ALCIDES ARGUEDAS, Vingança Aimara (1930)

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VINGANÇA AIMARA Alcides Arguedas El cuento boliviano. 1900-1937 (1964), de Armando Soriano Badani (organizador), Buenos Aires: EUDEBA. Traduzido por Dan Oliveira, janeiro de 2018.

Nasceu em La Paz em 1879 e morreu em Chulumani em 1946. Escreveu as novelas Pisagua (1903), Wata Wara (1904), Vida Criolla (la novela de la ciudad) (1905) e Raza de bronce (1919, que em 2009 foi escolhida como uma das 15 novelas fundamentais da Bolívia), e é autor dos ensaios Pueblo enfermo: contribuición a la psicología de los pueblos hispano-americanos (1909) e Historia general de Bolivia (1921). “Venganza aymara” forma parte de El cuento boliviano. 1900-1937 (1964), de Armando Soriano Badani (organizador), Buenos Aires: EUDEBA.

Inclinou a cabeça, encaixou o chapéu de uma só vez até a nunca e, a passos largos, se distanciou sem cumprimentar, mal-humorado, sombrio. Assim, sempre com a cabeça baixa como um touro sob seu jugo, chegou à sua casa, que estava na costa de Coscochaca, e entrando em seu quarto, decorado com estampas de cor que representavam os episódios da guerra franco-alemã, se deixou cair no leito e afundando o rosto no travesseiro sujo chorou por um largo instante, silenciosamente, entre pequenos soluços. Isso já não tem cura. As palavras de Clotilde tinham sido contundentes: “Serei apenas tua amiga, mas não tua mulher...” Cristo! Isso jamais! Ele a tinha conhecido antes, de menina, quando os pés nus iam buscar água na bilha de Challapampa, parando no cenizal para jogar pedras nos porcos que cheiravam o lixo do rio. Juntos aprenderam a ler na escola, embora a falta de exercícios e os ásperos afazeres da vida lhes fizessem esquecer o aprendido. E enquanto que ele, Juanillo, foi ao ferreiro de seu pai a tirar da


foleira e a queimar as carnes com os salpicões de ferro quente batido na bigorna, ela se meteu a servir na casa de um ricaço, onde conhecera o Chungara, moço de hotel umas vezes, cocheiro outras, vagabundo nas demais. Que era elegante o Chungara e tinha melhor cara que ele, sim, é certo: mas, caramba, era apenas um moço, já ele tinha herdado a oficina de seu pai, ali, no centro da cidade, pro lado da Catedral, e já era um chefe... Todas as curiosidades saíam de suas mãos: ferraduras, chapas, grades de sepulcros, chaves, cadeados. Entre seus clientes estava nada menos que o presidente da República, a cujos cavalos colocava ferraduras... E por acaso com suas próprias economias e poupanças não tinha comprado esta sua casinha de dois pisos com jardim e curral? Claro! E se ele quisesse e lhe apresassem ainda podia comprar uma chácara, porque ali, onde apenas ele sabia, muito oculto, guardava íntegro o legado de sua mãe: anéis com diamantes, brincos com pérolas, pingentes, correntes... Forças? Os seus inimigos podiam atestar que tinha de sobra, às vezes demasiada, e já uma vez esteve a ponto de ir à prisão por ter tentado, em uma rinha e por aposta, alçar de golpe cinco homens juntos: um deles tinha rodado com as costelas afundadas. Claro! Não à toa chega aos 30 anos tendo batido 15 no ferro.... Tudo tinha o Juanillo menos sorte para apaixonar-se. Puxa, como tinha a cara feia! E uma vez levou gelo da Supaya, mas isso não lhe fez desistir: sabia que ela era fácil e virada e logo a tinha chutado. Outra vez, Candelaria, sua namorada, se casou com o rival, enquanto ele peregrinava em romaria por Copacabana. Tampouco desistiu: Candelaria tinha um filho de um ricaço da cidade e não devia ser bom dar carinho a filhos que não são do seu próprio feito... É em Clota que pensava sempre, em Clota, a china que ele viu crescer, desenvolver-se e chegar a fêmea garrida, forte. Tinha não apenas inclinações por ela, senão direito legítimo, porque a malandra lhe tinha prometido casar com ele desde menina e antes de que conhecesse ao Chungara, e só depois... Deus! Isso sim que não permitiria jamais: primeiro degolaria aos dois e depois ele se


