stories: all-new tales
Copyright © 2010 by Neil Gaiman e Al Sarrantonio Todos os direitos reservados. Tradução para a língua portuguesa © Regiane Winarski, 2019 Ilustrações de capa "Red Thread" e "Sign of Life" © Jason Limon, 2019 Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião sobre eles.
Diretor Editorial Christiano Menezes Diretor Comercial Chico de Assis Gerente Comercial Giselle Leitão Editores Bruno Dorigatti Raquel Moritz Editores Assistentes Lielson Zeni Nilsen Silva Capa e Projeto Gráfico Retina 78 Designers Aline Martins/Sem Serifa Arthur Moraes Finalização Sandro Tagliamento Revisão Ana Kronemberger Aline T.K. Miguel Jéssica Reinaldo Retina Conteúdo Impressão e acabamento Gráfica Geográfica
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (cip) Angélica Ilacqua crb-8/7057
Seres mágicos e histórias sombrias / organização de Neil Gaiman, Al Sarrantonio ; tradução de Regiane Winarski. –– Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2019. 448 p. isbn: 978-85-9454-097-3 Título original: Stories: all-new tales 1. Contos de terror 2. Histórias de fantasmas I. Gaiman, Neil II. Sarrantonio, Al III. Winarski, Regiane 19-1988
cdd 808.83 Índices para catálogo sistemático: 1. Contos de terror
[2019] Todos os direitos desta edição reservados à DarkSide® Entretenimento LTDA. Rua Alcântara Machado, 36, sala 601, Centro 20081-010 — Rio de Janeiro — RJ — Brasil www.darksidebooks.com
TRADUÇÃO
REGIANE WINARSKI
Para todos os contadores e criadores de histórias que entretiveram o público e se mantiveram vivos, para Alexandre Dumas e Charles Dickens, para Mark Twain e para a baronesa de Orczy e todo o resto, e, acima de tudo, para Sherazade, que era a contadora da história e a história contada.
JOANNE HARRIS
p.37
Incêndio em Manhattan
JOYCE CAROL OATES
p.23
Figuras fósseis
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sumario
RODDY DOYLE
p.13
Sangue
Grupo de Alfaiataria Literária
INTRODUÇÃO
p.9
Só quatro palavras
ELIZABETH HAND p.373
O primeiro voo do Belerofonte de McCauley
p.351 MICHAEL
MOORCOCK
Histórias
p.55 NEIL GAIMAN A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras p.79 MICHAEL
MARSHALL SMITH
Descrença
p.87
JOE R. LANSDALE
As estrelas estão caindo
p.113 WALTER MOSLEY Juvenal Nyx p.141 RICHARD ADAMS A faca p.145 JODI PICOULT Pesos e medidas p.161 MICHAEL SWANWICK Lago Goblin p.173 PETER STRAUB Mallon, o guru p.179 LAWRENCE BLOCK Pegar e soltar p.193 JEFFREY FORD Bolinhas e raios de luar p.207 CHUCK PALAHNIUK Perdedor p.215 DIANA WYNNE JONES O diário de Samantha p.231 STEWART O’NAN Terra dos perdidos p.237 GENE WOLFE Leif no vento p.251 CAROLYN PARKHURST Indisposta p.261 KAT HOWARD Uma vida em ficção p.267 JONATHAN CARROLL Que o passado comece
p.311 TIM POWERS Linhas paralelas p.323 AL SARRANTONIO O Culto do Nariz p.333 KURT ANDERSEN Inteligência humana
p.279 JEFFERY DEAVER O terapeuta
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tim powers Linhas paralelas seriA Aniversário delAs hoje. bem, AindA era dela, Caroleen achava, mas sem BeeVee a ideia de “aniversário” parecia não existir também. Ela podia estar fazendo 73 anos sozinha? A mão direita de Caroleen estava tremendo intermitentemente desde que ela se sentou no sofá-cama da sala cinco minutos antes, e ela ergueu a xícara de café com a mão esquerda. O café estava quente, mas sem gosto, e a mobília da sala — a mesa de centro, a agora inútil televisão analógica cuja antena abandonada parecia orelhas de coelho, a cadeira de balanço ao lado da lareira de tijolos brancos, tudo brilhando no sol, cintilando pela janela leste às costas dela — parecia formada de itens arrumados em uma espécie de diorama de