1 UNIVERSIDADE TIRADENTES
DAUANE CONCEIÇÃO SANTOS DE SANTANA
NARRATIVAS DE RESISTÊNCIA URBANA: O CASO DA OCUPAÇÃO VITÓRIA DA RESISTÊNCIA EM ARACAJU/SE
Aracaju 2017
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DAUANE CONCEIÇÃO SANTOS DE SANTANA
NARRATIVAS DE RESISTÊNCIA URBANA: O CASO DA OCUPAÇÃO VITÓRIA DA RESISTÊNCIA EM ARACAJU/SE
Trabalho Final de Graduação apresentado à Universidade Tiradentes, como um dos pré-requisitos para a obtenção do grau de bacharel em Arquitetura e Urbanismo. Orientadora: Prof. Ma. Lygia Nunes Carvalho
Aracaju 2017
3 DAUANE CONCEIÇÃO SANTOS DE SANTANA
NARRATIVAS DE RESISTÊNCIA URBANA: O CASO DA OCUPAÇÃO VITÓRIA DA RESISTÊNCIA EM ARACAJU/SE
Trabalho Final de Graduação apresentado à Universidade Tiradentes, como um dos pré-requisitos para a obtenção do grau de bacharel em Arquitetura e Urbanismo.
Aprovada em ______/_______/_______. Banca Examinadora
_________________________________________________________ Prof. Ma. Lygia Nunes Carvalho Orientadora – UNIT
_________________________________________________________ Prof. Ma. Heloisa Diniz de Rezende Avaliadora Interna – UNIT
_________________________________________________________ Prof. Ma. Marianna Martins Albuquerque Avaliadora Externa
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Dedico
este
estudo
àqueles que diariamente lutam para sobreviver nas cidades
sob
condições
desfavoráveis e injustas; àqueles
que
não
desanimam e vão em busca da visibilidade e do reconhecimento dos seus direitos;
àqueles
que
resistem ao sistema e lutam pela redução da segregação
e
da
desigualdade social. Com muito carinho dedico esta pesquisa aos habitantes ‘’infames’’ da cidade, aqui representados comunidade residencial Resistência.
pela do
Vitória
da
5 AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar devo agradecer à Deus por toda a força a mim concedida e por colocar pessoas tão boas e generosas em meu caminho. Aos meus pais e irmão, pelo incentivo, carinho e suporte diário durante todo o meu período de graduação. Aos meus professores da universidade, em especial Lygia Carvalho, Rooseman de Oliveira e Ricardo Mascarello, que me apresentaram o urbanismo e preencheram meu coração com a esperança da construção de uma cidade melhor. Às urbanistas que tive o prazer de conhecer e conviver na prefeitura municipal de Aracaju, Marianna Albuquerque e Ana Neri, as quais abriram meus olhos sobre o planejamento urbano de Aracaju e do Brasil, e que tanto me incentivaram e guiaram na minha jornada acadêmica. Aos companheiros de trabalho no geoprocessamento, Diego Padilha e Alan Juliano, por todo auxílio e compreensão em todos os momentos que necessitei. Aos colegas de curso, em especial Iane Maria, Juliana Araújo, Nathália de Moura e pessoal do Centro Acadêmico da Unit (CAAU) por todo conhecimento e momentos de angústias e alegrias compartilhados. Aos meus amigos que entenderam meu distanciamento, emanaram energia positiva e torceram pela conclusão deste trabalho. Em especial àqueles que me acompanharam de perto e me deram força: Larissa, Carol, Gabriela, Iracy, Natalli, Dani Mardan, Kauan, Alef e Yasmin. Aos profissionais e líderes comunitários que entrevistei, que foram muito solícitos e me receberam de braços abertos: Dejanilde (MOTU), Gilson (MNLM), Isabel Canjirana (CMP), Jorge (MINPA), Marianna (PMA) e Mônica (PMA). Aos amigos parceiros colaboradores da intervenção urbana, que se dispuseram de coração aberto a colaborar com a causa. E por fim, à comunidade do residencial Vitória da Resistência, que me acolheu durante todo o período de pesquisa e me fez enxergar um mundo que eu não conhecia, mas que a partir deste trabalho passei a conhecer, respeitar e admirar.
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A humanidade só levanta problemas que ela mesma pode resolver, escreveu Marx. Atualmente, alguns acreditam que os homens só levantam problemas insolúveis. Esses desmentem a razão. Todavia, talvez existam problemas fáceis de serem resolvidos, cuja solução está aí, bem perto, e que as pessoas não levantam (LEFEBVRE, 2001).
7 RESUMO
Este estudo consiste em uma análise da apropriação dos espaços públicos da comunidade do Residencial Vitória da Resistência, situado no extremo norte de Aracaju, na região limítrofe com o município de Nossa Senhora do Socorro. O residencial foi originado a partir de uma ocupação urbana organizada pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM, e configura-se numa importante conquista para comunidade que lutou pelo acesso à moradia. As relações do indivíduo com os espaço das cidades - onde são expressadas as diversas formas de interação e adaptação - são moldadas pelo sistema capitalista e por essa razão a presente pesquisa aborda inicialmente como se desenvolve a sociedade, a relação de pertencimento e interação do homem com o meio, e a busca pelo direito de acesso à cidade. Posteriormente foi apresentado um panorama do desenvolvimento da habitação social no Brasil e das iniciativas do governo para garantir o acesso à cidade. Em seguida foi elaborado um resgate histórico da ocupação do solo urbano, da política habitacional e da construção dos principais conjuntos habitacionais sociais do município. Foram demonstrados casos de ocupações e ações realizadas por movimentos de ocupação urbana em prol da promoção de habitação em Aracaju. Para a presente pesquisa foram realizadas pesquisa documental, bibliográfica, de campo, entrevistas e mapeamento com participação da comunidade. O método participativo possibilitou uma leitura detalhada do local partindo da visão dos seus usuários, desta forma a contribuição deste trabalho está na apresentação das condições de habitabilidade a qual estão submetidos a população da periferia aracajuana. A realização deste trabalho é justificada pela necessidade de apontamento de melhorias e de um planejamento urbano mais afetivo na escala do residencial, que necessita de intervenções relacionadas ao provimento de espaço público adequado para interações e disponibilidade de serviços para os habitantes.
Palavras-chave: Espaços públicos, Habitação Social, Mapeamento Participativo, Movimentos de Resistência Urbana.
8 ABSTRACT
This study consists on an analysis about the appropriation of the public spaces from Residencial Vitória da Resistencia community, located in the extreme north of Aracaju, in the bordering region with the municipality of Nossa Senhora do Socorro. The residential was originated from an urban occupation organized by the National Movement of Housing Struggle - NMHS, and it means an important achievement for the community that fought for the access to the housing. The relations of the individual with the space of cities - where are expressed the diverses forms of interaction and adaptation - are shaped by the capitalist system and for this reason the present research initially presents how society, the relation of belonging and interaction of man with the built space, and the search for the right of city acess. Subsequently, an overview of the development of Brazilian social housing and government initiatives to ensure access to the city was presented. Next, a historical rescue about the urban land occupation, the housing policy and how the construction of the main social housing complexes of the municipal area was elaborated. It was presented cases of occupations and actions carried out by urban movements for the promotion of housing in Aracaju. For this research, there where considered methods such as documentary, bibliographical and field research, interviews and mapping with community participation. The participatory method allows a detailed description of the place throught the users eyes, in this way, this work’s contribution is the presentation of the conditions of habitability that are submitted to Aracaju’s periphery population. The accomplishment of this work is justified by the need for improvement appointments and more affective urban planning in the residential scale, which requires interventions related to the provision of public space suitable for interaction and availability of services for the inhabitants.
Keywords: Public Spaces, Social Housing, Participative Mapping, Urban Resistance Movements.
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SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................10 2 DIREITO À CIDADE .......................................................................................................14 2.1 O HOMEM E O MEIO AMBIENTE HABITADO .......................................................14 2.2 DIREITO À CIDADE E A HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL ............................. 20 2.3 A LUTA PELO ESPAÇO URBANO ......................................................................... 28 3 A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO EM ARACAJU .................................................. 34 3.1 O PROBLEMA HABITACIONAL EM ARACAJU ...................................................... 51 3.2 OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA PELO ACESSO À CIDADE DE ARACAJU 74 3.3 O RESIDENCIAL VITÓRIA DA RESISTÊNCIA: DA OCUPAÇÃO URBANA À INTERVENÇÃO DO ESTADO .......................................................................................81 4 O CENÁRIO OPACO ......................................................................................................91 4.1 O ESPAÇO CONCEBIDO ........................................................................................ 97 4.2 MÉTODOS E MEIOS DE APREENSÃO DO ESPAÇO............................................ 105 4.3 UM CONTO CARTOGRAFADO ........................................................................... 109 4.3.1 LADO OESTE VS LADO LESTE ....................................................................... 110 4.3.2 CALÇADAS DE ESTAR ................................................................................... 118 4.3.3 O OLHAR DAS CRIANÇAS............................................................................. 125 4.3.4 POR ONDE CORRE A BOLA .......................................................................... 133 4.3.5 E AQUELE GALPÃO DA AVENIDA? ...............................................................139 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 144 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 153 APÊNDICES .................................................................................................................... 159 ANEXOS ........................................................................................................................ 207
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1. INTRODUÇÃO Tendo em vista a situação atual das cidades brasileiras, a precariedade das políticas públicas de habitação e o déficit habitacional como base de estudo e crítica, o objetivo desta pesquisa é demonstrar a apropriação das famílias que moram no Residencial Vitória da Resistência, localizado na região periférica da cidade de Aracaju. A pesquisa se trata de uma avaliação da consolidação da comunidade no local, que surgiu inicialmente por meio de uma ocupação urbana organizada pelo Movimento Nacional de Luta pela Moradia - MNLM. Vislumbrando demonstrar do importante papel dos movimentos sociais de luta pela moradia e a análise do resultado da consolidação do Conjunto Vitória da Resistência, observando as atuais condições de uso do espaço público, a implantação do conjunto e a relação de apropriação dos moradores com o local. Desta forma as relações entre a comunidade e o local foram observadas. A relevância desse estudo se dá a partir da análise de um Conjunto Habitacional Social que teve como base de origem uma ocupação de resistência urbana, que exerceu um importante papel na luta pela moradia e pelo acesso à cidade. Dessa maneira se espera através da pesquisa demonstrar a realidade das políticas urbanas de Aracaju, contribuindo para a melhoria das condições de moradia popular e destacar o papel dos Movimentos Sociais de Luta por Moradia na construção de uma política de habitação social mais justa. Perante a exacerbada desigualdade social e a política hegemônica que é permissiva com a especulação imobiliária sobre o solo urbano, a população que não tem acesso à terra e não tem condições financeiras de se manter na cidade, veem como solução de moradia as favelas, que constituem uma produção informal de suas habitações em assentamentos irregulares e precários, muitas vezes ocupando locais de Áreas de Risco ou de Proteção Ambiental. O espaço em que a comunidade habita será analisado, e segundo M. Netto, o espaço media nossa experiência do mundo e do outro, constitui um sistema mnemônico, comunicativo que permite que colemos atos passados aos presentes, gera o contato com a alteridade, e nos leva a transcender tais diferenças momentaneamente na experiência da urbanidade – assim como pode limitar tal
11 experiência na forma de segregação, limitando nosso conhecimento do mundo social. As formas de habitação que hoje se proliferam no tecido urbano são cada vez mais impessoais, principalmente os conjuntos habitacionais sociais, se apresentam para a comunidade como um local de ‘’ estar’’ e não de ‘’ vivenciar’’, pelo fato da maioria da população não se identificar com o local e também porque em sua maior parte apresenta áreas comuns em condições precárias ou que não atendem as necessidades reais dos usuários. Para um espaço se tornar um lugar ele deve carregar algum simbolismo para um usuário ou um grupo, e a cidade como palco de relações, segundo LEFEBVRE (1994), transmite mensagens do cotidiano, do particular, do vivido e também mensagens hegemônicas do poder e da dominação. Uma comunidade ao ser inserida num local novo sente a necessidade de se sentir pertencente, é instintivo e todo ser humano sente a necessidade de enraizamento, para estruturar relações e manter uma ligação com o lugar. O presente trabalho aborda a questão do Direito à Cidade na primeira seção, onde foi feita uma reflexão acerca do que a cidade representa, a forma como se desenvolve e é influenciadora e influenciada pela sociedade, e de como se dá a relação de pertencimento e interação do ser humano com o meio. Ainda na primeira seção foi apresentado um panorama do desenvolvimento da habitação de interesse social no Brasil e das iniciativas do governo para tentativa de garantia do acesso à cidade, como o estabelecimento do Estatuto da Cidade e obrigatoriedade dos Planos Diretores. Também na mesma seção foi abordado o desenvolvimento do espaço urbano no Brasil e como isso está refletindo na qualidade de vida da população, que é vítima e produtores da configuração das cidades. A seção dois narra a história de como se deu a ocupação do espaço urbano em Aracaju, identificando os principais agentes influenciadores da formação da cidade, levantando informações sobre a política habitacional social do município e sobre a atuação dos principais movimentos sociais de luta por moradia na cidade. Demonstrando brevemente casos de ocupações e ações realizadas até o atual momento em prol da promoção de habitação no município.
12 Ainda na seção dois ocorre a apresentação do caso do Residencial Vitória da Resistência, onde é narrada a história do local, que foi construída a partir de entrevistas com personalidades envolvidas no processo de surgimento (moradores, ocupantes, líder do movimento e técnicos da prefeitura); reportagens e notícias encontradas em sites da internet e documentação disponível em órgãos públicos. A seção três apresenta a caracterização no tocante a localização do empreendimento, ao projeto executado e as condições de acesso. Em seguida temse a análise de apropriação dos espaços públicos do residencial, baseada nos resultados obtidos durante a presente pesquisa. Para alcançar os objetivos da pesquisa as questões foram desvendadas através da metodologia de Cartografia Social. Uma cartografia social é construída levando-se em consideração o sistema ao qual estamos impostos - o capitalista, que é o principal agente causador da situação de déficit habitacional – e pondo em foco a visão crítica dos principais atores, que são os moradores. Para a análise e produção dos mapas cartográficos foram realizadas entrevistas, diálogos, observação e definição de características do local junto à população. Os membros da comunidade delinearam e apontaram características referentes ao uso dos espaços públicos do conjunto habitacional em uma imagem de satélite do local, que fora impressa em formato A3. As informações colocadas no mapa foram posteriormente analisadas para então serem digitalizadas e transformadas em mapas ‘’síntese’’ a partir da interpretação das respostas. A Cartografia Social também é conhecida como Mapeamento Participativo e revela-se como uma ferramenta útil para mobilizar a comunidade e promover uma leitura real do lugar, sendo assim intérprete de uma ‘’ verdade, em que o crer se localiza no ver’’ (Balandier, 1987). A finalidade da produção desses mapas participativos consistiu na identificação dos locais de lazer, interação social, práticas esportivas/atividades físicas, manifestações culturais/religiosas e etc. Além de possibilitar a interpretação do local quanto a diferença de relação entre os moradores oriundos do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) e os moradores realocados de outras regiões, auxiliando assim na verificação da apropriação da comunidade com o local.
13 Através da indicação desses pontos foi analisada a distribuição espacial dos usos e a adaptação da comunidade ao residencial, esses dados também foram cruzados com os resultados das entrevistas realizadas e percepções adquiridas por meio de observações, vídeos e fotografias do espaço, que possibilitaram assim a conquista de resultados mais claros. A partir do material audiovisual coletado durante a pesquisa de campo, criouse um documentário que tem como objetivos principais promover uma reflexão acerca do direito à cidade e a moradia digna, afirmar a importância da atuação dos movimentos sociais de luta por moradia e demonstrar a história do processo de consolidação do Residencial Vitória da Resistência. A realização deste trabalho é justificada pela necessidade de apontamento de melhorias e de um planejamento urbano mais afetivo na escala do residencial, que necessita de intervenções relacionadas ao provimento de espaço público adequado para interações e disponibilidade de serviços para os habitantes. Sua crítica reside no sentido de que o mesmo pode esconder especificidades que só podem ser vistas em escalas menores, onde é possível a realização de um planejamento participativo que promova benefícios para a habitação social.
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2. DIREITO À CIDADE 2.1. O HOMEM E O MEIO AMBIENTE HABITADO As cidades são extraordinárias formas complexas que refletem inteiramente uma sociedade, que tece padrões e formas a partir da vivência coletiva no meio urbano. No espaço expressamos interações que partem da nossa natureza comunicativa e imaginária, produzindo ideias, artefatos e técnicas que estão em constante atualização e desenvolvimento, cujo limite é considerado infinito. O habitat humano é rico em estruturas e formas, constituindo um espaço rígido que dialoga ao mesmo tempo com a fluidez das práticas sociais e das interações. Os seres humanos levam em consideração como guia para o desenvolvimento, referências de atos passados, presentes e futuros, a partir disso o espaço apresenta um emaranhado de tramas complexas, nos sendo permitido vivenciar apenas uma parte – a porção da trama que mais se aproxima do nosso grupo social e da realidade pertencente a cada indivíduo – baseada no espaço que estamos inseridos e que percorremos, tecendo relações ora baseadas no grau de proximidade, ora à distância, através de redes digitais e meios de comunicação. Ao denotar a limitação da vivência citadina a partir da classificação dos ‘’grupos sociais’’, toma-se como base de surgimento desse aspecto ‘’setorizador’’ os primórdios do surgimento das cidades, na época em que os homens passam de nômades para sedentários. Raquel Rolnik (1988) explica que: Fruto da imaginação e trabalho articulado de muitos homens, a cidade é uma obra coletiva que desafia a natureza. Ela nasce com o processo de sedentarização e seu aparecimento delimita uma nova relação homem/natureza: para fixar-se em um ponto para plantar é preciso garantir o domínio permanente de um território. Imbricada, portanto, com a natureza mesma da cidade está a organização da vida social e consequentemente a necessidade de gestão da produção coletiva. Indissociável à existência material da cidade está sua existência política. (p. 08)
A apreensão da cidade enquanto vida urbana se faz complexa a partir do ponto em que os corpos são submetidos a códigos que ditam o que ‘’pode’’ ou ‘’não pode’’ ser praticado. Ao se dizer “Corpocidade’’ é possível perceber uma
15 multiplicidade e heterogeneidade de corpos e de cidades, entretanto em virtude da presença do modo de produção dominante e dos processos midiáticos que ele dispõe, ocorre um controle das multidões de diferentes corpos, que acabam sendo capturados pelo aparelho de Estado das ‘’Sociedades de controle’’ através de seus dispositivos e instituições, amestrando os corpos ao consumo e à espetacularização da vida.1 Uma das definições de cidade, formuladas por Lefebvre (1991), é a ideia de cidade como sendo projeção da sociedade sobre um local, isto é, não apenas sobre o lugar sensível como também sobre o plano específico, percebido e concebido pelo pensamento, que determina a cidade e o urbano. Sendo assim o espaço carrega consigo simbolismos explícitos e implícitos — representações das relações de produção cotidianas — transmitindo mensagens próprias do particular, do coletivo e do vivido, expressando assim a identidade de um povo. A identidade social leva em consideração a importância de um grupo ou aspectos sociais na constituição da identidade individual do cidadão, que é construída não apenas no grupo como algo que o indivíduo absorve para si, mas é formada principalmente por meio do sentimento de pertencimento do sujeito a um determinado grupo social. Para a compreensão da identificação social existem vários conceitos, como citam Mourão & Cavalcante (2006): Estas ideias constituem a base da identidade social urbana, que considera e integra a compreensão dos vários conceitos como os de: identidade de lugar, que contempla a construção da identidade do sujeito relacionada a aspectos mais individuais; identidade social, que leva em conta a importância do grupo ou dos aspectos sociais na constituição da identidade; teoria da categorização social, quando o entorno pode ser considerado uma categoria social através da qual o sujeito se define; identidade urbana, quando explica que este entorno significativo pode ser um espaço urbano (Lalli, 1988, citado por Valera & Pol, 1994) e comunidade simbólica, através da qual se compreende que o espaço vivido é definido por meio de processos de simbolização, ou construção de significados associados ao espaço, e realizado dentro da interação social (Hunter, 1987, citado por Moreno & Pol, 1999). (p. 04)
Além de nos darmos conta da formação da identidade pela influência do meio, devemos notar a construção da identidade pessoal como um processo de
1 Encontro CORPOCIDADE 4 – Experiências de Apreensão da Cidade. Caderno de articulações. FAUFBA, 2014.
16 caráter evolutivo, levando o sujeito, portanto, a uma metamorfose que sucede das transformações da consciência do ser individual, coexistindo assim diversos ‘’ personagens’’ ao longo da vida do indivíduo. A identidade é portanto um produto da história desses personagens e das processualidades do espaço no tempo. Inevitavelmente como usuárias do espaço, as pessoas sentem a necessidade de se identificar com territórios, e de forma individual ou de forma coletiva a terra para o indivíduo deve ter sentido de ‘’ próprio’’, para que desta relação de afinidade e pertencimento se constitua sua personalidade e suas relações sociais. É deste sentimento de pertencimento e familiaridade que surge o sentido de apropriação e que é construído e reconstruído com o decorrer do tempo como resultante de um processo dialético. Existe uma relação entre o sujeito e o entorno, o que resulta numa transformação mútua e esta relação está submetida a condutas que modificam o espaço e inserem o ser humano no meio. As transformações do meio pelo homem são diretamente relacionadas às suas necessidades, emoções, expectativas e vivências, que vão marcando a história do sujeito que por sua vez deixa suas marcas no espaço/tempo. A relação vem a ser recíproca, e o sujeito sente que de alguma forma está ligado ao lugar, o que poderia ser denominado de apropriação, que ocorre quando o ‘’eu’’ se inscreve num lugar geográfico, enraizando-se e definindo aquele lugar como importante, buscando segurança através dessa ligação. No entanto Lefebvre (1994) alerta que ao mesmo tempo em que o espaço carrega consigo simbolismos próprios do cotidiano coletivo e particular, ele também transmite mensagens hegemônicas do poder e da dominação, que moldam as relações sociais de produção. A apropriação da cidade é portanto submetida aos valores globais do capitalismo, ligando-a ao valor de uso, o que Lefebvre denominou de ‘’ ordem próxima’’ e ao valor de troca, denominada ‘’ ordem distante’’. O que se observa é a imposição de uma ordem que vem interferindo no desenvolvimento do sentimento de pertencimento e apropriação da sociedade. Esse aspecto é gerado pela globalização econômica neoliberal dominante que afeta, por exemplo, o espaço urbano provocando o desaparecimento dos espaços públicos tradicionais, que se estabelecem como importantes espaços de discussão, interação
17 e troca, substituindo pela criação de ambientes privados que pretendem agregar consumidores. Porém essa ordem vigente também altera o espaço, visto que a cidade se dispõe como materialização e meio de segregação. Como bem argumenta M. Netto (2014), por opção ou por não haver opção, grupos que compartilham crenças, comportamentos, raça, classe, níveis de renda ou estilos de vida vivem próximos entre si. Vemos a segregação espacial como uma forma de distância social. O espaço separa. Assim, a urbanização não é uma mera ocupação ou ampliação das áreas ou sítios urbanos, mas uma escolha vinculada à própria natureza da cidade, que nesse sentido se expressa pela lógica das trocas comerciais e pela divisão social do trabalho que supostamente estariam disponíveis para todos os habitantes, e que ampliariam as possibilidades e a interatividade, dinamizando o processo de ampliação da urbe, inclusive para aquelas populações que estariam excluídas, ou seja, as populações pobres. (SILVA, 2009). (p. 03)
As necessidades dos homens são inevitáveis, porém são submetidos e moldados pelo meio em que estão inseridos. Os processos de interação, ainda que ‘’domesticados’’, segundo Pol & Moranta (2005) envolvem o fenômeno de apropriação do espaço possibilitando o entendimento de como as pessoas mantêm ligações com o meio, depositando significados que compartilham com diferentes grupos sociais, a partir dos quais são desenvolvidos aspectos da identidade, bem como a tendência de aglomeração em locais próximos uns aos outros com o objetivo de estabelecer uma zona de satisfação e conforto, de onde deriva o apego ao lugar. Na era em que vivemos atualmente a experiência individual é précondicionada à ‘’autopreservação’’, pois na adaptação do cotidiano podemos perceber uma hipertrofia do intelecto e uma atrofia das sensibilidades, o que constitui o próprio cerne da experiência moderna: uma experiência pautada na despersonalização nas relações, pela objetividade e pela indiferença no tratamento das coisas e das pessoas (SIMMEL, 2005 apud ROSA, 2012). Nesse sentido Focault afirma que não há uma concepção unificada do sujeito, e se este não é uno a experiência também não é. No campo múltiplo da cidade se dispõe regiões de experiências, e essa fragmentação apresenta possibilidades de configuração da experiência e, simultaneamente do sujeito (ROSA, 2012).
18 A partir da experiência coletiva e da reunião de grupos com interesses em comum, surgem conexões que percorrem o espaço da urbe e muitas vezes quebram regras impostas, são estas relações denominadas micro-resistências que tem a capacidade de mover e produzir o desenvolvimento urbano. Ao identificar as micro-resistências como movimento que vai de encontro ao processo de espetacularização urbana, são notadas três questões fundamentais: a relação do corpo com a cidade; os conflitos no espaço público; e a vitalidade e vigor da vida pública das regiões mais populares e informais das cidades, classificadas como zonas urbanas opacas por Milton Santos. Na cidade "luminosa", moderna, hoje, a "naturalidade" do objeto técnico cria uma mecânica rotineira, um sistema de gestos sem surpresa. Essa historicização da metafísica crava no organismo urbano áreas constituídas ao sabor da modernidade e que se justapõem, superpõem e contrapõem ao uso da cidade onde vivem os pobres, nas zonas urbanas 'opacas'. Estas são os espaços do aproximativo e da criatividade, opostos às zonas luminosas, espaços da exatidão. (SANTOS, 2001, p. 221)
A atuação das micro-resistências no espaço público por parte da população mais pobre é por vezes imposta a negação e sofrem repressão, para que não se tornem visíveis para a zona luminosa. Esse fato decorre da espetacularização urbana contemporânea (JACQUES, 2004) - que exclui dos holofotes o que acontece em comunidades
periféricas
–
sendo
um
dos
maiores
responsáveis
pelo
empobrecimento das experiências corporais no espaço público contemporâneo. As diversas formas de adaptação dos espaços opacos da cidade são por vezes ocultadas, reduzidas e reprimidas; e por mais que a prática (coletivamente adaptada) seja geradora de vitalidade urbana, de acordo com a ‘’lógica espetacular’’, os espaços públicos devem ser devidamente organizados e assepsiados por projetos urbanos que visam a revitalização do lugar – na maioria das vezes sem envolvimento com a população – com o objetivo de torná-lo apenas mais um espaço luminoso, midiático e espetacular. Jaques (2010) afirma que é importante ter o entendimento de que a crítica ao espetáculo pacificador (que padroniza) também faz parte deste processo de espetacularização e que a resistência a este processo lhe é inerente, intrínseca e mais, que esta crítica só pode ser de fato tensionadora ou problematizadora de dentro do
19 próprio processo, mas em outra escala ou registro, em forma de infiltração, de pequenos desvios, ações moleculares (GUATTARI, F. E ROLNIK, S., 1968), ou seja, enquanto micro-resistências. No uso cotidiano da cidade, quando no decorrer de uma experiência não planejada ou desviatória se dá o conflito por meio da contrariedade ao uso planejado, acontece uma ação molecular que derivou de um desejo de adaptação a algo que não condiz com a realidade de uso. Desejos que vão contra as regras pré-estabelecidas quebram as estruturas e explodem em todas as direções, alcançando novas conexões e crescendo de forma rizomática (horizontalmente, polimorfo e sem direção definida). O conceito de rizoma foi desenvolvido por Deleuze e Guattari (1995), e tratase de uma forma de resistência ética-estética-política, que se desenvolvem como linhas formando uma espécie de trama que corta as multiplicidades e sempre é ultrapassado por outras linhas de intensidade. Por menor que seja a ação ocorrerá uma quebra da estrutura padrão que se espalhará em várias direções, infiltrando-se, direcionando desejos e fazendo e desfazendo alianças. A partir a multiplicação das conexões a intensidade também de modificará e assim teremos a chance de criar novos sentidos e ambientes. A importância do desejo que passa a ser coletivo e resistente, segundo Deleuze e Guattari, reside em: A questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de insconsciente e, com ele, novos enunciados, outros desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo. (p. 12)
Mudar o processo de concepção das cidades contemporâneas de forma mais justa e igualitária se faz necessário e as práticas das camadas populares na cidade abrem um debate novo, inédito, às vezes silencioso, às vezes ruidosos com a sociedade e as coisas já existentes. Segundo Milton Santos (2001) é assim que eles reavaliam a tecnosfera e a psicoesfera, encontrando novos usos e finalidades para objetos e técnicas e também novas articulações práticas e novas normas, na vida social e afetiva. Apesar da notória passividade dos pobres e migrantes diante da grandeza midiática e capitalista, é na esfera comunicacional que eles diferentemente
20 das classes ditas superiores, são fortemente ativos e por meio dessa faceta correm atrás da diminuição das carências e do futuro sonhado.
2.2. DIREITO À CIDADE E A HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL As cidades são moldadas em cada momento histórico, e os protagonistas principais da sociedade buscam a realização dos seus interesses, ou melhor, os interesses de um conjunto articulado de diferentes forças que podem compor uma aliança. Mas esse modelo de paisagem, ou ambiente construído, não resulta sem contradições (Harvey, 2014). O meio urbano surge dos nossos mais profundos anseios, sendo criado pelo homem, que tem o poder de moldar o mundo ao qual está condenado a viver, assim, indiretamente e inconscientemente a natureza humana carrega a tarefa de criar a cidade e recriar a si mesmo. Se conclui então que o tipo de cidade que queremos não pode estar dissociada do tipo de pessoas que queremos ser, que tipos de relações sociais buscamos e que estilo de vida queremos levar. Em acordo com a argumentação de Harvey (2014) sobre essa questão: O direito a cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades, como pretendo argumentar, é um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados. (p. 28)
O mundo está se organizando crescentemente, e esse crescimento urbano gera uma demanda por infraestrutura e equipamentos adequados as necessidades da população. A qualidade de vida das pessoas nas cidades está diretamente relacionada a questões de território, moradia, abastecimento de água e energia, transporte, educação, saúde e lazer, se fazendo necessária a implementação de políticas públicas eficazes na solução ou redução de problemas relacionados a essas questões.
