investment in Portuguese artists, which allowed them to “consolidate long-standing wishes”, such as having Clã in the line-up, highlighting that “Portuguese bands are not just festival warm-up acts”. The continuation of artist residences with local communities, such as the Rabo de Peixe Music School, ondamarela, and the São Miguel Deaf Association, has taken on special importance this year.


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“Várias instituições e associações que realizam um trabalho muito significativo na ilha estiveram quase abandonadas durante a pandemia, de portas fechadas, e o festival serviu também para reactivar essas estruturas com o pouco que podemos fazer”, explica Márcio Laranjeira. Não é por acaso que o Tremor se autodenomina como “um evento de pessoas, caras e comunidades”. “Antes da pandemia falava-se muito, de forma depreciativa, da parte social da música, e acho que hoje percebemos que esse factor é muito importante, mesmo nos festivais em que a curadoria é a bandeira. Não é só ver concertos: é estar com pessoas, conhecer pessoas, e isso é essencial para o ser humano.”

“Various institutions and associations that do highly meaningful work on the island were almost abandoned, with their doors closed during the pandemic, and the festival also served to revive these structures with what little we could do”, explains Márcio Laranjeira. It is not by chance that Tremor describes itself as “an event of people, faces and communities”. “Before the pandemic, there was much disparaging talk of the social side of music, and I think we now understand the importance of that aspect, even in festivals where curatorship is the main appeal. It’s not just seeing concerts: it’s being with people, getting to know people, and that’s essential to human beings”.

A preservação, criação e renovação de comunidades presenciais também faz parte do ADN, do metabolismo das salas independentes de programação de música ao vivo: as chamadas grassroots music venues, que passaram o último ano e meio a tentar sobreviver sem políticas de apoio realmente estruturadas e estruturantes. Mesmo quem pôde abrir portas para funcionar a meio-gás, na maior parte dos casos sem poder levar a cabo a sua actividade programática habitual, sentiu que continuou a servir de âncora para os seus públicos.

The preservation, creation and renewal of in-person communities is also part of the DNA, the metabolism, of independent grassroots music venues, which have spent the past year and a half trying to survive without any truly structured or structural support policies. Even those who were able to open their doors to be semi-functional, in most cases without being able to offer their usual programming, felt that they continued to serve as an anchor for their audiences.

“A comunidade artística que sempre nos rodeou continuou a fazê-lo, mas de outra forma. Foi mais uma salvaguarda de afectos mútuos, de conversas, de desabafos, de partilha de perspectivas”, conta Alexandra Vidal, co-fundadora e co-programadora das Damas, em Lisboa. “Fomos mais um consultório de psicologia do que uma sala de concertos no último ano e meio. De certa maneira, ainda bem que assim foi.” No Village Underground (VU), também na capital, a pandemia acabou por fazer com que a programação ganhasse um cunho mais autoral, em parte “virada para uma comunidade que gosta de música nova, por descobrir”, refere Mariana Duarte Silva. “Nesta nova fase” dão palco, de terça a domingo, “a talentos das mais variadas famílias musicais”, e isso, assinala a responsável, “veio mesmo para ficar”. Paralelamente, o VU pôs em marcha a Skoola, que tem como missão cardeal estimular a criação de comunidades através do ensino não formal de música [ver destaque nas páginas 16 e 17].

“The artistic community that has always surrounded us has continued to do so, just in another way. It was more a safeguard for mutual affection, conversation, letting off steam, and sharing perspectives”, tells Alexandra Vidal, co-founder and co-programmer of Damas, in Lisbon. “We’ve been more of a psychologist office than a live music venue over the past year and a half. In some ways, it’s just as well.” At Village Underground (VU), also in the capital, the pandemic ended up giving their programming a more authorial mark, in part “aimed at a community that likes having new music to discover”, states Mariana Duarte Silva. “In this new phase” they provide the stage, from Tuesday to Sunday, “for talent from an array of musical genres”, and that, she points out, “is here to stay”. Likewise, VU set Skoola in motion, whose primary mission is to stimulate the creation of communities via informal music education [see more on pages 16 and 17].

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Para Pedro Azevedo, programador do Musicbox Lisboa, da Casa do Capitão e do festival MIL, a partir de agora as grassroots music venues vão ter de começar “a pensar seriamente” em como “pôr os putos a fazer música” e a “torná-la numa profissão mais viável” no futuro. “Claro que isso tem de ser reforçado ao nível mais institucional, mas também vai ter de passar por nós, programadores destas salas”, analisa. “O meu trabalho vai ser apostar no circuito local, incentivá-lo e desafiá-lo. A questão das residências artísticas é fulcral: ou seja, pôr pessoas a trabalhar umas com as outras.” Este diagnóstico, nota Pedro, surge da constatação de que a pandemia provocou “danos profundos” no tecido da criação musical independente, inclusive na estabilidade emocional dos músicos e na vontade em continuar a fazer o que fazem.

For Pedro Azevedo, Musicbox Lisbon, Casa do Capitão and the MIL festival booker, as of now grassroots music venues will have to start “thinking seriously” about how to “get the kids making music” and “make it a more viable profession” in the future. “Of course that has to be reinforced at a more institutional level, but it will also have to come via us, the bookers of these spaces”, he observes. “My work will be to invest in the local music scene, to incentivise it and challenge it. Artist residencies are crucial: in other words, putting people to work one with another.” This diagnosis, notes Pedro, arises from his observation that the pandemic “damaged deeply” the fabric of independent musical creation, including musicians’ emotional stability and their desire to keep doing what they do.

“Os danos são muitos, sejam eles na forma de ausência de oportunidades para a comunidade artística, na diluição das comunidades em espaços que programavam, mas sem ter grandes capacidades de profissionalização, ou toda a música que devia ter sido apresentada e não foi”, reforça Alexandra Vidal. “Perderam-se muitos primeiros concertos, perdeu-se muita promoção com pés e cabeça.

“The damage is extensive, whether in the lack of opportunities for artistic community, the dilution of communities in spaces where they were programmed but without much development of their professional skills, or all the music that should have been performed but wasn’t”, adds Alexandra Vidal, reinforcing the point. “We missed out on so many first concerts, we missed out on so much well done promotion.

Showcase de Luca Argel na Casa do Capitão, Lisboa, em Julho de 2021 / Luca Argel’s showcase at Casa do Capitão, Lisbon, in July 2021 / @ Ana Viotti


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No entanto, o futuro parece vir a beneficiar de estruturas que se foram criando entre os pingos da chuva da pandemia.” O programador do Musicbox acrescenta outro ponto. “As próximas gerações não vão ter confiança para seguir uma carreira musical. E se antes já não era bem visto pela família, agora ficou tudo ainda mais exposto com a pandemia. Os músicos tiveram ou zero apoios ou apoios muito insuficientes.”

And yet, it seems the future will benefit from structures that were created between the raindrops of the pandemic.” The Musicbox booker continues: “Future generations won’t have the confidence to follow a career in music. And if it wasn’t held in high esteem by the family before, now it’s been truly laid bare by the pandemic. Musicians have had zero or drastically insufficient support.”

Pedro Azevedo diz ainda que, no caso da música ao vivo, em particular nestes circuitos locais, é preciso olhar com cautela para as implicações do digital. Se nas artes visuais e intermédia, e em parte nas artes performativas, a discussão parece mais polissémica, neste sector específico a desconfiança sobressai. “Há toda uma nova forma de os artistas trabalharem conteúdos, de se mostrarem, de interagir com os fãs e até de conseguir a atenção das majors , mas isso vai desaguar onde? Ou devia desaguar onde? Num palco. Em Portugal tens uma nova geração de músicos super talentosos, com 50 mil ou mais seguidores no Instagram, que não tocam ou quase não tocam ao vivo e ficam por trás destas plataformas. As bolhas assim ficam cada vez mais fechadas: as dos artistas, as dos públicos, as dos programadores.” Pedro Azevedo admite que pode estar a ser “um velho do Restelo”, mas não consegue ver que outro formato possa ser melhor “do que um palco”.

Pedro Azevedo also says that, in the case of live music, particularly in these local circuits, there is a need to consider the implications of going digital with caution. While in the visual arts and intermedia, and in part in performing arts, the discussion seems more varied, in this particular sector, mistrust stands out. “There's a whole new way for artists to work on content, to showcase themselves, to interact with fans and even to attract the attention of major record labels, but where is it leading? Where should it lead? To the stage. In Portugal, you have a new generation of extremely talented musicians, who have 50 thousand plus followers on Instagram, but who never or almost never play live, and stay behind these platforms. Thus the bubbles are ever more closed: those of artists, those of audiences, and those of bookers.” Pedro Azevedo admits that he might be “an old man from Restelo” (a Portuguese expression referring to people who resist change), but he can’t envisage anything better than a stage.

“A transição digital traz muita coisa boa, mas, nesta área, temos mesmo de pensar em como não dar cabo daquilo que resta do sector da música ao vivo.” Terminemos, talvez de forma enviesada, com as palavras de Mat Dryhurst, artista, investigador e um declarado entusiasta dos novos caminhos da tecnologia, que não é, com certeza, um velho do Restelo.

“The digital transition brings with it many good things, but, in this area, we really have to think about how not to ruin what’s left of the live music sector.” Let’s finish, perhaps with a little bias, with the words of Mat Dryhurst, artist, researcher and self-declared enthusiast of new technology, who is certainly not an old man from Restelo.

“A música é, fundamentalmente, sobre congregação. As pessoas numa sala são aquilo que interessa”. Diz-nos, sem rodeios: “A experiência musical ao vivo é o pináculo para mim. É a dimensão da música que é a inveja de todas as outras formas de arte, e não admira que a economia da música ao vivo seja o principal sistema de apoio para os músicos mais interessantes que conheço. Precedeu a indústria discográfica e sobreviverá a tudo aquilo que pudermos imaginar. Para ser sincero, é um dos principais motivos pelos quais faço música, e sem a promessa de haver concertos acho que perderia o interesse.” / “Music is fundamentally about congregation. The people in the room are what matters.” He tells us, with no reservations: “The live experience of music is the pinnacle for me. It is the one dimension to music that is the envy of all other art forms, and it is no wonder that the live music economy is the main support system for the most interesting musicians I know. It preceded the recorded music industry and it will outlive whatever we are thinking about. To be honest, it’s one of the main reasons I make music, and without the promise of shows I think I would lose interest.” /

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TRA N SFORMA ÇÃ O DI GI TA L N A CULT URA

Interdependência vs. Independência MAT DRYHURST, músico, artista multimédia e um dos pensadores mais desafiantes da indústria musical, não tem dúvidas de que o ecossistema da música como o conhecemos está a ser “destruído a cada ano que passa” e a ser “substituído por plataformas ahistóricas e algorítmicas". Não é possível voltar atrás, diz, mas é preciso accionar contra-narrativas e outros modos de fazer que tornem este ecossistema mais sustentável e ético, equitativo e inventivo face às novas circunstâncias. “As pessoas precisam de fazer qualquer coisa, seja o que for. Serem menos avessas ao risco”, declara. A música independente - “o que quer que isso signifique agora” - é “um modelo pronto-a-usar totalmente confortável”. Um ideal domesticado e distorcido com sérias implicações na economia criativa, nas condições laborais dos artistas, na criação de comunidades realmente sólidas. “O problema com a fetichização da ideia de independência, como vemos na economia das plataformas, é que quando retiras os mecanismos de suporte através da redução de custos acabas por ter resultados bastante insignificantes”, considera. “O sonho da música independente era este mito da soberania absoluta, do ‘ninguém me pode dizer o que fazer’. Em muitos aspectos, a independência conduziu a um isolamento. Ao sentimento de que ninguém está lá para ti, de que tens de fazer escolhas seguras, de que estás em competição com toda a gente e que tens de agir consoante esse impulso, o que não é a atitude mais saudável para fazer boa arte ou desafiar alguma coisa.”

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Por isso é que Mat Dryhurst tem sido um pertinaz defensor e promotor do conceito de interdependência, incentivando as possibilidades de uma nova economia criativa descentralizada (ouvir o podcast Interdependence , que partilha com a artista e compositora Holly Herndon). “Tudo o que é especial e ambicioso tem de envolver um grupo alargado de pessoas que precisam de ser respeitadas e remuneradas de modo a que toda a operação funcione”, diz-nos, aludindo à lógica de cooperativismo que sustenta projectos como a plataforma de streaming comunitária Resonate, na qual está envolvido (vale a pena seguir outras iniciativas como a herstoryDAO, Friends with Benefits ou Mycelia). “Acredito que a interdependência representa a afirmação do valor [económico] e da importância da cultura ao construir novas estruturas e protocolos”, assinala. “Há quem já o esteja a fazer em alguns cantos. Sou bastante fã de UK grime e drill, e mesmo com as condicionantes do YouTube, fico impressionado ao ver como diferentes artistas, produtores e in�luencers estão todos a conspirar para amplificar o que cada um faz.” Dryhurst diz-se particularmente interessado nas novas ferramentas que podem ser utilizadas para tornar este tipo de movimentações culturais, e os circuitos musicais, “mais interdependentes financeiramente”. Mas como fazê-lo com as grandes corporações sempre à espreita para capitalizar estas subculturas? O artista e investigador argumenta que as alternativas podem estar na Web3. “Estas culturas abraçam a capitalização porque precisam de ter acesso a dinheiro, e a Web2 tem feito um péssimo trabalho nesse sentido. É por isso que na última década tem sido normalizado que os artistas façam parcerias com marcas, porque a maioria das pessoas já não paga directamente pela cultura e os artistas precisam de comer.” “Há muitas abordagens possíveis na Web3, mas uma das oportunidades mais cativantes é deter a propriedade dos projectos de forma comunitária”, acrescenta - e isso é algo que ele e Holly Herndon estão a experimentar através da ferramenta Holly+, com base numa tecnologia de governação participativa intitulada DAO - Decentralized Autonomous Organization. Apesar do entusiasmo, Mat Dryhurst admite que a Web3 não é imune a monopólios, nem é “uma espécie de utopia equitativa e horizontal”, nem vai acabar com o capitalismo. Contudo, defende que nela existem “mais meios para prevenir que a monopolização aconteça de uma maneira generalizada” e permanente. E que “será melhor”. “Uma das questões centrais que precisamos de abraçar para tornar as coisas melhores é quebrar com a centralização de qualquer mercado de arte ou música”, afirma. “A música está fortemente concentrada nas plataformas de streaming . A minha esperança é que com a Web3 vejamos centenas de mini-economias distintas que sirvam as comunidades.” Também por isso, sublinha, é preciso haver mais pedagogia sobre a Web3, que é ainda pouco compreensível para muita gente - inclusive para que os artistas possam entender como tirar partido destas novas ferramentas.


DI GI TA L TRA N SFORMATI ON I N CULT URE

Interdependence vs. Independence MAT DRYHURST, musician, multimedia artist and one of the most challenging thinkers in the music industry, has no doubt that the musical ecosystem as we know it is being “eroded year by year” and “replaced by ahistorical and algorithmic platforms.” There’s no going back, he says, but there’s a need to enact counter-narratives and other ways of doing things to make this ecosystem more sustainable and ethical, equitable and inventive in light of new circumstances. “People just need to do something, like literally anything… be less risk-averse”, he states. “Independent music – whatever that means now – is like a totally comfortable, well-worn template”. A domesticated, distorted ideal with serious implications for the creative economy, for artists’ working conditions, and the creation of truly strong communities. “The problem with fetishizing independence, as we see with the platform economy, is that when you strip away those support mechanisms, through cost-cutting, ultimately you end up with pretty hollow results”, he muses. “The dream of independent music was this myth of absolute sovereignty, “nobody can tell me what to do man”. In many ways, independence has led to isolation. Feeling like no-one has your back. Feeling like you have to make safe choices. Feeling in competition with everyone and making choices based upon that impulse, which is not the healthiest mindset to make great art or challenge anything”. That’s why Mat Dryhurst has become a staunch defender and advocate of the concept of interdependence, promoting the possibilities of a new decentralised creative economy (check out the podcast Interdependence, which he runs with artist and composer Holly Herndon). “Everything special and ambitious ultimately takes a large group of people, who need to be respected and compensated to make the whole operation work”, he tells us, referring to the cooperative logic behind projects such as the community streaming platform he’s involved in, Resonate (it’s worth following other initiatives like herstoryDAO, Friends with Benefits or Mycelia). “I think that interdependence represents the reassertion of value and values into culture by constructing new institutions and protocols”, he points out. “People are already doing it in some corners. I’m personally quite a fan of UK grime and drill music, and even within the challenging conditions of YouTube I am impressed to see how different artists, producers, influencers are basically all colluding to amplify what each other is doing”. Dryhurst says he’s particularly interested in new tools that can be employed to make this type of cultural movements, and musical networks, “more financially independent”. But how do we achieve this, with big corporations always on the lookout for ways to capitalise on these subcultures? The artist and researcher suggests that Web3 might have the answers. “Cultures embrace capitalisation ultimately because they need access to capital, and Web2 has done a bad job of providing that. Which is why over the past decade it has become understandably normalised for artists to team up with brands, because most people do not pay for culture directly anymore and artists need to eat”. “There are many different approaches you can take with Web3 tools, but one of the proposals that I find compelling is the opportunity to offer a community ownership in projects”, he adds – and that’s something he and Holly Herndon are trying out via Holly+, based on shared stewardship known as DAO Decentralised Autonomous Organization. In spite of his enthusiasm, Mat Dryhurst admits that Web3 is not immune to monopolies, nor is it “some kind of horizontal and equal utopia”, nor will it bring an end to capitalism. That said, he argues that it contains “more tools to prevent such monopolisation from happening across the board” and permanently. And that “it’ll be better”. “I think one of the core things we need to embrace to make those things better is to break up the centralisation of any one art or music market. Music is heavily concentrated on streaming platforms now. My hope with Web3 is that we see thousands of distinct mini economies that serve the communities”. That’s also why, he highlights, we need more instruction concerning Web3, which is still pretty baffling for most people – and also so that artists can understand how to make the most of these new tools.

MARIANA DUARTE É JORNALISTA DE CULTURA E CRÍTICA DE MÚSICA. ESCREVE PARA O JORNAL PÚBLICO/ÍPSILON E PARA A REVISTA TIME OUT SOBRE ARTES PERFORMATIVAS, ARTES VISUAIS E MÚSICA, EM CONEXÃO COM QUESTÕES SOCIOPOLÍTICAS E IDEAIS DE ESQUERDA. MARIANA DUARTE IS A CULTURE JOURNALIST AND MUSIC CRITIC. SHE WRITES FOR PÚBLICO/ ÍPSILON NEWSPAPER AND FOR TIME OUT MAGAZINE ABOUT PERFORMING ARTS, VISUAL ARTS AND MUSIC, IN CONNECTION TO SOCIAL AND POLITICAL ISSUES AND LEFT-WING IDEALS.

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LIBERDADE, PARTILHA E RESISTÊNCIA: os três sinónimos de comunidade

FREEDOM, SHARING AND RESISTANCE: the three synonyms of community

POR / BY Rute Correia


Muito antes das redes sociais, já a internet se organizava na resistência às lógicas e aos danos do capitalismo. Mas à medida que se torna mais uma peça do sistema, qual o papel das comunidades ali erguidas? Long before the social networks, the internet was already organising itself in resistance to the logics and harms of capitalism. But as it becomes one more piece of the system, what role do the communities raised there play? PT “O so�tware permitiu, nas últimas décadas, uma explosão maravilhosa na produção artística de todo o tipo. Hoje é quase imprescindível para muitíssimas disciplinas: de um processador de texto a um editor de vídeo, de um programa de manipulação de imagens a ambientes de programação para artes em novos meios. Esse so�tware é, na maioria das vezes, propriedade de empresas multinacionais. Custa enormes somas de dinheiro e não sabemos como é feito. Isto implica uma barreira económica e epistemológica.”

EN “Software has enabled, in recent decades, a wonderful explosion in artistic production of all kinds. Today, it is almost essential for many disciplines: from a word processor to a video editor, from an image manipulation program to programming environments for arts in new media. Such software is, more often than not, owned by multinational companies. It costs enormous amounts of money and we do not know how it is created. This involves an economic and epistemological barrier.”

Estas palavras de Jorge Gemetto, co-director do Ártica – Centro Cultural Online, sediado na América Latina, resumem a inevitabilidade tecnológica dos nossos dias. Se é certo que o avanço galopante desta área se tem traduzido na democratização do consumo e da produção culturais, por cada camada adicional de benefícios e de complexidade acresce uma outra, sub-reptícia, no modo como cada novidade tecnológica se apresenta e se instala no nosso quotidiano.

These words by Jorge Gemetto, co-director of Ártica – Online Cultural Centre, based in Latin America, sum up the technological inevitability of our days. If it is true that the galloping advance of this area has resulted in the democratisation of cultural consumption and production, for each additional layer of benefits and complexity, there is another surreptitious one in the way each technological novelty is presented and installed in our daily lives.

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L I B ERDA DE , PA RTI L H A E RES I ST Ê N CI A

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Para Cairo Braga*, artiste musical e audiovisual brasileire a residir em Portugal, a revolução tecnológica foi também uma revolução na sua vida. “Só faço música, rádio e trabalho audiovisual de maneira autodidacta, desde os 12 anos, graças aos meios tecnológicos a que tive acesso. A tecnologia não é apenas uma ferramenta de liberdade mas também um meio de expansão de mundos”, diz o artiste, que produz e edita música a título independente há mais de uma década, tendo sido o fundador da editora digital Elegant Elephant, entretanto desactivada.

For Cairo Braga*, a Brazilian musician and audiovisual artist living in Portugal, the technological revolution was also a revolution in their life. "I only do music, radio and audiovisual work in a self-taught way since I was 12, thanks to the technological means to which I had access. Technology is not only a tool for freedom but also a means of expanding worlds", says the artist, who has been producing and editing music independently for over a decade, and was the founder of the Elegant Elephant digital label, which has since been closed down.

Passados quase vinte anos desde o início do seu enamoramento pela produção musical, mantém uma relação íntima com as máquinas. No entanto, actualmente valoriza mais a tecnologia livre e descentralizada, detalhando que as encara “como o mais perto que já chegámos de uma aplicação de conceitos anarquistas, comunistas, socialistas e colectivistas na internet enquanto (super)estrutura e não apenas como meio, que é sempre o foco do discurso da grande imprensa e dos media quando o assunto é a rede mundial de computadores”, considera. “Isso acontece porque se as pessoas forem incentivadas a pensar na web como uma (super)estrutura, o poder dos media corporativos dominantes entra em cheque e em choque.”

Almost twenty years after they first fell in love with music production, they maintains an intimate relationship with machines. However, currently, they values free and decentralised technology more, detailing that they sees them "as the closest we have ever come to an application of anarchist, communist, socialist, and collectivist concepts on the internet, which appears as a (super)structure and not just as a medium, which is always the focus of the discourse of the mainstream press and the media when the subject is the world wide web," they considers. "This is because if people are encouraged to think of the web as a (super)structure, the power of the dominant corporate media comes into check and clash."

Dos dispositivos que usamos aos serviços essenciais, esta ideia de “superestrutura” reflecte-se no facto de a maior parte do que acontece na web estar nas mãos de pouco mais de uma dúzia de empresas, todas elas megacorporações com volumes de negócio maiores do que o PIB de muitos países – gigantes como a Google e a Microsoft atingiram lucros históricos no segundo trimestre deste ano, 62 mil milhões de dólares e 46,2 mil milhões de dólares respectivamente. O progresso desenha-se com assistentes virtuais que comunicam como se fossem pessoas, com electrodomésticos ligados à internet 24 horas por dia, com a possibilidade de controlar quase tudo à distância.

From the devices we use to essential services, this idea of "superstructure" lies in the fact that most of what happens on the web is in the hands of just over a dozen companies, all megacorporations that have turnovers larger than the GDP of many countries – giants like Google and Microsoft recorded historic profits in the second quarter of this year, bringing in $62 billion and $46.2 billion respectively. Progress is designed with virtual assistants that communicate as if they were humans, with home appliances connected to the internet 24 hours a day, with the possibility of controlling almost everything remotely.