mataria!... Roubar, mentir, dar uma facada quando se tem raiva, quebrar por trás os pulmões a um inimigo, jurar em falso... bom, passe, mas não há que brincar com o coração, com o coração!, apenas o que nos faz alegres, que o feio fique bonito, doce o amargo, bom o mau... O coração é coisa de não brincar; é como as andas da Virgem de Asunta, o solo santo... E ainda... Aqui se cortaram as meditações de Juanillo. Algo tumultuoso e estranho sentiu dentro de seu ser, um desejo impreciso de chorar ou fazer chorar... Se levantou de um salto do leito, esfregou os olhos e fixando-os na parede, onde havia cravado uma faca enferrujada, colocou-se a passear na pequena estância... As mãos lhe ardiam, formigavam, e sentia veementes ânsias de acalmá-las com o frio de um aço. Queria espremer, fundir as unhas na carne palpitante, matar. Seu sangue enxerto de índio escravo rebulia tumultuoso dentro de suas veias. E a ideia da vingança, uma sórdida ideia de fazer dano, cometer uma ação feia, se lhe havia clavado fixamente na consciência. Ela era seu todo; nada conhecia senão o amor... E tiravam dele! Por quê? Nada!, porque o outro era mais bonito e tinha melhor cara... Por isso lhe dava direito tirá-la? Isso jamais! Só se tem o direito sobre o que se encontra largado; por isso a Clota era apenas dele; dele, que a havia conhecido de pequena, criado, mimado... Não, por Deus! Iria onde estava o Chungara, lhe falaria tranquilo para que não se chateasse, lhe faria ceder, e se não... Cristo! Correria sangue!... A vida! Para que sem ela? Arrancou a faca da parede, botou seu xale de vicunha no pescoço e... à rua!, à casa do rival! Não andou muito antes de encontrá-lo, na porta de uma bodega, ao pé mesmo de um foco de luz elétrica.

- Escuta, Chungara; tenho que te dizer duas palavrinhas.


Sua voz, rude e áspera, tremia. Chungara se aproximou sorrindo, mas não sem certa inquietude. Vá, que cor estava o rapaz! Parecia que tinha febre!

- O que tu quer? Fala logo, cara; Clota tá me esperando...

- A Clota? Bom, disso vinha te falar! É ela que tu quer?

- Ahhh, olha o cara! E tu não sabe que me caso com a Asunta?

O coração de Juanillo quase parou. Santo! E como apertou a bainha de sua faca, fortemente enfiado dentro do bolso!

- Então é assim, cara? Bom! Mas eu também a quero, sabe?

Chungara retrocedeu um passo, temeroso. Havia visto passar pelos olhos de seu rival um fulgor estranho e, poxa!, tinha que andar com cuidado com Juanillo, a quem facilmente lhe subia o sangue à cabeça. Francamente ele não tinha confiança no carinho de Clota. Notava que ela se esquivava e era desdenhosa. Também ele mesmo não tinha intenções de se casar com ela, porque era solicitado por gente que valia muitíssimo mais que a Clota. Agora ela já nem fazia caso dele. Antes, pelo menos, consentia em baixar à porta da rua quando todo o mundo dormia em casa, e conversavam um bom momento até pegar um frio nos ossos, mas desde algum tempo não apenas não acudia a nenhum encontro, senão evitava encontrar-se sozinha com ele e jamais lhe dizia nada do próprio matrimônio, do que lhe parecia todos os dias mais distante.


- Não sei, mas eu quero... Por ela já esqueci de reunir-me com os camaradas, e meus ajudantes me dizem que me pareço a um animal doente e que perdeu a cor, que não rio e que devo ter maus pensamentos... Ela é minha vida, meu coração, meus braços, meu tudo... Sabe? No outro dia a vi rezando ante a mãezinha da Asunta, na igreja de Churubamba e.... de verdade te juro, cara, Chungara, me pareceu melhor e mais linda que a própria santa... - Não fale assim, cara! – lhe interrompeu o Chungara, assustado pela blasfêmia. - Sim, cara! – insistiu Juanillo, com convicção exaltada – Sim, cara; mais linda e boa!... Quero a Clota pra toda a vida, e... Escuta, Chungara! Não me tires ela, porque se não... te mataria! – soluçou Juanillo com o peito palpitante e apertando fortemente sua arma até incrustar as unhas na palmas da nervosa mão.

