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A fenda
Luana Rodrigues Pires
É fácil saber como a história acaba, mas é sempre complicado entender como ela começa e o que aconteceu para chegar até onde chegou. Como o nascimento de um amanhã transita tão rapidamente para a conclusão da chegada do anoitecer. Às vezes o começo é tão parecido com o fim que é complicado distinguir qual é qual. Assim se dá à luz: Leves sons dos trabalhadores ao redor, formando uma cacofonia rítmica ao fundo. Luzes artificiais brilhando suaves por toda a cidade intocada pela luz natural, espalhando as sombras em uma imitação simples, mas satisfatória, do alvorecer, refletindo na neve branca e suave que se contrastava com o concreto escuro e rígido. O vento frio permanente e constante durante todos os dias devido a própria escuridão proeminente e falta do calor acolhedor dos raios solares, espalhava-se preguiçosamente por entre os prédios altos em sopros preguiçosos, quase como se ainda não totalmente despertos durante esse começo da manhã. No centro da praça principal da cidade enormes olhos verdes brilhantes iguais ao amanhecer encaravam a figura indiferente e imaculada de uma estátua que se erguia imponente no centro do lugar. Uma plataforma circular de concreto cinza elevando-a ligeiramente do chão da praça recoberto de neve, a imagem de pé de um homem com feições angelicais, mas severas, de olhos brancos e perpetuamente direcionados para o horizonte, se mantinha por gerações e mais gerações. Um símbolo. Qual tipo de símbolo?
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Muitos diriam do progresso, do desenvolvimento, do futuro, com seus olhos sempre à frente, rosto altivo e com feições que marcavam alguém sábio, conhecedor dos mais profundos segredos do universo. Uma de suas mãos erguidas em oferta do conhecimento, livro aberto em páginas que prometem todos os segredos que seus olhos e feições resguardam, a outra está em suas costas onde guarda uma pena, o símbolo da liberdade e sabedoria. Não existem, no entanto, nomes que identifiquem sua imagem. Fundador, é como o chamam, a criança que o observa sabe, ela o reconhece das histórias contadas pelos adultos. Histórias grandiosas cheias de admiração e finalidade. Facilmente se recordando de como seus rostos se acendem durante cada relato, ansiosos para responder todas as perguntas, espalhar a palavra, mesmo que não saibam o nome eles sempre sentem orgulho no passado, no símbolo. Mas ainda assim, mesmo com todas as histórias e contos, todas as ilustrações e formas... — Eu não entendo. — o rosto juvenil se contorce em confusão enquanto observa a imagem à sua frente com quase, o que pode se dizer, desconfiança. O que é tão importante em uma única pessoa? Não é como se o que ele fez foi tão importante assim. Por que cantar tantas vitórias em um homem morto? Alguém sem nome? Não existe nada demais em sua figura, magro e simples. Parece idiota com suas vestes pomposas e rosto exibido. Não era culpa desse homem todos tinham os problemas que tinham agora? Por que glorificar alguém assim? — Por que essa cara, pequena? — com um sobressalto a criança rapidamente virou para encontrar a figura alta e zombeteira de um rapaz, definitivamente mais velho, com belos olhos amarelados. Ele não parecia perturbado pelo sobressalto, rindo baixinho ao ver a bagunça que a criança aprontou antes de se abaixar e ajudá-la a se ajeitar, muito divertido e satisfeito com o amuar que recebeu em retorno. — Eu disse antes de virmos aqui que temos que manter a vigilância constante, irmãzinha. Onde sua cabeça foi parar dessa vez?
A criança, emburrada e resmungando, deixando que as mãos grandes e calorosas de seu irmão ajeitassem suas roupas agora desalinhadas, vagamente reparou como não existiam diferenças em suas vestes, além do próprio tamanho. Roupas escuras, pesadas, casacos de luvas, calças, botas, cachecol e boné, sempre o mesmo para qualquer lugar onde olhassem. Tão tediosamente iguais. Ela não tinha a mínima ideia de onde seu irmão as tinha arranjado, bem sabendo que não tinham dinheiro para tais luxos, mas ainda necessários quando vagavam pela cidade. Afinal, eles tinham que se misturar para fazer seu trabalho, ela entendia isso, e vestir-se como o regulamento exigia recobrindo todas as diferenças que marcavam seu corpo era o mais importante de tudo. — Eu estava atenta! Você que é estúpido e não faz barulho quando anda! Ninguém pode te ouvir! — apesar da reclamação e irritação clara em sua voz infantil, indignada por ter sido repreendida, o leve tom de admiração pelas habilidades de seu irmão, o que sempre tinha quando falava sobre ele ou com ele, ainda permanecia presente, fazendo-o rir de bom humor. Com uma última encarada, seus olhos brevemente pousaram sobra a estátua mais uma vez antes de seguir caminho com seu irmão, passos apressados e difíceis a atravessar a neve acumulada na praça para adentrar em um dos muitos becos emaranhados nessa floresta de concreto. Tinham um trabalho a fazer. — Eu apenas não entendo por que eles são tão importantes. Não é por culpa deles que todos nos odeiam? Existia uma lenda, uma que todos conheciam e permaneceriam sempre a conhecer, que, há muito tempo, Norte e Sul viviam juntos na esperança de um glorioso futuro, usufruindo dos frutos da união e companheirismo. A paz que foi esquecida. Mas, em determinado momento de sua caminhada, alguns começaram a temer o caminho que estavam trilhando, questionando se realmente deveriam ir tão longe. Onde estaria o limite? Quando deveriam parar? E se fossem longe demais? O medo da consequência os fez