21 Ao tratar do assunto acesso à cidade, no aspecto do provimento da educação para todos denota-se uma exacerbada precariedade, onde o Brasil atinge a incrível marca de 50 milhões de brasileiros analfabetos ou semiletrados, número que se aproxima, mas não supera a soma da população do Uruguai, da Nova Zelândia e da Irlanda. Além da dificuldade de acesso à educação, existe uma grande deficiência no abastecimento de água tratada, onde mais de 35 milhões de brasileiros sofrem com esse problema, e cerca de 100 milhões (mais pessoas do que a população da Alemanha) não possuem sistema de tratamento de esgoto. Imaginemos então a quantidade de residentes da Holanda inteira, cerca de 17 milhões, sem acesso à coleta de lixo, e ainda 4 milhões de cidadãos brasileiros sem um único banheiro em casa. Esses índices resultam da mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano de 2015. No dizer de Milton Santos (1993), a cidade em si, torna-se criadora de pobreza, tanto pelo modelo socioeconômico, de que é o suporte, como por sua estrutura física, que faz os habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas ainda mais pobres. A pobreza não é apenas o fato do modelo socioeconômico vigente, mas também do modelo espacial. Dessa forma a cidade está fadada a ser tanto o teatro de conflitos crescentes como o lugar geográfico e o político da possibilidade de soluções. Mensurar a problemática presente no espaço urbano é sobretudo necessário para uma interpretação e busca de soluções dos conflitos. Ao observarmos o que aconteceu no passado, chegamos na raiz da conformação atual das cidades brasileiras, quando no momento em que ocorre a substituição da mão de obra escrava pelo trabalho livre e o desenvolvimento da industrialização, acontece o aumento da população urbana, e a partir desse momento o urbano toma importância passando a se caracterizar e ser influenciado pelo capitalismo que conduz a formação econômica e social brasileira. Existe portanto uma imposição do modelo socioeconômico na morfologia do espaço urbano, que a partir da sua dinâmica e do processo de produção moldam o meio, e no Brasil o processo de mudança que culminou nas nossas cidades atuais se iniciou quando houve a alteração do perfil agrícola e rural para o industrial, quando
22 entre 1940 e 1980 ocorre uma verdadeira inversão quanto ao lugar de residência da população brasileira. Segundo Milton Santos (1993): Há meio século atrás (1940), a taxa de urbanização era de 26,35%, em 1980 alcança 68,86%. Nesses quarenta anos, triplica a população total do Brasil, ao passo que a população urbana se multiplica por sete vezes e meia. Hoje, a população urbana brasileira passa dos 77%, ficando quase igual à população total de 1980. (p. 31)
O espaço total brasileiro fica dividido então em dois grandes subtipos, as regiões agrícolas (e não rurais) que contêm cidades; e as regiões urbanas que contêm atividades rurais. Porém em regiões metropolitanas onde as dimensões são maiores e há a possibilidade de realizar atividades agrícolas em terrenos vazios da cidade, utiliza-se desses terrenos para sanar a necessidade de consumo da população. O que observa-se, num contexto geral são áreas agrícolas contendo cidades adaptadas às suas demandas e, no segundo caso, áreas rurais adaptadas as demandas urbanas. O processo de urbanização brasileira acorreu de acordo com as diferentes fases do capitalismo colonial-industrial. Na primeira década do século XXI o mundo passou a ser predominante urbano e essa nova forma de habitar e se aglomerar em algum ponto da cidade, passa a caracterizar de uma nova maneira a sociedade. Esse rápido aumento populacional gerou um tipo de habitação (favelas e cortiços) que se espraiou por todas as cidades, pois após a abolição da escravatura, do alto custo dos aluguéis e da ausência de habitações populares adequadas, a população encontra nesse tipo de ocupação do solo urbano uma solução. Esses aglomerados urbanos passam então a gerar problemas nas cidades que começam a afetar as elites, quando entre o final do século XIX e início do século XX, ocorrem as reformas urbanas que realizavam obras de saneamento básico para eliminação das epidemias (que se alastravam por toda cidade e atingia a elite), e também promover uma higienização nas cidades, através do embelezamento paisagístico e da expulsão da população excluída para os morros e extremos das cidades. Criando assim um campo aberto e bases legais para o desenvolvimento do mercado imobiliário capitalista. Transborda no tecido urbano então o resultado da luta de classes que se intensificou a partir da era da industrialização, onde a força dos poucos que possuem
23 o poder econômico na mão sobrepõe as necessidades e desejos da maioria. Isso se consolida na cidade quando a população de baixa renda é ‘’ empurrada’’ para as margens da cidade (sociedade), passando a serem obrigados a ocupar áreas de terras mais ‘’ baratas’’, sem infraestrutura e muitas vezes áreas de risco, pelo simples fato de que os agentes dominantes ocupam a área central equipada com infraestrutura e longe do popularmente intitulado ‘’ povão’’. As áreas que atraem maior especulação imobiliária são ocupadas pela parcela da população que em sua maioria sempre teve acesso aos serviços (saúde, transporte, educação e etc.) com maior facilidade, enquanto a grande maior parte da população de baixa renda, tiveram e continuam tendo escasso acesso a serviços básicos, como saúde, transporte e educação. A classe trabalhadora quer da cidade o valor de uso, desejo que deveria ser sanado, como acesso à moradia e serviços públicos mais baratos e de melhor qualidade. Para fornecer esse valor de uso e uma boa qualidade de vida, não deve ser pensado simplesmente num aumento salarial para a população - pois esse aumento é facilmente absorvido pelo alto custo de vida na cidade, como o transporte por exemplo - mas também na implementação de adequadas políticas públicas que otimizem e organizem o espaço urbano de maneira democrática. Porém o que está intrínseco no modelo de gestão atual das cidades é a grande influência dos detentores de capital (grandes empresas e imobiliárias) na ocupação e uso do solo urbano, que corrompe o setor legislativo do governo favorecendo seus interesses. Deste fato urbano Ermínia Maricato (2015) exemplifica: Há, portanto, uma luta surda pela apropriação dos fundos públicos, que é central para a reprodução da força de trabalho ou para a reprodução do capital. Podemos citar como exemplo importante a disputa entre investimentos para a circulação de automóveis ou investimentos para o transporte coletivo. (p. 25)
A necessidade de equipamentos e infraestrutura adequados está diretamente relacionado a qualidade de vida da população, e o problema de déficit habitacional e as inadequadas condições de moradia é um fator agravante que foi gerado pela acelerada urbanização, tornando necessário a realização de investimentos nas cidades em busca da redução e desaceleração dessa problemática.
24 Surge então algumas medidas de iniciativa do governo para tratar do problema das habitações de interesse sociais. A primeira medida que teve uma grande importância nesse contexto foi a Lei do Inquilinato, que surge em 1942 e promove o congelamento do valor dos aluguéis, desestimulando assim a produção rentista desse ramo imobiliário. A partir dessa lei houve a redução da atração pela moradia de aluguel e os trabalhadores passam a visar e difundir a ideia da pequena propriedade. Nesse período a produção de unidades habitacionais coletivas começou a ser considerada como solução para sanar alguns problemas habitacionais, como a insalubridade presente nos aglomerados urbanos. A importância desse período é destacada por Bonduki (2004): A década de 40, é portanto, crucial no que se refere à ação do Estado no setor habitacional, quando ocorrem as principais intervenções do governo federal – congelamento dos aluguéis, produção em massa de moradias por intermédio dos IAPS e criação da Fundação da Casa Popular. Além disso, no mesmo período consolidou-se a aceitação, pelo Estado e pela população, de alternativas habitacionais precárias, ilegais e excluídas do âmbito capitalista, como a favela e a casa própria em loteamentos clandestinos e desprovidos de infraestrutura. Este processo ocorreu numa conjuntura dinâmica de transformações políticas, urbanização, crescimento econômico, mobilização popular e redesenho urbano. (p. 209)
A política de habitação era feita através da disponibilidade de crédito imobiliário pelas Caixas Econômicas e pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPS) ou por bancos incorporadores imobiliários, e diante dessa cena ocorreu a Fundação da Casa Popular (FCP) que surge como o primeiro órgão federal do Brasil que tem o papel de centralizar a política habitacional do país, a partir disso o Estado e os trabalhadores passaram a custear as moradias. Porém, segundo análise feita por Bolfe (2014), esse projeto veio a fracassar porque os grupos envolvidos e que seriam beneficiados encontravam-se desorganizados ou desinteressados em serem parte de um plano de governo para a formulação de uma política social. Se instaurou uma crise no setor imobiliário dessa época e reduziram-se os investimentos nesse setor, resultando no aumento do déficit habitacional. A indústria de material de construção reduziu suas atividades, visto que também houve uma significativa redução na construção de novas unidades habitacionais. Foi quando em 1963, aconteceu o Seminário de Habitação e Reforma Urbana promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, onde foram formuladas propostas oriundas da
25 discussão sobre a política urbana e habitacional do país. Aproveitando o produto gerado pelo seminário, o governo de Castelo Branco, em 1964, criou o Banco Nacional de Habitação (BNH), o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau) e o Sistema Financeiro de Habitação (SFH); visando oferecer aos trabalhadores o acesso à casa própria. Entre as décadas de 1960 e 1980 a política habitacional foi gerenciada pelo BNH, e na tentativa de solucionar o problema do déficit habitacional, foram priorizados investimentos na construção intensiva de casas para venda, o que favoreceu o amortecimento do desemprego gerando uma absorção da mão de obra qualificada para construção dessas novas unidades habitacionais nas grandes cidades. Segundo Bolfe (2014): Assim iniciaram-se os projetos e construção de grandes conjuntos habitacionais, unidades coletivas produzidas em série, seguindo os preceitos da Arquitetura Moderna, com equipamentos públicos e serviços próximos as moradias. Na década de 1960, a pré-fabricação entra em cena, juntamente com o estímulo crescente da industrialização da construção, como solução para o problema habitacional brasileiro, porém não foi o suficiente para extinguir o problema. (p. 207)
Para a estruturação do setor da construção civil o banco buscou estabelecer uma política permanente de financiamentos, para as massas populares urbanas. As habitações financiadas se destinaram a todas as faixas de renda, pela promoção privada das Companhias de Habitação Popular e pela incorporação imobiliária. Porém a população de baixa renda foi responsável por apenas 20% dos financiamentos. Além das habitações, foram financiadas obras de infraestrutura urbana e equipamentos sociais, vinculados aos empreendimentos habitacionais (Bolfe, 2014). Com a vinda da crise no ano 1980 e o final do período da Ditadura Militar, houve uma desaceleração no processo de metropolização do Brasil, motivada pelas altas taxas de inflação, recessão e desemprego, nessa época o SFH e o BNH não resistiram e foram extintos pelo governo. A questão habitacional continuou sendo um problema e o país estava num momento de grande complicação pois boa parte da população estava inadimplente e o déficit populacional não havia sido solucionado. Desta forma foi necessária uma nova postura para diminuir a intensidade desses problemas, foi quando em 1988 a
26 Constituição Federal estabelece os Plano Diretores como instrumento obrigatório para todos os Municípios que possuíssem mais de 20 mil habitantes, assim a regularização fundiária urbana passou a ser ordenada pelo que estava disposto na Constituição. Esse acontecimento foi destacado por Maricato (2015): No Brasil, um novo arcabouço legal foi promulgado a partir da Constituição Federal de 1988 tendo como inovações centrais o direito à moradia e a regulamentação da função social da propriedade e da função social da cidade, por meio do Estatuto da Cidade. (p. 97)
Durante o governo de Fernando Collor de Mello, a partir de 1990, foi posta em prática uma nova estratégia retomando financiamentos de habitações e saneamento com base nos recursos do fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Essa ação visava a diminuição dos índices da precariedade de moradia, pois nesse período o Brasil chegou a ter 60 milhões de cidadãos em situação de rua (IBGE, 1991). Após a realização dessa medida outras ações significativas surgem entre 1999 e 2001, que foi a criação do Projeto Moradia - voltado à urbanização de áreas precárias – e do Programa de Arrendamento Residencial (PAR) para a produção de novas unidades de arrendamento. Para a gestão do Pró-Moradia, a partir do governo Inácio Lula da Silva, foi criado o Ministério das Cidades, que teria como competência a deliberação de quais programas e projetos seriam financiados pelo governo. Podemos dizer que houve um avanço legal e institucional com a criação do Ministério das Cidades, sendo definido como seu principal foco de atuação a inclusão dos setores excluídos do direito à cidade, já que as questões de acesso à moradia e serviços básicos são fundamentais para a cidadania. Surge então a Política Nacional de Habitação (PNH), aprovada em 2004 pelo Conselho das Cidades, que promove a criação do Sistema Nacional de Habitação (SNH), que terias como função o planejamento habitacional. Assim o governo traça uma estratégia através da elaboração de planos habitacionais nacional, estaduais e municipais, estabelecendo metas a serem atingidas para a redução do déficit habitacional. A partir de 2005 o foco dos investimentos se direcionou para a população de baixa renda, e o Governo Federal realiza a implantação do Programa
27 de Aceleração do Crescimento (PAC) em 2007, trazendo investimentos nas áreas de infraestrutura, setores habitacionais e saneamento e urbanização de assentamentos precários. Com chegada do presidente Lula ao poder, em 2009 foi lançado o Projeto Minha Casa Minha Vida (MCMV), que visava a construção de um milhão de moradias. A Caixa (2014) explica o programa da seguinte forma: Em geral, o Programa acontece em parceria com estados, municípios, empresas e entidades sem fins lucrativos. Na primeira fase foram contratadas mais de 1 milhão de moradias. Após esse sucesso, o Programa Minha Casa Minha Vida pretende construir na segunda fase, 2 milhões de casas e apartamentos até 2014. (site da Caixa Econômica Federal, 2014)
O programa pretendia promover um crescimento econômico no país, mas foi bastante criticado pelo fato de não haver participação social na implementação desse projeto, o que ia de encontro à forma de operação definida pelo Sistema/Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS/FNHIS). Continua acontecendo no atual momento do Brasil grandes discussões acerca da questão habitacional e da continuação do Programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), pois o déficit ainda perdura e aumenta diariamente, porém após a análise da maioria das políticas públicas voltadas para a habitação, foi possível observar que existe a tentativa e intenção - ainda que deficitária e quase que inteiramente ineficaz – de sanar a problemática habitacional, como bom exemplo temos os IAPS que foram incorporados com preceitos modernistas que além da habitação, planejava os conjuntos habitacionais com espaços comunitários de lazer e serviços, e eram localizados em áreas consolidadas e com certa infraestrutura, contrariamente ao MCMV que destina seus conjuntos habitacionais para as áreas periféricas. No contexto do quem vem sendo imposto por esses planos de habitação, a segregação socioespacial se faz presente e em crescimento no tecido urbano brasileiro, favorecendo o setor imobiliário e desencadeando problemas de acesso e mobilidade, restringindo a liberdade das relações sociais e resultando numa verdadeira luta pela moradia.
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2.3. A LUTA PELO ESPAÇO URBANO Na sociedade existe uma disputa pelo solo urbano e pelos serviços que se desenvolvem na cidade, e graças ao modelo socioeconômico imposto, se desencadeou uma grande desigualdade social, onde os recursos não estão sendo distribuídos e aplicados adequadamente. Ermínia Maricato (2015) destaca o seguinte fato: Recentemente relatório da ONU-Habitar ‘’ Estado de las Ciudades de América Latina y el Caribe 2012’’ mostra que o Brasil, a sexta economia do mundo, mantém uma das piores distribuições de renda no continente, mesmo após os avanços nesse sentido verificado nos governos do presidente Lula e da presidente Dilma. São mais desiguais do que o Brasil, na América Latina, apenas Guatemala, Honduras e Colômbia. Essa marca, a da desigualdade, está presente em qualquer ângulo pelo qual se olha o país e, portanto, também nas cidades. (p. 28)
Aspectos como saúde, educação e mobilidade urbana se apresentam como outros problemas que afetam a população, que vivem mal nas cidades, fato que não deveria ocorrer já que o papel do Estado é dispor do atendimento necessário para se estabelecer a qualidade de vida de todo cidadão. Tomando como exemplo estudos baseados na principal metrópole brasileira, a cidade de São Paulo, de acordo com a OMS, apresenta elevados níveis de poluição que são responsáveis pela redução da expectativa de vida da população em cerca de um ano e meio, e dentre as principais causas para essa redução encontramos o câncer de pulmão e vias aéreas superiores, infarto agudo do miocárdio, arritmias, bronquite crônica e asma. O povo brasileiro está vivendo mal e segundo pesquisa do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica da USP, 29,6% da população de São Paulo sofre de estresse, transtorno de ansiedade e depressão. Uma parte dessas doenças foram causadas pela dinâmica metropolitana de São Paulo, onde o trânsito caótico e mobilidade urbana se apresentam como alguns dos problemas. Em contrapartida a esse acontecimento o consumo de automóveis é incentivado pelos subsídios dados pelo governo federal e alguns governos estaduais, como resultado desse incentivo temos, por exemplo, que na cidade de Aracaju, no ano de 2006 o número de automóveis era de 108,489 mil, e dobrou de número em 2016 quando encontrava-se 226,082 mil carros nas ruas da cidade. Nesse mesmo período o número de motos e
29 motonetas aumenta de 23,174 mil para o absurdo número de 67,622 mil (segundo pesquisa do IBGE). E esta tendência de aumento se repetiu em 12 metrópoles brasileiras. O que vem ocorrendo nas cidades é o tratamento glamouroso que a mídia e muitos intelectuais atribuíram à globalização, e às denominadas cidades globais foram surgindo e produzindo uma apropriação capitalista das novas tecnologias, que trouxe consigo uma realidade de precarização das relações do trabalho, aumento do desemprego, privatizações, retrocesso nas políticas sociais, mercantilização de serviços públicos e aumento da desigualdade social. A informação, a marca e o conhecimento transmitido pela mídia ganham importância, e o mundo é impactado pela velocidade e espetáculo dos avanços tecnológicos. A manipulação e manutenção do sistema é feito principalmente por meio da comunicação e da mídia, que reproduz o modelo de consumo. Guiados por esse consumismo determinadas áreas da cidade são mais visadas pelos setor imobiliário, o que ocasiona uma disputa pela terra daquela região, que consequentemente eleva o valor de uso do local, fomentando a especulação imobiliária. A partir disso aceita-se que os mais pobres ocupem áreas de proteção ambiental, áreas de riscos e desestruturadas, restando para essa parcela da sociedade, somente essa alternativa.
Acontece que a prática popular da
autoconstrução da moradia ilegal pelos trabalhadores ou pela população mais pobre de um modo geral é uma alternativa viável, pois reduz o custo da força de trabalho, quando em seus fins de semana o cidadão se ocupa na construção da sua casa. Mas assim como acontece com o incentivo ao consumo no país, as mídias também moldam o modo de pensar da grande maioria da população de maneira que Boulos (2012) relata que apesar da gravidade do problema da moradia no Brasil e da privatização das cidades pelo capital, as ocupações de terrenos e prédios vazios ainda são vistos de maneira muito negativa. E isso acontece não só com proprietários de terra, mas também por uma boa parte dos próprios trabalhadores brasileiros. Porque muitas vezes os trabalhadores são influenciados por uma visão fabricada pela mídia, que tem horror a qualquer forma de organização e resistência dos mais pobres, apresentando a luta como ‘’ baderna’’, ‘’ coisa de vagabundo’’, ‘’ vandalismo’’. Mídia esta que é controlada por grandes empresários, algumas vezes eles próprios investidores do mercado
30 imobiliário, ou que tem dentre seus clientes/anunciantes as grandes construtoras. Se beneficiam com este modelo de cidade e por isso buscam desqualificar a luta dos trabalhadores por direitos sociais. Mentem e iludem: defendem os verdadeiros invasores e criminalizam as ocupações de terra. (Boulos 2012, p. 45)
O processo de distribuição de terras no nosso país é injusto, pois na época da colonização se deu a base da propriedade privada de terra da seguinte forma: as terras que eram coletivamente ocupadas pelos povos indígenas, foram invadidas e privatizadas de acordo com os interesses do governo português, foi assim imposto o sistema de Capitanias Hereditárias, que eram distribuídas para pessoas escolhidas a dedo. Dessa forma ao terminar o sistema de capitanias hereditárias as terras foram distribuídas da maneira que os proprietários bem entendessem, e assim as propriedades foram repassadas e vendidas, no decorrer de anos, entre as famílias mais poderosas, que ainda se utilizavam de um mecanismo denominado de ‘’grilagem’’ para roubar as terras. Segundo Boulos (2012), a grilagem era executada através da produção de uma certidão de propriedade falsificada, atestando que tal família era dona de um grande pedaço de terra; depois, deixavam esta certidão numa caixa com grilos para que o papel adquirisse aspecto de envelhecido (através da ação dos grilos), com isso eles diziam que a certidão era muito antiga e verdadeira. Desta maneira, muitas terras foram roubadas. As ocupações de terra, especialmente as realizadas pelos movimentos populares ocupam terras que são de grandes proprietários que as ‘’ herdaram’’, através da técnica da grilagem feita pela sua família no passado, em que no presente o especulador deixa suas terras vazias, até que atinja um preço exorbitante para que ele possa vendê-la. A ocupação de terras vazias no Brasil, são ao mesmo tempo legítimas e legais, pois a Constituição Federal de 1988 afirma nos artigos 5 e 170 que toda propriedade tem que cumprir uma função social, ou seja, não pode estar vazia e sem uso. Com isso conclui-se que na realidade quem está agindo de forma ilegal e criminosa são os proprietários de terras que deixam o local ocioso enquanto adquire maior valor através da especulação imobiliária. São os chamados “terrenos de engorda’’. Desta forma destacam-se os seguintes pontos da Constituição do Cidadão de 1988:
31 Título II Artigo 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXII - é garantido o direito de propriedade; Artigo 6º: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância. (...) Artigo 23°: É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; (Constituição de 1988).
Os trabalhadores vem desde muito tempo se utilizando da ocupação para conseguir um pedaço de terra para morar, afinal o acesso e identificação do indivíduo na cidade está diretamente ligado ao local de moradia, quando por exemplo para se ter atendimento médico, educação ou emprego, o indivíduo precisa ter um endereço para ser preenchido na sua ficha de identificação e cadastro. Sem moradia, o indivíduo não é cidadão. Muitas ocupações ocorreram no período do crescimento urbano, entre 1950 e 1990, e a grande parte dessas ocupações foram organizadas por iniciativas espontâneas dos próprios trabalhadores e não pelas organizações conhecidas por ‘’movimentos populares’’. Hoje várias dessas ocupações se consolidaram e se tornaram bairros. A partir da demanda por habitação, na década de 80 se constituem os dois principais movimentos de moradia organizados nacionalmente no Brasil, foram eles a União Nacional por Moradia Popular (UNMP) e o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM). A UNMP iniciou sua atuação em 1989 quando consolidou o primeiro projeto de lei de iniciativa popular, através da coleta de assinatura, para a criação do Fundo e o Conselho Gestor de Habitação Social no Brasil, a Lei 11.124/2005. Já o MNLM foi criado em 1990, após o I Encontro Nacional dos Movimentos de Moradia, realizou diversas ocupações de áreas e conjuntos habitacionais principalmente na década de 80. O cenário brasileiro passa a comportar as
32 organizações UNMP, MNLM, CONAM e CMP, que compartilham de estratégias de incidência política, articulados em redes e fóruns, incluindo ações em esferas políticas institucionalizadas, como os conselhos de gestão pública. A atuação dos movimentos de moradia e reforma urbana buscará quebrar a lógica da cidade como um valor de troca, resgatando seu valor de uso (Ferreira, 2012). Sobre a inserção dos movimentos sociais na questão urbana, Alencar (2010) afirma que: O processo histórico de democratização do Brasil é acompanhado pelos movimentos sociais, que a partir da organização de setores socialmente excluídos do crescimento e da vida econômica, entram na cena pública reivindicando direitos sociais e melhores condições de vida. Os movimentos sociais urbanos de luta por moradia são entendidos aqui como ações coletivas organizadas pela população pobre na busca pelo direito à cidade, através do acesso ao solo urbano, à moradia e aos serviços e equipamentos coletivos. (p. 03)
Segundo Maricato (2015), novos personagens entram em cena: ONGs, ambientalistas, mulheres, entidades de luta pela igualdade racial, entidades de luta pelos direitos dos homossexuais, direito das etnias etc. A democracia burguesa ou representativa também passa a ser contestada, assim como alguns partidos esvaziados. E desta forma veremos que ao longo dos anos 90 vivenciamos algumas experiências democráticas como a instituição de conselhos de políticas públicas, a imposição do ‘’orçamento participativo’’, a exigência da elaboração participativa dos planos diretores, e também programas voltados para a autogestão na produção social da moradia. O direito à moradia e regulamentação da função social da propriedade e da cidade consta no âmbito legal através do Estatuto da Cidade e das diretrizes impostas pelos Planos Diretores, mas na prática, ainda é uma realidade que se busca alcançar plenamente. Estamos vivendo em cidades que não dispõe das mínimas condições para uma boa qualidade de vida, e o planejamento urbano do Brasil e do mundo deve mudar urgentemente. Segundo Maricato (2015) a urbanização de favelas pode resolver problemas de saneamento ambiental, atribuir endereço legal a cada domicílio, melhorar as condições de moradia e de segurança urbana, mas não melhora o nível de escolaridade ou de alfabetização, não organiza as mulheres para melhorar o padrão de vida, nem ajuda na organização de cooperativas de trabalho ou no lazer dos jovens. ‘’A exclusão é um todo’’ – econômica, cultural, educacional,
33 social, jurídica, ambiental, racial – e não poder combatida de forma fragmentada (Fondantion pour Le Progrès de l’Homme, 1993). Um planejamento urbano comprometido com a inclusão social deve ser feito, e exige uma articulação integrada.
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3. A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO EM ARACAJU O fenômeno urbano é permeado por questões que envolvem as necessidades criadas pelo homem, o que impulsiona a expansão, a economia, a circulação, a administração, o saneamento, o abastecimento e outros fatores determinantes da vida coletiva. Assim a formação urbana de Aracaju partiu do desejo da província de estabelecer sua capital numa área litorânea que facilitasse o acesso para exportações e importações, sendo retirado o título de capital de São Cristóvão e transferido para Aracaju no dia 17 de março de 1855, através da Resolução 413.
Figura 01 – Mapa da região de Aracaju antes das intervenções do Estado (1855)
Fonte: aracajuantigga.blogspot.com.br
A política econômica do país na época tinha caráter mercantil e capitalista e o estabelecimento da nova área urbana do estado se deu principalmente por conta da comercialização do açúcar. A cidade era formada por vilas de pescadores e apresentava superfícies alagadiças e morros de areia, quando ficou decidido que a ocupação das terras se iniciaria pela região onde atualmente se encontra o bairro Centro.
35 A Corte portuguesa exigia o padrão neoclássico europeu que estava em voga na época, então foi necessário um rápido planejamento para que a área fosse infraestruturada para receber os principais edifícios públicos nos padrões exigidos. Coube aos engenheiros militares Sebastião José Basílio Pyrrho, planejador da cidade e Francisco Pereira da Silva, a serviço da Província, dirigentes das primeiras obras públicas da nova cidade, a introdução do neoclássico em Aracaju, com a construção dos primeiros prédios públicos: a Tesouraria Provincial, a Alfândega, o Palácio do Governo, os Quartéis da Polícia e do Exército e por fim a Assembleia Legislativa. (PORTO, 1991, p. 26)
Estando localizada na margem direita do rio Sergipe, precisamente sendo sua foz (portanto, uma planície fluvio-marinha), foi eleita como melhor local para a instalação do novo porto e da nova capital. Seu ambiente natural de planície costeira e estuarina, típico de zonas tropicais, era dominado pelos ecossistemas de manguezal e de restinga. Diante dessas características deu-se início a criação da malha urbana da cidade, e o engenheiro Sebastião Basílio Pirro planejou 36 quadras de 110 x 110 m, projeto que ficou conhecido como ‘’Quadrado de Pirro’’ (fig. 02), dotado de um traçado rígido delimitado por vias ortogonais, que permitia maior praticidade na sua execução (PEMAS, 2001). Figura 02 – Aracaju em 1857 – Implantação do projeto do engenheiro Pirro
Primeiras quadras planejadas, onde os retângulos escuros são os edifícios principais. Fonte: PORTO, 1991
Aracaju é considerada uma cidade planejada por muitas pessoas – pelo fato da elaboração desse projeto primordial - porém Carvalho (2013) aponta que isso é
36 questionável, pois o desenho das primeiras 36 quadras não levou em consideração um planejamento voltado para o futuro crescimento da cidade, de forma que o primeiro instrumento legal que viria a definir fatores realmente urbanísticos e construtivos, só fora implementado um século após a fundação da cidade. Em 1856 foi aprovado o ‘’Código de Posturas’’, através da Resolução Provincial n° 458, imposto dentro do perímetro planejado, regulando a edificação e os costumes de seus habitantes. Havia regras para vestimentas e comportamento dos transeuntes, o que excluía do convívio urbano toda a população nativa e escravos que migravam da zona rural (CARVALHO, 2013). Outras medidas foram que passou a ser obrigatório o alinhamento, dado pelos Fiscais da Câmara, ficou estabelecido o pédireito mínimo de 20 palmos e outras dimensões para as portas e janelas, mandavam caiar as frentes das casas duas vezes por ano, pelo menos, obrigavam a construção de passeios lajeados de 8 palmos de largura nas ruas de sessenta palmos de largura e de 10 palmos nas ruas que tivessem 100 palmos. Fazia-se apenas questão das fachadas. A estas posturas seguiram-se outras delimitando um perímetro dentro do qual era proibida cobertura de palha. Tudo que ficasse dentro ‘’do quadro da Cidade’’ tinha que se condicionar, estritamente, às ‘’pesadas’’ exigências da Câmara (PORTO, 199). Além da área próxima do mar, localizada no Bairro Centro (fig. 03), havia outro ponto localizado no Bairro Santo Antônio, onde já existia um pequeno povoado no alto do morro Santo Antônio, e onde a população mais pobre vai ocupar de forma espontânea (LOUREIRO 1983 apud CARVALHO, 2013, p. 55).
37 Figura 03 – Aracaju em 1865 – Reconstituição feita por PORTO, segundo documentos da época.
Fonte: PORTO, 1991
A população de baixa renda, principalmente os escravos recém libertos, migraram para as áreas de dunas da cidade por não terem condições de habitar no ‘’Quadrado de Pirro’’, assim começam a surgir ruas tortuosas, estreitas e sem saída, constituídas por casebres de palha que deram origem a muitas vilas que permanecem até hoje nos bairros Getúlio Vargas e Cirurgia, especificamente. Hoje essa área se constitui numa comunidade quilombola, já reconhecida nacionalmente (PHLIS, 2011). Porto (1991) distingue em seu livro 4 fases de evolução de Aracaju, onde a primeira fase dura cerca de 10 anos (período de fundação), a segunda dura desde a década de 60 até os primeiros e agitados anos da era republicana, quando ocorre a proclamação da república e a província abandona a cidade. Então se inicia o terceiro período quando a Câmara Municipal era economicamente impotente para gerir efetivamente o lugar: A cidade cresceu por si mesma, casa por casa, lentamente, como gota de óleo. Parece-nos, todavia, sem que tenhamos autoridade para afirma-lo, ser um dos mais interessantes períodos do ponto de vista social. O aracajuano empregou-o em forjar os elementos econômico-sociais com que, aproveitando-se das transformações decorrentes da proclamação da república, conquistou a direção política e econômica do Estado, que iria impor no período seguinte. Nos últimos anos deste período vão aparecer os primeiros estabelecimentos industriais (PORTO, 1991). (p. 11)
O quarto período de desenvolvimento da cidade é caracterizado pela retomada do interesse do Governo Estadual, que promove o embelezamento de
38 algumas áreas e executa obras de saneamento, bem como ocorre a implantação de serviços de água, luz, esgotos e bondes. Ocorre a abertura de novas vias e reformas nas existentes, a cidade nesse momento ocupava toda a planície delimitada entre o rio e as dunas. O início da reorganização do arruamento ocorreu nos bairro Santo Antônio e Santa Isabel, e a cidade começa a expandir na direção noroeste, a partir da abertura das primeiras ruas do Aribé (atual Siqueira Campos). Denota-se nesse período um zoneamento espontâneo da cidade, sem nenhuma interferência direta do poder público, formando-se bairros com predomínio de comércio, de residências abastadas, de habitantes operários e das indústrias. O centro fica ocupado pela classe média e pelo funcionalismo público (fig. 04 e 05) e a população de baixa renda se estabelece em direção oeste e norte, como no Bairro Industrial, que recebe a primeira fábrica (fig. 06) de tecidos do estado de Sergipe, no ano de 1884. Com o declínio da economia mercantil exportadora, a cidade se expandiu de forma espontânea e sem a interferência do Estado, no sentido oeste ao longo das estradas que davam acesso ao interior. Após esse período, e até a década de 50, quando o crescimento físico territorial se intensificou novamente, o centro permaneceu ocupado pela população de classe média e pelas atividades comercias. Intensificou-se ainda a ocupação da zona sul pelas camadas mais privilegiadas da população, facilitadas pelos investimentos do poder público na abertura e construção de novas avenidas e ruas ligando o centro comercial à praia de Atalaia e pela proliferação de loteamentos residenciais. Em contrapartida, a zona norte, a área mais pobre da cidade, foi relegada ao segundo plano pelo poder público (PEMAS, 2001). (p. 30)
Figura 04 – Bairro Centro em 1923.
Fonte: DINIZ, 2009
39 Figura 05 – Centro de Aracaju em julho de 1923.
Fonte: PORTO, 1991 Figura 06 – Fábrica Sergipe Industrial em 1884.
Fonte: https://reveronline.com
Ocorre então um rápido crescimento urbano no Estado de Sergipe, e Aracaju passa a receber um grande contingente de migrantes do campo, impulsionados pelo declínio da produção de açúcar e algodão, e pelo desenvolvimento da industrialização. No período de 1930 a 1950 a população dos bairros Siqueira Campos, Santo Antônio e Dezoito do Forte, aumenta significativamente - por conta da presença da camada mais pobre expulsa do centro - e estes bairros passam a crescer sem apoio governamental de forma aleatória. Na época do ‘’Estado Novo’’, a partir da década de 30, o governo federal promove a concessão de linhas de financiamento voltadas a construção de habitação pelos próprios moradores, mas essa medida não adiantou para amenizar as formas de habitabilidade inadequadas, de forma que a favelização e a ocupação irregular se acentuaram. Diante disso, o governo iniciou as primeiras tentativas de construção de habitações sociais, em 1953, com o primeiro conjunto habitacional, o ‘’Agamenon Magalhães’’, localizado a oeste do centro da cidade, e foi construído com o objetivo
40 de acomodar os favelados da Ilha da Cobra (primeira favela registrada oficialmente no Estado), localizada nas imediações do bairro Industrial. Nos registros da época de 1950 também contém duas outras favelas, a ‘’Brasília’’ ao norte e ‘’Japãozinho’’ ao sul. Atualmente o Agamenon Magalhães está inserido no bairro José Conrado de Araújo, região periférica da cidade, composto por residências de baixo e médio padrão. Iniciou-se o processo de estratificação da cidade e higienização dos locais da elite, com a remoção da população de baixa renda, realocando-os em conjuntos habitacionais localizados nas franjas da cidade, distantes da área melhor estruturada. O processo de exclusão social que dominava a realidade da época - causando periferização e favelização na cidade - culminava em vazios urbanos que ampliava significativamente a especulação imobiliária, dificultando ainda mais o acesso das populações menos abastadas às áreas dotadas de melhor infraestrutura (Programa Morar – Legal, 2006). Em 1965 foi construído outro conjunto promovido pelo poder público, o Conjunto Cidade dos Funcionários (fig. 07), que deu início à ocupação do atual Bairro Grageru, porém nos dias de hoje este se encontra bem articulado à malha urbana, e é o mais próximo da região de alto interesse especulativo (CARVALHO, 2013). Figura 07 – Conjunto Cidade dos Funcionários – Bairro Grageru.
