Conto - Desfeito um sonho (drama juvenil) 1 – As manhãs costumam ser doces. Meus olhos se abrem em grande esperança, o sol pela janela enche meu quarto, um brilho que me obriga a abrir os olhos pesados, do sono tranqüilo que tive esta noite. Não resisto o convite, não posso perder nem mais um segundo, num pulo saio da minha cama, sei que é hora de viver. Meu quarto é pequeno, mas cabe o que preciso o básico da minha vida. Abro a janela e de imediato precipito minha cabeça a fora, um vento suave de manhã com cheirinho de flores doces, meu rosto se ilumina do calor amigo que me acaricia com seus delicados dedos amarelos e quentinhos, fecho os olhos para senti-lo melhor, dou um delongado suspiro, que bom... Não resisto a um sorriso faceiro que me vem de espontâneo, penso: – “Como é bom estar vivo”. Por um instante, penso que a vida é só isso, sentir o bom e agradável momento, mas me lembro, com o dia gostoso, vêm às responsabilidades danosas. Fecho a janela, pois hoje em dia, sair de casa e deixa-la aberta é convite para os ladrões, nesse instante volto à realidade e vejo que o mundo não é doce como o cheiro da manhã, o qual acabei de sentir e já se perdeu pelo vento. Ando em direção ao meu dono, ao meu carrasco, acredito que este é o patrão de todos os homens, o relógio, as horas, o tempo. Somos seus escravos, e nada podemos fazer contra. O seguimos para tudo, e ele passa tão depressa, que não prestamos atenção ao que a nossa volta muda, quando nos damos conta, já se foi. Se o tempo é amigo ou inimigo, eu não sei dizer ao certo, mas sei que causa medo e angustia grande parte das vezes, pelo menos, é o que eu sinto.
Horas, sim já estou atrasado, como todos os dias. Conhece alguém lerdo? Se você conhece, sabe como sou; devagar, paciente e claro, atrasado. Às vezes esqueço que o tempo manda em mim também. Sei que não me resta minutos suficientes; por isso, nem banho posso tomar, apenas lavo meu rosto, escovo meus dentes, troco de roupa, café? Hoje não vai dar, na verdade, nunca dá. Meu atraso é tamanho, que só posso tomar café na padaria ao lado do trabalho. Arrumado? Nem tanto. Bagunçado? Isso também não. Sou aquele conhecido arrumadinho, o simples me agrada mais. Pronto! Já me basta de atrasos. Agora tenho de sair. Vou enfrentar a selva. Não, não moro no meio do mato. Eu moro na cidade. Digo selva, porque é isso que a cidade é, uma selva de pedras, tijolos e asfalto. Caminho até o ponto de ônibus, digo caminho mesmo estando atrasado, porque não sei correr, isso não é pra mim não. Ônibus, transporte? Sinceramente, para mim, é uma carroça puxada por cavalos mancos, me sinto como se estivesse esmagado, sufocado no aperto do “calor humano” ou empurrões desumanos. E o trânsito então, miserável! Todos os dias, se não me bastasse o atraso natural de minha lerdeza, ainda suporto o trânsito. O tempo passa, como sempre. Chega meu ponto, luto no corredor para alcançar a porta e “ufa”, finalmente consigo sair. Tem dias que saio quase cambaleante, pois o sufoco é demais. Atravesso a grande avenida e chego à padaria, entro e logo vejo que o relógio não conseguiu me matar como sempre planeja, cheguei faltando quinze minutos, que maravilha! Para quem consegue sair atraso e chegar quinze minutos antes de começar o serviço, isso é quase um milagre espantoso! Aproximo-me do balcão e peço um copo de café e pão com
manteiga, o mesmo de todos os dias. Para diferenciar, algumas vezes, compro um sonho ou outros dos doces que enchem às vistas, mas são caros, por isso é apenas de vez por outra. Hoje, comprei um sonho, vou comer depois do almoço. Depois de engolir tudo com certa pressa, mesmo quem é lento pode se apressar às vezes, saio em destino da empresa que trabalho. Caminho na rua com passos apressados, mas não resisto, tenho que admirar as lojas, as poucas arvores que ali existem. De manhã é raridade ver um sorriso no rosto de alguém, mas hoje ao ver uma criança de mãos dadas com sua mãe, sorrindo como se no mundo não houvesse problemas e tudo fosse um arco-íris, eu tive que sorrir também. – “Quem me dera voltar aos meus cinco anos!”.
