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João Soares
Memórias do polvo IV
João Soares (Arquiteto e Professor Universitário)
entamente, deslizantemente o polvo vai-se deixando ver de novo, ao fundo, no meio de uma névoa líquida de areia baixa...
Este ano que passou perdi muita coisa.
Mas também encontrei muita coisa.
Continuei a encontrar polvos por toda a parte!
Vi um pendurado, de pano, numa montra de uma loja na subida da rua da Voz do Operário (que fica mesmo ao lado de um portão de garagem de onde uma vez tinha visto um colega paisagista – que não é o mesmo que pintor de paisagens –a esbracejar como se fosse um boneco do Tintin. Com os seus pais, já velhotes, a olhar, incrédulos, para as quatro rodas esvaziadas de um Nissan Micra verde metalizado – em sinal (feio) de despeito por ter, distraidamente (creio eu) deixado, por instantes (creio eu) estacionado, mesmo na rampa dessa garagem, o seu pequeno carro;
Vi, noutro sítio ainda – numa daquelas sessões/conferências que há agora, online: incríveis!., mas onde não se percebe se estamos a ver uma coisa qualquer meio desgraçada, ou se estamos a ver «ouro»! (enfim, uma vez, lembrado em cima da hora pela minha irmã, apanhei uma coisa indescritível – de boa – da Laurie Anderson – era o u r o !). Desta vez, que vou tentar descrever, tratava-se de uma menina (digo-o de forma meio condescendente) meio achinesada (sem racismos nem assomos de fobias, por favor!), muito exaltada a falar, acho, de design, ou de criatividade, ou ... não sei bem sobre o quê – e, volta e meia, evocava o polvo.
Aquilo parecia um pouco uma daquelas figuras dos filmes de cowboys que vendem a banha da cobra numas caravanas pequeninas que parecem à escala, e as figuras muito envernizadas e enfezadas, com chapéu de côco... fazia lembrar isso. Mas, um pouco, também me vinha de lhe dar crédito... (sobretudo quando aparecia, recorrentemente, em fundo, uma imagem de polvo). Ficava a pensar: se calhar, a menina sabe o que está a dizer.
Se quiserem ir espreitar, aqui dá para ver: https://vimeo.com/595781479, «A ‘Tentacular Pedagogy’ to Lead 2050» (ELIA Academy keynote). Kai Syng Tan é o seu nome;
Depois, vi ainda polvos congelados, envoltos em plástico azulado, em promoção, à venda no supermercado;
Vi também desses desenhos com ar de representação científica, num cartaz com ares de antigo (mas que não era) numa
parede de um bar em Fez – e é a imagem que acompanha hoje a escrita;
E, claro, em livros de crianças, mil e mil polvos. Mas desses, o sítio onde, mais recentemente, fui dar com um polvo foi neste conto maravilhoso – que, sim, é um conto de crianças (ou para crianças) mas é tão, tão lindo que quer-se lê-lo sempre: n’A menina do Mar.
Lá está ele, em companhia de um caranguejo sisudo e de um peixe (mudo), a fazer quadrilha com a menina de cabelos verdes e um palmo de altura.
Nessa história, o peixe não faz nada – porque tem barbatanas e não mãos, nem tenazes, nem pernas ou tentáculos – só barbatanas e, portanto, apenas, nada – e, como não faz nada, é o melhor amigo da menina (dá que pensar que afinal a inutilidade compensa). O caranguejo é cozinheiro e ourives –impecável, grande combinação! E o polvo, por ter todos aqueles braços... faz tudo (e não é que ganhe qualquer coisa de especial por isso, tipo ser, pelo menos, o segundo melhor amigo da menina... As meninas são (f) tramadas – pelo menos, a dos cabelos verdes e a Sofia com «ph».
Vão lá ver e digam se não é assim.
Onde é que encontrei mais polvos…, Ah, sim, neste livro do italiano Fabio Genovesi: Il Calamaro Gigante – o nome já diz tudo. Nem tudo o que vem à rede é polvo, mas, apesar do livro contar do Kraken (uma lula gigante mais do lado do mito do que do plausível), estamos sempre nas imediações do tentacular. Neste pequeno livro mistura-se um pouco de História da ciência com supostas memórias muito domésticas do autor.
Por mim, começaria assim o ano, e o regresso ao Polvo.
Mas ainda tinha deixado pendentes uns assuntos desde a última crónica e, em nome dos bons métodos da revisão científica, vou ter de lá voltar.
É que estas coisas que escrevi antes, aqui neste belo jornal, foram lidas por aquelas três pessoas e meia a quem consigo enviar o link por whatsapp.