No entorno próximo ao Conj. Cidade dos Funcionários (em amarelo), estão localizadas residências de médio e alto padrão, shopping center (em azul) e edifícios de luxo na Av. Beira Mar (em vermelho). Fonte: Google Earth, 2016
41 A partir do ano de 1964 foi instituído o Banco Nacional de Habitação (BNH)2, o que intensificou a produção habitacional por parte do poder público, tendo como órgão representante local a COHAB. Segundo FRANÇA (1999), na década de setenta – considerada a época do milagre brasileiro – Sergipe cria sua Companhia Nacional de Habitação Popular (COHAB-SE), através do Plano Nacional de Habitação (PNH), e inicia a construção de conjuntos habitacionais, de forma a suprir a demanda por habitação, gerada pelo desenvolvimento econômico e migração acentuada. A porcentagem dos lotes populares era de 88% e quase todos localizavamse ao norte e oeste, evidenciando ainda mais a relação entre estratificação do espaço e classe social. O Centro ainda era o bairro mais representativo, abrangendo as funções econômicas e político-administrativa. (DINIZ, 2009, p. 107)
A COHAB-SE financiou 38 conjuntos habitacionais (17.531 unidades) e na década de oitenta ocorreu a implantação de grandes conjuntos, com mais de 1.000 unidades. Nota-se que por meio desse ‘’boom’’ no ramo da construção, a companhia foi a maior causadora do crescimento urbano de Aracaju. Surgem então várias empresas imobiliárias e construtoras em Aracaju, a exemplo de grupos locais como a Norcon, Construtora Alves, Habitacional e Decide. A partir dessa política da COHAB a especulação imobiliária aumentou e também influenciou num considerável aumento na migração, pois grande parte da população, guiada pelo sonho de ter uma casa própria, migrou para o centro urbano atraídos pela possibilidade de ‘’ganhar uma casa’’, que deveria ser paga durante o período de 25 anos (FRANÇA, 1999). Essa política habitacional, promovida pelo Estado, além de beneficiar a indústria da construção civil e os proprietários de grandes terras (por meio da valorização de algumas áreas pela implantação de infraestrutura), passa a ser um grande trunfo na mão dos grupos políticos, de forma que as casas que inicialmente eram sorteadas num processo democrático de entrega, passaram a ser distribuídas por grupos políticos próximo aos períodos eleitorais. Assim era feita a conquista de
2 Foi uma empresa pública brasileira, com cede em Brasília, que tinha como função prestar financiamentos à produção de empreendimentos imobiliários, atuando de forma semelhante a Caixa Econômica Federal.
42 novos eleitores e a consequente destruição da verdadeira intenção da produção habitacional social, pois o critério para o recebimento das casas que era a carência do candidato passou a ser substituído pelo critério de ‘’proximidade’’ a determinadas alianças políticas. Os grandes vazios urbanos da cidade continuaram inertes a espera de maior valorização e a população de baixa renda foi sendo cada vez mais empurrada para as regiões periféricas da cidade, onde a maioria migrante que não tinha condições de adquirir uma propriedade na capital passou a se instalar. Grande parte dos que chegaram a adquirir casas localizadas nos conjuntos habitacionais da capital, migraram para o entorno de Aracaju por não conseguirem dar conta das prestações, o que culminou na perda da qualidade de vida destes. Assim, a partir da década de setenta, a COHAB já encontra dificuldades quanto à aquisição de terrenos para implantação de conjuntos habitacionais em Aracaju. O poder público mostra-se frágil diante dos proprietários fundiários urbanos e ao invés de fazer valer a função social da terra, vai empurrando a cidade para áreas mais distantes, iniciando, assim, a aquisição de terrenos nos municípios limítrofes: São Cristóvão, Nossa Senhora do Socorro e, posteriormente, Barra dos Coqueiros. (FRANÇA, 1999, p. 84)
A autora França afirma em seu livro que esse fenômeno de estratificação social não é exclusividade de Aracaju, sendo flagrante em outras cidades brasileiras como Natal, Vitória, Maceió, Florianópolis, Cuiabá, Fortaleza entre outras, onde a ação estatal da COHAB, gerou inicialmente, uma aglomeração urbana e, posteriormente, um processo de metropolização associado à periferização. Até que fossem iniciados os projetos da COHAB/SE, quem ditava as ordens na produção habitacional eram as empresas privadas, e naquele momento os principais eixos de expansão da cidade se davam ao longo das ferrovias, rodovia BR235 e principais vias. Aracaju apresentava malha urbana consolidada na região central e no entorno imediato e os bairros Centro, São José, 13 de Julho e Salgado Filho eram ocupados pela população mais abastada. As ruas Itabaiana e Vila Cristina eram importantes vias de interligação entre o centro e o Bairro 13 de Julho (NOGUEIRA, 2009 apud CARVALHO, 2013, p. 80). Os primeiros conjuntos habitacionais gerados pelo sistema BNH/COHAB surgiram em 1968 com os conjuntos Castelo Branco I e II; em 1971 o conjunto Médici
43 I (que originou o atual Bairro Luzia) e nesse mesmo período surgem os conjuntos Gentil Tavares da Mota e Lourival Baptista - zona Noroeste, ao longo da Av. Osvaldo Aranha. Todos estes foram construídos numa região distante da malha urbana consolidada, apresentando deficiência na infraestrutura e acesso precário. A descontinuidade na malha urbana se agravou por conta dessa ação isolada de loteamentos e conjuntos, de modo que não eram previstas ligações entre a localidade e a malha anterior. Os serviços se faziam precários, com abastecimento de água e rede elétrica mais onerosos, e rede de esgotos e arruamento deficitários. Neste período ainda não havia nenhum tipo de lei ou plano que regulamentasse o crescimento urbano, e as ações da COHAB/SE gerava consequências na forma de ocupação do solo, de forma que a partir das suas construções era induzido o povoamento no entorno daquela área pela população de baixa renda. Foi quando em 1966 foram aprovados o Código de Obras (Lei n° 13/1966) e Urbanismo (Lei n° 19/1966), que determinou o zoneamento da cidade por usos, separando a região que seria residencial, comercial e/ou industrial. Carvalho (2013) afirma que além da ferrovia, das novas vias e dos conjuntos que foram construídos, estes instrumentos legislativos também passaram a influenciar nas transformações da malha urbana de Aracaju: Dentre os principais fatores de modificação urbanística podemos citar a delimitação do centro da cidade como zona comercial, o que acelerou ainda mais o processo de ocupação da Zona Sul pela população mais abastada. Além disso, este dispositivo passou a incentivar a verticalização da cidade na região Centro/Sul. Dessa forma, a população mais abastada passou a ocupar cada vez mais as áreas do bairro Treze de Julho, na Zona Sul, juntamente com os casebres de uma população que sobrevivia da pesca, e que já ocupava esta área anteriormente. (CARVALHO, 2013, p. 82)
A população que residia em casebres no Bairro 13 de Julho (fig. 08) foi gradativamente sendo expulsa e dando lugar a classe de maior renda, nesse período inicia-se o processo de verticalização (partindo do centro) e de valorização e ocupação da região sul, até então Aracaju era uma cidade compacta e predominantemente horizontal. Um marco que contribuiu para que tal fato acontecesse foi a construção do Estádio de Futebol Lourival Baptista (fig. 09),
44 considerado um importante ícone da modernização da cidade, o que gerou grande valorização do solo nesta área.
Figura 08 – Vista aérea de Aracaju a partir da 13 de Julho em direção ao Centro – década de 70
Fonte: DINIZ, 2009 Figura 09 – Estádio de Futebol Lourival Baptista
A lado direito e na parte superior visualiza-se a Praia Formosa e ocupação rarefeita da 13 de Julho Fonte: DINIZ, 2009
Outro marco que influenciou no desenvolvimento urbano do Estado foi a transferência da sede administrativa da Petrobrás e da sede da Região de Produção do Nordeste, de Maceió para Aracaju e, com isso, Sergipe recebeu um grande contingente de técnicos e especialistas de petróleo que, segundo França (1999), contribuíram para o fortalecimento da classe média sergipana. A fundação da
45 Universidade Federal de Sergipe – UFS (1968); a construção do Terminal Marítimo de Carmópolis – Tercarmo (1970); a implantação da Petrobrás Mineradora – Petromisa (1976); da Nitrogenados do Nordeste – Nitrofértil (1978) e do Distrito Industrial de Aracaju (1971), foram também grandes influenciadores da urbanização na época, pois impulsionou a melhoria do sistema viário, resultando no aumento de indústrias instaladas e num maior número de pessoas empregadas3. Além da melhoria e da abertura de novas vias, no final da década de 70, iniciou-se o processo de ocupação da península que deu origem ao bairro Coroa do Meio, por meio da construção de uma ponte o rio Sergipe, o que possibilitou acesso à área (fig.10). A forma de urbanização da Coroa do Meio evidenciou a falta de cautela do poder público com o meio ambiente, fato que vem ocorrendo desde a época da fundação da cidade. Em todas as etapas de construção houve desmatamento da vegetação local, constituída por manguezais, restingas e coqueiros.
Figura 10 – Início das obras de urbanização do bairro Coroa do Meio – década de 80
Fonte: Acervo do fotógrafo Lineu Lins apud CARVALHO (2013)
3 ‘’O Estado de Sergipe: da urbanização à formação metropolitana’’. MENEZES e VASCONCELOS, 2011.
46 Segundo Carvalho (2013), a partir de entrevista realizada com antigo funcionário do BNH, a urbanização da área foi financiada pelo BNH, sob nome de Projeto Cura, liderado pelo arquiteto e urbanista Jaime Lerner, e as obras iniciaram de ‘’trás pra frente’’, ou seja, das áreas mais distantes à ponte de acesso para as mais próximas. Nesta área foram construídos inicalmente o Shopping Riomar (primeiro shopping center da cidade) e a primeira casa de shows. Posteriormente foi construído um hotel de alto padrão ao lado do shopping (fig. 11). Por ter sido um projeto financiado pelo BNH, o mesmo deveria efetuar a construção de obras de caráter social, o que não aconteceu pois a região foi destinada a ocupação de pessoas de alta renda, além de ter promovido a expulsão dos habitantes nativos (pescadores).
Figura 11 – Vista aérea da ponte da Coroa do Meio, Shopping Riomar e do Hotel Quality – Ano 2013.
Ao fundo nota-se o bairro Coroa do Meio Fonte: Acervo de João Manoel/skyscrapercity.com
A ocupação desordenada das áreas periféricas permanecem acontecendo em todas as direções da cidade, principalmente na região Sul, sendo as rodovias dos Náufragos e José Sarney, Av. Heráclito Rollemberg, Av. Beira Mar e Av. Euclides Figueiredo importantes vetores do crescimento urbano, assim como conjuntos
47 construídos na Zona Sul4, mais especificamente à sudoeste (região limítrofe do município de São Cristóvão). A peculiaridade da produção habitacional deste período, foi a construção de conjuntos menores nas regiões onde já existiam conjuntos maiores, dando continuidade a ocupação das áreas do extremo sul.5 Em paralelo a formação do bairro Santa Maria, numa região segregada e de baixa renda, ocorre a construção do bairro Jardins (anos 90), área localizada na malha urbana consolidada, onde foi ocupada pelas classes mais abastadas, recebendo prontamente pavimentação nas novas ruas, melhorias na infraestrutura local e implantação de um centro comercial (o Shopping Jardins, construído pela Norcon) (fig.12). Este bairro fazia parte do bairro Grageru, e foi implantado num grande vazio urbano que era consequência da construção de grandes conjuntos habitacionais em outras de Aracaju. A formação desse bairro denotou a estratégia de produção de vazios urbanos destinados a especulação imobiliária, pois a área do bairro jardins se apresentava como um vazio urbano, com todo seu entorno ocupado e infraestruturado, desde os anos 70, sendo que a lei de criação do bairro data de 1998, enquanto outros bairros foram delimitados por lei em 1982. Figura 12 – Fachada do Shopping Jardins – década de 90
Fonte: DINIZ, 2009
4
Originou a ocupação do atual bairro Santa Maria e 17 de Março, em um local de difícil acesso e que apresenta um série de
fragilidades ambientais, por se tratar de uma área de várzea localizada no extremo sul da cidade. 5 CARVALHO, 2013
48
A partir dessas mudanças no espaço geográfico do Estado, no século XX, Aracaju começa a apresentar características metropolitanas, resultado das novas relações socioeconômicas entre a capital e outros municípios, avançando assim em direção à Barra dos Coqueiros, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão. Especialmente a partir de 1980 ocorre um célere crescimento de conjuntos habitacionais e de aglomeração de pessoas ao redor desses empreendimentos, o que foi aos poucos resultando numa metropolização periférica. No início da década de 80, foi instituída a Lei Complementar nº 25, de 29 de dezembro de 1995, que cria a Região da Grande Aracaju formada pelos municípios de Nossa Senhora do Socorro, São Cristóvão e Barra dos Coqueiros. Algumas melhorias de desenho e planejamento urbano também foram geradas quando foi instituída a Região. Também, nesse período, o sistema de transporte público de Aracaju foi mudado radicalmente e ampliado na década de 90, com a implantação do sistema de transportes intramunicipal integrado, diminuindo os deslocamentos e os congestionamentos. (PEMAS, 2001, p. 36)
A política habitacional e urbana no Brasil sofreu modificações diante do movimento de Reforma Urbana, da aprovação da Constituição de 1988 e da elaboração do Estatuto da Cidade, o que gerou transformações na estrutura administrativa da Prefeitura Municipal de Aracaju. O Estatuto da Cidade impõe a garantia ao papel social da cidade e da propriedade, bem como a democratização da política urbana, o que fomentou os governos municipais a iniciarem um processo de transformação na gestão local. Com a instituição da Constituição Federal de 1988, foram definidas leis orgânicas como instrumentos que davam diretrizes para a elaboração dos planos diretores de todas as cidades brasileiras. Foi quando em 05 de abril de 1990 a Lei Orgânica Municipal foi promulgada e instituiu o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Aracaju, – que começou a ser elaborado em 1991 mas só foi aprovado em 2000 –, o que alterou completamente a legislação urbana do município, objetivando
assim
a
regulamentação
dos
instrumentos
da
política
de
desenvolvimento urbano. A Zona Urbana foi distribuída em cinco zonas de adensamento preferencial e duas de adensamento básico. Já a Zona de Expansão foi classificada como zona de adensamento restrito. Além disso, foram definidas as Áreas
49 Especiais que se sobrepõem ao macrozoneamento. São as Áreas de Desenvolvimento Econômico (ADEN1 e ADEN2 de A a F), as Áreas de Interesse Urbanístico (AIU de 1 a 4), as Áreas de Interesse Ambiental (AIA) e as Áreas de Interesse Social (AEIS de 1 a 6), essas últimas, tendo seus parâmetros definidos no corpo da lei (embora seja prevista uma legislação específica para cada área, além da criação de novas AEIS, mediante lei). (PEMAS, 2001, p. 74)
Consta no diagnóstico realizado pela prefeitura em 2001, o PEMAS, que as leis complementares ao PDDU já apresentavam problemas, sendo grande a preocupação da administração municipal da época, tanto que no decorrente ano, foi instituída uma comissão encarregada de revisar a legislação. Até o ano presente (2017) o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Aracaju apresenta problemas, (estando ainda vigente o plano do ano 2000), a situação é ainda mais alarmante por estar bastante defasado e necessitando de atualização que condiga com a presente realidade da cidade. Como problema temos o exemplo da Zona de Expansão, que recebeu (e vem recebendo) empreendimentos e residências que ocupam áreas que não contém infraestrutura adequada em seu entorno, sendo que tal área está na Zona de Adensamento Restrito, o que implica dizer que esta zona ainda não está estruturada adequadamente para receber grande contingente de habitantes. Na Zona de Expansão ainda é possível verificar a presença de propriedades rurais, com a população ocupada nessas atividades, embora se caracterize como ‘’Zona de Expansão Urbana’’, se constitui como uma área de transição rural/urbana, sendo submetida a intenso processo de especulação imobiliária que vem transformando-a em área urbana especialmente de segundas residências, com a presença de loteamentos e condomínios fechados, destinados às categorias de renda mais elevada (PHLIS, 2011). Em entrevista com a arquiteta e urbanista Marianna Albuquerque (SEPLOG)6 quando questionada sobre as dificuldades na atualização do PDDU, ela relata que por se tratar de um processo extenso, muitas vezes falta fôlego por parte da gestão
6 Coordenadora Geral de Desenvolvimento Urbano – COGEDURB/SEPLOG; acompanhou e participou do processo de elaboração das revisões anteriores do Plano Diretor; é atualmente uma das técnicas responsáveis pela continuidade da atualização do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. – Ver entrevista na íntegra no apêndice A.
50 municipal e por conta da mudança do quadro de funcionários, quando ocorrem novas eleições, o processo se atrasa por ser interrompido até o estabelecimento da nova gestão. A mesma destaca que um ponto positivo da gestão atual (2017), foi a decisão de não ignorar o processo que aconteceu na última revisão do plano, em 2015, o que fará com que ele seja revisto e alterado pontualmente. Após a revisão do processo de 2015, o novo PDDU será apresentado a população, para depois ser avaliado pelo Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano - CONDURB e em seguida ir para votação na Câmara Municipal. De acordo com a Coordenadora de Desenvolvimento Urbano, a previsão é de que até meados do ano de 2018 a minuta de lei esteja pronta e aprovada pelo CONDURB, para a partir daí seguir para a câmara, onde serão realizadas uma série de audiências, as quais não estarão sob o controle da Prefeitura Municipal, portanto não é possível prever quando o processo será de fato concluído. Para o novo PDDU está previsto a implementação de instrumentos que impeçam a criação e permanência de vazios urbanos, que são especificamente o IPTU progressivo, as PEUCs (Parcelamento, Edificação e Utilização compulsórios), Outorga Onerosa do direito de construir e a Desapropriação em pagamento de titularidade pública. No Plano Diretor vigente, constam esses instrumentos, porém o único que é efetivamente aplicado é o IPTU progressivo. Além dos instrumentos citados acima, existem outros que estão vigentes, que tem como função ordenar a ocupação da malha urbana de Aracaju, são eles o RIV (Relatório de Impacto de Vizinhança) e a Regularização Fundiária. Outro problema identificado na cidade é a dificuldade na fiscalização das construções, o que ocasiona o não cumprimento da legislação urbana. Ainda na entrevista com a funcionária da SEPLOG foi levantada a questão da fiscalização do cumprimento do PDDU, e o que foi identificado é que existe uma falha em relação a quantidade de técnicos capacitados para a fiscalização, estando ativos apenas 6 fiscais (da EMURB) para cobrir a cidade toda (enquanto a anos atrás o quadro de ficais continha 40 membros). Fica evidente que no processo de consolidação do espaço urbano de Aracaju, não houve zelo por parte do Estado, no tocante ao cumprimento da função social da
51 terra. A ampliação através de ‘’manchas isoladas’’, desencadeou uma intensa especulação imobiliária, privilegiando os proprietários de terra e do capital, dificultando o acesso à cidade pela população mais pobre, que foram gradativamente afastados do centro estruturado da cidade, sendo forçados a ocupar áreas distantes, resultando num processo de periferização e segregação sócioespacial. As classes menos abastadas não tiveram escolha, restando como única opção a ocupação de lugares inóspitos, com infraestrutura precária (ou inexistente). Nessa metropolização fica bem evidenciado o fortalecimento de setores econômicos como o da construção civil, que no desenvolvimento de suas atividades (construção de grandes conjuntos habitacionais e obras de infraestrutura), ampliou seu capital e, consequentemente, sua força de produção do urbano. (FRANÇA, 1999, p. 213)
Existe uma fragilidade política na administração municipal, que é facilmente refém das grandes empresas detentoras do capital, que corrompem as leis e se tornam principais influenciadoras da produção do espaço urbano. É evidente a importância de maior interlocução entre a gestão municipal e a população, em que através de mecanismos eficazes, possa se decidir sobre a solução da problemática urbana conjuntamente, pois a principal falha da forma de gestão que vem sendo imposta é a falta de uma maior participação da população nas decisões voltadas às políticas públicas (que seria o verdadeiro direito à cidade), o que reflete numa crescente exclusão social, que impera em todo o país.
3.1 O PROBLEMA HABITACIONAL EM ARACAJU Como visto na sessão anterior, a partir da década de 30, período do ‘’Estado Novo’’, houve a concessão de linhas de financiamento para construção de habitação pela própria população (isso se deu em âmbito nacional). Tal medida não foi suficiente para sanar os problemas de acesso à moradia e o processo de favelização e assentamentos irregulares se intensificou em todo o Brasil. Desta forma evidenciouse que apenas o sistema de mercado não daria conta de sanar tal problemática, assim houve o início das primeiras tentativas governamentais de construção de habitações sociais.
52 Aracaju está inserida num espaço metropolitano, onde é alvo de intensa migração e de fluxos em busca de bens e serviços desde os primórdios da sua consolidação urbana. Diariamente é intenso o fluxo de pessoas advindas de outros municípios sergipanos para acessar principalmente serviços de educação, saúde e para vender sua força de trabalho. Pela sua expressiva centralidade o município deve prover estruturação urbana capaz de atender os impactos dessa migração. Aracaju também concentra grande parte das atividades econômicas presentes no Estado, com destaque para aquelas ligadas à administração pública estadual e federal, além de funções comerciais e de serviços mais especializados, atraindo população de todo o estado e das áreas circunvizinhas [...] as facilidades de comunicação e acessibilidade atraem pessoas de outros municípios para trabalhar e estudar na capital, intensificando a migração pendular e pressionando os postos de trabalho e as vagas nas escolas. (PLHIS, 2011)
As políticas públicas que foram (e continuam sendo) executadas no território aracajuano e na região denominada de Grande Aracaju (municípios vizinhos), atrai pessoas de diversos municípios sergipanos e de também de outros estados. A maioria dessa população migrante vem em busca de moradia e de oportunidades de empregos, porém ao não alcançarem tal objetivo, passam a ocupar áreas de proteção ambiental e o entorno dos conjuntos habitacionais (como forma de pressionar o poder público para construção de novas unidades). Esta situação favorece a proliferação de habitações precárias e reflete na composição populacional dos municípios sergipanos, que passa a ser formada por grande número de pessoas que não são nativas, e que pressionam por novas possibilidades de ocupação e geração de renda. Quando o atendimento a tais necessidades não é suficiente, surge o desemprego, a violência e a pobreza. Problemas urbanos que são recorrentes nas cidades brasileiras. No estado de Sergipe o governo passou a executar ativamente a produção habitacional de interesse social a partir da instituição do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema Financeiro da Habitação (SFH); através da Lei Federal n° 4.380, de 21 de agosto de 1964; que passa a ser o órgão responsável pelo repasse de verba para produção habitacional em todo Brasil. A partir desse acontecimento o Estado cria a COHAB/SE com a finalidade exclusiva de promover a gestão da habitação para as classes populares em Sergipe.
53 As primeiras ações do poder público estadual na construção de conjuntos habitacionais populares aconteceram no período de 1968 à 1970. O conjunto Castelo Branco I foi o primeiro a ser construído pela COHAB/SE e foi implantado numa área próxima à região central do município de Aracaju. Neste período foram contratadas 1.665 unidades habitacionais, que foram dispostas em cinco conjuntos habitacionais, mas ainda assim, segundo Carvalho (2012), não era dada a devida importância a moradia, uma vez que a produção habitacional recebeu uma parcela ínfima dos recursos disponibilizados pelo fundo especial destinado ao desenvolvimento econômico e social do Estado. Com a renovação da gestão, no período de 1971 à 1974, foi criado o Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAP), sancionado pela Lei n° 1805, de 07 de novembro de 1973, que dispunha sobre a necessidade de alinhamento da política estadual com a nacional, por meio de convênios que só seriam disponibilizados a partir da elaboração de planos, programas e projetos de acordo com os objetivos do PLANHAP. Essa lei foi um grande marco para a definição de novas estruturas organizacionais do estado, porém não alcançou seu principal objetivo que era a eliminação do ‘’déficit’’ estadual de habitações para famílias com renda entre um e três salários mínimos regionais; e tal objetivo deveria ser efetivado dentro do período máximo dez anos. Neste período aconteceu a reestruturação da Companhia de Habitação Popular de Sergipe (COAHB/SE) afim de que se ajustasse permanentemente à política do BNH. Assim ficou como competências do órgão a elaboração de projetos e construção de habitações populares e o desenvolvimento comunitário, no âmbito dos programas habitacionais. A partir de um financiamento do SFH foram produzidas 2.182 unidades habitacionais, divididas em 13 conjuntos. Foi quando se intensificou a quantidade de conjuntos edificados, que em sua maioria foram localizados em áreas desarticuladas da malha urbana existente. Carvalho aponta que a partir de 1979 se iniciou uma tentativa de popularização da política do BNH, e o modelo de financiamento passou a ser mais flexível, sendo o final dos anos 70 e o início dos anos 80 o período ápice da produção
54 financiada pelo BNH. Em Aracaju foram contratadas 3.407 unidades habitacionais, distribuídas em 7 conjuntos, porém houve maior concentração de unidades no conjunto Assis Chateaubriand II (atual bairro Bugio), dotado de 1.272 unidades, instalado na porção da cidade que se distanciava do centro infraestruturado (fig. 13).
Figura 13 – Conjunto Assis Chateaubriand I e II em 1969.
O distanciamento da malha urbana consolidada é evidenciado pelo vazio e esparso povoamento ao seu redor. Fonte: Acervo do fotógrafo Lineu Lins apud CARVALHO (2013)
Com o decorrer dos anos podemos identificar uma maior preocupação com as questões habitacionais do município, sendo que em 1983 foi criada a Secretaria de Habitação e Previdência Social (SEHAP), a qual a COHAB/SE ficou diretamente subordinada. A secretaria assumiu o importante papel de promover a política estadual de habitação, realizar estudos e levantamentos socioeconômicos para implantação de habitação de interesse social, articular a implantação e conservação de equipamentos comunitários em conjuntos habitacionais, dentre outras atribuições. Neste período, na região sul do município foi construído o conjunto Augusto Franco -envolto por áreas remanescentes - o maior conjunto habitacional construído no estado, com 4.510 unidades destinadas à população de classe média baixa (fig. 14).
55
Figura 14 – Conjunto Augusto Franco em 1983.
Fonte: aracajusaudade.blogspot.com.br
Apesar da realização de medidas que tiveram o intuito de promover melhorias na política habitacional do estado, notando-se neste período uma maior atenção no desenvolvimento urbano e habitacional, a produção de conjuntos em áreas periféricas e desarticuladas da cidade continuou acontecendo. No período de criação da SEHAP se iniciou o processo de descapitalização do BNH, o que ocasionou numa redução significativa nas produções habitacionais, vindo a ser extinto no ano de 1986. Após esse acontecimento motivado pela falta de financiamento do âmbito federal, o governo do estado de Sergipe cria a Fundação de Desenvolvimento Urbano de Sergipe (FUNDESE), que passa a realizar doação de lotes e materiais para construção de conjuntos habitacionais em regime de mutirão (para população com renda entre 01 e 03 salários mínimos).
56 As condições em que se encontrava o cenário habitacional aracajuano continuavam insuficientes e precárias e o governo do estado passou a interferir menos na produção habitacional. A estrutura gestacional foi alterada novamente e a COHAB/SE se unificou ao DEP (Departamento de Edificações Públicas), passando a se chamar CEHOP/SE (Companhia Estadual de Habitação e Obras Públicas). A CEHOP/SE assumiu a função de controlar e ordenar o crescimento regional e metropolitano, e neste período foram construídas 3.887 unidades habitacionais nas cidades limítrofes à Aracaju, Nossa Senhora do Socorro e São Cristóvão. As produções em regime de mutirão não foram tão significativas do ponto de vista quantitativo, e no final dos anos 80 iniciou-se a ocupação de terrenos localizados no limite entre Aracaju e São Cristóvão. Assim em 2001 foi fundado o bairro Santa Maria, disposto num local de difícil acesso com fragilidades ambientais. No processo de metropolização, a ação do Estado se fez presente de forma determinante, e França (1999) explana que mesmo que o poder público tenha utilizado estratégias para o barateamento das construções, muitas vezes um grande contingente de trabalhadores não consegue adquirir sua casa. Iniciando assim um processo de ocupação das áreas limítrofes da cidade, constituindo os locais da pobreza. Após passar por diversas alterações na estrutura dos organismos que lidam com a política habitacional de Aracaju, atualmente (2017) temos muitos atores envolvidos nesse âmbito, sendo eles de iniciativa privada, pública e de movimentos sociais urbanos. No seguimento do poder público, destacam-se o Ministério das Cidades e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, tendo a Caixa Econômica Federal como principal agente financeiro e fiscalizador (PLHIS, 2011). No presente em Aracaju a Prefeitura Municipal vem atuando através da Empresa Municipal de Obras e Urbanização – EMURB e da Secretaria de Planejamento e Orçamento – SEPLOG. O fortalecimento dessas políticas iniciou-se a partir da criação do Ministério das Cidades, em 2003, e, posteriormente em 2004, com a aprovação da Política Nacional de Habitação que tem como prioridade a integração dos assentamentos precários à vida urbana, garantindo os serviços básicos, como saneamento, regularização fundiária e moradia digna, associada ao desenvolvimento econômico como uma estratégia importante na redução da pobreza e de fortalecimento da sustentabilidade urbana. (PHLIS, p. 12)
57 Devido as aglomerações da população de baixa renda que por não terem condições de adquirir uma moradia digna, passaram a ocupar áreas remanescentes da cidade (principalmente na região periférica), no ano de 2001 na época da Secretaria Municipal de Planejamento – SEPLAN, foi elaborado o Plano Estratégico Municipal para Assentamentos Subnormais – PEMAS. O PEMAS foi um estudo realizado para analisar as condições habitacionais do município de Aracaju, no tocante as comunidades de baixa renda; e definir as principais diretrizes para uma política municipal de habitação mais racional, democrática e cidadã. Através do estudo foram identificados 52 assentamentos subnormais e 14.845 domicílios em condições precárias. Assim levantou-se o número de 71.776 indivíduos vivendo sob situações de habitabilidade desfavoráveis. Por esse motivo a situação habitacional da cidade foi considerada crítica: A situação habitacional no município de Aracaju pode ser considerada grave, tendo em vista a indisponibilidade de áreas para o uso habitacional das populações de baixa renda, assim como o grande número crescente de famílias vivendo em situações de risco e/ou sob condições inadequadas de habitação. De fato, o processo de favelização e pobreza em Aracaju tem se acelerado acentuadamente, comprometendo, em particular, as áreas de proteção ambiental, como os terrenos que margeiam os mangues e rios. É aí que está localizada a grande maioria dos assentamentos subnormais da cidade. (PEMAS, p. 27)
Pode-se notar que um motivo apontado pelo diagnóstico do PEMAS como causador dessas aglomerações é a ‘’indisponibilidade de áreas para o uso habitacional da população de baixa renda’’, o que compromete as áreas de proteção ambiental e de risco (tabela 01). Porém NERI (2011) afirma que existem grande número de não edificáveis urbanos e imóveis subutilizados em Aracaju, que provocam um crescimento que nem sempre é necessário em algumas áreas das cidades, elevando os valores em investimentos, em especial dos transportes.
58 Tabela 01 – Lista de domicílios situados em áreas de risco.
Fonte: PEMAS, 2001.
