Gregório de Matos

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Professor Miguel d’ Amorim

Barroco - A poesia lírica de Gregório de

Matos

A poesia lírica de Gregório de Matos pode ser dividida em lírica sacra, lírica amorosa (espiritual e carnal), lírica encomiástica (poemas de circunstância, poemas laudatórios) e lírica filosófica. Analisemos, uma a uma, a poesia lírica desse autor barroco: 1. Poesia lírica sacra - A culpa e o arrependimento Expressa a cosmovisão barroca: a insignificância do homem perante Deus, a consciência nítida do pecado e a busca do perdão. Ao lado de momentos de verdadeiro arrependimento, muitas vezes o tema religioso é utilizado como simples pretexto para o exercício poético, desenvolvendo engenhosos jogos de imagens e conceitos. As idéias de Deus e do pecado, ao mesmo tempo que se opõem, são complementares. Embora Deus detenha o poder da condenação da alma, está sempre disposto ao perdão, por sua misericórdia e bondade; daí deriva Sua maior glória. A CRISTO N. S. CRUCIFICADO, estando o poeta na última hora de sua vida 1 Meu Deus, qude estais pendente de um madeiro, 2 Em cuja lei protesto de viver, 3 Em cuja santa lei hei de morrer, 4 Animoso, constante, firme e inteiro: 5 6 7 8

Neste lance, por ser o derradeiro, Pois vejo a minha vida anoitecer; É, meu Jesus, a hora de se ver A brandura de um Pai, manso Cordeiro.

9 Mui grande é o vosso amor e o meu delito; 10 Porém pode ter fim todo o pecar, 11 E não o vosso amor que é infinito. 12 Esta razão me obriga a confiar, 13 Que, por mais que pequei, neste conflito 14 Espero em vosso amor de me salvar. Nas duas primeiras estrofes, o poeta expressa a contrição religiosa e a crença no amor infinito de Cristo, para manifestar, no final, a certeza do perdão. O soneto encobre uma formulação silogística, que se pode expressar dessa maneira: o amor de Cristo é infinito (verso 11); o meu pecado, por maior que seja, é finito, e menor que o amor de Jesus (versos 9 e 10). Logo, por maior que seja o meu pecado, eu espero salvar-me (versos 13 e 14).


BUSCANDO A CRISTO 1 A vós correndo vou, braços sagrados, 2 Nessa cruz sacrossanta descobertos, 3 Que, para receber-me, estais abertos, 4 E, por não castigar-me, estais cravados. 5 A vós, divinos olhos, eclipsados 6 De tanto sangue e lágrimas abertos, 7 Pois, para perdoar-me, estais despertos, 8 E, por não condenar-me, estais fechados. 9 A vós, pregados pés, por não deixar-me, 10 A vós, sangue vertido, para ungir-me, 11 A vós, cabeça baixa p ‘ra chamar-me. 12 A vós, lado patente, quero unir-me, 13 A vós, cravos preciosos, quero atar-me, 14 Para ficar unido, atado e firme. O soneto é construído a partir de um sistema de metonímias que vão relacionando as partes de Cristo ("braços", "olhos", "pés", "sangue", "cabeça", "cravos"), substituindo todo o Cristo crucificado. Os versos 5, 9, 10, 11, 12 e 13 constroem-se com a omissão do verbo, que aparecera no 1º verso "correndo vou”. Em todos eles ocorre o procedimento estilístico denominado zeugma (= elipse de uma palavra ou expressão próxima no contexto). Assim, nos versos -mencionados, deve-se ler: "A vós (correndo vou), divinos olhos (...)" "A vós (correndo vou), pregados pés (... )" etc. Outro recurso empregado são as anáforas (repetição de palavra(s) no início de dois ou mais versos). Observe a repetição de “a vós” (v. 5, 9, 10, 11, 12, 13), e de "e por não" (v. 4 e 8). Enquanto no texto anterior o jogo de idéias é predominante (aspecto conceptista), neste, o mais evidente é o trabalho com as palavras, por meio das figuras de linguagem (aspecto cultista). Observe que o mesmo poeta contrito dos textos sacros é autor de sátiras violentas ao clero:

A nossa Sé da Bahia, com ser um mapa de festas, é um presepe de bestas, se não for estrebaria: Várias bestas cada dia. Ou:


E nos frades há manqueiras ?...Freiras. Em que ocupam os serões?... Sermões. Não se ocupam em disputas?... Putas. Com palavras dissolutas Me concluís, na verdade, Que as lidas todas de um frade São freiras, sermões e putas. 2. Poesia lírica amorosa - O espírito e a carne Apresenta-se sob o signo da dualidade barroca, oscilando entre a atitude contemplativa, o amor elevado, à maneira dos sonetos de Camões, e a obscenidade, o carnalismo. É curioso que a postura platônica é dominante, quando o poeta se refere a mulheres brancas, de condição social superior, e a libido agressiva, o erotismo e o desbocamento são as tônicas, quando o poeta se inspira nas mulheres de condição social inferior, especialmente as mulatas. Neste sentido, destaca-se já certa “tropicalidade”, a antecipação de certo “sentimento brasileiro”.

