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A anorexia é uma forma de a adolescente dizer não a uma série de outras coisas.A obsessão pelo corpo magro e o horror de engordar são apenas os sintomas mais visíveis’
GERAÇÃO
AFLITA
ROBERTO FERREIRA, MÉDICO
DOENÇA DA GLOBALIZAÇÃO,A ANOREXIA AFETA JOVENS QUE BUSCAM A APARÊNCIA PERFEITA
Mortas de fome DÉA JANUZZI, SANDRA KIEFER E DANIEL CAMARGOS A adolescente A., de 15 anos, já chegou com o coração quase parando de bater ao Hospital das Clínicas da UFMG, onde funciona há três anos o Núcleo de Investigação em Anorexia e Bulimia (Niab). Com uma palidez fantasmagórica, pele sobre osso, a jovem apresentava Índice de Massa Corporal (IMC) de 8,6, sendo que o mínimo exigido de pessoas normais é acima de 19 e o nível abaixo de 10 é considerado incompatível com a vida. Sem forças até para andar, A. já não estudava, não saía de casa, não fazia mais nada. Foi imediatamente encaminhada ao Centro de Terapia Intensiva (CTI), onde permaneceu internada por 20 dias, não para ganhar peso, mas apenas para conseguir sobreviver à anorexia. “Ela parecia uma morta-viva, literalmente um cadáver em pé”, afirma a médica Beatriz Espírito Santo, endocrinologista, com especialização em crianças e adolescentes e integrante do Niab. Depois do CTI e de um tratamento emocional intenso, A. venceu a anorexia, estuda e está namorando. Toda semana, três adolescentes vítimas de anorexia e bulimia dão entrada no Hospital das Clínicas, em graus diferentes de desnutrição e anemia, pedindo socorro. Em três anos, o Niab já atendeu cerca de 300 casos, em sua maioria meninas, menos de 1% de homens. As doenças relacionadas a um desejo mórbido de emagrecimento ainda não chegam a ser caracterizadas como uma epidemia do ponto de vista médico, mas preocupam cada vez mais. O alerta vermelho, entretanto, só foi disparado com a morte da modelo paulista Ana Carolina Reston, de 21, em novembro do ano passado. Só depois de morrer de fome – pesando 40 quilos e com 1,74m de altura – a jovem realizou a façanha de se tornar a garota da capa de várias revistas de circulação nacional. Em janeiro, a platéia da São Paulo Fashion Week assistiu atônita ao desfile da top model Carol Trentini, que vestia um macacão com estampa de esqueleto. Com o modelito antianorexia, a grife mineira Vide Bula foi a primeira a fazer uma manifestação oficial contra a exigência do peso-pluma das manequins no mundo fashion. Só no Brasil, seis jovens morreram no ano passado, vítimas de anorexia e bulimia. Preocupada com a saúde das colegas, Gisele Bündchen convocou a imprensa para anunciar que a mãe dela, Vânia Bündchen, nunca a deixou levantar da mesa sem acabar o prato. “Os pais são responsáveis, não a indústria da moda. Todos sabem que a norma na moda é a magreza. Há pessoas que nasceram com os genes certos para essa profissão”, afirmou a diva, 58 quilos, 1,79m. Filha de agricultores pobres, ela se dá ao luxo de comer normalmente e não resiste a um churrasco à moda dos pampas. O discurso de Gisele não parece ter surgido da boca para fora. No campo psicológico, é sabido que as anoréxicas têm conflitos com os pais e, em geral, são filhas de mulheres autoritárias e com mania de magreza. “A anorexia é uma forma de a adolescente dizer não a uma série de outras coisas. A obsessão pelo corpo magro e o horror de engordar são apenas os sintomas mais visíveis”, afirma o médico Roberto de Assis Ferreira, especialista em medicina do adolescente e um dos fundadores do núcleo. Nos 10 anos em que lida com essas pacientes, o médico nunca conheceu uma anoréxica feliz. “Por mais magras que estejam, elas estão sempre infelizes com o próprio corpo, com a família, com a vida”, compara. Nem sempre os familiares são capazes de notar os sinais fornecidos pelas meninas, em-
bora, desde cedo, elas demonstrem insatisfação constante com alguma parte do seu corpo, além de alterações emocionais como timidez, agressividade e melancolia. Na maioria das vezes, os pais só percebem a doença quando a perda de peso se torna exagerada ou quando a adolescente se tranca horas no banheiro, em rituais de vômito”, alerta a psiquiatra Gilda Paoliello, professora da residência médica do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg). Do outro lado da mesma balança, estão as vítimas da bulimia. Assim como as anoréxicas, as bulímicas são capazes de passar 15 dias tomando apenas sucos e sopas insípidas. A diferença é que basta uma briga com o namorado ou uma nota vermelha para a jovem ingerir quantidades imensas de alimentos, em geral doces e sorvetes. Depois, ela se sente culpada, iniciando os rituais de vômitos. Quando esses cessam, recorre a laxantes e diuréticos para limpar tudo. Apesar dos efeitos destrutivos, no corpo e na alma, as jovens brasileiras ainda preferem “miar” a engordar. Miar significa vomitar, no vocabulário dos mais de 15 blogs e sites criados na internet pelas garotas pró-Ana e próMia, apelidos carinhosos recebidos pela anorexia e bulimia entre as jovens brasileiras. “Ana é um estilo de vida, não uma doença” é a frase de entrada de um dos blogs, em que as garotas trocam confidências sobre o dia em que fraquejaram diante de uma caixa de bombons, ou dão dicas de como enganar as mães para que não percebam que não estão comendo. Em outro, a autora dá conselhos de como ter repulsa à comida: fazer um doce e colocar um monte de sal; mastigar e depois cuspir; cheirar lixo e passear em uma rua cheia de cocô de cachorro e pensar que “se a comida vai se tornar isso, para que comer?” O que explica a obsessão das jovens pela magreza no estilo Twiggy, a primeira modelo esquelética (cuja tradução do nome para o português é “graveto”) que, ainda nos anos 1960, introduziu o padrão de beleza no mundo da moda? Segundo Gilda, a anorexia é uma doença da globalização, que vende todo um arsenal para a fabricação do corpo perfeito, disseminando a fantasia de que assim a pessoa será mais amada ou poderosa.
MAURÍCIO LIMA/AFP
CARA DO HORROR Com sua necessidade extrema de ser reconhecidas e amadas, as anoréxicas acabam provocando repulsa por sua aparência cadavérica.No último grau da anorexia,a mulher deixa de menstruar,podendo se tornar estéril.Também os seios e formas femininas desaparecem e a doença causa queda de cabelos e dentes.“A perseguição excessiva da beleza no Brasil acaba revelando a verdadeira cara do horror”, alerta a psiquiatra Gilda Paoliello. No último estágio da doença, elas sentem tanta fraqueza que não conseguem andar.A pressão arterial das pacientes fica na casa dos 8 por 4 (o normal é 12 por 8) e seu ritmo cardíaco é de 36 batimentos por minuto,quando uma pessoa normal registra entre 60 e 80, em média. O mais impressionante é que, ao medir a temperatura das anoréxicas, o mercúrio do termômetro não sai do lugar.As jovens se tornam esqueletos vivos e,ainda assim,resistem ao tratamento.
Vide Bula fez desfile contra a magreza das modelos na São Paulo Fashion Week