OĂšltimodia
CENA 1 CENÁRIO: Em primeiro plano, simbolizando uma janela, está uma moldura suspensa coberta por um pano preto. Dois baldes de areia da praia estão tombados com um sapato masculino e um feminino em cada um. No meio, um montinho de areia com uma ampulheta. Em frente aos baldes estão Ana e “Ele”. CENA 1 ANA – É pouco! ELE – É o suficiente...É o que eu posso dar. ANA – Que martírio. ELE – Eu disse que eu ia acontecer ANA – Não pensei que fosse tão rápido. Ainda sinto o cheiro dos encontros repentino. Das noites que não dormi. Dos móveis onde risquei teu nome. Da vida que preparei pra te acolher. ELE – São só papéis pregados na parede da memória. Arranque e rasgue-os. Não deposite sua vida em mim, Ana. Você é jovem, bonita, conhece de livros, viagens. Em vivo num lugar onde o sol nasce poucas vezes. ANA – Abdico de tudo pra viver nesse mundo, só contigo. Me aceite! Juro que farei o sol nascer mais vezes. ELE – Estranho, você reclama um trono que ninguém quis. Uma coroa cinza para o rei e um bobo sem graça. Desculpe, não há lugar pra mais ninguém nesse reino. ANA – Trouxe um presente pra você. (Mostra uma nova ampulheta).
ELE – Você já me deu uma. (Ele aponta para a ampulheta no meio da cena) ANA – Essa já está quase no fim. ELE – Agora você entendeu. ANA – Isso não é certo. Exijo de volta o tempo que roubou de mim. (Ele vira a ampulheta que está no centro, recomeçando a contagem) ANA – Não quero de volta! Quero lhe dar mais, por favor, aceite. (Ana vira a ampulheta que ela trouxe). ELE – Você ainda tem o resto da vida, Ana. (Ele desvira a ampulheta) ANA – O resto de minha vida é só o que sobrou dela. O que eu vou fazer com todo o tempo do mundo? ELE – O último dia, Ana. O último. (Ana sai. Foco na ampulheta)
CENA 2 (Ana volta com uma roupa preta) ELE - Preto! Eu nunca a vi de preto. ANA – Nunca foi preciso....Hoje vim pro teu enterro. ELE – Eu não vou morrer, Ana. Ana – Vai sim. Morte natural, inexplicável, direi a todos. Vão telefonar pra minha casa avisando. Vou Largar o telefone aflita, sem acreditar, correr pro banheiro e tomar uma caixa de calmantes. Dormirei dois dias seguidos. Sentirão minha falta. Vão derrubar a porta do apartamento, me verão dormindo e me julgaram morta. Vou enganar a todos com uma respiração fraca, sem vida. Acordarei, todos vão perguntar o que houve e eu direi que o homem que eu amava, morreu. Ficarão com pena e me darão pêsames. Vestirei luto por muito tempo em sua memória. ELE – Bobagem, Ana. ANA – Tem razão, não sentirão minha falta. Ficarei meses prostrada na cama até o porteiro achar estranho e chamar a polícia.
T nã m Ana:
Tem raz達o, 達o sentir達o minha falta.
CENA 3 ELE – Hoje roubei uma coisa. ANA – O quê? ELE – Uma flor. Roubei do jardim da viúva minha vizinha. ANA – Rosa? ELE – Cravo! ANA – Pra mim? ELE – (Silêncio) A velha estava na porta procurando os ares da manhã. Parece plantada como uma de suas flores, ostentando o jardim como um troféu de caça. Não se deu o trabalho sequer de me dar bom dia. Me olhou com a cara de nojo de sempre. Só que dessa vez, eu ataquei. (Sorrindo) - Bom dia! Mas a velha é astuta, deu as costas pra mim. Aproveitei a distração e arranquei-lhe o cravo mais bonito, o que ela sentiria mais falta. ANA – E ela percebeu? ELE – Na mesma hora. Virou-se pressentindo, como se o caule fosse artéria e a seiva sangue. ANA – Onde está o cravo? ELE – Pus na boca e mastiguei na frente dela. A viúva se contorceu. Depois cuspi os restos mortais no jardim tentando espalhar o veneno pra outras. Em vão. Virará adubo.
H u
Ele:
Hoje roubei uma coisa. O quĂŞ? Ana:
(silêncio) CENA 4 ANA – Estou grávida. (Silêncio) E então? ELE – E então o quê? ANA – Não vai dizer nada? ELE – É mentira. ANA – Eu não minto. ELE – Conheço o cheiro das grávidas. Você não está grávida, Ana. ANA - Mas eu estava. (Silêncio) ELE – E então? ANA – E então o quê? ELE – O que aconteceu? ANA – Nosso filho morreu. Eu matei! (Silêncio) Não te comove?
