Saudade Futebol Clube

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NESTA EDIÇÃO

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NUDEZ JULGADA

CIDADE CINZA Porto Alegre possui mobiliário urbano pouco convidativo

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Exposição do corpo feminino ainda enfrenta preconceitos

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SAUDADE F.C. A história do futebol gaúcho contada a partir de sete estádios sepultados ou em processo de demolição

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SAUDADE

FUTEBOL CLUBE A história do futebol gaúcho contada através de sete estádios sepultados ou com morte anunciada em Porto Alegre TEXTO, FOTOS E INFOGRÁFICO: DANIELE SOUZA

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mbora tenha dois dos maiores e mais modernos estádios de futebol do país, Porto Alegre é um cemitério de praças esportivas que já receberam grandes públicos, profissionais célebres e até mesmo uma Copa do Mundo. Quando o Olímpico for implodido pela construtora OAS para dar lugar a mais um condomínio residencial, a capital gaúcha estará registrando o desaparecimento do seu sétimo estádio de futebol profissional em 60 anos. Túmulos, torres de apartamentos, uma escola, um supermercado e um parque ocupam hoje espaços onde a bola rolou, onde competições importantes foram disputadas, onde várias gerações de atletas se formaram. “Não tem jeito, tem que abrir espaço para o progresso”, conforma-se o ex-ponta do Internacional Luizinho, que atuou

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em todos os estádios desaparecidos ou condenados. Luiz José Marques, 88 anos, começou sua carreira no Estádio do Passo D’Areia, do São José, na zona norte da Capital, um dos poucos a resistir até hoje, mas com piso artificial, muito diferente da grama natural do primeiro campo. De lá, ele se transferiu para o time do Força e Luz, que fechou em 1972 e deixou desocupado o Estádio da Timbaúva, localizado no bairro Santa Cecília. Dois atletas inesquecíveis formaram-se nesse local: Dorval, que atuou no Santos ao lado de Pelé, e Airton Ferreira da Silva, o Pavilhão, transferido para o Grêmio em troca de um lance de arquibancadas de madeira. A Timbaúva é uma sombra do passado. Ainda existem campos de futebol sete no local, apenas para a diversão de atletas amadores. O grupo Zaffari comprou a área e aguarda a oportunidade para construir mais uma de suas lojas.

Entre os anos de 1952 e 1960, Luizinho jogou e consolidou sua carreira no Internacional. Na época, o time ocupava o Eucaliptos, onde já começaram a ser erguidas as primeiras torres do conjunto residencial planejado pela Construtora Melnik Even, que adquiriu a área pelo valor anunciado de R$ 28 milhões, em agosto de 2010. O dinheiro permitiu ao time encaminhar a modernização do Beira-Rio. O Estádio Ildo Meneghetti, como era chamado os Eucaliptos, deixa mais do que saudade. Deixa, também, a lembrança de ter recebido jogos da Copa do Mundo de 1950 e servido de escola para jogadores de Seleção Brasileira, como Paulo Roberto Falcão, Batista e outros que conquistaram títulos com o Internacional. “Comecei na escolinha do Inter e foi no campo suplementar dos Eucaliptos que ouvi do treinador da peneira esta frase: o Alemão tá plenamente aprovado”, lembra Falcão. Em 2009, ele


Onde hoje está localizado o cemitério João XXIII, muita bola rolou nos jogos de futebol do Cruzeiro

A torcida ficava aqui, fazendo pressão. Milton Kuelle, ex-jogador do Grêmio

utilizou as ruínas do velho estádio como palco para o lançamento do seu livro O time que nunca perdeu, referente ao Inter campeão brasileiro de 1979. Sobre a mudança dos Eucaliptos para o Beira-Rio, Luizinho se posiciona: “Não fiquei triste, pois sabia que o Inter estava indo para um lugar melhor”. Luizinho também integrou a equipe do Cruzeiro, que tinha como casa o Estádio da Montanha. O clube vendeu o estádio em 1970 para a construção do Cemitério João XXIII, localizado próximo ao Estádio Olímpico, no bairro Medianeira. Por lá, passaram grandes nomes do futebol gaúcho, especialmente nos clássicos com a dupla Gre-Nal, denominados de Gre-Cruz e Inter-Cruz. Um deles é Milton Kuelle, ex-meia gremista. Em visita ao local, explicou para os funcionários do próprio cemitério qual era o sentido do campo, posicionando-se em um pedaço de arquibancada que

ainda está em pé. “A torcida ficava aqui, fazendo pressão”, lembra. Era a parte de trás de uma das goleiras e da bandeirinha do escanteio, onde foram construídos seis andares de túmulos. As arquibancadas ainda estão lá e possibilitam uma vista para os jazigos. O ineditismo de transformar um estádio em cemitério inspirou o escritor Moacyr Scliar, torcedor do Cruzeiro, a produzir uma ficção: A colina dos suspiros. O livro tem como pano de fundo a história do time, mas os personagens, a cidade, tudo é diferente. Inclusive o apelido do estádio, que, na verdade, era Colina Melancólica. Milton Kuelle fez parte da escalação do Grêmio de 1953 a 1965 e jogou nos sete estádios desativados. Começou no Fortim da Baixada, migrou com o Grêmio para o Olímpico e ainda sonha, aos 80 anos, em participar de um jogo na Arena, para se tornar o único jogador a atuar nos três esJULHO 2014 EXP 29