2 – Rápida viajem ao passado. Não posso deixar de lembrar, como se agora estivesse a acontecer. Na minha casa simples, eu pequenino, acordava sem relógio para me mandar, apenas pela luz que me falava gentilmente: – “Marcos, Acorda menino. Vem cá brincar! Hoje você pode ser bombeiro, policial, médico ou um explorador no quintal de casa.” Minha alma ria-se toda de saudade dessas lembranças saborosas. Por falar em saborosas, não era só a luz gentil que me acordava, tinha algo muito mais saboroso... ah, eu tava me esquecendo. O cheirinho de cuscuz com manteiga, esse vinha me buscar na cama. Eu ia devagar até a cozinha, descalço como a maioria das crianças despreocupadas.
Quando chegava a cozinha, me encolhinha num cantinho, e ficava olhando, bem quietinho, minha mãe de costas, na frente do fogão, fervendo o leite que acompanhava o cuscuz. A mesa já tinha os pratinhos, copos, tudo me esperava para forrar o estomago. Era como se me pudessem gritar: – “Bom dia menino levado!” – Minha boca se enchia de água. Eu continuava lá, quietinho só olhando, ouvindo o ferver do leite, o estalar dos ovos. Não sei como, mas mãe deve ter um radar. Mesmo com meu silencio, meu respirar que sempre foi calmo, minha mãe sentia minha presença, logo se virava num sorriso puxadinho, que fazia cavinhas no canto da boca. – Mocinho... por quê esta escondido? Tem bicho na cozinha? – Como ela era engraçada, cheia de vida! Ai, minha mãe querida! Você é o que mais sinto falta nessa vida. Eu corria num abraço apertado, ela parava tudo para que eu pudesse sentir o bater de seu coração. Neste momento eu podia sentir seus braços a envolver-me por completo, que calma agradável, sensação de proteção total contra tudo de mal que este mundo pudesse oferecer.
3 – Retorno ao meu presente. Acordo do meu momento de viajem ao passado, e me vejo no presente, em frente à porta da empresa que trabalho. Aperto o interfone e ouço a voz desanimada de Alice. – Quem é? – Em seguida respondo: – Sou eu, o Marcos. – Então a porta se abre e subo as escadas até a primeira sala de recepção. Alice me mede com olhar de pouca graça, com óculos que quase escorregam pelo seu fino nariz, dá aquele bom dia mecânico e seco, volta seu olhar para o computador. Sei que ninguém nunca agrada a todos, por que eu faria caso disso? Não. Vou trabalhar que ganho mais.
Desço um lance de escadas mais a frente e chego ao galpão de produção, esta é uma empresa metalúrgica, fabricamos ferramentas cirúrgicas. Minha função é em especial, trocar o lixo, limpar o banheiro, colocar o galão de água no lugar. Parece ser de menos importância, mas não é não. Toda função que desempenhamos bem, acredito ter a mesma importância que a de outros, pois de certa forma, estamos todos ligados e só assim pode-se ter um funcionamento suave da empresa. Passo cerca de sete horas no trabalho, é meio período, visto que uma hora eu tenho de almoço. Até que a correria é grande e o tempo passa rápido. Após o trabalho pego o ônibus e vou direto para a escola, ainda estou terminando o terceiro ano do ensino médio. Tenho dezoito anos, entrei um ano atrasado na escola como podem perceber. Muitos dos meus amigos já desistiram de terminar os estudos por estarem trabalhando, mas eu não desisto. Eu sei que posso muito mais do que já faço, tenho potencial e confio nele. O que sempre desejei ser, acredite se quiser, um escritor! Daqueles famosos, com milhares de cópias e dezenas de edições. Eu quero terminar o ensino médio e fazer um curso de literatura, gosto muito de histórias onde impera a aventura e ação; claro que também não dispenso uma boa comédia.
