vivendo Ă margem
vivendo à margem o uso de alternativas tecnológicas no melhoramento e reordenamento de assentamentos precários
daniella naomi yamana
orientador Paulo Fonseca de Campos trabalho final de graduação FAU USP dezembro de 2017
aos meus pais, meus pilares de confiança e carinho; à minha irmã e ao meu namorado, pelo apoio incondicional; ao meu orientador, pela disposição e ensinamentos; aos integrantes do grupo de pesquisa, pelas discussões e aprofundamento do trabalho; aos funcionários da AMOJAP e ZL Vórtice, pela contribuição e participação neste projeto; aos meus amigos que sempre estiveram ao meu lado;
muito obrigada!
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
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PROJETO “CALÇADAS DRENANTES”
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PESQUISA E APROFUNDAMENTO DE CONCEITOS
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MICROCONCRETO DE ALTO DESEMPENHO
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FABRICAÇÃO DIGITAL
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FAB LABS
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PROTOTIPAGEM E PRODUÇÃO DAS FÔRMAS
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SISTEMAS CONSTRUTIVOS PROPOSTOS
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JARDIM PANTANAL
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CALÇADAS DRENANTES
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UNIDADE HABITACIONAL
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CANTEIRO EXPERIMENTAL
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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INTRODUÇÃO
A cidade de São Paulo nasceu protegida, no alto de uma colina, cercada pelos rios Tamanduateí e Anhangabaú. A posição estratégica se justificou pela segurança promovida pelos obstáculos naturais, além da proximidade com o rio Tietê, utilizado como meio de transporte e fonte de abastecimento de água e alimento nos primeiros séculos de colonização (ZANIRATO, 2011). Ao passo que a cidade cresce, seu solo é impermeabilizado, seus rios são canalizados e sua mata é derrubada. Ironicamente, a água superficial determinante para o desenvolvimento da urbe vai sendo gradualmente esquecida, coberta por avenidas de fundo de vale e poluída por dejetos provenientes da ocupação habitacional e industrial. Ainda, são nos rios e córregos de São Paulo onde se explicitam as consequências negativas de uma urbanização extensiva e inadequada. Aqueles que não foram retificados e cobertos por sistemas viários – prática consolidada pelo Plano de Avenidas de Prestes Maia, de 1930 – se tornam suporte para habitação da camada mais pobre da população (TRAVASSOS, 2010). O crescimento do setor industrial no século XX veio acompanhado de uma massa de operários que, mal remunerados, passam a ocupar terrenos na periferia de São Paulo. Segundo Maricato (2003), é nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado e nas áreas públicas, situadas em regiões desvalorizadas, que a população trabalhadora pobre vai se instalar: beira de córregos, encostas dos morros, terrenos sujeitos a enchentes ou outros tipos de riscos, regiões poluídas, ou áreas de proteção ambiental – onde a vigência de legislação de proteção e ausência de fiscalização definem a desvalorização.
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Ocupações recentes próximas ao rio Tietê, no bairro Jardim Pantanal, extremo leste de São Paulo.
A segregação espacial resultante de um desenvolvimento econômico concentrador e excludente explicita o surgimento de duas cidades distintas dentro de uma mesma São Paulo: a cidade formal e a cidade informal. A primeira, regulamentada, possui planos urbanísticos a serem seguidos, concentrando obras e intervenções públicas em uma distribuição desigual de recursos. A segunda, clandestina, surge espontaneamente por demanda, em ocupações irregulares organizadas pelos próprios moradores. Nela, somam-se às dificuldades de acesso aos serviços e infraestrutura urbanos básicos, menores oportunidades e emprego e uma maior exposição à violência (MARICATO, 2003). Essa situação é agravada quando a população marginalizada se instala em regiões de risco ambiental, expostas a inundações ou deslizamentos de terra, como é o caso dos bairros que ocupam a várzea do rio Tietê no extremo leste da cidade. Bair02
ros como o Jardim Pantanal, objeto de estudo neste trabalho, que nasceram e cresceram irregulares, sofrendo duplamente com o modo com que a cidade foi conformada, seja pela falta de atendimento público ou pela água que sobe todos os verões. Frente à incapacidade do Estado em oferecer soluções apropriadas para a população periférica, apoiando-se em métodos conservadores de gestão e construção para intervir em loteamentos irregulares, reafirma-se a importância de se pensar alternativas para promover melhorias na qualidade de vida desses grupos vulneráveis. A partir do contexto apresentado, o objetivo deste trabalho é investigar a utilização de alternativas tecnológicas no melhoramento e reordenamento de assentamentos irregulares, buscando uma abordagem mais contextualizada e adaptada às demandas de um determinado território. Dentro do escopo da pesquisa está a exploração de técnicas já consolidadas – pré-fabricação em microconcreto de alto desempenho – e recentes – tecnologias digitais de modelagem e fabricação – no desenvolvimento de soluções para obras de interesse social. Os produtos e reflexões apresentados a seguir derivam de um projeto maior, o “Módulos pré-fabricados para drenagem superficial e manejo de águas pluviais”, ou simplesmente “Calçadas Drenantes”, desenvolvido pelo grupo de pesquisa DIGI-FAB (Tecnologias digitais de fabricação aplicadas à produção do Design e Arquitetura contemporâneos) da FAU USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). Como integrante do grupo de pesquisa desde o início do projeto, espero que este caderno seja, também, um registro de um processo de projeto coletivo desenvolvido ao longo desses dois últimos anos. 03
projeto “calçadas drenantes”
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O projeto, resultado do diálogo entre diversos atores do setor público, sociedade civil e a FAU USP, consiste na elaboração de um sistema construtivo para urbanização e drenagem superficial de águas pluviais a ser implantado em assentamentos precários localizados na várzea do rio Tietê. Execução do protótipo da calçada drenante em um centro comunitário na periferia de Montevidéu, Uruguai, em 2006. Fonte: Paulo Eduardo Fonseca de Campos.
Esta abordagem teve como ponto de partida um projeto similar concebido no Uruguai pelo professor da FAU USP, Dr. Paulo Eduardo Fonseca de Campos, em 2006. Na época, o PIAI (Programa de Integración de Asentamientos Irregulares) havia sido reestruturado para desenvolver políticas de acordo com o MVOTMA (Ministerio de Vivienda, Ordenamiento Territorial y Medio Ambiente), com o objetivo de conceber empreendimentos de caráter produtivo, geridos pelos próprios moradores das comunidades. A proposta, nesse contexto, consistia na concepção de uma usina de pré-fabricados destinada à produção de peças para infraestrutura, equipamentos urbanos e elementos arquitetônicos, que futuramente viria a se tornar um CPC (Centro de Producción Comunitaria) que promovesse um polo de desenvolvimento local (FONSECA DE CAMPOS, 2013). Durante a experiência no Uruguai, embora nenhuma usina tenha sido implantada, foi projetado e executado o protótipo do módulo básico da calçada drenante de microconcreto. Devido ao reconhecimento de seu potencial técnico, bem como de seu alcance social, o projeto “Calçadas Drenantes” foi resgatado pelo grupo de pesquisa DIGI-FAB em parceria com o Laboratório de Intervenções Urbanas ZL Vórtice para ser implantado em áreas de alta vulnerabilidade social e econômica na várzea do rio Tietê, em São Paulo. Nesse novo cenário, o “Calçadas Drenantes” passou a ser visto dentro de uma perspectiva mais ampla, associando o sistema construtivo desenvolvido a um programa de capacitação técnica, transferência de tecnologia e educação ambiental. 05
bloco intertravado
calçada em concreto
galeria prĂŠ-fabricada em microconcreto
Em seu formato atual, o projeto consiste em implantar um canteiro experimental de pré-fabricação leve em microconcreto na comunidade-alvo, o Jardim Pantanal, onde serão produzidos os componentes para montagem da calçada drenante. Será um espaço de trabalho e formação, construído em terreno disponibilizado pela comunidade e equipado com o ferramental básico. A proposta prevê que o canteiro seja o embrião de unidades de produção comunitária de componentes construtivos pré-fabricados leves, como os CPCs da proposta uruguaia, permitindo a disseminação das tecnologias alternativas e a capacitação da mão-de-obra local. Além disso, espera-se promover melhorias urbanas aliadas a um processo de desenvolvimento local, com geração de emprego e renda, fomentado pela autogestão e produção comunitária. O objeto de estudo principal, o sistema construtivo denominado “Calçadas Drenantes”, é composto por dois elementos principais: a galeria, peça pré-fabricada em microconcreto de alto desempenho; e a calçada propriamente dita, peça feita de concreto armado convencional. A inserção do projeto na realidade de uma cidade como São Paulo busca não apenas a reprodução dos conceitos abordados na experiência ocorrida no Uruguai, como também a revisão da proposta visando a democratização do acesso à informação e a replicação dos processos construtivos.
Esquema de montagem do sistema construtivo “Calçadas Drenantes”.
Atualmente, São Paulo conta com a maior rede pública de laboratórios de fabricação digital do mundo, totalizando 12 Fab Labs Livres espalhados por toda a cidade, inclusive em bairros periféricos da Zona Leste onde serão implantadas as primeiras calçadas drenantes. Aproveitando a disponibilidade local desse serviço, o grupo de pesquisa vem trabalhando no projeto da fôrma para a galeria de microconcreto de modo que ela possa ser construída utilizando-se uma fresadora CNC, equipamento 07
existente em todos os Fab Labs. Assim, o projeto “Calçadas Drenantes” pode ser replicado em qualquer laboratório da rede municipal de São Paulo, bem como em qualquer Fab Lab do mundo, reforçando seu caráter aberto e colaborativo. Conforme as premissas iniciais do projeto, ao incorporar a fabricação digital no processo de produção dos elementos pré-fabricados é possível dispensar o uso de mão-de-obra especializada na construção das fôrmas de madeira, apoiando-se na precisão e velocidade de usinagem das máquinas de Controle Numérico Computadorizado (CNC). Ainda, vislumbra-se a perspectiva de capacitação da população no uso das ferramentas de fabricação digital de modo que ela se aproprie integralmente dos modelos produtivos adotados. Nesse sentido, a lógica do canteiro experimental se estende ao ambiente Fab Lab, uma vez que esse espaço fornece cursos gratuitos voltados para a formação técnica, facilitando a transferência do conhecimento e, consequentemente, o processo de apropriação das técnicas e modos de produção pelos moradores das comunidades.
Implantação do sistema construtivo “Calçadas Drenantes” no Jardim Pantanal.
Assim, as atividades realizadas no Fab Lab SP da FAU USP e nos Fab Labs Livres SP da prefeitura situados na Zona Leste de São Paulo (CEU Três Pontes, Itaquera e Cidade Tiradentes) irão desenvolver um tipo complementar de pesquisa, focado na modelagem e fabricação digitais. Acredita-se que, a longo prazo, esse vínculo com os Fab Labs pode incentivar novos projetos de melhoramentos nas comunidades e parcerias com grupos de extensão e pesquisa universitários. Desse modo, busca-se um meio da universidade atuar em convergência com as demais políticas públicas voltadas para a região, integrando-as com iniciativas da sociedade civil que confirmem seu compromisso com o interesse social. 09
pesquisa e aprofundamento de conceitos
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microconcreto de alto desempenho A nomenclatura microconcreto de alto desempenho tem sido adotada para descrever a técnica da argamassa armada ou ferro-cimento no contexto da pré-fabricação leve, destacando-se as mais recentes inovações tecnológicas alcançadas nos últimos 15 anos. Quando comparada ao concreto armado convencional, a argamassa armada apresenta um baixo fator água/ cimento, limitado pela norma brasileira a 0,45 (NBR 11173, 1990). Essa característica confere ao material elevada resistência estrutural, propiciando a concepção de elementos pré-fabricados de pequena espessura – entre 20 e 30 mm em média – e, consequentemente, de pequena massa. A transição da argamassa armada para o microconcreto de alto desempenho, ou microCAD, ocorre na medida em que são incorporados à sua composição aditivos superplastificantes que permitem a redução da quantidade de água na mistura, sem perda de trabalhabilidade, alcançando valores de aproximadamente 0,40 na relação água/aglomerante – aglomerante, pois considera-se a possibilidade de adição de materiais ligantes complementares ao cimento. Sendo 0,40 a fronteira entre concretos usuais e concretos de alto desempenho (FONSECA DE CAMPOS, 2017), o microCAD se apresenta como um material com grande potencial de uso na pré-fabricação leve, capaz de oferecer uma maior densidade tecnológica e valor agregado aos produtos. 11
Concreto armado (convencional)
pasta
argamassa ou microconcreto
cimento
água +aditivos
concreto
agregado miúdo
microconcreto (argamassa armada)
pasta
argamassa estrutural de cimento e areia ou microconcreto
armadura principal de barras agrupadas
agregado graúdo
armadura de malhas de fios finos, pouco espaçados, distribuída, subdividida.
traço típico 1:2 (em massa) x = 0,40
água +aditivos
cimento
agregado miúdo
agregado graúdo
Esquema representativo da composição do concreto armado convencional. Fonte: adaptado de Paulo Fonseca de Campos.