Contudo, o reverso da moeda é a recolha permanente dos nossos dados. Ou seja, a vigilância permanente. Somos seguidos (e moldados) a cada instante: nas redes sociais, nos sites que visitamos, nas conversas que temos (não é por acaso que nos aparece no telemóvel publicidade ou outro tipo de conteúdo relativos a assuntos sobre os quais estivemos a falar nessa mesma hora), no simples acto de termos o smartphone ligado quando saímos de casa. “Enquanto no mundo físico há limites, inclusive espaciais, para as arquitecturas de persuasão, digitalmente elas podem ser construídas em escalas gigantescas”, escreveu Amanda Chevtchouk Jurno no artigo

However, the other side of the coin is the permanent collection of our data. In other words, permanent surveillance. We are constantly being monitored (and shaped): on social media, on the websites we visit, in the conversations we have (the fact that we see ads or other content appearing in our feed re-lated to conversations we’ve just had is no coincidence), in the simple act of having our smartphone on when we leave home. "While in the physical world there are limits, including spatial ones, to the persuasion architectures, digitally they can be built on gigantic scales," wrote Amanda Chevtchouk Jurno in the article

Plata�ormas, algoritmos e moldagem de interesses publicado na revista brasileira Margem Esquerda (ed. Boitempo).

Plata�ormas, algoritmos e moldagem de interesses [Plat�orms, algorithms and the shaping o� interests] published in the Brazilian magazine Margem Esquerda (Ed. Boitempo).

* Cairo Braga assume-se como pessoa não-binária, por isso utilizamos “artiste” em vez de “artista” e “brasileire” em vez de “brasileiro/a” de modo a empregar o género neutro.


FREE DOM, SH A RI N G A N D RES I STAN CE

“Quantos mais dados a plataforma colectar, melhor vai compreender os comportamentos dos usuários e poderá gerar previsões e modelos mais acurados”, sintetizou a jornalista e investigadora, aludindo àquilo a que se chama de “dataísmo ”, conceito forjado pela professora holandesa José van Dijck. No fundo, “os dados pessoais são o novo petróleo da internet e a nova moeda do mundo digital”, como disse certeiramente a política búlgara Meglena Kuneva, à época comissária de Defesa do Consumidor da União Europeia.

As the journalist and researcher explained, “the more data the platform collects, the better it will understand users' behaviours and will generate more accurate predictions and models, ” alluding to "dataism ", a concept forged by Dutch professor José van Dijck. Basically, “personal data is the new oil of the internet and the new currency of the digital world”, as Bulgarian politician Meglena Kuneva, former European Union Commissioner for Consumer Protection, rightly said.

A existência digital exige, portanto, uma negociação permanente entre o direito à privacidade e o nosso quotidiano, já que a rotina diária da maioria das pessoas se desenrola, inevitavelmente, numa sociedade em rede. Essa rede, que começou aberta, é hoje um silo de bolhas e jardins que se tocam cada vez menos, reforçando preconceitos e estreitando visões do mundo, excluindo quem não se consegue conectar – seja por incapacidade financeira ou logística, seja por impossibilidade de aprendizagem ou falta de acessibilidade técnica.

Digital existence, therefore, requires a permanent negotiation between the right to privacy and our daily lives, as the daily routine of most people inevitably unfolds in a networked society. This network, which started out open, is today a silo of bubbles and gardens that touch each other less and less, reinforcing biases and narrowing visions of the world, excluding those who cannot connect – whether because of financial or logistical barriers, learning difficulties or lack of technical accessibility.

O capitalismo transformou-nos em minúsculas rodas dentadas que nunca param de girar, cedendo informação infinita a máquinas que determinam padrões no meio do caos aparente [ver artigo Esse algoritmo é racista? ] e reorganizam o mundo à nossa volta. Apesar de bem oleado, o sistema é opaco. Quem está de fora não sabe em que direcção gira a engrenagem nem quem a faz girar, nem onde estão as máquinas nem quem as governa. O vidro fosco que nos separa da tecnologia esconde incontáveis ataques aos direitos digitais de cada um. Eduardo Santos, presidente da D3 - Defesa dos Direitos Digitais, uma associação portuguesa sem fins lucrativos, assinala que os “direitos digitais são direitos humanos”.

Capitalism has turned us into tiny cogwheels that never stop spinning, giving infinite information to machines that determine patterns amid the apparent chaos [ see article Is this algorithm racist ? ] and reorganise the world. Although well-oiled, the system is opaque. Outsiders don't know in which direction the gears turn, or who makes them turn, or where the machines are or who governs them. The frosted glass that separates us from technology hides countless attacks on the digital rights of everyone. Eduardo Santos, president of D3 - Defesa dos Direitos Digitais, a Portuguese non-profit association, points out that "digital rights are human rights".

“É uma categoria recente, que ganha alguma autonomia pela especificidade das questões que coloca, mas os direitos em causa são os mesmos”, observa. “Em algumas áreas até parece existir um retrocesso, sendo o caso mais evidente o da privacidade – um direito que não é contestado em relação à nossa vida o��line , mas que está muito longe de ser garantido no que toca à internet”. A D3 tem trabalhado afincadamente na promoção de alternativas que não comprometam os direitos humanos no plano digital, tanto em tomadas de posição públicas como enquanto representantes da sociedade civil nos trabalhos legislativos, em contexto português e europeu, que impliquem este tipo de questões. Neste campo do activismo político em torno dos direitos digitais, importa também mencionar

"It is a recent category, which is gaining some autonomy due to the specificity of the issues it raises, but the rights at stake are the same," he observes. "In some areas there even seems to be a regression, the most obvious case being that of privacy – a right that is not contested in relation to our offline life, but which is very far from being guaranteed when it comes to the internet. D3 has been working hard to promote alternatives that do not compromise human rights at the digital level, not only in public positions but also as representatives of civil society in legislative processes that involve this type of issues, both in Portuguese and European contexts. In political activism around digital rights, it is also important to mention Brazil, where civil society and academic organisations, many of them gathered in the collective Coalizão Direitos na Rede,

* Cairo Braga identifies as a non-binary person, hence we use the gender-neutral pronouns "they/their"

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o Brasil, onde se tem notado uma consolidação nesse sentido de organizações da sociedade civil e da academia, muitas delas congregadas no colectivo Coalizão Direitos na Rede. Com base na Índia, mas com alcance global, há a Just Net Coalition, que reúne sindicatos e outras organizações dedicadas aos direitos digitais e cujo trabalho passa também por tópicos como a soberania alimentar, a justiça ambiental e o feminismo.

As muitas liberdades da palavra “livre”

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have been strengthening their position in the fight to defend digital rights. Based in India, but with a global reach, there is the Just Net Coalition, which brings together trade unions and other organisations dedicated to digital rights and whose work also covers topics such as food sovereignty, environmental justice and feminism.

The many freedoms of the word “free”

Ainda antes de a internet ter uma World Wide Web , já a resistência ecoava por comunidades hackers ligadas à academia, infiltrando-se

Even before the internet had a World Wide Web, resistance was echoing through hacker communities linked to academia, slowly but surely seeping into the corporate ranks. In 1984, Richard M. Stallman published the free software manifesto, starting a movement for change that is still being built today. In this text, the American activist, programmer and hacker argues that software should guarantee its users four freedoms: the freedom to run the program, the freedom to study the code, the freedom to improve it and the freedom to redistribute this improved product. At the time, companies such as Google or Amazon were not even on the horizon. The main concern of the then MIT researcher was the entrenchment of software in hardware developed by computer manufacturers. However, the ideology of user freedom against industry impositions has endured.

Com o passar dos anos, o movimento do so�tware livre evoluiu e, actualmente, a sua ramificação mais conhecida é o open source (código aberto). As implicações ideológicas de um e de outro são ligeiramente diferentes – na prática, todo o so�tware livre é de código aberto, embora o contrário nem sempre seja verdade. É a abertura do código-fonte – o código informático que, de facto, é um determinado so�tware – que garante, por um lado, que o so�tware possa ser devidamente auditado, verificando-se se cumpre aquilo a que se propõe de forma segura, e, por outro, melhorado, num processo de colaboração contínua entre quem assim o desejar. A internet fez com que a ideia de abertura se alastrasse a outras áreas, como a ciência, a educação ou a cultura.

Over the years, the free software movement has evolved and today its best-known offshoot is open source. The ideological implications of both are slightly different – in practice, all free software is open source, but the opposite is not necessarily true. Opening the source code – the computer code which is a certain software – guarantees not only that the software can be properly evaluated to verify if it meets its requirements safely, but also that it can be improved in a process of constant collaboration between anyone who wants to contribute.The internet has made the idea of openness spread to other areas, such as science, education or culture.

lenta mas vigorosamente pelas fileiras empresariais. Em 1984, Richard M. Stallman publica o manifesto do so�tware livre, dando início a um movimento de mudança que ainda hoje está a ser construído. Nesse texto, o activista, programador e hacker americano defende que o so�tware deve garantir quatro liberdades a quem o utiliza: a de executar o programa, a de estudar o código, a de melhorá-lo e a de redistribuir esse produto melhorado. Na altura, empresas como a Google ou a Amazon ainda nem sequer estavam no horizonte. A maior preocupação do então investigador do MIT era o entrincheiramento do so�tware no hardware desenvolvido pelas fabricantes de computadores, mas a ideologia da liberdade do utilizador face às imposições da indústria perdurou.

“A cultura livre é um conjunto de práticas e é também um movimento social e cultural que põe ênfase no direito à participação cultural na internet, o direito de partilhar cultura, de remisturar obras artísticas, adaptá-las, parodiá-las, criticá-las, recriá-las, torná-las comuns”, esclarece Jorge Gemetto. “Este movimento critica a propriedade intelectual e denuncia-a como um obstáculo para a liberdade artística. Não há cultura livre se houver propriedade sobre a cultura. E não há uma sociedade livre sem cultura livre.”

"Free culture is a set of practices and is also a social and cultural movement that emphasises the right to cultural participation on the internet, the right to share culture, to remix artistic works, adapt them, parody them, criticise them, recreate them, make them commonplace," clarifies Jorge Gemetto. "This movement criticises intellectual property and denounces it as an obstacle to artistic freedom. There is no free culture if there is property over culture. And there is no free society without free culture."


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Assim, em todos os seus desdobramentos, a liberdade expressa-se na partilha legal e na possibilidade de adaptação. Em 2001, o salto tornou-se oficial, de certa forma, graças à criação das licenças Creative Commons, que vieram também mostrar um dos possíveis caminhos para tornar o digital um meio mais comunitário e horizontal [ver página 37].

Comunidades de resistência e aprendizagem A força da palavra comunidade impôs-se desde o início nos caminhos enredados pelo avanço das comunicações. E, durante algum tempo, era sobre ela que recaía a esperança da internet enquanto espaço de democratização de oportunidades. Sem intermediários, o mundo podia ser a ostra de todos os criativos, que chegaram e impuseram-se em vagas sucessivas, dos blogues às redes sociais. Pelo caminho, outras tecnologias aliciavam o debate e a participação: fóruns, mailing lists e salas de chat onde se discutiam interesses, paixões e se projectavam alternativas a um sistema que claramente não servia para todos.

Thus, in all its unfoldings, freedom expresses itself in legal sharing and the possibility of adaptation. In 2001, the leap became official, partially thanks to the creation of Creative Commons licenses, which also came to show one way to make the digital a more communitarian and horizontal medium [ see page 37 ].

Communities of resistance and learning The power of the word community has imposed itself on the paths entangled by the advance of communications. And, for some time, this was the word upon which the hope of the internet as a space of democratisation of opportunities rested. Without intermediaries, the world could be the oyster of all creatives, who arrived and prevailed in successive waves, from blogs to social networks. Along the way, other technologies encouraged debate andparticipation: forums, mailing lists and chat rooms where users discussed interests and passions and projected alternatives to a system that was clearly not serving everyone .


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A criação e partilha de conhecimento e recursos comuns tornaram-se o pilar destes ajuntamentos. A experiência de Cairo Braga na comunidade netlabel é, nesse sentido, paradigmática. “É uma comunidade que ensina. Foi lendo e acompanhando as netlabels que eu aprendi como começar uma e foi essa comunidade que me acolheu e ofereceu um mundo novo de cultura livre, descentralizada, onde há espaço para todas”, afirma. “Eu espero que dure para sempre, pois a comunidade das netlabels profetizou a digitalização total e irrestrita da música que vivemos hoje.”

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Unidos por uma língua comum, o espanhol, o movimento da cultura livre ibero-americano assume contornos e uma relevância transnacionais. Organizações como a Nodo Común ou o Colectivo Disonancia rejeitam categorizações limitadas apenas a um país e operam como comunidades virtuais deslocalizadas, divulgando e promovendo ferramentas tecnológicas livres, éticas e seguras, com uma variedade de recursos online, incluindo documentação técnica para iniciantes. No já referido Ártica – Centro Cultural Online, fundado em 2011, organizam-se cursos, seminários, exposições e congressos; uma panóplia de actividades pensadas de raiz para um ambiente exclusivamente online. O seu co-director, Jorge Gemetto, reconhece que a pandemia da Covid-19 “mostrou muitas vezes a pior cara das actividades online”, mas realça que, em boa parte, foi porque se tentaram replicar os modelos dos eventos físicos num espaço com outro tipo de características. Para Gemetto, uma das grandes vantagens do digital é fazer “confluir, no mesmo grupo, pessoas de diferentes cidades e países, com tudo o que isso implica em termos de diversidade”. E acrescenta: “podemos aproveitar a inteligência colectiva para gerar mapeamentos, pesquisas e criações colaborativas de todo o tipo. Podemos partilhar recursos, organizá-los, criar bibliotecas e repositórios”. Ainda que não sejam iguais às que se organizam presencialmente num bairro ou numa cidade, estes acontecimentos ajudam a criar e a fortalecer comunidades, naquilo que considera ser um “aspecto muito rico e libertador [da nossa vida cultural]”. Recentemente, o Ártica passou a integrar a Red de Espacios Culturales del Sur (RECS), sendo o único espaço virtual nessa rede. Surgida em 2020 como resposta à emergência sociocultural imposta pela pandemia, a RECS é uma organização que integra espaços e gestores culturais de sete países da América Latina. Para lá da cultura, sabemos que as desigualdades políticas, sociais e económicas do mundo presencial tendem a ser replicadas e amplificadas no digital. Do outro lado do Atlântico, a resistência tecnológica ergue-se à volta de comunidades cujo destino é traçado à medida de um futuro cada vez mais periclitante. Nas Américas Central e do Sul, colectivos feministas como o Barracón Digital (Honduras), Luchadoras (México) ou o Coding Rights (Brasil) têm

The creation and sharing of common knowledge and resources became the pillar of these gatherings. Cairo Braga's experience in the netlabel community is, in this sense, emblematic. "It is a community that teaches. It was by reading and following netlabels that I learned how to start one and this was the community that welcomed me and offered a new world of decentralised free culture, where there is room for all", they says. "I hope it lasts forever because the netlabels community predicted the total and unrestricted digitalisation of music that we are witnessing today." United by a common language, Spanish, the Ibero-American free culture movement takes on transnational dimensions and relevance. Organisations such as Nodo Común or Colectivo Disonancia reject categorisations limited to just one country and operate as delocalised virtual communities, spreading and promoting free, ethical and secure technological tools, with a variety of online resources, including technical documentation for beginners. The online cultural centre Ártica, founded in 2011, organises courses, seminars, exhibitions and conferences; a panoply of activities designed from scratch for an only online environment. Its co-director, Jorge Gemetto, admits that the Covid-19 pandemic "often showed the worst face of online activities", but stresses it was largely because they tried to replicate the models of physical events in a space with other types of features. For Gemetto, one of the significant advantages of digital is that it "brings together, in the same group, peo-ple from different cities and countries, with all that this implies in terms of diversity." And he adds: "we can take advantage of collective intelligence to generate mappings, research and collaborative creations of all kinds. We can share resources, organise them, create libraries and repositories". While not the same as those organised face-to-face in a neighbourhood or city, these events help to create and strengthen communities, in what he considers being a "very rich and liberating aspect [of our cultural life]". Recently, Ártica joined the Red de Espacios Culturales del Sur (RECS) [Southern Cultural Spaces Network], becoming the only virtual space in this network. Created in 2020 as a response to the sociocultural emergency imposed by the pandemic, RECS is an organisation that integrates cultural spaces and managers from seven Latin American countries. Beyond culture, we know that the digital space replicates and amplifies the political, social and economic inequalities of the physical world. On the other side of the Atlantic, technological resistance is rising around communities whose destiny is being shaped by an increasingly unstable future. In Central and South America, feminist collectives such as Barracón Digital (Honduras), Luchadoras


FREE DOM, SH A RI N G A N D RES I STAN CE

desenvolvido conteúdo e programas de fortalecimento de competências em torno de questões como o so�tware e a cultura livres, os direitos digitais ou a autonomia de infra-estruturas (como servidores, routers e outros tipos de equipamento) enquanto formas de sobrevivência comunitária em regimes e espaços cada vez mais opressivos e antidemocráticos, tanto no online como no o��line , em que as banalidades invasivas do corporativismo tecnológico podem ter um custo demasiado alto.

(Mexico) or Coding Rights (Brazil) have developed content and capacity-building programmes around issues such as free software and culture, digital rights or the autonomy of infrastructures (such as servers, routers and other types of equipment) as forms of community survival in increasingly oppressive and anti-democratic regimes and spaces, both online and offline, where the invasive banalities of technological corporatism may have a great cost.

É importante sublinhar que as mulheres estão particularmente expostas à violência digital, num cenário que não dá sinais de mudança.

It is important to stress that women are particularly exposed to digital violence, in a scenario that shows no signs of changing.

O Web Index , um relatório da organização Web Foundation que mede as contribuições da web para o desenvolvimento social, económico e político em várias regiões do mundo, indica que 74% dos países não têm implementadas medidas legais adequadas ao combate contra a violência de género online . Nos colectivos já mencionados, e em muitos outros, ensina-se e aprende-se sobre como ter uma existência digital mais segura, fomentando a capacitação técnica de mulheres e outros grupos mais vulneráveis, como pessoas não-binárias e LGBTQI+.

The Web Index, a report by the Web Foundation organisation that measures the contributions of the web to social, economic and political development in various regions of the world, shows that 74% of countries have not implemented adequate legal measures to fight online gender violence. The collectives mentioned before, and many others, offer education about how to have a safer digital existence, fostering the technical empowerment of women and other vulnerable groups, such as non-binary and LGBTQI+ people.

Estes programas estão maioritariamente focados na divulgação de práticas e ferramentas mais seguras, da encriptação de mensagens às plataformas de comunicação, complementados com actividades presenciais em comunidade. O so�tware livre é a escolha primordial para quem precisa de saber que os seus dados não serão partilhados com terceiros, ou que não haverá sequer uma recolha indevida dos mesmos. A natureza voluntária destes colectivos, bem como a necessidade de proteger as suas intervenientes, poderão explicar por que não conseguimos que respondessem aos nossos pedidos de entrevista.

These programmes are mostly focused on spreading safer practices and tools, from message encryption to communication platforms, complemented with face-to-face community activities. Free software is the primary choice for those who need to know that their data will not be shared with third parties, or even collected improperly. The voluntary nature of these collectives, as well as the need to protect their stakeholders, may explain why we couldn’t get a response to our interview requests.

Cimentadas no movimento hacker , são também várias as iniciativas que têm apostado na oferta de alternativas no que diz respeito à infra-estrutura. É o caso da CódigoSur (têm sede jurídica na Costa Rica, mas tentáculos por toda a América Latina e o Caribe), um colectivo com elementos de diferentes movimentos sociais cujo objectivo é também promover a soberania digital, o uso e o desenvolvimento de tecnologias livres sob uma perspectiva de género e espaços de debate sobre estes temas. Garantem serviços de alojamento, de comunicação, de armazenamento de dados, entre outros, assentes no so�tware livre e longe das grandes corporações tecnológicas. No Brasil, a servidora independente Vedetas disponibiliza so�tware livre em rede, nomeadamente Ethercalcs e Etherpads (folhas de cálculo e blocos de notas colaborativos, respectivamente),

Rooted in the hacker movement, several initiatives have focused on offering alternatives concerning infrastructure. This is the case of CódigoSur (based in Costa Rica, but with branches all over Latin America and the Caribbean), a collective with members of different social movements whose aim is also to promote digital sovereignty, the use and development of free technologies from a gender perspective and spaces for debate these issues. They guarantee hosting, communication and data storage services, among others, based on free software and far from large technological corporations. In Brazil, the independent server Vedetas provides networked free software, namely Ethercalcs and Etherpads (collaborative spreadsheets and notebooks, respectively), to feminist groups that may need alternatives that do not compromise their privacy.

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a grupos feministas que precisem de alternativas que não comprometam a sua privacidade. De resto, convém não esquecer que “a tecnologia tanto pode ser uma aliada dos direitos humanos como pode levantar novos problemas que não eram previsíveis ou antecipáveis”, lembra Eduardo Santos, da D3. “Existem formas de tentar dar resposta a esses problemas, incluindo a via legal, mas nenhuma é tão eficaz como integrar visões e preocupações relativas aos direitos humanos logo no momento de concepção de qualquer tecnologia.”

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Moreover, we must remember that "technology can be an ally of human rights and raise new problems that were not predictable or preventable", recalls Eduardo Santos, from D3. "There are ways to respond to these problems, including the legal route, but none is as effective as incorporating visions and concerns regarding human rights from the very moment of design of any technology."

Que alternativas para a música?

What alternatives to music?

O activismo pela cultura livre na América Latina é igualmente visível na área da música. Foi no Chile que se arquitectou o Netlabel Day. Desde 2015, dezenas de netlabels aproveitam o dia 14 de Julho para lançarem centenas de novos registos fonográficos, numa celebração da música livre que conta com participantes de mais de 30 países, em quase todos os continentes. Apesar de ter dado como encerrado o projecto da Elegant Elephant por falta de tempo, em 2021 Cairo Braga reavivou temporariamente a editora para assinalar o Netlabel Day pelo sexto ano consecutivo, produzindo em velocidade relâmpago um novo EP, intitulado Ultimatum/ Imediatum .

The free culture activism in Latin America is also clear in the music sector. Netlabel Day was created in Chile. Since 2015, dozens of netlabels release hundreds of new phonographic records on 14 July, in a celebration of free music that has participants from over 30 countries, in almost every continent. Although Cairo Braga shut down the Elegant Elephant project due to not having enough time, in 2021 they temporarily brought back the label to mark Netlabel Day for the sixth consecutive year, producing a new EP at lightning speed, entitled Ultimatum/ Imediatum .

Este evento talvez seja um grão de areia na construção de uma alternativa digital à distribuição de música actualmente, mas está longe de ser o único. Afinal, lembra Cairo Braga, “a pandemia expôs como o modelo de negócio do streaming , que nada mais é do que as majors mantendo o status quo e sua posição de poder, afunila ainda mais as possibilidades de se viver da música” [ver artigo Streaming Socializado ].

Perhaps this event might be a grain of sand in the construction of a digital alternative to music distribution today, but it is far from the only one. After all, reminds Cairo Braga, "the pandemic exposed how the streaming business model, which means nothing less than the majors keeping the status quo and their position of power, further narrows the possibilities of making a living from music." [see article Socialized Streaming ].

Há, no entanto, quem se atreva a repensar e a tentar modelos de negócio e estruturas mais justas, tanto para os artistas como para quem os apoia (e que vão além do Bandcamp, o caso mais mediático). A plataforma de streaming Resonate (Alemanha) funciona como uma cooperativa que pertence a artistas, ouvintes e aos trabalhadores da empresa. No activo desde 2015, baseia o seu modelo de negócio numa lógica de stream2own , em que ao fim de nove audições a faixa está paga e é como se quem a ouviu a tivesse comprado. Já nos EUA, um grupo de 30 compositores e instrumentistas avant-garde também escolherem a via cooperativista, lançando o seu próprio micro-serviço de streaming no início deste ano. O Catalytic Soundstream distingue-se pela curadoria do conteúdo, bem como pela exclusividade de muito do que lá se pode ouvir, retirando intermediários do processo de distribuição.

There are, however, those who dare to rethink and try business models and structures that are fairer both for the artists and for those who support them (and that goes beyond Bandcamp, the most popular case). The streaming platform Resonate (Germany) operates as a cooperative owned by artists, listeners and the company's workers. Active since 2015, the platform operates through a stream2own model, which splits the cost of a download into plays: after nine plays, users effectively pay for the song and can own it outright. In the US, a group of 30 avant-garde composers and instrumentalists also chose the cooperative route, launching their own streaming micro-service earlier this year. Catalytic Soundstream is notable for the content curation, as well as for the exclusivity of much of what can be heard there, removing intermediaries from the distribution process.