acreditar que a busca pelo futuro, pela glória, era desnecessária, porque já a tinham. Entretanto, outros, aqueles que buscavam sempre o melhor e o que não poderiam alcançar, permaneciam insistentes que poderiam ser mais, ir mais longe, conquistar mais, abrir caminhos que nunca foram abertos. Duas visões tão dicotômicas eram destinadas a se colidir e, com o tempo, as discussões entre opiniões tão divergentes cresceram e crescem e cresceram até o ponto em que o que antes era uma pacífica cidade em espera para o amanhã lentamente se tornou a formula certa para uma poderosa implosão. Foi quando os Fundadores apareceram. Como um raio de luz e esperança, uma solução para seus problemas, dois irmãos, gêmeos, dotados de carisma e promessas, reuniram aqueles que discordavam e os dividiram em dois distintos grupos que se acomodaram em dois polos diferentes, afastados e isolados, para que assim pudessem crescer e viver como bem quisessem sem exigir do outro que caminhasse pelo mesmo caminho. Dizem que depois da grande divisão uma fenda se partiu entre ambos os lados, fisicamente separando aqueles que não poderiam conviver e se aceitar como eram. Cada qual partiu para criar o futuro que achava ser ideal e assim tanto a cidade do Norte como a cidade do Sul foram criadas, guiadas por vários anos por aqueles que as acolheram e as abraçaram com seu conhecimento e sabedoria. Como o sol e a lua, o inverno e o verão, a vida se seguiu para que ambos os polos jamais se tocassem novamente. — Eles fizeram o que acharam que era necessário na época, Cali. — o irmão resmungou, alto o suficiente para ela escutar, mas não o suficiente para serem percebidos pelo soldado que passava, com suas botas pesadas e engenhocas estranhas que guinchavam e chiavam com cada movimento de seu corpo trazendo um som bem característico que para a maioria dos habitantes da cidade era associado com conforto, mas, para eles, era nada mais do que o som doloroso da caminhada de um carrasco.
Eles tinham um trabalho que precisava ser feito, o peso do pacote que traziam em sua mochila sendo mais pesado que suas próprias vidas carregadas em seus ombros ainda pequenos e jovens. A triste realidade de saber que precisavam do dinheiro daquele trabalho para a próxima comida, para as roupas que os protegeriam do clima imprevisível. A mesma realidade que os gritava, a cada passo, que o que faziam não era legal dentro dessa floresta de concreto e qualquer movimento errado os guiaria para o fim inevitável. Se fossem vistos ou encontrados, se descobrissem o que eram e o que faziam... Apenas pensar na possibilidade os enchia de ansiedade e medo, coração batendo acelerado enquanto se embrenhavam cada vez mais fundos pelas vielas e becos entre os prédios altos que tornavam todo o caminho ainda mais sombrio, mais escuro, principalmente com a lenta, mas constante, perda da iluminação artificial das lâmpadas que antes eram tão constantes. — Câmera. — a chamada suave, mas firme e demandante de seu irmão rapidamente a pôs em movimento, seus dedos cobertos pelas luvas grossas se moveram apressados, contorcendo-se sem ritmo ou propósito, uma energia esverdeada se formando ao redor deles, trepidando o ar, como eletricidade correndo ao redor de sua mão e unicamente de sua mão. Quase imediatamente a mesma energia envolveu as câmeras ao redor, mudando-as de posição para cobrir áreas as quais não passariam, longe da visão de seu caminho que agora se apressavam para caminhar, sempre atentos com qualquer passante que pudesse estar perdidos por entre as vielas normalmente desertas. Aquelas que não poderiam ser mudadas tiveram seus vídeos corrompidos ou mudados, tudo com o estalar ou balançar de um dedo, nenhum vestígio deixado para trás. — Se foi a melhor decisão no momento... — Cali, a pequena criança que acompanha seu irmão no trabalho de transportar a preciosa carga de um ponto a outro, sem nem mesmo saber seu conteúdo ou porque era tão importante, não precisando saber,
se arriscou a perguntar, mesmo que soubesse que, ainda que não houvesse alguém nas proximidades, seria arriscado expor sua posição. — Por que todos eles nos odeiam? Magos. Eles eram magos e, como tal, não eram bem vistos. Não no Norte e muito menos no Sul. — Opiniões... Opiniões mudam, Cali. Em algum momento eles... Apenas decidiram que não gostavam do que fazíamos, do que somos. Não é culpa dos Fundadores, as pessoas fazem suas próprias escolhas e nos odiar foi uma delas. — Não é justo. Uma parte da lenda que foi esquecida por aqueles que não mais se importam com o resto da história, mas permaneceu na memória daqueles afetados por elas, é que depois de dividir a cidade em duas os Fundadores compartilharam seu conhecimento com aqueles que queriam aprender. Habilidades que deveriam ser impossíveis e ajudariam a reconstruir e remodelar a civilização como queriam. Aqueles capazes de aprender tais habilidades e prosperar foram conhecidos como Magos. Magos eram pessoas, qualquer pessoa, capaz de manipular uma energia exótica, como chamavam, que por sua vez conseguia dobrar os limites da realidade, tornando o impossível possível. Do mais simples, como criar água e fogo, até o mais complicado, como a manipulação do espaço e do tempo. Alguns, aqueles que conheciam sobre essa parte da lenda, acreditavam que os Fundadores foram os primeiros Magos conhecidos dentro de suas terras e aqueles que surgiram em seguida eram o subproduto de sua vontade, seus filhos de tudo, menos sangue. Mas assim como o progresso, apesar de habilidades tão ansiadas e desejadas, seu poder e sua diferença, as mudanças que o simples ato de ser capaz de usar magia trazia, acabou acarretando no medo ou na cobiça daqueles que não eram capazes de usar. O conhecimento para produzir novos Magos foi perdido com o passar dos anos depois da morte do criador, mas a magia nunca realmente sumiu. Pessoas mais sensitivas lentamente co-