A redução da quantidade de água na mistura, entretanto, busca não apenas o aumento de resistência estrutural, como também a diminuição da porosidade do composto. Ao obter uma matriz mais compacta e menos permeável, é possível impedir ou dificultar, consideravelmente, a penetração de agentes agressivos externos e aumentar a vida útil do microconcreto de alto desempenho. Ademais, adotam-se armaduras difusas – malhas de aço com fios finos e pouco espaçados entre si, fibras sintéticas ou naturais – que reforçam a estrutura e limitam a fissuração da matriz cimentícia. Em um contexto de desigualdade e segregação socioespacial, comum no ambiente urbano latino-americano, este trabalho adota como premissa o emprego da tecnologia do microCAD no desenvolvimento de pré-fabricados leves para obras de infraestrutura e habitação social. A mesma é defendida pelos autores do livro “Microconcreto de Alto Desempeño: La tecnologia del MicroCAD aplicada en la construcción del hábitat social”, organizado pelo professor Dr. Paulo Eduardo Fonseca de Campos. Ao longo da leitura são narradas experiências de sucesso que apostam na pré-fabricação leve em microconcreto como indutor de mudança, apoiando-se no uso intensivo da tecnologia, na economia de recursos e na transferência do conhecimento técnico para viabilizar intervenções que visam melhorar a qualidade de vida da população periférica.
Esquema representativo da composição do microconcreto de alto desempenho. Fonte: adaptado de Paulo Fonseca de Campos.
O panorama geral deste posicionamento tem como referência os limites da ação do poder público, no contexto latino-americano, no sentido de intervir na precariedade das condições de vida da população marginalizada. Embora seja possível observar algumas ações específicas do Estado voltadas para a manutenção das comunidades nos assentamentos onde estas já vivem – programas de regularização fundiária, implementação 13
de melhorias urbanas e construção de equipamentos sociais –, as soluções, muitas vezes, são pautadas em métodos de gestão tradicionais, idealizadas com base na cidade formal. Esse tipo de abordagem, além de desconsiderar as necessidades reais da periferia, “inibe o desenvolvimento de soluções físicas inovadoras para melhorias habitacionais e urbanas” (FONSECA DE CAMPOS, 2013). No caso do projeto “Calçadas Drenantes”, a pré-fabricação em microconcreto, dentro de um modelo de produção comunitária, manifesta-se como uma tecnologia com alto valor agregado que pode substituir os métodos construtivos convencionais. Porém, quando incorporado a um cenário de autoconstrução, essa tecnologia alcança um potencial transformador considerável, pois, aliada a um regime de transferência de tecnologia, pode capacitar e emancipar a população para que ela passe a agir em prol de seus interesses. A emancipação, nesse contexto, pode ser entendida como uma possibilidade de transformação socioeconômica e ambiental, uma vez que a tecnologia apropriada oferece a oportunidade de transformar o habitat com as próprias mãos, atendendo às reivindicações da população residente. Além disso, possibilita a geração de emprego e renda através da implantação da lógica do empreendedorismo, podendo incentivar a criação de comércios e serviços que atendem o consumo local. Dentro dessa proposta, o microconcreto de alto desempenho se apresenta como uma alternativa economicamente viável. Graças à popularidade do concreto armado, os materiais necessários para a execução dos pré-fabricados leves podem ser encontrados facilmente em qualquer país. Ademais, a transferência de tecnologia é facilitada pelo conhecimento técnico 14
prévio já acumulado em vários países da região, a exemplo do Brasil. Como resultado, o investimento inicial para a implantação de uma unidade de produção de elementos pré-fabricados em microconcreto, ou a adoção dessa tecnologia em empresas, é consideravelmente reduzido. No entanto, o maior atrativo desse método construtivo é, possivelmente, a velocidade e facilidade de execução, viabilizando políticas públicas que sejam mais eficientes ao atender às demandas da população por melhorias urbanas. No Brasil, o uso da tecnologia de pré-fabricação em microconcreto armado foi consolidado na forma de obras de infraestrutura e saneamento básico, construção de edifícios públicos, equipamentos e mobiliário urbano (FONSECA DE CAMPOS, 2013). Conforme o tema de discussão deste trabalho, vale destacar dois casos nacionais que ajudam a compreender melhor o uso da pré-fabricação leve em intervenções feitas em assentamentos ocupados por populações de baixa renda que, em geral, vivem em lugares de difícil acesso e mal atendidos por serviços públicos.
Obras de canalização de córrego e muro de contenção realizadas em favelas de Salvador pela RENURB. Fonte: Paulo Eduardo Fonseca de Campos.
Em situação similar à de São Paulo, a cidade de Salvador abriga um grande número de favelas derivadas do fluxo migratório zona rural-metrópole. Procurando superar as limitações financeiras do poder público, foram estudadas soluções alternativas de baixo custo que pudessem resolver, pelo menos em parte, o problema da sub-habitação e de urbanização das favelas já consolidadas, com o desenvolvimento de técnicas que pudessem minimizar as desapropriações e relocações dos moradores (BEZERRA, 1999). Essa foi a experiência desenvolvida pela Companhia de Renovação Urbana de Salvador (RENURB) sob a coordenação do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, na década de 1980. 15
No caso da RENURB, foram concebidos sistemas construtivos que usam pré-fabricados leves para a canalização de córregos, muros de arrimo, revestimentos de taludes, rampas e escadarias para pedestres. A opção pelo microconcreto se deu pelas características do material que, ao proporcionar a produção de componentes delgados e leves, viabilizava uma obra menos invasiva e mais adequada àquele ambiente. Além disso, a alta resistência estrutural do material garantia uma boa durabilidade e baixa manutenção das peças que, caso danificadas, poderiam ser trocadas isoladamente. Os elementos pré-fabricados, de até 90kg, eram manuseados sem o auxílio de equipamentos pesados e instalados com juntas a seco, satisfazendo as condições de trabalho estabelecidas pela topografia e alta densidade populacional. Com base no que foi explicitado, pode-se concluir que a pré-fabricação em microconcreto é uma tecnologia bastante apropriada para intervenções em assentamentos precários, pois sua lógica de transporte e montagem respeita o tecido urbano existente. Por exemplo, com peças menores e modulares, a canalização de um córrego pode acompanhar a curvatura original do corpo d’água e evitar desapropriações – necessárias caso o córrego fosse retificado. A partir das experiências da RENURB, onde foram comprovadas as vantagens em se utilizar o microconcreto, instalou-se em 1990 o CEDEC (Centro de Desenvolvimento de Equipamentos Urbanos e Comunitários) em São Paulo, um núcleo de pesquisa e produção de sistemas e elementos construtivos pré-fabricados pertencente à EMURB (Empresa Municipal de Urbanização de São Paulo). Como resultado, surgiram dois programas: o primeiro seguindo o projeto original do Lelé em Salvador, voltado para a construção de equipamentos e infraestrutura urbana; e 16
Execução das escadarias drenantes em Salvador pela RENURB, na década de 1980. Fonte: Paulo Eduardo Fonseca de Campos.
o segundo destinado à pré-fabricação de componentes para habitação de interesse social. Este segundo programa esteve aliado ao Mutirão Cachoeirinha Leste, onde o CEDEC forneceu assessoria técnica para o projeto e construção de um protótipo da “Casa tipo Beta-um”, padrão que seria reproduzido no restante do empreendimento. O CEDEC EMURB foi convidado pela comunidade de Vila Nova Cachoeirinha que, inspirada nas cooperativas de habitação uruguaias, procurou reproduzir esse modelo de produção coletiva para atender à demanda por habitação no bairro. O sistema construtivo adotado foi a pré-fabricação parcial de uma estrutura independente de concreto, onde perfis de microconcreto eram preenchidos e concretados in loco. De acordo com Paulo Sérgio Souza e Silva, no texto “Ajuda mútua e autogestão na produção da habitação de interesse social e do ambiente urbano: o caso de Vila Nova Cachoeirinha”, o objetivo da adoção de sistemas construtivos não convencionais, no caso de Cachoeirinha, visava alcançar melhoria na qualidade do produto, redução do custo e/ou do tempo dispendido na produção, redução do esforço por parte dos mutirantes nas atividades de canteiro, bem como o aprimoramento da capacitação profissional da população envolvida, seja pela familiarização com materiais e técnicas por ela desconhecidos, seja pela absorção de tecnologias leves, adequadas, que demandassem pouco capital investido.
Construção do modelo “Casa tipo Beta-um” no Mutirão Cachoeirinha Leste. Fonte: Paulo Eduardo Fonseca de Campos.
Fica claro que a opção pela tecnologia da pré-fabricação leve se dá a partir de experiências bem-sucedidas, como a RENURB e as cooperativas de habitação uruguaias, onde a tecnologia surge como alternativa aos métodos tradicionais para viabilizar uma intervenção mais adequada ao contexto social, econômico e territorial no qual se encontra. Para além disso, no caso de 17
Vila Nova Cachoeirinha, assim como no “Calçadas Drenantes”, a intenção era que o projeto contribuísse para o desenvolvimento local e a melhoria da qualidade de vida da comunidade, “num quadro de participação crescente da população na conformação e gestão de seu habitat, caracterizando, cada vez mais, um caso típico de autogestão” (SOUZA E SILVA, 1998). Por fim, com base nos conceitos explicitados e nas experiências práticas relacionadas ao microconcreto de alto desempenho, conclui-se que a escolha de um material ou de um método construtivo não se dá ao acaso, mas em função de uma série de requisitos de projeto a serem atendidos. Nesse sentido, o emprego do material aqui estudado está intrinsecamente relacionado à sua adequação tecnológica, isto é, o microCAD é definido mais por suas possibilidades de aplicação prática do que por uma escolha à priori (FONSECA DE CAMPOS, 2013).
Execução das fôrmas para os pré-fabricados leves do Mutirão Cachoeirinha Leste. Fonte: Paulo Eduardo Fonseca de Campos.
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fabricação digital O termo fabricação digital engloba os diferentes processos de manufatura que utilizam equipamentos e máquinas de Comando Numérico Computadorizado (CNC), podendo ser classificados como aditivos, subtrativos ou conformativos. O processo de manufatura aditiva, comumente conhecido como impressão 3D, ocorre com a deposição em camadas de um material base, sucessivamente, até a conclusão do objeto final. A matriz empregada na impressão 3D pode variar bastante, sendo utilizados processos baseados em materiais líquidos, sólidos e em pó. No processo subtrativo, o objeto final é obtido com a retirada de partes do material base, como acontece nas máquinas cortadoras a laser e fresadoras. Por último, na manufatura por métodos conformativos, o material base é deformado mecanicamente. Independentemente do tipo de processo escolhido, a lógica da fabricação digital se mantém a mesma: “um modelo virtual é gerado por computador (CAD – Computer Aided Design ou Desenho Assistido por Computador) e nele são introduzidos os parâmetros pertinentes à sua fabricação (CAM – Computer Aided Manufacturing ou Manufatura Assistida por Computador). Após essa etapa, o programa gera uma sequência de instruções numéricas, o G-Code, que comanda o equipamento controlado por computador (CNC) de maneira a que ele execute todas as diferentes tarefas necessárias para a fabricação de um determinado objeto” (FONSECA DE CAMPOS; LOPES, 2017). 19
Em outras palavras, a lógica da fabricação digital segue um conceito chamado “file-to-factory” (em português, do arquivo para a fábrica), onde os projetos são concebidos e desenvolvidos em plataformas digitais e, assim, executados com o auxílio de máquinas CNC. A fluidez no ciclo produtivo só é alcançada graças à integração dos softwares de desenho e modelagem aos equipamentos de fabricação digital, tornando concepção e produção indissociáveis dentro do processo de projeto. No universo arquitetônico, Branko Kolarevic define essa convergência entre projeto e fabricação, estabelecida através das tecnologias digitais, como “continuum digital”. Nesse sentido, entende-se que os meios digitais fazem parte do processo de design e suas lógicas de funcionamento são índices para proposição do objeto arquitetônico (SOARES, 2013). A argumentação do autor no livro “Architecture in the digital age: Design and manufacturing” é a de que a revolução digital trouxe consigo a oportunidade de os arquitetos retomarem sua influência no campo da construção, adotando o papel de “master builders”. A utilização desse termo indica um retorno das funções pré-renascentistas do mestre de obras, entidade responsável por comandar os artesãos e acompanhar todos os aspectos da construção de um edifício. Não por acaso, o surgimento da figura do arquiteto como profissão intelectual e seu consequente afastamento do canteiro de obras se deu com o advento do desenho em perspectiva, retomado por Brunelleschi durante o Renascimento. Essa proposição pode ser melhor entendida sob a perspectiva da influência do desenho técnico sobre a organização do trabalho, discussão abordada por Sérgio Ferro em “O Canteiro e o Desenho”.