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Mas o direito à cultura (e, naturalmente, à música) é mais do que um modelo de negócio. Para a programadora e activista Esra'a Al Shafei, do Bahrein, pequeno arquipélago no Golfo Pérsico, “a música é mais do que uma expressão criativa: funciona como uma ferramenta social que amplifica movimentos por justiça e a voz de comunidades marginalizadas”. Em 2010, criou o MidEast Tunes, uma plataforma de streaming orientada para músicos independentes do Médio Oriente e Norte de África, cujos trabalhos são muitas vezes censurados nessas regiões. Financiado por donativos individuais, por bolsas atribuídas pelo Arab Culture Fund e por fundos da União Europeia, este serviço é de acesso gratuito e não exige registo de conta, de maneira a assegurar a privacidade dos ouvintes.

But the right to culture (and, naturally, to music) is more than a business model. For the programmer and activist Esra'a Al Shafei, from Bahrain, a small archipelago in the Persian Gulf, "music is more than a creative expression: it functions as a social tool that amplifies movements for justice and the voice of marginalised communities". In 2010, she created MidEast Tunes, a streaming platform geared towards independent musicians from the Middle East and North Africa, whose work is often censored in those regions. Financed by individual donations, grants from the Arab Culture Fund and funds from the European Union, this service is free to access and does not require account registration to ensure listeners' privacy.

Esra'a Al Shafei faz questão de sublinhar que o so�tware de código aberto é a base de todo o seu trabalho e que “a tecnologia tanto pode ser usada para instaurar censura como para lutar contra ela”. É uma faca de dois gumes. “Dependemos de plataformas de comunicação encriptadas e ferramentas anonimizadas, mas elas têm de ser devidamente auditadas e mantidas, de modo a evitar que sejam comprometidas”, esclarece. “Daí que criar recursos anti-censura e anti-vigilância tecnológica seja um dos passos mais importantes que podemos dar enquanto sociedade, para prevenir a normalização deste policiamento constante das nossas actividades online ”. Do lado dos artistas, Esra'a Al Shafei afirma que a recepção tem sido bastante positiva, já que a plataforma lhes oferece uma exposição alargada, incluindo na imprensa local e internacional, chegando a públicos dificilmente alcançáveis de outra forma.

Esra'a Al Shafei is keen to stress that open source software is the basis of all her work and that "technology can be used both to establish censorship and to fight against it." It's a double-edged sword. "We rely on encrypted communication platforms and anonymised tools, but they need to be properly audited and maintained to prevent them from being compromised," she clarifies. "Hence, creating anti-censorship and anti-surveillance technology resources is one of the most important steps we can take as a society to prevent the normalisation of the continuous policing of our online activities." On the artists' side, Esra'a Al Shafei says the reception has been quite positive, as the platform offers them wide exposure, including in the local and international press, reaching audiences hardly reachable otherwise.

Para lá da distribuição, artistas como Moritz Simon Geist ou Khyam Allami têm desconstruído o processo de composição musical, alargando perspectivas e possibilidades. Geist desenvolveu robôs-instrumento capazes de compor e tocar as suas próprias obras, como já aconteceu em instalações e performances apresentadas no Museu da Ciência em Milão ou na Filarmónica de Paris. Já Allami refuta a ideia de que existe uma neutralidade tecnológica na criação musical ancorada em ferramentas digitais, focando-se na hegemonia ocidental dos fabricantes deste tipo de so�tware .

Beyond distribution, artists like Moritz Simon Geist or Khyam Allami have deconstructed the process of music composition, broadening perspectives and possibilities. Geist has built robot instruments capable of creating and playing their own music, which have been shown in installations and performances as in the Science Museum in Milan or the Philharmonic in Paris. Allami argues against the principle of technological neutrality in digital music creation, focusing on the Western hegemony of this type of software manufacturers. We can find this, for example, in the poor implementation of functions to make

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Isso reflecte-se, por exemplo, na má implementação de microtonalidades habitualmente presentes na música tradicional árabe, apesar de protocolos como o MIDI estarem bem preparados para estas variações.

microtonalities commonly present in traditional Arabic music intuitive to use, despite protocols such as MIDI being well prepared to explore these variations.

Novos caminhos e significados

Alternative paths and meanings

Tal como as desigualdades sociais não foram apagadas pelo digital, também as lógicas colonialistas do capitalismo são replicadas com tenacidade neste contexto. O Ocidente, mais concretamente os EUA, domina a internet com prejuízo significativo para a região Sul. À medida que as principais megacorporações tecnológicas – denominadas por GAFAM, ou seja, Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft – se apropriam de conjuntos gigantescos de dados, informações sobre os consumidores, ferramentas e conhecimento, fechando-os como maneira de os controlar e de aniquilar potenciais concorrentes, países com menos recursos económicos ficam à sua mercê, na ânsia de não poderem ficar para trás num mundo inevitavelmente digitalizado.

Just as social inequalities have not been eradicated by digital technology, the colonial logics of capitalism are also deeply mirrored in this context. The West, namely the US, controls the internet to the significant detriment of the South. As the main mega tech-corporations – also known as GAFAM, that is, Google, Amazon, Facebook, Apple and Microsoft – hold gigantic sets of data, consumer information, tools and knowledge, they lock them up to control them and to eliminate potential competitors. Meanwhile, countries with fewer economic resources are at their mercy, desperate not to be left behind in an inevitably digitalised world.

“Em países como a Índia ou o Brasil, milhões de pessoas acreditam que o Facebook é sinónimo de internet”, nota Cairo Braga, salientando um dos efeitos perniciosos desta hegemonia. Totalizando mais de 1600 mil milhões de habitantes, tanto um como o outro são dos maiores mercados digitais em expansão, algo fundamental para um sistema que favorece o crescimento do lucro. Paralelamente, gigantes tecnológicas chinesas, como a Tencent e Alibaba, disputam acerrimamente com as GAFAM o domínio sobre a infra-estrutura digital do continente africano, onde, segundo as estimativas do Banco Mundial, apenas 22% da população tem acesso à internet.

"In countries like India or Brazil, millions of people believe Facebook is synonymous with the internet", notes Cairo Braga, highlighting one of the pernicious effects of this hegemony. Totalling over 1600 billion inhabitants, both are among the largest digital markets in expansion, something crucial to a system that favours the growth of profit. At the same time, Chinese technology giants, such as Tencent and Alibaba, are engaging in fierce competition with GAFAM for dominance over the digital infrastructure of the African continent, where, according to World Bank estimates, only 22% of the population has access to the internet.

Urge, assim, minimizar as desigualdades de acesso e os fossos na literacia, sem descurar que os caminhos escolhidos para o desenvolvimento tecnológico definem partes fundamentais da nossa coexistência enquanto cidadãos num mundo permanentemente ligado. Neste contexto, Cairo Braga não tem dúvidas: “É por isso que esse tipo de alternativas [livres] é importante. E fica mais interessante ainda quando notamos que a questão da internet descentralizada e focada na privacidade se fortaleça e ganhe mais espaço justamente quando a internet corporativa do capitalismo neoliberal se torna pior, mais sufocante e cancerígena a cada dia.” Essa dinâmica “reactiva”, diz Cairo, dá-lhe “esperança, até utópica”, de que é possível “salvar a internet” e resignificar o relacionamento que temos com ela e que temos uns com os outros, através dela. No fundo, “transformá-la, de facto, numa rede”. /

It is thus urgent to fill the gaps in digital access and literacy, without ignoring the fact that the paths we choose for technological development determine essential parts of our coexistence as citizens in a permanently connected world. In this context, Cairo Braga has no doubts: "That's why these types of [free] alternatives are important. And it gets even more interesting when we notice that the decentralised, privacy-focused internet idea is growing strong and gaining ground just when the corporate internet of neoliberal capitalism becomes worse, more suffocating and noxious every day." This "reactive" dynamic, Cairo says, gives they "hope, even utopian hope" that it is possible to "save the inter-net" and resignify our relationship with it and, through it, with each other. Essentially, there is hope to "transform it, effectively, into a network". /


Creative Commons: o que é? As Creative Commons são licenças públicas de direito de autor e direitos conexos criadas especificamente para o contexto digital. De livros a filmes, de música a fotografia, hoje existem mais de dois mil milhões de trabalhos licenciados sob Creative Commons, o que significa que têm apenas alguns direitos reservados. Ou seja, podem ser livremente partilhados e distribuídos mediante as condições definidas pelo próprio autor – entre elas incluem-se, ou não, a obrigatoriedade de atribuição de autoria, restrições a utilizações com fins comerciais ou a criação de derivações da obra em causa. Esta modularidade desdobra-se num total de seis licenças, umas mais permissivas do que outras, e uma marca de domínio público para quem queira abdicar de todos os direitos. As Creative Commons tornaram-se particularmente populares junto de instituições ligadas à educação e à preservação cultural, como universidades, bibliotecas ou museus, mas também em circuitos artísticos de produção independente. Cairo Braga reconhece neste sistema “um modelo alinhado na ética e na prática com a realidade material da cultura na internet”. Espelha a sua “transformação constante e até caótica”, além de ter “um elemento que incentiva à colaboração, à colectividade, e que combate certos conceitos capitalistas e colonialistas de posse e propriedade no âmbito da cultura, simultaneamente respeitando o papel dos autores de uma maneira que ultrapassa a questão do dinheiro”. Em 2012, quando ainda vivia na sua cidade natal, São Paulo, Cairo fundou a Elegant Elephant, que editava sob Creative Commons, apresentando-se como uma netlabel queer e “uma experiência faça-você-mesmo” que visava “proporcionar a artistas não-homens-não-cisgênero-não-hétero espaço e acesso a meios de distribuição digital de música”. No seu manifesto aparecia bem sublinhado: “acreditamos em comunidade”.

Creative Commons: what is it? Creative Commons are public copyright licences and related rights created specifically for the digital context. From books to films, music to photography, today there are over two billion works licensed under Creative Commons, meaning they have only some rights reserved. They can be freely shared and distributed under conditions set by the author – these include, but are not limited to, mandatory attribution, restrictions on commercial use or the creation of derivatives of the work. This modularity unfolds into six licences, some more permissive than others, and a public domain label for those who wish to give up all rights. Creative Commons has become particularly popular with institutions linked to education and cultural preservation, such as universities, libraries or museums, but also in independent artistic circuits. Cairo Braga recognises in this system "a model aligned in ethics and in practice with the material reality of culture on the internet." It reflects its "constant and even chaotic transformation", as well as having "an element that encourages collaboration, collectivity, and that fights certain capitalist and colonialist concepts of possession and ownership in the field of culture, while simultaneously respecting the role of authors in a way that goes beyond money." In 2012, while still living in their hometown of São Paulo, Cairo founded Elegant Elephant, which published under Creative Commons, presenting itself as a queer netlabel and "a DIY experience" that aimed to "provide non-male-non-cisgender-non-hetero artists with space and access to means of digital distribution of music." In their manifesto, it was well underlined: "We believe in community."

RUTE CORREIA É CO-FUNDADORA E DIRECTORA DO INTERRUPTOR, UMA REVISTA MULTIMÉDIA CENTRADA NA CULTURA E EM JORNALISMO DE DADOS. O SEU PERCURSO PROFISSIONAL DIVIDE-SE ENTRE A RÁDIO, A MÚSICA, OS VIDEOJOGOS E AS INDÚSTRIAS TECNOLÓGICAS. É UMA ENTUSIASTA DA DIVULGAÇÃO DA CULTURA LIVRE, COM FOCO EM SOFTWARE LIVRE E MODELOS ALTERNATIVOS DE LICENCIAMENTO DE CONTEÚDO, COMO AS CREATIVE COMMONS. FEZ PARTE DO PROJECTO MOZILLA OPEN LEADERSHIP. PROGRAMA EM PYTHON MAS NÃO SE CONSIDERA PROGRAMADORA. RUTE CORREIA IS CO-FOUNDER AND THE DIRECTOR OF INTERRUPTOR, A CULTURE-FOCUSED MULTIMEDIA MAGAZINE DRIVEN BY DATA. SHE HAS WORKED IN RADIO BROADCASTING, MUSIC, VIDEO GAMES AND TECH INDUSTRIES. SHE IS AN ENTHUSIAST FOR THE DISSEMINATION OF FREE CULTURE, WITH A FOCUS ON FREE SOFTWARE AND ALTERNATIVE CONTENT LICENSING SCHEMES, SUCH AS CREATIVE COMMONS. SHE WAS PART OF THE MOZILLA OPEN LEADERSHIP PROJECT. SHE CODES IN PYTHON BUT DOES NOT CONSIDER HERSELF A PROGRAMMER.

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LI EH NÓS ZONA, ZAMBUJAL, EH SABI

TEXTO E ENSAIO FOTOGRÁFICO POR HUGO BARROS


TEXT AND PHOTO ESSAY BY HUGO BARROS



L I EH N ÓS ZON A , ZA MB UJAL , E H SAB I

7:00. Bairro do Casal da Boba, Amadora. Acordo e acompanho o trajecto da minha mãe para mais um dia de trabalho. Numa luta constante para combater as nossas dificuldades, para sustentar uma casa, ela precisa de ter dois empregos. Ainda assim, está sempre com um sorriso na cara, o que faz dela uma inspiração para mim. Vejo este trajecto diariamente. 7 a.m. Neighbourhood of Casal da Boba, Amadora. I wake up and follow my mother’s journey to another day of work. In a constant struggle to overcome the difficulties in our life, to support our family, she must work two jobs. Still, she always has a smile on her face, making her an inspiration to me. I watch this journey daily.

PT Sigo a minha viagem para a zona onde fui criado, o Bairro do Zambujal, um bairro da Amadora com ligação à Buraca/ Cova da Moura e ao Bairro da Boavista. Foi lá que cresci. Nesse percurso, paro sempre em casa da minha avó, na qual me desenvolvi – acredito que as nossas casas tornam-nos nas pessoas que somos, que vimos a ser. É o nosso universo que depois se perfaz com as nossas visões e vivências de rua, as aprendizagens com amigos e conhecidos, num complemento que nos guia. Na rua, as convivências acontecem lado a lado com a partilha de conhecimento, com experiências, com brincadeiras. Isto é o que procuro mostrar nos meus registos.

EN I follow my way to the place where I was raised, the neighbourhood of Zambujal, a neighbourhood in Amadora connecting to the neighbourhoods of Buraca/Cova da Moura and Boavista. That's where I grew up. When I’m on this route, I always stop at my grandmother's house, where I grew to become the person I am - I believe the houses we live in make us who we are and who we come to be. It is our universe then expanding with our visions and street life, the learning experiences we get from friends and buddies, like added guiding features. In the street, companionship happens side by side with knowledge sharing, experiences, jokes. This is what I try to show in my work.

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Tudo começou com uma proposta que recebi no período em que estava a tirar uma licenciatura em fotografia e cujo objectivo era criar uma revista digital. Pensei em regressar às vivências da minha infância, que se perderam quando me mudei para o Casal da Boba, onde entrei numa etapa da minha vida em que praticava desporto e estudava em Lisboa, sem tempo para ir regularmente ao Zambujal. O projecto foi desenvolvendo-se até chegar ao ponto em que decidi fazer um protótipo de um photobook, intitulado 2610 (o código postal do Bairro do Zambujal). Este livro retrata parte das convivências quotidianas que iam acontecendo nesse período, iniciado em 2016, desde festas a produções musicais e visuais. Procurei acompanhar vidas diferentes, mas todas elas unidas por um pacto que revela aquilo que é uma comunidade. Quis mostrar também o seu lado mais privado, ou íntimo, fotografando os interiores das casas que frequentava. Este projecto, que ainda não terminou, tem uma componente muito forte de retratos espontâneos: o facto de eu já ter uma ligação com as pessoas fez com que a minha presença não as deixasse desconfortáveis. Muitas vezes, quando voltava ao bairro sem a câmara, perguntavam-me por ela. Depois de todo esse registo fotográfico, senti que tinha de existir algo mais. Decidi pegar em algumas filmagens que tinha feito do nosso quotidiano. Queria que se ouvisse o ambiente. A partir dessas filmagens surgiu o documentário 2610 – Bairro Zambujal. Nele, em 22 minutos, tentei representar o dia-a-dia dos moradores, introduzindo entrevistas em que se fala sobre situações a que estamos sujeitos por sermos de onde nos colocaram. Muitas vezes, sentimo-nos postos de parte e olhados de lado por quem não habita nestes bairros. O documentário apresenta essa questão negativa, mas, ao mesmo tempo, procura quebrar esse olhar construído pela sociedade, convidando as pessoas que não vivem essa realidade a quererem, de alguma forma, fazer parte dela.

It all started while I was studying for a degree in photography and received a proposal to create a digital magazine. I thought of going back to my childhood experiences that were lost after I moved to Casal da Boba. During this period, I was practising sports and studying in Lisbon, leaving me little time to go to Zambujal. The project developed to a point where I decided to turn it into a photobook prototype, entitled 2610 (Zambujal’s postal code). From parties to musical and visual productions, the book portrays part of the neighbourhood’s daily sociabilities during a period started in 2016. I tried to follow different lives, still bound by a pact that unveils what is the essence of a community. I also wanted to portray a more private or intimate side by capturing the interiors of the houses I visited. This project, which is yet to be finished, has a significant element of spontaneous portraits: that I had a previous connection with the community made them feel comfortable with my presence. Often, when returning to the neighbourhood without my camera, people would ask me about it. After all the photos taken, I felt there had to be something more. I went through some footage I had taken of our daily life. I wanted the background to be heard. This footage resulted in the documentary 2610 - Bairro Zambujal. I tried to represent the daily life of the neighbourhood in 22 minutes, including interviews with residents talking about experiences we live just because we come from a place that was forced upon us. Often, we feel left out. We feel looked down upon by those who don’t live here. The documentary tackles this negative issue, while tries to break down this socially built perception by inviting people foreigner to this reality to somehow want to be part of it.

Nos bairros sociais há jovens com grande talento que passam despercebidos e que, tantas vezes, se sentem oprimidos por quem está de fora. Falando concretamente do Zambujal, o bairro é habitado por diferentes etnias – as pessoas misturam-se, partilham as suas culturas, os seus costumes, as suas ancestralidades, e a língua falada entre a maioria é o crioulo. Nós dizemos: “Li eh nós zona, Zambujal, eh sabi” (“Aqui é a nossa zona, Zambujal, e gostamos”). Há leis, há dialectos, há hinos, há cumprimentos, há ideias, há códigos inconfundíveis.

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There are young people in social neighbourhoods with exceptional talent who go unnoticed and often feel oppressed by the outside world. Speaking specifically of Zambujal, the neighbourhood is a place where people from different ethnic groups come together – people mix and interact, share their cultures, their customs, their ancestries, and the language spoken by the majority is Creole. We say: "Li eh nós zona, Zambujal, eh sabi" ("This is our territory, Zambujal, and we like it"). There are laws, dialects, chants, greetings, ideas, unmistakable codes.




L I EH N ÓS ZON A , ZA MB UJAL , E H SAB I

Entretanto, contei-vos tudo. Agora é hora de voltar para casa. São 21:00. Apanho o comboio na Damaia e saio na estação da Amadora. Percebo que ainda faltam uns minutos para chegar o autocarro, então caminho até à Boba, dez minutos de passada larga. Chego a casa, já são quase 22:00, a porta está trancada. Batem as 23:30 e oiço a minha mãe chegar. Cumprimentamo-nos e vamos descansar, porque amanhã é dia. / In the meantime, I've told you everything. Now it's time to go home. It's 9 p.m. I take the train in Damaia and get off at Amadora station. I realise I still have to wait before the bus arrives, so I walk to Casa da Boba about ten minutes at a steady pace. I arrive home, it's almost 10 p.m., the door is locked. It's 11:30 p.m. and I hear my mother arriving. We greet each other and go to bed because tomorrow life continues. / 49 HUGO BARROS, NASCIDO E CRIADO NA AMADORA, É FOTÓGRAFO E VIDEOMAKER . TEM UM PROJECTO EM DESENVOLVIMENTO SOBRE OS BAIRROS SOCIAIS NA PERIFERIA DE LISBOA, ANCORADO NUMA SÉRIE DE IMAGENS E QUE SE COMPLETA COM UMA CURTA-METRAGEM DE CARIZ DOCUMENTAL, INTITULADA 261 0 – BAIRRO ZAMBUJAL , DISPONÍVEL NO YOUTUBE.

HUGO BARROS IS A PHOTOGRAPHER AND VIDEOMAKER BORN AND RAISED IN AMADORA, A CITY ON THE OUTSKIRTS OF LISBON. HE’S BEEN DEVELOPING A PROJECT FOCUSING ON THE SOCIAL NEIGHBOURHOODS IN THE PERIPHERY OF LISBON. THE PROJECT IS ANCHORED IN A SERIES OF IMAGES AND COMPLETED WITH A SHORT DOCUMENTARY FILM ENTITLED 2610 - BAIRRO ZAMBUJAL , AVAILABLE ON YOUTUBE.


OP I N I Ã O

PARA ONDE IR AGORA? PT A comunidade acontece na pista de dança. O profundo sentimento de pertença a subir pela coluna vertebral, corpos carregados de felicidade e catarse em puro êxtase. Para algumas pessoas é apenas uma saída à noite; para muitas é uma bóia de salvação. Regressar depois deste período traumático sem um verdadeiro guia do que devemos fazer para não só mantermos estes espaços abertos, mas também funcionais para as comunidades que os procuram, seria colocá-los ainda mais em perigo. Assim, enquanto nos vão chegando vislumbres de normalidade, questiono-me: para onde ir agora?

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Mais de um ano depois de o mundo ter ficado de pernas para o ar, os efeitos duradouros do isolamento, do medo e do luto começam apenas agora a tomar totalmente conta de mim. Nos últimos dias de Março de 2020, em pleno coração da tempestade, escrevi um artigo para o Resident Advisor no qual tentei imaginar futuros possíveis (confissão: este é um dos meus passatempos do momento). Lembro-me de sentir a intensa necessidade de me manter optimista acima de tudo – não compreendíamos bem em que versão do mundo estávamos prestes a entrar, quanto mais qual seria a sua aparência depois disso. Por isso mesmo, sentia-me atraída pelo seu potencial. Não era uma perspectiva completamente cor-de-rosa: sentia-me consciente de como podíamos ser incapazes de melhorar o que precisava de ser melhorado, mas escolhi acreditar na magia do caos como uma espécie de força construtiva. E agora, à medida que a minha caixa de entrada do email volta rapidamente ao seu antigo aspecto doentio, torna-se cada vez mais difícil manter-me optimista. Estou mentalmente esgotada por me dedicar a eventos que ainda estão por acontecer; por tentar manter artistas motivados que ainda têm de pedir aos promotores para repensarem alinhamentos exclusivamente compostos por pessoas brancas; por me chegarem às mãos contratos que são uma sentença de morte lenta para agências independentes;

EN Community happens on the dance floor. The deep sense of belonging crawls up your spine, bodies electric with joy and catharsis in pure ecstasy. For some, it's just a night out; for many, it’s a lifeline. The idea of returning after this traumatic period with no real roadmap of what we must do to not only keep these spaces open, but also functional for the communities who seek it, would be to further endanger it. So, as ideas of normality approach us, I wonder: where to now? Over one year after the world turned upside-down the long-lasting effects of isolation, fear, and grief are only starting to fully set in for me. On the last days of March 2020, right inside the eye of the storm, I wrote an article for Resident Advisor where I tried to imagine possible futures (full disclosure: this is a hobby of mine at this point). I remember feeling this intense need to remain optimistic above all else; we didn't quite grasp what version of the world we were about to enter, let alone what it would look like after that, so I felt drawn to its potential. It wasn't a completely rose-tinted outlook - I felt aware of the ways in which we could fail to reform what needed reforming, but I chose to believe in the magic of chaos as a constructive force. So now, as my inbox quickly returns to its former unhealthy form, I find it increasingly difficult to remain optimistic. I am burnt-out from putting in work for events that are still not happening; from trying to keep artists motivated from still having to ask promoters to rethink all-white lineups; from being thrown contract terms that are a slow death sentence to independent agencies; from being expected to know every quarantine rule of every territory across the globe. If the job was hard before, now it is near maddening. There are, of course, positives to look forward to. Despite this industry’s insistence on being simultaneously a place of progress and gatekeeping, its ability to reinvent and adapt are second to none.