De acordo com a análise feita por Neri, os números encontrados no cenário de 2011 demonstraram que Aracaju ainda poderia abrigar em seus vazios urbanos quase 50% da população residente em sua malha urbanizada, o que também poderia vim a estressar seu sistema de infraestrutura. Essa indisponibilidade de terra apontada foi sem dúvida produzida pelo próprio governo e suas políticas habitacionais, que sempre priorizaram os interesses das imobiliárias e nunca incluíram a população nas decisões. Por esse motivo o PEMAS pode ser considerado um grande marco para o exercício da democracia na cidade (ainda que ínfimo); pois o estudo reconhece que os principais problemas enfrentados pelo município no âmbito da moradia decorrem efetivamente da falta de uma política habitacional (em particular de instrumentos de gestão do espaço urbano, sejam eles legais, institucionais, administrativos, financeiros e outros) que possa ser articulada com o conjunto das ações e políticas adotadas pelo gestor municipal e definida de forma participativa. Nesse sentido, o programa municipal de habitação ora elaborado busca definir as ações indispensáveis para estruturar e capacitar o gestor municipal e a sociedade civil organizada para a execução de políticas urbanas-habitacionais solidárias e democráticas. (PEMAS, p. 31)
Na maioria dos assentamentos identificados no plano estratégico foram levantadas as seguintes necessidades de intervenção: elaboração e/ou atualização de cadastros; urbanização e regularização fundiária; recuperação de áreas sujeitas a risco de inundação; construção de habitações de interesse social; recuperação
59 ambiental das áreas; obras de pavimentação e drenagem; obras de construção civil; ligações domiciliares; abastecimento de água; recuperação/ construção do sistema viário; iluminação pública e coleta de resíduos sólidos. Dentre os 52 assentamentos subnormais, foram elencadas as maiores áreas de assentamentos subnormais: Coroa do Meio, Terra Dura (atual bairro Santa Maria) e Coqueiral (no bairro Porto Dantas). A Coroa do Meio apresentou suas primeiras ocupações na década de 70, e as famílias se assentaram numa área de extrema fragilidade ambiental (fig. 15). A ocupação resultou de sucessivos aterros do manguezal e construções de palafitas (apresentando um dos maiores índices de insalubridade), que gradativamente foi se expandindo devido à localização favorável na malha urbana e da proximidade de áreas de maior valorização da cidade (fig. 16).
Figura 15 – Habitações precárias do bairro Coroa do Meio.
Na foto do lado direito é possível evidenciar o acúmulo de lixo e a insalubridade do local Fonte: PEMAS, 2001.
60 Figura 16 – Foto aérea de parte do bairro Coroa do Meio.
Em amarelo: Ocupação em local de preservação ambiental e próxima a área de alta especulação do município, a Orla de Atalaia. Elaboração: a autora. Fonte: Google Earth, 2003.
A partir da avalição técnica da área decidiu-se as medidas de intervenção que seriam propostas pelo Plano Estratégico Municipal para Assentamentos Subnormais: (...) instalação de um escritório no local, nas dependências da associação de moradores, constituído por um representante da Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania, um representante da Secretaria de Movimentos Sociais e Orçamento Participativo e dois fiscais da Empresa Municipal de Obras e Urbanização, órgão responsável pela fiscalização do uso do solo urbano. (...) elaboração um projeto para implantação de uma unidade de fabricação de doces de frutas regionais e compotas, cujo objetivo é proporcionar condições de emprego e renda, como elementos essenciais à fixação dessas pessoas na comunidade. O Museu do Mangue – em estudo – aparece como mais um elemento com capacidade de transformar, dentro do projeto de reurbanização da Coroa do Meio, a realidade de uma comunidade submetida a condições subnormais. Efetivamente, é um elemento de geração de emprego e renda que pode transformar esse local em um ponto turístico dada à beleza do lugar e a proximidade com a orla da praia de Atalaia. (PEMAS, p. 118 e 119)
61 Ao se passar cinco anos da elaboração do diagnóstico, em 2006 foi concluído o projeto de reurbanização da Coroa do Meio, proporcionado pelo projeto Moradia Cidadã, contemplando cerca de 650 famílias que foram cadastradas pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania – SEMASC (fig. 17).
Figura 17 – Fotos do conjunto habitacional da Coroa do Meio, 2006.
Fonte: institutomarcelodeda.com.br
Uma importante medida implementada nessa época foi a Divisão de Apoio à Moradia do Departamento de Assistência Social (pertencente a SEMASC), que tinha como atribuições atender a comunidade carente do município através da identificação e cadastramento das famílias que residem em áreas de risco; trabalhos
62 de conscientização das famílias para remoção e relocação; assistência às famílias faveladas no período de agravamento das condições climáticas; orientação e encaminhamento da população favelada para retirada de segunda via de documentos; orientação às famílias migrantes que vivem alojadas em vias públicas atingidas direta ou indiretamente por calamidades; levantamento socioeconômico das áreas de assentamento, visando a elaboração de projetos; levantamento de vilas do Município de Aracaju; regularização fundiária das áreas de ocupação mais antigas; visitas domiciliares para atendimento às famílias que necessitam de melhoria dos seus imóveis. Outros assentamentos diagnosticados pelo PEMAS estavam localizados na região conhecida como ‘’Terra Dura’’ (hoje nomeada como bairro Santa Maria) e foram identificados como ‘’invasões’’ da Prainha, do Canal Santa Maria, do Arrozal e Água Fina. Localizadas na zona de expansão urbana, a área tinha pouca acessibilidade e era bastante inóspita do ponto de vista da paisagem urbana. No texto de análise do planejamento consta que a área possuía pouca infraestrutura e apresentava sérios problemas, tanto ambientais quanto de segurança pública. A primeira sensação na observação da área era a de haver se transformado num vazadouro dos conflitos habitacionais de Aracaju (fig. 18).
Figura 18 – Foto dos barracos do Canal Santa Maria.
63
Fonte: PEMAS / www.aracaju.se.gov.br
Apesar de serem identificadas as necessidades da população do local no ano de 2001, a ação mais significativa se deu após 10 anos com a criação do bairro 17 de Março (fig. 19). Localizado entre os bairros Santa Maria e Zona de expansão, numa área de aproximadamente 2 milhões de metros quadrados, o empreendimento visou atender o déficit populacional da área, qualificando a moradia e a vida da população remanejada de assentamentos subnormais do entorno do bairro e de outras áreas da cidade. Podemos observar na figura abaixo o grande número de áreas remanescentes e a formação de um assentamento vizinho ao conjunto. Na área demarcada em vermelho na imagem estão as ocupações Mangabeiras, Luta Popular, Terra Prometida, Movimento sem Casa e 17 de Dezembro e segundo informações da SEMASC, atualmente estas abrigam cerca de 2.000 pessoas.
64
Figura 19 – Bairro 17 de Março. Em amarelo: Bairro 17 de março; Em vermelho: ocupação urbana Elaboração: a autora. Fonte: Google Earth, 2016 / Amarildo Resende (www.panoramio.com) / www.infonet.com.br
65 Dentre as maiores ocupações identificadas na época, a mais recente é a do Coqueiral, que está situada na porção norte da cidade, que foi crescendo de forma descontrolada e desordenada. A população foi construindo suas moradias sem padrão algum, de forma bastante irregular e confusa, pois foram guiados pela necessidade de contornar os alagamentos da área que fica próxima ao mangue (fig. 20).
Figura 20 – Evolução da ocupação do Coqueiral.
Elaboração: a autora. Fonte: Google Earth
Na figura acima evidencia-se o adensamento da ocupação - que beira o mangue próximo ao Rio do Sal - que se iniciou de maneira esparsa e desordenada; e com o decorrer dos anos assumiu um caráter mais consolidado com casas de alvenaria e organização e pavimentação das vias. Segundo informações da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão - SEPLOG, no Coqueiral atualmente
66 está se iniciando o trabalho de regularização fundiária, afim de atestar a propriedade das casas legalmente às famílias residentes, através da elaboração das escrituras. Seguindo os preceitos da Constituição Federal e o Estatuto da Cidade, outra importante medida é tomada pelo poder público, almejando-se materializar o ‘’direito à cidade’’, ocorreu a elaboração do Programa Aracaju Morar-Legal (Diagnóstico e Programa de Regularização Fundiária dos Assentamentos Precários de Aracaju/SE) em 2006. O principal objetivo da sua realização foi auxiliar a administração municipal na articulação programática e na sistematização das suas ações de cunho urbanístico, jurídico, fiscal e social, com o intuito de enfrentar os problemas fundiários das áreas de assentamentos humanos informais (PROGRAMA ARACAJU MORAR-LEGAL). Segundo consta no programa elaborado, a Regularização Fundiária efetiva e eficaz em Aracaju nunca antes havia sido tema prioritário na agenda da gestão urbana da cidade, seja por seu forte apelo político-eleitoral, que surte efeito imediato (com a simples concessão do título) e que é “preservado” para ser utilizado em momento oportuno, seja pela falta de conhecimento e capacitação do gestor, ou ainda pelo pouco envolvimento (e conhecimento) da comunidade em torno do tema. Diante do crescimento desordenado da cidade foram gerados espaços urbanos clandestinos, onde se localiza a maior parte da população de baixa e baixíssima renda. Com o intuito de incorporar essas áreas de ocupação irregular e clandestina à cidade legal, foram instituídas as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), através do artigo 4° do Estatuto da Cidade, que se dispõe como um instrumento de regularização fundiária. Assim o PDDU de Aracaju definiu que nas áreas classificadas como AEIS (fig. 21) os proprietários devem destinar seu imóvel à algum uso, sob pena da utilização do município para programas de habitação de interesse social, mediante a desapropriação. Essa medida foi de fato significativa no âmbito das políticas públicas do município, por não ter havido antes nenhuma ação semelhante que possibilitasse a melhor distribuição e uso das terras urbanas.
67 Figura 21 – Áreas Especiais de Interesse Social – AEIS
Fonte: SEPLAN, 2005
68 Em 2011 mais um plano voltado para habitação é elaborado, nomeado de Plano Local de Habitação de Interesse Social – PLHIS, o documento foi dividido em duas partes: Diagnóstico das Condições Urbanas e Habitacionais e Estratégias de Ação. A partir do PLHIS foram registrados 73 assentamentos espalhados pelos bairros de Aracaju, compostos por 23.978 unidades habitacionais que necessitavam de intervenções afim de reduzir o déficit e de melhorar a qualidade de vida da população (tabela 02).
Tabela 02 – Lista de Assentamentos precários de Aracaju, 2011 ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS DE ARACAJU - FONTE PLHIS BAIRROS
GEOCÓDIGO
N° DE DOMICÍLIOS
18 do Forte Aeroporto América Atalaia Bugio Capucho Cidade Nova Farolândia Inácio Barbosa Industrial Jabotiana Jardim Centenário Jardins José Conrado de Araújo Lamarão Luzia Olaria Palestina Ponto Novo Porto D'Anta Santa Maria Santo Antônio Santos Dumont São Conrado Soledade TOTAL
26 38 14 1 29 15 27 2 4 39 6 30 8
533 910 866 28 672 329 2.038 616 930 2.457 406 393 3
18
207
19 9 40 23 10 32 33 24 31 5 28
1.513 98 188 109 461 4.175 2.543 171 992 2.928 412 23.978
Fonte: PHLIS
Mediante o levantamento, contatou-se que a falta de esgotamento sanitário é o serviço que mais contribui para a inadequação dos domicílios, presentes em 73% do total dos domicílios inadequados, seguido da falta de abastecimento de água e da
69 coleta de lixo, presentes, respectivamente, em 17% e apenas 10%. Em situação bastante precária estão 23% dos domicílios inadequados que apresentam a ausência de mais de dois serviços simultaneamente, 1,3% que apresentam a ausência de três, e 0,4% que apresentam a ausência de mais de quatro serviços (PLHIS). Cada área de assentamento elencada na tabela acima foi analisada e disposta numa tabela onde foram descritas as ações necessárias para a promoção de melhorias, como a necessidade de urbanização, remanejamento, construção de moradias, recuperação de moradias e regularização fundiária. Por meio deste levantamento foi permitido o monitoramento do desempenho dessas atividades ao longo dos anos e no PHLIS consta que o ideal seria a revisão do Plano a cada cinco anos. As linhas de ação dispostas no PLHIS tiveram como base os seguintes princípios, objetivos e diretrizes: Atender às necessidades habitacionais da população, prioritariamente na faixa de renda de zero até três salários mínimos; Estimular a produção de Habitação de Interesse Social (HIS) por demais agentes da produção habitacional, tais como a iniciativa privada, as associações de movimentos populares e cooperativas habitacionais; Garantir a sustentabilidade social, econômica e ambiental dos programas habitacionais através da articulação com as políticas de desenvolvimento econômico, social e de gestão ambiental; Reduzir a segregação socioespacial na cidade através da oferta de áreas para a produção de moradias, assim como a utilização de prédios vazios do Centro. (p. 186)
Após seis anos, o poder público do município ainda leva em consideração as premissas citadas acima e o último levantamento realizado pela SEPLOG identificou cerca de 3.193 famílias em condições precárias distribuídas na malha urbana da cidade (tabela 03). De acordo com a lista elaborada identifica-se a ocupação de três áreas de proteção ambiental, onde vivem mais de 200 pessoas.
70 Segundo entrevista com a assistente social Mônica Ferreira7 (Coordenadora de Gestão de Habitação Social - SEMASC), o cadastro dessas ocupações tiveram como finalidade designar a qual tipo de auxílio da prefeitura a família receberá, que pode ser o auxílio moradia e/ou se inscrever na lista para receber uma casa pelo programa Minha Casa Minha Vida (MCMV). A lista das família cadastradas vão para o banco de dados da prefeitura nomeado de CadÚnico onde eles podem ter o controle de quem está recebendo ou não algum tipo de auxílio (a exemplo de bolsa família ou suporte no Centro de Referência de Assistência Social – CRAS). A partir da visita in loco os técnicos avaliam quem é passível do recebimento de auxílio moradia, e o valor é definido pelo Governo Federal de acordo com o número de dependentes da família, podendo variar de 80 a 300 reais. A distribuição das casas dos empreendimento que são construídos pelo programa MCMV é feita através de sorteio. Se a pessoa sorteada estiver residindo em local distante do novo empreendimento lançado isso não é levado em consideração, e o beneficiado deve se mudar para onde quer que tenha ganhado sua residência. Esse tipo de critério é de fato prejudicial para a vida dos moradores, que são obrigados a se adaptar a uma nova localidade que muitas vezes é distante de onde se encontram suas memórias e relações sociais.
7 Atual coordenadora do setor que realiza os cadastros da população que vive em condições de habitabilidade precárias e cadastros de residências para realização da regularização fundiária – Ver entrevista na íntegra no apêndice A.
71 Tabela 03 – Lista de ocupações em Aracaju
Elaboração: a autora. Fonte: SEMASC
Segundo técnicos da SEMASC ainda não foram analisadas e descritas as ações necessárias para todas as ocupações, estando estas em período de análise no ano decorrente (2017). As AEIS permanecem definidas de maneira muito semelhante a organização de 2005 – concentradas nas regiões periféricas ao norte e ao sul do território aracajuano -, e a atual gestão está elaborando um plano de ação para essas áreas, onde sua população residente no momento são prioritariamente passíveis de auxílio moradia (fig. 21). Ainda segundo a coordenadora de Gestão de Habitação Social, a prefeitura enfrenta problemas quanto ao número limitado de técnicos na equipe que cadastra as ocupações, e quanto ao transporte dos mesmos até os locais de assentamentos.
72 Figura 21 – Distribuição espacial das AEIS e Ocupações em Aracaju, 2017.
Fonte: SEPLOG
73 Este ano foi transformada em lei a medida provisória que estabelece as regras para regularização de terras, uma medida importante para a regulamentação do solo urbano no Brasil. A lei 13.465/2017 dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana em âmbito nacional, e com ela fica instituído a todos os municípios o dever de desenvolver políticas que visem a ocupação do solo de maneira eficiente, de acordo com os princípios de sustentabilidade econômica, social e ambiental. A partir desta norma ficam definidos como principais objetivos da Regularização Fundiária Urbana (Reurb): I - identificar os núcleos urbanos informais que devam ser regularizados, organizá-los e assegurar a prestação de serviços públicos aos seus ocupantes, de modo a melhorar as condições urbanísticas e ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior; II - criar unidades imobiliárias compatíveis com o ordenamento territorial urbano e constituir sobre elas direitos reais em favor dos seus ocupantes; III - ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados; IV - promover a integração social e a geração de emprego e renda; V - estimular a resolução extrajudicial de conflitos, em reforço à consensualidade e à cooperação entre Estado e sociedade; VI - garantir o direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas; VII - garantir a efetivação da função social da propriedade; VIII - ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes; IX - concretizar o princípio constitucional da eficiência na ocupação e no uso do solo; X - prevenir e desestimular a formação de novos núcleos urbanos informais; XI - conceder direitos reais, preferencialmente em nome da mulher; XII - franquear participação dos interessados nas etapas do processo de regularização fundiária.
No município já vem sendo realizados trabalhos voltados para a regularização fundiária, e com a promulgação desta lei espera-se que tal ação se dê de maneira mais efetiva em todo o território. Segundo a Prefeitura Municipal de
74 Aracaju, atualmente está sendo realizado um diagnóstico para que posteriormente sejam realizadas medidas de Reurb das áreas irregulares. No decorrer da análise das ações já efetuadas no município de Aracaju no âmbito da produção habitacional observou-se que é de extrema importância o monitoramento e acompanhamento das atividades realizadas, verificando os índices e metas alcançadas ao longo dos anos. Para que isso aconteça é necessário o envolvimento de todos os órgãos da administração municipal (principalmente na gestão financeira dos programas); como também a alimentação do banco de dados contendo informações acerca das atividades desenvolvidas e resultados obtidos. A cidade de Aracaju ainda precisa de medidas mais efetivas de gestão social urbana que envolva a população, através de novos mecanismos que possibilitem a participação nas soluções dos problemas urbanos. É evidente que a tradicional forma de administrar - com pouquíssima participação popular – é responsável pela crescente exclusão social. Portanto, para promover o maior acesso à moradia digna é necessário a colaboração da comunidade, amplamente organizada e atuante nas decisões (e durante todo o processo), a exemplo da participação de agentes privados, setores técnicos, sindicais, acadêmicos, associativos, ONGs e demais atores sociais nas questões da habitação e do desenvolvimento urbano.
3.2 OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA PELO ACESSO À CIDADE DE ARACAJU No cenário nacional o processo de organização das comunidades começou a se desenvolver notoriamente a partir da década de 80, motivados pela implantação de programas governamentais que concediam benefícios a organizações comunitárias, em Aracaju pode-se destacar a proliferação de associações de moradores entre os anos 1962 e 1988. Essa proliferação se deu em demasia e consta no PEMAS que em 2001 existiam 312 associações, das quais apenas 89 estavam legalizadas e em poucos casos desempenhavam sua verdadeira função. O
75 surgimento dessas associações foi a primeira iniciativa de participação popular na gestão da cidade. A Constituição Federal de 1988 trouxe um capítulo que aborda as diretrizes da Política Urbana no país, a partir dos artigos 182 e 183 que dispõem sobre a obrigatoriedade do provimento das funções sociais da cidade, do bem-estar de seus habitantes através dos Planos Diretores e da premissa de que aquele que possuir até duzentos e cinquenta metros quadrados, durante o período de cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, com a finalidade de moradia, poderá adquirir o seu domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural (PLHIS). A imposição dessa legislação foi uma resposta do governo federal às reivindicações dos movimentos de moradia, do setor da construção civil e de todos que vinham lutando pela priorização de investimentos nas políticas sociais. Em decorrência da conjuntura política e socioeconômica os movimentos sociais de luta pela moradia começaram a ter uma atuação mais ampla na cidade, e a partir do I Encontro Estadual de Movimentos Populares de Sergipe, em 1987, foi criado o Centro Sergipano de Educação Popular (CESEP). Centro Sergipano de Educação Popular (CESEP) - organização nãogovernamental, apartidária e sem fins lucrativos, de apoio e assessoria aos movimentos populares de Sergipe e que realiza atividades de educação e formação organizativa comunicação social para membros de grupos e organizações populares. No âmbito do governo estadual foi criada a Federação de Associações de Bairro de Aracaju (FABAJU), articulada ao Estado, ligada aos órgãos do Governo Estadual. (PROGRAMA ARACAJU MORAR-LEGAL, p. 77)
Nos anos 1990 nasce o Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), em parceria com os sindicatos representativos e tendo como público-alvo moradores de vila e de casas de aluguel. Com representação em 14 estados do Brasil, instalou-se também em Aracaju de forma espontânea através da ocupação de um terreno situado nas imediações do bairro Dezoito do Forte, composto por cerca de trinta famílias que moravam em vilas nos bairros periféricos da cidade. Ao longo dos anos o movimento atuou em várias ocupações, foram elas a do bairro Santos Dumont (que deu origem ao conjunto Maria do Carmo), do Jardim Recreio (bairro Santa Maria), da Matinha (bairro Industrial), do Lamarão (que deu
76 origem ao Residencial Vitória da Resistência), da Vila Santo Antônio (bairro Ponto Novo) e da Vila do Queijo (bairro Coroa do Meio)8. O MNLM também executa ações de formação e conscientização dos membros, bem como, organiza e elabora projetos de inclusão social. Tal medida inicialmente foi facilitada pelo Programa Crédito Solidário do Ministério das Cidades, por meio do qual os membros dispostos a continuar participando do processo organizativo do movimento, poderiam ganhar benefícios por meio dos projetos de inclusão social desenvolvidos pelo MNLM. Outro movimento social que teve destaque no município e que teve envolvimento direto com a habitação é a Central de Movimentos Populares (CMP). O grupo tem abrangência nacional, iniciando sua atuação em Minas Gerais no ano de 1993 e com membros em 22 estados. É uma entidade que congrega vários movimentos populares que buscam a melhoria das políticas públicas para negros, mulheres, crianças e adolescentes, LGBT, moradores de rua, pessoas com deficiência, movimento por transporte, moradia, dentre outros. A Central de Movimentos Populares participa da composição do Conselho das cidades, o que configura uma grande conquista dos movimentos populares. Seus representantes levam adiante a luta pela conquista de terras e pelo cumprimento da sua função social. Além dos acampamentos promovidos pela CMP, também atuam como apoio em outros acampamentos, entrando em contato com o poder público em busca da obtenção legal da área apossada. Atua em todo o estado e possui assentamento no bairro 17 de Março, na área conhecida como ‘’cabo de revólver’’9 onde o governo do estado está atuando para a concessão do direito real de uso aos ocupantes. Outro assentamento situado na região do ‘’cabo do revólver’’ pertence ao Movimento dos Trabalhadores Urbanos (MOTU) que ocupa a área desde meados de 2014, constituindo um dos maiores assentamentos existentes em Aracaju, a ocupação Recanto das Mangabeiras, e atualmente também aguarda a cessão das terras.
8 Informações obtidas no Diagnóstico e Programa de Regularização Fundiária dos Assentamentos Precários de Aracaju/SE – ‘’Programa Aracaju Morar-Legal’’. 9
A localidade ficou assim conhecida por conta da sua área ter um formato que se assemelha um cabo de revólver.
77 O MOTU é um dos movimentos que se originaram mais recentemente no estado, iniciou em 2007, a partir da junção de alguns membros do MST e de pessoas que pagavam aluguel, moravam de favor e/ou viviam em condições precárias. A primeira conquista do MOTU foi o condomínio 5 de Agosto (antigo Manhattan), no bairro Coroa do Meio, onde hoje famílias oriundas do movimento residem legalmente no local. Atualmente o MOTU possui ocupações distribuídas nos municípios de Riachuelo, Itabaianinha, Estância, Nossa Senhora do Socorro, Barra dos Coqueiros e Aracaju. Como método de ação, estas organizações sociais, primeiramente identificam as áreas públicas ou privadas que não estão cumprindo sua função social; fazem mapeamento por fotos de satélite e buscam informações sobre o terreno; depois de realizadas as pesquisas eles destinam um grupo de pessoas para ocupar a área escolhida. São realizadas reuniões nas casas dos coordenadores, mas eles não informam qual será a área ocupada, revelando o local apenas no dia da ação, com o intuito de evitarem que outras pessoas saibam que irá acontecer a ocupação, prevenindo represálias por parte do proprietário ou da polícia. Após a instalação no local, é organizado o assentamento, muitas das vezes dispondo os barracos de maneira retilínea, tendendo a formar ruas. Geralmente o assentamento novo recebe apoio de outros acampamentos e é feito corriqueiramente um trabalho de conscientização sobre a função do movimento e os coordenadores orientam como o grupo deve agir e o que precisam melhorar para avançar a luta e legitimar seus direitos. Por volta de um mês após a consolidação do acampamento é feita uma lista oficial, com os nomes de quem irá permanecer na ocupação, que é enviada para os órgãos públicos afim de solicitar o direito de posse da terra. Segundo Dejanilde (coordenadora do MOTU), organizados coletivamente a chance de conseguir o acesso ao solo urbano aumenta: ‘’ Mas através do movimento é que a gente ainda tem uma chance de ser reconhecido, porque a gente vai através de ofício e prezamos pela organização das ocupações e manifestações. ‘’
A partir o registro das famílias na prefeitura, os membros do acampamento são orientados a trabalhar da melhor forma possível nas suas casas, construindo
78 cômodos de dormitórios, cozinha e banheiro. Muitos moradores usam da criatividade e fazem jardins e hortas; outros colocam cerâmica e chuveiro. Eles também constroem um barracão central para reuniões, que é feito a partir da junção de materiais que são doados por cada um dos ocupantes. O trabalho de conscientização do papel do movimento de resistência urbana é feito constantemente pois o grupo precisa estar forte e resistente para alcançar seu objetivo. Crianças principalmente precisam receber esse tipo de apoio para que entendam o motivo de seus pais estarem se submetendo aquela situação de precariedade. Muitas vezes as crianças que conseguem vaga na escola próxima a ocupação sofrem preconceito por parte dos alunos e dos funcionários da instituição. O preconceito também é presente na população em geral, e principalmente na vizinhança do assentamento, como relata Dejanilde: ‘’ Pra eles a gente não existe! E acham que a gente é invasores né? A gente orienta o nosso povo que nós somos ocupantes, todo mundo no acampamento sabe. Nós não aceitamos ser apontados como invasores porque invasão é quando você invade algo de alguém né? Que você vai lá e toma! E a gente apenas ocupou aquele espaço que está lá sem função social nenhuma e damos vida aquele lugar, trabalhamos e cuidamos dele. (...) E a gente vai conscientizando e explicando, vai ganhando os vizinhos que de início chamam a polícia pra gente e acham que o problema do bairro somos nós.’’
Na maioria dos casos a atuação dos movimentos sociais concentra-se no processo organizativo das ocupações, mas também atuam como entidades de interlocução da população com o poder público. Do ponto de vista dos técnicos da prefeitura um desafio a ser vencido é a necessidade de capacitação das lideranças populares para que eles entendam as minúcias da política habitacional. Para tal medida foi criado o Conselho Municipal de Habitação em 2004, sendo um canal institucionalizado de participação da população na gestão habitacional da cidade. Sobre esse conselho o PLHIS dispõe que: Sua finalidade é discutir e deliberar a respeito da política habitacional, além de acompanhar e fiscalizar os programas a serem implementados e os recursos a eles destinados. O Conselho é composto por 05 representantes do Poder Público, 11 representantes da Sociedade Civil, 03 representantes de Instituições ligadas à Produção e ao Financiamento do Desenvolvimento Urbano, 03 representantes de Entidades Profissionais, Acadêmicas e de Pesquisa e 01 representante das ONGs.
79 Apesar de ter sido uma grande conquista para participação popular, o conselho atualmente se encontra inativo, e segundo informações da prefeitura, está sendo reestruturado porém ainda não existe previsão para o retorno do seu funcionamento. Os principais instrumentos legais que interferem na questão da habitação de interesse social em Aracaju são: a lei Orgânica; Código de Obras; Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (Lei 42/2000); Código de Urbanismo (Lei 19/1966); Conselho de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Aracaju e Fundo Local de Habitação de Interesse Social. E conforme consta na lei orgânica o incentivo a participação popular e a gestão democrática deve ser efetiva no município: Art. 183 – A política de desenvolvimento urbano deve ser orientada pelas seguintes diretrizes: I – gestão democrática e incentivo à participação popular na formação e execução de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano, como forma reconhecida do exercício da cidadania; II – participação dos agentes econômicos públicos e privados na urbanização, em atendimento ao interesse social; III – planejamento da ordenação e expansão dos núcleos urbanos e adequada distribuição especial da população e das atividades econômicas, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano; IV – oferta de equipamentos urbanos e comunitários adequados às características socioeconômicas locais e aos interesses e necessidades da população; V – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos; b) proximidades de uso incompatíveis ou inconvenientes; c) adensamento inadequados à infraestrutura urbana e aos equipamentos urbanos e comunitários existentes ou previstos; d) a ociosidade do solo urbano edificável; e) a deterioração de áreas urbanizadas; f) a especulação imobiliária; g) a ocorrência de desastres naturais.
Portanto os movimentos sociais devem ser considerados organismos importantes de reivindicação dos direitos dos cidadãos, devendo atuar conjuntamente com o poder público municipal para melhoria do acesso à cidade e redução da desigualdade social. Entretanto o que encontramos no cenário atual de Aracaju, é uma redução significativa da participação dos movimentos; a difícil comunicação entre o setor
80 público, privado e população; e o pouquíssimo estimulo da gestão pública para a participação da população em geral. Em meio a essa problemática, apesar das dificuldades explanadas acima, temos como exemplo de conquista popular coletiva o Residencial Vitória da Resistência, que se materializou a partir de uma ocupação urbana organizada pelo Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), que resistiu durante 14 anos até que o processo de construção das moradias fosse concluído. Tal caso será disposto no presente trabalho no capítulo seguinte.
81
3.3 O RESIDENCIAL VITÓRIA DA RESISTÊNCIA: DA OCUPAÇÃO URBANA À INTERVENÇÃO DO ESTADO Existia uma área conhecida como Salina São Marcos, que fica situada no bairro Lamarão, zona norte do município de Aracaju, próximo ao Rio do Sal, limitando-se ao norte com o município de Nossa Senhora do Socorro, ao sul com o bairro Cidade Nova, à leste com bairro Japãozinho e à oeste com o bairro Soledade. A área onde hoje está inserido o residencial Vitória da Resistência pertencia a Secretaria de Patrimônio da União – SPU, e por mais de 20 anos foi explorada por um particular, que era o responsável pela salina10 (fig. 22). Após sua desativação o local ficou subutilizado, restando apenas um galpão de 367,16 m², que servia apenas como depósito de materiais para um inquilino, inserido numa área de 91.602,20 m².
Figura 22 – Localização da antiga Salina São Marcos
Fonte: Google Earth, 2009.
10
Informação levantada do Projeto de Regularização Fundiária fornecido pela SEPLOG e por meio de documentos disponibilizados pela Caixa Econômica.
82 Segundo Gilson Santos11, coordenador do movimento na época, a ocupação da área se iniciou em fevereiro 1999 através do Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, formado por um grupo de pessoas que residiam em casas de familiares ou de aluguel no bairro Lamarão e bairros circunvizinhos. Com o objetivo de reivindicar a função social da terra, mesmo diante de ameaças de remoção por parte dos proprietários acompanhados da polícia, os ocupantes resistiram e construíram seus barracos com materiais precários, numa área sujeita a inundação e em condições impróprias de habitabilidade (fig. 23). De acordo com relatos de alguns integrantes do assentamento, eles se organizaram em grupos com funções distintas, havia o pessoal responsável por cozinhar, pela limpeza do terreno, pela construção e manutenção dos barracos e pela segurança da área no período noturno, além de haver o barracão somente das mulheres e o dos homens (afim de que uma mínima privacidade fosse preservada) (fig. 24). O grupo originalmente era constituído por 184 famílias, que com o passar dos anos reduziu para cerca de 130, dentre as quais 41,64% eram desempregadas e 41,28% possuíam trabalho informal. Quanto ao nível de escolaridade identificou-se 20,28% de pessoas não alfabetizadas, 68,68% dos chefes de família tinham o primeiro grau incompleto e apenas 2,14% havia concluído o ensino médio (diagnóstico da área realizado pela SEPLOG).
11
Atualmente é Coordenador Nacional do MNLM; Conselheiro Estadual de Desenvolvimento Urbano (CONDURB) e integrante do Conselho Nacional das Cidades.
83 Figura 23 – Perímetro da ocupação
Fonte: Google Earth, 2009. Figura 24 – Barracões da Ocupação
Fonte: http://www.infonet.com.br.
