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Estranho no espelho

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Argila

Argila

Luana Rodrigues Pires

Tem um estranho no espelho. Você não sabe quando ele surgiu ou mesmo quando você se deu conta de que até mesmo estava ali, de frente para você do outro lado do seu espelho encarando de volta com petições e desconfortos. Você apenas sabe que existe um estranho em seu espelho que por algum motivo desconhecido parece... Errado. É difícil e complicado descrever, você o encara de cima a baixo, procurando o que te incomoda tanto na imagem. Talvez seja a forma, talvez seja o rosto, talvez sejam os olhos, talvez seja a boca, talvez não seja nada ou talvez seja tudo, você não consegue saber, não consegue achar, você apenas sabe que tem algo errado e isso te incomoda, tanto quanto incomoda o estranho no espelho. Você quer consertar, quer tornar o errado certo, fazer o estranho no espelho um conhecido, talvez um amigo? Um parceiro. O olhar que é transmitido pelo estranho lhe arrepia a pele e torce suas entranhas e, vagamente, você se pergunta se esse olhar não é um reflexo de seu próprio, assim como todos os movimentos do estranho parecem iguais aos seus. Sua jornada começa frustrante, sem saber quais passos são os certos e quais são os errados. Tentativa e erro, tropeço e levantar, destruir e recomeçar. Você veste e transveste o estranho cuidadosamente com os recursos que tem em mãos. Talvez uma blusa mais folgada, uma calça ou um vestido, talvez algo falte no cabelo ou talvez seja a maquiagem sobre o rosto, mas, de fato, nada parece realmente certo, sempre algo falta. O incômodo per-

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sistente rastejando por sob a pele em uma coceira difícil de alcançar, formigando e arranhando enquanto a frustração cresce e cresce dentro de seu peito até o ponto que uma bolha se forma em sua garganta, guardando o grito que não quer escapar, não pode escapar. O estranho sempre te encara de volta, olhos conhecedores, compreensivos, mas frustrantemente quietos. Como se ele também não soubesse a resposta, mas se frustrasse tanto quanto você, pois não está certo, não se sente certo, como se a pele não fosse sua, o corpo não fosse seu, mas não sabe o que é então não tem como consertar. A coceira apenas permanece a crescer profundamente debaixo de sua carne, de suas veias, de seu sangue, rastejando como pequenos insetos escorregadios, formiguinhas incomodas que de alguma forma conseguiram passar pela epiderme e se aprofundaram nos vasos sanguíneos, caminhando e caminhando para cima e para baixo até você finalmente sentir e nunca mais conseguir esquecer o sapatear de suas patinhas zanzando de um lado para o outro. Ao ponto onde você deseja cravar as unhas sobre a pele e coçar, cavar e cavar até encontrar as formiguinhas e arrancá-las de dentro de você, tirar a carne por onde elas andaram a desfiar os vasos que exploraram, a máscara que você não consegue reconhecer. Tem dias, dias tranquilos e calmos em que você pode se dedicar completamente ao estranho no espelho, que o repara com um olhar mais atento, mais crítico, mais analítico. Você pensa, talvez seja a altura, alto demais, baixo demais; você pensa nos ombros, muito largos ou não largos o suficiente; você pensa no rosto, muito fino ou muito grosso, não o formato certo; você pensa, talvez, apenas talvez, seja o gênero. Você olha para os seios, para o quadril, para os braços, observa a curvatura da cintura, das cochas e dos ombros, observa o cabelo, os lábios, os olhos. Você decide que não gosta que a forma esteja errada, a aparência está errada que o gênero está errado. Mas saber disso não torna o trabalho mais fácil.