OP I N I ON

WHERE TO NOW? por esperarem que eu saiba todas as regras de quarentena de todas as regiões do planeta. Se antes o trabalho era duro, agora está perto de ser enlouquecedor. Existem, claro, aspectos positivos no horizonte. Apesar de a insistência desta indústria em ser simultaneamente um espaço de progresso e de muros, a sua capacidade de reinvenção e de adaptação não tem igual. Os promotores tiveram de garantir o bem-estar dos seus espaços durante este período e têm de se certificar de que isto continua a ser uma prioridade:

Reimaginar a programação como veículo para criar comunidades é crucial para os tempos que aí vêm. Pressionar os governos para reconhecerem os clubes nocturnos como parte essencial da cultura, como foi recentemente alcançado na Alemanha, será a chave para a sobrevivência dos mesmos. Não só por razões práticas e imediatas, como permitir que tenham acesso a determinando fundos, mas também pela mudança a longo prazo da narrativa usada quando se fala sobre estes espaços. As conversas sobre a remuneração de artistas, a sindicalização e a criação de plataformas independentes que defendem o pagamento justo pelo acesso a conteúdo inesgotável têm de continuar, pois isto é apenas a ponta do icebergue. Os padrões da indústria de promoção de espaços mais seguros e de locais de trabalho equitativos devem entrar no mainstream e deixar de ser vistos como tarefas próprias de uns quantos independentes. De forma lenta mas consistente, estes tópicos têm vindo a instalar-se na linha da frente desta indústria e é aí que devem permanecer. Termos sido forçados a fazer uma pausa significou termos tido a capacidade de aprofundar o verdadeiro significado dos espaços ao vivo: são onde as nossas vidas, crenças e sentimentos de liberdade se reflectem directamente em nós. /

Promoters have had to nurture their local scenes during this period and they must make sure that this remains a priority:

Reimagining programming as a way to build community is crucial for the times ahead. Pushing for governments to acknowledge nightclubs as an essential part of Culture, as recently achieved in Germany, will be key to their survival; not only for practical and immediate reasons such as allowing them to access certain funds, but also for the long term shift in language when talking about these spaces. The conversations about artist remuneration, unionising, and creating independent platforms that champion fair payment over endless content must also continue as we’ve not even scraped the surface yet. Industry standards for pushing for safer spaces and equitable workplaces must break into the mainstream and not be seen as tasks only for the independent few. These topics have slowly but surely made their way into the forefront of the industry and that’s where they should remain. Being forced to pause has meant that we’ve been able to dig deeper into the true meaning of live, physical spaces: they are where our lives, beliefs and sense of freedom are reflected right back at us. /

CARIN ABDULÁ IS THE HEAD AGENT AT OUTER, AN AGENCY FOR CUTTING EDGE ELECTRONIC MUSIC, WORKING WITH ARTISTS SUCH AS CATERINA BARBIERI, RROXYMORE, DBRIDGE AND MORITZ VON OSWALD. SHE ALSO WORKS WITH TRESOR RECORDS AS A CURATOR AND STRATEGIST AND HAS BEEN RECENTLY APPOINTED AS PROJECT LEADER FOR BLACK ARTIST DATABASE’S [PAUSE] INITIATIVE WHICH PUSHES FOR MORE EQUITABLE SPACES FOR BLACK PROFESSIONALS IN THE MUSIC INDUSTRY.

CARIN ABDULÁ É DIRECTORA DA OUTER, AGÊNCIA DEDICADA À MÚSICA ELECTRÓNICA DE VANGUARDA. TRABALHA COM ARTISTAS COMO CATERINA BARBIERI, RROXYMORE, DBRIDGE E MORITZ VON OSWALD. ALÉM DISSO, COLABORA COM A TRESOR RECORDS COMO CURADORA E ESTRATEGISTA E, RECENTEMENTE, FOI NOMEADA DIRECTORA DE PROJECTO DA INICIATIVA [PAUSE], CRIADA PELA BLACK ARTIST DATABASE PARA PROMOVER ESPAÇOS DE TRABALHO MAIS EQUITATIVOS PARA OS PROFISSIONAIS NEGROS NA INDÚSTRIA MUSICAL.

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HÁ DIÁLOGO ENTRE ARTE MARGINAL E A ACADEMIA?

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PT Há uns dias, numa grande jantarada com artistas locais da cena lisboeta, a minha presença causou espanto e desconforto por causa do meu trânsito entre o mundo da arte e da academia portuguesa, bem como os reflexos e reflexões diante desta movimentação.

EN A few days ago, at a big dinner with local artists of the Lisbon scene, my presence caused confusion and discomfort not only because of my transit between the art world and the Portuguese academy but also because of the reactions and reflections before this movement.

Inicialmente, o espanto foi gerado por ser um corpo negre queer imigrante que ocupa uma posição de diálogo com outros corpos semelhantes, na produção artística e de conhecimento. E, por consequência, o desconforto perante estes mesmos corpos, classificados como "marginais", ocuparem o centro da atenção atual para discussões já calejadas, que lentamente deixam os centros de investigação em direção ao debate cotidiano.

Initially, the confusion came from me being a Black queer immigrant body that sits in a position of dialogue with other similar bodies in artistic and knowledge production. And hence the discomfort before these same bodies classified as "marginal" for being at the centre of current attention in already hardened discussions that slowly leave the research centres to become subjects of everyday debate.

Ao longo do encontro, um dos convidados, aparentemente surpreso com o meu percurso percurso esse que conversa com temas relacionados à (re)territorialização coletiva, identidade, ativismo e performance antirracista na produção cultural, artística e cientifica queer de fazedores negres em diaspórica por Portugal - , logo me veio com a seguinte pergunta: “Há dialogo entre a arte que fazes e a academia?”

During the gathering, one of the guests, apparently surprised by my path – a path that converses with themes related to collective (re) territorialisation, identity, activism, and antiracist performance in the Black queer cultural, artistic, and scientific production in diasporic Portugal –, soon came to me with the following question: "Is there a dialogue between the art you make and the academy?"

Para entender o contexto dessa fala é preciso entender o que é legitimado como movimentos e peças artísticas, sendo a academia o lugar onde certas produções científicas chancelam o que pode ser considerado um trabalho artístico ou não, por seguir um contexto quase que de subalternidade entre a academia e o artista. Isso faz com que se estabeleça um distanciamento considerável entre o universo académico e as práticas artísticas de alguns atores, especialmente aqueles que compreendem profissionais da arte que trabalham de forma independente, que levam em sua mensagem artística temas caros para algumas instituições de arte e de ensino.

To understand the context of this speech we need to understand which artistic movements and artworks are legitimised, being the academy the place where certain scientific productions determine what can and what cannot be considered an artwork, as they conform to a context of near subalternity between the academy and the artist. This causes a considerable distance between the academic universe and the artistic practises of some players, especially of those comprising art professionals who work independently and who convey in their artistic message subjects that are dear to some art and teaching institutions.

Neste sentido, a partir da minha vivência entre a academia e a arte, - especialmente com trabalhos que envolvem diálogo com pesquisas e ações em manifestações artísticas e culturais urbanas ativadas por grupos "marginais"-,

In this sense, from my the experience between academy and the art world, -especially with work that involves dialogue with and actions found in urban artistic and cultural manifestations activated by "marginal "groups-, I feel the hierarchization of powers, of authority, and dominant narratives.


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IS THERE A DIALOGUE BETWEEN MARGINAL ART AND THE ACADEMY? sinto na pele a hierarquização de poderes, de cadeiras e de domínio de narrativas. Esta está quase sempre arraigada em percepções elitistas, cisgêneras e coloniais, além de regidas por um padrão estético proveniente de uma construção de uma ideia do ser, do fazer, do estar.

É por isso que grande parte das discussões que alimentam o debate nos projetos de investigação científica hoje em Portugal não exploram o que há de mais pulsante nas manifestações culturais do país. Especialmente no que tange aos territórios/espaços periféricos, que já por muito tempo estão a produzir matéria fresca, viva, com ricas reflexões, que ultrapassam categorizações comerciais do que seria uma "Nova Lisboa”, que na verdade não é tão nova assim. Estes coletivos e artistas com quem cotidianamente tenho a honra de trabalhar são constantemente postos à margem dos centros, que se apresentam como zonas abocanhadas por uma estética já legitimada, por personagens que se integram em espaços tradicionais da arte e da academia, fechando-se no seu ego e no engessamento de suas variantes de pensamento, sempre a partir dos nobres e brandos e/ou brancos costumes. No entanto, há um mundo fora da bolha que luta por viabilizar a partilha de trabalhos oriundos de manifestações culturais que em nada se alinham com os currículos dos cursos de artes e dos aparelhos de ensino. Estes artistas recorrem a meios mais democráticos, como a internet, fugindo dos processos de validação com autonomia e afrontamento. E por falar em internet, com a cibercultura é possível encontrar uma rota por hackear ambos os mundos. Pela autonomia de partilha, livre produção e distribuição, através de atos comprometidos com o rompimento das práticas hegemônicas de poder e com a validação artística que percorrem os discursos já datados do que é um artista/criador profissional ou amador. Estes são difundidos por meio de plataformas digitais, como é o caso da UNA - União Negra das Artes, que vem pôr em tensão, através de uma investigação inteiramente digital, a representação de artistas negres na arte portuguesa, para acabar de vez com a ideia de que não há material nem base artística para o tema.

This is almost always rooted in elitist, cisgender, and colonial perceptions, besides being ruled by an aesthetic standard derived from a certain construction of being and doing.

Therefore, today in Portugal, most of the discussions fostering the debate within scientific research projects do not explore what is most vibrant in the country's cultural manifestations. Especially in what concerns the peripheral territories/spaces, which for a long time have been producing fresh and lively material instilled with rich reflections that go beyond commercial categorisations of what would be a "New Lisbon" (Nova Lisboa), which in fact is not that new. These collectives and artists with whom I have the honour of working daily are constantly placed at the margins of the centres, these being presented as territories taken over by an aesthetic that has already been legitimised by characters that integrate themselves in traditional spaces of art and academia, closed in their ego and in the backward of their variants of thought, always based on the noble and soft and/or white customs. However, there is a world outside the bubble that fights to enable the sharing of works originated from cultural manifestations that are in no way aligned with the curricula of arts degrees and teaching institutions. These artists resort to more democratic means, such as the internet, escaping validation processes with autonomy and defiance. And speaking of the internet, with cyberculture it is possible to find a route for hacking both worlds. For the autonomy of sharing, free production, and distribution, through actions committed to breaking hegemonic power practises and artistic validation that look over the already dated discourses of what is a professional or amateur artist/creator. These are disseminated through digital platforms, as is the case of UNA - União Negra das Artes (Black Arts Union), which through an entirely digital investigation proposes to challenge the representation of Black artists in Portuguese art, to uproot the idea that there is no material and no artistic ground for the topic.

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HÁ DIÁLOGO ENTRE ARTE MARGINAL E A ACADEMIA? IS THERE A DIALOGUE BETWEEN MARGINAL ART AND THE ACADEMY?

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Isto nos leva a considerar que a produção artística deve atingir um entendimento de liberdade na definição dos meios de quem a produz: seja pelos novos meios digitais, seja por veículos convencionais, por quem consome e por quem interage, sempre com cuidado no que toca às práticas de apropriação e subestimação de falas. Ao dizer que algumas vidas importam, que a cultura importa, onde nitidamente vemos que nem todos os corpos importam, tomaremos de assalto os mecanismos de poder que trabalham na luta pelo alinhamento com agendas que muitas vezes não conversam com narrativas comprometidas com processos de mudanças.

This leads us to consider that artistic production must reach an understanding of freedom in the definition of the means of those who produce it: whether by new digital media, whether by conventional vehicles, by those who consume, and by those who interact, always with care regarding the practises of appropriation and underestimation of speech. By saying that some lives matter, that culture matters, when we clearly see that not all bodies matter, we will take by storm the mechanisms of power that advocate an alignment with agendas that generally are not in dialogue with narratives committed to processes of change.

Que haja um diálogo entre a academia e a arte sem disfarces de tokenização ou cumprimento de pautas que são urgentes, longe do exótico ou de definições pré-concebidas. /

Let there be a dialogue between research and art, free from disguises of tokenization or compliance with urgent agendas, distant from the exoticism and preconceived definitions. /

DI CANDIDO AKA DIDI É PESQUISADOR, PRODUTOR CULTURAL, DJ E PERFORMER. IDEALIZADOR DOS PROJECTOS BEE. E HOUSE OF DIDI, O SEU TRABALHO DEBRUÇA-SE SOBRE TEMAS COMO A (RE)TERRITORIALIZAÇÃO COLETIVA, IDENTIDADE, ACTIVISMO E PERFORMANCE ANTIRRACISTA, NA PRODUÇÃO CULTURAL E ARTÍSTICA QUEER DE ARTISTAS NEGRES EM DIASPÓRICA POR PORTUGAL.

DI CANDIDO AKA DIDI IS A RESEARCHER, CULTURAL PRODUCER, DJ, AND PERFORMER. CREATOR OF THE BEE. AND HOUSE OF DIDI PROJECTS, HIS WORK FOCUSES ON THEMES SUCH AS COLLECTIVE (RE)TERRITORIALISATION, IDENTITY, ACTIVISM, AND ANTI-RACIST PERFORMANCE, IN THE QUEER CULTURAL AND ARTISTIC PRODUCTION OF BLACK ARTISTS IN DIASPORIC PORTUGAL.


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PORQUE SOMOS DONOS DOS NOSSOS MEIOS DE PRODUÇÃO PT Sou uma cantora de punk-rock que viajou por vários países com os meus amigos e camaradas POR CAUSA dos meus amigos e camaradas que montam espaços para concertos. O Sindicato dos Músicos e Trabalhadores Associados (Union of Musicians and Allied Workers - UMAW) mobilizou milhares de trabalhadores da música para participarem nas suas primeiras acções em torno da crise da Covid-19, e continua a organizar-se em torno de questões como a exigência de acordos mais justos por parte dos serviços de streaming , a garantia de que os músicos recebam os royalties que lhes são devidos, a criação de relações mais justas com as editoras e a criação de normas mais seguras para as salas de concertos. Somos um sindicato internacional de trabalhadores que começou nos Estados Unidos. Precisávamos de um sindicato que respondesse às necessidades daqueles a que os sindicatos clássicos chamariam de "músicos de rock ou músicos de clubes", ou seja, os músicos não clássicos. O UMAW pretende unir os trabalhadores para lutar por uma indústria musical e por um mundo mais justos. Todas estas campanhas são pérolas de uma concha e de um oceano que é verdadeiramente constituído pelas nossas vozes, as nossas ideias, a nossa música, o nosso trabalho. Como vocalista dos Downtown Boys, uma banda de rock que tem procurado utilizar a sua plataforma tanto quanto possível para analisar e confrontar o poder no status quo , a ideia da música como um veículo é inerente. Mas a realidade dos músicos como forma de poder colectivo tem de passar pela união de todos nós. A música enquanto arma cultural significa que sob o capitalismo há muitas vezes, geralmente por necessidade, outro trabalho que tem de ser feito para pagar a renda da casa, cuidados médicos, comida, água, etc. Quando a Covid-19 paralisou o mundo, os canais dos nossos meios de produção foram postos em causa. Os espectáculos pararam, restaurantes e cafés que empregam muitos artistas nos EUA encerraram, familiares contraíram o vírus e, de repente, os trabalhadores enfrentaram um novo mundo onde teriam de sobreviver. Os músicos são um grupo especial de pessoas que têm a capacidade de acordar, sentar-se numa carrinha horas a fio, carregar equipamento

EN I am a rock and punk singer who has travelled many land masses with my friends and comrades and BECAUSE of my friends and comrades who set up show spaces. The Union of Musicians and Allied Workers (UMAW) mobilized thousands of music workers to take part in our first actions around the Covid-19 crisis, and continues to organize around issues such as demanding fairer deals from streaming services, ensuring musicians receive the royalties they are owed, establishing more just relationships with labels, and creating safer guidelines for venues. We are an international labor union that started in the United States. We needed an organization that addressed the needs of what classical labor unions would call “rock or club musicians,” who are non classical musicians. UMAW aims to join workers together to fight for a more just music industry and world. These campaigns are all pearls of a shell and an ocean that is truly made up of our voices, our ideas, our music, our labor. As a singer in Downtown Boys, a rock band that has sought to use our platform as much as we can to analyze and confront power in the status quo, the idea of music as a vessel is inherent. But the reality of musicians as a form of collective power can only happen through a union of us. Music as a cultural weapon means that under capitalism, there is often, usually by necessity, other labor that must be performed in order to pay rent, pay for medical care, food, water, etc. When Covid-19 hit the world by stop, a wrench was thrown into the channels for our means of production. Shows stopped, restaurants and cafes that employ so many artists in the U.S.A. closed down, family members contracted the virus, and suddenly workers faced a new world in which to survive. Musicians are a special group of people who know how to wake up, sit in a van for hours on end, carry gear into venues, soundcheck, wait for hours, and then summon energy and skill to do what they love. Meanwhile, under capitalism, this labor is deemed “a hobby,” “something to do for fun.” And maybe it is, but being a musician is a plurality. What makes you work and struggle can simultaneously be what is keeping you from banging your head against an

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BECAUSE WE OWN OUR MEANS OF PRODUCTION para o interior das salas de concertos, fazer soundchecks , esperar durante horas e, depois de tudo, mobilizar energia e talento para fazer aquilo que gostam. Entretanto, no capitalismo, este trabalho é considerado "um passatempo", "algo que se faz por diversão". E talvez seja, mas ser músico é uma pluralidade. O que o faz trabalhar e lutar pode ser, simultaneamente, o que o impede de bater com a cabeça contra uma economia e contra um muro social que procura dividir-nos e alienar-nos uns dos outros e de nós próprios.

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Depois de numerosas acções colectivas, como as que juntaram músicos em vários locais do país para denunciar a política de imigração do festival South by Southwest, para lutar contra o papel da Amazon no fornecimento de tecnologia ao ICE (a agência de Imigração e de Controlo de Fronteiras dos EUA, responsável pela detenção e deportação de imigrantes) e para contestar o reconhecimento facial em recintos de música, já tínhamos percebido como obter resultados. Mas um sindicato é diferente de uma campanha isolada. Um sindicato supõe o desconhecimento do futuro, associado às inegáveis realidades da injustiça do poder. Um sindicato requer o mesmo tipo de determinação de quando se parte em digressão sem se saber se alguém vai aparecer nos concertos e, ainda assim, fazê-lo. A criação de um sindicato de músicos revelou-se inevitável quando a Covid-19 nos forçou a reunir uma lista de exigências que iam desde o seguro de desemprego a benefícios para os imigrantes ou à luta pelo Serviço Postal dos EUA. Muitas das nossas exigências podem ter sido sentidas como explosões individuais. Mas o que é a música senão uma constelação de notas individuais e de momentos? Criar uma constelação de exigências ao poder era natural. A partir da nossa campanha inicial, o próprio UMAW desdobrou-se numa pluralidade de subcomités que tanto são de deliberação interna, como os subcomités da nossa Estrutura Interna e o BIPOC (Black, Indigenous, Person of Color – pessoas negras, indígenas e não brancas), como de deliberação externa, como é o caso dos subcomités Label Relations, constituído por uma parceria entre artistas e editoras, e Venues, cuja preocupação é a intersecção entre o trabalho musical e as salas de concertos. No entanto, trabalham em conjunto para tecer uma análise de questões de raça e classe que instigam o conteúdo das nossas acções, como as exigências feitas ao Spotify no âmbito da campanha “Justice at Spoti�y”, lançada pelo UMAW em Outubro de 2020, ou as exigências feitas para garantir segurança e acessibilidade dos locais de concertos no contexto da Covid-19. Há que percorrer ainda um intenso processo de aprendizagem para que as pessoas compreendam por que razão a música é mais do que política e como

economy and society’s wall that seeks to divide and alienate us from each other and from ourselves. After numerous collective actions as musicians planted in various places through the country where we took on South by Southwest’s immigration policy, fought against Amazon’s role in providing technology to ICE (the Immigration and Customs Enforcement agency responsible for immigration detention and deportations), and pushed back against facial recognition at music venues, we already knew how to get things done. But a union is different from a single campaign, a union requires the unknown of the future with the very known facts of the inequity of power. A union requires the same gull of going on tour and not knowing if a single person is going to show up at your shows, but doing it anyway. A union of musicians felt only natural when Covid forced us to bring together a slate of demands from unemployment insurance, to benefits for immigrants, to fighting for the U.S. Postal Service. Many of our Covid demands may have felt like individual balls of fire. But what is music but a constellation of these single notes and moments? To create a constellation of demands on power was natural. From our initial campaign, UMAW itself has grown into its own multiverse of subcommittees that are both inward facing like our Internal Structure and BIPOC (Black, Indigenous, Person of Color) subcommittees to outward facing like our Venues and Label Relations subcommittee. However, we work together to weave an analysis of race and class to induce the content of demands on Spotify or safety of music venues. There is still a steep learning curve for people to understand why music is more than political and how music is its own politics. For example, when UMAW voted to support the Boycott and Divestment Sanctions movement to support Palestine and recognize cultural workers’ role in confronting ethnic cleansing by the government and military of Israel, it took difficult conversations and research. But these are the same skills that we employ when writing a record or when thinking about performance or having to turn your brain off from a wage job to the labor of making music. Of course, central to the fight for the redistribution of power as our founding members shared is the fight against anti-blackness. This is a huge piece of the inequality issues we are trying to address. One of UMAW's central demands is to save the post office, which is important because it's a necessary resource for musicians and is a huge employer of black people. Every rock artist in this group owes everything to musicians like Sister Rosetta Tharpe and Little Richard, because Black musicians are the foundation of music in the


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PORQUE SOMOS DONOS DOS NOSSOS MEIOS DE PRODUÇÃO BECAUSE WE OWN OUR MEANS OF PRODUCTION

a música é a sua própria política. Por exemplo, quando o UMAW declarou o seu apoio ao movimento global “Boicote, Desinvestimento e Sanções” de apoio à Palestina e reconheceu o papel dos trabalhadores da cultura na luta contra a limpeza étnica levada a cabo pelo governo e exército israelitas, foram necessárias longas conversas, assim como um trabalho de pesquisa. Mas estas são as mesmas competências que empregamos quando compomos um álbum, ou quando pensamos sobre performance, ou quando temos de desligar o cérebro de um trabalho assalariado e mudar o chip para o trabalho de fazer música. Claro que central na luta pela redistribuição do poder, tal como os nossos pais fundadores imaginaram, é o combate contra a anti-negritude. Esta representa uma grande parte das questões de desigualdade que estamos a tentar abordar. Uma das exigências centrais do UMAW é salvar o Serviço Postal dos EUA, importante por ser um recurso necessário para os músicos e por ser um grande empregador de pessoas negras. Todos os artistas de rock deste colectivo devem tudo a nomes como Sister Rosetta Tharpe e Little Richard: os músicos negros são o berço da música nos Estados Unidos. As políticas de reparação histórica devem incluir o pagamento aos trabalhadores negros e a diminuição do fosso da desigualdade. O Serviço Postal dos EUA é um dos poucos organismos públicos que não serve exclusivamente o império americano. Ajuda a ligarmo-nos uns aos outros, a fazer chegar os nossos discos, o nosso merchandising, a tornar possível um mundo físico para a música. Em última análise, não queremos apenas uma mensagem simbólica. Queremos pressionar para que haja reparações reais para os músicos negros e para que se perceba que os músicos da classe trabalhadora têm sido privados de grande parte dos meios de produção pelos mesmos sistemas que trabalharam contra nós na redistribuição da riqueza e dos recursos. Sem o desejo e as exigências dos trabalhadores da música, o nosso trabalho não teria valor nenhum. Portanto, vamos exigir a nossa liberdade. Acreditamos que a única maneira de transformar a música é organizarmo-nos colectivamente para subtrair recursos e poder das poucas grandes empresas que ditam a nossa indústria. Convidamos todos os trabalhadores da música, incluindo músicos, DJs, produtores, equipas de estrada, entre outros, a juntarem-se a nós. Também queremos usar a nossa força para participar nas lutas mais transversais dos trabalhadores e camaradas de todo o mundo. Defendemos o Medicare for All, um Green New Deal, a abolição do ICE, a destruição de fronteiras, a libertação de pessoas encarceradas e muito mais. Os trabalhadores da música são trabalhadores, e está na altura de nos organizarmos e de nos juntarmos à luta. A devastação causada pela Covid-19 abriu-nos os olhos para o que muitos de nós, “músicos rock”, ou "músicos de clubes", ou "músicos não clássicos", estávamos a precisar de fazer há muito tempo – mobilizar os nossos próprios meios de produção. /

United States. Reparations must include paying Black workers and closing the gap of inequality. The U.S. Postal Service is one of the few public agencies that isn’t purely for U.S.empire. It helps connect us, mail our records, send our merch, make a physical world for music possible. Ultimately, we don’t just want a symbolic message. We want to push for real reparations for Black musicians and realize that working class musicians have been stripped of so much of our means of production by the same systems that have worked against us in the redistribution of wealth and resources. Without the desire and demands of rank and file musicians, our work would be nothing. So, let's demand our freedom. We believe that the only way to transform music is to collectively take resources and power from the few wealthy companies that dictate our industry. We invite all music workers, including musicians, DJs, producers, road crew, and others, to join us. We also aim to use our strength to join in the broader struggles of our fellow workers across the globe. We stand for Medicare for All, a Green New Deal, abolishing ICE, destroying borders, the freeing of incarcerated people, and more. Music workers are workers, and it is time we get organized and join the fight. The devastation of Covid made us dust off and rust on the need of what many of us “rock,” or “club,” or “non-classical musicians” have needed to do for a long time — mobilize our own means of production. /

VICTORIA RUIZ É VOCALISTA DA BANDA DOWNTOWN BOYS, CONSIDERADA PELA REVISTA ROLLING STONE "A BANDA PUNK MAIS ENTUSIASMANTE DA AMÉRICA". VICTORIA RUIZ USA A SUA PLATAFORMA COMO ARTISTA PARA CONFRONTAR O RACISMO, O CAPITALISMO E AS INJUSTIÇAS QUE ALIMENTA O STATUS QUO. CRIA DE UMA MÃE SOLTEIRA DA CLASSE TRABALHADORA E DE UMA AVÓ MEXICANA QUE ERA TRABALHADORA AGRÍCOLA, RUIZ COMPREENDE O PODER E O POTENCIAL DA CULTURA PARA CONFRONTAR O STATUS QUO POR QUALQUER MEIO NECESSÁRIO. O TRABALHO DE RUIZ JÁ APARECEU EM PUBLICAÇÕES COMO A ROLLING STONE, PITCHFORK, PAPER MAG, SPIN, INTERVIEW MAG, REMEZCLA,THE TALKHOUSE, THE NEW YORK TIMES E DEMOCRACY NOW!.