museu; já não havia qualquer movimento possível. Mas ainda tinha a questão da lápide para resolver, nove desorganizadas semanas depois. Quatrocentos e cinquenta dólares por menos de meio metro quadrado de granito entalhado, e a empresa em Nevada não conseguia entender que Beverly Veronica Erlich e Caroleen Ann Erlich tinham a mesma data de nascimento, embora a segunda data embaixo do nome de Caroleen tivesse que ficar em branco por um período indeterminado. A segunda data de BeeVee não foi decidida pelo acaso. BeeVee ingeriu todos os Darvocet e Vicodin da casa quando a dor do câncer, isso se fosse mesmo câncer, tinha ficado maior do que ela podia suportar. Por um ano, mais ou menos, ela sentiu um certo grau de dor — Caroleen lembrava que BeeVee expirava com um ufa! de tempos em tempos, e que a testa dela sempre parecia úmida de suor, e que ela tinha um novo hábito de lamber repetidamente a beirada interna do lábio superior. E sempre ficava mudando de posição enquanto dirigia, e se apoiando no chão ou no volante. Mais e mais, ela passou a contar — as duas passaram a contar — com a pobre e baixinha Amber, a adolescente que morava na casa
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ao lado. A garota ia limpar a casa e fazer compras, e parecia agradecida pelos cinco dólares por hora, mesmo com as críticas generosas de BeeVee sobre todos os trabalhos que Amber executava. Mas Amber não conseguiria lidar com a empresa da lápide. Caroleen se moveu para a frente no sofá-cama, balançou a cabeça para trás e para adiante para ter certeza de que estava com os óculos de leitura e não os bifocais, e abriu o caderno de telefones de plástico marrom. Um lápis prateado curto estava preso por um aro plástico na espiral do caderno, e ela o soltou… …E sua mão direita tremeu para a frente e derrubou a xícara de café da mesa, e o lápis tremeu nos dedos velhos e manchados enquanto a ponta rabiscava o papel. Ela lançou um olhar temeroso e culpado na direção da cozinha no momento anterior à lembrança de que BeeVee estava morta; em seguida, se permitiu relaxar e olhou para o rabisco que tinha feito em cima dos antigos endereços e números de telefone. Estava irregular, mas eram letras cursivas reconhecíveis: Precisodasuaaiuda Na verdade, eram reconhecíveis como a caligrafia de BeeVee. A mão de Caroleen tremeu de novo e rabiscou a mesma sequência espremida de letras no papel. Ela levantou o lápis, adiando todos os pensamentos naquele momento congelado, e depois de vários segundos sua mão teve mais um espasmo, sem dúvida escrevendo as mesmas letras no ar. Seu corpo todo tremeu com um calafrio febril, e ela achou que fosse vomitar; inclinou-se sobre o tapete, mas o enjoo passou. Tinha certeza de que sua mão estava escrevendo essa mensagem no ar desde que acordou. Caroleen achava que BeeVee nunca na vida tinha dito por favor quando pedia alguma coisa a ela — exceto com ênfase irônica. Ela ficou remotamente feliz por estar sentada, pois seu coração batia disparado no peito, e ela estava tonta com o pensamento enorme de que BeeVee não tinha partido, não completamente. Segurou a beirada do sofá-cama, com medo súbito de cair e derrubar a mesa, de rolar contra a cadeira de balanço. O fedor de café derramado estava forte nas narinas dela. “Tá bom”, sussurrou ela. “Tá bom!”, disse ela mais alto. O tremor na mão tinha diminuído, e ela pulou para uma página em branco do calendário na parte de trás do caderno e escreveu tá bom no alto. Os dedos tinham começado a balançar de novo, mas ela levantou a mão como se para afastar a pergunta, hesitante em deixar o lápis trêmulo tocar na página à espera naquele momento. 312