Representação pseudo-científica em poster de café em Fez, Marrocos, Dez. 2021
São amigos que, ponho-me agora a pensar, já vieram àquela ilha pequena, ao lado da outra – Sant’Antioco – e já vieram a Portu su Trigu.
Portanto, podem confirmar (ou desmentir!) estas histórias que conto. Enfim, não será necessariamente desmentir, mas ajudar-me a distinguir o que, do que contam as palavras, terá sido coisa acontecida, ou sonhada.
Desses amigos, acontecem ser alguns –um - aficcionado de automóveis. (Haverá uma palavra para designar esta condição? – melómanos de automóveis, acho que dá para perceber).
De maneira que a última crónica que saiu foi objecto de impiedosa revisão crítica desta área do conhecimento!
Vejo-me, por isso, obrigado, a introduzir correcções às imprecisões identificadas.
Por questões práticas, designaremos o amigo em questão com a letra M.
Recordam a cena do porco – grande como um carro – a lamber-se todo com a carroçaria do mesmo? M. disse-me que a marca da viatura parada que Kusturica filmou era essa, sim, trata-se de um Trabant, mas que, afinal, o modelo não seria o P50, como tinha dito que me parecia, mas o 601. Esse aspecto, digamos, será o menor (M., não leves a mal). Agora, o que é incrivelmente incrível é isto: a carroçaria, diz M., é feita de fibra de algodão e resina (Duroplast)!!! é demais, não é? O reparo seguia com uma extensa e detalhada explicação das vantajosas propriedades do emprego do Duroplast. Mas esse texto é pouco maior do que o dobro deste que estou a tentar, aqui, escrever. De maneira que acho que não o irei transcrever.
Ser feito de fibra nem sequer é nada de por aí além, o Mehari é feito de fibra de vidro (espero não estar a dizer, de novo, alguma asneira!), agora, o ser de algodão, dá que pensar. Tem também resina fenólica misturada - o que não é nada bom – mas imaginem que se começavam a fazer carroçarias de algodão, de tecido. Resistente e descartável – aliás, comestível! – seria verdadeiramente sustentável! – Davam cabo do negócio das sucatas, sim, mas abriam-se, como agora se diz, outras janelas de oportunidades.
Pronto, está reposto o rigor científico. Obrigado, M.
Aliás, a cena agora parece ficar ainda mais maravilhosamente fantasiada!: acompanhamos o caro porco no deleite de uma guloseima que lhe excita os sentidos, deve ser o correspondente de porco para as memórias de meninice de idas às feiras, a lambuzar-se de algodão doce (sem pauzinho), com todos os atributos colaterais de pegajosidade de beiços a perdurar numa noite de carrosséis e carrinhos de choque. (Isto sou eu a imaginar o porco a sonhar.)
Ainda outro contributo open source, por parte de M: a fotografia que aqui está – já agora, é de um Fiat 126, e não 127 como tinha, também erradamente, escrito.
O que eu andei à procura dela! –procurei, procurei, e acabei por desistir de a encontrar. Aliás, convenci-me mesmo que nunca terei tirado essa fotografia. Mas
Carroçaria, ainda relativamente intacta, de Fiat 126, em Porto su Trigu, Sardenha, Ago. 2008
o M. tirou, e enviou-ma por whatsapp! (É por isso que tem esta resolução assim tão desgraçada).
E com esta, são duas imagens para uma crónica só, é obra!
No que diz respeito a um dos assuntos de fundo que acompanham, na intenção e naquilo a que eu chamaria «alimento», estas crónicas, isto é, o corpo e as suas habilidades, os seus saberes e fazeres, e o ir reconhecendo o corpo como sabedor e fazedor (mesmo que não tivesse cabeça!), ajudaria, numa nossa conversa, ter presente uma coisa chamada «Cambridge Declaration of Consciousness», que trata de pôr, por escrito, reflexões e esclarecimentos (?) sobre a consciência, e se, sim ou não, os animais a têm.
Por exemplo (pergunto-me eu), terão as conquilhas consciência do som musical que as pedrinhas das diferentes praias fazem quando a água do mar, em ondas pequenas, as revolvem? – acho que a designação mais precisa é o marulhar. Mas não sei se o marulhar não se refere apenas ao som da água, e não aos sons que fazem as coisas que a água mexe, umas contra as outras...
Será que as conquilhas sabem disso? ou os peixes-aranha?, senão, por que outra razão escolheriam essa parte tão específica, de entre todas as partes do planeta, para viver?
Mas a pergunta põe-se também para os percebes; mexilhões, enfim, bivalves e C.ª. Aliás, para além desses rumores, aquele repuxozinho que fazem as amêijoas, às tantas também poderá ter uma razão musical ou estética! – uma relação entre sons, ou micro-sons e a extensão do arco em repuxo salgado.