VICTORIA RUIZ IS THE FRONT WOMAN FOR DOWNTOWN BOYS, WHICH ROLLING STONE NAMED "AMERICA'S MOST EXCITING PUNK BAND”. SHE USES HER PLATFORM AS A TOURING AND RECORDING ARTIST TO CONFRONT RACISM, CAPITALISM, AND THE INEQUITIES THAT DRIVE THE STATUS QUO. AS A PRODUCT OF A WORKING CLASS SINGLE MOM AND A CHICANA GRANDMOTHER WHO WAS A FARMWORKER, RUIZ UNDERSTANDS CULTURE'S POWER AND POTENTIAL TO CONFRONT THE STATUS QUO BY ANY MEANS NECESSARY. RUIZ'S WORK HAS BEEN FEATURED IN ROLLING STONE, PITCHFORK, PAPER MAG, SPIN, INTERVIEW MAG, REMEZCLA, THE NEW YORK TIMES, THE TALKHOUSE, AND DEMOCRACY NOW.

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O NASCIMENTO DE URANA THE BIRTH OF URANA

TEXTO POR / TEXT BY JOTA MOMBAÇA . ILUSTRAÇÃO


PT (...) Eu estava deitada de costas, sobre um banco de areia, numa região de dunas desérticas entre o oceano e os restos de uma antiga reserva de mata atlântica. Depois de conter o vômito, voltei a concentrar-me nos braços, tentando extrair da paralisia, primeiro, pequenos movimentos de dedo. Eu sabia que não era capaz de me pôr a correr cedo o suficiente para me afastar dali antes de ser atingida pela próxima sirene, por isso decidi cavar. Se eu me escondesse sob a terra, as ondas de terror não fariam mais que atordoar alguns de meus sensores, alentando minha capacidade de reação sem, entretanto, me deixar paralisada. Naquele momento era a patrulha que me assustava mais, por isso deixei que parte de meus sensores táteis se concentrassem na vibração da terra, enquanto os outros trabalhavam em devolver a meu corpo sua capacidade de ação. Tão logo as mãos e antebraços se liberaram da paralisia, comecei a cavar; o resto do corpo foi se soltando à medida que eu mergulhava na duna. Não contei quanto tempo levou até que eu soterrasse o corpo por inteiro, mas pressenti que as sirenes chegariam logo e, um instante depois de fechar o buraco, ela veio. Esta durou mais que o habitual. Mesmo atordoada pelos efeitos da onda, eu cavei tanto quanto pude, sem parar, mergulhando fundo no banco de areia, com esperança de que a minha marca hormonal não fosse captada pela patrulha. Eu sabia que, com o corpo em ebulição pela quantidade extrema de alterações bioquímicas que vinha fazendo, minha presença era detectável de longe pelo novo sistema de reconhecimento de que as patrulhas haviam incorporado. E ainda que ali, sob a terra, eu tivesse alguma vantagem, eu jamais seria capaz de escapar às eventuais investidas de uma patrulha inteira. Por isso a pressa em chegar mais e mais fundo. No estado da transição em que estava não me era ainda possível simplesmente desmanchar e espalhar meu corpo na terra. (...) / EN (...) I was lying on my back, on a sandbar, in a region of desert dunes between the ocean and the remains of an old Atlantic Rainforest Reserve. After containing the vomit, I concentrated back on the arms, trying to extract from the paralysis, small movements of the finger, first. I knew I was not able to start running early enough to get away from there before being hit by the next siren; so I decided to dig. If I hid under the earth, the waves of terror would only stun some of my sensors, holding my ability to react without, however, paralyzing me. At that moment, it was the patrol that scared me the most, so I let some of my tactile sensors focus on the vibration of the earth while the others worked to bring back to my body the ability to take action. As soon as the hands and forearms were released from the paralysis, I began to dig; the rest of the body loosened as I plunged into the dune. I did not count how much time it took me to bury my whole body, but I sensed the sirens would come soon, and a second after closing the hole, it screamed indeed. This one lasted longer than usual. Even stunned by the effects of the wave, I dug as deep as I could, non-stop, plunging deep into the sandbar, hoping that my hormonal mark would not be captured by the patrol. I knew that with my body burning because of the extreme amount of biochemical changes I had been working on, my presence was detectable from afar by the new recognition system recently incorporated by the patrols. And even though there, beneath the earth, I had some advantage, I would never be able to escape the occasional onslaughts of an entire patrol. In the state of the transition I was in, it was not yet possible for me to simply undo and spread my body through the earth. That’s why I rush to get deeper and deeper. (...) /

Capítulo 0 de O Nascimento de Urana, um conto originalmente publicado no jornal Nossa Voz (Casa do Povo, São Paulo, 2017). Part 0 of The Birth o� Urana, a short story originally published by jornal Nossa Voz (Casa do Povo, São Paulo, 2017). The english version was originally published by NIRIN NGGAY , an artist book by Stuart Geddes and Trent Walter commissioned for the 22nd Sydney Biennale Reader (Sydney, 2020).

POR / ILLUSTRATION BY AICY RAY

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JOTA MOMBAÇA (NATAL, BRASIL, 1991) É UMA ARTISTA INTERDISCIPLINAR CUJO TRABALHO DERIVA DE POESIA, TEORIA CRÍTICA E PERFORMANCE. A QUESTÃO SÓNICA E VISUAL DAS PALAVRAS DESEMPENHA UM PAPEL IMPORTANTE NA SUA PRÁTICA, QUE MUITAS VEZES SE RELACIONA COM A CRÍTICA ANTICOLONIAL E A DESOBEDIÊNCIA DE GÉNERO. ATRAVÉS DA PERFORMANCE, FICÇÃO VISIONÁRIA E ESTRATÉGIAS SITUACIONAIS DE PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO, PRETENDE ENSAIAR O FIM DO MUNDO TAL COMO O CONHECEMOS E A FIGURAÇÃO DO QUE VEM DEPOIS DE DESALOJARMOS O SUJEITO COLONIAL-MODERNO DO SEU PÓDIO. JOTA MOMBAÇA (NATAL, BRAZIL, 1991) IS AN INTERDISCIPLINARY ARTIST WHOSE WORK DERIVES FROM POETRY, CRITICAL THEORY AND PERFORMANCE. THE SONIC AND VISUAL MATTER OF WORDS PLAYS AN IMPORTANT ROLE IN THEIR PRACTICE, WHICH OFTEN RELATES TO ANTI-COLONIAL CRITIQUE AND GENDER DISOBEDIENCE. THROUGH PERFORMANCE, VISIONARY FICTION AND SITUATIONAL STRATEGIES OF KNOWLEDGE PRODUCTION, THEY INTEND TO REHEARSE THE END OF THE WORLD AS WE KNOW IT AND THE FIGURATION OF WHAT COMES AFTER WE DISLODGE THE MODERN-COLONIAL SUBJECT OFF ITS PODIUM.

61 AICY RAY É UMA ARTISTA MULTIMÉDIA DE ORIGEM GUINEENSE QUE ELABORA DIVERSOS UNIVERSOS VISUAIS ONDE EXPLORA DIMENSÕES DO CORPO ABINÁRIO, SEM RÓTULOS OU DEFINIÇÕES DE GÉNERO LIMITADORAS, QUE NA SUA TRANSFORMAÇÃO CONSTANTE SE TRANSPÕE NA EXPRESSÃO GRÁFICA, ROMPENDO ESTRUTURAS ATRAVÉS DE ELEMENTOS COMO A LINHA, MARCA, COR. É LICENCIADA NO RAMO DE ANIMAÇÃO DO CURSO DE ARTE E MULTIMÉDIA DA FACULDADE DE BELAS ARTES DA UNIVERSIDADE DE LISBOA E TEM REALIZADO VÁRIOS TRABALHOS NA ÁREA DA ILUSTRAÇÃO, DA CONCEPT ART, DO DESIGN E DA BANDA DESENHADA. ENTRE ELES DESTACAM-SE CRIAÇÕES COMO À LUZ DA VOZ, UMA CURTA DE BANDA DESENHADA LANÇADA EM 2017 NA ANTOLOGIA SILÊNCIO PELO THE LISBON STUDIO, OU A COLABORAÇÃO COM A ARTISTA CONGOLESA SANDRA MUJINGA NUM PROJECTO DE ANIMAÇÃO PARA O MUNCHMUSEET (MUSEU MUNCH).

AICY RAY IS A MULTIMEDIA ARTIST OF GUINEAN ORIGIN WHO CREATES MULTIPLE VISUAL LANDSCAPES TO EXPLORE THE DIMENSIONS OF THE ABINARY BODY. REFUSING LABELS OR LIMITING GENDER DEFINITIONS, SHE TRANSPOSES THE CONSTANT TRANSFORMATION OF THIS BODY INTO GRAPHIC EXPRESSION, BREAKING STRUCTURES THROUGH ELEMENTS SUCH AS LINE, MARK, COLOR. BESIDES HAVING A DEGREE IN THE FIELD OF ANIMATION FROM THE MULTIMEDIA ART PROGRAMME OF THE FACULTY OF FINE ARTS OF THE UNIVERSITY OF LISBON, RAY HAS BEEN PRODUCING SEVERAL WORKS IN THE FIELDS OF ILLUSTRATION, CONCEPT ART, DESIGN AND COMICS. AMONG THESE ARE CREATIONS LIKE À LUZ DA VOZ , A SHORT COMIC RELEASED IN THE ANTHOLOGY SILÊNCIO IN 2017 BY THE LISBON STUDIO, OR THE COLLABORATION WITH CONGOLESE ARTIST SANDRA MUJINGA IN AN ANIMATION PROJECT FOR THE MUNCHMUSEET (MUNCH MUSEUM).


POR / BY LIZ PELLY


SOCIALIZED STREAMING: A CASE FOR UNIVERSAL MUSIC ACCESS


A N Á L I SE

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PT Os problemas com o streaming de música corporativo são óbvios. A remuneração é irrelevante, o poder é demasiado centralizado, as malhas sociais das comunidades musicais estão a ser corroídas. Os serviços de streaming corporativos estão mais preocupados com os seus próprios produtos e playlists do que em apoiar os artistas, compositores, produtores e outras pessoas que tornam a música possível. As sugestões são entediantes, a payola é entediante, os anúncios são entediantes. A influência das grandes editoras e a “financialização” da indústria musical asseguram que os próprios serviços corporativos não mudarão.

EN The problems with corporate music streaming are clear. The pay is inconsequential, the power is far too centralized, the social fabrics of music communities are eroding. Corporate streaming services are more concerned with their own products and playlists than supporting the artists, songwriters, producers and others who make music possible. The recommendations are boring, the payola is boring, the advertisements are boring. Major label influence and the overall financialization of the music industry ensures the corporate services themselves won’t change.

De certa forma, estas são apenas variações sobre os mesmos problemas que sempre definiram a música mainstream . Contudo, nos últimos anos, um número crescente de músicos tem vindo a reagir ruidosa e colectivamente. Desde o início de 2020, novos grupos de músicos têm aumentado a sua participação em esforços de organização e sindicalização – dois passos importantes no processo em curso de aproximar comunidades musicais para imaginar alternativas. Os músicos estão a começar a enviar uma forte mensagem de que está na altura de tentar algo diferente.

In some ways, these are just variations on the same problems that have always defined mainstream music. But in recent years, a growing number of musicians have started to respond loudly and collectively. Since early 2020, newly established groups of musicians have increased participation in organizing and unionization efforts — two important steps in the ongoing process of bringing music communities together to imagine alternatives. Musicians are starting to send a strong message that it’s time to try something different.

Claro que a “música” é um grande chapéu que alberga vários tipos diferentes de práticas e de comunidades que não soam ou expressam o mesmo, com um grande alcance de objectivos e de realidades de trabalho. Ideias sobre o que torna a cultura musical “sustentável” podem assumir formas diferentes dependendo de onde se olha e de quem se questiona. Contudo, é cada vez mais claro que assegurar futuros musicais robustos significa imaginar sistemas drasticamente diferentes da actual estrutura corporativa e sair do domínio da lógica de mercado. Deveríamos conceptualizar futuros em que a música é parte integrante de um projecto maior em curso – o de libertar a arte do capitalismo.

Of course, “music” is a big umbrella, inclusive of a lot of different types of practices and communities that do not sound or feel the same, with a wide range of goals and labor realities. Ideas about what makes music culture “sustainable” might take different shapes depending on where you look and who you ask. It is increasingly clear, though, that ensuring robust music futures means imagining systems drastically different than the current corporate structure, and out from under the sway of market logic. We should conceptualize futures where music is part of the greater ongoing project of freeing art from capitalism.

Como parte desse trabalho, devíamos pensar sobre socializar o streaming de música. A música é uma parte integral da paisagem cultural: aproxima as pessoas, proporciona um escape, bem como um arquivo. Na melhor das hipóteses, reflecte o estado de espírito da sociedade num dado momento. É um bem público. Como seria se pensássemos sobre o acesso à música da mesma forma que pensamos sobre outras formas importantes de cultura e informação – por exemplo, sobre livros?


A N A LY SI S


STRE A MI N G SOCI A L IZA DO: EM DEFESA DO ACES S O UN I VE RSAL À MÚS I C A

As part of that work, we should think about socializing music streaming. Music is an integral part of the cultural landscape: it brings people together, it provides an outlet, as well as an archive. At best it can reflect the tenor of society at any given moment. It is a public good. What would it look like if we thought about access to music the way we thought about other important forms of culture and information — for example, books?

Há muito que cópias físicas de música estão disponíveis em bibliotecas públicas, mas actualmente não conceptualizamos o acesso universal à música como um bem público, a ser gerido em prol de um interesse público com financiamento público. Devíamos.

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Tornar o interesse público uma prioridade central significaria um pagamento mais justo e um tratamento mais equitativo dos músicos e dos trabalhadores da música. Também contribuiria para reparar algumas das relações mais nocivas com a música que o streaming – obcecado com o aumento da métrica de envolvimento sem preocupação pelo contexto – encorajou e exacerbou. O streaming socializado, por si só, não seria uma solução, mas seria um passo de distanciamento face a uma cultura moldada pelo propósito do lucro e um passo de aproximação a novas lógicas de escuta online. E poderia alimentar mudanças de paradigma na forma como pensamos sobre consumo cultural e em como valorizamos o trabalho criativo. Nos últimos anos, o advogado e editor musical Henderson Cole tem vindo a pensar sobre a seguinte ideia: e se os EUA tivessem um serviço de streaming de música federal, financiado pelos contribuintes e gerido pelo governo? A proposta, intitulada American Music Library (Biblioteca de Música Americana ), foi publicada em 2019 pela newsletter Penny Fraction s e está estruturada em cinco pontos centrais: qualquer pessoa nos EUA poderia alojar a sua música na biblioteca; compositores e artistas poderiam carregar directamente o seu trabalho na biblioteca; o serviço seria pago por um imposto cobrado aos americanos mais ricos; a biblioteca serviria como um arquivo de preservação de longo prazo de ficheiros de música; e criaria um novo sistema de royalties com o qual se pagaria os artistas, independente e colectivamente mais lucrativo do que o actual sistema de royalties , arcaico e disfuncional.

Physical copies of music have long been available at public libraries, but we don’t currently conceptualize universal access to music as a public good, to be managed in the public interest with public funding. We should. Making the public interest a core priority would mean more equitable payment and treatment of musicians and music workers. It also would help to repair some of the more harmful relationships with music that streaming — obsessed with boosting engagement metrics without concern for context — has encouraged and exacerbated. Socialized streaming would not be a fix-all, but it would be a step away from a culture shaped by profit motives and a step toward new logics of listening online. And it could seed paradigm shifts for the way we think about cultural consumption and how we value creative labor. For the past few years, music lawyer and publisher Henderson Cole has been thinking about this idea: What if the U.S. had a federal, taxpayer-funded, government-run music streaming service? The proposal, called the American Music Library, was published in 2019 by the newsletter Penny Fractions. It is built around five core points: anyone in the U.S. could host their music on the library; songwriters and artists could upload their work directly; the library would be paid for by a tax on the wealthiest Americans; the library would serve as an archive for long-term preservation of music files; the library would create a new royalty system with which to pay artists, separate and more collectively lucrative than the currently archaic and dysfunctional royalty system. The American Music Library suggests that streaming could be less destructive to society if it were funded and organized differently — that perhaps the problem with streaming isn’t streaming per se, but the predatory industry norms that surround it. What if we severed the concept of streaming from its current economic


SOCI A L IZE D STRE A MI N G: A C ASE FOR U N I VE RSAL MUS I C ACCES S

Com esta proposta, Henderson Cole sugere que o streaming poderia ser menos destrutivo para a sociedade se fosse financiado e organizado de forma diferente – que talvez o problema do streaming não seja o streaming em si, mas as normas da indústria predatória que o rodeiam. E se libertássemos o conceito de streaming dos seus modelos económicos actuais e criássemos algo com recursos públicos que fosse propriedade do público e que o servisse? Algo mais em conformidade com as funções das bibliotecas públicas, que hoje continuam a ser centros de livre acesso a informação, a espaços comunitários, a programas educacionais e muito mais, guiados por valores como privacidade e preservação. Naturalmente, qualquer sistema em que a compensação está ancorada num sistema de pagamento por stream vai herdar algumas das falhas do mercado actual de streaming, ao associar a capacidade de remuneração do artista à popularidade. É uma maneira não convencional de pensar o financiamento das artes – uma maneira que seria mais eficaz enquanto parte de um forte aumento do financiamento e dos recursos disponíveis para os músicos que podem não alcançar o tipo de reprodução necessária para obter um rendimento significativo.

A fim de verdadeiramente socializar o streaming, precisaríamos de repensar mais do que a questão da propriedade. Certamente, não queremos serviços de streaming que sejam propriedade do público mas geridos como o Spotify, a Apple Music ou a Amazon Music. Para efectivamente desmistificar a ideia de que a tecnologia musical nos vais salvar, também seria bom abordarmos as relações de poder de forma mais sistémica, assim como a forma como as decisões são tomadas. Teríamos de pensar em como mudar realmente as dinâmicas de poder para que os músicos, os trabalhadores da música e as comunidades musicais pudessem, por um lado, ter uma palavra a dizer sobre como são construídos os serviços de streaming socializados e, por outro, pudessem participar na sua gestão. Teríamos de democratizar a forma de governação do streaming de música.

models, and created something with public resources that belonged to and served the public? Something more in line with the functions of public libraries, which today remain hubs for free access to information, community space, educational programs and more, driven by values like privacy and preservation. Of course, any system where compensation is tied to a per-stream royalty is inheriting some of the faults of the current streaming marketplace, by tying an artist’s ability to earn compensation to popularity. It’s an unconventional way to think about arts funding — one that would be most effective as part of a more robust expansion of funding and resources available to musicians who might not elicit the type of replayability necessary to earn significant income.

In order to truly socialize streaming, we’d need to rethink more than just ownership. We would not want streaming services owned by the public but run just like Spotify, Apple Music, or Amazon Music. To truly untangle the mindset that music tech will save us, we’d also want to address power relations more systemically, and how decisions are made. We would need to think about how to truly shift power so that musicians, music workers, and music communities could have a say in how socialized streaming services are built, and participate in how they’re run. We would need to democratize the governance of music streaming. The prospect of a socialized music streaming service gives us an opportunity to imagine how a system might be built with privacy at the forefront. What if there was no data collection at all? What if data was collected in order to support and compensate musicians, but, as some libraries have done, routinely deleted to protect users? Consider how your digital music listening might change on a platform where your listening habits were not being tracked and commodified. We need to remember the immense compromises we make as streaming listeners today, and how it changes our relationship to what we consume, allowing multi-billion dollar tech companies to profit off of the surveillance of our listening. We would need to insist that any government-run service

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STRE A MI N G SOCI A L IZA DO: EM DEFESA DO ACES S O UN I VE RSAL À MÚS I C A

A perspectiva de um serviço de streaming socializado dá-nos uma oportunidade de imaginar como um sistema pode ser construído tendo a privacidade na linha da frente. E se não houvesse qualquer tipo de recolha de dados? E se os dados fossem recolhidos com a finalidade de apoiar e compensar os músicos, mas, como algumas bibliotecas têm feito, fossem rotineiramente apagados para proteger os utilizadores? Imagine-se como a experiência de audição de música digital poderia mudar numa plataforma onde os hábitos de fruição não fossem monitorizados e comodificados. É necessário lembrarmo-nos dos imensos compromissos que fazemos hoje, enquanto ouvintes de streaming, e como estes alteram a nossa relação com o que consumimos, permitindo que empresas gigantes e multibilionárias da tecnologia lucrem com a vigilância do que ouvimos. Teríamos de insistir na ideia de que qualquer serviço gerido pelo governo fosse construído de modo diferente, que permanecesse um espaço não comercial.

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Estas são todas grandes ideias. Na prática, o governo local pode ser a nossa melhor opção para começarmos a pensar e a experimentar o streaming socializado. A biblioteca pública, mais uma vez, surge como o espaço potencialmente mais eficaz para se começarem a advogar estruturas de streaming participativas e com financiamento público – e para se reconceptualizar o valor e o consumo culturais de formas largamente distintas do que a indústria musical faz. Actualmente, bibliotecas em Seattle, Austin, Pittsburgh e em muitas outras cidades nos EUA e no Canadá albergam colecções de música streaming somente locais, acessíveis a qualquer pessoa com um cartão da biblioteca. Além disso, pagam uma taxa fixa aos músicos participantes por uma licença de cinco anos e, em alguns casos, trabalham com pessoas do circuito musical local para fazer curadoria de mixes . Aumentar o financiamento para estes projetos – bem como repensar a sua governação, para incluir músicos, trabalhadores da música e membros da comunidade musical, se isso já não estiver tudo em vigor – seria um passo no sentido de um serviço de streaming público democratizado.