Eu a quero de volta, pensou ela, de alguma forma? Não, não era querer, não era ela, mas… nas últimas nove semanas eu já não parecia existir, sem ela prestando atenção, qualquer tipo de atenção, a mim. Atualmente, não passo de uma amiga imaginária vizinha de Amber, um conceito frágil a ser superado em breve, mesmo por ela. Ela suspirou e levou a mão ao caderno. Por cima do tá bom, o lápis rabiscou: Soubeevee “Meu Deus”, sussurrou Caroleen, fechando os olhos. “Você acha que precisa me dizer?” A mão estava escrevendo involuntariamente de novo, quebrando a ponta do lápis na metade, mas continuando rapidamente até o final, depois fez tudo de novo mais três vezes, só arranhando o papel com a lasca de madeira. Finalmente, sua mão se abriu. Ela jogou o lápis do chão e remexeu entre os frascos laranja de remédios na mesa em busca de uma caneta. Ao encontrar, escreveu: O que posso fazer? Pra ajudar Não conseguiu acrescentar o último ponto de interrogação porque a mão teve outra convulsão, e escreveu: usarseucorpomeconvidaproseucorpo E, um momento depois: desculpaportudoporfavor Caroleen viu a caneta em sua mão escrever as mesmas duas linhas mais duas vezes, depois se recostou e deixou a caneta balançar no ar até que esse surto passasse de forma gradual e sua mão ficasse inerte. Caroleen piscou para afastar as lágrimas dos olhos, tentando acreditar que tinham sido causadas apenas pelos músculos do punho já doloridos. Mas… BeeVee pedir desculpas, e para ela…! Os únicos pedidos de desculpas de BeeVee durante a vida foram hábeis e impacientes: Bem, desculpa se… Os mortos perdem o egoísmo?, questionou-se Caroleen, sua única necessidade sendo a de limitar e dominar lares terrenos? BeeVee havia mantido Caroleen como uma espécie de eu prolongado, e isso resultara em isolamento para as duas; se, de fato, elas tivessem chegado a ser duas nos últimos anos. As gêmeas tinham dois irmãos por aí, e pelo menos umas duas sobrinhas, a mãe delas podia até mesmo ainda estar viva aos 91 anos, mas Caroleen não sabia nada dessas pessoas. BeeVee cuidava de toda a correspondência. 313
Ela escreveu rapidamente na página do calendário: Preciso saber: você me ama? Durante quase um minuto ela esperou, os músculos dos ombros enrijecendo enquanto ela segurava a caneta sobre a página; sua mão se f lexionou de repente e escreveu: sim Caroleen estava arfando e não conseguia ver o papel em meio às lágrimas, mas conseguia sentir a mão rabiscando a palavra várias vezes até esse espasmo também passar. Por que você tinha que esperar, pensou ela, até estar morta para me contar? Mas usar seu corpo, me convida pro seu corpo. O que isso queria dizer? Será que BeeVee tomaria controle dele e algum dia abriria mão desse controle? Eu me importo de verdade?, pensou Caroleen. Fosse como fosse, seria um passo para mais perto da totalidade que Caroleen tinha perdido nove semanas antes. Sua mão estava tremendo de novo. Ela esperou até os primeiros rabiscos terem se expandido no ar para tocar o papel com a caneta. A caneta escreveu: simprasempre Ela moveu a mão para o lado, não queria que os ecos estragassem aquela declaração. Quando a caneta parou, Caroleen se inclinou para a frente e começou a escrever Sim, vou convidar você, mas sua mão assumiu a tarefa e terminou a linha com exaustamaisdepois Exausta? Era extenuante para fantasmas se projetarem tão longe? BeeVee tinha que lutar contra alguma coisa para mover o lápis? Mas, na verdade, Caroleen também estava exausta — sua mão estava doendo. Ela assoou o nariz em um Kleenex velho, os olhos lacrimejando novamente com o cheiro de mentol e eucalipto da pomada Bengay, e se deitou no sofá-cama e fechou os olhos.