Minha rica mulatinha, desvelo e cuidado meu, eu já fora todo teu, e tu foras toda minha; Juro-te, minha vidinha, se acaso minha qués ser, que todo me hei de acender em ser teu amante fino pois por ti já perco o tino, e ando para morrer. Observe os versos curtos e a aproximação com uma linguagem mais espontânea e popular. A mulher é vista tanto de modo espiritualizado, quanto como objeto de desejo carnal. Ambas as visões podem aparecer no mesmo texto, estabelecendo um conflito, conforma ocorre no soneto transcrito a seguir, Anjo no nome, Angélica na cara, onde também encontra-se a atitude idealizante e a linguagem mais erudita: A D. ÂNGELA

Anjo no nome, Angélica na cara! Isso é ser flor e Anjo juntamente: Ser Angélica flor e Anjo florente, Em quem, senão em vós, se uniformara? Quem vira uma tal flor que a não cortara De verde pé, da rama florescente; E quem um Anjo vira tão luzente


Que por seu Deus o não idolatrara? Se pois como Anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu Custódio e a minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Mas vejo, que por bela, e por galharda, Posto que os Anjos nunca dão pesares, Sois Anjo que me tenta, e não me guarda. O soneto marca-se pelo aspecto cultista, desenvolvendo-se por meio do jogo de palavras e imagens: “Ângela” = “Angélica” = “Anjo”, “flor” = “florente”. O tema central é o caráter contraditório dos sentimentos do poeta pela mulher, que é simultaneamente flor (metáfora da beleza) e objeto do desejo, e anjo (metáfora da pureza) e símbolo da elevação espiritual. A contradição entre o amar e o querer desemboca no paradoxo dos versos finais: “Sois Anjo que me tenta e não me guarda.” O tema clássico do carpe diem (= aproveita o dia) é freqüente. A consciência da fugacidade do tempo e das incertezas da vida leva à necessidade de fruição imediata dos prazeres. É o que se nota em:

Discreta e formosíssima Maria, Enquanto estamos vendo a qualquer hora, Em tuas faces a rosada Aurora, Em teus olhos e boca, o Sol e o dia: Enquanto com gentil descortesia, O ar, que fresco Adônis te namora, Te espalha a rica trança brilhadora, Quando vem passear-te pela fria... Goza, goza da flor da mocidade, Que o tempo trata a toda a ligeireza, E imprime em toda a flor sua pisada. Oh não aguardes que a madura idade Te converta essa flor, essa beleza, Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada. Os textos que iremos transcrever demonstram cabalmente o conflito carne x espírito, mediante duas definições do amor.

O Amor é finalmente um embaraço de pernas, uma união de barrigas, um breve tremor de artérias.


Uma confusão de bocas, uma batalha de veias, um rebuliço de ancas; quem diz outra coisa, é besta. Ardor em firme coração nascido; Pranto por belos olhos derramado; Incêndio em mares de água disfarçado; Rio de neve em fogo convertido: Tu, que Tu, que Quando Quando

em um peito abrasas escondido; em um rosto corres desatado; fogo, em cristais aprisionado; cristal, em chamas derretido.

3. Poesia lírica encomiástica Gregório de Matos escreveu também poemas laudatórios (de elogio), de circunstância (festas, homenagens, fatos corriqueiros). Um exemplo curioso é o poema cujo inicio transcrevemos, uma homenagem ao desembargador Belchior da Cunha Brochado:

O elemento lúdico (= de jogo) do Barroco é a marca predominante do texto. Cada par de versos tem em comum as terminações das palavras (ex.: 1ª palavra do 1º verso: douTO; 1ª palavra do 2ª verso: reTO), o que explica o estranho arranjo espacial do texto. A leitura deve ser feita como se se tratasse de versos comuns; assim sendo, os dois primeiros versos lêem-se:

Douto, prudente, nobre, humano, afável, Reto, ciente, benigno e aprazível.


Professor Miguel d’ Amorim

Gregório de Matos Epílogos Que falta nesta cidade?................Verdade Que mais por sua desonra?...........Honra Falta mais que se lhe ponha..........Vergonha. O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta, numa cidade, onde falta Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio?..........Negócio Quem causa tal perdição?.............Ambição E o maior desta loucura?...............Usura. Notável desventura de um povo néscio, e sandeu, que não sabe, que o perdeu Negócio, Ambição, Usura. Quais são os seus doces objetos?....Pretos Tem outros bens mais maciços?.....Mestiços Quais destes lhe são mais gratos?...Mulatos. Dou ao demo os insensatos, dou ao demo a gente asnal, que estima por cabedal Pretos, Mestiços, Mulatos. Quem faz os círios mesquinhos?...Meirinhos Quem faz as farinhas tardas?.........Guardas Quem as tem nos aposentos?.........Sargentos. Os círios lá vêm aos centos, e a terra fica esfaimando, porque os vão atravessando Meirinhos, Guardas, Sargentos.

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Professor Miguel d’ Amorim

E que justiça a resguarda?.............Bastarda É grátis distribuída?......................Vendida Que tem, que a todos assusta?.......Injusta. Valha-nos Deus, o que custa, o que El-Rei nos dá de graça, que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta. Que vai pela clerezia?..................Simonia E pelos membros da Igreja?..........Inveja Cuidei, que mais se lhe punha?.....Unha. Sazonada caramunha! enfim que na Santa Sé o que se pratica, é Simonia, Inveja, Unha. E nos frades há manqueiras?.........Freiras Em que ocupam os serões?............Sermões Não se ocupam em disputas?.........Putas. Com palavras dissolutas me concluís na verdade, que as lidas todas de um Frade são Freiras, Sermões, e Putas. O açúcar já se acabou?..................Baixou E o dinheiro se extinguiu?.............Subiu Logo já convalesceu?.....................Morreu. À Bahia aconteceu o que a um doente acontece, cai na cama, o mal lhe cresce, Baixou, Subiu, e Morreu. A Câmara não acode?...................Não pode Pois não tem todo o poder?...........Não quer É que o governo a convence?........Não vence. Que haverá que tal pense, que uma Câmara tão nobre por ver-se mísera, e pobre Não pode, não quer, não vence. * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *

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