O streaming socializado não resolveria todos os problemas da era do streaming de música, mas tais soluções mágicas não deveriam ser, em todo o caso, aquilo que procuramos. Deveríamos pensar no streaming socializado como uma peça de uma ampla manta de retalhos internacional feita de mudanças, com vista

be built differently; that it remain a non-commercial space. These are all big ideas. Practically, the local level might be our best option for beginning to think about and experiment with socialized streaming. The public library, again, comes to mind as potentially the most effective space for beginning the work of advocating for participatory, public-funded streaming structures — and reconceptualizing cultural value and consumption in vastly different ways than the music industry does. Currently, libraries in Seattle, Austin, Pittsburgh and several more cities around the U.S. and Canada host locals-only music streaming collections accessible to anyone with a library card. They pay a flat fee to participating musicians for a five-year license, and in some cases work with folks from the local music scene to curate mixes. Increasing funding for these projects — as well as rethinking their governance, to include musicians, music workers, and music community members, if that’s not all in place already — would be a step towards public democratized streaming.

Socialized streaming wouldn’t fix all of the problems of the music streaming era, but such fix-all solutions shouldn’t be what we’re after anyway. We should think of socialized streaming as one piece of a greater, international patchwork of shifts, toward building infrastructure for digital cultural commons — accessible and participatory tools and resources that would support artists and strengthen communities, inclusive of cooperative alternatives. It moves us in the direction of decommodifying music, setting precedents for decommodifying culture. Public funding for streaming would be most compelling as part of a broader increase in art and music funding overall: from the expansio of national arts funds, to city-level funding for community art spaces, grants for artists and collectives, support for residencies, subsidized studio space, and more.


SOCI A L IZE D STRE A MI N G: A C ASE FOR U N I VE RSAL MUS I C ACCES S

à construção de infraestruturas para bens culturais comuns digitais: ferramentas e recursos acessíveis e participativos que apoiariam os artistas e fortaleceriam as comunidades, incluindo alternativas de cooperação. É um caminho orientado para a descomodificação da música, abrindo precedentes para a descomodificação da cultura. O financiamento público para o streaming seria mais consequente como parte de um aumento mais transversal do financiamento da arte e da música em geral. Desde o alargamento dos fundos nacionais para as artes até ao financiamento, a nível das cidades, de espaços de arte comunitária, passando por subsídios para artistas e colectivos, apoio a residências, espaços de estúdio subsidiados, e muito mais.

Music is a public good that makes our lives more interesting and our communities stronger, and there are still so many more directions in which to expand our imagination of what’s possible. / A longer version o� this article was originally published by Real Li�e magazine ( realli�emag.com ) on February 16, 2021.

LIZ PELLY IS A WRITER AND CRITIC BASED IN NEW YORK. SHE COVERS MUSIC, CULTURE, MEDIA, STREAMING AND THE INTERNET. HER BYLINE APPEARS MOST OFTEN AT THE BAFFLER, WHERE SHE IS A COLUMNIST AND CONTRIBUTING EDITOR. SHE CURRENTLY TEACHES MUSIC WRITING IN THE RECORDED MUSIC PROGRAM AT NYU TISCH, AND CO-AUTHORS A BI-WEEKLY NEWSLETTER, CRYPTOPHASIA.

A música é um bem público que torna as nossas vidas mais interessantes e as nossas comunidades mais fortes, e ainda há muitos caminhos por onde expandir a imaginação daquilo que é possível. / Uma versão mais longa deste artigo �oi originalmente publicada pela revista Real Li�e (realli�emag.com) a 16 de Fevereiro de 2021.

LIZ PELLY É UMA ESCRITORA E CRÍTICA BASEADA EM NOVA IORQUE. DEBRUÇA-SE SOBRE TEMAS COMO MÚSICA, CULTURA, MEDIA, STREAMING E A INTERNET. O SEU NOME APARECE COM MAIS FREQUÊNCIA NO THE BAFFLER , ONDE É COLUNISTA E EDITORA COLABORADORA. ACTUALMENTE DÁ AULAS DE ESCRITA SOBRE MÚSICA NO CLIVE DAVIS INSTITUTE OF RECORDED MUSIC DA ESCOLA DE ARTES TISCH DA UNIVERSIDADE DE NOVA YORK (NYU TISCH) E É CO-AUTORA DA NEWLETTER BISSEMANAL CRYPTOPHASIA .

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UM OUTRO NOVO MUNDO Os NFTs já não são apenas para gatos. O que significam para a arte digital?

ANOTHER NEW WORLD NFTs aren’t just for cats anymore. What do they mean for digital art?

POR / BY MICHAEL CONNOR



A N Á L I SE

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PT Em Maio de 2014, o artista Kevin McCoy vendeu um GIF a Anil Dash na conferência Seven on Seven , organizada pela Rhizome, e cunhou a transferência de propriedade de um GIF na blockchain Namecoin. O registo na blockchain incluía uma ligação à licença, uma ligação à obra, um hash (um tipo de impressão digital) da obra e uma simples declaração de propriedade em inglês, como parte de um sistema a que McCoy chamou de Monegraph. Dash pagou todos os conteúdos do seu bolso por esta primeira experiência de venda de obras digitais únicas através da blockchain, por um valor que equivaleu a quatro dólares.

EN In May 2014, artist Kevin McCoy sold a GIF onstage at Rhizome’s Seven on Seven conference to Anil Dash, and published the transfer of ownership of a GIF on the Namecoin blockchain. The data written to the blockchain included a link to the license, a link to the work, a hash (a kind of digital fingerprint) of the work, and a plain English assertion of ownership, as part of a system McCoy called Monegraph. Dash paid the entire contents of his wallet for this early experiment in selling unique digital works via the blockchain, which amounted to $4.

Avançamos para Maio de 2018. No meio da euforia escaldante do início de verão em Nova Iorque, realizou-se um leilão no Knockdown Center, um enorme armazém em Maspeth, Queens, no âmbito de uma conferência sobre criptomoeda. Animada por uma amigável competição entre notáveis investidores na sala, a licitação alcançou os 140,000 dólares por uma ilustração de Guile Gaspar que apresentava um género de coleccionável digital chamado CryptoKitty. Uma carteira de hardware embutida no trabalho assegurou um token digital que permitiu que o CryptoKitty fosse comercializado, vendido e “reproduzido” como um bem digital no mercado de CryptoKitties.

Fast forward to May 2018. Amid the sweltering euphoria of New York City’s early summer, an auction took place at the Knockdown Center, a sprawling warehouse in Maspeth, Queens, as part of a cryptocurrency conference. Fueled by amicable competition among notable investors in the room, bidding reached $140,000 for an artwork by Guile Gaspar that featured a kind of digital collectible called a CryptoKitty. A hardware wallet embedded in the physical work secured a digital token that allowed the CryptoKitty to be traded, sold, and “bred” as a digital good in the CryptoKitties marketplace.

Foi um momento memorável na ascensão dos NFTs. Isto é, tokens digitais não fungíveis (ou seja, únicos e insubstituíveis), que são registados na rede blockchain. Embora o trabalho tivesse uma dimensão física, era difícil não interpretar o resultado do leilão como uma enorme demonstração de confiança na ideia de comercializar bens digitais únicos através da criptomoeda, de acordo com o critério que a tornou possível e no jogo que a popularizou. Também parecia ilustrar algo que McCoy e Dash tinham observado na sua primeira apresentação: a criptomoeda estava a precisar de algo significativo e, por agora, era isto. Três anos mais tarde, depois de melhorias de eficiência na rede Ethereum e de um boom no valor de várias criptomoedas, a venda de coleccionáveis digitais através de NFTs está em todo o lado. O boom dos NFTs tem sido uma espécie de revelação. A possibilidade de os artistas digitais serem remunerados pelos seus trabalhos criativos deveria ser, para todos os efeitos, uma realidade, mas o mercado nunca apoiou isto verdadeiramente. A ideia de que é mesmo possível ganha contornos revolucionários. Ao mesmo tempo, as reacções negativas aos NFTs têm sido fervorosas. Muitos dos argumentos sobre NFTs dão a impressão de poderem durar para sempre porque, tal como tantos outros aspectos da cultura da criptomoeda, parecem resumir-se a uma questão de fé. Como Ben Vickers salienta, “desde a formação inicial da Igreja Cristã que a transmissão de um texto ou de uma doutrina sem reivindicação de autoridade não produzia um conflito e um fanatismo sectários tão extremos” como o livro branco original da Bitcoin.

It was a memorable moment in the rise of NFTs, or non-fungible (that is, unique and non-interchangeable) digital tokens that are registered on the blockchain. Even though the work had a physical dimension, it was hard not to interpret the auction result as a major show of confidence in the idea of trading unique digital goods via cryptocurrency, in the standard that made it possible, and in the game that popularized it. It also seemed to illustrate something McCoy and Dash had observed in their first presentation: cryptocurrency had been in need of something meaningful to do, and for now, this was it. Three years later, following improvements to the efficiency of the Ethereum network and a boom in the value of many cryptocurrencies, the sale of digital collectibles via NFT is everywhere. The NFT boom has been a kind of revelation. It should always be the case that digital artists can have their creative labors remunerated, but the market has never really supported this; the idea that it’s even possible feels revolutionary. At the same time, the NFT backlash has been furious. Many of the arguments about NFTs feel like they could last forever because, like so many other aspects of cryptocurrency culture, they seem to boil down to questions of faith. As Ben Vickers points out, “it’s not since the early formation of the Christian Church that a text or doctrine handed down without claim to authority has produced such extreme sectarian conflict and zealotry” as the original Bitcoin white paper.


A N A LY SI S

Tendo em conta a argumentação devota que tem sido usada para apresentar tanto as criptomoedas como os mercados da arte, é útil fazermos um esforço para adoptar uma abordagem mais materialista. Na minha própria tentativa de o fazer, considerei instrutivo voltar a olhar para o CryptoKitties. O CryptoKitties é um jogo comercial que foi considerado por alguns a aplicação mais notável da blockchain da Ethereum. Tornou-se tão popular que o volume de transacções de CryptoKitties praticamente fez com que a rede Ethereum parasse. A sua popularidade era, em parte, devido ao facto de ser complicado usar a moeda da Ethereum para muita coisa na altura, e de que o jogo poderia resultar em lucro para o jogador mais astuto. Ainda por cima, como sabemos, a internet adora gatos. Mas, além disso, o sucesso da equipa do CryptoKitties residiu, em larga medida, na introdução do padrão ERC-721, o qual define os elementos mínimos de um contrato inteligente – código que é executado na rede blockchain quando certas condições estão reunidas – para um coleccionável digital único na blockchain, continuando a ser a base de desenvolvimento dos NFTs da Ethereum. Este padrão foi bastante bem concebido para um jogo comercial baseado em gatos, mas talvez não seja tão perfeito para a arte digital em geral.

Propriedade e Direitos de autor As primeiras gerações de gatinhos virtuais do CryptoKitties foram criadas totalmente por programadores, logo a sua autenticidade era garantida pela própria aplicação, bem como era toda a oferta disponível. Este tipo de garantia de abastecimento limitado e de proveniência autenticada não se aplica ao actual mercado de arte de NFTs – são numerosas as histórias de artistas que descobrem que o seu trabalho foi cunhado e vendido sem o seu consentimento, por vezes sob seu próprio nome. Outra importante distinção entre o CryptoKitties e a arte digital é que o primeiro tinha um tipo de função prática. No livro branco do CryptoKitties, ou seja, no White Papurr , os seus criadores salientavam que o interesse nos mercados digitais anteriores tinha diminuído rapidamente porque não era possível fazer nada com os seus coleccionáveis. Portanto, os CryptoKitties tinham a particularidade de “se reproduzirem” entre si, sendo que os jogadores pagariam uns aos outros por melhorias particularmente atractivas nos seus criptogatos. No coleccionismo de arte tradicional, os coleccionadores também sentem esta necessidade de fazer algo com as suas obras, exibindo-as e voltando a exibi-las,

Given the faith-based arguments being made for both cryptocurrencies and art markets, it’s helpful to try to take a more material approach. In my own efforts to do this, I’ve found it instructive to look back to CryptoKitties. CryptoKitties is a trading game that was heralded by some as “the killer app” for the Ethereum blockchain. The game became so popular that CryptoKitty transactions brought the Ethereum network to a near halt. Its popularity was likely due in part to the fact that it was kind of difficult to use Ethereum currency for very much at that point in time, and that the game could result in a profit for the shrewd player. Also, as we know, the internet is for cats. But beyond that, the success of the CryptoKitties team rested in large part on their introduction of the ERC-721 standard, which defines the minimum elements of a smart contract—code that is executed on the blockchain when certain conditions are met—for a unique digital collectible on the blockchain, and it’s still the basis for Ethereum NFTs. It was quite well-designed for the purposes of a cat-based trading game, but is perhaps less perfect for born-digital art at large.

73 Ownership and Property The first generation of CryptoKitties were all created by developers, and so their authenticity was guaranteed by the app itself, as was the total available supply. This kind of guarantee of limited supply and authentic provenance does not apply to today’s NFT art market; stories abound of artists discovering that their work has been minted and sold without their consent, sometimes under their own name. Another important distinction between CryptoKitties and born-digital art is that the former had a kind of use function. In the, er, White Papurr, its makers pointed out that interest in previous digital marketplaces had waned quickly because one couldn’t do anything with their collectibles. So CryptoKitties had a “breeding” feature, and players would pay one another for particularly attractive arrangements. In traditional art collecting, collectors also feel this urge to do something with their works, to hang them and rehang them, loan them to museum exhibitions, or flip them. In the case of NFT art, there’s less that one can obviously do with one’s bounty besides participating in secondary markets.


UM OUTRO N OVO MUN DO

emprestando-as para exposições em museus, ou revendendo-as. No caso da arte NFTs, o que se pode fazer com a recompensa é obviamente mais limitado, além da participação em mercados secundários. O modelo de propriedade artística sugerido pelos NFTs tem sido objecto de discussão e também aqui uma comparação é instrutiva. Além do contrato inteligente, solicitava-se aos compradores de CryptoKitties que concordassem com um conjunto de termos e condições específicos da plataforma. Era nesta licença tradicional complementar que se definiam os termos de propriedade de um CryptoKitty: os compradores podiam usar os seus Kitties publicamente de acordo com certas especificidades, mas os direitos de autor permaneciam com os criadores. Este é um precedente muito importante: na perspectiva dos criadores do CryptoKitties, o registo de propriedade de NFTs através do contrato inteligente não era suficiente; era necessária uma licença adicional que definisse o que significava “ser proprietário” de uma obra digital.

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Curiosamente, a licença desenvolvida pelo CryptoKitties considerava explicitamente que a obra de arte deveria incluir não só o ficheiro digital canónico mas também arte, design e desenhos com ela relacionados. Esta definição alargada de obra de arte reconhece uma outra limitação dos NFTs, que é o facto de, convencionalmente, se referir apenas a um único ficheiro. Isto vai contra as ideias predominantes da prática digital original, de acordo com as quais a variabilidade é vista como uma característica determinante. Como salientou o artista Sterling Crispin, uma aquisição padrão de NFTs assemelha-se mais com uma compra de uma cópia impressa ou de um poster, um ponto fixo no sistema dinâmico de um trabalho artístico. Na Rhizome, descobrimos que a imutabilidade não é necessariamente benéfica para a gestão a longo prazo da arte digital. As histórias precisam de ser reescritas, os artistas mudam de género e de nome, conflitos de autoria emergem anos após um trabalho ser originalmente publicado. A nível técnico, há também a necessidade de abordagens dinâmicas à gestão: recursos externos à obra de arte perdem-se ou são depreciados e precisam de ser reconstruídos, e as obras de arte precisam de ser movimentadas entre ambientes de so�tware em constante mudança, em muitos casos altamente exclusivos que poderão até suportar, ou não, certos algoritmos criptográficos. Também concluímos que as redes blockchain podem necessitar de auxílio externo de forma a manter o acesso contínuo à informação que contêm.

The model of art ownership implied by NFTs has been a matter of some debate, and here, too, a comparison is instructive. Beyond the smart contract, CryptoKitties buyers were asked to agree to a set of platform-specific terms and conditions. It was in this separate, traditional license that what it means to own a CryptoKitty was defined: buyers could use their Kitties publicly in certain specific ways, but copyright remained with the creators. This is a really important precedent: in the view of the makers of CryptoKitties, the NFT smart contract itself was not sufficient; a separate license was needed in order to define what it meant to “own” a digital work. Interestingly, the license developed by CryptoKitties explicitly considered the artwork to include not only the canonical digital file, but also related art, design, and drawings. This expanded definition of the artwork recognizes a further limitation of the NFT, which is that it conventionally refers to one specific file only. This runs counter to prevailing ideas of born-digital practice, in which variability is seen as a defining feature. As artist Sterling Crispin has pointed out, a standard NFT purchase is often more like buying a print or poster, a fixed point in the dynamic system of an artwork. At Rhizome, we’ve found that immutability is not necessarily beneficial to the long-term stewardship of digital art. Histories need to be rewritten, artists change genders and names, authorship conflicts emerge years after a work is originally published. On the technical level, there is also a need for dynamic approaches to stewardship: resources external to the artwork get lost or deprecated and need to be reconstructed, and artworks need to be moved in between ever-changing, in many cases highly proprietary software environments that even might or might not support certain encryption algorithms. We’ve also found that blockchains can themselves require external support in order to maintain ongoing access to the data they contain.

We have to change our money NFTs are ultimately less interesting as fixed ledgers of digital art authenticity than as networked software tools that can facilitate new kinds of exchange, play, and collaboration. They also offer an opportunity to think through what a different and more equitable art market would be like. For example, Sara Ludy has used the NFT as an opportunity to develop a new contract with her gallery that is more supportive of the gallery’s staff. Likewise, many smart contracts build in automated resale rights for artists to benefit from secondary market sales, even if these may be circumvented. Cryptocurrency is not a prerequisite for these ways of working, but in some way, it does open up a conceptual space


A N OTH ER N E W WORL D

Temos de mudar o nosso dinheiro Os NFTs são, em última instância, menos interessantes como registos imutáveis de autenticidade de arte digital do que como ferramentas de so�tware em rede que podem facilitar novos tipos de troca, de jogo e de cooperação. Também oferecem uma oportunidade para pensar sobre como seria um mercado de arte diferente e mais equitativo. Por exemplo, Sara Ludy usou NFTs como uma oportunidade para desenvolver um novo contrato com a sua galeria que é mais solidário para com os trabalhadores daquele espaço. Da mesma forma, muitos contratos inteligentes incorporam direitos de revenda automática para que os artistas beneficiem de vendas no mercado secundário, ainda que estas possam ser contornadas. A criptomoeda não é um pré-requisito para estas formas de trabalho, mas, de certo modo, possibilita um espaço conceptual que parece incitar a este tipo de reflexão. Este é o espaço criado e explorado por Nora Khan e por Nick James Scavo em Making the Speculative Case �or Music on the Blockchain, texto escrito a propósito da peça de 2015 Futures Along the Blockchain comissionada pela Rhizome; pelo centro de arte e tecnologia londrino Furtherfield com a publicação Artists Re:Thinking the Blockchain e da parceria com a DAOWO Global Initiative; e por Mat Dryhurst e Holly Herndon através do podcast Interdependence. A criptomoeda oferece, de facto, algumas oportunidades para redefinir termos de uma nova maneira, mesmo que estes acabem por figurar apenas numa licença tradicional anexada aos NFTs. É como o incrível vídeo de Babak Radboy, Money with Babak Radboy, em que ele afirma que “se queremos mudar o mundo, temos de mudar o nosso dinheiro.” As ideias de um novo tipo de dinheiro e de um novo tipo de mercado de arte são poderosas e importantes, mas arriscadas se levadas longe demais. Tanto os NFTs como o mercado de arte tradicional têm uma pegada de carbono significativa. Ambos envolvem ideias negociáveis sobre o que é uma obra de arte e sobre autoria. Ambos envolvem a aposta do valor monetário com base na reputação, na percepção do desejo, num pitch de vendas bem feito, e muito mais. As dinâmicas que rodeiam o mercado de arte NFT estão fundadas em infraestruturas materiais, em políticas dos estados-nação, em relações sociais de poder profundamente enraizadas, em barreiras linguísticas e de acesso. Para alcançar o tipo de mudança que Radboy descreve, precisamos de tratar os NFTs não como um instrumento inteiramente novo, mas como um instrumento embutido nestas realidades sociais já existentes. / Uma versão mais longa deste artigo �oi originalmente publicada no blogue da Rhizome (rhizome.org) a 3 de Março de 2021.

that seems to prompt this type of thinking. This is the space created and explored by Nora Khan and Nick James Scavo with this 2015 piece for Rhizome, by Furtherfield with Artists Re:Thinking the Blockchain and DAOWO, and by Mat Dryhurst and Holly Herndon through their ongoing Interdependence podcast. Cryptocurrency does offer some opportunity to define terms anew, even if the terms just end up in a traditional license alongside the NFT. It’s like this amazing video by Babak Radboy, where he argues that “if we want to change the world, we have to change our money.” The idea of a new kind of money and a new kind of art market are powerful and important, but dangerous if taken too far. Both NFTs and the traditional art market have a significant carbon footprint. Both involve negotiable ideas about what constitutes the artwork, and what constitutes ownership of it. Both involve the staking of monetary value based on reputation, perceived desirability, a good sales pitch, and more. Dynamics shaping the NFT art market are rooted in material infrastructures, politics of nation states, deep-seated societal power relations, barriers of language and access. To achieve the kind of change Radboy describes, we need to treat the NFT not as an entirely new instrument, but as one that’s embedded in these existing social realities. / A longer version o� this article was originally published in Rhizome’s blog (rhizome.org) on March 03, 2021.

MICHAEL CONNOR É DIRECTOR ARTÍSTICO DA RHIZOME, ONDE SUPERVISIONOU A INICIATIVA NET ART ANTHOLOGY, UMA EXPOSIÇÃO ONLINE, ACOMPANHADA POR UMA EXPOSIÇÃO FÍSICA E UM LIVRO QUE DETALHA A HISTÓRIA DA ARTE ONLINE ATRAVÉS DE 100 OBRAS DE ARTE DA DÉCADA DE 1980 ATÉ HOJE. FOI RESPONSÁVEL PELA CURADORIA DE EXPOSIÇÕES DE PROJECTOS PARA A CORNERHOUSE (MANCHESTER), O MUSEUM OF MOVING IMAGE (NOVA IORQUE), O ACMI - AUSTRALIAN CENTER FOR THE MOVING IMAGE (MELBOURNE), O BELL LIGHTBOX (TORONTO), O FACT FOUNDATION FOR ART AND CREATIVE TECHNOLOGY (LIVERPOOL) E O BFI (LONDRES). OS SEUS TEXTOS PODEM SER ENCONTRADOS EM PUBLICAÇÕES COMO YOU ARE HERE: ART AFTER THE INTERNET (CORNERHOUSE), DIGITALVIDEO ABSTRACTION (UCPRESS), E MBCBFTW (HATJE CANTZ). MICHAEL CONNOR IS ARTISTIC DIRECTOR OF RHIZOME, WHERE HE OVERSAW THE NET ART ANTHOLOGY INITIATIVE, A WEB-BASED EXHIBITION, GALLERY EXHIBITION, AND BOOK THAT RETOLD THE HISTORY OF ONLINE ART THROUGH 100 ARTWORKS FROM THE 1980S TO THE PRESENT. HE HAS CURATED EXHIBITIONS AND PROJECTS FOR CORNERHOUSE, MANCHESTER, THE MUSEUM OF MOVING IMAGE, NEW YORK, ACMI, MELBOURNE, BELL LIGHTBOX, TORONTO, FACT, LIVERPOOL, AND BFI, LONDON. HIS WRITING HAS APPEARED IN YOU ARE HERE: ART AFTER THE INTERNET (CORNERHOUSE), DIGITAL VIDEO ABSTRACTION (UCPRESS), AND MBCBFTW (HATJE CANTZ).

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ESSE ALGORITMO É RACISTA? IS THIS ALGORITHM RACIST?

POR / BY RODRIGO RIBEIRO SATURNINO


A N Á L I SE

PT Padrão. Essa é a principal palavra que rege o funcionamento de um algoritmo. Por defeito, um algoritmo funciona a partir de regras pré-estabelecidas por quem as escreveu, podendo, mais tarde, tornar-se autônomo na produção de novas regras baseadas nas originais. A ideia de “machine learning” (aprendizagem da máquina) parte do pressuposto de que o computador ou um dispositivo capaz de operar a partir das regras de um algoritmo adquire capacidade para construir novos modelos que utilizam a ideia de indução, ou seja, tal algoritmo seria informado o suficiente para extrair regras e padrões a partir de grandes bases de dados.