meçaram a surgir entre aqueles que nasciam comuns, natos para o que passou a ser uma sabedoria perdida, diferentes daqueles que agora se fixavam em ambos os hemisférios. Abominações, alguns chamariam. Animais, outros sussurravam. Mas não humanos, nunca humanos. Humanos não deveriam ser capazes de fazer o que eles fazem, ter a aparência que tinham. Agora eles não tinham lugar, uma minoria que permanecia a existir, ignorada por aqueles que outrora chamou de irmão. — A vida normalmente não é. Humanos normalmente não são. Nós apenas temos que aprender a viver com isso. Foi fácil descobrir quando chegaram em seu ponto de entrega. Não apenas devido a própria aparência de seus arredores que se divergia do resto da cidade. Apesar dos mesmos prédios de concreto escuro que se erguiam até onde a vista poderia alcançar, passando por sobre as grossas nuvens que encobriam os céus durante todos os dias e noites, mergulhando a cidade na escuridão constante, seus formatos eram diferentes dos que se encontravam nas áreas mais nobres e centrais da cidade do Norte. Brutos, mal cuidados, printados e quase derrubados, alguns se encontravam abandonados, outros tinham avisos que alertavam sobre possível desmoronamento. Prédios velhos e esquecidos como seus habitantes. Mas não eram, definitivamente, o maior indicador de sua chegada. Eles sabiam que estavam no lugar certo porque na frente de um dos prédios um homem se encontrava parado, de pé em frente a um dos vários prédios daquele bairro tão pobre. Sua aparência foi o que chamou mais a atenção, exatamente porque não se misturava com o ambiente a seu redor, destacando-se como uma ferida infeccionada. Primeiro porque não vestia as roupas normatizadas pela cidade, ainda que estivesse bem agasalhado para se proteger do frio. Tecido colorido se destacava contra a paisagem branca e preta ao seu redor, chamativas e desalinhadas, totalmente contra as normas de vestimenta de um cidadão comum, mas ele não parecia se importar, com sua postura relaxada e folgada esperando-os se aproximar.
Não era surpresa também que não se importasse vendo suas características tão descobertas. Esse era o segundo ponto que o destacava e provavelmente o mais importante. Ele era um Mago e não tinha vergonha de mostrar que era. Magos eram fáceis de distinguir dos demais exatamente porque não compartilhavam a pele, cabelos e olhos claros que a maioria dos habitantes da cidade do Norte compartilhavam, mas também não tinham as características escuras que todas as pessoas que viviam nas terras ensolaradas do Sul possuíam. Não, Magos se destacavam exatamente por não terem nenhuma característica em particular que os marcava como tal. Eles poderiam ser tudo e qualquer coisa, coloridos e diferentes. Diversos, era uma maneira de colocar. O homem a frente, o qual se aproximavam com cautela, orgulhosamente mostrava seus cabelos vermelhos brilhantes assim como sua pele morena coberta por pequenas e delicadas manchas por sobre seu rosto que se misturavam com grotescas cicatrizes de batalha. Seu sorriso era enorme, insano, com caninos pontudos e afiados que deixavam seu aspecto mais animalístico do que Cali jamais viu, mesmo nos animais que muitas vezes se aventuravam ao redor de sua casa uma vez ou outra. Tinha olhos azuis que queimavam e brilhavam no escuro do lugar, corpo largo e alto, de braços e peitos grossos de alguém que praticava constantemente. O que ainda estava para ser discutido. Seus traços eram humanos, Cali poderia dizer, mas suas cores não eram. Suas cores eram Magos, ainda que sua postura orgulhosa não combinasse com nenhum Mago que ela jamais tivesse conhecido alguma vez, sem temor de ser visto ou descoberto mesmo que as consequências de tais foram o fruto dos mais profundos pesadelos da garotinha. — A carga? — a voz grossa e profunda do homem perguntou, quebrando o silêncio que se formou quando se aproximaram o suficiente para fazer contato. — O pagamento? — seu irmão rebateu, desafiante, ainda