umA bAtidA forte nA porta da frente a acordou em um sobressalto, e apesar de os óculos terem caído e ela não saber imediatamente se era 314
manhã ou noite, ela soube que seus dedos estavam tremendo e já havia algum tempo. Ela se projetou para a frente e, com a mão esquerda, enfiou a caneta entre o polegar e o indicador direitos. A caneta começou a atravessar levemente a página do calendário. O rabisco foi mais longo do que os outros — com uma pausa no meio — e ela precisou girar o caderno para manter a ponta na página até que parasse. A batida soou de novo, mas Caroleen gritou “Só um minuto!” e permaneceu encolhida sobre o caderninho, esperando a repetição da mensagem. Não se repetiu. Aparentemente, ela pegou o último eco — talvez só o final do último eco. Ela não conseguia ler o que tinha escrito. Mesmo que estivesse de óculos, também precisaria da luz do abajur. “Caroleen?”, foi o grito que veio de fora. Era a voz de Amber. “Estou indo.” Caroleen se levantou com o corpo dolorido e mancou até a porta. Quando a abriu, se viu apertando os olhos contra a luz do sol que passava pelos galhos do abacateiro. A garota na porta estava de calça de moletom e uma camiseta enorme, piscando atrás dos reluzentes óculos redondos. O cabelo castanho estava preso em um coque no alto da cabeça. “Acordei você? Desculpa.” Ela estava ofegante, como se tivesse vindo correndo da casa vizinha. Caroleen sentiu o ar fresco — com cheiro de pedra aquecida pelo sol e de escapamento de carro — esfriando a cabeça quente. “Estou bem”, disse ela com voz rouca. “O que é?” Ela tinha pedido para a garota ir até lá hoje? Não conseguia lembrar e estava tensa de impaciência para voltar para a caneta e o caderno. “Eu só…”, disse Amber rapidamente, “eu gostava da sua irmã, bem, você sabe que eu gostava, apesar… e eu… eu podia ficar com alguma coisa dela, não uma coisa valiosa, uma coisa para me lembrar dela? Tipo uma escova de cabelo?” “Você quer a escova de cabelo dela?” “Se você não se importar. Eu só queria alguma coisa…” “Vou buscar. Espere aqui.” Seria mais rápido entregar para ela do que propor alguma outra lembrança, e Caroleen não tinha nenhum apego especial à escova de cabelo — a dela era igual mesmo. Ela e BeeVee tinham tudo igual, claro — escovas de dentes, xícaras de café, sapatos, relógios de pulso. Quando Caroleen pegou a escova e voltou até a porta, Amber a pegou e seguiu até a calçada, gritando “Obrigada!” com o rosto virado para trás. Ainda desorientada por causa do cochilo, Caroleen fechou a porta e voltou até o sofá-cama, onde passou a mão pelo cobertor até encontrar os óculos e os colocar no rosto. 315
Ela se sentou, acendeu o abajur e se inclinou sobre a página do caderninho. Virou-o para seguir o rabisco mais recente e leu: contasbancárias pegaminhaescovacomelaagora “Desculpa, desculpa!”, exclamou Caroleen; e, na própria caligrafia, escreveu: Vou pegar. Ela esperou, perguntando-se por que precisava pegar a escova de volta com Amber. Era necessário que todos os bens de BeeVee ficassem juntos? Provavelmente, pelo menos os que tivessem sinais de identidade, tipo vodu: amostras de dnA, como cabelo na escova, rastros de saliva seca nas dentaduras, um Kleenex em um lixo esquecido. Mas… Abruptamente, seu peito ficou frio e vazio. Mas aquela mensagem foi escrita antes de ela entregar a escova a Amber. E Caroleen só estava acordada nos segundos finais da transmissão da mensagem, que, se fosse como as outras, estava se repetindo por um minuto inteiro antes de ela acordar. A mensagem foi endereçada a Amber, na casa ao lado, não a ela. Amber leu de alguma forma e pegou a escova de cabelo obedientemente. Essas mensagens todas poderiam ser endereçadas à garota? Caroleen se lembrava de questionar se BeeVee precisava lutar contra alguma coisa para se comunicar do lado distante do túmulo. BeeVee estava lutando contra Caroleen, sua gêmea ainda viva, para poder falar com Amber? A insignificante Amber? Caroleen estava tonta, mas se levantou e andou até o quarto para pegar um par de sapatos. Teve que levá-los na mão até a sala — a cama no quarto também era de BeeVee, e ela não queria se sentar nela para calçar os sapatos — e no caminho deu uma entrada no banheiro e pegou sua escova de cabelo.