Chungara se assustou, mas não quis que parecesse que ele tinha medo. Repousou com voz insegura:

- Me mate, cara, mas eu também a quero...

Um estremecimento sacudiu o corpo de Juanillo. E com voz humilde voltou a rogar-lhe, pegando Chungara amigavelmente pelo braço:

- Veja, Chungara, tô certo de tudo. Não me atentes, cara; me doeria o coração se te fizesse algo, porque tu é meu amigo. Te juro (beijando a cruz da mão), te juro pela mãezinha de Copacabana que vai suceder uma desgraça. Anoite sonhei com touros, já sabe que é


sangue, e esta manhã saiu, voando, um taparacu (borboleta preta) da loja; já sabe que é morte... Me deixa a Clota, Chungara, e seremos amigos ainda mais. Você pode tropeçar com outra melhor e mais bonita; já sabe que tem outras melhores e mais bonitas que a Clota; você tem boa cara, se veste bem, é forte, e eu só me ocupo de trabalhar e dar de comer aos meus órfãzinhos e não quero mais que a ela... Me dá a Clota, Chungara, e te juro que tenha ou não tenha sorte em minha vida, sempre te quererei e te respeitarei, mas se tira de mim, pode ser que sejamos todos desgraçados. Veja-me bem, Chungara; aqui, na luz; estou chorando, e tu já sabe que as lágrimas de um homem são kenchas e trazem desgraças... Me deixa ser feliz com a Clota e escuta meu conselho: não se case com ela. Você seguramente será prefeito e deputado depois, e então que te dê vergonha a Clota, que serviu nas casas... Francamente, cara, Chungara, eu creio que a Clota não te quer. Ela me tinha dito antes.

Chungara se sentiu ferido no mais fundo de seu orgulho, e teria cedido se o outro tivesse continuado rogando com esse tom amigável e sem fazer menção de seu fracasso, mas uivou sua vaidade de bom moço acostumado aos triunfos mulheris e às galantes conquistas de gentes superiores em classe às serventes. E a ideia de ver proclamada pelo rival a vergonha de uma rejeição mortificou seu amor próprio e repôs com arrogância e exaustão:

- Não me quer? Mentira, cara. É a você que essa maldita não quer, e se finge falando que não me quer, é porque eu a desprezo. É roupa velha... - É sério, Chungara? – perguntou, tremendo, Juanillo.

- É sério.


Juanillo levantou a mão e uma centelha se viu surgir dela, rápida e fugaz.

- Então toma!

Foi um golpe brutal, selvagem. O fio penetrou até o cabo no peito do Chungara, que ao cair se agarrou às roupas de Juanillo e deu com ele no solo. Uma mulher que passava, único testemunho do golpe, deu um grito horrível. Correram alguns curiosos e separaram à viva força os dois homens, que se revolcavam por terra. Juanillo se pôs em pé sem cachecol nem chapéu. O Chungara quis fazer o mesmo e só alcançou colocar o joelho na terra e erguer-se sobre suas pernas dobradas. E, olhando com os olhos desorbitados a seu agressor, pôde articular, no meio de dois jorros de sangue negro que se lhe escapavam pela boca, sinalizando a seu assassino:

- Esse..., esse me matou..., esse!

Então veio outro sopro de sangue negro e caiu de bruços no chão. Juanillo quis fugir, mas meia dúzia de braços lhe pararam. Alguns transeuntes, vendo que o homem que jazia no solo se retorcia em soluços de agonia, levantaram seus braços, indignados, contra Juanillo. Então este, inclinando humildemente a cabeça, os olhos afogados no terror e a voz trêmula, disse:

- Sim, eu matei! A Clota me disse para matá-lo... A vadia!


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