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Antes do Renascimento, visto que a forma final do edifício não era representada a priori, os artesãos trabalhavam com certa autonomia pois eram os detentores do conhecimento específico de suas especialidades. Desse modo, para que o mestre de obras tivesse algum controle sobre a produção, era preciso acompanhar de perto o trabalho dos artesãos no canteiro de obras, coordenando os passos seguintes conforme os resultados materiais de cada ciclo de projeto. Com a recuperação das técnicas gregas de desenho em perspectiva, torna-se possível visualizar o edifício por completo, finalizado, comunicando para clientes e construtores o resultado desejado com o processo construtivo. Como consequência, a presença do arquiteto no canteiro de obras se faz menos necessária e o mesmo passa a trabalhar à parte da construção. Esse quadro evolui para a fragmentação do trabalho no campo da construção, dividido em especialidades cada vez menos abrangentes e unificadas pelo desenho. Nesse quadro, o que se questiona é o uso do desenho como instrumento de representação formal que, por ter um caráter técnico inteligível para outras profissões, abre pouco espaço para diálogo. Para ferro, o desenho se apresenta como ferramenta de dominação técnica e social, hierarquizando os processos de concepção e construção na arquitetura. A fragmentação do trabalho impede que os construtores tenham uma visão geral da produção, especializando-os em uma pequena parte do processo que, isolado, é inútil. Assim, ficam dependentes do arquiteto, que possui o domínio da linguagem técnica, para construir. Paralelamente, apesar de manter a organização de poder sobre o trabalho manual, a divisão entre desenho e canteiro limita
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a produção arquitetônica e a liberdade com que o arquiteto pode experimentar, uma vez que este se afasta das tecnologias de construção e fica restrito às técnicas existentes. Na linha de pensamento proposta por Kolarevic, onde criação e materialização convergem em um “continuum digital”, a fabricação digital se apresenta como oportunidade de reaproximar o arquiteto dos meios produtivos e, assim, ganhar maior independência criativa. Desde o início dos anos 1990, os arquitetos já testavam os limites da fabricação digital no campo da construção, procurando explorar geometrias complexas que dificilmente seriam produzidas com métodos convencionais. Em contraste com as máquinas utilizadas na indústria tradicional, em linhas de produção em massa, as máquinas CNC são adimensionais e reprogramáveis, possibilitando a flexibilização da fabricação. Podem ser produzidos objetos personalizados, na ordem de uma ou pouquíssimas unidades sem o aumento de custo, o que viabiliza a customização em massa. De fato, as tecnologias digitais de modelagem e fabricação possibilitaram a concretização de obras de arquitetura high tech que, apoiadas no potencial de automação inteligente para a geração de variedade formal, têm como foco a produção de edifícios icônicos. Como exemplo, podemos citar o Museu Guggenheim de Bilbao, projetado por Frank Gehry em 1997, cujo design arrojado dirigiu uma atenção desejada à cidade pós-industrial que floresceu como destino cultural e turístico na Europa. Consequentemente, o fenômeno de renovação urbana e desenvolvimento econômico promovido por uma obra singular de arquitetura ficou conhecido como “efeito Bilbao”, reproduzido ao redor do mundo em cidades que procuram atrair turistas e investimentos para se reinventar. 22
Guggenheim de Bilbao, Frank Gehry (1997). Fonte: https://www. guggenheim.org/about-us.
Nesse cenário, usualmente, vemos a aplicação da fabricação digital em obras de grande impacto onde não há restrição de custos, como sedes de bancos, museus e estádios olímpicos, indicando que essas tecnologias ainda não são acessíveis fora do nicho restrito da arquitetura high tech. Em sua tese de mestrado, Marcus Bernardo traça as origens da baixa diversidade produzida pela indústria da construção e aposta na flexibilidade das máquinas CNC para melhor atender às necessidades dos usuários em projetos acessíveis. Para ele, “o discurso da customização surge, antes que para prover mais diversidade no campo da construção, para promover a necessidade de uma nova tecnologia de alto capital na produção de uma arquitetura que se diferencie do restante”. Ademais, a introdução da fabricação digital na arquitetura high tech não alterou a organização da produção, ainda seguindo os padrões industriais tradicionais, utilizando materiais homogêneos, regimes de trabalho padronizados e sendo aplicado no contexto da cidade formal. “E, principalmente, não incorporam o usuário como um produtor, gerando uma diversidade mais ligada às intenções de autopromoção do arquiteto do que às necessidades dos usuários” (BERNARDO, 2014). Essas considerações, somadas ao fato de que a indústria da construção está adotando lentamente as novas tecnologias – o que encarece a produção – apontam para uma projeção onde a arquitetura high tech parece confinada à grandes obras públicas de exceção e não uma alternativa para a produção em escala (FABRÍCIO, 2013). Para Marcio Minto Fabricio, a fabricação digital dificilmente protagonizará uma revolução de base na indústria da construção, devido ao seu alto custo de produção e implantação no mercado atual. Fonseca de Campos e Lopes, em seu artigo “A 23
fabricação digital aplicada à construção industrializada: estado da arte e perspectivas de desenvolvimento”, compartilham da mesma opinião que Fabricio, apresentando como alternativa mais razoável a incorporação das ferramentas digitais na execução de componentes construtivos, e não da edificação inteira. “Essa abordagem, ao que tudo indica, oferece algumas vantagens importantes a serem consideradas, pois permite a integração dos componentes com os demais sistemas construtivos já existentes no mercado, sem a necessidade de grandes adaptações na cadeia produtiva da construção civil, particularmente a pré-fabricação em concreto.” (FONSECA DE CAMPOS; LOPES, 2017). Conforme a hipótese levantada, a pré-fabricação em concreto aparece como meio de introduzir a fabricação digital na produção em escala, tornando essa tecnologia mais acessível para a população em geral. Reforçando tal suposição, durante o levantamento teórico e projetual foram encontrados diversos artigos acadêmicos que, através da utilização dos meios digitais, procuraram explorar a flexibilização da pré-fabricação em concreto.
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Experimento realizado pelo DFLDigital Fabrication Laboratory na Universidade do Porto em colaboração com o DIGI-FAB da FAUUSP onde elementos pré-fabricados em microconcreto foram moldados em blocos de poliestireno cortados a fio quente. O objetivo é disseminar a utilização de formas complexas na arquitetura utilizando a fabricação digital para encontrar uma alternativa economicamente mais viável. Fonte: MARTINS, Pedro Filipe et al. Expanding the Material Possibilities of Lightweight Prefabrication in Concrete Through Robotic Hot-Wire Cutting: Form, Texture and Composition. 2015.
Pesquisa realizada na Graz University of Technology, na Áustria, onde procurou-se criar uma forma adaptável utilizando um braço mecânico para compactar areia. O objetivo do trabalho era explorar a criação de superfícies com curvatura dupla de modo sustentável. Fonte: KLOFT, Harald et al. Process chain for the robotic controlled production of non-standard, double-curved, fibre-reinforced concrete panels with an adaptive mould. 2017.
Pesquisa realizada na Graz University of Technology, na Áustria, que buscou um meio de produzir cascas de concreto de geometria complexa economizando recursos. Para tal, utilizou-se uma mesa de moldagem adaptável que pudesse reproduzir formatos variados. Fonte: PARMANN, Gernot et al. Precast concrete shells: a structural challenge. 2017.
Observa-se que, nesses exemplos, o objetivo é a disseminação das formas complexas na arquitetura. Para tal, explora-se o desenvolvimento de fôrmas econômicas e sustentáveis, tornando a personalização acessível. Nesse contexto, aposta-se na pré-fabricação como agente integrador da fabricação digital e arquitetura, uma vez que esse método viabiliza economicamente a produção de estruturas customizadas e pode ser integrado aos sistemas construtivos convencionais. Assim, como apontado por Fonseca de Campos e Lopes, “No setor da construção civil, e mais especificamente no segmento da construção industrializada, os saltos tecnológicos, habitualmente, se dão por meio de inovações incrementais, ou seja, aquelas baseadas em produtos, serviços, processos, organização ou métodos já existentes, cujo desempenho pode ser significativamente melhorado ou atualizado”. Conclui-se, então, que a fabricação digital, no âmbito da indústria da construção, tem um papel complementar aos processos já existentes, procurando oferecer alternativas para a produção padronizada. O projeto “Calçadas Drenantes” se apoia nesse ponto de vista para o desenvolvimento da proposta, o da fabricação digital como um meio de incrementar a produção de fôrmas para os pré-fabricados em microconcreto, trazendo maior precisão, rapidez e economia de recursos para um projeto feito sob medida. Ainda que o objetivo não seja o estudo de superfícies complexas ou variedade formal, a flexibilidade da máquina CNC será explorada na adaptação do desenho original da fôrma em madeira, verificando o alcance e os limites dessa tecnologia.
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fab labs Um Fab Lab (abreviação do termo em inglês fabrication laboratory) é uma plataforma de prototipagem rápida de objetos físicos e está inserido em uma rede mundial de mais de mil laboratórios. Criados pelo CBA (Center for Bits and Atoms) do MIT (Massachusetts Institute of Technology) como componente educacional e de sensibilização à fabricação digital e pessoal, os Fab Labs têm como objetivo democratizar o acesso à essa tecnologia, conformando espaços de aprendizagem, formação e colaboração. Embora a popularização das ferramentas de fabricação digital seja recente, elas existem há mais de 50 anos no meio industrial. Esses equipamentos foram sofrendo um processo gradual de miniaturização e otimização, culminando no aparecimento das primeiras máquinas de fabricação pessoal no início dos anos 2000. Nesse contexto, a proposta da rede Fab Lab se destaca por tornar acessível um tipo de maquinário que antes era exclusivo ao uso acadêmico ou profissional. Com isso, pretende-se incentivar a apropriação da fabricação digital pessoal pelo público, seja para prototipar uma ideia, aprofundar seus conhecimentos práticos ou desenvolver um projeto dentro da rede colaborativa. Como resultado, a rede atende a um grupo heterogêneo de usuários: empreendedores, designers, estudantes, artistas, makers e hackers, sem distinção de prática, diploma, projeto ou uso. 27
De modo a manter a unidade da rede, todos os Fab Labs devem respeitar a Fab Charter, carta redigida pelo CBA MIT que estabelece princípios comuns aos laboratórios:
A Fab Charter O que é um Fab Lab? Fab Labs são uma rede global de laboratórios locais, permitindo a invenção e fornecendo acesso a ferramentas de fabricação digital.
O que contém um Fab Lab? Fab Labs compartilham um inventário de máquinas e componentes em evolução que auxilia na capacidade básica de fazer (quase) qualquer coisa, permitindo também o compartilhamento de projetos desenvolvidos ali pelas pessoas.
O que fornece a rede Fab Lab? Assistência operacional, educacional, técnica, financeira e logística, além do que está disponível dentro dos laboratórios.
Quem pode usar um Fab Lab? Fab Labs estão disponíveis como um recurso da comunidade, oferecendo acesso livre para os indivíduos, bem como o acesso programado para programas específicos. 28
Quais são as suas responsabilidades? Segurança: não ferir as pessoas ou danar as máquinas Operações: ajudar com a limpeza, manutenção e melhoria do laboratório Conhecimento: contribuir para a documentação e instrução
Quem é o dono das invenções realizadas dentro do Fab Lab? Projetos e processos desenvolvidos no Fab Lab podem ser protegidos e vendidos. O inventor escolhe a maneira como seu projeto será realizado, porém, a documentação do projeto contendo os processos e as técnicas envolvidas deve permanecer disponível para que os outros usuários possam aprender com ela.
Como as empresas podem utilizar um Fab Lab? As atividades comerciais podem ser prototipadas e incubadas em um Fab Lab, mas não devem entrar em conflito com outros usos. Elas devem crescer além do laboratório e beneficiar os inventores, os próprios laboratórios que lhes deram suporte e as redes que contribuíram para o seu sucesso. Fonte: EYCHENNE, Fabien; NEVES, Heloisa. Fab Lab: a vanguarda da nova revolução industrial. Primeira E ed. São Paulo: Editora Fab Lab Brasil, 2013. 74p.