usAndo umA dAs velhAs saias de ir à igreja, com batom passado e carregando uma bolsa bordada grande, Caroleen fechou a porta e seguiu pela calçada. O céu estava de um azul intenso acima dos galhos das árvores, e as poucas nuvens estavam extraordinariamente distantes, e passou por sua cabeça que ela não se lembrava de ter saído da casa desde o funeral de BeeVee. Não dirigia mais — Amber era a única que dirigia o velho Pontiac atualmente — e era Amber que comprava comida e era reembolsada com cheques de Caroleen… e o pacote com os talões de cheques chegava pelo correio, e Amber o trazia da caixa de correspondência na calçada. 316
Se Caroleen afastasse a garota, poderia fazer essas coisas sozinha? Ela provavelmente morreria de fome. A mão de Caroleen começou a tremer quando ela chegou na calçada e virou para a direita, na direção da casa dos pais de Amber, mas resistiu ao impulso de tirar uma caneta da bolsa. Ela não está falando comigo, pensou ela, piscando para afastar as lágrimas embaixo do sol forte que ref letia nos para-brisas e para-choques dos carros que passavam; está falando com a idiota da Amber. Não vou xeretar. Os pais de Amber tinham uma casa de estilo espanhol no alto de um gramado bem cuidado, com um toldo de lona verde sobre o janelão em arco da frente. Nem ao proteger os olhos com a mão esquerda ainda firme Caroleen conseguiu ver se tinha gente dentro, então subiu os degraus amplos e, enquanto recuperava o fôlego na entrada de cimento no alto, a porta da frente se abriu, soltando uma lufada de aroma fresco de cera de piso. A mãe de Amber, jovem e de cabelo escuro — Crystal? Christine? —, estava olhando para ela com curiosidade. “É… Caroleen”, disse ela, “certo?” “É.” Caroleen sorriu, sentindo-se velha e boba. “Preciso falar com Amber.” A mãe estava com uma expressão de dúvida. “Quero pagar mais a ela e ver se ela está interessada em contabilizar nosso, meu talão de cheques.” A mulher assentiu, como se concordando com isso. “Bem, acho que pode ser bom para ela.” Ela hesitou e chegou para o lado. “Entre e fale com ela. Ela está no quarto.” Caroleen teve um vislumbre rápido de uma sala de estar escura com capas de plástico transparente sobre os móveis, e de uma cozinha colorida com panelas de cobre penduradas para todo lado. A mãe de Amber bateu na porta de um quarto e disse: “Amber, querida. Você tem visita”. Ela abriu a porta. “Vou deixar vocês duas conversarem”, disse a mulher, e saiu andando na direção da sala. Caroleen entrou no quarto. Amber estava sentada de pernas cruzadas em uma colcha rosa, na frente de um pedaço de papelão com uma pedra, um lápis e a escova de BeeVee em cima. Cortinas de renda brilhavam na janela virada para a rua, e uma pilha do que pareciam ser livros escolares ocupava a mesa branca vazia no canto oposto. Os dois quadros nas paredes pareciam manchas de cor pastel. O quarto tinha cheiro de bolo. Caroleen pensou no que dizer. “Posso ajudar?”, perguntou ela. Amber, que estava com expressão de cautela, se animou e se empertigou. “Fecha a porta.” Depois que Caroleen tinha fechado a porta, Amber falou: “Você sabe que ela está voltando?”. Ela indicou o papelão diante de si. “Ela passou o dia falando comigo.” 317