EN Pattern. This is the key concept behind operating an algorithm. By default, an algorithm refers to pre-set rules that were written by hand and can later become autonomous in producing new rules based on the original ones. The idea of "machine learning " starts with the assumption that the computer, or a device capable of operating from the rules of an algorithm, acquires the capability to build different models using induction. Such algorithm would be informed enough to process rules and patterns from large databases.

Mas nem sempre o padrão segundo o qual opera um algoritmo parte de uma regra justa. O padrão é estabelecido por uma regra social criada por pessoas – resta saber quem são as pessoas que constituem os padrões a serem seguidos por uma sociedade ou um algoritmo. Basta pensar, por exemplo, na questão do binarismo social. Por muito tempo, a identidade de gênero ficou estagnada socialmente a partir de um modelo único de existência. Ser “homem” ou ser “mulher” cisgêneros ainda continua a ser um modelo identitário hegemônico que limita novas produções de visões do mundo. Por isso mesmo, padrões podem ser nocivos. O mesmo acontece com a produção algorítmica. Quando a construção de um algoritmo passa pela mão de uma pessoa constituída por valores sociais padronizados, corre-se o risco deste algoritmo reproduzir valores sociais que podem não estar alinhados com a justiça e a diversidade.

But the algorithm works based on a model that doesn’t always reflect a just rule. A social rule created by humans sets the model — the question remains who sets the standards that a society or an algorithm should follow. It is enough to think, for instance, of social binarism. Social norms have long restricted gender identity to a single model of existence. Being a cisgender "man" or a cisgender "woman" remains a hegemonic identity model limiting new worldviews. For this reason, patterns can be harmful. The same happens with algorithmic production. When a person shaped by institutionalised social values creates an algorithm, there is a risk that this algorithm will reflect social values that pay no attention to justice and diversity.

Nesse sentido, a questão racial é fulcral para compreender este processo e entender como uma situação de prejuízo criada no mundo o��line foi transportada para o mundo dos algoritmos. Tal como a identidade de gênero hegemônica, podemos pensar na situação da hegemonia racial em que pessoas brancas têm operado os meios de produção a partir de modelos únicos.

In this sense, the racial issue is central to understanding this process and how an offline bias goes on to the world of algorithms. Like the hegemonic gender identity, we can think about racial hegemony and how white people have been operating the means of production based on unique models.

Quando pensamos na produção de algoritmos devemos pensar nas pessoas que os produzem, nas pessoas que dominam os lugares onde estes artefatos tecnológicos são construídos. Uma análise realizada em 2019 pela CNBC sobre os indicadores da presença de funcionários negros nas maiores companhias de tecnologia do mundo revelou o grande abismo em termos de representatividade. Naquele ano, pessoas negras a trabalhar no Facebook representavam apenas 3,8%. No Twitter trabalhavam 6% e, na Amazon, havia 26.5% pessoas negras a trabalhar em centros de distribuição, longe de estarem em equidade com os postos ligados à engenharia de so�twares.

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A N A LY SI S

When we think about producing algorithms, we should think about who produces them, and who controls the places that design those technological artifacts. In 2019, CNBC analysed the percentage of Black employees at the world’s largest tech companies to show a significant gap in terms of representativeness. That year, the percentage of Black employees working at Facebook accounted for just 3.8%. At Twitter, 6% of the company’s workforce was Black. At Amazon, 26.5% of Black employees were working in the company’s warehouses, showing that the company is far more diverse in warehouses than in software engineering ranks.

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A distribuição dos postos de trabalho no mundo da tecnologia deixa claro como este espaço é ainda dominado por homens cis brancos, geralmente oriundos de países com uma intensa história racista e colonial. No Brasil, um mapeamento denominado PretaLab , realizado em 2019 pela Olabi com o objetivo de estimular o protagonismo de mulheres negras e indígenas na inovação e na tecnologia, revelou que este setor é controlado em quase 60% por pessoas brancas, na maioria por homens cis heterossexuais.

Job distribution in the tech world reveals how white cis men, coming from countries with an intense racist and colonial history, still dominate this field. In Brazil, Pretalab is a mapping initiative carried out by Olabi in 2019 to encourage the influence of Black and Indigenous women in the fields of innovation and technology. The survey revealed that white people, mostly cis heterosexual men, controlled the technology sectors in the country, accounting for almost 60% of the sector’s workforce.

Por que se sabe isso noutros países e não em Portugal? Porque ainda não existem políticas públicas no que toca às questões étnico-raciais e porque o debate sobre a inclusão das categorias que permitem identificar estes cidadãos ainda está longe de terminar. Outros países, como o Brasil e os Estados Unidos, estão muito mais avançados neste campo porque há muito que reconhecem o racismo como um elemento de destruição da equidade social e que a cor da pele ainda é um dado relevante na distribuição de postos de trabalhos em todos os setores.

Why is this known in other countries but not Portugal? Because there are still no public policies in place to address ethnoracial issues and because the debate on including categories allowing to identify these citizens is still far off. Other countries, such as Brazil and the United States, are much more advanced here as they have long recognised that racism is an element of destruction of social equity and that skin tone is still a relevant element regarding job selection in all sectors.

Para algumas pessoas, esta condicionante pode parecer um dado irrelevante. Mas não é. Pesquisas recentes, iniciadas a partir de 2010, demonstram que o funcionamento de alguns algoritmos replica condicionalismos sociais acerca da percepção sobre pessoas negras. No livro Algoritmos da Opressão (2018), Safiya Noble denuncia como a Google estava a permitir que pesquisas sobre “garotas negras” mostrassem resultados ligados à pornografia e à prostituição. Já Joy Buolamwini, fundadora do projecto Algorithmic Justice League (e protagonista do documentário da Netflix Coded Bias ) identificou problemas nos algoritmos do so�tware Rekognition , da Amazon, no que diz respeito ao reconhecimento facial: não eram eficazes na leitura de rostos de pessoas com peles escuras nem de mulheres.

For some people, this condition may seem irrelevant. But it’s not. Recent research, starting from 2010, shows that the operation of some algorithms replicates social constraints based on the perception of Black people. In the book Algorithms o� Oppression (2018), Safiya Noble reveals how a Google search using keywords “black girls” was yielding links to pornography and prostitution websites. Joy Buolamwini, founder of the Algorithmic Justice League (and leading figure in Netflix documentary Coded Bias), identified problems with the algorithms of Amazon's Rekognition, the company’s facial recognition software, namely that Amazon’s system had issues identifying the gender of darker-skinned individuals, as well as mistaking darker-skinned women for men. The gravity of the situation increases considering that urban policing bodies


A N Á L I SE


ESSE A LGORI TMO É R ACI STA?

A gravidade da situação acresce tendo em conta que este so�tware tem sido utilizado por órgãos de policiamento urbano no controle de possíveis atos de criminalidade a partir das câmaras de vigilância nas ruas, contribuindo para reforçar a criminalização aleatória e sistêmica das pessoas não brancas. O racismo digital instaurado pelas regras de certos algoritmos é complementado pelo comportamento de algumas pessoas dentro de plataformas online como a Uber, Airbnb, Glovo ou Blablacar. Nesses casos, não se trata exclusivamente de um padrão algorítmico, mas de uma tendência social que rejeita grupos sociais específicos.

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Vários estudos já comprovavam que motoristas negros ou motoristas com nomes com raízes árabes e não-ocidentais, que normalmente não são considerados de pessoas brancas, ganham menos dinheiro e recebem menos pontuação positiva em comparação com motoristas brancos. O mesmo acontece com anfitriões negros do Airbnb. Entramos outra vez no papel do algoritmo destes aplicativos que, ao registar as análises dos consumidores, estabelece rankings que desfavorecem estas pessoas. Tendo menor pontuação, estes trabalhadores são considerados pelo algoritmo como pessoas de confiança duvidável e isso repercute-se na sua (des)estabilidade financeira. E não é assim que funciona o sistema racial na generalidade? Um sistema que desqualifica a pessoa a partir da desconfiança perante a sua humanidade. No caso destes aplicativos, temos os algoritmos operando em parceria com o comportamento social. Não podemos ainda deixar de referir o quanto as redes sociais têm servido como plataformas de ódio. São muitos os casos de racismo através do digital, principalmente porque o caráter rizomático da internet dá força e coragem a quem a utiliza como espaço de prática de racismo, xenofobia e misoginia. Considerando que a rede é um espaço público de difícil regulação e que, com algum esforço criativo, é possível manter-se em anonimato, veículos como o Facebook, Instagram e Twitter têm servido de aporte para desencadear o ódio, mesmo com as medidas preventivas que têm surgido na tentativa de denunciar e controlar estes discursos. A subjetividade de quem trabalha na moderação de comentários e a falta de algoritmos capazes de rever palavras e imagens utilizadas em

that are using street surveillance cameras to reduce crime have used this software, thus contributing to reinforce the random and systemic criminalisation of people of colour. Digital racism instigated by algorithmic bias is complemented by some people’s behaviour within online platforms such as Uber, Airbnb, Glovo, or Blablacar. Here, it’s not solely the matter of an algorithmic pattern, but a social trend that discriminates against specific social groups.

Several studies have already proven that Black drivers or drivers with Arabic and non-Western sounding names, which are not normally perceived as white people’s names, are paid less and receive lower ratings than white drivers. The same is true for Black Airbnb hosts. This brings us back to the role played by the algorithm of these apps. By collecting and analysing information about consumer reviews, the algorithm establishes rankings that disfavour these people. Having lower ratings, the algorithm considers these workers people of doubtful trust and this has repercussions on their financial (in)stability. And isn't that how the racial system works? A system that disqualifies a person based on distrust of their humanity. With these apps, we have the algorithms operating in partnership with social behaviour. It is also important to mention how much social networks have become platforms for hate speech. Digital racism is very widespread, mainly because of the rhizomatic character of the internet that gives strength and courage to those who use it as a space to build up racism, xenophobia, and misogyny. Considering that the network is a public space hard to regulate and that, with some creative effort, anyone can remain anonymous, services such as Facebook, Instagram and Twitter have offered a platform for hate speech, even with the preventive measures that have emerged to condemn and control these discourses. The subjectivity of comment moderators and the lack of algorithms capable of reviewing words and images used in posts have not accounted for the storm of discrimination that abounds in public and private messages circulating in these spaces. How can we change all these scenarios? How can we promote changes in this sector when we think of the software engineers who are in charge


I S TH I S A LGORI TH M RACI ST ?

postagens não têm dado conta da tempestade de discriminações que pululam nas mensagens públicas e privadas a circular nestes espaços. Como mudar todos estes cenários aqui explanados? Como promover alterações neste setor quando pensamos nos engenheiros de software que estão à frente destes meios de produção de dinheiro e de valor social? O que levaria estas pessoas, maioritariamente brancas, cis e heterossexuais, a se interessarem por questões raciais quando muitas delas negam a sua existência ou nunca pensaram sobre o assunto, considerando o privilégio que os mantém num lugar de conforto? Estamos diante de um quadro estrutural histórico de manutenção de um poder padronizado nas mãos de pessoas brancas. A tentativa das grandes empresas de tecnologia em incluir pessoas negras tem-se revelado um falhanço total. Quando vemos a Amazon reportar que nos seus quadros de trabalhadores há quase 30% de pessoas negras e percebemos que este percentual representa a força bruta da empresa, a gente também compreende que ninguém quer deixar o seu lugar de conforto e de poder para, de facto, dar lugar às pessoas historicamente desfavorecidas pelos contextos coloniais. Como será isso em Portugal? Como serão constituídos os lugares de decisão dentro das filiais das grandes empresas? A questão que fica para refletir é: se uma pessoa com um lugar de poder não tem interesse em questões raciais porque entende que isso não a afeta, e provavelmente não afeta mesmo, o que a levaria a providenciar cenários de mudança? Talvez o começo da mudança aconteça aqui – quanto mais gente se levantar para debater a questão, quanto mais estudos forem feitos sobre o tema, quanto mais pessoas negres ocuparem espaços de poder na política, na cultura, no terreno empresarial. Quando se criarem categorias étnico-raciais para nos ser dado a conhecer onde estão pessoas como eu – pessoas negres portugueses e pessoas negres que vivem em Portugal – e quando se criarem cotas de reparação social a fim de tentar equilibrar injustiças que se perpetuam na história colonial portuguesa. /

of these means of production, both of money and social value? What would make these people, mostly white, cis, and heterosexual, interested in racial issues if many of them deny their existence or have never thought about this topic, considering the privilege that keeps them in a place of comfort? We are facing a historical framework where power is being kept institutionalised in the hands of white people. Attempts by big tech companies to include Black people have proven to be a total failure. When we watch Amazon reporting that Black people account for nearly 30% of its workforce and then realise that this percentage represents Amazon’s lower-paying front-line workforce, we also understand that nobody wants to leave their place of comfort and power to, in fact, give way to people historically disadvantaged by colonial contexts. What will this be like in Portugal? How will the decision-making positions be created within the branches of large companies? In the end, the question to reflect on is: if a person in a place of power has no interest in racial issues because they understand it has no impact on them, and probably doesn't have, why should they provide scenarios for change? Perhaps the beginning of change starts here—the more people rise to the issue, the more people will produce research on the subject, the more Black people will occupy spaces of power in politics, culture, and business. Perhaps change will come along with ethnoracial categories to inform us where people like me are—Black Portuguese people and Black people living in Portugal - and with social quotas to remedy the injustices perpetuated by Portuguese colonial history. /

RODRIGO RIBEIRO SATURNINO É SOCIÓLOGO DIGITAL, ARTISTA E ACTIVISTA GRÁFICO. ACTUALMENTE TRABALHA COMO INVESTIGADOR PÓS-DOC EM COMUNICAÇÃO NA UNIVERSIDADE DO MINHO, ONDE PESQUISA O RACISMO ALGORÍTMICO ATRAVÉS DE PLATAFORMAS DIGITAIS. ENTRE AS SUAS MÚLTIPLAS PUBLICAÇÕES DESTACAM-SE O LIVRO A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM PORTUGAL NAS REDES SOCIAIS DA INTERNET: O CASO DO ORKUT (2016) E A POLÍTICA DOS PIRATAS: INFORMAÇÃO, CULTURAS DIGITAIS E IDENTIDADES POLÍTICAS (2017).

É MEMBRO ACTIVO NA DJASS – ASSOCIAÇÃO DE AFRODESCENDENTES. NO CAMPO DA ARTE, TEM-SE CONCENTRADO NA CRÍTICA ACERCA DE IDEAIS CRIADOS SOBRE UMA MASCULINIDADE COLONIAL E RACIALIZADA.

RODRIGO RIBEIRO SATURNINO IS A DIGITAL SOCIOLOGIST, ARTIST, AND GRAPHIC ACTIVIST. HE IS CURRENTLY WORKING AS A POSTDOCTORAL RESEARCHER IN COMMUNICATION AT THE UNIVERSITY OF MINHO, WHERE HE INVESTIGATES THE ALGORITHMIC RACISM ACROSS DIGITAL PLATFORMS. HE IS THE AUTHOR OF MULTIPLE PUBLICATIONS INCLUDING A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO SOCIAL DOS IMIGRANTES BRASILEIROS EM PORTUGAL NAS REDES SOCIAIS DA INTERNET: O CASO DO ORKUT (2016), AND A POLÍTICA DOS PIRATAS: INFORMAÇÃO, CULTURAS DIGITAIS E IDENTIDADES POLÍTICAS

(2017).HE IS AN ACTIVE MEMBER OF DJASS ASSOCIAÇÃO DE AFRODESCENDENTES, A NON-PROFIT ORGANIZATION CREATED IN 2016 TO FIGHT RACISM AND DEFEND THE RIGHTS OF PEOPLE OF AFRICAN DESCENT. IN THE ART FIELD, HE HAS BEEN DEVELOPING A CRITICAL REFLECTION ON ESTABLISHED IDEALS OF COLONIAL AND RACIALIZED MASCULINITY.

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AS REDES SOCIAIS E OS NOVOS ANTROS DO EXTREMISMO POLÍTICO

POR / BY J. CARLOS LARA


SOCIAL MEDIA AND THE NEW DENS OF POLITICAL EXTREMISM


A N Á L I SE

A promessa da internet como o espaço onde a tecnologia permitiria o florescimento da democracia é, na melhor das hipóteses, uma promessa quebrada. O entusiasmo que acompanhou o crescimento explosivo da internet na viragem do século foi temperado pelo pânico sobre a disseminação de conteúdos nocivos e ilegais, desinformação, propaganda extremista e operações de influência, que alegadamente alteraram o curso das políticas nacionais, do Reino Unido ao Brasil.

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The promise of the internet as the place where technology would allow democracy to flourish is, at best, a broken one. The enthusiasm that accompanied the explosive growth of the internet by the turn of the century has been tempered by panics over the spread of harmful and illegal content, disinformation, extremist propaganda, and influence operations allegedly altering the course of national politics from UK to Brazil.


A N A LY SI S

PT Apesar de a internet ter permitido que actos isolados de terrorismo e de extremismo violento se tenham tornado virais, um novo nível de preocupação partilhada foi atingido quando o capital simbólico do mundo livre se viu invadido por manifestantes de extrema-direita. Uma "insurreição" no Capitólio dos Estados Unidos (como foi exageradamente chamada), organizada, promovida e transmitida em fóruns de discussão e plataformas de extrema-direita, foi para muitos a expressão final da radicalização online e a manifestação da inacção das plataformas digitais para refrear o "discurso do ódio". Qual seria o próximo alvo? Quem seriam os responsáveis por uma multidão mal informada e/ou radicalizada e, por sua vez, pelas vítimas das suas acções? O que poderia então acontecer em contextos menos "livres", de Mianmar ao México?

EN Although isolated acts of violent extremism and terror have found virality through the internet, we reached a new level of shared concern when the symbolic capital of the free world was overrun by far-right protesters. An "insurrection" in the United States Capitol (as it was exaggeratedly called), organised, promoted and streamed in far-right discussion forums and platforms, was for many the ultimate expression of online radicalisation — the manifestation of online platforms' inaction to curb "hate speech". Then what would be the next target? Who would be responsible for a misinformed and/or radicalised mob, and in turn, for the victims of their acts? What could even happen in less "free" contexts, from Myanmar to Mexico?

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Claro que o debate público, sobretudo aquele com maior impacto na elaboração de políticas públicas, pode muitas vezes ignorar grande parte da real complexidade do problema. Estudos confirmam que as plataformas da internet são, efectivamente, instrumentos potenciadores de radicalização devido, em parte, à criação das mais bem-sucedidas aplicações e dos respectivos algoritmos de recomendação. Para além da capacidade de atraírem pessoas de lugares distantes com interesses semelhantes, as plataformas mais populares passaram a sugerir conteúdos recomendados através de algoritmos que tentam recriar padrões que levam a um maior "envolvimento" dos seus utilizadores. Vídeos inflamatórios e ideias extremistas são, precisamente, parte desse tipo de conteúdo. Histórias que se alimentam de certas narrativas, num ciclo de indignação e suspeita, obtêm mais

Of course, public debate, especially that which can be most impactful in public policymaking, can often leave out large parts of the real complexity of the problem. Studies confirm internet platforms are in fact enablers of radicalisation, in part through the design of the most successful platforms and their recommendation algorithms. On top of the capacity for engaging people with similar interests from far away places, popular platforms have added recommended content, through algorithms that try to recreate patterns that will lead to more "engagement". Inflammatory videos and extremist ideas are precisely that type of content. Stories that feed into certain narratives, in a feedback loop of indignation and distrust, get more views and reactions than any debunking or retraction of the same stories.


AS RE DES SOCI A I S E OS N OVOS A N TROS DO E X T RE MI S MO POL Í T I CO

visualizações e reacções do que qualquer desconstrução ou retracção das mesmas histórias. O reconhecimento desta capacidade de desinformação e radicalização levou a um aumento dos apelos da sociedade civil à transparência algorítmica, exigindo o entendimento sobre o funcionamento destes mecanismos (estes apelos podem ser encontrados, por exemplo, nos Princípios de Santa Clara, um documento-guia sobre transparência e responsabilização na moderação de conteúdos que foi lançado por um grupo de organizações, activistas e académicos). As recomendações de conteúdos surgem com base em processos opacos de recolha e de análise de dados, uma caixa negra demasiado valiosa para ser aberta sem correr o risco de desistir da receita secreta para o sucesso. Por outras palavras, o modelo de negócio baseia-se num processamento de dados difícil de escrutinar.

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Algumas das empresas privadas donas destas plataformas detêm o poder sobre grandes partes do mundo, tendo bases de utilizadores muito superiores a populações de países ou continentes. Segundo o site Statista.com, no primeiro trimestre de 2021 o número de utilizadores do Facebook aumentou para 2,85 mil milhões e o do YouTube para 2,3 mil milhões. Por sua vez, o Twitter e o Reddit registavam, cada um, mais de 300 milhões de utilizadores mensais. Além disso, as plataformas mais recentes criadas por grupos desencantados de extrema-direita incluem a Parler, que superou os 10 milhões de utilizadores. Neste contexto, torna-se ainda mais difícil salvaguardar o importante papel destas plataformas enquanto palco de grande parte dos debates públicos e, ao mesmo tempo, exigir-lhes tomadas de decisão face às acções e às manifestações dos seus utilizadores. Como é que decidem? O que acontece quando essas decisões provocam outros danos? Também é preciso notar que a radicalização, embora facilitada pelas plataformas online, é uma questão com raízes muito mais profundas. Debater as possibilidades que as plataformas abrem e o conteúdo questionável que oferecem é, em muitos sentidos, debater os sintomas de problemáticas sociais mais amplas. Por outras palavras, estamos a assistir a manifestações de outros problemas: uma economia cada vez mais global, juntamente com crescentes assimetrias de poder, ondas de imigração, relocalização dos centros de poder industrial e consolidação do domínio tecnológico, financeiro e industrial restritos a poucos locais. Como demonstrado na literatura económica recente, a desigualdade global estava a aumentar mesmo antes de a pandemia materializar o risco de indigência para partes significativas da população. A crescente sensação de impotência face a estes fenómenos pode levar ao apoio de figuras e de narrativas que se enquadram no que identificamos como pensamento extremista. A democracia não parece validar-se quando as condições de vida não estão a melhorar para a maioria das pessoas, especialmente nos países menos desenvolvidos.