Lowercase music, no fundo. (do mar).
Música em letras minúsculas. Sons minúsculos, do tamanho de criaturas minúsculas.
Quem se lembrou de inventar tal definição defende “um sentido de quietude e humildade”, são estas as palavras que usa Steve Roden. Pode-se encontrar na Wikipedia esta citação, para a entrada referida: “(…) it doesn't demand attention, it must be discovered... It’s the opposite of capital letters—loud things which draw attention to themselves”.
Não só não chamam a atenção para si próprias, como nem se aperceberão, as criaturinhas metamusicais, de si próprias.
Não, não terão consciência do que fazem. Não precisam.
Os caracóis – que descobri têm um passado comum com os polvos – sabem as linhas de baba brilhante que traçam na terra ou nas paredes onde deslizam? Têm consciência estética da diagonalidade das suas existências?... who knows...
Quem me voltou a recordar da música das pedrinhas foi a K., num pequeno vídeo de ondas pequenas em França. Obrigado, K.
Voltando a Cambridge, e só para apimentar a coisa, saiba-se que, por extenso, a definição do grupo de nãohumanos sobre o qual o texto mencionado reflecte é, olhem só esta!: “including all mammals and birds, and many other creatures, including octopuses”. Lá está ele, o tal Paul, com espaço dedicado e exclusivo à sua unicidade.
O outro assunto de fundo sobre o qual se anda também aqui à volta, nas crónicas - a arquitectura - acho que hoje não aparece.
Andei ainda a procurar cultivar-me mais na biblioteca (videoteca, é mais correcto dizer) de filmes documentários sobre o polvo – há já imensos. Vi este: «My Octopus Teacher». Bonito, bastante tocante no que se refere à história contada de uma pessoa pôr-se a vida em ordem. Lá a braços com as suas resoluções para uma vida melhor e assim... (achei a coisa bastante lamechas, se querem que diga, tinha ouvido falar tanto deste filme...). Vá lá, não deixa de ser uma bela peça, mas dada a expectativa, fiquei um pouco desapontado. É que estava mesmo apontado: nariz na perpendicular ao tablet emprestado onde tenho visto a netflix, tudo pronto e... ficou esse amargo de boca tipo alga, mas sem o estaladiço nem as aparas de sal desses aperitivos chineses embalados em plástico verde-prateado.
E adormeci duas vezes a vê-lo. Mas, se calhar, estava cansado.
Ainda a dar conta da minha cultura de início de ano, tenho agora aqui na mesinha este livro altamente: Undrowned. Black Feminist Lessons from Marine Mammals. O polvo, só pela parte do marine é que sentirá isto a dizer-lhe respeito – e daí... a parte do Black, com certeza também como seria para o Yellow, para o Grey ou White – essa é mesmo uma das grandes cenas do polvo, sim senhor, ele é todas essas cores ao mesmo tempo! – podia fundar um partido que teria imensa gente a votar nele só por essa habilidade de saber pôr-se no lugar do outro.
Livro fixe, este – muito profundo, muito, muito sério. E directo. Fala-nos como se estivesse a escrever-nos uma carta (mas já não se escrevem cartas... como se fosse um «post», então). E fala assim também com a vaca-marinha-de-steller, dirigindose-lhe por “tu”, quando descreve o triste fim desse incrível mamífero marinho herbívoro (chegava a pesar 23 toneladas!), extinto no final do séc. XVIII pela ignorância e fealdade humana – nossa.
Diz assim: “I think you are more than another testament of the stark implications of European voyaging. More
than the folly of a dominant way of living that changes the planet, quickly, thoughtlessly, forever. More than the deadliness of an insatiable hunger born of chasing things other than sustenance. That hunger outlived you. I feel it chasing me too”.
É a autora, Alexis Pauline Gumbs, a pôrse no lugar desse antigo e gigante mamífero que já deixou o planeta. Mais uma coisa que descobri, este ano, ter perdido.
Obrigado, APG. bondosa. Descobri que quando se tinha começado a perceber os efeitos da excessiva perseguição deste animal lento, de longa gestação e cujas fêmeas davam à luz apenas uma cria ao ano, tinha sido decretada a proibição da sua caça. Mas chegava já demasiado tarde. Saiu essa lei em 1755, o ano em que tremeu o Sul desta Península – talvez tenha sido a consciência da Terra, na sua dor de saber perder uma linhagem de filhos, que a levou a estremecer-se e, à sua maneira, a chorar.
Obrigado, leitores, até daqui a uns dias.
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