“Eu sei, criança.” Caroleen se aproximou e se inclinou para olhar o papelão, e viu que a garota tinha escrito as letras do alfabeto em um arco. “É uma dessas coisas que as pessoas usam para falar com fantasmas”, explicou Amber com orgulho evidente. “Estou usando a pedra de cristal para apontar para as letras. Algumas pessoas têm medo dessas coisas, mas é um dos tipos bons de cristal.” “Um tabuleiro Ouija.” “Isso mesmo! Ela me fez sonhar com um várias vezes logo antes do sol nascer porque é o aniversário dela. Bem, é o seu também, eu acho. Primeiro, achei que era um desenho de amarelinha, mas ela me fez olhar melhor até eu entender.” Ela repuxou os lábios. “Escrevi-o recitando a rima, e fiz o H e o I duas vezes sem querer, e deixei o J e o K de fora.” Ela pegou uma folha de papel pautado embaixo do papelão. “Mas só foi problema uma vez, eu acho.” “Posso ver? Eu, hã, quero que isso dê certo.” “Pode. Ela não vai embora. Ela vai estar em mim, ela contou?” Ela mostrou o papel. “Eu desenhei linhas para separar as palavras.” “Sim. Ela me contou.” Caroleen esticou a mão lentamente para pegar o papel da mão de Amber e o aproximou do rosto para ler as linhas escritas a lápis. preCiso/da/sua/aiuda Quem é vc? sou/beevee O que posso fazer? preCiso/usar/seu/Corpo/me/Convida/pro/seu/Corpo desCulpa/por/tudo/por/favor Vc é um fantasma agora? Pode conceder pedidos? sim Pode me fazer ficar bonita? sim/pra/sempre Tudo bem. O que eu faço? exausta/mais/depois bv? Passou o almoço. Está descansada? sim Me faz ficar bonita. pega/minha/esCova/de/Cabelo/Com/a/minha/irmã Essa palavra é “escova de cabelo”? é/depois/voCê/pode/me/Convidar/pra/entrar/em/voCê Como vai ser isso? nós/vamos/ser/voCê/unidas 318
Mas o que a gente vai fazer? fiCar/magra/viagem/pelo/mundo A gente vai ser rica? vai/eu/tenho/Contas/banCárias pega/minha/esCova/Com/ela/agora Peguei. à/noite/fiCa/sobre/o/túmulo/penteia/seu/Cabelo/me/Convida/a/entrar “Na primeira linha é A-j-u-d-A”, explicou Amber, solícita. “E vou querer pegar seu carro emprestado esta noite.” Sem se achar capaz de falar, Caroleen assentiu e entregou o papel de volta para ela, sem saber bem se seu rosto estava vermelho ou pálido. Sentia-se invisível e repudiada. BeeVee poderia ter procurado sua irmã gêmea para isso, mas sua irmã gêmea era velha demais; e, se conseguisse ocupar o corpo daquela garota — uma relação de gêmeas de um tipo ainda mais íntimo! —, ela não ia continuar morando com Caroleen. Além do mais, ela tinha ingerido todos os Vicodin e Darvocet. Caroleen pegou a pedra. Era um tipo de cristal de quartzo. “Quando…”, começou ela, a voz rouca. Ela limpou a garganta e continuou com mais firmeza: “Quando você recebeu essa penúltima mensagem? Sobre as contas bancárias e a escova de cabelo?”