Milton Kuelle jogou pelo Grêmio em todos os sete estádios tádios do clube do coração. Nas lembranças, o Formiguinha, um meia de muita movimentação e fôlego, ainda corre por todos os gramados do passado. Enfrentou o Força e Luz na Timbaúva, o Renner no Tiradentes, o Inter nos Eucaliptos, o Nacional na Chácara das Camélias e o Cruzeiro na Montanha. E recebeu adversários na Baixada e no Olímpico. A Baixada, ao lado do atual Parque Moinhos de Vento, é uma lembrança amarga para Milton: “Não foi um bom momento para o Grêmio, perdemos muito”, conta, ao lado da placa alusiva ao antigo campo, quase uma lápide encravada nas cercanias do Parcão. O estádio funcionou até 1954, quando o clube inaugurou o Olímpico, na Azenha, onde Milton teve muitas alegrias: “Aqui passei a maior e melhor parte da 30 EXP JULHO 2014

minha vida”. Ele ia para lá de bonde todos os dias treinar, almoçava e jantava nos restaurante do clube e ia para casa somente nos finais de semana. Foi no Monumental que Milton conheceu sua esposa, que era filha de um conselheiro. Com o dinheiro que ganhava jogando futebol, ele pagou sua faculdade e hoje é dentista e trabalha na Fase (Fundação de Atendimento Socioeducativo). No dia de sua formatura, estava no estádio. Ele atribui a maior parte de suas conquistas, incluindo as pessoais, ao Grêmio: “Eu consegui me casar, ter uma família e uma profissão graças a esse clube que meu deu todas as condições para chegar onde eu cheguei”. Para Milton, o Olímpico é um templo do futebol e não deveria ser destruído. “Não quero ver a implosão nem pela televisão”,

Aqui passei a maior e melhor parte da minha vida. Milton Kuelle, ex-jogador do Grêmio


lamenta emocionado ao pensar que o estádio está com os dias contados. “A minha vida inteira eu passei aqui. As minhas amarguras e as minhas infelicidades eu passei aqui. E as minhas alegrias e os meus triunfos eu passei aqui”, afirma. Atual conselheiro do Grêmio, Milton esteve apenas uma vez na Arena, na inauguração. “Gostaria de jogar lá, mas não me conformo em participar de apenas cinco minutos, como chegaram a me propor”, conta. A melancolia dos torcedores mais antigos passa também pela rua José de Alencar, que abriga um supermercado nas proximidades do Olímpico. Ali ficava a Chácara das Camélias, que foi ocupada por dois dos primeiros times da Capital: o Fuss-Ball Porto Alegre, sucedido depois pelo Nacional. Com o fim desses clubes, o espaço chegou a ser utilizado como campo de treinamento pelas equipes de base do Internacional. No local, treinou o menino Paulo Roberto Falcão. “Naquele supermercado, eu marquei um dos gols mais estranhos da minha carreira, passando pela bola e puxando-a de calcanhar”, recorda o ex-atleta do Inter. Falcão conta que aprendeu muito com o treinador Ênio Andrade, que também se destacou como craque em outra época e em outro templo do esporte: o Estádio Tiradentes, do extinto Renner, campeão gaúcho de 1954. O estádio, conhecido como Waterloo, porque ali caíam os grandes, ficava na Avenida Sertório, quase esquina com Farrapos, onde hoje se localiza uma escola do Senai. Todos esses estádios fizeram parte do cotidiano e da paixão dos torcedores gaúchos, receberam jogos importantes e serviram de palco para craques de Seleção, mas acabaram atropelados pela expansão urbana da cidade e também pela necessidade de modernização dos próprios clubes. Considerando-se os maiores representantes do futebol gaúcho, o Grêmio abandonou a Baixada em 1954 e está deixando o Olímpico este ano, para se instalar definitivamente na Arena. O Internacional saiu dos Eucaliptos em 1969 e agora passa a ocupar um novo Beira-Rio, reformulado para a segunda Copa brasileira. Mas a Copa da Saudade continua sendo jogada na imaginação dos porto-alegrenses mais antigos, toda vez que um deles passa pelos locais que já receberam multidões para vibrar com dribles e gols. Eles não veem apenas um supermercado, um conjunto de edifícios ou mesmo um cemitério. Veem os campos santos por onde o futebol passou e emocionou.

Monumento marca local do antigo Fortim da Baixada na entrada do Parcão


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