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Lógica de funcionamento de um Fab Lab de acordo com CBA-MIT. Fonte: Fab Foundation, adaptado por Diego Jucá de Lima Oliveira.
Um lugar para compartilhar e implementar projetos
Um lugar para fazer “quase tudo”
Um lugar de aprendizagem e formação
Um lugar para compartilhar recursos e experiência na comunidade
Um lugar para resolver problemas locais
Uma plataforma para a inovação social, digital, artística e econômica
Outra característica comum a todos os laboratórios da rede, além da Fab Charter, é o conjunto básico de equipamentos que constitui o maquinário de um Fab Lab: cortadora vinil, cortadora laser, fresadora CNC e impressora 3D. Essa padronização é importante para o funcionamento efetivo da rede, pois garante a replicabilidade dos projetos compartilhados em qualquer Fab Lab do mundo. 30
Conjunto de máquinas e equipamentos básicos (circulo interno) e complementares (circulo externo) de um Fab Lab. Fonte: adaptado de Diego Jucá de Lima Oliveira.
softwares abertos
livros
eletrônicos cortadora laser
FAB LAB mobiliário apropriado
fresadora CNC
cortadora de vinil
ferramentas
impressora 3D computadores
vídeo conferências compartilhamento de ideias
Ainda que alguns entendam o Fab Lab como um centro de produção personalizado, essa atividade não deve entrar em conflito com os outros objetivos da rede: a função educacional e de pesquisa social. A educação dentro dos Fab Labs é baseada na prática, com a disponibilidade de workshops variados e que não exigem uma capacitação prévia. O tratamento do ensino é horizontal e todos os participantes são encorajados a interagir uns com os outros, abordagem que permite a integração de 31
pessoas de diferentes áreas, idades e classes sociais, com ou sem formação técnica. Em outras palavras, o Fab Lab conforma um espaço de educação não formal, buscando, através da capacitação técnica e da democratização da fabricação digital, combater a exclusão digital. Apesar de todos os Fab Labs seguirem os mesmos valores e possuírem o mesmo maquinário básico, eles podem ser diferenciados em função da sua organização de suporte, dos modos de financiamento e da equipe que trabalha em seu laboratório. Sendo assim, é possível desenhar três categorias de Fab Labs: aqueles que são sustentados por uma universidade ou uma escola, os Fab Labs Acadêmicos; aqueles que têm por vocação o desenvolvimento de produtos, concebidos conjuntamente com empresas, startups, auto empreendedores e makers, os Fab Labs Profissionais; e aqueles que são sustentados por governo, institutos de desenvolvimento e por comunidades locais, os Fab Labs Públicos. Dentre os três, apenas o último é realmente acessível a todos e gratuito na totalidade do tempo. Considerando o cenário trabalhado, onde se pretende cooperar com a rede Fab Lab Livre de São Paulo, vale ressaltar a descrição dos laboratórios públicos para melhor entender seus objetivos: “Sob o rótulo de Fab Lab Público estão os Fab Labs realmente abertos a todos, em lugares totalmente acessíveis e cuja finalidade é dar acesso às máquinas digitais, às práticas e à cultura do movimento maker e da fabricação digital. Estes lugares são vistos como vetores de emancipação e são geralmente apoiados por iniciativas pública ou privada, ou mesmo pela mescla da duas. (...) O objetivo é que os usuários descubram as tecnologias, se capacitem e passem a trabalhar em projetos colaborativos. Na maioria dos casos, os projetos en-
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volvem problemática local e são desenvolvidos através de uma lógica de emancipação” (EYCHENNE e NEVES, 2013). Segundo o trecho destacado, a intenção de um Fab Lab Público está em promover inovação social com impacto local, estando localizado, preferencialmente, em espaços próximos da comunidade. Em sua tese “O uso da prototipagem e fabricação digital no ambiente Fab Lab”, Diego Oliveira visitou e entrevistou funcionários de três Fab Labs brasileiros com o objetivo de investigar a contribuição dos mesmos para o processo de desenvolvimento de produto. Dentre os laboratórios analisados, dois estão inseridos na categoria de ‘Fab Lab Profissional’ – o BSB de Brasília e o Garagem de São Paulo –, e o terceiro segue o modelo da categoria ‘Fab Lab Acadêmico’ – o Pronto 3D de Florianópolis. A conclusão alcançada por Oliveira sobre esse assunto é que a aprendizagem social dentro dos Fab Labs estudados não amadureceu o suficiente e aparentemente parece receber pouca reflexão explícita quanto ao posicionamento dos Fab Labs dentro da comunidade e do desenvolvimento social. Por se tratar de um fenômeno recente no Brasil, os laboratórios ainda se encontram em uma fase inicial sobre sua própria sustentabilidade, adaptando-se, conforme suas necessidades, ao seu próprio modelo de negócios. Compreensivelmente, a ênfase recai em aprender como usar ferramentas e em como desenvolver projetos. Com base nas informações apresentadas, levanta-se a hipótese de que a Rede Pública Fab Lab Livre SP possui um maior potencial de inovação e aprendizagem social em comparação às outras formas de gestão e financiamento. Isso visto que, por serem custeados pelo Poder Público, os laboratórios não precisam se preocupar em prestar serviços para se sustentar,
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CEU TrĂŞs Pontes
Itaquera
Cidade Tiradentes
Jardim Pantanal
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Fab Lab Livre
Mapa do município de São Paulo dividido em zonas (Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro) indicando os Fab Labs Livres da rede pública e o bairro Jardim Pantanal.
liberando tempo e esforço dos técnicos para se dedicar ao desenvolvimento de propostas que estejam vinculadas ao desenvolvimento da comunidade local. Além disso, no caso da rede Fab Lab Livre SP, todos os serviços são gratuitos e as unidades estão descentralizadas no território, tornando as ferramentas de fabricação digital realmente acessíveis a grande parte da população de São Paulo. A Rede Pública de Laboratórios de Fabricação Digital do Município de São Paulo, ou simplesmente Fab Labs Livres SP, teve origem em uma parceria entre a Secretaria Municipal de Inovação e Tecnologia da Prefeitura Municipal de São Paulo e o Instituto de Tecnologia Social. Ao todo, são doze laboratórios espalhados pela cidade, configurando a maior rede de Fab Labs Públicos do mundo. De acordo com seu site oficial, os laboratórios podem ser frequentados por “qualquer pessoa interessada em conhecer as ferramentas de fabricação e ter contato com um ambiente voltado para inovação e desenvolvimento de soluções”. Neles, a cada quinzena são oferecidos cursos e workshops que atendem diversos segmentos do processo de fabricação, desde a concepção até a prototipagem, onde apenas é necessário ter mais de dez anos e um cadastro no site para se inscrever. O crescimento vertiginoso da rede Fab Lab em todo o mundo é resultado da recente popularização das tecnologias digitais de modelagem e fabricação, fenômeno que têm despertado o interesse de diversos setores do conhecimento, alimentando a ideia de uma possível terceira revolução industrial. Os mais utópicos almejam a total descentralização dos meios produtivos, um cenário no qual o produto é fabricado conforme a demanda de consumo em unidades de produção flexíveis.
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Oriundo da cultura DIY – Do It Yourself, ou faça você mesmo em português –, o movimento maker se apoia nas máquinas de prototipagem rápida e nas plataformas de compartilhamento online para reforçar a ideia de que qualquer um pode construir, consertar, modificar e fabricar os objetos mais variados. A filosofia predominante nesse grupo é a da inovação ascendente pelo usuário, que procura transformar consumidores em produtores e promover a inovação pela possibilidade de compartilhamento de ideias em plataformas livres. Segundo esse pensamento, a emancipação do usuário se dá através da tecnologia, em um processo de democratização da produção industrial que visa à abolição da sociedade de consumo. O que Johan Soderberg defende em sua publicação “A ilusória emancipação por meio da tecnologia”, é que apesar dos defensores do movimento maker apostarem na redistribuição da riqueza a partir da disseminação da fabricação digital, empresários e empreendedores estão se apropriando das novas tecnologias para gerar lucro dentro do mercado capitalista. “Eles planejam produtos ‘prontos para imprimir’, que serão comprados como bens de consumo; a própria máquina só poderá fabricar objetos previstos no catálogo” (SODERBERG, 2013). A ideia de uma possível subversão das organizações de produção cai por terra, uma vez que essas já absorveram as ferramentas de fabricação pessoal e as transformaram em mais um produto de consumo. O mesmo alerta pode ser feito sobre os Fab Labs, já que é difícil dissociá-los do movimento maker. O lema frequentemente aplicado para esses laboratórios é “aqui se pode fazer ‘quase’ qualquer coisa”, extremamente atraente e que reforça o caráter emancipatório ambicionado. Entretanto, sem o correto direcionamento, “não se pode excluir a possibilidade de que se termine em uma fabricação massiva de bibelôs” (BONSIEPE, 2015). 36
Dentro do contexto deste trabalho, reforça-se a posição de que a inovação social surge a partir de uma demanda da população e que a tecnologia se coloca como um instrumento através do qual a mudança pode ser alcançada. A utilização dos Fab Labs Livres SP em consonância com projetos desse tipo tem o potencial de explorar novas frentes de trabalho que procuram melhorar a qualidade de vida da população periférica, indo de encontro com o objetivo emancipatório proposto inicialmente. A emancipação, como foi discutida ao longo do projeto, seria o reconhecimento da população periférica de seu poder transformador, de se enxergar como protagonista no processo de requalificação do habitat onde vive. Assim, o papel do arquiteto é o de desenvolver a tecnologia que coadjuvará a transformação social.
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prototipagem e produção das fôrmas
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O trabalho realizado pelo DIGI-FAB durante o projeto “Calçada Drenantes” foi uma experiência bastante oportuna para refletir sobre o impacto dos meios digitais no desenvolvimento de um produto. O objetivo, nesta seção, é discutir os resultados obtidos ao longo do processo com base nas reflexões teóricas apresentadas e nas conclusões obtidas em conjunto com o grupo de pesquisa.
digi-fab Localização: Fab Lab SP - o primeiro laboratório de fabricação digital do Brasil filiado à rede mundial -, situado no Laboratório de Modelos e Ensaios (LAME) da FAU USP.
Coordenador: Prof. Dr. Paulo Eduardo Fonseca de Campos
Integrantes do projeto “Calçadas Drenantes”: Daniella Yamana Eduardo Lopes Emílio Leocádio Jr. (Chefe técnico do LAME) Fernando Palermo Simões Henrique Dias Jady Medeiros
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costelas de sustentação
peça C da fôrma (contramolde)
chapas de superfície
1
2
3
peça b da fôrma (molde)
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Esquema de montagem da fôrma para o módulo de galeria simples ( 1 ) desenvolvido pelo grupo de pesquisa DIGI-FAB.
Como foi apresentado anteriormente, o objeto de estudo inicial deste projeto de extensão é o sistema construtivo denominado “Calçadas Drenantes”, composto por dois elementos principais: a galeria, peça pré-fabricada em microconcreto de alto desempenho, e a calçada propriamente dita, peça feita de concreto convencional. O projeto original concebido no Uruguai consiste em três módulos de galeria: simples ( 1 ), com uma boca de lobo ( 2 ) e com duas bocas de lobo ( 3 ); que, montados com juntas a seco em um sistema de encaixe ponta e bolsa, configuram um sistema de galerias de micro drenagem superficial de águas pluviais. O processo de recuperação e implantação do projeto na cidade de São Paulo se deu com a incorporação dos instrumentos de fabricação digital na produção da fôrma, originalmente em carpintaria tradicional. Levando em consideração diversos fatores como a dimensão dos elementos em microCAD, resistência estrutural da fôrma – necessária para a posterior vibração na concretagem – e possibilidade de replicação dos processos, a fresadora de grande formato foi a máquina escolhida para a usinagem do produto final. Além disso, procurou-se manter a materialidade da fôrma, devido à tradição brasileira em se utilizar madeira para moldar concreto armado in loco, adotando compensado naval de 18 mm de espessura como material-base de ótima resistência estrutural e impermeabilidade. Com referência no projeto uruguaio, o primeiro passo foi o redesenho e prototipagem da fôrma para o módulo da galeria pré-fabricada em microconcreto sem nenhuma abertura, de geometria mais simples. A lógica aplicada era que, a partir desse modelo básico, seriam trabalhadas as galerias mais complexas, como os módulos que possuem boca de lobo.
