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Paulo Bernardo

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João Soares

João Soares

Cor tes de cima, a Garraf a!

Paulo Bernardo (Empresário)

Daniel Pina é um homem de fé, quase todas as semanas nos últimos dois anos tem-me enviado uma mensagem a perguntar se escrevo esta semana, eu quero escrever e digo que sim, mas a pandemia tirou-me a inspiração. Não consigo entender, mas tirou, dois anos de puro sofrimento interior, onde o sorriso e a motivação têm que ser retiradas das minhas entranhas para poder motivar quem depende de mim, motivar a família, motivar os amigos, motivar os colaboradores, os parceiros de negócio, motivar quem eu encontro na rua e olha para mim de máscara e tenho que, através do olhar, transmitir algo doce e positivo.

Talvez porque a minha auto motivação tem andado por níveis quase perto do zero, a escrita tem dificuldade em sair. Possivelmente não é politicamente correto assumir esta falta de motivação, ou dizer que estou farto, dizer que é difícil vir com o discurso que tudo vai ficar bem. Ninguém me vai devolver os abraços que não dei à minha mãe, as conversas com os amigos, a despedida dos que partiram, nada disso vai voltar.

Estamos assustados e tristes.

Eu não sou assim, mas admito que estou. Andamos como baratas tontas às voltas, ninguém consegue ter um discurso coerente, nem saber muito bem o que fazer.

Contudo, hoje quero dar a volta, acredito que estamos a chegar ao fim deste tempo de tempestade, e, para quem me encontrar amanhã, o sorriso estará cá e vou dar o meu melhor para espalhar motivação e me motivar também. Já comecei por escrever, julgo que é um bom princípio.

Não sei qual vai ser a receita, mas sei que partilhar as minhas angústias já ajuda, quer a mim que desabafo, quer aos outros que vão ver que não estão sozinhos.

Hoje ganhei coragem e, com a devida autorização da família, visitei um amigo que não está bem de saúde. Demos um abraço forte, não falamos muito, trocamos mais olhares com a nossa cumplicidade. Não é uma amizade muito antiga, mas não necessita ser antiga para ser forte, ensinoume muitas coisas e ajudou-me a crescer como adulto. Hoje mesmo deu-me uma lição de vida adulta juntamente com a sua família.

Levei-lhe uma prenda que tínhamos combinado beber juntos no dia em que eu fiz quarenta e nove anos, esteve guardada para quando nos juntássemos, contudo, entre vidas a correr e pandemia, acabamos por ainda não a conseguir abrir e tomá-la em conjunto. Hoje, julguei por bem que nos próximos tempos ele ficasse como seu fiel depositário, para que a possamos tomar em breve assim que ele melhorar.

A nossa sociedade vende-nos a ideia que temos que ser fortes, magros, sorridentes e sempre bem com a vida. Vende-nos a procura pelo futuro, sem a preocupação com o hoje. Vende-nos a cenoura lá na frente e não o que hoje temos.

Estou triste, sim, por toda a envolvência, mas a energia vai surgindo e o hoje começa a fazer bastante sentido, o abraço que dei ao meu amigo valeu muito.

Com pandemia ou sem pandemia, a vida corre rápido e o tempo não somos nós que controlamos. Vou tentar escrever todas as semanas, vou abrir mais garrafas com os amigos, vou gritar mais, mandar mais gente para o raio que os partam, dizer amo, dar abraços, sorrir ou chorar, ouvir melhor música, fumar uns charutos, ler mais livros, fazer menos fretes, usar o tempo que recebo por dia de uma forma mais justa para comigo.

Para quem chegou até aqui, obrigado, saibam que nem sempre a chuva caiu, nem o sol brilha sempre, saibam que isto vai mudar em breve. Não sei se vamos ficar melhores com estes difíceis tempos de provação, mas ao menos deem mais abraços. Eu, por exemplo, no meio destas confusões consegui ter aulas de baixo que me estão a dar muitos bons momentos .

Notas Contemporâneas [30]

Adília César (Escritora)

“O embarque fez-se com a confusão habitual, complicada com os embaraços de um mar agitado: os barcos iam cheios de gente, uns de pé, outros sentados na borda, roçando pela água, outros gravemente equilibrados sobre a acumulação pitoresca das bagagens: ria-se, fulminava-se a organização e a polícia das festas, gritava-se um pouco quando os barcos pesados oscilavam mais inquietadoramente”.

Eça de Queirós (1845-1900), in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

IDEIA PRINCIPAL navega no mar do pensamento e a sua sobrevivência depende do clima: períodos de sol com momentos de felicidade extrema; existência de nuvens suaves com abertura do coração a surpresas; céu muito nublado com possibilidade de choros durante a noite; aguaceiros e períodos de espírito vagamente inquietos; rajadas de vento forte com existência de silêncios; mente com poucas abertas e ciclos contínuos de esquecimento; eclipse total. A meteorologia psicológica muda a cada dia através de ciclos de intermitências emocionais registados em gráficos incompreensíveis. Desengane-se quem julga que há um mapa para o percurso mental.