que não fosse metade do tamanho do homem que tinha a frente e provavelmente não tendo também metade de seu poder. — Vocês, Fugitivos, estão ficando muito atrevidos ultimamente apesar de serem ratinhos covardes. — o homem riu, alto, divertido, ao mesmo tempo que estendia um maço gordo na direção de seu irmão que, ao mesmo tempo em que erguia uma mão para pegar o meço erguia a outra para entregar o pacote. — O tempo pacífico na Fenda parece estar fazendo bem a todos vocês. Fugitivos. Eles eram Fugitivos. Magos que evitavam o conflito e as áreas da cidade para viverem pacificamente dentro da Fenda, não aparecendo a não ser quando era extremamente necessário, como agora. O homem a frente era um Revolucionário, como se chamavam. Magos ativistas que usavam de seus poderes, de seus talentos e capacidades, para lutar contra a opressão dos “Normais”. Eles não se importavam com a violência ou quem seria atingido no meio do fogo cruzado, exatamente porque esses mesmos Normais nunca se preocuparam com eles quando os caçavam todos os dias. Era a primeira vez em todos os seus oito anos de vida que Cali via um deles, tão confiantes e orgulhos. Ela quase os invejava por serem capazes de agir dessa maneira e não se esconder em buracos como os Fugitivos como ela faziam. Esses eram dois dos muitos destinos que um Mago poderia ter quando surgisse. Magos não nasciam, não comumente, eles surgiam, como a maioria deles se referia, ainda que a possibilidade de um nascimento como um Mago não fosse fora das expectativas dentro de sua raça. Eles poderiam facilmente ter nascido de dois Normais, terem as mesmas características simples de cada um deles durante a maior parte de suas vidas, incapazes de qualquer produção ou manipulação de energia exótica. Até que, um dia, sem qualquer gatilho ou explicação, suas cores começavam a mudar, cabelo, peles e olhos se tornavam tingidos das mais diversas cores exóticas que poderia se ter existido e, lentamente, sua magia começava a
se formar, dando-lhes capacidades que iam muito além do que se poderia explicar. Depois disso existiam várias decisões que poderiam tomar ou seriam tomadas por eles para continuar vivendo. Uma delas seria se esconder. Os Escondidos eram Magos que tentavam fingir ainda serem Normais, escondendo seus traços marcantes e coloridos de todos aqueles a seu redor para continuar vivendo suas vidas normais como sempre haviam vivido. Normalmente essa era a escolha de Magos que surgiam quando mais velhos. Outro passo era se tornar um Fugitivo. Nesse caso suas chances de sobrevivência eram maiores, sendo capazes de encontrar outros lugares onde poderiam viver sem precisar esconder o que eram constantemente, mas ainda caçados e procurados por todo o resto do mundo, correndo o risco de serem pegos e se tornarem Experimentos ou Cães. Experimentos e Cães eram Magos que apenas poderiam existir dentro da cidade do Norte, vendo como qualquer chance de sobrevivência terminaria a partir do momento que um Mago fosse encontrado no Sul. Histórias de terror eram contatadas por Magos que conseguiram, afortunadamente, escapar das garras dos soldados ao Sul, contos de fogueira e tortura e sofrimento intermináveis. Experimentos eram Magos pegos pelos soldados do Norte e levados para o centro de pesquisas, os laboratórios onde procuravam compreender e reproduzir os princípios da magia, a anomalia que muitas vezes era vista como uma doença virulenta que se espalhava por entre os celetos de seu povo, mas também a resposta para suas perguntas de grandeza e superação, uma forma de sobrepassar mesmo os limites impostos pelo próprio universo. Não se sabia o que acontecia com esses Magos, apenas que nunca mais seriam vistos; Cães, por outro lado, eram escravos. Magos que faziam contratos com as autoridades e trabalhavam junto a elas para capturar outros magos, os mais problemáticos. Não tinham escolha ou vontade própria, eram cães que apenas obedeciam a seu mestre e nada mais. Eles eram a principal resis-
tência contra os Revolucionários, Magos cujo objetivo era criar uma nação onde poderiam viver por sobre a nação criada pelos próprios Normais. Para Revolucionários o pior tipo de Mago, o pior destino para qualquer um deles, era se tornar um Cão. Eles preferiam a morte. — Oh! O que temos aqui? Como vocês conseguiram uma nascida? — os olhos azuis do enorme homem pousaram em sua pessoa e sua voz profunda e carregada de interesse facilmente a tiraram de seus pensamentos. Um sorriso cheio de interesse facilmente caiu sobre si antes de seu irmão interpor-se entre ela e o Revolucionário que riu divertido. — Não se preocupe, ratinho. Não vou roubar sua garota. Mas eu gosto de seus olhos, criança. São olhos que ainda tem muita vontade de lutar. Se mudar de ideia sobre o que quer ser, sempre pode me procurar. Sempre temos espaço para mais Magos que desejam lutar. Seu irmão não parecia feliz com a ideia, rapidamente empurrando-a para longe do homem que continuava a rir, como se tivesse ouvido a melhor piada de todas, antes mesmo que tivesse tempo de pensar sobre o que acabara de ouvir. Eles se afastaram e partiram de volta para casa com o som ecoante das gargalhados do homem fazendo-lhes companhia. Loucos, era como a maioria dos Fugitivos se referia aos Magos que lutavam dentro dos domínios da cidade do Norte, a única cidade que tinham alguma chance, mesmo que pequena, de sobreviver. Cali achava que poderia ver o motivo agora, mesmo que uma certa fagulha de admiração e interesse tivesse se acendido perante tal confiança vinda de um Mago. Ela sempre admirou seu irmão não apenas pela maestria que fazia seu trabalho e como outros confiavam nele com sua sobrevivência dentro da pequena comunidade na Fenda que criaram, mas também por sua força e coragem. Mas ela não poderia negar que o ressentia um pouco por não lutar mais contra a opressão que constantemente caia sobre eles e tornava tão difícil a vida, forçados a ter vergonha do que eram, do que eram capazes.