No dia 10 de março de 1999 os ocupantes sofreram a primeira reintegração de posse, e as famílias migraram para regiões adjacentes a área, passando a ocupar terrenos vazios do bairro, principalmente a região próxima à igreja católica. Segundo
84 o líder da ocupação, dias após a reintegração, eles tentaram ocupar a área novamente, porém como o mandato ainda estava recente, foram impedidos prontamente, havendo algumas prisões de representantes do movimento. Então as famílias realizaram manifestações, como o bloqueio (por meio de barricadas de pneus onde atearam fogo) da avenida Euclides Figueiredo que dá acesso ao conjunto João Alves, no município de Nossa Senhora de Socorro. Seus barracos permaneciam no terreno da SPU, e mesmo sem morar no local, a comunidade continuou lutando pela posse. Entraram em contato com a Defensoria Pública da União – DPU, onde relataram o caso e foram solicitados documentos do MNLM e do particular que também reivindicava a posse da propriedade, para que fosse dado início ao pedido de sessão da área. Foi dado um prazo para a entrega dos documentos, porém esse prazo encerrou e os supostos proprietários não conseguiram atestar legalmente a posse da área. Enquanto isso o movimento entrou em contato com o Sindicato dos Engenheiros e firmaram parceria para que pudessem realizar o levantamento da área e elaborar um projeto de urbanização. Durante o período desses trâmites, as famílias não estavam acampadas na área, mas durante a noite um grupo fazia a vigilância do terreno para garantir que outras pessoas não invadissem, retornando a se instalarem no assentamento em maio de 2001. Após um ano, em maio de 2002 eles sofreram um novo despejo e voltaram a ocupar barracos nos arredores. Devido as péssimas condições de moradia em que a comunidade se encontrava e na tentativa de minimizar os problemas mais graves, a Prefeitura de Aracaju através da Secretaria Municipal de Assistência Social e Cidadania – SEMASC, entrou em contato com as famílias para fazer um levantamento das principais necessidades das mesmas. Após a visita in loco a equipe da SEMASC entregou cestas básicas de alimentos, toalhas de banho, colchões e mamadeiras, bem como articularam atendimento para as crianças no Centro Comunitário João Moreira Lima (localizado a alguns metros do acampamento), para
85 que assim eles pudesse receber alimentação e atendimento num ambiente mais confortável e adequado12. Permanecendo acampadas nas áreas de domínio público ao longo da Avenida Euclides Figueiredo até o ano de 2004, as famílias então puderam retornar a habitar o assentamento na antiga salina e iniciou-se o processo de negociação para urbanização da área com o Poder Público, através da apresentação da proposta de urbanização feita pelo movimento, que foi aceita e assim as famílias retornaram para o local conhecido como Invasão da Salina São Marcos (fig. 25, 26 e 27). O processo continuou na gestão seguinte, e o poder público se comprometeu a elaborar um projeto e tentar captar recursos juntamente ao Governo Federal.
Figura 25 - Entrada do assentamento, ano 2008
Fonte: Arquivos cedidos pela Caixa Econômica Federal.
12
Informações obtidas através de entrevistas com moradores e de publicações no site www.institutomarcelodeda.com.br.
Acesso em: 10 set. 2017
86 Figura 26 – Condições insalubres do acampamento, ano 2008
Fonte: Arquivos cedidos pela Caixa Econômica Federal. Figura 27 - Condições de habitabilidade do assentamento, ano 2008
Fonte: Arquivos cedidos pela Caixa Econômica Federal.
Embora o poder público do município tenha se comprometido a realizar o projeto de urbanização da área, a morosidade no processo se fez presente principalmente devido a troca de gestão da prefeitura, o que dificultou o
87 cumprimento do prazo para a entrega do residencial. Em entrevista ao site Infonet 13, Edjane dos Santos, uma das moradoras do assentamento desabafa: “Esperava que nossa situação pudesse ser resolvida até dezembro. Mas não estou mais confiante diante de tantas promessas que não dão em nada”. Diante dessa situação de atraso na execução das obras o secretário de planejamento da época, Luciano Pimental, justificou o acontecimento da seguinte forma: “Não houve falha da administração municipal. O que ocorreu foi que não conseguimos a tempo a titularidade da área exigida para a execução do projeto. O convênio do repasse foi assinado, mas essa verba não veio, ela só vem quando inicia a obra. Se a gente tivesse dado a titularidade, os recursos viriam para as obras que estavam previstas”. Ainda nesta mesma entrevista, Gilson Santos (líder da ocupação) relata a preocupação de que por 2008 ser um ano de eleições o projeto viesse a demorar ainda mais para ser executado. Quase um ano após a realização da entrevista, a cessão da área foi efetivada no nome do Município de Aracaju, através da instituição da Lei n° 3616 de 07 de outubro de 2008, que denominou a área de residencial Vitória da Resistência, nome escolhido pelo pessoal da ocupação. Em julho de 2009 a partir do conhecimento da Instrução Normativa nº 33 14, do Ministério das Cidades, foi aberto um processo de cadastramento de propostas de captação de recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS, num programa denominado ‘’Urbanização, Regularização e Integração de Assentamentos Precários’’ (URIAP), a proposta apresentada pelo Município de Aracaju foi selecionada para fazer parte do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, e o contrato foi efetivado junto à Caixa Econômica Federal em 30 de dezembro de 2009 15. Com base no documento ‘’Características da Intervenção’’, elaborado pela Secretaria Municipal de Planejamento – SEPLAN, fornecido pela Caixa Econômica, o
13
‘’ PMA perde prazo e obra de moradia no Lamarão não sai do papel’’, matéria publicada em 23/11/2007 no site
http://www.infonet.com.br. Acesso em: 10 set. 2017 14 Este manual tem como objetivo apresentar à administração pública estadual, do Distrito Federal e municipal, direta e indireta, os fundamentos técnicos da Ação Apoio à Melhoria das Condições de Habitabilidade de Assentamentos Precários, acrescidos das orientações necessárias ao processo de apresentação e seleção de propostas, em conformidade com a regulamentação do Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS. (Manual FNHIS, p. 03) 15
Fonte de informação: Documentos fornecidos pela Caixa Econômica.
88 fundo foi direcionado para a urbanização da área de reassentamento no bairro Lamarão, situada dentro da Zona Especial de Interesse Social – ZEIS (definido pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Aracaju) prevendo a implantação de equipamentos urbanos, construção de 410 unidades habitacionais e ações de infraestrutura urbana, dentre elas: abastecimento de água, drenagem pluvial, esgotamento sanitário, terraplanagem, pavimentação, iluminação pública e duas praças. O projeto de urbanização foi de autoria da arquiteta Ana Angélica Silva Rocha, funcionária da Empresa Municipal de Obras e Urbanização do Município de Aracaju – EMURB, que foi o órgão responsável pela execução da obra. Cada unidade habitacional possui 44, 87 m² e é composta de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Como uma das diretrizes16 necessárias para a aprovação do projeto foi o desenvolvimento de trabalho social junto à comunidade do assentamento, a Secretaria Municipal da Família e da Assistência Social – SEMFAS viabilizou o cadastro das famílias que residiriam no empreendimento, que eram egressas da ocupação Vitória da Resistência e também de outros assentamentos como do Coqueiral, e realizou um Trabalho Técnico Social (PTTS) que foi dividido em cinco eixos: Mobilização e Comunicação, Participação Comunitária e Desenvolvimento Sócio Organizativo, Empreendedorismo, Educação, e Remoção e Reassentamento. A exigência da realização desse tipo de trabalho foi importante para que ocorresse o envolvimento da comunidade com o futuro local em que iriam residir, bem como para manter um diálogo entre a população e governantes, assim foram desenvolvidos treinamentos e capacitações por meio de oficinas e cursos, e também a conscientização quanto a relações de convivência entre a comunidade e o meio ambiente. Mesmo com a realização de cursos de capacitações, pode-se notar que essa iniciativa apesar de válida foi pouco eficaz, pois atualmente grande parte dos moradores permanecem sem fonte de renda fixa17. No início do ano de 2010 o projeto foi concluído e apresentado à Caixa Econômica Federal, vindo a serem executados somente no início do ano de 2011. De
16
Imposta pelo manual elaborado pelo Ministério das Cidades, para o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social – FNHIS.
17
Informação obtida a partir de entrevistas com moradores do residencial.
89 acordo com registros realizados pela Caixa Econômica sobre o andamento da obra, em 2012 quando houve a troca de gestão da prefeitura, o projeto estava com todas as casas totalmente concluídas, bem como as redes de drenagem, esgotamento sanitário, pavimentação e iluminação pública, restando apenas concluir a estação elevatória de esgoto e emissário para levar o esgoto para a Estação de Tratamento. No início da gestão seguinte, em 2013, foi concluída a obra do residencial Vitória da Resistência, e em 19 de setembro de 2014 as casas foram entregues pela SEMFAS às 410 famílias (fig. 28, 29 e 30), dentre as quais 130 foram egressas da ocupação Vitória da Resistência e o restante das famílias foram advindas de outras ocupações próximas como do Coqueiral e do Porto D’anta. Os moradores então passaram a ter o direito real de uso das residências, até que venham a receber as escrituras das casas quando for realizada a Regularização Fundiária, processo que se encontra em andamento atualmente através da Secretaria de Planejamento, Orçamento e Gestão - SEPLOG. Figura 28 – Família se instalando no dia da entrega das casas, ano 2014
Fonte: www.aracaju.se.gov.br.
90 Figura 29 – Moradores descarregando seus pertences no dia da entrega das casas, ano 2014
Fonte: www.aracaju.se.gov.br. Figura 30 – Mudança no dia da entrega das casas, ano 2014
Fonte: www.aracaju.se.gov.br.
91 Após 15 anos de resistência e negociações o residencial veio a ser concluído por meio da significativa participação social, de forma que somente a partir da reivindicação do MNLM que a propriedade encontrada anteriormente sem uso - não cumprindo sua função social 18 - passou a cumprir seu papel, possibilitando a construção de moradia digna para a parcela da população menos favorecida. A importância da atuação dos movimentos de luta por moradia reside no ato de dar voz e visibilidade para aqueles que não são notados pelo poder público, de forma que no caso do Vitória da Resistência, podemos notar que a intervenção da prefeitura só veio a ser feita a partir do diálogo que foi iniciado pelo MNLM. Importante notar também que apesar de ter havido intervenções através da SEMFAS com as famílias, a situação de moradia e qualidade de vida no assentamento permaneciam bastante precárias, destacando assim que as medidas de atendimento à população de baixa renda precisa ser mais eficaz e promover condições de cidadania, qualidade de vida, acesso a cidade e subsistência para cada morador.
4. O CENÁRIO OPACO O residencial foi construído no Bairro Lamarão, região periférica de Aracaju, que se limita ao norte, nordeste e noroeste com o município de Nossa Senhora do Socorro, a leste com o Japãozinho, ao sul com a Cidade Nova e a oeste com a Soledade (fig. 31). O bairro está inserido numa Área de Preservação Permanente - APP e é caracterizada pela presença de manguezais e antigas salinas na margem direita Rio do Sal, que existiram na região até o início do século XX. A ocupação do bairro foi impulsionada pela construção do Parque Industrial de Nossa Senhora do Socorro e de Conjuntos habitacionais em seu entorno. Assim o bairro se liga ao Conjunto João Alves, por meio da ponte do rio do Sal, um importante centro econômico de N. Sra.
18 ESTATUTO DA CIDADE - CAPÍTULO III - Do Plano Diretor Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2o desta Lei.
92 do Socorro, onde muitos moradores do Lamarão possuem empregos formais e informais. Figura 31 – Localização do Bairro Lamarão
Fonte: SEPLOG
Constituído por uma comunidade carente o bairro apresenta problemas socioeconômicos comumente encontrados nas grandes cidades brasileiras, como a ocupação irregular do solo, alto índice de criminalidade, transporte público e saneamento básico precários19. Apresenta grande deficiência na infraestrutura, como a ausência de pavimentação (fig. 32) na maioria das ruas e péssimas condições nas vias de acesso principal que diariamente recebem grande fluxo de pessoas, automóveis, carroças e animais (fig. 33), são elas as avenidas General Euclides Figueiredo e Paulo Figueiredo Barreto, que atualmente estão repletas de buracos e com calçadas em condições inadequadas para o trânsito de pedestres. Além desses problemas o sistema de drenagem superficial da região é ineficiente, bem como a coleta de lixo (existe grande acumulo de sucata nos espaços públicos) e a varrição
19
Informações
obtidas
através
de
documentos
fornecidos
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lamar%C3%A3o_(Aracaju). Acesso em: 21 set. 2017
pela
SEPLOG
e
através
do
site
93 das vias, o que se agrava no período das chuvas ocasionando alagamentos em todo bairro (fig. 34). Figura 32 – Condições da pavimentação das vias do bairro
Fonte: a autora, 2017.
94 Figura 33 – Fluxo de pessoas, animais e veĂculos nas ruas do bairro
Fonte: a autora, 2017.
95 Figura 34 – Acúmulo de lixo e sucata nos espaços públicos
Fonte: a autora, 2017.
Atualmente o bairro apresenta uma área comercial desenvolvida (fig. 35) que atende grande parte das necessidades básicas dos moradores, como lojas de produtos automotivos, padarias, salões de beleza, mercearias, posto de combustível, dentre outros, no entanto não contém nenhuma agência bancária na região.
96 Figura 35 – Comércio local (mercearia, lanchonete, mercearia e posto de gasolina)
Fonte: a autora, 2017
Em relação ao atendimento de saúde e educação, o local apresenta grande deficiência, pois as duas escolas públicas existentes não atendem a todos e a única unidade de saúde do bairro não é suficiente para atender a todas as demandas da região, sendo uma das principais queixas da comunidade. A deficiência no atendimento de saúde, educação e serviço bancário são as principais causas de deslocamento da população, que tem que recorrer a outros bairros ou ao centro da cidade quando necessário (fig. 37).
97 Figura 37 – Localização do residencial Vitória da Resistência em relação ao Centro de Aracaju, Barra dos Coqueiros e Conjunto João Alves
Fonte: Google Earth.
O bairro continua se desenvolvendo com ocupações irregulares nas extremidades do perímetro, em áreas de preservação e cada vez mais em direção ao Conj. João Alves, que é provocada pela migração da população para áreas periféricas da cidade, em busca de acesso à terra onde financeiramente se é possível.
4.1. O ESPAÇO CONCEBIDO Situado dentro de uma Zona Especial de Interesse Social – ZEIS, a área onde está inserido o conjunto habitacional compreende duas porções (leste e oeste) separadas pela Avenida Paulo Figueiredo Barreto, composto por 13 quadras e 410 lotes destinados a unidades residenciais unifamiliares, além de áreas verdes, acessos e passeios (fig. 38). As calçadas têm 2,00 metros, as vias tem 6,00 metros de largura e foram dimensionadas para receber tráfego de médio porte, com ligação à avenida principal que dá acesso ao conjunto. Os lotes foram dimensionados de maneira a se adequarem a finalidade de interesse social, atendendo as necessidades do objeto do projeto e a legislação vigente, desta forma ficou definido a medida de 16,00 X 6,50 metros para cada lote (exceto para os lotes de esquina).
98 Figura 38 – Planta do Residencial Vitória da Resistência
Fonte: SEPLOG.
Após reunião entre o líder do MNLM e o secretário de planejamento urbano, foi informado que um dos critérios para a doação das casas era a destinação de parte do projeto para a acomodação de famílias de outras áreas da cidade que estavam em situação de moradia precária ou recebendo auxílio financeiro do governo, assim a distribuição das casas foi feita através de sorteio, e contemplou as famílias remanejadas do bairro Lamarão e famílias do assentamento Coqueiral e adjacências. O líder do movimento, representando a vontade da comunidade, solicitou ao secretário que a alocação das famílias oriundas da ocupação inicial das salinas ficasse a critério de escolha das mesmas, o pedido foi aceito e assim a maioria da comunidade - cerca de 120 famílias - decidiu ficar nas casas que foram construídas no local onde os barracos existiam anteriormente (porção leste e sudeste), ficando apenas cerca de 10 famílias do lado oposto (norte e oeste) (fig. 39). Cada unidade habitacional possui 44, 87m² e foram entregues somente com contrapiso e paredes revestidas com reboco de cimento, apresentando revestimento cerâmico apenas em parte da parede da cozinha e do banheiro.
99 Figura 39 – Imagem de Satélite do Residencial Vitória da Resistência
Fonte: Google Earth, 2015.
Desde o período da entrega até os dias atuais muitos moradores realizaram reformas em suas casas. Foram autorizadas pela EMURB reformas na cozinha sem necessidade da avaliação de um técnico – a partir da compreensão de que o espaço tinha pequenas dimensões e que por vezes se fazia pertinente uma adequação para uso da família -, cabendo às pessoas que desejassem realizar outros tipos de alterações a busca por Assistência Técnica na EMURB para elaboração do projeto e consequente autorização da reforma. Porém muitos proprietários executaram obras sem consultar a prefeitura, em casos como este ainda não há resposta por parte do poder público quanto as providências que serão tomadas.
100 Na porção oeste do residencial foi construída uma praça (fig. 40 e 41) com alguns equipamentos de lazer infantil, apresenta aspecto positivo quanto a permeabilidade do solo contendo a presença de gramíneas, e aspecto negativo quanto aos equipamentos que se encontram em más condições de uso. Ao norte foi instalada outra praça, dotada de barras de metal, utilizadas na prática de musculação (fig. 40 e 41). Do lado leste situado na avenida Paulo Figueiredo Barreto tem-se a presença de um galpão que foi construído ainda na época das salinas para servir como depósito, que permanece no local sem nenhum uso por parte da população e com seu entorno servindo como depósito de lixo e entulhos. Segundo relatos de moradores, eles entraram em contato com o poder público para cobrar providências em relação ao galpão, ressaltando o desejo de revitalização do local. Essa reivindicação já foi ouvida pela prefeitura há anos atrás, porém até o momento não foi tomada nenhuma providência e o galpão permanece inerte. Ao lado do galpão existe área verde e um espaço pavimentado - sem nenhum tipo de mobiliário urbano - que é utilizado pela população (fig. 40 e 41).
101 Figura 40 – Principais espaços públicos do residencial Elaboração: a autora. Fonte: Google Earth, 2014.
.
102 Poucos anos após a entrega do residencial surgiu uma nova ocupação irregular que permanece a cerca de dois anos na região leste, ao fundo do conjunto habitacional (fig. 41). Está localizada vizinho ao mangue e é constituída por casas feitas com materiais precários e também de alvenaria. A presença dos manguezais no entorno da localidade (fig. 41) gera tensão entre os moradores que desejam construir uma cerca de contenção do mangue presente no perímetro do residencial, pois vem servindo como ‘’ rota de fuga’’ de bandidos que adentram na vegetação para se esconder. Como o poder público não demonstrou intenção em fazer tal contenção, a comunidade está se organizando coletivamente para construírem uma cerca que impeça o acesso ao mangue por meio do conjunto. Figura 41 – Mapa do Residencial
Elaboração: a autora. Fonte: Google Earth, 2014.
103 Em relação ao índice de criminalidade dentro do conjunto habitacional – de acordo com relatos dos residentes – se apresenta baixo, não havendo nenhum caso de roubo ou furto dentro do perímetro local, os casos que ocorreram foram: um assassinato de um dos residentes (por motivo desconhecido); dois corpos que foram encontrados dentro do mangue (não teve envolvimento com nenhum morador local) e o surgimento de um suposto ponto de venda de drogas em uma das residências, que não perdurou por muito tempo devido às constantes denúncias da vizinhança, que entraram em contato com a polícia que interviu abordando o suspeito frequentemente até que o mesmo se mudou ‘’espontaneamente’’ do residencial. A iluminação pública nas ruas é satisfatória, apresentando deficiência principalmente nas praças. As principais queixas dos habitantes são relacionadas ao sistema de drenagem e instalações hidráulica e sanitária, salientando nas entrevistas realizadas que frequentemente o encanamento de muitas casas entopem e eles tem que entrar em contato com a DESO – Companhia de Saneamento de Sergipe - para resolução do problema, que afeta as vias causando acumulo de resíduos e mau cheiro em alguns trechos das ruas. As condições precárias das principais vias do bairro Lamarão dificulta o acesso ao conjunto (presença de muitos buracos na pavimentação). Dentro do residencial estão presentes 3 pontos de ônibus localizados na avenida principal e serviço de transporte público apresenta muitas vezes veículos em más condições, porém existe uma quantidade razoável de linhas de ônibus que atendem à demanda de deslocamento da população que além de se deslocarem para trabalhar também vão em busca de serviços no conjunto João Alves ou em outros bairros de Aracaju. As mais frequentes causas desses deslocamentos é a busca pelo atendimento à saúde, serviço bancário e educação. Os habitantes relatam que o principal problema com o qual eles vem sofrendo é a ausência de uma unidade de saúde que atenda a população do residencial, pois o que acontece atualmente é uma sobrecarga de pacientes na única unidade do lamarão – Unidade de Saúde da Família Carlos Fernandes de Melo – que privilegia a população residente no seu entorno imediato, enquanto a comunidade do Vitória da Resistência por vezes tem que esperar dias e enfrentar grandes filas para o atendimento (fig. 42).
104 No que se refere ao acesso à educação, a comunidade conta com a presença de duas escolas municipais no bairro (fig. 42), que ainda assim não são suficientes para atender a todos os estudantes, que tem que recorrer a escolas do município de Nossa Senhora do Socorro e de outros bairros de Aracaju por não encontrarem vagas no bairro. Essas escolas estão relativamente próximas ao Vitória da Resistência, bem como do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS Dr. Carlos Fernandes de Melo, que realiza atendimentos a comunidade local (fig. 42).
Figura 42 – Distância entre o residencial e os equipamentos de Saúde, Educação e Assistência social
Elaboração: a autora. Fonte: Google Earth, 2014.
Pode-se observar que o caso do Residencial Vitória da Resistência é mais um exemplo do que vem acontecendo em diversas outras periferias urbanas do Brasil, onde se é disponibilizada a moradia, mas é grande a deficiência de infraestrutura, o descaso com os espaços verdes e de lazer e a insuficiência de serviços públicos. Nesse contexto, entre o momento da entrega do espaço construído e o momento posterior – quando cotidianamente vivenciado – podemos ter a noção de espaço ‘’concebido’’,
105 ‘’ vivido’’ e ‘’ percebido’’ da teoria de Lefebvre, onde no primeiro caso a abstração teórica já está no concreto. Enquanto no tocante ao ‘’ vivido’’, temos a noção de que o espaço jamais será neutro e puro, pois nele se estabelece interesses, transações e necessidades; e no espaço ‘’ percebido’’, nós podemos obter a percepção através da escala do indivíduo e de seu grupo, entendo assim de fato a realidade social e espacial da cidade.
4.2 MÉTODOS E MEIOS DE APREENSÃO DO ESPAÇO Para que a pesquisa fosse realizada, foi necessária a busca por métodos que possibilitassem o conhecimento do objeto de estudo e a maior absorção da experiência no local. Os métodos que se mostraram adequados são recorrentemente utilizados no âmbito das ciências humanas e sociais, sendo eles: pesquisa documental e bibliográfica, observação, registro fotográfico, gravação de áudio e vídeo, entrevista e diário de bordo. Também foi utilizado o método da cartografia social, que proporcionou a elaboração de mapas participativos. Em primeiro momento foi realizada uma pesquisa acerca de informações sobre a história do Residencial Vitória da Resistência, localizado no bairro Lamarão, como dados, documentos, fotos e mapas, disponíveis em órgãos públicos, na Caixa Econômica Federal e através de personalidades envolvidas no processo de criação do residencial. O estudo teve como foco a busca por respostas para as questões levantadas a seguir: 1) O planejamento do local atende às necessidades da população quanto ao lazer, equipamentos púbicos e serviços? 2) De que maneira a comunidade se apropriou das áreas públicas do residencial? 3) Os moradores que participaram do processo inicial de ocupação tem mais zelo e apreço pelo local? 4) A organização do Movimento Social influenciou na atual conformação e nas relações da vizinhança?
106 Para resolução dessas questões foram realizados registros fotográficos, gravações, observação intensiva do local, diálogos com moradores (51 pessoas)20 e entrevistas à profissionais e líderes comunitários (7 pessoas). Estas ações ocorreram entre junho e setembro, e levaram cerca de 15 dias para serem concluídas21. As visitações ao Residencial Vitoria da Resistência foram realizadas em turnos diferentes, afim de experienciar e observar a localidade em diversos horários do dia. Os registros em mídia foram analisados e unificados em um documentário22, que foi editado e produzido para transmitir as histórias e relatos coletados. As entrevistas formais foram realizadas afim de captar informações da Prefeitura Municipal de Aracaju, onde os técnicos entrevistados esclareceram dúvidas referentes ao processo de planejamento urbano e políticas públicas de habitação social. Ao objetivar-se a obter a leitura do território partir da ótica da comunidade, através de um mapeamento participativo, o método utilizado foi a Cartografia Social, que diferentemente da cartografia tradicional, que produz mapas de territórios, relevo e densidade populacional, produz diagramas de relações, cruzando ao mesmo tempo a lógica global capitalista que determinou aquela situação urbana com as subjetividades vividas no local, promovendo assim uma espacialização baseada nesses fatores, pondo em foco a voz dos principais atores: os moradores do local. A Cartografia é algo que foi desenvolvido por Deleuze a partir de algumas indicações de Foucault, que se constitui num diálogo entre os dois em relação à questão, e configura-se como instrumento para análise de uma história presente, tornando viável a crítica do nosso tempo e daquilo que somos. Assim, a cartografia social realiza mais que o mapeamento físico, trata de movimentos, relações, ordem imposta, desigualdades, lutas, enfrentamentos, modos de objetivação, de subjetivação, de práticas de resistência e liberdade. É uma estratégia de avaliação crítica, ação política e olhar crítico que acompanha e relata relações e trajetórias.
20
15 mulheres – faixa etária: 17 a 73 anos; 16 homens – faixa etária: 16 a 79 anos; 20 crianças – faixa etária: 3 a 14 anos;
21
Ver registros em Anexos e Apêndices.
22
Ver mídia em apêndice.
107 Crampton23 afirma que a sensibilidade de Foucault para os aspectos geográficos e espaciais da racionalidade torna-o particularmente interessante, posto que ele demonstra que muitos problemas da esfera política necessitaram de conhecimento espacial. Neste sentido, o interesse em cartografar os diálogos e experiências dos moradores do Residencial Vitória da Resistência, é justificado pela possibilidade de dar voz e destaque ao agente do espaço. Assim membros da comunidade apontaram e delinearam características referentes ao lugar sob uma foto de satélite impressa em formato A3, que foram posteriormente analisadas e sintetizadas em mapas específicos. No total foram elaborados 27 mapas com a participação dos moradores de idades variadas. Todos os mapas são uma abstração do mundo, elaborada sempre a partir de algum ponto de vista. Na história das representações espaciais, os mapas começaram, não por acaso, como ficção, um meio de se pensar o mundo a partir da crença e dos mitos, e não a partir da geografia. Foi através de um longo processo de observação do mundo, de elaboração de instrumentos e experiências, com o consequente crescimento da capacidade de medir altitudes e coordenadas, que os mapas foram tornando-se mais “objetivos”. (Acselrad e Coli 2008, p. 01)
No dia 24 de setembro foi promovida uma oficina de graffiti no espaço público do residencial24, a partir do intuito de reunir o maior número de crianças possível para realização de pesquisa e de promover/incentivar a revitalização de um espaço degradado a partir da disseminação da arte. Ao lado do ‘’galpão da avenida’’ jovens e crianças se reuniram afim de aprenderem técnicas de graffiti e observarem a elaboração de um painel com o nome ‘’Residencial Vitória da Resistência’’, que foi elaborado de acordo com autorização prévia da comunidade local. Ao longo do dia foram realizadas conversas, entrevistas e brincadeiras com as crianças e jovens, além da elaboração de mapas onde eles apontaram o que viam acontecendo recorrentemente nos espaços públicos do residencial. O resultado desse dia foi a realização de uma intervenção urbana, através da elaboração do painel que carrega o nome representativo da força da comunidade local.
23
Presente no texto Uma introdução à cartografia crítica. Texto publicado originalmente em ACME: An International EJournal for Critical Geographies, Volume 4, Issue 1.Tradução de Carolina Apolinário de Souza 24 Ver registros e relato da experiência em apêndices.
108 Joliveau25 afirma em seu estudo que o mapa enquanto representação espacial é indissociável do discurso do seu produtor e isto complica seu uso como suporte à participação, porém os cartógrafos estão todos de acordo em reconhecer que, uma vez superado o problema da compreensão, os mapas se tornam um objeto extremamente eficaz para a compreensão dos fenômenos. Desta forma, a cartografia integrada a um processo de planejamento ou manejo de territórios que se quer participativo entende ligar os atores e o território, construir o território com os atores e mobilizar estes atores através do território sob a hipótese de que, nesta relação, uns e outros se transformarão (Acselrad e Coli, 2008). A finalidade da realização de um mapeamento junto à comunidade foi a geração de mapas que apontam dentro do território do residencial: locais de lazer, de interação social, de práticas esportivas; atividades físicas, de manifestações coletivas/culturais/religiosas, dentre outras formas de apropriação do espaço. Após a indicação desses pontos no território, foram cruzadas as informações levantadas a partir das entrevistas e diálogos, afim de possibilitar a elaboração de mapas temáticos que representassem a distribuição espacial dos tipos de uso, a apropriação da comunidade com o local, e a disponibilidade de equipamentos e serviços para os moradores. Concomitantemente a todo esse processo - desde o planejamento da pesquisa até a execução dos registros - foi escrito um diário de bordo que consiste numa ferramenta que permite ao pesquisador registrar suas observações diárias, suas reflexões e todos os acontecimentos importantes relacionados a pesquisa. Desta forma este objeto de registro foi de grande valia na análise e elaboração do presente trabalho. Todos essas ações descritas acima foram executadas com o intuito da promoção de uma leitura fiel, permitindo assim o apontamento da necessidade de melhorias no planejamento urbano de conjuntos de habitação social, denotando a importância de um planejamento participativo e mais afetivo nesse tipo de conformação urbana.
25
Desenvolvido no trabalho O lugar do mapa nas abordagens participativas. O presente texto é parte de uma trabalho maior tendo por título Géomatique et gestion environnementale du territoire – Université de Rouen, 2004. Tradução de Luis Rodolfo Viveiros de Castro
109
4.3 UM CONTO CARTOGRAFADO Esta seção contém os registros que foram apreendidos durante a pesquisa, transcritos a partir da junção do olhar dos moradores entrevistados e do meu enquanto pesquisadora – leia-se ‘’ser estranho’’ no meio alheio. Partindo da ideia do provérbio popular que diz ‘’Quem conta um conto acrescenta um ponto’’ – expressão utilizada para indicar que cada pessoa relata um mesmo acontecimento ou fato acrescentando pormenores da sua autoria26 - foram produzidos mapas participativos onde cada entrevistado narrou um conto e marcou uns pontos na foto impressa da localidade, identificando as práticas realizadas no espaço urbano público do residencial (fig. 43).
Figura 43 –Mapas com pontos marcados juntamente aos moradores.
26
Dicionário da Língua Portuguesa, 2008. Porto Editora.
110
Fonte: a autora, 2017.
A partir de cada ponto e cada conto coletado, foi feita a junção dos vários relatos e deu-se uma interpretação e caracterização do lugar e das formas de apropriação da comunidade no meio habitado. Essas informações coletadas foram sintetizadas em mapas temáticos que serão analisados nos próximos itens. Com base nas análises de cada item buscou-se a realização de um estudo das inter-relações entre o indivíduo e seu entorno físico social, partindo do olhar de cada morador sobre o ambiente vivido.
4.3.1 LADO OESTE VS LADO LESTE As relações entre o indivíduo e o meio está diretamente ligada à fatores culturais e grupos sociais ao qual cada um pertence. Suas experiências no espaço urbano são permeadas pela sua trajetória de vida e pelos laços criados. Estes laços conduzem as vivências. Áreas ao ar livre com boa qualidade de infraestrutura atraem e prolongam o uso das pessoas, que necessitam que o lugar seja minimamente convidativo para que as pessoas parem, sentem, comam, brinquem e assim por diante.
111 A realidade encontrada no Vitória da Resistência, ilustra uma situação que é semelhante e se repete em todo o país: a infraestrutura nas regiões periféricas é precária e as pessoas tentam se adaptar como podem. Durante a pesquisa de campo era perceptível a diferença da narrativa de cada morador, pois cada um contava sobre sua percepção a partir da relação que ele mantinha com o lugar. Assim, alguns apontavam muitos pontos de utilização no espaço do residencial, enquanto outros por vezes apontavam apenas um ponto e iniciavam uma crítica sem fim sobre as condições de habitabilidade no local (fig. 44). Figura 44 – Alguns mapas com pontos marcados pelos moradores.
Fonte: a autora, 2017.
É notória a diferença da forma como os moradores do lado oeste e os do lado leste percebem e usam o espaço. Pelo conjunto ser cortado pela Av. Paulo Figueiredo Barreto – com grande fluxo de veículos que dificulta a travessia - já existe uma certa separação entre os moradores, que acabam naturalmente se relacionando mais com seus vizinhos imediatos. Além disso, em decorrência da origem dos moradores (fig. 45) as relações estabelecidas entre os originários da ocupação refletem na
112 apropriação do espaço, de forma que estes sentem-se mais à vontade nos espaços públicos, onde muitos se reúnem nas ruas e calçadas com seus vizinhos diariamente.
Figura 45 – Origem dos moradores
Fonte: a autora, 2017.
No mapa abaixo (fig. 46), as formas de utilização do espaço foram destacadas, e como pode-se perceber, as atividades e a presença de pessoas, se concentram no lado leste.
113
Figura 46 – Mapeamento das formas de utilização dos espaços públicos Fonte: a autora, 2017.
.