Às vezes o único mundo que possuo, são os livros. Eles me fazem esquecer dos problemas, passarem as horas que de outra forma me trariam tédio, afastam a tristeza de certas coisas ruins que acontecem e me levam a mundos fantásticos onde só a imaginação pode nos levar. Eu adoro ler! Deste amor a leitura, surgiu o amor à escrita. Pena que nunca termino minhas historias, deve ser por falta de tempo, ou preguiça mesmo... Mais pra falta de vergonha! – um leve sorriso. – Mas eu ainda termino, ah se termino! Por mais cansativo que seja o trabalho, não se compara com a escola. Para mim, a escola é o pior lugar do mundo. Você entenderá quando eu chegar.
4 – Entre os leões. Cheguei à escola, no mesmo horário de sempre. Ao descer do ônibus começo a andar entre os outros alunos que com pressa entram pelo portão. Só essa pressa já me dá nos nervos, mas é suportável. A canseira, o sono e indisposição após o trabalho são as coisas que mais incomodam meu corpo. Cada noite de escola é uma luta para mim, e como se ainda não bastasse, existem pessoas para infernizar a minha vida. Quando entro no pátio, eu já sinto instantaneamente um frio gélido por todo o corpo arrepiado, uma certa repugna, uma vontade sem limites de ir embora. Meus pés andam mais lento do que o de costume, quase se pregam ao chão, como se dissessem: – Marcos, vai pra casa! Você ganha mais! – Eu sei que não posso deixar a escola, por isso insisto e ganho desta agonia que me aperta o peito, mesmo assim, continuo, apreensivo, atento a tudo e a todos. O mais difícil ainda esta por vir, entrar na sala de aula.
Chego à porta e paraliso por um instante, olho todos dentro da sala. Meu coração começa a bater muito forte, como se fosse pular pela boca. Estou na jaula dos leões! E não tem mais volta, terei de entrar e me deixar ser devorado. Mas como sempre, ouço uma voz alegre, cheia de carinho que me faz esquecer por um momento o lugar onde estou, uma moça morena de cabelos compridos cacheados, um sorriso de sol e olhos de pura meiguice. Danni, minha melhor amiga, talvez a única verdadeira amiga que já tive na vida. Muito inteligente, mas às vezes, um pouco louquinha. Essa mistura é encantadora. Antes que você pense que estou apaixonado por ela, entenda melhor a minha vida. Danni se levanta e sacode os braços sinalizando e gritando literalmente. – Ei! Marcos! Entra logo seu lerdo! Vamos conversar! – Depois dessa gritaria eu prefiro entrar logo antes que ela venha me arrastar pra dentro, por que se eu demorar ela arrasta mesmo. Claro, sento do lado dela, ela me olha com tanta bondade e gentileza que é impossível não gostar dela. Difíceis às vezes que já a vi chorar, pense uma pessoa repleta de alegria, essa é a Danni. Tenho mais uma amiga, a Clarisse. Menos louca que a Danni, mas também muito alegre. Pena que sua cabeça não ajuda na hora das provas, ai... sabe como é né... eu passo uma colinha pra coitada, assim ao menos uma notinha azul fraquinha ela ganha. As duas sempre ficam perto de mim, com elas não me sinto só. Conversamos sobre diversas coisas, o que mais gosto é quando por milagre a Danni lê algum livro e vem comentar comigo, neste caso a viagem é profunda e extremamente agradável. Digo milagre por que ela não gosta muito de ler, mas às vezes acontece.