Ela não queria ter vergonha. Cali queria gritar aos céus suas capacidades e forças, mostrar ao mundo que a tratava como lixo como ela poderia ser poderoso. Queria poder parar de se conter, parar de se esconder, parar de fugir. Por tal, não poderia deixar de admirar também o Revolucionário que tão claramente fazia o mesmo que ela tanto ansiava ser capaz. — Lembre-se, Cali. — Seu irmão a chamou, enquanto caminhavam para fora dos domínios do Norte, afastando dos prédios altos e escuros e neve fofa e branca para se adentrar na fenda que separava os dois hemisférios, o buraco onde os Fugitivos haviam encontrado um lar para morar e ser quem poderiam ser. Seus olhos verdes, repletos de sentimentos complicados demais para serem compreendidos em sua idade, subiram para encontrar os amarelados de seu irmão, vendo agora seus encaracolados cabelos loiros como palha que outrora estavam encobertos pelo chapéu, recaindo sobre seu rosto em cachos delicados, sujos e oleosos. A seriedade que o tomava manteve presa sua atenção, apesar do quão caótica era sua linha de pensamento. - Mesmo que eles nos odeiem, mesmo que não tenhamos um lugar para ficar e sempre estamos fugindo e nos escondendo, nada de bom vai surgir se atacarmos de volta. Violência apenas traz mais violência. Entendeu? Ainda sobrecarregada, Cali consentiu, mesmo que não soubesse se tinha compreendido totalmente o que seu irmão queria dizer. Não seria melhor se defender? Lutar para sobreviver? Eles tinham poder! Eles eram fortes! Eles poderiam lutar! Mas ela respeitava seu irmão o suficiente para escutar suas palavras e seus ensinamentos e carregar sua vontade bem dentro de seu coração. A Fenda era literalmente uma fissura profunda na terra que se abriu há muito tempo, separando as cidades do Norte e do Sul que apenas se conectavam por uma ponte velha e enferrujada de metal retorcido que nunca era usada, nem mesmo para comércio. Ao Norte a neve e as sombras se alastravam por cada recanto de seu território, marcada por nuvens sempre carregadas de neve e cinzas. Ao Sul estavam o imaculado sol caloroso que sempre bri-
lhava forte no céu, demarcado pelas árvores frondosas e ar paradisíaco. Ao centro, aonde ambos os polos se encontravam, a Fenda se destacava como uma ferida profunda na terra, não quente e não fria, não escura e não clara, caracterizada por seus ventos fortes, formações rochosas muitas vezes pontudas e perigosas e fauna e flora exótica, assim como seus ocupantes. Para descer era preciso encontrar um ponto particular onde existia um leve declínio nas paredes íngremes da Fenda. Escadas haviam sido esculpidas e entalhadas na pedra para guiar os ocupantes para o fundo, assim como dar acesso ao topo, feitas para serem imprevisíveis e de difícil passagem, desencorajando desconhecidos que não tinham uma forma particularmente mais fácil ou desconheciam os meandros particulares de seu uso. Ao fundo, onde Cali e seu irmão se dirigiam, estava o que poderia ser chamado de vila, repleta de pequenas e simplórias casas feitas dos mais diversos materiais que poderiam ser encontrados ou mesmo que não poderiam ser encontrados, incrustradas dentro das paredes da enorme Fenda ou espalhadas por seu largo e espaçado centro no qual se caracterizava uma planície terrosa que, em métodos convencionais, não poderiam ser semeadas. Cores banhavam cada pequeno recanto do lugar, nas plantas, nas moradias, nas pessoas, brilhando em vida e movimentação. Pessoas das mais diversas formas, tamanhos e cores caminhavam por entre as pequenas vielas que demarcavam a vila, suas casas iluminadas e um clima de festividade se erguendo por entre elas. Decorações que variavam de esculturas de gelo até fios de metal lentamente se criavam ao redor com o passar das pessoas, energia voraz crepitando pelo ar como uma fagulha inflamável que arrepiava a pele e acelerava o coração. Mesmo há alguns metros de chegar completamente ao fundo já era possível ouvir o som das vozes, da música e risadas das crianças que corriam de um lado para o outro se divertindo com as decorações que pouco a pouco eram postas pelos adultos. Era o Dia da Magia. Um dia entre eles, Fugitivos, que se
comemorava a criação de sua espécie, o ensinamento compartilhado pelos Fundadores que deram origem a sua história. Era um momento em suas vidas que procuravam trazer alegria com o que lhes trouxe isolamento e tristeza, da um sentido positivo a algo que era visto como negativo. Empoderamento, Cali lembrou-se de um dos velhos na vila ter resmungando alguns dias antes. Era tomar para si o sentido que outros deram e dar-lhes um significado que lhes agradasse mais. Com o aproximar da vila seu irmão vou se tornando mais relaxado, seu enorme sorriso retornando para seu rosto pálido e pintado com pequenas pintas marrons, a seriedade de outrora totalmente desaparecida quando finalmente alcançaram o chão e a arrastou para dentro, dançando e rindo enquanto cumprimentava aqueles pelos quais passava com alegria. As roupas que haviam levado para o Norte agora guardadas dentro da bolsa que seu irmão carregava, deixando que aproveitassem