114 Os relatos colhidos no lado oeste, em sua maioria carregavam um certo descontentamento (eles começavam criticando o local quanto ao acesso à serviços de saúde, educação e infraestrutura). Os moradores entrevistados falavam de poucas atividades que viam acontecendo naquela região, todos relataram a ocorrência de roubos e a presença de usuários de cannabis; alguns falavam da presença escassa de crianças nas ruas e das pessoas que realizavam caminhadas principalmente ao longo da avenida. Todos reclamaram da infraestrutura do local e dos serviços de educação, saúde e segurança. Daquele lado existem dois equipamentos urbanos: a praça do parquinho infantil e a praça das barras de musculação. Sobre estes locais os moradores apontaram que estão subutilizados e os principais motivos do abandono são as péssimas condições do mobiliário (fig. 47) e iluminação pública ineficiente. Estes dois locais também foram apontados como ponto de concentração de usuários de cannabis nos períodos noturnos, onde estes se reúnem no local para fumar, principalmente pela iluminação escassa, o que gera menor exposição dos mesmos.
Figura 47 – Condições do parque infantil.
115
Fonte: a autora, 2017.
Ainda do lado oeste foi identificado um local onde corriqueiramente pessoas de outras regiões do bairro vão depositar lixo, o que agrava a insalubridade do local e a poluição da área de preservação ambiental. Outro fator alarmante para o meio ambiente é a realização da Feira das Trocas27, que acontece há anos no entorno do lado noroeste do residencial e se impõe como um atrativo de pessoas aos finais de semana. Em decorrência da realização dessa feira, os moradores que residem próximo a região da feira se queixam do grande fluxo de pessoas e veículos entre as ruas 11 e 12, e relatam que esse evento gera muita poluição ambiental (algumas pessoas chegam a urinar nas ruas, próximo as residências), poluição sonora e insegurança no local. A presença de pessoas transitando pelas ruas desse lado é escassa, e principalmente na rua 11, que é voltada para área de preservação, vem acontecendo assaltos com frequência. Esse tipo de atividade também foi percebida pelos moradores do lado leste, que identificaram a ocorrência de assaltos ao longo da avenida, e muitos moradores atribuíram o aumento desse tipo de atividade à presença de um ponto de venda de drogas, ao qual se tem acesso pela ocupação localizada no lado leste do residencial, ao final da rua 07. Os habitantes locais
27
Essa feira é um comércio clandestino onde pessoas se reúnem aos domingos para vender e trocar todo tipo de mercadoria
(legais e ilegais) como por exemplo pássaros, armas de fogo, utensílios domésticos e veículos.
116 perceberam que os assaltantes são oriundos de outra região do lamarão ou de outros bairros, e os delitos que geralmente acontecem nos ônibus ou nos pontos de ônibus da avenida, são motivados pela possibilidade de fuga por entre as ruas do residencial que dá acesso à ocupação irregular que fica ao fundo do conjunto e dá acesso a outra região do bairro (onde supostamente acontece o tráfico) (fig. 48).
Figura 48 – Localização da ocupação.
Fonte: a autora, 2017.
Do lado leste vem acontecendo um fenômeno aos finais de semana, que é a montagem de barracas para venda de churrasqueiras, galeto, água de coco e lanches,
117 e essa tendência a realização de comércio se dá ao longo da avenida, que é o local onde tem-se o maior fluxo de pessoas. Devido a esse potencial de visibilidade que o canteiro presente na avenida tem, os moradores enxergaram a possibilidade da realização de comércio para auxiliar na renda da família. Esse tipo de uso do espaço público vem atraindo e reunindo pessoas do residencial e de outras regiões do bairro naquele local. A população do lado leste tem apenas um espaço que se destina a cumprir a função de ‘’praça’’, que está localizado imediatamente ao lado do galpão. Nesse espaço a infraestrutura é escassa, possuindo apenas uma parte pavimentada onde acontecem cerimônias religiosas28 um dia na semana e onde as crianças brincam em vários momentos durante o dia. Como grande parte do entorno do galpão não possui pavimentação e é revestida por vegetação rasteira (que não recebe cuidados frequentes da gestão de limpeza pública), acontece o alagamento quando chove, ocorre um grande acúmulo de lixo e algumas pessoas abandonam animais (cachorros e cavalos) no local. Os moradores afirmam que o lixo é deixado no local por pessoas de fora do residencial, principalmente da rua à leste da rua 07. A infraestrutura encontrada nos espaços públicos do residencial é precária e deixa a desejar em muitos aspectos. A população residente não encontra nenhum tipo de atrativo na estrutura oferecida nos equipamentos urbanos e assim se deu a apropriação dos espaços de forma espontânea e adaptativa. As crianças mesmo sob condições climáticas desfavoráveis utilizam o espaço ao lado do galpão, que não oferece arborização, nem nenhum tipo de abrigo das intempéries. Eles passaram a conviver com animais e seus dejetos sob a vegetação e entre os entulhos depositados no entorno. E também se reuniram em prol das suas crenças religiosas, mobilizandose para conseguirem estrutura e limpeza para o local29. A vitalidade do lado leste ressalta quando comparado com o lado oeste, e as relações entre indivíduo, alteridade e espaço público são mais intensas na porção onde se concentra as atividades comerciais, a presença de crianças e a comunidade originária da ocupação.
28
Ver detalhes sobre a realização da cerimônia em apêndice.
29
Ver relatos da mobilização em apêndice.
118
4.3.2 CALÇADAS DE ESTAR Nas ruas das cidades acontecem diversos eventos, e não só para o tráfego de veículos elas servem. Da mesma forma acontece com as calçadas, que se dispõem não somente para acolher pedestres, mas para ser palco de interações sociais. Quando ocupadas por vizinhos, crianças e proprietários as calçadas tornam-se vívidas e podem ter funções que variam do lazer ao contato interpessoal. Na cidade contemporânea observa-se uma redução do uso e apropriação das calçadas, o que influencia no esvaziamento das ruas e no aumento da insegurança, fato que segundo Jane Jacobs é prejudicial para a vitalidade do local. Quando temos a presença de pessoas reunidas ou interagindo nas calçadas, involuntariamente se dá o que a autora nomeia como ‘’vigilância cidadã’’, afirmando que devem existir olhos para rua que colaboram para o sentimento de segurança e conforto no espaço público do bairro. No Residencial Vitória da Resistência acontece um fato diferente do padrão dos bairros da cidade: tem pessoas sentadas nas calçadas todas as tardes, e crianças percorrendo os passeios livremente enquanto brincam (fig. 49).
119
Figura 49 – À direita: Mapeamento da origem dos moradores, À esquerda: Pontos vermelhos indicam pessoas sentadas nas calçadas. Fonte: a autora, 2017.
120
Há muita gente que gosta de entreter-se olhando o movimento da rua, ou gosta de encontrar com vizinhos e amigos na calçada de casa para conversar, jogar ou simplesmente fazer um lanche. Sendo assim boa parte das ruas do conjunto apresentam o requisito apontado por Jane Jacobs como básico para a vigilância cidadã, que é a presença de pessoas (fig. 50 e 51).
Figura 50 – Crianças sentadas na calçada.
Fonte: a autora, 2017. Figura 51 – Pessoas reunidas na calçada.
Fonte: a autora, 2017.
121 A apropriação das calçadas se dá predominantemente do lado leste do residencial (fig. 52), porção do conjunto que coincide com a maioria de residentes oriundos da ocupação inicial realizada pelo MNLM. Acredito que a relação dos indivíduos com os vizinhos e com espaços de trocas coletivas nasceu no período da ocupação e permanece até hoje. Por esta razão muitos moradores do lado leste praticam seu ritual diário de sentar-se na porta pra ‘’tomar uma fresca’’, observar e dialogar com seus amigos. O clima fresco da tarde favorece o aparecimento de pessoas nas calçadas (que ficam na sombra), que preferem se reunir no espaço público onde se entretém com os transeuntes e as atividades que ocorrem na rua. Esse ritual diário constitui o que GEHL chama de atividades opcionais – as atividades das quais se participa somente se houver o desejo de fazê-lo e se o tempo e o lugar as tornam possíveis. Essas atividades são especialmente dependentes de condições físicas exteriores, e em geral as calçadas do residencial apresentam boas condições e dois metros de largura. Algumas das atividades sociais identificadas foram: brincadeiras de crianças, encontros e conversas, churrascos com amigos, reuniões com música e etc (fig. 53).
122 Figura 52 – Mapa sintético da apropriação das calçadas do residencial.
Fonte: a autora, 2017.
123 Figura 53 –Crianças brincando do lado direito da imagem, e pessoas ao fundo.
Fonte: a autora, 2017.
A diferença entre a apropriação das calçadas nos dois lados é notória, de forma que atribuo esse acontecimento aos contatos e laços que já foram estabelecidos pela comunidade originária do local. Do lado oeste pouquíssimos sentam-se à porta, em sua maioria os que utilizam as calçadas são os moradores das ruas 09 e 10, que estão em frente à Avenida Paulo Figueiredo Barreto. O motivo? As ruas próximas a avenida são mais movimentadas, restando às outras um vazio que causa medo aos moradores, que evitam ficar na porta de casa. Onde há a concentração de moradores mais antigos, existe entre eles um senso de cooperação e familiaridade muito grande, de forma que a maioria se conhece e faz questão de estar em contato um com o outro diariamente. Percebo que essas relações são mais fortes por se tratar de uma comunidade que possui pouca estrutura nos espaços públicos, o que reduz suas possibilidades de entretenimento - o que não é um fator de todo ruim, pois fez com que eles se adaptassem no espaço público que não foi destinado a ser local de encontro/permanência. Nesse caso a falta de um espaço público centralizador (como uma praça) auxiliou espontaneamente na extensão do que seria o papel da sala de estar, a recepção dos amigos e a realização de encontros agora acontecem preferivelmente nas calçadas de estar.
124
‘’ Costumeiramente sentam-se a porta os residentes, Que relembram histórias e permanecem resistentes, Dentre moradores antigos, sábios idosos, jovens falantes e bebês ainda sem dentes, Todos percorrem as ruas cumprimentando-se sorridentes, A tarde traz a vida e contrapõe as diferenças, Apesar do lado oeste e leste, todos dois são Resistência. Crianças Corram! Vizinhos Conversem! A riqueza das relações no espaço urbano periférico, Se mostra mais eficiente do que na cidade luminosa de concreto, Na força da comunidade está a saída, Da espontaneidade a vivacidade foi sobressaída.’’
125
4.3.3 O OLHAR DAS CRIANÇAS No residencial é notória a presença das crianças correndo e brincando pelas calçadas e ruas durante qualquer hora do dia. Divididos em duplas, trios ou grupos percorrem a localidade realizando atividades afim de obter o lazer que lhes é possível ali. Por transitarem e utilizarem os espaços públicos frequentemente, os pequenos olhos atentos presenciam nos diversos momentos do dia o que acontece na localidade. Por meio dos pontos indicados e desenhados por eles, foi realizado um mapeamento30 que reúne todas as práticas apontadas no espaço público do residencial Vitória da Resistência (fig. 54). Esse mapeamento carrega as percepções da categoria infantil diante da localidade, e foi desenvolvido um mapa que reúne todos aspectos apontados por eles (fig. 55).
Figura 54 – Realização do mapeamento com a participação das crianças.
Fonte: Kaio Espínola, 2017.
30
Ver relato de como aconteceu esse método de pesquisa em apêndice.
126
Figura 55 – Mapa síntese da percepção infantil.
Fonte: a autora, 2017.
127
As entrevistas concedidas pelas crianças chegavam carregadas de detalhes, e eles faziam comentários acerca de cada ação praticada no local, informando a frequência com que esses fatos ocorriam e os locais exatos, chegando a me conduzirem até o espaço real. Uma das atividades apontadas como comum na região foi a prática de futebol, que além de acontecer nos campos localizados no entorno do conjunto, também é praticada (especificamente pelas crianças) no canteiro da região noroeste, numa área livre do lado oeste e no entorno do galpão da avenida. Nos canteiros da avenida também ocorre a utilização por meio de crianças que andam de skate ou de bicicleta ao logo do passeio no canteiro (fig. 56).
Figura 56 – Criança andando de bicicleta no canteiro à margem da avenida.
Fonte: a autora, 2017.
Os pequenos afirmaram que não sentem-se atraídos pelas praças existentes no residencial e se queixaram das condições do parque infantil, que é pouco utilizado por eles (fig. 57).
128 Figura 57 – Praça dotada de parque infantil
Fonte: a autora, 2017.
A praça infantil é pouco utilizada e vem servindo de local para os garotos soltarem suas pipas e há também relatos de que pessoas de fora do conjunto vão abandonar cachorros ao lado da praça, o que vem se configurando como um fator alarmante no local (fig. 58). Segundo uma das crianças entrevistadas ‘’Quase todo dia jogam um cachorro aí agora. Tá virando moda. Bem ali do lado da praça. Muitos deles tem doença e ficam por aí andando pelo conjunto.’’
Figura 58 – Cachorros de rua no residencial.
Fonte: a autora, 2017.
129 Outros fatos que acontecem com frequência no residencial e que foram observados pelas crianças, é a ocorrência de acidentes em pontos específicos da avenida e de assaltos principalmente próximo aos pontos de ônibus. Um dos meninos relatou inclusive que já sofreu dois acidentes tentando atravessar a avenida e quando questionados sobre o que eles pensavam que deveria ser feito em relação a isso, eles apontavam a pintura da faixa de pedestre (que está apagada) ou a colocação de um semáforo. Os pontos onde vem acontecendo o depósito de lixo também foram percebidos pelos entrevistados, que informaram que tem carros e carroças que adentram no residencial somente para despejar lixo e saírem imediatamente. O lixo está presente na área de preservação do lado oeste e ao redor do galpão do lado leste (fig. 59).
Figura 59 – Lixo em volta do galpão.
Fonte: a autora, 2017.
Mesmo com o aspecto desfavorável do entorno do galpão, é o local onde se concentram as brincadeiras infantis, como bola de gude, futebol e soltar pipa (fig. 60, 61 e 62). Além disso foi apontado também a realização de aulas de capoeira e missas no espaço. Aos finais de semana é montada uma barraca que vende frango assado na face voltada para a avenida (fig. 63). Essa ação comercial se repete ao longo do
130 canteiro, onde encontram-se em média três barracas montadas aos finais de semana. A montagem é feita por moradores do residencial.
Figura 60 – Irmãos residentes do local demostrando sua pipa.
Fonte: Kaio Espínola, 2017.
Figura 61 – Meninos brincando na praça lateral ao galpão.
Fonte: a autora, 2017.
131 Figura 62 – Meninos soltando pipa na praça lateral ao galpão.
Fonte: a autora, 2017. Figura 63 – Do lado esquerdo, barraca na cor azul que vende frango aos finais de semana.
Fonte: a autora, 2017.
As crianças brincam predominantemente por entre as ruas do lado leste, canteiros e praça lateral ao galpão e esses locais não oferecem nenhum tipo de mobiliário urbano que possibilite uma melhor qualidade de lazer e suporte às brincadeiras infantis. A carência de infraestrutura é notória, e durante a pesquisa as crianças demonstravam o forte de desejo de terem melhores condições e acesso ao lazer.
132 A partir das ricas informações foi possível notar que a população do residencial aproveita bem o pouco que o espaço público tem a oferecer, e assim adaptam suas necessidades.
‘’O olhar da criança enxerga os detalhes, Somente por eles já dá pra perceber os ares, Que compõe o céu de pipas do residencial. No cotidiano dito normal, Notada é a presença do animal, E daqueles que roubam e praticam o mal. Apesar de toda dificuldade, A adaptação ocorre independentemente da idade, Dá pra se virar com o que tem pra brincar, ‘’Tia, se tivesse uma quadra era melhor pra jogar’’ Mas por enquanto seguem indo com os olhinhos a brilhar. Por esses pequenos anseios continuemos lutando, Na esperança de que a cidade estamos mudando, Vale a pena por eles, que diariamente estão Lutando, brincando e sonhando.’’
133
4.3.4 POR ONDE CORRE A BOLA O futebol é o esporte mais praticado em todo país, e principalmente nas comunidades periféricas tem-se o costume de jogar bola, seja nas ruas, em campos ou quadras. No Brasil muitos jogadores de futebol que alcançaram a fama são de origem humilde e além da prática do esporte ser ‘’involuntariamente’’ influenciado pelo sistema midiático, é um esporte acessível a classe baixa, por não haver necessidade de grande estrutura e equipamentos para ser praticado. A criança que assiste a um jogo e vê seu ídolo na TV ou que vibra ao lado da sua família e amigos torcendo pelo seu time; logo depois sai pelas ruas da comunidade chutando a bola pelo asfalto quente e brincando de ‘’fazer gol’’. No bairro Lamarão essa cena é frequente pelas ruas, principalmente pelo motivo de naquele bairro não existir nenhuma praça com quadra ou espaço que possibilite a pratica adequada do esporte no espaço público. Facilmente se identificou resquícios dessa cultura no Vitória da Resistência onde existem pessoas de todas as idades jogando futebol pelas ruas canteiros e no seu entorno (fig. 64).
Figura 64 – Crianças jogando futebol no canteiro do residencial.
Fonte: a autora, 2017.
Apesar de não existir nenhum tipo de equipamento urbano para prática do futebol no bairro, os moradores do residencial e do entorno se apropriaram de locais que consideraram atender melhor às necessidades do esporte (fig. 65 e 66). Por esse motivo foram adaptados 5 campos de areia na área do entorno do conjunto,
134 considerada área de preservação ambiental (fig. 67). Os campos que recebem maior fluxo de pessoas - oriundas de bairro mais próximos - estão localizados no lado oeste do residencial. São utilizados principalmente aos finais de semana, chegando a receber equipes que vão em ônibus exclusivos, transportando as equipes e acompanhantes.
Figura 65 – Jogo de futebol em um dos campos de areia
Fonte: a autora, 2017. Figura 66 – Jogo de futebol em um dos campos de areia
Fonte: a autora, 2017.
135
Figura 67 – Mapa de localização dos campos. Fonte: a autora, 2017.
136 Na porção leste do residencial, está situado apenas um dos campos de areia, e ele é o mais utilizado pela população do Vitória da Resistência e do entorno mais próximo (fig. 68). Em volta dele quando acontecem jogos e se concentram jovens e adultos para apreciar a partida. As crianças são as que mais se empolgam em assistir, e também são os praticantes mais assíduos da modalidade. Figura 68 – Campo do lado leste.
Fonte: a autora, 2017.
As crianças do conjunto além das ruas, realizam seus jogos principalmente no canteiro e no entorno do galpão (lado leste). Apesar da concentração da prática pelos moradores ser do lado leste, eles também utilizam uma parte de área livre, na esquina de uma quadra do lado oeste (fig. 69). No mapeamento elaborado consta a estimativa do número de pessoas que se agrupam nesses espaços (fig. 70). Figura 69 – Área livre de uma quadra do lado oeste do conjunto.
Fonte: Google Earth, 2015.
137
Figura 70 – Mapeamento de espaços utilizados para prática do futebol.
Fonte: a autora, 2017.
Apesar dos moradores terem se adaptado às condições existentes nos espaços públicos, eles relataram durante a pesquisa que gostariam da construção de um espaço adequado para jogarem futebol, que é um dos principais meios de entretenimento daquela região. As crianças em particular se queixaram das condições da pavimentação, ou da presença de fezes de animais nas gramíneas dos
138 canteiros do residencial. Faziam questão de expor o desejo de terem uma quadra com alambrado para a bola não correr pra avenida; com iluminação adequada durante a noite e quem sabe até uma cobertura para proteger do sol forte.
‘’ A bola corre por todos os cantos, Por onde passa deixa seu encanto, Trazido pelo som de ‘’vai ter jogo hoje ?’’ ecoando, Pela rua descendo, homens e crianças andando, Por vezes levam à sério, Outros vão só brincando, Sob o sol causticante, Nem estão se importando, Com os pés no chão, Nem estão se importando, Com os dejetos de animais, Nem estão se importando, Com o lixo deixado para trás, Nem estão se importando, Com os entulhos que furam os pés, Nem estão se importando, ‘’Seria bom se tivesse quadra; se tivesse cerca ao invés de nada’’ ‘’Seria justo se tivesse o mínimo, já que pra brincar disso aqui não se paga’’ ‘’Seria interessante se pensassem um pouco na área que vem sendo degradada’’ Teve que ser do jeito que é, Mas até quando? Nem estão se importando.’’
139
4.3.5 E AQUELE GALPÃO DA AVENIDA? A presença do galpão localizado no espaço público do residencial, situado na Avenida Paulo Figueiredo Barreto é um dos problemas identificados na localidade, e se impõe como um edifício subutilizado, sem nenhum uso por parte dos moradores, e grande gerador do acúmulo de sucata e lixo em seu entorno (fig. 71 e 72). O espaço ao seu redor, porém, é bastante utilizado pelas crianças e pela comunidade, que realiza missas semanalmente ao seu lado (fig. 73 e 74).
Figura 71 – Entulhos e vegetação ao fundo do galpão.
Fonte: a autora, 2017. Figura 72 – Entulhos e vegetação ao fundo do galpão.
Fonte: a autora, 2017.
140 Figura 73 – O galpão.
Fonte: Google Earth, 2015. Figura 74 – Vista lateral do galpão.
Fonte: Google Earth, 2015.
Todos os entrevistados quando perguntados sobre ‘’aquele galpão da avenida’’ levantaram questões e demonstraram o desejo de revitalização do edifício para que fosse dada uma função que atendesse às necessidades da comunidade. Desde a entrega do conjunto residencial a comunidade não aceita a presença inerte daquele edifício, que segue servindo de depósito de materiais de um inquilino que não reside no residencial. Por lei, toda aquela área pertence a prefeitura municipal e desde o início da entrega do projeto, a comunidade busca dar uma função para a edificação. O representante da comunidade, Gilson Santos, entrou em contato com a gestão municipal para solicitar um projeto para área. Segundo o representante, o órgão público em 2015 demonstrou interesse em fazer uma sede da FUNDAT ou uma escola técnica, mas os anos se passaram e nenhuma providência foi tomada.
141 Figura 75 – Atividades realizadas no entorno do galpão. Fonte: a autora, 2017.
142 Atualmente a grande maioria dos moradores deseja que fosse revitalizado para instalação de uma unidade de saúde ou uma creche. Outra parcela da população gostaria que fosse construído um espaço multiuso que possibilitasse a execução de reuniões, atividades físicas em grupo, cerimônias religiosas e jogos de futebol. Outra possiblidade apontada pelos moradores (principalmente idosos) foi a instalação de uma escola de alfabetização para jovens e adultos. Uma escola que oferecesse cursos técnicos também foi mostrada como uma alternativa. Essas indicações foram tecidas principalmente pela parcela dos entrevistados que reclamavam da falta de emprego e de opções de entretenimento no residencial. Pode-se perceber que no seu entorno as relações de sociabilidade são mais vívidas, e além da presença de crianças e reuniões de grupos ao ar livre, tem-se o comércio como uma forma de utilização daquele espaço remanescente. O espaço mesmo sem a infraestrutura adequada vem sendo cada vez mais palco de atividades diversificadas, como a instalação de circos31 e parques itinerantes (fig. 76 e 77).
Figura 76 – Em amarelo, tenda de circo que foi instalado no local em maio.
Fonte: Google Earth, 2017.
31 O circo aos dias de quarta-feira cedia o espaço da tenda para a realização das missas locais. Esse acordo foi estabelecido entre os moradores e o proprietário do circo.
143 Figura 77 – Fotos tiradas no mês de outubro, quando houve a instalação de um parque itinerante no local.
Fonte: a autora, 2017.
A comunidade anseia pelo destino do galpão e forte é o desejo da revitalização e do espaço no seu entorno. A presença desse problema, pode ser revertida em uma solução para as atividades que vem acontecendo de forma precária no residencial, e com o apoio e interesse da população local poderia se tornar um ponto de suporte às atividades, entretenimento e lazer para a comunidade do local.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O espaço urbano é palco de diversidades e isso gera contradições. Em cada momento histórico a cidade é moldada por protagonistas da sociedade, que transmitem na malha urbana seus interesses e mais profundos anseios. Inconscientemente o homem possui o ‘’papel’’ de criar e recriar a cidade e a si mesmo, e esse ‘’papel’’ nada mais é do que o direito de mudar e acessar a cidade. Quando pensamos em direito à cidade, podemos concluir que isso significa poder atuar coletivamente no processo de urbanização, mas se levarmos em consideração toda parte que é influenciadora do meio, chegaremos à conclusão que é um dos direitos humanos mais menosprezados. Isso se deve a imposição do modelo socioeconômico, que prioriza os desejos dos detentores de capital e ignoram as necessidades básicas da grande parcela da população. A partir do estudo do processo da ocupação urbana no Brasil, pode-se notar uma grande segregação socioespacial no país. Esse processo deu-se entre 1940 e 1980, quando ocorrem grandes migrações do meio agrícola e rural para as cidades industriais. O meio urbano industrializado não estava preparado para receber um grande contingente populacional, o que resultou na formação de grandes aglomerados urbanos que se mantinham com habitações precárias e insalubres. Foi então que quando passou a incomodar a elite, transmitindo doenças e comportamentos que iam de encontro aos padrões da burguesia, o estado resolve intervir no final do século XIX, realizando reformas urbanas, obras de saneamento básico e higienização das cidades. A partir dessas medidas o povo de baixa renda foi expulso dos centros das cidades e passaram a habitar morros e extremos das cidades. Com o passar dos anos as habitações para os ‘’pobres’’ foram sendo construídas nas margens da cidade onde as terras são mais baratas, por estarem distante dos dotados locais de infraestrutura e serviços. No Brasil mesmo com as medidas governamentais que vem sendo executadas no âmbito habitacional, o déficit de moradia é crescente. Tivemos como iniciativas de fomento à política habitacional a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH), o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (Serfhau) e o Sistema
145 Financeiro de Habitação (SFH) entre os anos de 1960 e 1980. Nesse período foram feitos investimentos na construção de casas (concessão de linhas de crédito) o que gerou empregos na área da construção civil e minimizou a situação precária do acesso à moradia. Com a crise da década de 80 o BNH e o SFH vieram a extinção, e foi necessário o desenvolvimento de uma nova estratégia política habitacional. Assim foi promulgada a Constituição Federal de 1988 que estabeleceu a obrigatoriedade dos Planos Diretores para ordenamento do solo urbano e trouxe o direito à moradia e a regulamentação da função social da propriedade, através do Estatuto da Cidade. Após esse importante momento na legislação urbana do país, houveram outras medidas que visavam o provimento de habitação social; foram eles o Programa de Arrendamento Residencial - PAR (1999), a Política Nacional de Habitação – PNH (2004), o Sistema Nacional de Habitação (SNH), o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007) e o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV (2009). Esses programas tiveram como objetivo sanar o déficit habitacional e realizar investimentos nas áreas de infraestrutura, setores habitacionais, saneamento e urbanização de assentamentos precários, porém não foram medidas efetivas. O programa MCMV por exemplo, foi produtor de segregação espacial quando os conjuntos habitacionais produzidos em sua maioria foram dispostos distantes das áreas consolidadas. A partir do conhecimento da história da habitação brasileira, pode-se notar que existe a tentativa e intenção de melhorar as condições de moradia porém as iniciativas vem sendo deficitárias e ineficazes. Os planos para produção de habitação social vem favorecendo o setor imobiliário e desencadeando problemas de acesso e mobilidade. Em Aracaju o cenário da produção habitacional é semelhante ao que ocorreu na maioria das cidades brasileiras. A partir do desejo da província, a capital do estado mudou-se de São Cristóvão para região onde hoje está o centro de Aracaju (em 1855), essa mudança foi guiada pelo desejo de estabelecer contatos comerciais para exportações e importações que eram facilitadas pelo litoral. Ao se instalarem na região, construíram as sedes da administração municipal e alguns prédios em seu
146 entorno. Consequentemente a população nativa foi expulsa, restando habitar áreas remanescentes no entorno do centro. A partir dessa migração para áreas circunvizinhas surgiram os bairros Getúlio Vargas, Santo Antônio e Cirurgia; e com a chegada das primeiras industrias na cidade, se consolidou o bairro Industrial e fez aumentar o contingente populacional dos outros bairros, que passaram a receber migrantes do campo. A ocupação do solo aracajuano se deu de forma espraiada e sem regulação do poder público. A infraestrutura nos bairros periféricos era precária e tinha-se um grande número de habitações inadequadas. Na tentativa de amenizar a ocupação irregular e o processo de favelização que se acentuava, a partir de quando o governo federal promoveu a concessão de linhas de financiamento voltadas a construção de habitação (em 1930), ocorreu a construção do primeiro conjunto habitacional do município o ‘’Agamenon Magalhães’’, que teve como objetivo acomodar a primeira favela registrada oficialmente na cidade: a favela da Ilha da Cobra, no bairro Industrial. A partir de 1968 outros conjuntos habitacionais foram construídos como o Castelo Branco I e II, Médici I, Assis Chateaubriand, Augusto Franco e Orlando Dantas; todos eles foram instalados em regiões distantes da malha consolidada da cidade. Teve um período que a cidade passou por um ‘’boom’’ imobiliário, quando a partir do financiamento da COHAB foram construídos 38 conjuntos habitacionais (17.531 unidades). Porém toda essa produção culminou no aumento da especulação imobiliária, na atração de pessoas em busca de ‘’ganhar‘’ a casa própria e na manipulação dos políticos que utilizaram do artificio da produção de casas para beneficiar seus possíveis eleitores. Evidentemente no processo de consolidação do espaço urbano de Aracaju não foi cumprida a função social da terra como prevê a constituição. O desenvolvimento urbano se deu através ‘’manchas isoladas’’ e desencadeou uma intensa especulação imobiliária. As classes menos abastadas não tiveram saída a não ser ocupar lugares inóspitos e com pouca (ou nenhuma) infraestrutura. Da insatisfação do povo surgiu os movimentos populares, que são grupos que lutam pelos direitos dos cidadãos - garantidos pela constituição – e canalizam as mediações entre a população e o poder público, se posicionando enquanto
147 representante de uma classe que manifesta seu direito à habitação, saúde, educação, cultura e outras questões que constituem a qualidade de vida do indivíduo. Em Aracaju, a atuação de movimentos sociais de luta pela moradia, foi maior a partir da realização do I Encontro Estadual de Movimentos Populares de Sergipe. E apesar de terem tido mais ações no passado (como a conquista da participação do conselho de habitação e conquista de algumas terras e habitação), vem ocorrendo uma significativa redução da participação dos movimentos em decisões da gestão pública (que deveria ter ampla participação popular), e é difícil o diálogo entre o setor público e população. As ocupações de terra ociosas são legítimas e legais segundo a Constituição Federal de 1988, que dispõe que toda propriedade tem que cumprir uma função social. Em consequência desta lei aquele proprietário que deixa seu terreno sem uso está agindo de forma ilegal e criminosa. Teoricamente deveria acontecer punições para estas pessoas, porém o sistema brasileiro ignora muitos casos em troca de negociações lucrativas, para o poder empresarial e público, somente. A população que se vê desassistida e passando por dificuldades para sobreviver, enxerga como saída a ocupação de terras. Ao ocupar um local e passar a habitá-lo, o indivíduo passa a ter um endereço, e agora pode buscar atendimento médico, educação ou emprego. O cidadão passa a ser enxergado pela sociedade, pois com um comprovante de residência em mãos pode preencher uma ficha de identificação ou cadastro. Em Aracaju os movimentos mais atuantes até o momento foram o Movimento dos Trabalhadores Urbanos – MOTU, Movimento Nacional de Luta por Moradia - MINPA, Central de Movimentos Populares – CMP e Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM. A conquistas desses grupos estão entre programas de auxílios, conquista de terras, conquista de habitações e participação em conselhos. Após análise de uma das conquistas do MNLM, o presente estudo evidencia a consolidação de uma comunidade, que se iniciou através de uma ocupação urbana, e resistiu durante 14 anos para que fosse efetivada a doação das terras. Terras que estavam desabitadas há anos, mas que mesmo assim gerou conflitos entre ocupantes e proprietários. Dentre desapropriações, manifestações e atos de violência, a
148 comunidade resistiu no local, e se adaptaram as condições oferecidas pela natureza. Eis que surgiu vizinho ao mangue, no bairro Lamarão, através de um grupo resistente o Residencial Vitória da Resistência. A denominação do local foi escolhida pelo grupo de ocupantes, que fizeram a escolha do nome quando houve a sessão de terras e o registro da lei de criação do conjunto. Coincidentemente os moradores relatam que na época de entrega das casas, gostariam de mudar o nome do residencial. Eles ainda nesse momento tiveram que resistir mais uma vez e negar tal medida, espalhar nos meios de comunicação e fazer ‘’rebuliço’’ pra que não acontecesse. De fato não aconteceu. E eles se orgulham disso. Antes de iniciar o trabalho de campo eu não conhecia a história do residencial, e minha concepção do local, antes de vivenciá-lo, estava contaminada pela estigmatização dos bairros periféricos, que obtive através da sociedade e da mídia. No início dos dias de trabalho de campo, tive que levar comigo câmera fotográfica, e por conta dos avisos para que eu tomasse cuidado, cheguei no local tensa e escondendo meus pertences. Após duas visitas meus preconceitos foram quebrados, e a venda que estava sob meus olhos caiu. Então pude perceber que aquele local não era tão perigoso assim e que as pessoas eram receptivas. Passei a transitar com meu celular e mais um gravador de áudio confortavelmente. Apesar de alguns moradores recusarem contribuir com a pesquisa, a maioria da comunidade se mostrou prestativa. Através da observação e estudo, avaliei as condições de habitabilidade no local e identifiquei as formas de apropriação do espaço público urbano. O que encontrei foi uma comunidade desassistida, tendo dificuldades para ter acesso à saúde, educação e emprego, principalmente. Ficou evidente que somente o provimento da moradia não garante todos os direitos do cidadão, que sem capacitação e oportunidades, continuam desempregados ou vivendo com um salário insuficiente. Por meio da realização do método de mapeamento participativo, obtive incialmente uma noção de como era o acesso aos serviços básicos e a infraestrutura disposta para a comunidade. Essa análise se deu porque nos momentos de
149 mapeamento, quando sempre iniciava a entrevista através do questionamento sobre o que eles viam acontecendo nos espaços públicos do residencial; eles desatavam a falar da falta de atendimento no posto de saúde (que era longe), da escola que tinha uma estrutura ruim ou da avenida que estava cheia de buracos. Inicialmente enxerguei nisso um fator que poderia prejudicar a análise do espaço público, mas então percebi que a maioria precisava colocar sua indignação para fora, então eu os deixava falar e me dispunha como ouvinte. Até que silenciavam, e eu colhia informações sobre o residencial, de fato. Explicava novamente o foco da entrevista e eles respondiam, porém houve a dificuldade em fazê-los marcar com as próprias mãos no mapa. Muitos diziam que não sabia fazer. Então percebi que era a forma de explicar que deveria se aproximar da linguagem do entrevistado, e que após a demonstração de uma das formas de como poderia ser apontada a atividade no papel, eles marcavam, mesmo que ainda inseguros. A questão da linguagem que acesse as camadas mais populares, foi intensa durante minha análise, pois a partir das entrevistas pude notar a necessidade de uma mudança na forma de dialogar com a população que não teve acesso à educação superior. Isso não representa uma ‘’diminuição’’ do profissional, e tampouco do morador. A questão que deve ser levada em consideração é somente a oportunidade de um diálogo efetivo e mais recíproco. Esse fato é evidente nas relações entre comunidade e setor público, quando por vezes em audiências a população entende o que está sendo abordado, e o poder público não se interessa em explicar de forma que eles possam compreender. Para que seja iniciado qualquer processo de mudança a comunicação plena e clara entre todos os atores envolvidos é indispenspavel. Ao presenciar nos grandes bairros da ‘’área luminosa’’ de Aracaju, a decadência da vitalidade urbana: praças e ruas vazias, e pessoas que não conhecem seu próprio vizinho. Deparei-me com a realidade do Vitória da Resistência, que vai de encontro a essa tendência das grandes cidades brasileiras, e tem um espaço público muito vívido. A partir do mapeamento feito, identifiquei as formas de apropriação da comunidade com o local, e observei que onde se concentra os moradores da ocupação, as ruas diariamente possuem pessoas transitando ou sentadas nas
150 calçadas conversando com seus vizinhos. Nessas mesmas ruas crianças brincam e as pessoas se cumprimentam. Percebi que as relações da época de resistência ainda permanecem e que nos movimentos sociais e grupos comunitários pode existir a chave para a vitalidade urbana. Notório é o maior apresso para com o local por parte dos moradores que ocuparam a terra inicialmente, e esse sentimento permanece até hoje, quando em suas narrativas encontrei o desejo de mudar alguns aspectos do local. Nas praças do residencial, a infraestrutura é precária, mas mesmo diante de locais insalubres e mobiliários quebrados, os moradores se adaptaram. Mesmo em locais que não foram destinados para aquela função, eles adaptaram. E até no espaço que seria de preservação ambiental, eles se adaptaram. Nessas pequenas formas de ações não planejadas e desviatórias reside a apropriação dos espaços do residencial, onde os residentes o utilizam da forma como está, mas do jeito que melhor te se adequa às suas necessidades. Esses pequenos ‘’desvios de função’’ podem ser considerados como uma ‘’micro-resistência’’, que contraria o padrão pré-estabelecido para o uso daquele local. Partindo do ponto de que aquela comunidade é originária de uma forma de resistência e que resiste atualmente às condições de vida a qual são submetidas, podemos observar que estas ações que vão contra regras pré-estabelecidas e quebram as estruturas, alcançando conexões com novos grupos e meios da sociedade, crescem de forma rizomática. A partir da multiplicação da comunicação e conexão (como aconteceu entre esta pesquisa acadêmica e o residencial), é formada uma espécie de trama que se desenvolve de forma horizontal, polimorfa e sem direções definidas (fig. 78). Ao analisar o sistema de relações das cidades, podemos perceber que a trama é formada pela multiplicidade e por linhas variadas de intensidade. Por menor que seja a ação (como a intervenção realizada no galpão), acontecerá a quebra da estrutura padrão, e aquela inciativa se espalhará por todas as direções. Constituindo desejos, fazendo alianças, desfazendo acordos e moldando o espaço urbano.