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Os protótipos iniciais foram feitos com auxílio do programa de modelagem digital 123D Make, capaz de transformar objetos tridimensionais em ‘fatias’ 2D planificadas para a máquina de corte a laser. Entretanto, os modelos de organização das ‘fatias’ oferecidos pelo programa não eram os mais estruturalmente eficientes para o projeto, resultando no abandono dessa abordagem. Desse modo, o grupo de pesquisa DIGI-FAB se dedicou ao desenho manual da fôrma, utilizando-se do programa de computador Rhinoceros, “software de modelagem de superfícies NURBS (Non-Uniform Rational B-Splines) que possibilita a proposição e visualização de superfícies de múltiplas curvaturas a partir da modelagem através de pontos de controle” (SOARES, 2013). Simulando o projeto em carpintaria tradicional, a fôrma foi separada em duas peças, nomeadas de peça C e peça B, que facilitariam o saque do elemento em microCAD depois de concretado. As peças foram desenvolvidas separadamente, porém seguindo a mesma lógica estrutural de encaixe ‘macho-fêmea’ nas costelas de sustentação. Para a junção das partes da fôrma durante a concretagem foi pensado um sistema de fixação por barra roscada. Ao finalizar a modelagem digital da primeira proposta, foram realizados diversos modelos físicos em escala reduzida na cortadora a laser que ajudaram a refinar o desenho do produto e seu funcionamento. Os primeiros, na escala 1:6 e de papelão, foram importantes no entendimento da estrutura como um todo, no estudo da quantidade de peças e montagem. Além disso, por serem leves e pequenos, foram levados para diversas reuniões externas e apresentados para o público geral: professores, estudantes, moradores das comunidades-alvo, líderes comunitários e profissionais de outras áreas. Nessas situ42
Protótipo em papelão da peça B feito com o programa 123D Make.
Protótipo em papelão das modelagens iniciais feitas no programa Rhinoceros.
ações foi possível averiguar a qualidade do modelo físico como meio de comunicação, facilitando o entendimento do produto em comparação com a apresentação de desenhos técnicos. Observou-se também que, ao interagir com o modelo, várias pessoas encaixavam as peças C e B com as costelas intercaladas, e não sobrepostas como havia sido proposto. Tal comportamento deu indícios de que era necessário rever o método de união das partes, adotando uma solução mais intuitiva na montagem.
Protótipo em MDF da peça B.
Montagem do modelo em MDF da modelagem utilizada no protótipo 1:1.
Os protótipos seguintes, na escala 1:3 e de MDF (Medium Density Fiberboard) – mais semelhante ao compensado –, simularam o comportamento estrutural do material e dos encaixes nas costelas que, depois de apresentarem um bom desempenho funcional, indicaram a continuidade dessa proposta. Em contrapartida, esse ensaio expôs de forma clara um problema comum à produção de fôrmas de madeira com ângulos obtusos ou agudos: o topo das chapas que formam a geometria da galeria em microconcreto precisa ser aplainado em ângulo, para que se crie um encaixe preciso, apropriado para a concretagem. Devido à pequena dimensão das placas de MDF na escala adotada para o modelo, o chanfro foi feito com uma lixadeira elétrica, processo manual e demorado que resultou em ângulos aproximados e encaixes sem precisão. Desse modo, ficou evidente a necessidade de se resolver o chanframento na própria fresadora, uma vez que a realização desse trabalho manualmente demandaria um esforço adicional que contradiz a introdução da fabricação digital no projeto. Analisando o processo de projeto até então, é possível reconhecer a prototipagem rápida como prática determinante no desenvolvimento do produto. A elaboração de modelos físicos, além de auxiliar a análise formal e funcional do objeto, facilita 43
120o 60o
100o
170o
100o
galeria original
120o
120o
120o
galeria redesenhada
galeria redesenhada
Esquema de corte e montagem da fôrma com fresa de ângulo 60o. Em seguida, o redesenho da galeria de acordo com a angulação da fresa.
Protótipo realizado na impressora 3D para a galeria redesenhada.
a interação do mesmo com o público-alvo e profissionais de outras áreas do conhecimento, como foi observado nas visitas das comunidades envolvidas ao Fab Lab SP da FAUUSP e nas reuniões com membros do setor público e sociedade civil. Ademais, a utilização das máquinas de fabricação digital durante o desenvolvimento do projeto ajuda a reconhecer o processo de produção como um todo, incorporando aspectos técnicos e de funcionamento do equipamento no design final do objeto. Visto que a introdução das tecnologias digitais de modelagem e fabricação no projeto visam alcançar uma produção mais eficiente das fôrmas – precisa, rápida e com economia de recursos –, considerou-se a hipótese de que os moldes de madeira sejam usinados integralmente na fresadora CNC, saindo prontos para a montagem. A solução encontrada foi a adequação da geometria da galeria pré-fabricada em microCAD para que se pudesse utilizar uma fresa de chanfro angular na realização do corte das placas. Após alguns estudos com fresas de chanfro comerciais, verificou-se que a de 60 graus de ângulo seria a mais adequada para o material base escolhido, compensado de 18 mm, sendo capaz de atravessar toda a placa e realizar o corte. No entanto, ao estabelecer um ângulo fixo de usinagem para os topos das chapas de superfície, altera-se a geometria final do elemento pré-fabricado. Com a fresa de ângulo 60 graus, o formato resultante da galeria possui paredes paralelas, impossibilitando o saque da peça após a concretagem e, consequentemente, inviabilizando a proposta. Foi cogitado encomendar uma fresa angulada feita sob medida, que possibilitasse uma geometria com ângulo de saque, uma vez que ela otimizaria a fabricação da fôrma em tempo e precisão. No entanto, utilizar uma fresa sob medida dificultaria a replicabilidade do projeto em outros laboratórios, além de encarecer o produto final. 45
Mantendo o formato original da galeria, as chapas de superfície da fôrma teriam que ser usinadas tridimensionalmente, com uma fresa ball-end que oferece um melhor acabamento na superfície do material debastado. Contudo, essa solução é dificultada pela lógica de funcionamento da máquina, de três eixos, onde a fresa está fixa perpendicular à superfície do material base. Com esta configuração, é impossível usinar ângulos agudos em relação ao plano de trabalho, limitando a geometria das peças. A única solução encontrada para esse caso é, sempre que existir ângulos agudos de chanframento coexistindo com ângulos obtusos, virar a peça e iniciar um novo processo de usinagem. Esse método, apesar de ser integralmente realizado na fresadora de grande formato, não garante precisão na usinagem da peça, dependendo da capacidade do operador em seguir as instruções e lidar com ajustes. Em outras palavras, não é a solução ideal. Sem maiores avanços, decidiu-se iniciar a prototipagem na escala 1:1, esperando que a interação com o produto na escala real oferecesse uma nova perspectiva sobre a questão. Para a fabricação das costelas das peças B e C foram necessárias 3 placas (1,10x2,20m) de compensado naval plastificado com 20 mm de espessura, material doado pelo Instituto Alana, e todo o processo foi realizado na fresadora de grande formato do Fab Lab SP. O programa CAM utilizado foi o VCarve, já existente nos computadores do laboratório, que é próprio para a usinagem 2D. Nesse primeiro momento foram utilizadas duas fresas diferentes, uma para marcação das peças e outra para o corte efetivo. Em seguida, as peças foram lixadas para retirar as tabs – pontes de conexão entre a placa e a peça que estabilizam o material durante a usinagem – e melhorar o acabamento. A montagem, com o uso de um martelo de borracha, foi facilitada pelo ensaio feito anteriormente com o modelo em 46
Esquema representando os limites de usinagem de ângulos agudos em relação ao plano de trabalho na fresadora CNC.
60o (agudo)
120o (obtuso)
Usinagem das costelas na fresadora de grande formato do Fab Lab SP (LAME).
Montagem das costelas de sustentação (peças B e C).
escala, usado como referência durante todo o processo. No geral, a produção das costelas de sustentação foi bem-sucedida, com o apontamento de alguns detalhes a serem corrigidos nos protótipos futuros. O passo seguinte seria a usinagem das chapas de superfície, cujo processo de produção ainda não havia sido decidido. Percebendo as limitações da fabricação digital através da prática, foi possível desmistificar alguns aspectos dessa tecnologia que está cada vez mais popular. Primeiramente, as máquinas CNC são bastante flexíveis, mas não o suficiente para produzir ‘quase’ tudo – como é anunciado nos slogans de alguns Fab Labs. No caso deste experimento, apesar de ser possível executar a fôrma integralmente na fresadora CNC, ela nunca sairá pronta para a montagem – como era esperado no início do projeto. Além da “gambiarra” proposta na produção das chapas de superfície – virar a peça durante a usinagem para quando existir ângulos agudos e obtusos de chanframento –, existe sempre um pós-trabalho a ser realizado quando se trata de fabricação digital. Seja o lixamento de peças, aplicação de vernizes ou pequenos ajustes manuais, dificilmente o produto é finalizado pela máquina. Isso pois, as ferramentas de fabricação pessoal disponíveis nos Fab Labs ainda não alcançaram um nível de refinamento apropriado para produtos finais de mercado, sendo mais adequados para o nível de teste e protótipo. Dando continuidade à elaboração do protótipo – visto que a ideia inicial era encarar a fabricação digital como um incremento da produção em carpintaria tradicional, otimizando os processos e os resultados –, a sugestão foi executar as chapas de superfície manualmente na marcenaria do LAME e com o auxílio dos técnicos do laboratório. Com isso, seria possível observar a técnica utilizada e, a partir dela, procurar soluções com base nos meios digitais. 47
Nesse momento aflora a discussão dentro do grupo de pesquisa sobre as limitações da máquina CNC dentro do projeto, uma vez que a produção das chapas de superfície na serra circular pareceu mais eficiente do que a produção na fresadora de grande formato. O maior questionamento era a utilização de uma máquina de alta potência para a usinagem de geometrias simples, considerando que as chapas são retangulares, em sua maioria, com algumas bordas chanfradas. A contrapartida oferecida era a de utilizar as serras circulares de marcenarias localizadas no entorno do canteiro, criando um intermédio com produtores locais e reforçando o vínculo com a comunidade na qual o projeto está inserido. A questão que fica no ar é, se as chapas de superfície já serão feitas em carpintaria tradicional, porque não a fôrma inteira? Se existirem carpinteiros especializados em fôrmas de concreto na comunidade que estariam dispostos a trabalhar no projeto, qual é o ganho em inserir a fabricação digital no processo? Particularmente, acredito que o sistema construtivo pode ser realizado da forma mais viável para a comunidade-alvo, com fôrmas realizadas integralmente na fresadora, parcialmente ou até feitas em parceria com marcenarias locais. Entretanto, o objetivo principal do “Calçadas Drenantes” não é apenas a produção dos elementos em microconcreto de alto desempenho, mas também a transferência de tecnologia. Como foi comprovado nos diversos protótipos realizados, a lógica file-to-factory é bastante efetiva: os desenhos eram realizados diretamente em softwares CAD, processados por softwares CAM e materializados em máquinas CNC. O encurtamento do caminho entre concepção e produção pode, assim, facilitar a apropriação dos processos de produção pelos moradores das comunidades – hipótese que ainda precisa ser 48
Produção das chapas de superfície com ferramentas de marcenaria e com o auxílio do chefe técnico do LAME.
avaliada com o andamento do “Calçadas Drenantes”, uma vez que não é possível prever como será a adaptação deles com os meios digitais de modelagem e fabricação. Adicionalmente, não se descartam as vantagens de se trabalhar em rede, seja no compartilhamento do arquivo digital para outras comunidades em situação de risco, seja na aproximação dos moradores de bairros periféricos com os Fab Labs Livres SP e a expectativa de criação de novos projetos que tenham compromisso com o interesse social da comunidade.
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sistemas construtivos propostos
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jardim pantanal Como produto final deste trabalho, buscou-se aprofundar o desenvolvimento do sistema construtivo “Calçadas Drenantes” a partir de sua implantação na comunidade-alvo, o bairro Jardim Pantanal. Para a construção de uma proposta viável e adequada à realidade do território, foram realizadas diversas visitas de campo com o acompanhamento dos funcionários da Associação de Moradores e Amigos do Jardim Pantanal (AMOJAP). A interlocução com esta liderança local, estabelecida através do ZL Vórtice, foi essencial para o reconhecimento das demandas específicas do Pantanal e para melhor entender as dinâmicas urbanas do bairro, principalmente em relação às enchentes. Paralelamente, fez-se uma leitura complementar, com base em referências bibliográficas e estudos acadêmicos que tem como principal objeto de estudo o Jardim Pantanal. O levantamento teórico foi fundamental para contextualizar o surgimento deste núcleo na perspectiva da metrópole, além de evidenciar os diversos atores e interesses que tornam este um território de extrema complexidade. São Paulo é uma cidade imensamente vulnerável quando se trata de inundações, parcialmente por causa de sua localização, na bacia hidrográfica do Alto Tietê, onde o rio se espraia em sua várzea (ZANIRATO, 2011). Entretanto, são fatores como o desmatamento da vegetação ciliar, a impermeabilização do solo e o avanço do tecido urbano sobre os corpos d’água que 51
Mapa do municĂpio de SĂŁo Paulo destacando o distrito Jardim Helena, onde se encontra o bairro Jardim Pantanal.