a leveza de suas vestes mais simples e mais compatíveis com o ambiente que tanto estavam acostumados. A pequena vila não tinha muitas pessoas, nunca existiam muitos Magos, mesmo que fosse tão velha quanto a própria existência deles, portanto, não era tão complicado que reconhecessem tão facilmente os rostos ao redor, principalmente quando ninguém era igual a ninguém. A moça da padaria, de longos cabelos surpreendente verdes que adorava criar flores para misturar em suas receitas, fazia bolos e guloseimas deliciosas que adorava distribuir por entre as poucas crianças que viviam nas redondezas; O sapateiro, de olhos roxos como as galáxias descritas em livros roubados do Norte, que tinha uma especialidade com couro e poderia facilmente tingi-lo de todas as cores e formatos que bem desejasse, era insistente que todos vestissem a melhor qualidade possível, principalmente quando tantos animais peçonhentos adoravam passear ao redor junto a eles; O ferreiro, homem estranho, que tinha os olhos cor de ferrugem e cabelos tão negros quanto o carvão, que mesmo ra-
bugento sempre tinha um brinquedo ou outro separado para dar as crianças que vinham à sua porta todos os dias para perguntar o que tinha feito. Todos diferentes, todos especiais a sua própria maneira, todos especializados em seus próprios conhecimentos e que criaram sua própria casa entre outros que compartilhavam de histórias semelhantes, mesmo nunca tendo os conhecido antes. Pessoas boas, pessoas estranhas, pessoas não tão boas. Pessoas. Cali adorava poder correr ao redor e fazer perguntas sobre tudo e todos, porque sempre existia algo novo para aprender, algo que apenas alguém sabia. Era diferente das terras na cidade do Norte onde todos pareciam iguais. Ela se orgulhava do que criaram, da forma como se tratavam, se orgulhava das pessoas que conhecia. A maioria não tinha mais casa ou família, vieram expulsos procurando refúgio, a maioria das crianças que ali corria e a chamava em vozes animadas e cheia de vida nunca conheceram seus pais e eram criadas por todos na vila, chamando cada adulto, cada senhor e senhora de mãe, pai, tio, tia, avó e avô, ela própria não sendo uma exceção. Todos eles, apesar dos sorrisos no rosto, carregavam olhares assombrados e carregados de um peso que não poderia ser explicado, pois conheciam a fome, o medo, a morte, conheciam o abuso, conheciam a tristeza e conheciam o desespero, crescendo mais rápido do que deveriam. O alivio que tinham era saber que existiam outros como eles, outros que compreendiam sua dor e sofrimento, que os acolhiam como suas famílias não se preocuparam em acolher. Com um último empurrão de seu irmão, sorriso encorajador em seu rosto, Cali desembestou na direção de seus amigos, muitos mais novos, outros mais velhos, e os acompanhou até o centro da vila onde o contador, homem velho e experiente, esperava sentado em um dos bancos. Feições envelhecidas pelo tempo, com a pele morena tão escura quanto o barro, mas olhos claros de cores leitosas, sempre caloroso observava sempre as crianças se aco-
modarem a sua volta, animadas e excitadas em ouvir seu próximo conto, sua próxima história. Seus relatos de vidas que passaram, de vidas que viveu, de vidas que nunca existiram. Vorazes pelo conhecimento que ele estava disposto a passar e o único entretenimento que poderiam ter. Ele sorriria, esperaria que as petições fossem feitas, que decisões fossem tomadas, antes de balançar as mãos e pequenos bonecos feitos de delicados fios como teias se formassem a seus pés. A história estava para começar. — E o grande guerreiro despertou um dia, com sua pele escuro agora tingida de manchas brancas que se espalhavam por todo seu corpo, cabelos outrora negros como se orgulhava lentamente desbotando para um azul tão claro como o mar que jamais havia visto. Temendo o que aquilo poderia significar, o guerreiro procurou ajuda de seu irmão jurado, por muitas batalhas os dois passaram, lado a lado confiaram-se a vida, lealdade que nunca se viu. O guerreiro acreditou que se existia alguém que poderia confiar para o segredo manter, definitivamente esse amigo deve ser. Mas ao ver as cores em seus cabelos e as manchas em sua pele, tal amigo, que por tantas batalhas o defendeu, rapidamente o apreendeu e para os carrascos o levou para que na fogueira seja queimado como todos os outros que caíram como o agora condenado. Traído e sentenciado a morte o guerreiro, preso nas amarras cruéis de seus irmãos e povo que toda sua vida havia dedicado, sentido as labaredas do fogo começando a queimá-lo, usou de suas últimas forças para sua vida conseguir salvar. A energia libertou, manifestada de seu próprio desejo de viver, foi tão poderosa que mesmo o chão tremeu e os céus escureceu. Aproveitando o medo e o caos que criou, o guerreiro assim escapou, tão longe quanto poderia alcançar, para o mar que nunca jamais viu e uma vida longe daqueles que o traíram. — E depois? — uma criança perguntou, sentada sobre seus joelhos e inclinada para frente, ansiosa para saber o destino do guerreiro de fios de aranha encontrou depois de alcançar o mar.