O estranho no espelho enrubesce e se contorce enquanto você o desveste tão forçadamente, arrancando-lhe a roupa, a pele e a carne para chegar até seu ser, seu núcleo, o que o faz o que é. O que parece errado. Você não sabe se gosta da resposta, mas não tem como mais voltar atrás, porque a máscara foi retirada e agora você tem que pôr as peças de volta no lugar da maneira correta ou então as formiguinhas vão voltar e vão caminhar e caminhar até te deixar louco, você apenas precisa fazer isso certo. Aos poucos, você encontra o que gosta e o que desgosta, vê o estranho no espelho lentamente se transformando, se formando para algo confortável, compreensível, amigável, algo certo. Você ainda consegue vê-lo se contorcer às vezes, bochechas escuras polvilhadas de vermelho profundo enquanto te encara de volta, timidez em suas feições, mas uma satisfação proibida escondida por trás de seus olhos. Você sabe que a imagem lhe agrada, mas o estranho gosta de se esconder, mesmo quando você passou tanto tempo tentando descobri-lo. Você o entende, e às vezes você odeia que consiga entendê-lo. Odeia que saiba o quão difícil é para ele aparecer, para mostrar o que é, o que se sente confortável, o que goste e o que não goste. E se não gostarem? Às vezes, você pensa, você o odeia. Odeia o estranho no espelho, odeia como apenas sua existência fez seu mundo todo mudar. Você odeia que ele tenha lhe apresentado os erros, as falhas, porque, até aquele momento, não eram erros ou falhas. Não havia problemas, não é? Eles diziam que não tinha, você era meio estranho, como o estranho no espelho, mas estava tudo bem. Tudo estava bem. Você poderia ter vivido sem saber, poderia ter crescido sem saber, não precisava saber. Poderia ter suportado as formiguinhas, suportado o desconforto, poderia ter suportado. Era ruim? Ruim que quisesse agradar o estranho no espelho? Era errado querer vê-lo sorrir? Se sentir confortável em sua própria pele pela primeira vez? Era errado querer se livrar das formiguinhas? Do desconforto? Do que estava errado?

Por que sentir vergonha? Às vezes parece que os olhos do estranho no espelho te perguntam. Por que se esconder? Do que tem medo? Do que está fugindo? Mas o olhar no estranho do espelho, apesar de estranho, ainda é preferível aos olhares que lhe seguem e lhe julgam. São preferíveis do que a rejeição, a dor, o sofrimento, a exclusão, a negação, a categoria. Às vezes você olha para aqueles ao seu redor, faz perguntas e recebe respostas e não pode deixar de se maravilhar como nenhum deles parece ter dúvidas sobre si mesmas. Isso te frustra também. É apenas você? Apenas você tem um estranho em seu espelho com enormes olhos questionadores e cheios de pedidos impossíveis de aceitar? É apenas você que duvida? Que não tem certeza? Você está sozinho? Tem dias, os piores dias, turbulentos e cheios de dúvidas e lamúrias e formiguinhas, que a bolha em sua garganta cresce o suficiente par ser difícil respirar, o suficiente para te fazer chorar e implorar aos céus para que pare. Faça-te normal, faça as formiguinhas sumirem, faça você ser igual a todos os outros, porque o estranho no espelho às vezes é muito feminino e às vezes é muito masculino e você odeia, odeio tudo isso, odeio como não parece certo, como dói, como frustra. Por que te fizeram assim? Por que te fizeram errado? Todos são certos, por que você é o errado? Você não quer ser errado e você odeia o estranho no espelho por mostrar o quão defeituoso você é, o quão feio e horrível você é. Você deseja nunca ter sabido a verdade, deseja nunca ter cavado por entre o sangue e a carne e a pele para encontrar a terrível verdade. A mentira é doce como mel e a ignorância é a felicidade incompreendida do paraíso. Se você nunca tivesse descoberto então você seria certo, não é? Talvez você apenas tenha que querer ser certo, não tem que mudar nada você só precisa aceitar o que você é e esquecer o que você não é, não pode ser. É o que todos dizem, é o que todos parecem dizer. Se você nasceu assim é porque você deve ser assim, por que mudar? Por que ser outra coisa? É simples, por que complicar?

Mas o estranho no espelho parece não gostar do simples. Quando ele volta com o que não gosta, com a aparência que não lhe encaixa, com a forma que não é sua, as formiguinhas se tornam mais persistentes, mais vorazes, subindo e descendo, explorando onde não se pode explorar, fazendo coçar onde não consegue coçar. O estranho no espelho parece desesperado e você odeia que te olhe assim, como se você fosse o culpado por sua timidez, sua covardia, sua incapacidade de se encaixar. “Eu te odeio!” você grita para o estranho no espelho, lágrimas banhando seus olhos enquanto a unha cava a carne como se quisesse arrancá-la de uma vez. Uma pele que não é sua, um estranho em seu próprio corpo. “Eu te odeio! Te odeio! Te odeio por ser assim! Te odeio por me mostrar que estava errado! Te odeio por me mostrar a verdade! Te odeio por me fazer diferente! Eu apenas quero ser normal, como todo mundo! Por que você tinha que me mostrar que tudo estava errado quando deveria ser certo?!” E, como sempre, o estranho não lhe responde. Ele encara rosto corado e agitado, olhos queimando em julgamento, como se também te odiasse, respiração ofegante igual a sua, talvez pela frustração de te ver tão agitado, tão inconformado com o que é. Que culpa tem afinal? É apenas um estranho no espelho. Um estranho que procura se encontrar, não pediu que você manchasse suas mãos com seu sangue ao cavar em sua carne e pele, não pediu que você encontrasse o que não gostava, apenas queria se sentir confortável em sua própria pele, livre das máscaras e coberturas que lhe eram impostas. Alguns dias, os não bons, mas também não ruins, apenas dias, você tenta aplacar o sentimento, encontrar um meio termo, uma forma de fazer o estranho no espelho parecer certo sem ser certo. Você rapidamente percebe que é mais frustrante do que tentar ser o que não é, menos doloroso, mas mais frustrante. Porque é próximo, mas não lá, ainda não. Não é feminino o suficiente ou masculino o suficiente. Fe-