151 Figura 78 – Estrutura Rizomática resultante da pesquisa.
Fonte: a autora, 2017.
Mudar o processo de planejamento das cidades contemporâneas se faz necessário, e a busca pela redução da desigualdade social deve ser o maior objetivo. As camadas populares estão sofrendo diariamente com a falta de qualidade de vida, e para serem notados precisam por vezes realizar grandiosos atos e manifestações. O controle midiático e capitalista mantém a imagem negativa do pobre, e condenam os movimentos sociais que são mal vistos por grande parte da sociedade. Uma mudança no cenário da mídia deve ser feita, e temos como oportunidade de desconstrução dessa imagem, a possibilidade de uso da internet e sites como o youtube, onde o controle das grandes empresas é menor e o cidadão comum tem livre acesso. A crescente tendência a segregação, segmentação e descaso com a infraestrutura da periferia deve ser sanada, e mediante a análise feita, conclui-se que para promoção de melhorias nos espaços da cidade deve-se contar com a ampla participação popular, dos agentes públicos e privados, da classe acadêmica e dos demais atores sociais que estão envolvidos na questão habitacional urbana.
152 A produção desta pesquisa possibilita a realização de futuras analises a respeito da apropriação do espaço urbano, com foco em forças comunitárias organizadas e na produção habitacional popular. O presente trabalho busca contribuir para o provimento de melhorias no planejamento dos conjuntos habitacionais sociais, no tocante a qualificação dos espaços públicos, que se dispõe como importante palco das interações sociais. A partir do método escolhido para realização da pesquisa, buscou infiltrar-se no sistema como forma de ação microresistente, por meio da aproximação da comunidade que nos é escassa no meio acadêmico. O objetivo geral dessa pesquisa, é alcançar o máximo de pessoas possível, demonstrar uma realidade que poucas vezes é reconhecida e dar visibilidade às conquistas do espaço urbano.
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159
APÊNDICES ENTREVISTAS Entrevistado 01: Marianna Martins Albuquerque Data da Entrevista: 17/08/2017 Cargo/Função:
- Arquiteta e Urbanista; - Coordenadora Geral de Desenvolvimento Urbano – COGEDURB/SEPLOG; - Professora da Fanese – Curso de Arquitetura e Urbanismo.
Justificativa:
Coordena o setor responsável por: - Licenciamentos Ambientais do município; - Regularização fundiária; -Geoprocessamento. Acompanhou e participou do processo de elaboração das revisões anteriores do Plano Diretor e atualmente é uma das técnicas responsáveis pela continuidade da atualização do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Possui experiência em gestão pública, desenvolvimento urbano e meio ambiente.
Temas abordados:
- Elaboração do novo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano
e
dificuldades
encontradas
na
gestão
e
desenvolvimento do ambiente urbano de Aracaju.
Dauane - Ao pensarmos no processo de desenvolvimento e apropriação do espaço urbano de Aracaju, podemos perceber que o estado sempre foi influenciador da forma de apropriação e ocupação do espaço urbano, desde quando se transferiu a capital do estado, lá de São Cristóvão para cá... quando pensaram em colocar os prédios da administração pública lá no Centro...planejou o quadrado de Pirro...sempre foi o estado que pensou nisso. E aí com o passar do desenvolvimento resultou numa malha que a gente percebe que é segregada, onde o pessoal que é menos favorecido (financeiramente) foi posto em locais onde não era de interesse
160 das grandes imobiliárias e isso a gente percebe que continua acontecendo, mas também com a instituição do Plano Diretor iniciou-se uma preocupação maior quanto a esse uso do solo. Levando em consideração esse processo você acredita que hoje existe uma preocupação maior em diminuir essa segregação que se deu aqui em Aracaju? Marianna – Eu acredito sim que exista uma preocupação maior na medida de que as coisas foram evoluindo, os pensamentos foram evoluindo... antigamente o antigo urbanismo pensava de uma forma segregada: ‘’áreas pra habitação’’, ‘’áreas para trabalho’’, ‘’áreas pra comércio’’, ‘’áreas pra lazer’’ e hoje em dia a gente vê que o uso misto tem que ser incentivado em todas as áreas da cidade, então com o tempo e com a evolução dos estudos, com a compreensão também que o planejamento tem que ser sistêmico eu entendo sim que hoje exista uma visão mais, digamos assim, ‘’compartilhada’’ em termos de cidade e uma visão de que a cidade tem que ser mais acessível possível a todo mundo sem distinção. Agora o que eu acho de diferença é o discurso e a prática, entendeu? Eu entendo que existe uma visão sim mais ampliada, uma visão um pouco mais voltada pra realidade que de fato acontece, mas que na hora de colocar isso na prática falta um pouco de fôlego, falta algumas vezes falta de vontade, entendeu? Mas que outras vezes também a gente vê, por exemplo a realização de alguns planos, Plano Diretor e a revisão, Plano de Habitação de Interesse Social, então assim que as pessoas vão tentando estruturar e dar um suporte maior a essa população. Dauane – O Plano Diretor que a gente tem está muito defasado, o que a gente vem percebendo que está acarretando sérios problemas principalmente lá na Zona de Expansão que é zona de adensamento restrito mas ninguém respeita, e também no Centro da cidade. Qual a previsão que vocês tem atualmente de instituição de um novo plano? Marianna – Como a última revisão foi em 2015, um ponto bastante positivo dessa nova gestão foi que eles resolveram não ignorar o processo que aconteceu em 2015, mas pegar ele e atualizar, internamente ver o que precisa ser atualizado, conversar com a população para daí passar pelo CONDURB e seguir o rito normal que é seguir posteriormente para a câmara. Então a nossa previsão, o nosso planejamento é que
161 até no meio do ano que vem (2018), até julho, a gente estar com a minuta de lei pronta e aprovada no CONDURB, pra daí depois seguir a partir do meio do ano que vem para a câmara que vai ter uma série de audiências que daí a gente não tem muito como prever. Dauane – Pronto... entendi. Aí nessa nova atualização vai estar incluso novas medidas ou alterações no que já tem imposto atualmente, para que ajude a impedir a promoção de vazios urbanos e estoque de terras no meio da cidade? Marianna – Com certeza! Que são os instrumentos, especialmente o IPTU progressivo, as PEUCs que é o parcelamento, utilização e edificação compulsórios, outorga onerosa, desapropriação em pagamento de titularidade pública... então todos esses instrumentos eles foram revisados porque o plano diretor da gente foi de 2000 e Estatuto da Cidade foi em 2001, então ele já deveria ter sido revisado automaticamente em 2001, em relação aos instrumentos. De todos os instrumentos que a gente tem no plano diretor vigente, praticamente só dois são utilizados, que é o IPTU e a Regularização Fundiária, todo o restante ele não é aplicado. Oh perdão! E tem o RIV, o Relatório de Impacto de Vizinhança. Então todos os outros eles não são utilizados e aí com essa revisão a gente retoma esses instrumentos, outros instrumentos também que serviram de base, dentro do Estatuto, o Estatuto da Metrópole também, e aí com essas instrumentos acredita-se que a gente tenha uma cidade de fato mais justa pra todo mundo. Dauane – Certo, e quanto a fiscalização do cumprimento das leis do Plano Diretor o que vocês preveem? Tem alguma previsão de mudança no processo de fiscalização? E como você mesma falou que o difícil é a parte prática, o que vocês pretendem fazer haver uma mudança nisso? Marianna – É de fato começar a fazer a revisão do Plano Diretor, porque a gente já tem o processo de 2005 a 2010, nós já tivemos outro processo em 2015 e nessa brincadeirinha a gente já está desde 2000 sem a atualização desse Plano Diretor. Então o primeiro ponto é fazer essa revisão, depois disso a gente vai fiscalizar sim o cumprimento desse plano. Principalmente na EMURB que toma conta dessa parte da fiscalização das construções de edificações como um todo, mas aí entra um dos principais ‘’ gargalos’’ que a gente tem dentro da prefeitura que é a questão da
162 fiscalização. Tecnicamente dentro da fiscalização nós só temos 6 fiscais para todo o município, a muitos anos atrás eram 40. Então é humanamente impossível pra esses fiscais darem conta da cidade como todo. Por isso que a gente vê várias situações acontecendo e que o poder público mesmo sendo avisado não tem como estar intervindo. Por outro lado essa fiscalização por mais que a prefeitura tenha essa atribuição, a população também tem a responsabilidade. Quer seja pelo CAU, pelo CREA ou que seja a própria sociedade civil como um todo, pois também cada um responsável por fazer essa fiscalização, por fazer denúncias junto ao órgão competente, entendeu? Então assim, além dessa reestruturação da fiscalização que a gente já colocou isso pra EMURB e eles já estão pretendendo fazer essa reestruturação, ou internamente capacitar mais pessoas para que elas sejam fiscais ou de repente, quem sabe futuramente fazer um concurso para fiscal, e também a gente precisa da população trabalhando junto com a gente. Dauane – E nessa nova reformulação vocês preveem uma parte mais educacional juntamente com a população? Marianna – Então, por enquanto até onde eu saiba, essa parte educacional ainda não está muito certa mas eu acredito que venha a ser feito também, principalmente com a divulgação. Quando a gente tiver um novo Plano Diretor e disser ‘’ Olhe, agora é assim que deve ser seguido!’’ e quando tiver essa obrigação, eu acho que a população vai começar a obedecer um pouco mais e a gente vai conseguir ter um controle maior da cidade. Dauane – Talvez haja um respeito maior, não é? Com a atualização... Marianna – Exatamente! Dauane – Teve uma entrevista que eu li da tese da professora Lygia, que ela fez com Lúcia Falcón em 2013, na época em que ela era secretária, ela falou que na época de 2003 eles iniciaram uma revisão do plano, que foi depois da instituição do Estatuto da Cidade, porque a legislação precisava ser revista, principalmente referente a área do Centro onde ela falou que estava um caos. E aí ela relatou que uma das dificuldades no processo inicial da revisão era a falta de informação e a dificuldade em visualizar a cidade, porque antes não tinha a base cartográfica, não tinha o trabalho de geoprocessamento... aí foi na época que eles realizaram os estudos e adquiriram a
163 base e ela falou que ficou muito mais fácil para visualizar o território e atualmente a prefeitura possui alguns dados da base que foram sendo atualizados gradativamente. Então houve um avanço tecnológico, porque veja, em 2003 foi quando ele iniciaram as primeiras pesquisas relacionadas a essa parte da tecnologia... e aí agora já são 14 anos depois e eu queria saber se vocês estão utilizando dessas bases e parte de geoprocessamento e se isso está sendo importante e útil no processo de atualização e revisão do plano. Realmente ajuda e realmente é necessário para a visualização do território? Marianna – Não só ajuda, como é extremamente necessário, como a gente faz utilização dessa base pra tudo! Como o próprio nome diz, ela é a base cartográfica, e a base de geoprocessamento que a gente tem aqui no município ela é fundamental para todas as ações, não só pra parte de planejamento urbano, mas pra saúde, pra educação, pra assistência social... então todos esses aspectos, além de outros, como o pessoal do meio ambiente e trânsito, tudo isso tem que utilizar essa base. Então essa base ela tem que ser única, e uma dificuldade que a gente tem um pouco é porque essa base atualmente se encontra aqui dentro da prefeitura, na COGEDURB, com uma conversa direta com o pessoal de SEMFAZ (Secretaria da Fazenda), que estão diretamente trabalhando no dia-a-dia com estagiários nas ruas, fazendo esse monitoramento, mas que outras secretarias também tem as suas bases geoprocessamento, e isso é positivo, mas essas pequenas bases muitas vezes não conversam com a base principal que é aqui. Então cada um age como se fosse o núcleo central de geoprocessamento e não é. Então essa base precisa conversar, e essa base só vai conversar quando os servidores forem capacitados com esse tipo de educação e de pensamento que é esses trabalho interligado, interconectado que precisa haver dentro da prefeitura. Dauane – Que aí no caso vocês estão prevendo a partir desse ano iniciar esse trabalho de integração? Marianna – Isso, o trabalho de compatibilização de integração de tudo! Dauane - E sobre o CONDURB e o Conselho Municipal de Habitação? Como funcionam e ainda estão ativos?
164 Marianna – O Conselho Municipal de Habitação está desativado e em processo de reestruturação. Já o CONDURB é o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano, pelo
Plano
Diretor
originalmente
existiria
um
Conselho
Municipal
de
Desenvolvimento Urbano e Ambiental, que foi instituído inicialmente pela lei orgânica e depois detalhado melhor no CONDURB e depois uma lei específica do próprio conselho. Com a criação da SEMA (Secretaria do Meio Ambiente) em 2013, esse conselho foi separado, porque a gente não tinha antes a Secretaria de Meio Ambiente, então portanto nós passamos a ter em 2013 o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Conselho Municipal de Meio Ambiente. O de Meio Ambiente sendo de responsabilidade da SEMA e o de Desenvolvimento Urbano sendo de responsabilidade da SEPLOG. Então o CONDURB existe sim, com reuniões mensais, geralmente toda última terça-feira do mês, só que o que acontece... algumas vezes tem coro e outras vezes não tem, e o que é esse coro? Esse coro é composto por membros tanto internos da prefeitura, quanto membros da sociedade civil como toda, representantes da OAB, CREA, CAU, instituições de ensino e de pesquisa e o pessoal das ONGs e associações de moradores. Então ele foi destinado para discutir os maiores problemas da cidade como um todo e dar algumas diretrizes, então ele é um órgão consultivo e deliberativo que está na ativa sim e que a gente está precisando inclusive fazer uma reestruturação, e estamos fazendo uma proposta por agora. Dauane – No caso da elaboração do Plano Diretor o CONDURB também participa? Marianna – Participa ativamente, porque o rito do plano diretor é passar pela fase de diagnóstico, de levantamentos e tudo... faz o diagnóstico e apresenta, entra na fase de propostas e depois dessa fase vai pra elaboração da minuta de lei e a partir daí, na verdade desde o início o CONDURB já vai participando dessas audiências e acompanhando todo o processo, mas depois que a minuta está pronta ela é encaminhada ao CONDURB que aí vai ter uma série de reuniões pra estar discutindo e avaliando, para no final ser emitida uma minuta de lei com as alterações sugeridas pelo CONDURB e aí vai pra Câmara de Vereadores. Daí a câmara vai fazer as suas audiências e aí com fé em Deus vai ser tudo aprovado, acredito eu e espero que até no início de 2019 no máximo!
165 Dauane – Ótimo, era basicamente só isso mesmo. Agora só para que eu possa registrar na minha pesquisa, você poderia dizer resumidamente sua carreira profissional? Marianna – Posso. Eu sou Arquiteta e Urbanista formada em 2009 pela Universidade Tiradentes, tenho mestrado em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Federal de Sergipe em 2013, fui professora substituta da universidade federal durante o período de 2013 a 2015, sou pós graduanda em MBA em Construções Sustentáveis pelo IBEC, sou pós graduanda EAD em Direito Urbanístico e Ambiental pela PUC Minas, atualmente sou Coordenadora Geral de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura Municipal de Aracaju (desde 2013) e sou professora de Arquitetura e Urbanismo da FANESE. Dauane – Pronto, é só isso. Muito Obrigada!
166 Entrevistado 02:
Mônica Ferreira Santos
Data da Entrevista: 21/08/2017 Cargo/Função:
- Coordenadora de Gestão de Habitação Social
Justificativa:
Atual coordenadora do setor que realiza os cadastros da população que vive em assentamentos precários e cadastros de residências para realização da regularização fundiária. A coordenadoria faz parte da Secretaria Municipal de Ação Social – SEMASC, que é responsável pelas políticas públicas de assistência social e o combate e erradicação da pobreza, gerenciando o Sistema Único de assistência social.
Temas abordados:
Método de realização do cadastro da população; critérios para recebimento de auxílio moradia e atual situação das ocupações urbanas no município.
Dauane – Como é feita a realização dos cadastros e qual a maior dificuldade encontrada na realização? Mônica – Bom, primeiro você tem que ver que são dois tipos de cadastros, tem o cadastro de ocupações e tem o cadastro de quando se abre inscrição para o Minha Casa Minha Vida (MCMV) são duas coisas totalmente diferentes. No cadastro de ocupações os técnicos vão in loco e fazem o preenchimento do cadastro de habitação com essas famílias, já o cadastro do Minha Casa Minha Vida é feito tanto online como também pessoalmente, que são públicos totalmente diferentes mas hoje que são contemplados com o programa MCMV. E quais são as maiores dificuldades que eu acho hoje em dia? É a equipe e o transporte, porque a equipe hoje está limitada, apesar de que atualmente aumentou e melhorou mas ainda não é o suficiente para a demanda necessária, e a questão de transporte também é outro dificultador do trabalho que nós não temos transporte específico para o setor, é de acordo com a necessidade que fazemos a solicitação da liberação com o setor de transporte. Dauane – Mas geralmente quando vocês chegam in loco para realizar o cadastro das famílias a relação de vocês com a comunidade é boa?
167 Mônica – É tranquilo, o que que acontece? Antes de qualquer cadastro a gente vai na área conversa, se tiver, com algum líder comunitário, explica o motivo pelo qual estamos indo fazer esse cadastro, porque as vezes a gente tem cadastro muito de questão de ordem judicial, então a gente primeiro vai e conhece a área, conversa com a comunidade e explica o motivo desse cadastro. Dauane – E no caso do auxílio moradia a pessoa cadastrada recebe o auxílio durante quanto tempo? Todos que são cadastrados recebem o auxílio moradia? Mônica – Não, não... são coisas diferentes. No cadastro das ocupações a gente precisa identificar quem são essas famílias, se já tem Cad Único, se recebe bolsa família ou não... porque através desse cadastro a gente vai identificando famílias que não estão inscritas no Cad Único, que não recebe bolsa família... e a partir disso a gente faz um encaminhamento para o CRAS, para que lá ele faça o seu cadastro no Cad Único, e se tiver alguma necessidade já é inserido para receber uma cesta básica, também encaminhamos para ver se já tem cadastro no posto de saúde, então é através desse cadastro que é a porta de entrada para receber todos os benefícios do governo municipal. Dauane – Certo. E o valor que eles recebem no caso do auxílio? Mônica – Então, aí repare só, quem vai dizer o valor não somos nós, é o Governo Federal, e vai de acordo com o número de dependentes daquele cadastro. Quando ele faz o cadastro do Cad Único que é diferente do cadastro de habitação, vai para o Governo Federal, vai para Brasília e lá em cima daquele cadastro e das informações que são transferidas para ele,
que vai dizer o valor que a família vai receber. O
valor varia muito, tem gente que recebe de 80 a 200 ou 300 reais, depende muito do número de dependentes por família. Já em relação ao auxílio moradia, aí você me diz, e entra assim? Não...antes tem uma equipe técnica aqui do programa, porque tem a gerente do auxílio moradia, com uma equipe de serviço social, que faz a visita in loco e vai fazer um relatório para observar se aquela família está dentro dos critérios ou não, se atende, porque nós temos uma lei que rege o auxílio moradia, aí se estiver dentro dos critérios ela (a família) será beneficiada. O valor do auxílio é de 300 reais.
168 Dauane – Centro, entendi! Então atualmente o programa que atende a essa questão habitacional é somente o Minha Casa Minha Vida não é? E como é feita a entrega das casas? É feita uma lista com os cadastrados e vai por ordem? Qual o critério? Mônica – Pronto, não! Tem o cadastro de habitação onde todas as pessoas que estiverem dentro do critério do cadastro de habitação, vai passar por um sorteio. Não somos nós que determinamos. Vai pro sorteio e nesse sorteio é que serão contempladas essas famílias que serão beneficiadas futuramente com os empreendimentos habitacionais. Dauane – Aí por exemplo, isso não tem nada a ver com a região. Por exemplo: Tem um empreendimento que será construído lá no Santa Maria, digamos, e tem uma pessoa que é de outro bairro distante, do Lamarão, ela pode ser sorteada para ir morar lá no Santa Maria, não é isso? Mônica – Pode. Nesse caso você tá falando é do programa de antigamente... o Moradia Cidadã que era diferente que os programas habitacionais era pra ocupações daquelas famílias que moravam naquela região, então aquele empreendimento era direcionado para aquelas famílias. Certo? Como também no Coqueiral...aquelas famílias que moravam já no Porto Dantas, naquela área do Coqueiral, ficaram lá, eram assentadas no mesmo local onde elas já residiam para beneficiá-las já dentro da sua própria comunidade. Hoje com o programa Minha Casa Minha Vida não. Se tiver um empreendimento, seja em que área for construído e as famílias se inscreverem e forem sorteadas, elas vão ter que irem morar naquela área que foi sorteada. Dauane – E aí depois eles permanecem morando e só vão receber a escritura da casa depois de 5 anos? Mônica – Seria isso... mas na verdade é a partir de 5 anos. Por exemplo a Coroa do Meio tem esses anos todos, desde de 2008 e agora que vai acontecer a regularização fundiária. Ela vai ser a primeira depois parece que a segunda vai ser o Vitória da Resistência, então assim o nosso gestor maior, o prefeito, agora está vendo essa questão da regularização fundiária para entregar realmente as escrituras aos seus beneficiados. Dauane – E em relação aos líderes de movimentos sociais e líderes comunitários vocês não tem nenhum cadastro para manter a relação e comunicação?
169 Mônica – Não. Nós não temos cadastros. Alguns a gente mantém uma relação com eles e tudo. Mas geralmente quando eles vem aqui eles procuram o gabinete da secretária (Eliane Aquino), a relação é mais direta com a secretária. Então aí eu não tenho como responder essa questão porque é outra pessoa que mantém o contato com eles, eu só recebo a demanda. Dauane – Está bom Mônica. Muito obrigada!
170
RELATOS DAS VIVÊNCIAS CONHECENDO A VIZINHANÇA Esse foi o meu terceiro contato com o Residencial Vitória da Resistência. (Nas outras duas visitas eu primeiramente observei o local e caminhei entre as ruas conversando brevemente com Sr. Gilson, foi quando me apresentei pessoalmente para ele. O segundo contato aconteceu outro dia, na realização da entrevista, numa manhã na casa de Gilson quando conversamos durante cerca de 4 horas sobre a história do residencial e as características apontadas pelo morador e por seu vizinho que se encontrava na casa do mesmo junto conosco.) Figura 79 – Vista do Residencial a partir da avenida de acesso.
Fonte: a autora, 2017.
Nesse dia cheguei ao local, às 14:30h, munida de: câmera fotográfica; bloquinho de anotações; uma caneta e medo. O medo que estava comigo veio da imagem do bairro que foi construída através de comentários de familiares e amigos, que ao me ouviram dizer que iria para o Lamarão sempre falavam ‘’Cuidado! Vá sem nada de valor. Lá é perigoso...’’. Assim eu fui com a câmera por baixo da blusa, tentando esconder ao máximo.
171 Encontrei: Crianças pela rua e calçadas (nos lugares que estavam sombra); Calçadas em bom estado. Surpresa: Tem rampa pra cadeirantes. Achei legal! Alguns moradores sentados na porta: em dupla, trios ou sozinhos; Ruas pavimentadas com paralelepípedo com alguns buracos; Mercearia na esquina, o dono é Sr. Ciro, conversamos brevemente, ele é morador antigo desde a ocupação; Olhares atentos voltados pra mim enquanto caminho; Sr. Gilson explica ‘’É ela que eu comentei...’’ Vizinhos da calçada respondem ‘’Sei... eu já vi ela aqui da outra vez!’’; Me apresento e sorrio. Todos me sorriram de volta. Mesmo que timidamente; As crianças sempre as mais observadoras; Gilson decide me conduzir a alguns moradores antigos, assim fomos bater na porta de cada um.
Figura 80 – Rua do Conjunto Habitacional.
Fonte: a autora, 2017.
O Sr. Panta (85 anos), morador do local desde 1999, mora hoje onde ficava seu barraco. Durante a conversa ele me disse que:
172
‘’No início da ocupação a gente já correu até de tiro. Foram muitos anos de luta’’;
Gosta de onde mora e da vizinhança;
O esgoto é ‘’mal feito’’ e quando entope uma casa, vaza esgoto pela rua inteira (os canos são finos demais);
Abastecimento de água é bom;
Iluminação pública é boazinha também;
Os netos estudam no Conj. João Alves;
A educação é precária, falta professores e boa estrutura;
A saúde é péssima, o único posto da região dá preferência ao pessoal do japãozinho. É muito ruim mesmo!
A Dona Maurília (73 anos), mulher negra de aparência marcante. Tem 4 filhos e muitos netos. Sua casa permanece quase da mesma forma que foi entregue pela prefeitura, teve somente o acréscimo de uma cerca de madeira na frente. Ao me convidar para entrar, sentamos no sofá e começou a me contar:
Os filhos estão desempregados e vivem dos ‘’bicos’’ que fazem;
Não teve muitas condições de ‘’ajeitar’’ a casa;
Veio ‘’fugida’’ de Salvador com os filhos ainda pequenos. Eles moravam numa favela onde chegaram uns traficantes que começaram a cobrar dinheiro e fazer ameaças de tomar a casa. ‘’Peguei meus filhos e abandonei minha casa lá!’’
Ao chegar em Aracaju tinha pouco dinheiro, mal dava se hospedar em algum lugar. Chegou perdida sem saber o que fazer e pra onde ir;
Um conhecido dela indicou a ocupação da Matinha que era organizada pelo MNLM. Entrou em contato com o pessoal que a acolheram mas informaram que não tinha mais vaga lá;
Foi para a ocupação do Vitória da Resistência, conheceu Sr. Gilson e foi muito bem acolhida;
Não era fácil, tinha muita lama e mosquitos. Apesar das péssimas condições eles se organizavam;
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Um ajudava o outro, ninguém nunca passava fome. Ela se juntava com as outras mulheres para cozinhar pra todo mundo, a partir dos alimentos que cada um podia dar;
Pra pegar ônibus é muito ruim. É ruim de subir no ônibus. E ainda tem a violência;
‘’O único salário que temos aqui em casa é o meu de aposentada. Tá difícil!’’
Seus filhos não arranjam emprego, desde que ganharam a casa, eles nunca tiveram emprego fixo;
O acesso à educação já era ruim quando os filhos eram menores e continua piorando;
Gostaria que o governo desse condições para eles manterem a casa e para conseguir um emprego;
‘’Eu confio na luta de Gilson, e ele que nem pense em se aposentar viu? Ele ainda precisa nos ajudar em muitas coisas.’’ (olhou pra Sr. Gilson e gargalhou);
‘’Eu sou muito agradecida a Deus por ter conseguido minha casa.’’.
Ela me deu um forte abraço, eu agradeci e fui convidada a retornar: ‘’Pode aparecer aqui quando quiser’’.
A Dona Lúcia estava na porta, prestes a entrar em casa, aparentava estar com pressa. Perguntei-lhe rapidamente o que achava da moradia ali no Vitória da Resistência. Respondeu rapidamente:
Ela gosta de morar aqui. Gosta dos vizinhos também. Não tem problemas com nenhum;
Aqui a maior deficiência é a Saúde. É muito ruim ser atendido no posto. Tem que ir pela manhã cedinho, marcar lugar para pegar um papel e voltar pra casa, retornando ao final da tarde, para aí sim entrar na lista de pessoas a serem atendidas pelo médico do dia (isso quando tem vaga);
Outra coisa que não tem em nenhum lugar no bairro é uma Lotérica ou Banco. Pra fazer pagamento é só lá no João Alves ou lá perto da Soledade. É tudo longe daqui.
174 Depois de conversar com eles eu fui caminhando pelo conjunto juntamente com Sr. Gilson e conversando sobre o dia-a-dia dos moradores. Nessa caminhada descobri que: Lá no final da rua 07 tem uma ocupação, com barracos precários; Os moradores acusam a ‘’invasão’’ que fica no fundo do conjunto habitacional como uma das principais causas do aumento da violência e do tráfico/uso de drogas; Rotineiramente acontece jogo de futebol no campo de areia próximo ao mangue; Tem cavalo lá ao lado do campinho; Tem pessoas de todas as idades em volta do campo e também jogando futebol; É a principal atividade de lazer do conjunto; Eles sentam embaixo de uma arvorezinha pra apreciar o jogo; O fim de tarde lá do campinho é lindo e agradável.