. “Aquela? Hã, um minuto antes de eu ir bater na sua porta.” Caroleen assentiu, perguntando-se com tristeza se BeeVee sabia que estava deixando cópias em carbono — múltiplas e ecoantes — das mensagens com ela. Ela colocou o cristal no papelão e pegou a escova. Amber abriu a boca como que para protestar, mas parou. Havia mesmo uma série de fios brancos emaranhados nas cerdas. Caroleen enfiou a escova na bolsa. “Eu preciso disso”, disse Amber rapidamente, inclinando-se por cima do papelão. “Ela disse que eu preciso.” “Ah, claro, desculpe.” Caroleen abriu um sorriso forçado que devia ter parecido sinistro e tirou sua própria escova da bolsa e entregou para a garota. Era idêntica à de BeeVee, até os cabelos brancos presos nela. Amber a pegou, olhou para ela e a colocou no travesseiro, fora do alcance de Caroleen. “Eu não quero”, disse Caroleen, “interromper… vocês duas.” Ela suspirou, esvaziou os pulmões e tirou as chaves do carro da bolsa. “Aqui”, disse ela, jogando-as na cama. “Vou estar na casa ao lado se você… precisar de ajuda.” “Tudo bem.” Amber pareceu aliviada pela perspectiva de ela ir embora. 319
cAroleen foi AcordAdA nA manhã seguinte pela dor da mão direita lesionada se f lexionando, mas rolou para o lado e dormiu mais dez minutos, até o telefone à cabeceira a arrancar do sonho monótono que ocupou sua mente na última hora. Ela se sentou, franzindo o nariz para o cheiro de queimado da lareira e desejando uma xícara de café, e ainda podia ver parcialmente o tabuleiro Ouija com o qual estava sonhando. Ela atendeu o telefone com uma careta. “Alô.” “Caroleen”, disse a voz de Amber, “não aconteceu nada no cemitério ontem e BeeVee não está respondendo minhas perguntas. Ela escreveu coisas, mas não são respostas para o que estou escrevendo para ela. O que ela escreveu hoje de manhã, até agora, ela escreveu, hã ‘Você venceu… Você serve… Nós sempre fomos uma equipe, né…’. Ela está falando com você?” Caroleen olhou para a lareira, onde na noite anterior tinha queimado — ou ao menos chamuscado — a escova de dentes, a lâmina, as dentaduras, o babyliss e várias outras coisas de BeeVee, incluindo a escova de cabelo. E hoje ela ligaria para a empresa da lápide e cancelaria o pedido. BeeVee não teria um túmulo facilmente localizável. “Comigo?” Caroleen fechou a mão direita com dificuldade. “Por que ela falaria comigo?” “Você é irmã gêmea dela, ela poderia…” “BeeVee está morta, Amber. Morreu nove semanas atrás.” “Mas ela vai voltar. Vai me deixar bonita! Ela disse…” “Ela não pode fazer nada, criança. Estamos melhores sem ela.” Amber estava falando, protestando, mas os pensamentos de Caroleen estavam com os irmãos que ela não conseguia nem mais visualizar, com as sobrinhas que não tinha conhecido e que provavelmente tinham filhos em algum lugar, e com a mãe, que devia estar morta agora. E havia todas as outras pessoas, e não muito tempo. Caroleen estava decidida a aprender a escrever com a mão esquerda, e, apesar de doer, ela esperava que a mão direita continuasse escrevendo inutilmente no ar. Finalmente, se levantou, ainda segurando o telefone, e interrompeu Amber: “Você pode trazer as chaves do meu carro de volta? Tenho umas coisas a fazer”.
tim powers ganhou o World Fantasy Award duas vezes, pelos livros Last Call e Declare. Nascido em Buffalo, Nova York, ele passou a infância na Califórnia e ainda mora lá. 320