ELE - Você agiu bem, Ana. Estou orgulhoso. ANA - Você é louco. ELE – (Irônico) Minha lucidez é meu carma, Ana. ANA - Você vai morrer assim. ELE - Pior que morrer assim é viver assim. ANA - A gente escolhe a vida que quer, minha mãe sempre disse isso. Se você quiser uma vida ruim, você vai ter. Eu escolhi a minha: você. Mas escolhi mal. ELE - Por pouco você não fez uma boa escolha. Construí um muro ao redor do meu coração. Todos os dias coloquei um tijolo novo até que a barreira se tornou intransponível. Você quase conseguiu. ANA – Um filho não te deixaria feliz? ELE – Da felicidade saímos ilesos. ANA – Nosso filho morreu e você não se importa. ELE – Ele não morreu...Você o matou. ANA – Não precisa me torturar. ELE – Ele já tinha um nome. ANA – Já. ELE – Qual era? ANA – Tem importância? ELE – (Silêncio) Não. ANA – Repeti o nome várias vezes durante dias, como uma moeda que se joga num poço seco e se espera ela tocar o chão. Mas a moeda nunca chegou lá.
CENA 5 ANA - Queria saber mais antes de ir. ELE - O quê? ANA - Você. ELE - O quê? ANA - Não sei...Criança! ELE - Só tenho vagas lembranças. Sabe quando você não se fixa num ponto e tudo parece uma coisa só? Além do mais é só mais uma história. (Silêncio enorme) A criança que fui chora à beira de um lago. Águas cristalinas e calmas que o vento não toca, não se pode ver a outra margem e só os meus olhos conseguem enxergar. Não há reflexo para que o garoto não veja seu rosto triste. Céu claro, livre do vermelho crepuscular. Deixei-o lá pra vir ser quem sou. ANA - Coitado do garoto. Ficou sozinho. ELE - O garoto não pode se virar senão verá o que se tornou e suas lágrimas serão mais fortes. Apenas aprecie o lago e o céu claro.
ANA - Minha mãe dizia que as vezes viver é doloroso, outras vezes é lindo. As vezes é as duas. ELE - Hoje, quando os espelhos me acusam, tenho vontade de buscar o menino à beira do lago. Mas o garoto tem vocação pra isso. Sempre teve. Ele não quer ser resgatado. ANA - Quando pequena imaginava poder ver através das paredes, dos móveis, como se fossem transparentes. Engraçado, quase sempre eu adivinhava o que estava por trás. O que você faria se pudesse enxergar o que está por trás? ELE - Aprenderia a fechar os olhos. ANA – (Resignada) Foi isso que eu fiz. Agora tudo é opaco.
CENA 6 ANA - Fiz café pra você. Eu sei que você não aprova meu café, mas minha mãe me ensinou a fazer do jeito que você gosta, forte e sem açúcar. Experimenta. (Dá o café pra ele que começa a beber). Eu coloquei veneno no café.
(Ele para por um instante e depois volta a beber como se não temesse o perigo ou não acreditasse nela). O veneno reage com a luz. Basta eu abrir a janela e você morre. (Ela leva a mão até a ponta do pano que cobre a janela como se fosse puxá-lo). ELE – Então abra! ANA – (Desesperada) Agora você não pode mais sair de casa. Terei que vir todos os dias trazer comida e água. Você depende de mim agora. O mundo lá fora acabou pra você. Tudo como eu sempre sonhei, só eu você. ELE - Parabéns, Ana. Muito boa idéia. De novo, você QUASE conseguiu. Mas esqueceu que eu mesmo posso abrir a janela. (Ele leva a mão até a ponta do pano que cobre a janela ameaçando abri-la). ANA - Você não vai fazer isso! (Ela o empurra para longe) ELE - Por que não? Não aguentaria? ANA - (Envergonhada) Não. ELE - E por que eu deveria ter pena de você? ANA - (Sussurrando) Desculpe. ELE - Não ouvi, Ana.
ANA - Desculpe! Eu errei. Estava desesperada. ELE – (Ironia) Desculpas! Percebe a diferença entre eu e você, Ana? Um dia eu quis conquistar o mundo. Você herdará a Terra. ANA - E agora? ELE - Tudo como você sempre sonhou. Apenas eu e você. Eu dependendo de você pra me manter vivo. Enganou-se, Ana. Você agora é minha escrava. ANA - Não me importo. Vamos ser felizes assim. Vamos ser enterrados juntos, de mãos dadas. ELE - É fácil dar as mãos, difícil é reter o calor delas. ANA - Vamos ser enterrados juntos, de mãos dadas!
Eu coloquei veneno Ana:
CENA 7 ELE – Resta pouco. ANA – (Ela se desespera e corre para junto dele) Não! Existe ainda tanta coisa que não contei, dias que não vivi. (Eles se beijam, o último beijo) (Silêncio) Pode me dar um copo d’água? ELE – Tem um embaixo da cama. ANA – Esse está aí desde ontem. Gostaria de água, mas água nova. (Ele sai. Ana pega os sapatos, a ampulheta e foge) (Ele volta com o copo, mas ao invés de água, está cheio de areia. Ele vai até o montinho onde ficava a ampulheta no centro da cena e a despeja). ELE – Você ainda tinha alguns minutos, Ana. (Ele vai até a janela e a abri)
FIM
VocĂŞ ainda tinha alguns minutos, Ana. Ele:
FICHA TÉCNICA Grupo: Cabauêba Direção: Lucas Sancho Texto: Davi Sabry Atores: Daniella de Lavôr e Davi Sabry