minino demais ou masculino demais. Às vezes não é balanceado o suficiente, a neutralidade lhe escapa não querendo nem um nem outro. Outras a mistura não parece adequada, não é o balanço perfeito o exato intermédio das duas faces. Em noites muito escuras, no silêncio de seu quarto, sem ser capaz de encarar o estranho em seu espelho, você se pergunta se existem outros iguais a você. Você chora e lamenta se perguntando se está sozinho, ansiando por alguém que não apenas possa compreendê-lo, mas ajudá-lo nessa caminhada árdua que é para não apenas aceitar o estranho em seu espelho, mas também encontrar a imagem certa que lhe cabe. Uma forma de não se sentir mais um estranho dentro de sua própria pele, um intruso em uma face que não é sua, brincando no teatro de outra pessoa em um papel que não era o que você queria. “É tão errado querer ser o que não nasci sendo?”, os olhos do estranho parecem lamentar e você não pode deixar de se questionar o mesmo. Tão errado é? Tal pecado de ansiar se sentir confortável em sua própria vida, nas rédeas do que lhe foi dado. É muito ganancioso de sua parte querer mais? É egoísta querer mudar? Querer se encaixar sem ser rejeitado? Ser o que sente que deveria ser? Tempo, não demora a descobrir, é a resposta mais simples para a maior parte dos problemas que se resumem a indecisão. Aquele que procura o caminho que anseia a encontrar, com o tempo, encontrará a estrada que vai guiá-lo para onde deseja ir, com pessoas que também possuem um estranho no espelho, que também passaram pela mesma luta e sofrimento que você passa todos os dias tentando decidir e distinguir o certo e o errado, separando opiniões e sugestões e visões que lhes foram apresentadas até finalmente encontrar a sua própria. Elas vão sorrir e abraçar o que você desenterrou debaixo de sua carne. Vão limpar o sangue de suas mãos com palavras empáticas e animações ansiosas, vendo você como um deles. Vão ensinar a ter confiança, a caminhar em suas próprias pernas e

aceitar a si mesmo antes de olhar para o outro e se perguntar o que pensa. Eles vão te mostrar o estranho no espelho e apresentá-lo como um amigo e não um estranho que deve ser derrotado, que deve ser odiado. “Você pode ser o que quiser.” Eles dizem, às vezes sem nem mesmo terem seus próprios estranhos no espelho, sem terem passado por lutas parecidas, mas compreensivos da mesma forma. Amáveis, gentis. A aceitação que você não conseguia encontrar em si mesmo agora é refletida em olhos alheios que lentamente te convencem que você pode ter isso para si mesmo também. Libertar das amarras da atuação e começar a viver finalmente. “Um passo de cada vez. Apenas um passo de cada vez, até encontrar quem você realmente é.” Ainda existem dias que você vai encarar o estranho em seu espelho e odiá-lo. Ver o que era, o que foi errado e você quer apagar. Momentos que as formiguinhas debaixo de sua pele se tornam insuportavelmente sensíveis e você manchará suas mãos de sangue novamente, cavando e cavando como uma punição por ter nascido errado, por ser errado, por ser diferente. Dias que os olhos de julgamento são maiores e mais numerosos que os olhos de compreensão e acolhimento, que as palavras são duras e frias e cortam sua carne e te fazem querer encolher e esconder debaixo de sua cama, debaixo das cobertas como fazia quando era ainda uma criança e tudo era mais simples e mais fácil de entender. Mas esses são os dias ruins. Dias sofridos, mas lentamente escassos, raros. Nos dias normais, você sorri, encarando o estranho no espelho que parece mais feliz do que nunca, finalmente sentindo-se livre, longe das amarras do teatro de sua vida para caminhar pelas ruas com as roupas certas, o cabelo certo, a forma certa, o olhar certo, a vida certa. Existe um estranho no seu espelho e você o acolhe como um velho amigo.

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