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pôlder jd. romano
jardim pantanal
estação jd. romano
pôlder vila itaim
estação jd. helena vl. mara
estação itaim paulista
0
Hidrografia
Linha de trem
Rodovia Ayrton Senna
ZCM
Loteamento irregular
250
500
1000
1500m
contribuem para o processo de assoreamento do rio e o agravamento das enchentes (EGUTE, 2016). Nesse cenário, os mais afetados são os moradores de loteamentos irregulares localizados na várzea do rio Tietê que, por não terem condições de morar em áreas de maior interesse imobiliário, passam a ocupar áreas ambientalmente frágeis. Talvez um dos exemplos mais latentes dessa situação seja o Jardim Pantanal, bairro que ganhou manchetes no país inteiro com reportagens que cobriram suas grandes enchentes nos anos de 1992, 1997, 2006 e 2009. Localizado no extremo leste de São Paulo – inserido no distrito Jardim Helena e sob jurisdição da subprefeitura de São Miguel Paulista – o Pantanal possui até hoje condições de moradia bastante precárias e carece de equipamentos e serviços básicos no que se refere à saúde, educação, cultura saneamento e iluminação (SOUZA DA SILVA, 2016). O contexto histórico de formação do bairro coincide com o processo de degradação do rio Tietê, fenômeno agravado pela industrialização e crescimento populacional da capital paulistana no século XX. As margens do Tietê começaram a ser ocupadas pelas primeiras fábricas de São Paulo que, procurando proximidade com as ferrovias, passaram a aterrar os terrenos inundáveis da várzea (ZANIRATO, 2011). Em São Miguel Paulista, a instalação da Companhia Nitro Química na década de 1930 atraiu um grande volume de mão de obra, o que resultou em um aumento populacional determinante no processo de expansão urbana à leste do município. Contudo, a influência da Nitro Química foi além dos bairros operários que surgiram em decorrência de sua implantação, atingindo também zonas adjacentes e atraindo a população para uma área afastada da zona urbana consolidada e desprovida de infraestrutura básica (TONAKI, 2013). 55
Em meados dos anos 1970, com o aumento do valor dos alugueis, muitas famílias de São Miguel Paulista e Ermelino Matarazzo foram despejadas e, sem ter para onde ir, organizaram-se em movimentos de moradia. Constatando que não houve repressão nas ocupações dos mananciais da represa de Guarapiranga e Billings, deram início às ocupações de terrenos localizados entre o rio Tietê e a linha férrea, da estação Engenheiro Goulart até Itaquaquecetuba, área até então considerada rural (SOUZA DA SILVA, 2016). A partir de 1989, o movimento de moradia da região de São Miguel Paulista começa a organizar a ocupação do que viria a ser o Jardim Pantanal. O bairro se desenvolveu de forma autônoma, ocupando o terreno de antigas chácaras com habitações autoconstruídas. A abertura e asfaltamento de ruas, assim como a coleta de lixo, foram conquistas da reivindicação dos diversos coletivos e movimentos sociais do Jardim Pantanal. Mesmo a rede de distribuição de água potável foi uma construção coletiva, em regime de mutirão com parceria da SABESP, onde todo o material utilizado foi adquirido com dinheiro arrecadado entre os moradores. Apesar de todo o esforço e mobilização dedicados à melhora da qualidade de vida da população residente, as benfeitorias não alcançaram todo o bairro, sendo que grande parte das moradias ainda se encontra em condições precárias e insalubres, principalmente aquelas mais próximas do Tietê. A situação se agrava com uma nova onda de ocupações, iniciada em 2013, onde caminhões de entulho passam a aterrar lotes cada vez mais próximos do leito do rio. Para Amanda Souza da Silva, da tese “Jardim Pantanal: atores e interesses, desalento e esperança”, do que se esperava há anos que as moradias seriam provisórias, a dinâmica local demonstra o contrário. O Jardim Pantanal parece ter se incluído 56
Rua Manima, no Jardim Pantanal.
Rua sem nome, acesso principal ao terreno onde será implantado o canteiro experimental.
na dinâmica urbana da metrópole paulistana, em um contínuo processo de consolidação do bairro. Por esse motivo é compreensível que todos os movimentos sociais da região tenham em comum a meta da regularização fundiária, buscando a urbanização do bairro e seu reconhecimento na cidade.
Rua das crianças, trecho próximo ao rio Tietê.
Carcaça de carro e entulho jogados no rio Tietê, Jardim Pantanal.
O maior obstáculo para este objetivo é a localização do Pantanal na APAVRT, Área de Proteção Ambiental Várzea do Rio Tietê – criada pela Lei Estadual nº5.598/87 e regulamentada pelo Decreto Estadual nº 42.837/98 –, cujo propósito é a preservação e recuperação do rio Tietê e seu entorno, visando minimizar o impacto causado pela urbanização. O zoneamento vigente na região do Jardim Pantanal é caracterizado como Zona de Cinturão Meândrico (ZCM) que compreende parte da faixa de terreno da planície aluvial do Rio Tietê e tem como finalidade o controle das enchentes, considerando suas características geomorfológicas, hidrológicas e sua função ambiental. Dentro da ZCM são vedadas novas instalações, obras ou empreendimentos, inclusive habitacionais. A ampliação de obras, instalações ou empreendimentos já existentes ficam condicionadas à eliminação ou redução da sua desconformidade (SOUZA DA SILVA, 2016). Considerando que praticamente a totalidade das habitações do Jardim Pantanal foram construídas após à criação da lei em 1987, pode-se afirmar que a regularização fundiária do bairro, nos moldes da APAVRT, é inviável. De fato, a intensa ocupação das várzeas contribui para a degradação ambiental e assoreamento do rio, resultando em enchentes e alagamentos cada vez mais severos. No entanto, é impossível relevar a consolidação de bairros como o Jardim Pantanal e o histórico de luta dos moradores que querem se manter lá. Procurando um equilíbrio entre o uso habitacional e a proteção ambiental, em 2010 foi proposta a elaboração do Pla57
no de Manejo da APAVRT que sugere a revisão dos zoneamentos e diretrizes vigentes dando maior permissividade do ponto de vista do parcelamento do solo, regularização fundiária, saneamento básico e recuperação urbana (SOUZA DA SILVA, 2016). No caso do Jardim Pantanal, o zoneamento passaria de ZCM para ZRAP, Zona de Reordenamento Social e da Paisagem. Segundo a Fundação Florestal, organização redatora do Plano, a análise da situação deve ir além dos aspectos estritamente ambientais, ampliando o horizonte de leitura do território para as questões socioeconômicas que envolvem os mais diversos níveis de ocupação dos espaços. Para isso, é preciso garantir e promover o uso equilibrado dos recursos naturais, bem como a melhoria da qualidade de vida da população residente. A esperança de regularização do Pantanal está condicionada à aprovação deste documento, que se encontra desde 2014 para análise no Conselho do Meio Ambiente (CONSEMA). Em janeiro de 2017 o Plano chegou a ser aprovado pelo CONSEMA, porém, devido às irregularidades apontadas pelo Ministério Público, o processo se encontra estagnado. Além do Plano de Manejo, outras intervenções de grande porte se articulam no território do Jardim Pantanal, as quais podem alterar a dinâmica urbana do bairro. O projeto de maior impacto é o Parque Várzeas do Tietê, do Governo Estadual de São Paulo, que prevê a implantação do parque linear mais extenso do mundo, com 107 km² de área. De acordo com uma apresentação do DAEE – Departamento de Águas e Energia Elétrica – de junho de 2016, o objetivo é a recuperação de trechos atualmente ocupados das várzeas do rio Tietê para aumentar a capacidade de absorção de água na bacia. Para tal, além da implantação de núcleos de lazer e ciclovias, estão incluídas obras hidráulicas de desassoreamento do rio, canais de circunvalação e pôlderes de contenção. 58
Pôlder Jardim Romano, obra do projeto Parque Várzeas do Tietê. Fonte: http://slideplayer.com.br/ slide/10672681/
Núcleo de Lazer Jardim Helena. Fonte: http://www.daee.sp.gov.br
Após à enchente de 2009, onde os moradores da região do Pantanal ficaram submersos por meses, as obras do Parque foram antecipadas pelo poder público para evitar futuras inundações desse porte. Atualmente estão em fase de conclusão os núcleos de lazer Jardim Helena e Itaim Biacica, ambos adjacentes ao bairro estudado. Conversando com os moradores da região, obteve-se a informação que apenas 4 famílias tiveram que ser removidas para a implantação dos parques, uma vez que no espaço ocupado pelo núcleo Jardim Helena existiam quadras de futebol compartilhadas. Entretanto a ameaça das remoções ainda é latente, considerando que estão previstas outras obras do Parque Várzeas do Tietê na região. Diante desse conflito, os moradores do Pantanal estão exigindo do Governo do Estado informações sobre as desapropriações, como o número de famílias a serem afetadas ou a delimitação de um perímetro de remoção, evitando maiores tensões dentro da comunidade. Outra intervenção pública identificada que pode afetar o Jardim Pantanal é o Renova São Paulo, concurso de projetos de arquitetura e urbanismo promovido pelo governo municipal com foco em requalificação urbana e habitação de interesse social de assentamentos precários. O Renova SP selecionou 17 projetos arquitetônicos para 22 perímetros, sendo que Jardim Pantanal estava inserido no Lote 17 chamado Água Vermelha 2. O vencedor deste Lote foi o projeto da equipe libeskindllovet arquitetos, que teve como ideia a recuperação e a regeneração das áreas inundáveis ao longo do rio Tietê. Assim, busca a recuperação de sistemas naturais existentes reinterpretados, urbanização de favelas, melhoria da acessibilidade geral conectando as ocupações preexistentes com a cidade e as novas propostas, a criação de um sistema de espaços públicos e pólos de centralidade (RENOVA SÃO PAULO, 2011). 59
Segundo Souza da Silva, existe uma grande mobilização no bairro para o acompanhamento desse projeto, que implica também em remoções. Dado que a zona de projeto pertencia a uma Macrozona de Proteção Ambiental, a qual previa densidade muito baixa, foi uma decisão de projeto realocar um grande número de domicílios para outras regiões. O que se sabe até o momento em relação à implantação do projeto Renova São Paulo no Jardim Pantanal, é que ainda não foram iniciadas as intervenções na região e que também não ocorreram remoções. Porém, além da nova onda de ocupações, o zoneamento municipal vigente inseriu grande parte do bairro em uma ZEIS 1 (Zona Especial de Interesse Social), o que provavelmente trará novas implicações para o projeto ser aplicado.
