Epifania (dum telefone mudo)

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Epifania (dum telefone mudo) Não ligue pra profundidade mórbida de minhas olheiras. A falta de sono é uma consequência irrelevante. Não ligue para meus músculos cãimbrosos, nem minha boca seca, meu bafo de álcool. Do cigarro já havia me livrado − pessoalmente, outrossim, na rua, em meu terno surrado, o cheiro impregna, carregado pelo vento, soprado pelos soberbos. Não ligue para minha overdose de café e de informações desnecessárias. A cafeína deteriora essa notícia de carnificina; com sorte, me matará antes do último gole. E acabou a ressaca − a bebida, amarga, e a chuva, ácida. Agora posso rezar. Não ligue, deixe que o outdoor caia sobre minha cabeça, que o cachorro urine em meus pés. Divido malabarismos com meninos de farol e minhas moedas rolam pelos bueiros e entopem a cidade. Enchente. Não ligue. Que o velho urine na parede pichada que tem olhos e marcas à bala. Que meus muros brancos, alvos muros, manchem-se de sangue. Esparrama-se pelo chão uma cor groselha. Piche combina com hemoglobina. Não ligue se minha mão desfalecer, se nunca mais eu apertar a mão de outrém – uma cordialidade desnecessária. Coisa de burguês. Deixe-a reviver na fúria dum tapa, dum soco, duma carícia vã. Na pena. Na escrita duma palavra. Não ligue que apalpe outro corpo, que meus pés fujam por um atalho, até o fim dos trilhos. Que meus olhos pousem num horizonte com um fim certo, que eu durma sem ver o pôr-do-sol. Não ligue se minha cama tem sempre um alguém − ácaros − e meu peito-leito, está sempre vazio. Minha cabeça sempre ocupada, minha mente − vazia. Minha mesa sempre farta, minha boca − vazia. Meu templo sempre lotado, minha alma − vazia. Meu sutiã sempre vistoso, em meu peito vazio. Desértico, de certo. Não ligue se não há algo de que me orgulhe. Minhas lágrimas formam parábolas transparentes sobre minhas bochechas salientes. Meus olhos são rios intermitentes. Talvez minha voz venha a faltar, não ligue. Calar-me-ei. Não ligue para o silêncio, pura ausência de som. Se o silêncio de minhas palavras rompe essa ausência, é por falta de sentimento, e aí, caro amigo, é outra história. Não ligue meu silêncio.


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