O CAMINHO não se faz apenas caminhando, mas também na análise da descoberta de cada passo. E parte-se cada pedra em que tropeçamos, para construir alguma coisa que valha a pena. Erguem-se canteiros de flores, muros, edifícios ou uma ponte bem sólida, a minha construção preferida, por ser tão complexa, por denunciar uma utilidade metafórica. Por vezes, não é possível ultrapassar o obstáculo e é preciso voltar atrás, mesmo que já tenhamos chegado longe. Caminho pela cidade. Aqui não há pontes, apenas pressinto passos em falso. Sou obrigada a percorrer uma distância considerável porque não há lugar para estacionar o carro, a não ser ali, naquela praceta escondida e longe de tudo. Procuro uma esplanada minimamente apresentável e convidativa para tomar um café. O sol de inverno é morno, contagia-me com a sua alegria amena. “Eu caminho este caminho pelo caminho”: «caminho» é verbo, substantivo e também advérbio de lugar, o que me deixa divertida ao estabelecer conexões mentais meramente recreativas. De repente, depois de repetir a mesma palavra tantas vezes –«caminho» –, ela deixa de ter significado

e torna-se desconhecida na minha paisagem lexical. Sorrio: hoje é dia de inclinar a cabeça para um lado mais infantil. Apetece-me correr, mal tal não é possível porque estou de salto alto e uso um chapéu de feltro; entre os dois adereços, um vestido justo e uma capa a condizer. Ao contornar um contentor do lixo, vejo aquilo.

AQUILO parece ser uma oferenda destinada a um «puto» qualquer. Exibe uma legenda explícita, negra sobre o fundo branco, inscrita no plano sentimental da pessoa que a fez com as suas próprias mãos e a ofereceu a outra pessoa que, por certo, fará parte da sua colecção especial de afectos – o «puto». Há outras palavras pintadas em linhas estratégicas do plano bidimensional disponível, mas não consigo decifrá-las. Contudo, à primeira vista e tendo em atenção o local onde o objecto se encontra – junto do contentor do lixo – a dádiva não foi muito bem acolhida pelo destinatário, o «puto». Quem será o «puto»? Alguém insensível, creio.

O LABIRINTO arquitectado pelos pensamentos é sempre sentimental. As circunstâncias que impelem ao acto e, em consequência dele, comovem ou não o outro, são sempre emocionais. Mas a razão estabelece-se de forma tortuosa e nem sempre o resultado é o esperado. O emissor «adora» o «puto», e essa adoração surpreende pelas formas, cores e tempo destinados à criação intencional, única, irrepetível e intransmissível de uma tela decorada com desvelo. Contudo, o outro, o «puto», nem por isso fica surpreendido, e dá à mensagem um destino cruel, apesar dos “Mil Parabéns”. Quantas dimensões humanas tem o plano dimensional da tela? É possível que um objecto carregue um peso demasiadamente humano? Até eu, que não conheço nem quem dá nem quem recebe, vejo o sentimento de desprezo, ali, deitado no chão: tem forma e cor bem definidas (embora carregadas de sombras). O milagre da borboleta sobre a flor não ilumina aquele transtorno.

É PRECISO acalmar o mar, varrer as misérias humanas e as boas intenções que não cumprem o seu papel. É preciso estar mais atento às necessidades dos outros. Os inúmeros objectos que eu compro, os presentes que eu ofereço, servem de consolo a quem? A mim ou a ti? Acumulamos coisas, especulações e desejos na bagagem festiva e embarcamos na vida como se não houvesse amanhã. Mas dezembro já ficou lá para trás e neste tempo de rescaldo do último Natal, já prevejo novas inquietações no planeamento do próximo.

TIRO A FOTOGRAFIA daquela visão algo obsessiva que parece chamar por mim e imediatamente tomo a decisão de escrever estas notas contemporâneas. O impulso inspirador acontece-me, de vez em quando. A representação fotográfica da tela soprame uma história ao ouvido que parece plausível, dadas as patéticas circunstâncias. O protagonismo é dado ao destino das palavras “adoro-te, puto”. Sim, «puto», eu também te adoro! Embarquemos neste novo ano com amor que, não bastando por si só, dá uma preciosa ajuda para acalmar as inquietações da vida. Cuidemos do futuro, com serenidade e alguma urgência. Ou seja, sem reticências nem pontos de interrogação.

DE REPENTE, ocorre-me uma ideia estonteante: e se o «puto» nunca tivesse recebido a tela? E se quem a elaborou não lhe deu o devido valor e preferiu largá-la no lixo, obstruindo o caminho lógico da intençãoacto-consequência-desalento? Ah, assim o «puto» nunca saberia que era «adorado». Ah, mas assim a crónica seria outra .

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