Implantação da proposta para o lote Água Vermelha 2 da equipe libeskindllovet arquitetos. Fonte: http://www.lla.arq.br/
calçadas drenantes Dando continuidade ao trabalho desenvolvido, foi definido o perímetro do que os moradores reconhecem como Jardim Pantanal. A partir das indicações verbais dos funcionários da AMOJAP, o bairro está localizado entre os dois núcleos de lazer do Parque Várzeas do Tietê – Jardim Helena e Itaim Biacica – e delimitado pela rua Erva do Sereno. É interessante apontar que, antigamente, toda a região da várzea era considerada Jardim Pantanal – desde a União de Vila Nova, até o Jardim Romano – sendo que alguns veículos de comunicação ainda utilizam o termo para se referir a esses núcleos. Conforme iam sendo regularizados, os bairros adotavam outros nomes e passavam a rejeitar o rótulo de Pantanal, já que o mesmo carrega na palavra a conotação de terreno inundável e eles, depois de urbanizados, não inundavam mais. Como resultado, o que se reconhece como Jardim Pantanal atualmente é a área mais negligenciada pelo poder público e a que mais sofre com as enchentes do verão paulistano. Dentro desse limite, vivem 6,4 mil famílias – informação verbal provida pela AMOJAP –, a maioria de origem nordestina, sendo que algumas estão no Pantanal há mais de 30 anos. Como foi observado durante as visitas de campo, os moradores antigos são os mais ativos nos movimentos sociais, demonstrando um enorme sentimento de pertencimento e envolvimento na luta pela consolidação do bairro. Ainda assim, a luta pela regula61
núcleo jd. helena
jardim pantanal
núcleo itaim biacica 0
Hidrografia
Parque Várzeas do Tietê
0,1
0,3
0,6km
Imagem de satélite com limite do bairro Jardim Pantanal (em branco, no centro), conforme as indicações dos moradores.
rização fundiária é o objetivo comum de todos os moradores, reflexo do desejo de permanecer na região mesmo com toda a precariedade relacionada à ocupação da várzea. Enquanto o bairro não é regularizado, estando dependente da aprovação do Plano de Manejo para tal, dificilmente o poder público intervirá no sentido de trazer benfeitorias que solidificam um assentamento informal em área de proteção ambiental. Contudo, ano após ano o bairro é afetado pelas inundações de dezembro/janeiro, numa perspectiva desanimadora de agravamento das condições climáticas e seus impactos na população. De acordo com Nayara Egute em sua tese “Quando a água sobe: análise da capacidade adaptativa de moradores do Jardim Pantanal expostos às enchentes”, é provável o aumento da frequência e intensidade das inundações, decorrentes de maiores volumes de precipitação de chuvas previstos nas projeções dos cenários de alterações climáticas no mundo e no Brasil para os próximos anos. Nesse cenário, é inviável adiar o atendimento do bairro por infraestrutura básica, como calçamento de vias, saneamento básico e drenagem de águas pluviais, colocando em risco a saúde e o bem-estar de milhares de famílias. O projeto “Calçadas Drenantes”, portanto, propõe uma intervenção que visa uma melhoria paliativa, porém efetiva, nas condições urbanas do Pantanal. O sistema construtivo proposto, formado por elementos pré-fabricados em microCAD, é bastante resistente e poderia ser adotado como medida permanente. Entretanto, por se tratar de uma região em constante mudança – tanto por causa das novas ocupações, como pela possibilidade de implantação de projetos públicos –, a modulação e leveza das peças permitem a desinstalação e até o reaproveitamento da infraestrutura.
63
0
Hidrografia
Ruas asfaltadas
0,1
0,3
0,6km
Levantamento das ruas asfaltadas no bairro, feito com o auxílio da ferramenta Google Earth/ Maps.
Até então, o grupo de pesquisa e extensão trabalhava apenas na produção das peças pré-fabricadas e na perspectiva de colaboração com os moradores do Pantanal e a rede Fab Lab Livre SP. Porém, já se questionava a introdução desse sistema na cidade real, onde existem obstáculos, curvas e esquinas que não haviam sido levados em consideração. Desse modo, propôs-se a implantação do “Calçadas Drenantes” na comunidade-alvo como um estudo de viabilidade do projeto, onde se procurou verificar as dificuldades oferecidas pela configuração urbana do bairro e, assim, complementar o sistema para torná-lo aplicável dentro e fora do Pantanal. Para a escolha de via de estudo foram levantadas todas as ruas asfaltadas existentes no bairro. A existência de poucas é um reflexo da precariedade do território, circunstância que limita o acesso de transporte público, veículos de resgate e coleta de resíduos. Em conversa com os moradores, foi relatado que até mesmo as peruas escolares estavam se negando a entrar no bairro, devido à péssima qualidade das ruas. Como resultado, a via escolhida foi a rua Manima, uma das primeiras a ser ocupada no final da década de 1980. Seu traçado atravessa todo o bairro, configurando um eixo de conexão entre o núcleo de lazer Jardim Helena e o terreno disponibilizado para a implantação do canteiro experimental previsto. A opção se deu pelo fato de que, apesar de ser uma via estrutural na escala local, com comércios movimentados e trânsito intenso de veículos e pedestres, em sua superfície ainda é visível o entulho dos aterros realizados três décadas atrás.
Rua Manima, eixo entre o núcleo de lazer Jd. Helena e o canteiro experimental (pin point).
65
Focos de empoçamento e lama na rua Manima dificultam a passagem de pedestres e veículos.
Em visita à rua escolhida, foi possível verificar a existência de diversos problemas relacionados à falta de infraestrutura, como os vários focos de empoçamento, a irregularidade do piso e a exposição da tubulação de água potável que, devido ao desgaste das conexões flexíveis, apresentava pontos de vazamento e contaminação. A partir desse quadro de insalubridade, o projeto teria como objetivo, mais do que criar um sistema de micro drenagem, prover caminhos secos e acessíveis para os pedestres, providenciar uma superfície regular e permeável para o tráfego de veículos e realocar a rede de distribuição de água que, por estar enterrada muito próxima da superfície, fica vulnerável ao desgaste provocado pelo uso intensivo da via. Originalmente, no projeto uruguaio, já havia sido levantada a possibilidade de utilização da galeria de drenagem como canaleta de utilidades, abrigando diversas tubulações de infraestrutura urbana. No caso do Jardim Pantanal, como não existe um serviço regularizado de saneamento básico, esse uso se torna vital no panorama da saúde pública, protegendo a rede de distribuição de água e acomodando uma rede de afastamento de esgoto. Assim, além de evitar a contaminação da água potável, isola-se o despejo de águas servidas que atualmente é realizado nos córregos próximos às moradias. Quando não for possível receber a tubulação de esgoto, cujo valor de declividade mínima é maior do que a rede de micro drenagem, a primeira deve ser implantada no subsolo, sob o leito carroçável.
Tubulação de água potável exposta na rua Manima e no córrego adjacente. Furos nas mangeiras permitem a contaminação da água e a transmissão de doenças.
No que tange o tratamento das enchentes, o sistema proposto pode amenizar seus impactos, pois com o arruamento correto e a construção de galerias para a captação das águas pluviais, a vazão excedente pode ser descartada corretamente. Em razão dos diversos aterros realizados com o objetivo de ocupar a várzea, o solo foi impermeabilizado e a topografia da região 67
foi modificada, alterando drasticamente o comportamento das águas. Uma das consequências desse tratamento é a concentração de água nas ruas que, sem ter para onde ir, precisa ser bombeada de volta para o rio. Outro fator causador de alagamentos que pode ser minimizado pelo sistema “Calçada Drenantes” é o refluxo da rede de esgoto em situações de forte chuva que, por estar recebendo interligações irregulares de águas pluviais domésticas, acaba ficando sobrecarregada e extravasando.
0
Rua Manima
Divisor de águas
Caimento da água
50
100
200
300m
Após o estudo do escoamento das águas pluviais conforme a topografia existente, determinou-se o recorte de um trecho para o estudo mais aprofundado da implantação do sistema construtivo. Nessa escala, o projeto tomou proporções de desenho urbano, o que exigiu um maior detalhamento e planejamento na escala do pedestre. A calçada, conforme a NBR 9283 – cancelada em 2014 –, é considerada um mobiliário urbano e, como tal, deve atender a uma série de requisitos de durabilidade, ergonomia e funcionalidade, assegurando a completa mobilidade dos usuários. Mais do que isso, ela também é um elemento de desenho da paisagem, organizando as partes que compõe a via pública e contribuindo para a qualidade espacial.
Estudo de escoamento superficial das águas pluviais conforme a topografia. As águas foram direcionadas aos córregos, rios e áreas alagáveis existentes para a drenagem adequada.
Conforme as orientações presentes no Guia para Mobilidade Acessível em vias públicas, elaborado pela Comissão Permanente de Acessibilidade CPA do município de São Paulo, a largura mínima adotada para a faixa livre de circulação foi de 1,5 metros, a qual acomoda o maior número possível de pessoas andando simultaneamente. Em vias menores, optou-se pela configuração de um calçadão onde a prioridade é o trânsito de pedestres, mas que pode receber veículos ocasionalmente. Considerando o tecido urbano existente, onde as construções não seguem um alinhamento pré-definido, a implantação das calçadas drenantes se deu com a adoção de uma faixa de acomodação. Nela, estão localizados os mobiliários urbanos instalados anteriormente – postes de energia e lixeiras –, podendo servir também de faixa verde, acomodando vegetações novas ou árvores já existentes.
69
0
Hidrografia
25
50
100m
rua manima
0
Via de pedestre
Leito carroçável
Faixa de acomodação
10
25
50m
A
B
implantação vista superior
0
5
15
30m
implantação subsolo
0
5
15
30m
corte A antes
lote
faixa de acomodação
corte A depois
calçada
bloco intertravado (leito carroçável)
0
0,5
calçada
1
2
faixa de acomodação
4m
corte B antes
lote
corte B depois
faixa de acomodação
bloco intertravado (pedestre)
calçadão
0
0,5
bloco intertravado (pedestre)
1
2
faixa de acomodação
lote
4m
boca de lobo
tubulação de água
calçada dupla corte
tubulação de esgoto
Caimento da água
i=2%
i=2%
entrada de água
tubulação de água
calçadão corte
tubulação de esgoto
Caimento da água
tampa em concreto moldado in loco
rua em piso intertravado
esquina isomĂŠtrica
alvenaria revestida com argamassa base em concreto simples
81
tampa em concreto moldado in loco
alvenaria revestida com argamassa base em concreto simples
conexĂŁo em T isomĂŠtrica
tampa em concreto moldado in loco
alvenaria revestida com argamassa base em concreto simples
conexĂŁo angulada isomĂŠtrica
83
As curvas, conexões e esquinas serão realizadas com caixas de alvenaria construídas in loco, solução também adotada pela RENURB na montagem das rampas e escadarias drenantes. A vantagem dessa proposta é a descomplexificação do trabalho, uma vez que se espera utilizar mão-de-obra local e materiais acessíveis. No caso das curvas, levantou-se a hipótese de trabalhar com um “jogo” de peças anguladas que, combinadas, pudessem realizar diversos raios de curvatura. Entretanto, estudos iniciais mostraram que essa alternativa tornava o desenho das vias menos flexível, dificultando sua implantação em um tecido urbano desordenado.
Corte esquemático do sistema com medidas em milímetros.
calçada pré-fabricada em concreto
bloco intertravado
módulo de galeria préfabricado em microconcreto
84
base para assentamento
unidade habitacional Como foi citado anteriormente, a tendência é que as chuvas se tornem mais intensas e mais frequentes nos próximos anos, o que aumenta a probabilidade de ocorrência de grandes inundações como a de 2009. Nessas circunstâncias, o sistema de micro drenagem não é efetivo pois a inundação se dá pela elevação do nível d’água do rio, problema a ser resolvido na escala “macro”. O Parque Várzeas do Tietê, projeto que prevê a preservação de áreas verdes nas margens do rio e diversas obras hidráulicas de grande porte, pode ser considerado uma solução de macrodrenagem, porém sua efetividade ainda não pôde ser averiguada devido a sua recente implantação no Jardim Pantanal.
Garoto caminha dentro d’água durante enchente de 2009. Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2009/12/666408-moradores-de-bairros-alagados-em-sp-enfrentam-mau-cheiro-kassab-anuncia-parque.shtml
Segundo Nayara Egute, que em sua tese entrevistou diversos moradores do Jardim Pantanal com o objetivo de analisar sua capacidade adaptativa em relação às enchentes, a maior causa da inundação de 2009 – e de outras mais – foi o fechamento das comportas na barragem da Penha. Para os moradores da região, as enchentes mais severas são provocadas pelo fechamento da barragem, em uma manobra criminosa do poder público para expulsar a população mais pobre das várzeas. Dessa forma, por mais que existam projetos que visem conter as cheias do rio, o território do Pantanal ainda é a várzea do tietê e, considerando que este é um local de espraiamento natural das águas, é possível que enchentes de grande porte continuem atingindo a população residente, principalmente quando forças externas atuam sobre as causas. Tendo em mente o desejo de permanência e consolidação das famílias do Pantanal, no grupo de pesquisa foi sugerido o desenvolvimento de um sistema construtivo para unidades habitacionais que, ao elevar o piso térreo, oferecessem uma cota segura para o refúgio em situação de risco. A proposta foi baseada no fato de já existirem assentamentos que convivem com a água, como a população ribeirinha do rio Amazonas, as palafitas na Favela do Dique em Santos ou as “wetlands” do sul dos Estados Unidos. A ideia ganhou força com a leitura dos resultados obtidos nas entrevistas realizadas por Egute, onde foi reforçado o impacto das enchentes no agravamento da qualidade de vida da população. De acordo com a pesquisa, 62,9% dos entrevistados – de um total de 35 – tiveram perdas materiais decorrentes das enchentes, principalmente móveis, eletrodomésticos e ma-
86
teriais de trabalho. Desses, 46% não conseguiram recuperar o que perderam pois, mesmo se conseguissem comprar um ou outro item, perdiam novamente na próxima enchente. Outra consequência negativa é o impacto na saúde dos moradores, principalmente em relação aos riscos de contaminação e doenças transmitidas pela água. Dos 35 entrevistados, 13 relataram que eles ou parentes próximos ficaram doentes, sendo as enfermidades mais comuns doenças de pele, febre e leptospirose. A maior parte das pessoas que não ficaram doentes disse que a principal medida foi evitar o contato com a água. Os que tinham que passar pela água fizeram uso de botas ou usavam substâncias químicas como cloro, álcool ou vinagre para a desinfecção (EGUTE, 2016). A partir dessas informações é possível concluir que a elevação das moradias pode amenizar os efeitos negativos das inundações, principalmente em relação à preservação dos bens materiais e da saúde dos moradores. Além disso, no caso de enchentes de longa duração, o afastamento da área habitável da água permite que as famílias permaneçam em seus lares – secos – durante o período de cheia. Segundo Egute, famílias que optaram por ficar em suas casas durante as enchentes chegaram a construir estruturas de madeira similares a ‘pontes’ para se locomoverem sem entrar em contato com a água. À noite, dormiam em cima das mesas, sobre caixas de bebida ou de feira. Os que escolheram sair de seus lares, 57,1% dos entrevistados, têm sua família fragmentada, alguns com membros distribuídos nas casas de familiares e amigos, outros que mantiveram o homem responsável vigiando a moradia enquanto a mulher e os filhos se refugiavam em outro lugar.