— Quem sabe? Talvez um dia o guerreiro retorne ou talvez ele tenha encontrado um lugar onde possa pertencer, onde não tenha que se preocupar com amigos que o levem a fogueira. — o velho respondeu, suas mãos nunca deixando de se mexer para acompanhar o movimento das marionetes que criou. — E ele encontrou? — Cali agora perguntou, olhos brilhando em curiosidade e excitação assim como todas as outras crianças ao seu redor, imergida completamente na história do velho contador. — Ele encontrou um lugar para viver? Um lugar onde seria aceito? — Talvez, talvez não. Talvez ele tenha encontrado um lugar pior ou talvez tenha encontrado o paraíso. Nunca saberemos. — a voz solene e profunda do velho contador encheu as crianças de sentimentos mistos de esperança e frustração, cada uma deixando sua imaginação ir tão longe quando poderiam alcançar com sua pouca experiência de vida, com seu pouco conhecimento sobre o mundo, ansiando, desejando, que um lugar tão bom quanto jamais poderia sonhar estaria logo depois das únicas terras que conheciam, da única realidade que eram capazes ver. Antes que o próximo conto começasse, no entanto, toda a magia se perdeu e os bonecos se dissolveram em fragmentos de luz que não deixavam rastros, como se nunca tivessem estado lá em primeiro lugar. Isso não porque a própria magia tinha desaparecido, mas porque a atenção do contador agora se encontrava em outro lugar. Seus ouvidos já não eram mais os mesmos, mas ele nunca se esqueceria do som de fogo quente sobre madeira crepitando e gritos ecoando, sejam de dor ou sejam de raiva. Eram apenas sons que você não esquecia, marcados na memória como ferro quente, cicatrizes incuráveis tão profundas que às vezes sangravam e sangravam até não sobrar mais nada. Em um salto ele estava de pé, as crianças já tendo notado que algo estava errado. Cali poderia sentir o calor começando a aumentar, trazido pelo vento que lentamente parecia aumentar com o cair da noite, crescendo e crescendo para uma ventania que
aos poucos trazia também os cheiros fortes de madeira e carne queimada, os sons inconfundíveis de tiros e gritos de agonia e passadas apressadas. Toda a alegria do festival havia terminado. Logo a agitação não era mais de alegria, mas de medo. As crianças começavam a chorar e se agitar sem saber o que deveriam fazer, assustadas, apavoradas, encurraladas sem alguém para guiá-las, mesmo que o pobre senhor contador de histórias tentasse guiá-las na direção do refúgio, do esconderijo preparado para esse tipo de situação. Pois não era a primeira vez e não seria a última. Em pouco a moça da padaria, não mais jovial e alegre como a conheciam, se aproximou em passadas apressadas e esbaforidas, apressando cada uma das crianças a começar a correr. Seu e quvestido tão bonito, florido em um verde delicado, agora se encontrava rasgado, queimado e manchado em vermelho assim como seus sapatos. Seu rosto parecia preso em uma expressão de puro pavor, seus olhos assombrados pelo que tinha visto em sua caminhada até ali, mas Cali não poderia realmente se importar. Seus olhos presos no incêndio que se aproximava, no campo de batalha que lentamente se alastrava para as outras partes da vila trazendo o fedor da morte e da perdição. Não importava que a moça da padaria estivesse tentando puxá-la para junto das outras crianças, não importava o desespero em sua voz, os sons estavam embotados em seus ouvidos e seus olhos só poderiam enxergar a paisagem em caos a sua frente. Onde estava seu irmão? Sem pensar, coração tamborilando em seu peito descontroladamente, enchendo suas veias de adrenalina, desatou a correr na direção do incêndio, do campo de batalha, ignorando os gritos e os chamados. Mesmo quando ultrapassou a linha onde as chamas cresciam e engoliam tudo em seu caminho, onde poderia ouvir gritos desesperados de dor e agonia, mesmo quando pessoas desesperadas corriam ao seu redor procurando um lugar seguro, procurando desesperadamente fugir para salvarem suas vidas, sua
mente apenas conseguia evocar a imagem de seu irmão o quão não era capaz de ver ou saber se estava bem. Chegou a saltar por sobre o corpo do ferreiro, já irreconhecível, manchado em sangue, cinzas e fuligem, seus olhos opacos encarando o nada meramente refletindo a luz das chamas que continuavam a queimar, queimar e queimar. Um nó se formou em sua garganta com a visão, a bile subindo antes de empurrá-la novamente para trás, olhos lacrimejando, ardendo devido as lágrimas e as chamas, apressando-se em continuar sua buscar sem parar para pensar no que tinha visto, mesmo quando o sapateiro passou correndo, esbravejando e gritando e implorando, pois seu corpo queimava em chamas que não conseguia apagar, correndo sem ter para onde fugir, sem o alívio da morte que lentamente se aproximava. Não pense, não pense, não pense. Gritou o nome de seu irmão, embrenhou-se por entre o caos que se formava e esquivou-se de soldados que passavam com suas engrenagens barulhentas e armas em suas mãos, alguns ainda muito ocupados em queimar as casas, matar aqueles que resistiam e arrastar ao laço aqueles que conseguiam por suas mãos. A Colheita havia começado. Cali não se lembrava de nenhuma, muito jovem quando a última acontecerá, mas as descrições e os relatos eram precisos e assustadores os suficientes para ela compreender, mesmo em sua inexperiência, o que estava acontecendo. Ela sabia, bem no fundo, em sua alma, em seu desespero, que se não encontrasse seu irmão, se não fugissem, era o fim. Seriam levados e desmantelados, dissecados em mesas frias de metal em prol do que era chamado de progresso. Ou seriam forçados a compactuar com seus captores por suas vidas, forçados a trabalhar em trabalhos ingratos contra seus próprios, ordenados como animais prontos para levar chibatadas apenas por respirar na forma errada na direção de seus supervisores. Com determinação em seus passos e desespero em sua mente, ela atravessou o caos, atravessou as chamas, atravessou o