The acknowledgement of their capacity to disinform and radicalise has led civil society to increase calls for transparency on the way these algorithms work (we can find these calls, for example, in the Santa Clara Principles – drafted by a group of organizations, advocates and academic experts, the principles outline a set of guidelines on transparency and accountability around moderation of user-generated content). The recommendations are targeted based on opaque processes of data collection and analysis, a black box too valuable to open without risking giving up the secret recipe to success. In other words, the business model relies on data processing in ways that are hard to scrutinise. Some of these private companies hold power over large parts of the world, with user bases far above the populations of countries or continents. According to Statista.com , Facebook users rose to 2.85 billion by the first quarter of 2021, YouTube 2.3 billion, and both Twitter and Reddit are over 300 million monthly users each. In addition, newer platforms created by disenchanted far-right users include Parler, which surpassed 10 million users. It is even more difficult to preserve the important role they play in hosting a large part of public debates, while also asking them to decide on the actions and expressions of their users. How do they decide? What happens when those decisions create other harms? It is also important to notice that radicalisation, although facilitated by platforms, is an issue with much deeper roots. Debating platform affordances and questionable content is, in many ways, debating the symptoms of larger, and broader, social problems. In other words, we are seeing the manifestations of other problems. An increasingly global economy, along with growing power asymmetries, waves of immigration and relocation of the centres of industrial power, and consolidation of technological, financial and industrial dominance in few places. As shown in recent economic literature, global inequality was rising even before the COVID-19 pandemic materialised the risk of destitution for large parts of the population. The growing sense of powerlessness out of these phenomena can lead to the support of the figures and narratives that fit in what we identify as extremist thought. Democracy does not seem to validate itself when living conditions are not necessarily improving for most people, especially in less developed countries. The seeds of fascism have far more soil that might just be fertile enough. As with many other social processes, technology might just be in place to facilitate some of what was already happening, showing also the cracks of weaker and younger democracies. What is then left for the majority world? With little power to sway global processes, but under the influence of the powers of certain countries


SOCI A L ME DI A A N D TH E N E W DEN S OF POL I T I C AL E X T RE MI S M

As sementes do fascismo espalham-se num solo capaz de ser bastante fértil. Tal como acontece com muitos outros processos sociais, a tecnologia pode estar presente apenas para facilitar algo que já estava a acontecer, revelando também as fendas das democracias mais frágeis e mais jovens. O que resta, então, para a maioria do mundo? Com pouco poder para influenciar as dinâmicas globais, mas sob a influência dos poderes de certos países e de um punhado de grandes empresas (como tem acontecido durante séculos), algumas das piores tendências mundiais são replicadas em vez de contidas. Um candidato de extrema-direita ganhou as eleições presidenciais no Brasil para deixar, literal e figurativamente, um legado de destruição numa das maiores economias emergentes, ao mesmo tempo que vai espalhando mais ódio e desinformação online . Em meados de Julho deste ano, a segunda volta das eleições presidenciais no Peru declarou o vencedor após semanas de reivindicações infundadas de fraude eleitoral por parte do seu adversário (seguindo o exemplo recente dos EUA), e depois de um aumento da violência online e o��line por parte dos “Los Combatientes”, uma facção de extrema-direita dos seus eleitores. Onde estava então a indignação do mundo dito desenvolvido? Tal como salientado frequentemente pela sociedade civil, é claro que estas questões complexas têm de ser abordadas à luz do quadro internacional dos direitos humanos. A necessidade de impedir a amplificação de certos conteúdos, protegendo ao mesmo tempo as liberdades de opinião, de expressão e de associação, e ao mesmo tempo preservando a internet livre, global e interoperável, é um equilíbrio difícil de alcançar. Não limitar os direitos, mas reforçá-los enquanto se promove a democracia e a pluralidade, é tanto um desafio hoje como o foi durante o século XX. Talvez tenhamos de pensar em diferentes soluções para os enigmas legais e digitais globais, ao mesmo tempo que tomamos medidas para resolver os problemas sociais, culturais e políticos a nível local. A curto prazo, os conteúdos radicalizantes devem ser abordados não só em plataformas online, mas também através da investigação das suas fontes. As soluções a longo prazo devem visar a diminuição da procura destes conteúdos, por exemplo, através de medidas económicas de combate à desigualdade, através da educação cívica e através da sensibilização para os perigos do extremismo. Poderá ser necessário um forte activismo para impulsionar as agendas políticas no sentido de abordar estas questões com seriedade. A busca pelo equilíbrio poderá não terminar tão cedo, mas temos de continuar a procurar. Nunca foi tempo de queimar livros por uma questão de ortodoxia política. Não será agora o momento de queimarmos os nossos smartphones . Pelo menos, não por causa dos fascistas. /

and a handful of large corporations (as it has been for centuries), some of the world's worst tendencies are replicated rather than contained. A far-right candidate won a presidential election in Brazil and has left a legacy of literal and figurative destruction in one of the largest emerging economies, while spreading further hatred and misinformation online. By mid-July 2021, the presidential runoff election in Peru declared its winner after weeks of unsubstantiated claims of election fraud by his opponent (following a recent example from the U.S.) and a surge of online and offline violence by "Los Combatientes”, a far-right faction among her supporters. Where was the so-called developed world indignation then? Of course, as civil society usually points out, these hard questions need to be addressed regarding the international human rights framework. The need to prevent the amplification of certain content, while protecting the freedoms of opinion and expression and association, and preserving the free, global, interoperable internet, is a difficult balance. Not limiting rights, but enhancing them while also promoting democracy and plurality, is as much a challenge today as it was during the 20th century. Perhaps we need to think about different solutions to the global legal and digital conundrums, while also taking action to address the social, cultural and political problems at the local level. In the short term, we must not only address radicalising content on online platforms but also investigate its sources. Long-term solutions must aim to reduce the demand for extreme content, for example, through economic measures tackling inequality, through civic education, and through raising awareness about the dangers of extremism. We may need strong activism to push political agendas to tackle these issues in a serious manner. The quest for balance might not be over any time soon, but we must keep searching. It has never been the time to burn books as a matter of political orthodoxy. It is not time now to burn our smartphones. Not for the sake of fascists, anyway. /

J. CARLOS LARA É O DIRECTOR DE INVESTIGAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS DA DERECHOS DIGITALES, UMA ORGANIZAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS, COM SEDE EM SANTIAGO DO CHILE, QUE DIVULGA E DEFENDE OS DIREITOS HUMANOS DOS UTILIZADORES DE TECNOLOGIA NA AMÉRICA LATINA, PROMOVENDO UM AMBIENTE DIGITAL QUE PERMITA O PLENO EXERCÍCIO DOS DIREITOS À LIBERDADE DE EXPRESSÃO, PRIVACIDADE, ACESSO À CULTURA E SEGURANÇA DIGITAL. J. CARLOS LARA É LICENCIADO EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE DO CHILE E TEM UM LL.M. (MASTER OF LAWS) PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY. PODE SER CONTACTADO EM JC@DERECHOSDIGITALES.ORG. J. CARLOS LARA IS THE RESEARCH AND PUBLIC POLICY DIRECTOR AT DERECHOS DIGITALES , A NONPROFIT ORGANISATION BASED IN SANTIAGO DE CHILE THAT PROMOTES AND DEFENDS HUMAN RIGHTS FOR TECHNOLOGY USERS IN LATIN AMERICA, FOSTERING A DIGITAL ENVIRONMENT THAT ALLOWS FOR THE FULL EXERCISE OF THE RIGHTS TO FREEDOM OF EXPRESSION, PRIVACY, ACCESS TO CULTURE, AND DIGITAL SECURITY. J. CARLOS HAS A LAW DEGREE FROM THE UNIVERSITY OF CHILE AND AN LL.M. (MASTER OF LAWS) FROM THE UNIVERSITY OF CALIFORNIA, BERKELEY. J. CARLOS CAN BE CONTACTED AT JC@DERECHOSDIGITALES.ORG.

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DIFÍCIL DE ACOMPANHAR

POR / BY INÊS HENRIQUES


HARD TO KEEP UP


WEB3

Um conceito para a transformação do digital A concept for digital transformation

Como funciona? How does it work?

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PT No centro da Web3 está a tecnologia blockchain . Como o próprio nome indica, trata-se de um sistema de dados em bloco que, em conjunto, formam uma corrente global. Cada pedaço de informação validado é codificado num bloco próprio e junta-se aos restantes blocos, como se de um comboio se tratasse. A estes blocos é-lhes atribuído um código único, o que garante que as informações que contêm não são violadas. Ninguém, ou nenhuma plataforma, detém esta cadeia. No seio desta tecnologia estão os contratos inteligentes , que asseguram que determinada acção - por exemplo, uma transacção – só se concretiza apenas após todos critérios definidos como necessários serem cumpridos. A bitcoin ⁴ , criptomoeda ou moeda digital, e o NFT , token não fungível, são dois exemplos de sucesso que operam através da tecnologia blockchain. De igual forma, já existem diversos projectos a operar através desta tecnologia e, por consequência, a revolucionar a transformação do espaço digital, tais como a Zora, um dos mais conhecidos mercados de NFTs, BlockchainMyArt, serviço de pagamentos transparente e justo para festivais, e Friends With Benefits, comunidade e rede social que liga artistas e fãs através da troca de tokens por acesso a conteúdos. EN Blockchain technology is at the heart of Web3. As the name suggests, this is a system of block data that together form a global chain. Each piece of validated information is encoded in its own block and joins the other blocks as if it were a train. These blocks are assigned a unique code, which guarantees that the information they contain is not violated. No one, or no platform, owns this chain. Smart contracts are at the core of this technology. They ensure that a certain action – for example, a transaction – only takes place after all the criteria defined as necessary have been met. Bitcoin ⁴ , a cryptocurrency or digital currency, and the NFT , a non-fungible token, are two successful examples that operate through blockchain technology. Similarly, there are already several projects operating through this technology and revolutionising the transformation of digital space: Zora, one of the best known NFTs marketplaces; BlockchainMyArt, a more transparent and fair payment service for festivals; and Friends With Benefits, a community and social network that connects artists and fans by exchanging tokens for content access.

¹ Nome dado à primeira era da World Wide Web. Desenvolvida nos anos 1990 em protocolos abertos e descentralizados, a Web 1.0 caracteriza-se por oferecer

websites estáticos construídos sobre linguagens HTML, sem características interactivas e meramente informacionais. Na web 1.0, o utilizador é passivo.

² Era que corresponde à primeira grande transformação da internet, verificada no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Contrastando com a fase

anterior, na Web 2.0 a interactividade e a experiência do utilizador é central. Através de interfaces simplificadas, torna-se possível que qualquer pessoa tenha uma presença online e contribua com conteúdos próprios. Neste período, a internet torna-se centralizada e centrada em plataformas que detêm os conteúdos. ³ Smart contract, ou contrato inteligente, é um acordo entre duas ou mais entidades na forma de código que se executa e faz cumprir de forma autónoma e automática, sem recurso a intermediários centralizados. Como um documento legal tradicional, este acordo na forma de código estabelece as regras, obrigações e penalizações do acordo estabelecido. ⁴5 Moeda digital descentralizada que não precisa de terceiros – como bancos – para ser transaccionada. Os NFTs, tokens não fungíveis, são activos de valor insubstituível, associados a propriedade intelectual. Entendido como um código digital gravado na blockchain, é possível associar um NFT à propriedade de determinada obra. Enquanto uma criptomoeda pode ser trocada por uma criptmoeda, os NFTs não podem ser trocados por outros NFTs, por não existir um NFT com o mesmo valor.

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O que é? What is it? PT Uma nova era da internet que poderá transformar o digital. Após a Web 1.0 ¹, construída sobre protocolos abertos e websites pouco interactivos, e da Web 2.0², centralizada e ancorada em plataformas que privilegiam as interacções e a criação de conteúdos, a Web3 reúne as melhores características das duas eras anteriores. A sua principal característica é a descentralização: neste ecossistema, não existe uma instituição central que detém os conteúdos, como a Google ou o Facebook, mas sim uma rede codificada gerida pela comunidade de utilizadores, responsáveis por validar consensualmente estes conteúdos. A Web3 estimula a prática de governação participativa, pressupondo que, sem intermediários, os criadores estabeleçam relações directas com os utilizadores, realizem transacções mais transparentes e seguras e detenham, de forma global, os seus dados e conteúdos.

EN A new internet era that might transform the digital space. Following Web 1.0 ¹, built on open protocols and non-interactive websites, and Web 2.0² , centralised and anchored on platforms that favour interaction and content creation, Web3 brings together the best features of the two previous eras. Its key feature is decentralisation: in this ecosystem, there isn't a central entity that owns the content, like Google and Facebook. Instead, there is a codified network run by a community of users who are responsible for consensually validating this content. Web3 enables participatory governance practices, suggesting that, with no intermediaries, creators establish direct relationships with users, perform more secure and transparent transactions, and fully own their data and content.

Que mudanças a Web3 pode trazer à economia criativa? What changes can it bring to the creative economy? PT No artigo Web3 and the Creative Industries: How blockchains are reshaping business models , Jason Potts e Ellie Renie afirmam que a Web3 poderá representar uma nova infraestrutura económica para os sectores da música e da cultura. O músico e investigador Mat Dryhurst apelida-a de “economia da interdependência'': contrariamente à actual “economia da independência”, que incentiva à atomização e competição entre criadores, na Web3 privilegiam-se as práticas mais colectivas e consensuais onde a tónica é colocada na partilha de informação transparente. Por outro lado, o intercâmbio directo entre utilizadores reescreve os modelos de negócios e os mecanismos de vendas de bens, permitindo parcelas de receita maiores para os artistas, e abre novos caminhos à propriedade intelectual. Devido à tecnologia blockchain e ao seu mecanismo de contratos inteligentes, os criadores não necessitarão, por exemplo, de recorrer a outras entidades para reconhecerem a autenticidade dos seus trabalhos e obterem protecção da propriedade intelectual, o que representa um processo menos dispendioso. Assim, a Web3 poderá dar lugar a uma nova relação com a noção de propriedade por estimular estas ligações desintermediadas.

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EN In their article "Web3 and the Creative Industries: How blockchains are reshaping business models", Jason Potts and Ellie Renie argue that Web3 could represent a new economic infrastructure for the music and cultural sectors. Musician and researcher Mat Dryhurst calls it " interdependence economy": unlike the current “independence economy”, which encourages atomisation and competition between creators, Web3 favours collective and consensual experiences where the emphasis is on transparent information sharing. On the other hand, direct exchange between users rewrites business models and mechanisms for selling goods, allowing larger revenue shares for artists, and opens new avenues for intellectual property. Due to blockchain technology and its smart contract mechanism, creators won’t need to rely on other entities to recognise the authenticity of their works and obtain intellectual property protection, which represents a less costly process. Web3 could thus lead to a new relationship with the notion of property by stimulating these disintermediated links.

¹ Name given to the first era of the World Wide Web. Developed in the 1990s on open and decentralised protocols, Web 1.0 is characterised by offering static websites built on HTML languages, without interactive and merely informational features. In Web 1.0, the user is passive.

² Era that corresponds to the first major transformation of the Internet, which took place in the late 1990s and early 2000s. In contrast to the previous

phase, in Web 2.0 interactivity and user experience is central. Through simplified interfaces, it becomes possible for anyone to have an online presence and contribute their own content. In this period, the internet becomes centralised and centred on platforms that own the content.

³ Smart contract, or intelligent contract, is an agreement between two or more entities in the form of code that is executed and enforced autonomously

and automatically, without recourse to centralised intermediaries. Like a traditional legal document, this agreement in code form sets out the rules, obligations and penalties of the established agreement.

⁴5 Digital cryptocurrency that does not need a third party - such as banks - to be transacted.

NFTs, non-fungible tokens, are assets of irreplaceable value, associated with intellectual property. Understood as a digital code recorded on the blockchain, it is possible to associate an NFT with ownership of a particular work. While a cryptocurrency can be exchanged for a cryptocurrency, NFTs cannot be exchanged for other NFTs, as there is no NFT with the same value.

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ONTOLOGIAS FEMINISTAS

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Um projecto que está a tentar democratizar o acesso ao conhecimento no espaço virtual

O que é? What is it?

Qual é a sua ligação ao espaço virtual? How do they connect to virtual space?

PT Uma plataforma de produção e gestão cultural que surgiu para colmatar a inexistência de um currículo feminista e anti-racista nos espaços de investigação académicos e artísticos. Criada por Blanca Martínez, Elena Castro Córdoba e Laura Tabarés, as Ontologias Feministas procuram criar redes de aprendizagens e partilha de conhecimento através de workshops, conversas, laboratórios de pensamento e encontros presenciais e virtuais.

PT Um dos principais eixos de trabalho das Ontologias Feministas é a virtualidade, que passa por pensar sobre as possibilidades políticas dos corpos e das identidades de género nos espaços online. Nesse sentido, desenvolvem uma pedagogia apoiada numa estética e linguagem digitais, estimulando a formação de redes feministas de capacitação. Ao mesmo tempo, e reconhecendo no activismo digital uma poderosa arma, pensam criticamente as matrizes deste espaço e o modo como o mesmo se estabelece, simultaneamente, como um lugar de afecto e violência. Exemplo disso é o Santuario Nocturno Virtual, um encontro online onde se discutem questões de segurança nas festas organizadas no contexto dos espaços virtuais, abordando temáticas como o assédio e a violência de género.

EN A platform for cultural production and management that has emerged to address the lack of a feminist and anti-racist curriculum both in academic and artistic research spaces. Created by Blanca Martínez, Elena Castro Córdoba and Laura Tabarés, Ontologias Feministas seeks to create learning and knowledge-sharing networks through workshops, conversations, think tanks and face-to-face and virtual encounters.

EN One of the main working axes of Ontologias Feministas is virtuality, which consists of thinking about the political possibilities of bodies and gender identities in online spaces. In this sense, they develop a pedagogy based on digital aesthetics and language, stimulating the formation of feminist networks of empowerment in the virtual space. At the same time, by recognising digital activism as a powerful weapon, they critically think about the matrixes of this space and how it establishes itself both as a place of affection and violence. An example of such approach is Santuario Nocturno Virtual, an online meeting where they discuss safety issues in parties organised in virtual spaces, addressing themes such as harassment and gender violence.

Como procuram repensar o digital sob uma perspectiva feminista? PT Desde o seu nascimento que as Ontologias Feministas têm vindo a desenvolver trabalho com o objectivo de estimular a transformação do espaço digital e capacitar os seus intervenientes com ferramentas que lhes permitam navegar nele de um modo mais seguro e informado. Uma das formas mais visíveis desta missiva é o workshop Strolling You Down, uma sessão sobre autodefesa feminista na internet que dá às participantes ferramentas para enfrentar as situações de violência com que são confrontadas diariamente. Deste modo, introduzem – e trabalham – a noção de cuidado digital, chamando a atenção para a necessidade de preservar a saúde e o bem-estar nestas interacções.

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A project that is trying to democratise access to knowledge in virtual space

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How do they seek to rethink the digital dimension from a feminist perspective? EN Since its inception, Ontologias Feministas has been working to stimulate the transformation of the digital space and empower its actors with tools to navigate it in a safer and more informed way. One of the most visible faces of this mission is Strolling You Down workshop, a session on feminist self-defence on the internet that gives participants tools to confront the situations of violence they must deal with daily. With this, Feminist Ontologies introduces - and works on - the notion of digital mindfulness, drawing attention to the need to preserve health and well-being in these interactions. www.instagram.com/ontologiasfeministas

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MERA

Uma editora-promotora que não existiria sem a sua comunidade

O que é? What is it? PT A MERA é uma editora porque lança música e uma promotora porque apresenta essas mesmas edições ao público. Criada a partir do circuito cultural independente do Porto por João Soares, Daniel Assunção e Nelson Duarte, a ideia original da MERA passa por “albergar o material de tudo” o que os envolve e “de toda a gente” à sua volta. No fundo, “mostrar o que se faz aqui na zona”, diz-nos João Soares. EN MERA is a label because it releases music and a promoter because it presents those same editions to the public. Created by João Soares, Daniel Assunção and Nelson Duarte from the independent cultural circuit of Oporto, the original idea of MERA is to “record the material of everything and everyone” that surrounds them. Basically, “to show what is done in the area”, João Soares tells us.

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Como surgiu? How did it come up? PT Germinada no seio da comunidade artística do Bonfim, a origem da MERA está nas pessoas que a rodeiam. A “semente” que plantou este projecto, nota João Soares, foi o Ócio, colectivo de artistas fundado em 2013 do qual João, Daniel e Nelson fazem parte. À semelhança do estúdio de animação e tecnologia interactiva Girina e da revista de artes Dose (criada por Maria Von Hafe, Margarida Oliveira, Cristiana Oliveira e Mariana Rebola), a MERA foi um dos desdobramentos do Ócio e das várias linguagens que nesse colectivo se encontram. Começou por ser apenas um canal de partilha, mas rapidamente vieram as primeiras edições de música de amigos mais próximos, sobretudo dentro da música electrónica, seguindo-se as colaborações com espaços como o clube Passos Manuel para mostrar esses trabalhos.

EN Created within the artistic community of Bonfim, the origin of MERA lies in the people that surround it. The "seed" that planted this project, notes João Soares, was Ócio, a collective of artists founded in 2013, of which João, Daniel and Nelson are members. Like animation studio Girina and arts magazine Dose (created by Maria Von Hafe, Margarida Oliveira, Cristiana Oliveira and Mariana Rebola), MERA is an offspring of Ócio and the various languages found in this collective. It started out as just a channel for sharing, but soon came the first editions of music from close friends, mostly within electronic music, followed by collaborations with venues like Passos Manuel club to showcase those same works.

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A label-promoter that wouldn't exist without its community

Qual é o papel da comunidade para a MERA? What is the role of community for MERA? PT Tal como o Ócio, a MERA é o resultado directo da efervescência da comunidade artística do Bonfim, um dos principais pontos de encontro da força criativa que alimenta a cidade. Lá foram acontecendo as ligações com artistas, públicos, moradores e outros colectivos, como os berru ou a Lovers & Lollypops, e este espírito comunitário e de entreajuda acabou por enraizar-se no ethos da editora, “como se do destino se tratasse”. João Soares sublinha que trabalhar em comunidade foi algo que lhes foi permitido desde o início, já que tudo se dá “de forma muito natural, simples e honesta”: seja a partir dos encontros casuais no Asa de Mosca, histórico café portuense situado em frente ao espaço de trabalho e galeria do Ócio, seja através da dinamização desse mesmo espaço. Mas a pontes criadas não se ficam pelo Porto – os tentáculos da MERA estendem-se a Amesterdão, Berlim e a Aachen, onde vão surgindo intercâmbios, por agora online, com artistas e colectivos semelhantes. Durante os confinamentos, procuraram replicar as dinâmicas presenciais no espaço virtual e o trabalho deu-se de forma igualmente orgânica. A facilidade com que escolheram e envolveram artistas e editoras nas duas edições da Domestic Rave Transmission, um evento livestream com 24 horas de duração, foi, para João, “mais uma prova de que estas comunidades existem e que é importante preservá-las”. EN Like Ócio, MERA results from the artistic community burst of Bonfim, one of the main meeting points of the creative force that drives the city. It was there that connections with artists, audiences, residents and other collectives, such as Berru or Lovers & Lollypops, took place, and this community spirit and mutual help became rooted in the label's ethos , "as if it were destiny". João Soares underlines that working together was something that they could do from the beginning, since everything happens "in a very natural and honest way": either through casual meetings at Asa de Mosca, the historic café in Oporto located opposite Ócio's work space and gallery, or through the work developed here. But the bridges created are not limited to Porto - MERA's tentacles extend to Amsterdam, Berlin and Aachen, where online exchanges are emerging with similar artists and collectives. During the confinements, they tried to replicate the in-person dynamics in the virtual space and again the work took place in an organic way. The ease with which they chose and involved artists and publishers in the two editions of the Domestic Rave Transmission, a 24-hour livestream event, was, as João puts it, "further proof that these communities exist and that it is important to preserve them".

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Qual é a importância de mostrar ao vivo o trabalho dos artistas da MERA? How important is it for MERA artists to showcase their work live? PT Para a MERA, a edição é tão importante como a apresentação ao vivo. Importa-lhes obter “outra resposta que não seja só gráfica ou de monetização, que te diz apenas quantas vendas fizeste ou quantas pessoas ouviram”, observa João. Ao vivo, encontram uma “resposta muito pessoal e honesta na cara e no corpo das pessoas”, interacção que incentiva os artistas a continuar o seu trabalho. Investindo em criar um ambiente audiovisual e performativo adequados a cada espectáculo, a MERA procura estimular um elo de ligação entre o espectador e o artista, algo que o livestream nunca vai conseguir substituir. EN For MERA, the editing is just as important as the live performance. It matters to them to get "another response that isn't just graphic or monetisation, that just tells you how many sales you've made or how many people have listened", notes João. Live, they find a "very personal and honest response in people's faces and bodies", an interaction that encourages the artists to continue their work. Investing in creating an audiovisual and performative environment appropriated to each show, MERA seeks to stimulate a link between the spectator and the artist, something that the livestream will never be able to replace. www.instagram.com/mera.label

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DI FÍ CI L DE ACOMPA N H A R H ARD TO K E E P UP

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INÊS HENRIQUES É LICENCIADA EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO E TEM UM MESTRADO EM MUSICOLOGIA. HÁ QUATRO ANOS QUE É RESPONSÁVEL PELA COMUNICAÇÃO E PR DA CTL - CULTURAL TREND LISBON, EMPRESA CULTURAL QUE GERE PROJECTOS COMO O MUSICBOX, MIL - LISBON INTERNATIONAL MUSIC NETWORK, CASA DO CAPITÃO, FESTIVAL SILÊNCIO E JAMESON URBAN ROUTES. NO MIL, INTEGRA AINDA A EQUIPA DE PROGRAMAÇÃO DA CONVENÇÃO. INÊS HENRIQUES GRADUATED IN COMMUNICATION SCIENCES AND HAS A MASTER'S DEGREE IN MUSICOLOGY. FOR THE PAST FOUR YEARS, SHE’S BEEN RESPONSIBLE FOR HANDLING ALL PR & COMMUNICATION MATTERS AT CTL – CULTURAL TREND LISBON, A CULTURAL ENTERPRISETHAT LEADS PROJECTS SUCH AS MUSICBOX, MIL – LISBON INTERNATIONAL MUSIC NETWORK, CASA DO CAPITÃO, FESTIVAL SILÊNCIO AND JAMESON URBAN ROUTES. SHE’S ALSO PART OF THE MIL’S CONVENTION PROGRAMME TEAM.




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