87
Protótipo da “Casa tipo Beta-um” realizado durante o Mutirão Cachoeirinha Leste com assessoria técnica da CEDEC EMURB.
O modelo de unidade habitacional referência foi a “Casa tipo Beta-um”, realizado em Vila Nova Cachoeirinha durante o Mutirão Cachoeirinha Leste de 1989. Nele, o sistema construtivo inclui a pré-fabricação de perfis de microconcreto que poderiam ser produzidos seguindo a lógica adotada nesta pesquisa, incorporando novas frentes de trabalho ao projeto. Mantendo o mesmo desenho estrutural, foram realizadas adaptações no sentido de tornar a casa habitável durante uma inundação intensa. Um dos pontos principais foi a elevação das áreas molhadas para o pavimento superior, o que permite a continuidade dos hábitos de alimentação e higienização, dificuldade relatada pelos moradores. Outra alteração significativa no projeto original foi a introdução da circulação vertical no núcleo da casa, possibilitando a implantação da unidade geminada ou em renque, como é comum na região. 88
Moradias próximas ao rio Tietê, limite do aterro de entulho.
Como foi atestado durante as visitas de campo, conforme se aproximam do rio, as casas vão apresentando um maior aspecto de precariedade, tornando-se térreas e com menores investimentos na fachada, culminando na conformação de barracos de madeira/chapas metálicas no encontro com o Tietê. Essas famílias, mais vulneráveis à remoção por parte da prefeitura, têm receio em investir o pouco dinheiro que possuem na reforma de uma construção que pode ser desapropriada a qualquer momento. Na perspectiva de regularização do território, o modelo construtivo proposto pode oferecer moradia digna para aqueles que não tiveram oportunidade de dedicar tempo e recurso na construção de suas casas, configurando um posicionamento de permanência e consolidação do bairro Jardim Pantanal.
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armadura para concretagem in loco
perfil U pré-fabricado em microconcreto
cálice de fundação préfabricado em microconcreto
sapata concretada in loco
pilar + fundação isométrica
laje prĂŠ-fabricada vigota + lajota
viga J prĂŠ-fabricado em microconcreto
viga + laje isomĂŠtrica
91
térreo
térreo + 1 pavimento
térreo + 2 pavimentos
isométrica
isométrica
isométrica
O sistema, formado por vigas e pilares parcialmente pré-fabricados, pode compor arranjos estruturais diversos, contanto que não exceda 3 pavimentos – devido ao dimensionamento da fundação – e siga a modulação projetada – respeitando os limites dos vãos. Uma possibilidade para famílias com menor renda é a construção integral da estrutura de concreto, com ocupação inicial do primeiro pavimento superior, onde está localizada a cozinha, o banheiro e um cômodo. Assim, segundo as necessidades e os recursos, o segundo pavimento superior pode ser ocupado, conformando uma habitação evolutiva. Preferencialmente, o térreo deve abrigar usos externos, como garagem, lavanderia ou área de lazer para evitar danos causados pela água. Entretanto, tendo o morador consciência das consequências, o térreo pode ser ocupado com cômodos fechados e até um comércio familiar, atividade comum nas periferias.
92
unidade habitacional isomĂŠtrica
quadro
de
área
útil
circulação - 22,3
m2
quarto 1
- 12,4
m2
quarto 2
- 12,4
m2
sala
- 12,4
m2
cozinha
- 8,8
m2
banheiro
- 3,0
m2
área total - 71,3
m2
pavimento tĂŠrreo escala 1 : 75
95
primeiro pavimento escala 1 : 75
segundo pavimento escala 1 : 75
97
corte A escala 1 : 75
corte B escala 1 : 75
99
isolada
geminada
renque
tipos de implantação isométrica
corte rua manima antes
101
corte rua manima depois
0
1
3
5
8m
canteiro experimental Por fim, vale destacar o andamento do projeto de extensão e a interlocução com os outros projetos sob coordenação do ZL Vórtice. Como foi dito anteriormente, a implantação desta iniciativa depende da criação de um canteiro experimental que funcionará como espaço de produção, capacitação, educação ambiental e troca de saberes entre técnicos e moradores do Pantanal. O terreno para tal atividade foi cedido pelo Nequinha, eletricista de origem baiana que mora no Pantanal há 26 anos e cuida do lote há 5. Até então, o espaço – uma chácara que abriga uma quadra coberta, uma copa, banheiros e um galpão de materiais de construção – tem sido alugado durante os fins de semana para eventos e festas particulares, mas também funciona como área de lazer para as crianças do bairro e hospeda algumas atividades comunitárias. Desse modo, a diretriz adotada para o desenho do canteiro foi evitar interferir nas atividades existentes, considerando as pouquíssimas áreas de lazer comunitárias do Pantanal, além de preservar ao máximo as características naturais do terreno, uma das poucas áreas verdes restantes na região. Como resultado, resolveu-se ocupar a parte de trás do lote, que possui uma entrada para outra rua e, assim, separando os usos.
105
Hidrografia
Construções existentes
Construções propostas
0
Entradas
25
50
100m
Imagem de satélite com o limite do lote destinado ao canteiro experimental (em branco, no centro).
Vista da área de lazer/uso comunitário da chácara do Nequinha.
Galpão de materiais de construção existente.
Vista da lagoa existente próxima à chácara.
O objetivo é que, inicialmente, o canteiro sirva como espaço de prototipagem dos projetos da proposta geral concebida pelo ZL Vórtice, uma vez que todos possuem um caráter experimental e inovador. Espera-se que o canteiro se torne uma “sala de exposição” dessas tecnologias aplicadas, buscando uma maior disseminação das alternativas tecnológicas desenvolvidas e uma maior atenção do poder público para as questões tratadas no Jardim Pantanal. No quadro atual de escassez de recursos públicos, pode ser benéfico tanto para o Estado, como para a população, a adoção de tecnologias não ortodoxas na melhoramento e reordenamento de assentamentos precários. No que diz respeito ao “Calçadas Drenantes”, como o desenvolvimento das fôrmas ainda está em andamento, as mesmas serão usinadas e montadas no Fab lab SP da FAU USP, enquanto que as peças do sistema construtivo serão concretadas em um galpão a ser construído na chácara. Essa estrutura, que também abrigará a produção dos outros protótipos, será implantada próxima ao portão de entrada do lote, em frente ao galpão já existente pertencente ao Nequinha, para facilitar a carga e descarga dos materiais de construção. Como protótipo, pretende-se construir duas unidades habitacionais geminadas em conjunto com um trecho de calçadas drenantes, simulando uma implantação no tecido urbano. Esse ensaio na escala real servirá de experiência prática na verificação do funcionamento dos sistemas propostos, podendo sugerir alterações que visem um melhor desempenho. Ademais, as
108
casas geminadas receberão um uso comunitário e educacional, com o primeiro pavimento superior reservado para atividades de interesse público, tais como feiras de saúde, reuniões de associações ou até eventos promovidos pela comunidade. Enquanto isso, no segundo pavimento superior se espera instalar um escritório-escola, onde alunos e professores de arquitetura e urbanismo podem aprender na prática os desafios de se projetar na cidade real. Nele, os projetos desenvolvidos podem estar relacionados à implantação dos sistemas construtivos propostos pelo ZL Vórtice, como nos estudos de viabilidade ou na assessoria técnica da construção dos mesmos. Paralelamente, os estudantes podem atender moradores que procuram o serviço de um arquiteto/urbanista. Essa perspectiva trouxe à tona o trabalho desenvolvido durante a pesquisa de iniciação científica “O usuário como protagonista e agente de projeto: das cooperativas de habitação uruguaias ao Byker Wall de Newcastle”, onde se investigou o processo participativo na construção de Byker Wall, conjunto habitacional localizado em Newcastle upon Tyne, na Inglaterra. Projeto do renomado arquiteto e urbanista Ralph Erskine, o conjunto foi construído entre os anos 1960 e 1970, com o propósito de substituir as antigas casas do bairro operário de Byker que se encontravam em condições insalubres. Diferentemente das torres habitacionais modernistas daquela época, “Byker Wall” contou com a participação ativa dos usuários no processo de projeto, método que foi facilitado pela implantação do escritório de Erskine dentro da própria obra.
109
C
implantação canteiro experimental
0
5
10
20m
protótipo calçada
corte C canteiro experimental
unidade habitacional geminada
galpão proposto
portão de entrada
0
2
galpão existente
5
8m
orçamento (canteiro experimental)* protótipo unidade habitacional unidades geminadas (estrutura + alvenaria + caixilhos)
R$ 131 068,00
protótipo calçada drenante calçada drenante (galeria + calçada) 01 unidade 25 unidades
R$ 260,00 R$ 6 500,00
unidade de produção galpão (6 x 4 m) (piso concreto + estrutura metálica)
total
R$ 4 120,00
R$ 141 688,00
*orçamento para a implantação do canteiro experimental estimado a partir de valores da tabela SINAPI (setembro de 2017), contabilizando serviços e mão-de-obra remunerados. 113
Como foi atestado durante o estudo de caso, a participação dos usuários foi mais intensa durante a elaboração do Projeto Piloto, construído no núcleo “Janet Square”, que serviu de referência para o desenvolvimento do resto do conjunto. De acordo com Roger Tillotson, arquiteto da equipe de Erskine, o objetivo era envolver os moradores no processo de forma a extrair a experiência de morar em comunidade em Newcastle. A implantação do escritório dentro do canteiro de obras foi a forma que esses arquitetos encontraram de imergir na comunidade local e manter os residentes de Byker conectados ao projeto. O trabalho de James Longfield traduz a situação encontrada no canteiro de “Byker Wall”, ressaltando o papel do arquiteto-cidadão, aquele cuja abordagem arquitetônica é vinculada e influenciada por seu local de residência. Sobre o arquiteto-cidadão, Longfield explica que para os arquitetos trabalhando em Byker, suas posições como moradores, ou cidadãos de Byker, tornaram-se inseparáveis de suas práticas profissionais. A inserção do seu trabalho na localidade e a participação na vida social da comunidade influenciou a própria expressão dessas práticas. A abordagem de Erskine aponta para uma forma alternativa de prática profissional que opera na sobreposição do papel social do arquiteto como cidadão e da sua identidade profissional. Nela, o arquiteto não pode mais ser apenas um provedor de serviços, ele também é um indivíduo engajado na sociedade. 114
Ralph Erskine com crianças da comunidade local em seu escritório localizado em Byker, 1977. Fonte: James Longfield.
Reproduzindo a experiência de Byker Wall com o escritório in loco, espera-se desenvolver um projeto que seja um reflexo da vivência naquele território. O conceito de arquiteto-cidadão introduzido por Longfield (LONGFIELD, 2014) nos oferece um contexto e um método de intervenção que aproxima a arquitetura da prática social, para além da profissional. Analogamente, esta é a metodologia que almejamos no processo de implantação do canteiro experimental e em todo o projeto “Calçadas Drenantes”, um engajamento social que extrapola o exercício da função profissional e o reconhecimento do nosso papel – e da tecnologia – como coadjuvantes de um processo de transformação social liderado pela população. Para futuras referências, frisa-se que o projeto “Calçadas Drenantes” ainda está em desenvolvimento, e que há muitas frentes de estudo que precisam ser exploradas para uma melhor compreensão do impacto de um projeto desses na realidade do Jardim Pantanal. 115
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