medo e a travessou a dor. Quando seus olhos finalmente encontraram a forma de seu irmão, abrindo caminho para que outros pudessem fugir, um sorriso finalmente se abriu em seu rosto e alívio tomou seu peito, sentindo que uma parte de si poderia respirar novamente. Porém, ela se esqueceu. Cali se esqueceu que o caos ainda reinava e o perigo ainda não havia partido, mesmo que seu irmão estivesse bem agora o futuro era mais incerto do que nunca, doloroso e difícil. Ela era apenas uma criança, desesperada pelo único que a cuidara e amara. Quando a arma foi apontada em sua direção a raiva lhe tomou o peito, atiçada pela situação e pelo medo, seu grito poderia ter ecoado por todo o vale e congelado o tempo. Ao seu redor a energia se acumulou, ela poderia sentir a força crescendo e crescendo dentro de seu peito até o ponto de sentir que iria explodir, como um tsunami, uma correnteza poderosa, quebrando a barragem que era sua resistência. O fogo pareceu se afastar para dar espaço a sua raiva e a energia que crescia e escapava de seu pequeno corpo, as ferramentas e maquinários que os soldados carregavam com tanto orgulho, usando para exterminar seu povo, para atacar seu irmão, sem remorso ou hesitação, estalaram e chiaram, voltaram-se contra seus mestres quando a energia, tão exótica, tão nova, tocou-os com sua enfurecida agitação. O ar estalou, dessa vez não pelas chamas, eletricidade parecia encher o ar, chiando e faiscando, nenhuma piedade também refletida nos olhos tão novos e ferozes e uma criança de oito anos. — Cali! Cali, não! — a voz de seu irmão ecoou em meio a explosão, alcançando-a em seu momento mais sombrio. Não mais em perigo, mas sem poder se aproximar para consolar a garotinha, para tirá-la da linha de fogo. Como se a despertar de um sono, ou mesmo de um pesadelo, toda a energia se dissipou, Cali recordando-se das palavras de seu irmão quando deixaram o Revolucionário. Violência apenas traria mais violência e, ainda que achasse que eles mereciam, ela acatou a ordem, pois respeitava seu irmão e não queria que ele es-
tivesse em mais problemas. Seu interior ainda se enraivecia, mas agora seu poder estava de volta em seu controle, não mais controlando as máquinas ou afastando o fogo, o ar parou de faiscar e uma estranha tranquilidade tomou conta do campo de batalha. Ninguém parecia querer ousar quebrar o silêncio que tal demonstração de poder, de fúria, havia gerado. Vendo seu irmão agora fora de perigo, Cali deu seu primeiro passo para encontrá-lo, ansiedade queimando seu coração. — Cali! — mas seu irmão gritara novamente, feições contorcidas no mais puro e sincero pavor que ela jamais viu em toda sua vida. Por um momento se questionou o que poderia ser, seu poder já sob seu controle não mais causava problemas, não no maquinário e não nas chamas. Porém, percebeu, o olhar, tão assustado de seu irmão, não estava realmente olhando em sua direção, mas além dela. Seu rosto se virou para encontrar a arma apontada para seus olhos, o cano tão próximo que podia não apenas ver o vaco escuro dentro de sua forma, mas também sentir o calor de seu bafo raivoso, fumaça branca cheirando a pólvora queimada lentamente escapando, indicando que havia sido usada não há muito tempo. Oh. Assim se dá a escuridão: O som caótico da luta e dos gritos retumbando ao seu redor. O brilho forte das chamas que permaneciam a queimar e a crescer constantemente, alimentando-se das casas ao redor sem o menor pudor, lentamente consumindo a pequena vila, outrora tão alegre, às cinzas. O bafo quente da ventania que se alastrava pelo lugar, ajudando a espalhar as chamas para lugares mais longínquos e trazendo o calor insuportável das chamas, queimava seu rosto e ardia seus olhos, espalhando as cinzas com tal força junto a fumaça que era provável que mesmo a parte superior da Fenda deveria estar banhada pelos restos da vila e das pessoas que nela moravam, acelerando e acelerando no cair da noite, assobiando e rosnando como um predador noturno que apenas mostrava suas
garras quando suas presas estavam prestes a adormecer, em seu ponto mais vulnerável. Ao centro de todo caos, enormes olhos verdes, outrora inocentes, encaravam o rosto frio e indiferente da máscara do soldado que agora apontava a arma para seu rosto, vendo refletida em suas lentes frias nada mais do que o mais puro e sincero nada. Não havia emoções. Não raiva, não ódio, não medo, não havia nada que pudesse ver mesmo por detrás de tal equipamento, uma máscara de gás fria e insensível que recobria o rosto do soldado, como se mesmo respirar o mesmo ar que eles, seria o suficiente para infectá-lo com sua existência. Foi quando a pequena criança percebeu. Percebeu porque seu irmão não lutava, percebeu porque ele acreditava que a violência não era a resposta. Pois não existia vontade de captura nos olhos frios que a encaravam, mesmo que estivesse totalmente desarmada e despreparada, mesmo que fosse uma presa fácil, a única vontade, a única ação que o soldado a sua frente expressava era a de aniquilação completa. Afinal, ela era um perigo, uma ameaça, alguém que poderia facilmente derrotá-los, alguém que resistiria. Eles não precisavam daqueles que lutavam, eles precisavam daqueles que obedeciam, os desesperados e não os esperançosos. Se lutassem, se resistisse, então as chances de sobrevivência seriam tão nulas quanto as chances de convivência. Eles eram nada mais do que ratos encurralados em um labirinto. Foi assim, também, que ela percebeu. Percebeu que eles não os odiavam. Tudo isso, toda a dor e sofrimento e isolamento não era uma derivação do ódio, mas da apatia. E, com toda a sinceridade de seus breve oito anos, ela não poderia pensar em algo mais assustador. Pois ódio poderia ser mudado, sentimentos poderiam ser alterados, poderiam ser movidos, poderiam ser coagidos, mas a completa falta deles? O completo descaso e indiferença para com sua situação? Olhar uma criança nos olhos, sabendo que a vida dela estava em suas mãos, e puxar o gatilho sem sentir nada? O quão assustador não era essa perspectiva?
E o quão triste não era para que uma criança de meros oito anos esteja enfrentando tal triste realidade. Pois pior que o ódio e a raiva, era a apatia completa perante a vida de outro ser. Pois isso significava que ele não era nada. Não um animal, não um inseto e definitivamente não um humano, provavelmente menos do que um objeto. Tudo por serem diferentes. Na calada da noite, enquanto o fogo queima, o tiro ressoa e a inocência se perde.
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