Figura 81 – Fim de tarde no campo de areia
Fonte: a autora, 2017.
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A FÉ QUE RESISTIU JUNTO AO POVO Fiquei sabendo através dos relatos dos moradores que todo dia de quartafeira acontecem missas realizadas pelo padre da Paróquia do Bairro Lamarão juntamente com alguns membros do residencial. Essa parceria foi selada há muitos anos, desde a época da ocupação, quando principalmente nos momentos de reintegração de posse os ocupantes receberam suporte da igreja com relação à alimentação, produtos de higiene, abrigo e apoio emocional. Essa ligação que iniciou no passado perdurou até os dias de hoje, e a comunidade combinou com o Padre que missas especialmente voltadas para o povo do residencial continuassem sendo realizadas. Como a igreja fica um pouco distante do conjunto, e como o tamanho do templo não comporta confortavelmente toda a população do bairro, eles encontraram como solução a realização de cerimônias em um dos espaços públicos do residencial, a área livre ao lado do galpão. Em todas as minhas visitas alguma pessoa comentava da missa, alguns diziam ‘’é muito boa, você tem que vim um dia de quarta à noite’’, outros diziam ‘’alguns católicos se reúnem um dia da semana ali do lado galpão onde tem missa, mas eu não vou não’’. Daí diante da notícia de que haveria uma cerimônia especial em homenagem a padroeira do conjunto, no dia 13 de agosto, num domingo eu fui participar desse momento. O que encontrei nesse dia:
No dia 13 de agosto, às 16h, aconteceu uma procissão em homenagem a Nossa Senhora Desatadora dos Nós – considerada padroeira do residencial -, onde a população católica do residencial e adjacências percorreu as ruas do lado leste do residencial, seguindo a imagem da santa e um carro de som que ecoava os cânticos que eram repetidos pelo povo que seguia celebrando;
Os moradores se dividiram para conseguir: carro de som, toldos/coberturas e iluminação. E eles conseguiram tudo gratuitamente através de parceiros conhecidos da comunidade desde a época da organização do assentamento;
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O padre e sua equipe se encarregaram de levar todos os objetos religiosos que seriam utilizados na cerimônia;
Após caminharem rezando pelas ruas do residencial, eles se encontraram no espaço ao lado do galpão, onde a maioria conseguiu se acomodar sentados nas cadeiras que permanecem guardadas na casa de Sr. Gilson desde a época que reuniões eram realizadas no barracão do assentamento;
No início da noite, com todos acomodados, a cerimônia foi celebrada e crianças, jovens, homens e mulheres demonstravam sua fé e agradeciam pela principal graça alcançada: a sua moradia!
Ao final da cerimônia tiveram fogos de artifício brilhando no céu da noite, teve uma quermesse vendendo bolos, doces e salgados (toda renda seria revertida à igreja) e vizinhos confraternizando alegremente naquela noite de domingo.
Figura 82 – Cerimônia ao ar livre.
Fonte: a autora, 2017.
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Figura 83 – Padre celebrando missa para os moradores.
Fonte: a autora, 2017.
O que percebi nesse dia foi que a maioria dos moradores que participaram da manifestação religiosa são oriundos da ocupação inicial, e que a iniciativa de organização juntamente aos representantes da igreja perdura desde os primórdios desse laço. Havia também a presença de famílias que não vieram de Movimentos Sociais, mas em menor número se comparado com a quantidade dos moradores mais antigos. Ainda assim notei que todos que estavam presentes valorizavam muito aquela organização, e os vizinhos de fora que não frequentavam as missas também respeitavam e admiravam a realização das missas às quartas-feiras. O que vi foi uma comunidade organizada em prol de um objetivo em comum, a realização do seu culto religioso como meio de união e agradecimento. Senti resquícios da união que surgiu da resistência de anos no local, até o alcance da construção do residencial. Concluí que a religião é importante para dar força e unir a comunidade, que por ser carente em muitos aspectos se sente nutrida e fortalecida pela fé.
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OS DIAS DE MAPEAMENTO O mês de setembro foi o escolhido para a realização do Mapeamento Participativo, onde eu fui a campo com o objetivo de coletar o maior número de informações possíveis relacionadas aos espaços públicos do residencial. Foram 3 dias de pesquisa, sendo feita 2 dias durante a semana (das 14h às 18h) e 1 dia (das 9h às 17h). As pessoas que entrevistei foram justamente as que estavam no espaço público do residencial, e com a finalidade de encontrar o maior número de pessoas nas ruas eu escolhi principalmente o período da tarde para abordar os moradores, pois pude observar previamente que era o horário que a maioria das pessoas saiam das suas casas. Nos meses anteriores eu conversei com alguns moradores sobre a vivência deles no local, e durante essas conversas eu realizava anotações, porém nessas visitas de setembro o foco era que os entrevistados apontassem numa foto de satélite do residencial as atividades, fatos, acontecimentos e peculiaridades que eles notavam na rua, nas calçadas, canteiros e áreas livres do conjunto. Cheguei lá com um bloco de mapas impressos em formato A3, canetinhas coloridas, pirulitos em formato de coração e panfletos que continham a explicação do que se tratava minha pesquisa (fig. 84).
179 Figura 84 – Materiais utilizados no Mapeamento Participativo.
Fonte: a autora, 2017.
Apesar de sempre me apresentar como estudante pesquisadora da UNIT achei importante deixar algo acessível ao morador para que não restasse dúvidas ou receio de participação da pesquisa. Assim no momento em que abordava o entrevistado, entregava o panfleto e explicava o objetivo daquele mapeamento. Ao término de cada entrevista como forma de agradecimento eu lhes entregava um pirulito em troca da sua ajuda. O que notei ao longo dos dias de mapeamento:
A maioria dos moradores me receberam muito bem, porém tiveram outros que demonstraram uma certa desconfiança, me questionando se eu trabalhava pra prefeitura.
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Quando questionados sobre as atividades que viam acontecendo no espaço público eles relatavam principalmente que aconteciam assaltos frequentes e pessoas fumando maconha na praça com parque infantil no período da noite.
De início sempre respondem ‘’Não tem nada demais aqui não’’ ‘’É isso aí que você tá vendo, e tem roubo de vez em quando lá na avenida...’’
Outro acontecimento relatado, principalmente pelas crianças e adolescentes foram os acidentes na avenida. Atropelamentos acontecem lá facilmente por não existir faixa de pedestre, redutor de velocidades ou semáforo.
Os carros não param!
As calçadas e as vias são esburacadas!
Tem trânsito de veículo de todos os tipos: carros, ônibus, caminhões, bicicletas, carroças e motos.
Me perguntaram: ‘’Minha fia, você ganha alguma coisa pra fazer isso?’’
Duas moradores lastimaram: ‘’A gente vive aqui esquecido. Sem saúde, educação... você viu as condições da pista né?!’’ Inicialmente sentia certa resistência por parte dos entrevistados que diziam
não saber responder, mas eu ia tentando conversar mais e dar exemplos de usos nos espaços públicos, como o acontecimento da missa ao lado do galpão. Aos poucos eles iam quebrando a tensão que havia entre nós e começavam a falar e muitas vezes senti um tom de desabafo na voz deles. Muitos não me relatavam exatamente o que eu buscava, me diziam apenas uma ou outra atividade que notava acontecendo no residencial, mas passavam um bom tempo reclamando das condições de vida, reclamavam do atendimento no posto de saúde, do ensino e estrutura na escola mais próxima, das condições das vias de acesso e dos assaltos que vinham se tornando cada vez mais frequente na avenida e na rua 11 (lado oeste). Encontrei grande dificuldade em fazê-los rabiscar no papel do mapa. Por mais que eu insistisse dizendo que podia marcar de qualquer jeito, com um X, linha, círculo ou qualquer outra coisa; eles diziam que não sabia fazer isso não. Daí eu fui marcando os primeiros locais que iam me dizendo, e depois pedia pra pessoa riscar
181 mesmo ‘’sem saber direito’’ como fazer. Depois que eu marcava um ponto de maneira bem simples, eles tomavam coragem e iam marcando o resto. As crianças foram as que mais me ajudaram, eu fazia uma pergunta apenas e elas destrinchavam o assunto me apontando diversos fatos ocorridos naquele espaço. Notei que os pequenos são os maiores observadores do local e com eles não havia o medo de errar, eu colocava a caneta na mão deles e por mais que eu notasse o ‘’medo de errar’’, eles riscavam assim mesmo e me olhavam com uma cara de ‘’Está bom assim?’’. Eu realmente fiquei aliviada com a quantidade de informações que recebi das crianças, seus relatos foram muito valiosos para mim (fig. 85).
Figura 85 –Mapeamento com participação das crianças.
Fonte: Kaio Espínola, 2017.
Eu estava lá na condições de ouvinte, após cada conversa eu me punha a refletir sobre as condições de vivência naquele local. Em resumo eu percebi que não era fácil viver com direitos reduzidos, as necessidades que eles relataram pra mim, me pareciam básicas para todo ser humano. Em suma, concluí o que já desconfiava: as condições de habitabilidade no Residencial Vitória da Resistência é precária, e no
182 tocante aos espaços públicos as carências são enormes, porém o povo resiste e se adequa da melhor maneira que podem. A luta deles ainda continua, e enquanto resistirem haverá a possibilidade de mudança!
A INTERVENÇÃO URBANA Uma das peculiaridades que notei desde o início na área destinada ao Residencial Vitória da Resistência, foi a presença do galpão que fica ao lado do que deveria ser uma ‘’praça’’, localizado de frente para avenida Paulo Figueiredo Barreto. De acordo com a entrevista concedida pelo morador e líder comunitário Gilson Santos, este galpão foi construído quando ainda funcionava a Salina São Marcos, e posteriormente após sua desativação, a edificação permanece sendo utilizada por um antigo inquilino dos ex-donos da terra que foi cedida à comunidade. Ou seja, esse galpão legalmente pertence ao povo residente no conjunto habitacional (e consequentemente, a todos do bairro). Cerca de 90% das pessoas que entrevistei demonstraram o desejo de revitalização do local para que houvesse um uso apropriado voltado pra comunidade. Os moradores se queixam que o galpão continua servindo de depósito de sucata e de máquinas do ex-inquilino, e tal sujeito, para piorar a situação, deixa sucatas espalhadas no entorno do galpão, o que influencia o acúmulo de lixo, presença de cachorros e cavalos, e alagamentos (fig. 86 e 87).
183 Figura 86 –Lateral do Galpão com presença de sucata e lixos.
Fonte: a autora, 2017.
Figura 87 –Fundo do galpão e solo alagado no entorno.
Fonte: Kaio Espínola, 2017.
184 Isso vem perdurando desde a entrega das casas aos proprietários, e por mais que a população já tenha ido em busca do poder público para que fossem tomadas as devidas providencias, nada foi feito e nem a intenção de revitalização foi demonstrada. Dentre os desejos dos moradores encontrei frequentemente:
“Seria bom uma escola de cursos profissionalizantes.’’
‘’Eu queria que fosse uma escola de ensino fundamental pras crianças estudarem perto.’’
‘’Eu acho que seria melhor se fosse uma Unidade de Saúde, porque o posto que atende a gente é muito longe e muitas vezes nem somos atendidos.’’
‘’Uma escola com aulas de artes, danças e alfabetização para crianças e adultos.’’
‘’Uma escola com cursos e atividades para idosos.’’
‘’Acho que seria bacana um espaço multiuso. Tipo um salão pra gente usar pra reuniões, cursos e pras missas.’’
‘’Eu queria que fosse era uma casa de forró pra gente dançar. Eu sou cantora sabia?‘’
‘’Poderia ser uma creche, muitas mães não encontram vagas na outra que tem no bairro. Aqui no residencial muitas precisam.’’
‘’Uma sede da FUNDAT.’’
‘’Seria bom se fosse uma quadra coberta pra gente jogar bola.’’
Após escutar alguns dos desejos dos moradores para o destino do galpão, estava conversando com Sr. Gilson sobre a história do residencial, quando ele começou a me relatar sobre a escolha do nome e a problemática gerada a partir dessa nomeação: ‘’ Veja, o nome do Residencial Vitória da Resistência surgiu de acordo com a necessidade de representar o que nós enfrentamos aqui ao longo dos 14 anos que ficamos aqui dentro. A gente enfrentou muito mosquito, sol, chuva, terreno alagado, vento...muito vento e despejos. Aí quando foi pra o prefeito Edvaldo fazer a sessão da
185 área, dar o decreto de obras, pra construção das obras, ou seja, dar ordem de serviço melhor dizendo...ele perguntou se a gente já tinha o nome pra o conjunto né? Dias antes de dar a resposta, deitado no travesseiro eu pensei...pensei... e cheguei à conclusão que o melhor nome aqui pro nosso conjunto seria Vitória da Resistência, já que aqui a gente tinha enfrentado muita coisa da natureza. Mosquito demais porque aqui era tudo mato, que é beira de rio e o acumulo de mosquito né? ‘’muruim e muriçoca’’ é muito. Tudo isso nós enfrentamos aqui. Daí então surgiu o nome e eu reuni o pessoal e falei do nome do conjunto, e todos aprovaram. E foi feita a sessão das terras e nomeado o residencial. Coincidentemente quando foi no final da gestão de João Alves, quando ia ser feita a entrega das casas, ele mais a secretária Selma Mesquita queriam fazer a mudança do nome, segundo eles o nome daqui seria em homenagem a mãe de Albano Franco, só que na ocasião eles não imaginavam que o nome do Residencial Vitória da Resistência tinha sido aprovado através de um decreto de lei da câmara de vereadores e me chamaram lá, já que essa decisão de mudar o nome já tinha repercutido né? Porque era uma história nossa e a gente sentia que ele queria dar um fim naquele momento e nós não aceitamos, por conta disso denunciamos na imprensa. Aí nos chamaram lá né, pra explicar... só que a gente entendeu que a mãe de Albano, ela pode ter feito um grande trabalho social em algum lugar fora. Só que aqui ela nem sabia da existência, então não tinha porque mudar o nome daqui né, que foi criado por nós e botar o nome dela como homenagem sendo que nem ela nem o próprio Albano fizeram algo pelas famílias que aqui viveram ao longo de 14 anos. Nós fomos contra! Aí em retaliação acredito que por conta disso, por não ter como ter homenageado a mãe de Albano Franco, o nome Residencial Vitória da Resistência também não foi colocado na placa de inauguração e nem em nenhum lugar do conjunto. Na placa você vê que tem todo o nome do secretariado e da prefeitura mas não tem o nome do conjunto aqui nessa placa (fig. X). Então quem quiser chegar aqui através do nome do conjunto pela placa, não vai conseguir, apesar de ter uma lei que exige que o nome esteja exibido na placa.’’
186 Figura 88 –Placa fixada no espaço público do residencial.
Fonte: a autora, 2017
Ao ouvir esse relato de Sr. Gilson, minha indignação se fez presente e decidi juntamente com um amigo que faz artes em graffiti (Alef Freire) realizar uma intervenção no residencial que trouxesse o nome-indentidade do local. Assim foi idealizada a oficina de graffiti que veio a ser realizada no dia 24 de setembro, das 9h às 17h. Quando pensamos na possibilidade de realização de um painel com o nome do residencial, informamos a Sr. Gilson que prontamente apoiou e ideia e autorizou que poderíamos fazer na parede do galpão. Ele disse: ‘’Podem fazer sem problemas, a intenção da gente é aproveitar a estrutura que já tem lá. Com a pintura só vai agregar e eu não deixo ninguém apagar. Vai ficar aí até depois de ser revitalizado.’’ Daí então com o intuito de envolver os moradores na construção do painel, passei a entregar panfletos com informações da atividade. Essa divulgação foi realizada durante os 3 dias que estive realizando o mapeamento juntamente aos
187 moradores do conjunto (fig. 89). Poucos demonstraram interesse, mas realizei o convite ao máximo de pessoas que pude encontrar nas ruas e sempre pedia para que eles comunicassem aos vizinhos e que aparecessem no dia. Figura 89 –Panfletos distribuídos na semana anterior à intervenção.
Elaboração: Alef Freire Fonte: a autora, 2017.
Enxerguei nessa intervenção a oportunidade de incentivar a revitalização de um local degradado do espaço público, disseminar a arte para população local, reunir o máximo de pessoas possível no mesmo local para realização do mapeamento, e deixar algo em troca de todo conhecimento e aprendizado que a comunidade me proporcionou. Durante uma semana eu e Alef postamos nas nossas redes sociais o panfleto acima exposto e um texto explicando sobre a ação que iríamos fazer no galpão do residencial. Com o objetivo de arrecadar doações em dinheiro, material ou apoio para
188 o dia do evento. Elaborei uma lista com os itens que precisaríamos conseguir para o dia da oficina:
Água
Copos
Tenda
Bandeirinhas (para enfeitar)
Isopor e gelo
Lanches
Fotógrafo
Tinta em Spray
Luvas
Desta lista de materiais conseguimos por meio de amigos e empresas que visualizaram nossas publicações no facebook e instagram:
10 hambúrgueres - A Fábrica Gourmet;
01 bolo e 12 sanduiches - Nativo Lanches;
02 colaborações es em dinheiro – R$ 150,00
Fotógrafo - Kaio Espínola;
05 apoios para o dia (incluindo o artista grafiteiro DonKob);
50 picolés - Sorveteria Souza.
Além desse meio, também enviei ofícios em busca de patrocínios para algumas empresas e para EMSURB32 afim de conseguir a montagem da tenda ao lado do galpão no dia da oficina (fig. 90 e 91).
32
Empresa Municipal de Serviços Urbanos.
189 Figura 90 – Ofício destinado ao setor público.
Fonte: a autora, 2017
190 Figura 91 â&#x20AC;&#x201C; OfĂcio destinado ao setor privado.
Fonte: a autora, 2017
191 Foram enviados ofícios em busca de patrocínio para: Assaí Atacadista (solicitando águas); Grafpress (solicitando impressões); Casa das Tintas, Pisolar e Ferreira Costa (solicitando sprays e rolos de tinta). O que conseguimos a partir desses ofícios foram (fig. 92):
Montagem e desmontagem de 01 tenda cedida pela EMSURB;
100 garrafas d’água e 100 sucos de caixinha do supermercado Assaí Atacadista;
50 impressões A4 da gráfica Grafpress;
20% de desconto na compra das tintas em Spray na Casa das Tintas.
Figura 92 –Alguns materiais adquiridos a partir da colaboração de apoiadores.
Fonte: Kaio Espínola / a autora, 2017
No dia da oficina o dia amanheceu nublado e havia ameaça de chuva, fiquei apreensiva com medo da chuva estragar os planos para atividade, mas mesmo assim fomos acreditando que faríamos o possível para que tudo acontecesse conforme o planejado. Ao chegarmos no residencial, organizamos os materiais embaixo da tenda que já estava armada no local. Pendurei as bandeirinhas feitas com papéis onde tinha impressa a foto de satélite do residencial, arrumei os lanches e bebidas (que foram distribuídos para os participantes da oficina ao longo do dia) e organizei as cadeiras cedidas por Sr. Gilson (ele as tem desde a época da ocupação, e atualmente as utiliza nos dias de missa) (fig. 94 e 95).
192 Figura 94 – Fotografia do local antes da oficina.
Fonte: a autora, 2017
Figura 95 – Fotografia do local durante a oficina.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
Infelizmente choveu logo no início das atividades e as bandeirinhas que eu havia pendurando na tenda - com o intuito de pedir para os moradores que se aproximassem escrevessem atrás de cada bandeira palavras que representassem a vivência deles no local – molharam e acabaram rasgando. Daí eu tive que retirar tudo e abandonar essa ideia (fig. 96).
193 Figura 96 –Bandeirinhas molhadas que foram retiradas.
Fonte: Natalli Sales, 2017
Apesar de atrairmos muitos olhares de adultos curiosos, uma maior aproximação foi iniciada por um grupo de três crianças que brincavam no espaço próximo ao local. Fui até eles e os convidei para participar da intervenção que iria ocorrer ali. Os três se empolgaram e disseram que iriam sim, mas que teriam que ir avisar a mãe deles, então eu me ofereci para acompanha-los e informar aos responsáveis sobre a participação deles na atividade. Durante o caminho até suas casas eu perguntei onde estariam as outras crianças do residencial e se eles topariam sair comigo caminhando pelas ruas para chamar mais crianças para participar da oficina. Eles prontamente aceitaram e disseram que iram me levar na casa dos amigos deles. Assim fomos caminhando por todas as ruas do residencial, e nas casas onde eles me informavam que tinham crianças, a gente batia na porta e fazia o convite aos pequenos. Os que se empolgavam com a ideia e demonstravam interesse em ir, eu pedia para chamar algum dos seus responsáveis para que eu pudesse explicar sobre a atividade e pedir a permissão para sua participação. Desta forma depois de caminhar por aproximadamente 40 minutos acompanhada das crianças, percorri o lado oeste e leste e consegui reunir inicialmente 12 crianças.
194 Desde que fiz contato com o primeiro grupo de crianças já fui conversando com eles sobre como era a vivência no conjunto, e eles começaram a falar sem parar sobre tudo que vinha na cabeça deles. Eu adorei e percebi que tinha um grande trunfo em mãos, seus relatos eram cheios de detalhes e todos faziam questão de falar um pouquinho. Ao chegarmos ao lado do galpão iniciamos as atividades e os artistas grafiteiros (Alef e DonKob) conversaram com as crianças e mostraram como utilizar tintas em spray. Os artistas começaram a realizar a pintura do painel que teria o nome ‘’Residencial Vitória da Resistência’’ e as crianças ficaram ali sentadas ao redor, observando, perguntando e participando da intervenção (fig. 97). Outros amigos meus chegaram no local para me ajudar com a atividade e assim nos dividimos entre fotógrafos e companhia para as crianças (fig. 98). Ao longo do dia além de conversar com os pequenos e com os moradores que se aproximavam do local, eu também realizei alguns mapeamentos junto a eles (fig. 99).
Figura 97 – Momento da Intervenção.
Fonte: a autora, 2017
195 Figura 98 – Crianças permaneceram brincando no entorno do local durante o dia inteiro.
Fonte: a autora, 2017 Figura 99 – Momento do mapeamento com as crianças.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
196 Figura 100 – Morador do conjunto observando artista.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
O dia seguiu tranquilo, frequentemente algum transeunte parava no local para observar a intervenção e conversar conosco. Percebi que ao realizar o mapeamento com as crianças pude ter uma visão mais clara das necessidades do residencial, pois eles me apontavam exatamente o local e quantas vezes algum fato ocorreu, como por exemplo os locais onde acontecia assaltos com frequência, onde abandonavam cachorros, os locais em que eles soltavam pipa todos os dias e em qual trecho da avenida aconteciam acidentes corriqueiramente (fig. 101).
197 Figura 101 – Crianças marcando pontos na imagem de satélite.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
198 As crianças ficaram ao nosso lado o tempo inteiro, mesmo depois de terem ido almoçar, logo voltaram e ficaram brincando e transitando ao nosso redor. Me senti confortável a todo momento e também agradeci pelos amigos apoiadores que passaram o dia comigo. Eu certamente não aguentaria com tantas crianças, pois elas careciam de muita atenção. Essa necessidade de atenção foi notada ao longo do dia, todas elas nos receberam muito bem, nos chamavam de ‘’tia e tio’’, distribuíam sorrisos, brilhavam seus olhos e nos davam abraços. Conheci suas práticas e seus anseios. Também percebi inúmeras necessidades, mas conclui que eles eram muito inteligentes e conscientes da condição de vida que tinham. Segue abaixo o relato de Natalli Sales33 (apoio voluntário), sobre sua percepção e vivência durante todo dia de intervenção. Ela esteve comigo o dia inteiro trabalhando diretamente com as crianças:
‘’ Vitória da Resistência, Adorei minha experiência na comunidade, principalmente pelas crianças que nos receberam de braços abertos. Conversei com algumas em particular, sobre quais eram os seus sonhos, sobre o que achavam que poderia melhorar em sua comunidade e fiquei encantada com as respostas, uma delas tem o sonho de ser bailarina e ajudar sua mãe, a outra quer ser professora e também ajudar em casa, já um dos garotos quer ser jogador de futebol, outro quer ser o primeiro garoto a salvar o mundo construindo casas para todos! Crianças muito inteligentes, porém, passam por várias dificuldades. Eles reclamaram que estão sem aula, as praças não possuem muitos brinquedos, o campo de futebol fica alagado quando chove e o que é mais preocupante é a avenida que não possui sinalização e sempre acontece acidente, onde cachorros são atropelados, as crianças passam correndo e algumas também já foram atropeladas por motos. Precisa de um semáforo urgente! Além disso, falaram sobre a violência lá e como isso afeta também o deslocamento dos moradores, já que os motoristas dos ônibus, muitas vezes, não passam por lá, por conta da violência. Então os jovens passam mais tempo nas ruas
33
22 anos, estudante de fisioterapia e massoterapeuta.
199 e nas praças porque não tem nada para fazer. Um das soluções para esses problemas, seria um galpão abandonado que está no centro da praça principal servir como local de cursos, artes, dança para os adultos, jovens e crianças.’’
O Alef Freire34 esteve comigo durantes outros dias de visita ao residencial (ele me acompanhou durante as entrevistas para filmar) e foi meu parceiro na organização e realização da intervenção urbana. Sobre sua experiência ele relatou que:
‘’ Entrar em contato com a vida de outras pessoas é sempre uma experiência renovadora. Na comunidade do Vitória da Resistência pude perceber o modo de viver das pessoas que moram ali, uma vida simples, de idas e vindas em diferentes trajetos ao longo do dia no residencial. Por ser composto por casas, uma ao lado das outras, há um contato de vizinhança muito saudável, as crianças ainda brincam nos espaços que são oferecidos a elas, o futebol é a atividade que mais pude perceber, as pipas mostram uma atividade no céu desse local de pouca atenção a quem passa na avenida de fluxo intensos, Alguns mobiliários urbanos como o parquinho, o campo, e faixas de grama dão suporte para a vivência dessas pessoas. A estrutura do local poderia ser melhor, a gente sabe que sempre pode haver formas de melhorar a vida da população através de uma boa disposição de planejamento. Vi que o pouco que tem é bem utilizado, há carência em diversos pontos, é notório nesse lado do mapa que o sistema não prioriza a boa condição de vida, mas a vida continua a acontecer e essa é a beleza da existência, a adaptação, o sorriso no rosto em meio a situações que para muitos é subumana... A valorização da vida simples, que se resume para aquelas famílias em muito trabalho, em ter onde morar, registrar sua habitação e ter o seu canto onde possam chamar de seu. Nós, através do trabalho de registrar imagens dessa vivência, nos envolvemos e deixamos a liberdade de atuação nesse local ser libertada, realizamos em paralelo a essas filmagens uma oficina de graffiti e a construção de um painel com o nome do
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23 anos, artista visual, tatuador e cursou arquitetura e urbanismo até o 7° período.
200 residencial, o qual o local tem necessidade de ter esse nome estampado. As lutas foram grandiosas para cada casa ser construída e ser entregue e essas famílias. A ideia da oficina crescia, e junto com ela novas pessoas envolvidas, apoiadores se juntaram para poder realizar um trabalho com os jovens e crianças daquele local, e foi assim que se deu, no dia da Ação, foi fantástico! As crianças apareceram, e realizamos um grande dia de mobilização tanto na arte quanto no aprendizado, jovens de outra cidade foram marcar presença na oficina, me senti realizado em poder estar fazendo parte de um dia que sei que estará sempre lembrado por quem participou. A vida se torna valiosa quando consigo agregar entre a arte e a vida novas vivências, aprendizado que podem dar um novo curso na vida daquelas pessoas e na nossa, sensibilidade em compreender a arte com outros olhos, o Galpão do residencial foi palco de uma atividade única nesse dia. Como artista e estudante de arquitetura, esse envolvimento só tem a engrandecer a concepção de cidade atual em que estamos inseridos, entender as lutas de outras pessoas que por vezes somos parte indireta delas e muitas pessoas julgam de forma equivocada, por não conhecer, por não vivenciar o ponto de vista do outro cidadão. E mais um dia chega, para todos, e dela levamos o que aqui deixamos, resolvemos deixar esse sentimento de expansão da consciência através desse movimento artístico, a minha realidade difere da deles, em todos os aspectos, eu tenho crença que a sua também passa longe, mas ainda assim a vida se parece em todos os locais desse universo, deixo aqui esse relato, onde o Vitória da Resistência foi e está sendo nosso ponto de Ação nesse período de tempo e o que pudemos aprender com tudo isso estará aplicado no dia a dia na cidade, que só cresce e a gente cresce junto, com respeito e responsabilidade com todas as formas de vida que a compõe.’’
Como reflexão advinda desse método de aproximação da comunidade cheguei à conclusão que por mais que eu tenha tido uma apreensão bem ampla de todo residencial, ainda assim eu não conheço suficientemente a comunidade e seu espaço habitado. A experiência foi positiva, e acredito ter absorvido o máximo de informações que pude e que chegaram até mim. Por meio da colaboração essa intervenção alcançou e envolveu o setor público, privado, acadêmico e pessoas de
201 várias idades; que se reunirão em benefício de uma ação coletiva que promoveu a revitalização de um espaço degradado, a educação sobre a utilização dos espaços públicos e a disseminação da arte. Alguns registros do dia da intervenção:
Figura 102 – Crianças demonstrando deus desenhos.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
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Figura 103 – Don Kob e crianças do residencial.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
Figura 104 – Moradores observando intervenção artística.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
203 Figura 105 – Crianças praticando o posicionamento da lata de tinta spray.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
Figura 106 – Crianças do residencial bebendo o suco doado pelo supermercado Assaí atacadista.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
204 Figura 107 – Crianças do Vitória da Resistência.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
Figura 108 – Apoiadores, crianças e resultado da intervenção na parede ao fundo.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
205 Figura 109 – Painel elaborado na parede do galpão.
Fonte: Kaio Espínola, 2017
Enxergando as relações, ligações e cooperação que se deram na rede que possibilitou a promoção da intervenção urbana; podemos visualizar tal ação como um sistema rizomático, que partiu de um grupo (uma parte da raiz) e se espalhou horizontalmente por entre vários outros grupos e setores do sistema da cidade:
‘’Intervenção molecular, Uma micro-resistência a iniciar, Incomum eticamente, esteticamente e politicamente falando, Quebra o padrão e vai se infiltrando, Faz e desfaz linhas da trama, Mesmo que sem fama, Multiplica alianças, Forma conexões, Cria e instiga novas ações.‘’
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ANEXOS Entrevista 01
Temática: Políticas Públicas de Aracaju
1) Ao pensarmos no processo de desenvolvimento e apropriação do espaço urbano em Aracaju, podemos perceber que o Estado sempre foi o principal influenciador. Podemos observar isso desde o início com a transferência da capital para Aracaju, a construção do ‘’quadrado de Pirro’’ e a localização dos prédios públicos, residências e etc. Até que percebemos a formação de uma Aracaju segregada. Você acredita que algo mudou desde então e que hoje o governo se preocupa mais a segregação? 2) O que Plano Diretor que temos em vigência está muito defasado, o que está acarretando sérios problemas na ocupação da malha urbana de Aracaju. Como vemos na Zona de Expansão e no Centro da cidade, por exemplo. Qual a previsão de instituição de um novo plano? 3) Estarão inclusas medidas que possam impedir a promoção de vazios urbanos e estoque de terras? 4) Qual sua opinião quanto a fiscalização atual sobre o cumprimento das leis do PDDU? 5) Numa entrevista realizada pela professora Lygia Carvalho à Lúcia Falcon, em 2013, a entrevistada afirmou que tinham dificuldades dificuldades antes da elaboração do mapa geoambiental de Aracaju e da base cartográfica denominada de trabalho de geoprocessamento e que depois disso ficou mais fácil compreender e visualizar o território. Isso aconteceu em 2003 e estamos em 2017. Há 14 anos atrás já se fazia uma revisão do PDDU, mas até hoje não foi atualizado. Apesar dos avanços tecnológicos que já alcançamos, qual a maior dificuldade na elaboração do plano agora?
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O CONDURB ainda está ativo? Qual seu papel na elaboração do Plano e no
desenvolvimento urbano de Aracaju?
Entrevista 02
Temática: O cadastramento e atendimento aos assentamentos precários
1) Qual a maior dificuldade encontrada na realização dos cadastros? Quais os critérios para ser beneficiado pelo auxílio moradia? 2)
Por quanto tempo o beneficiário recebe essa ajuda financeira?
3)Qual o valor do auxílio moradia? 4)
Quais s programas do governo que produzem a construção de habitação
social atualmente em Aracaju? 5)Após o cadastro como se dá o processo de construção do Conjunto Habitacional e como é feita a entrega e escolha das pessoas? 6)
Vocês que lidam diretamente com o pessoal dos Movimentos Sociais,
como é a relação entre vocês? 7)Existe algum cadastro com informações de cada Movimento ou líderes comunitários que fazem a ponto entre o poder público (vocês) e a comunidade? 8)
Qual a maior dificuldade em lidar com os movimentos sociais?