Mas como eu havia dito, minha alegria não dura muito dentro desta cova de leões. Enquanto estamos de boa, sorrindo e conversando, chega a leoa mais desejada da sala, se não for da escola. Não sei por que, mas ela é doida por mim. Eu não faço nada para agradá-la, mal falo com ela, mas ela não sai do meu pé. Alguns rapazes achariam que tenho muita sorte, pois ela é loira de cabelos repicados até o ombro, com aquela franja puxadinha de lado, olhos verdes bem sedutores, dizem os meninos que sua boca parece uma maçã de tão vermelha... acho que é verdade. Sorte... azar, muito azar... certamente. Essa menina, Tamires, já pediu para ficar comigo umas quinhentas vezes, é um pouco de exagero, claro... mas foram muitas mesmo. Quando Tamires chega, Clarisse que a odeia se cala e volta a virar pra lousa, pois como senta a minha frente, quando conversamos ela vira para trás. Danni alem de detestar Tamires, ainda mostra certo ciúmes no olhar e fica calada apenas encarando-a. Às vezes até eu que sou amigo dela e conheço seu lado meigo sinto medo daquele olhar. Todo esse evidente desprezo nem respinga sobre Tamires, sabendo que é linda, como se vê e os outros meninos a vêem, ignora Clarisse e Danni, como se nem existissem. Ela vem toda rebolante em minha direção, já sinto o coração pulsar mais rápido. Como sempre faz, levanta um pouco mais a saia e abre mais o decote. – Oieee... tudo bem com você? – Que voz mais melosa, chega a ser preguenta! Eu tento ser educado, por isso dou um leve sorriso e respondo. – Tudo bem sim, obrigado. – Tamires se assanha mais ainda, abre aquele sorriso de “ai se eu te pego”, me dá arrepios. Com as mãos na cintura começa sua fala macia.
– Então... A professora de Inglês passou trabalho em dupla sabe, e sei que suas amigas farão juntas e você ficará sozinho. O que acha de passar em casa para fazermos juntos? – Que convite mais indecente! Sinceramente, ela não tem vergonha na cara! Parece um convite inocente, eu sei, mas os pais dela trabalham fora o dia inteiro, ou seja, ficaremos a sós eu e ela. Imagine o final ardente de prazeres que se passa na mente dela. Pior do que um convite desses, que para os outros rapazes seria um mundo de realizações e possibilidades, e que para mim não passa de lixo, são as caras do pessoal da sala. Sabe aquelas pessoas intrometidas nos assuntos alheios? Minha sala é repleta desse tipo de gente. Toda vez que Tamires vem toda insinuante em minha direção a sala toda para de conversar e ficam observando, essa cena é constrangedora ao extremo. Eu sou muito tímido, de poucas palavras. Detesto ser o centro das atenções, prefiro ficar pelo canto apenas observando. Mas sempre, nestas ocasiões me sinto um modelo de alguma peça de museu a mostra para uma platéia lotada e critica! Sensação horrível! Odeio quando isso acontece! O pior de tudo é que pela minha timidez eu fico sem palavras, vermelho, soando frio e não consigo ignorar os olhares curiosos a minha volta. Ao mesmo tempo fico pensando numa saída, numa boa mentira para sair dessa. Difícil! Sou péssimo mentiroso, mas tenho que tentar. – Sabe Tamires, seria uma boa, só que não posso. Tenho que ir visitar minha tia e vou fazer o trabalho lá ok! Desculpas, mas obrigado pelo convite. – Tento ser gentil. Mas como eu já havia dito, sou péssimo mentiroso, eu gaguejo e embolo a língua, nem sei como as pessoas ainda conseguem entender.
A reação é imediata, a Danni começa a rachar de dar risada, aquela bem sarcástica, bem maldosa, a cara dela! Tamires fica irada e chega próximo a Danni dando um tapa sobre sua mesa, com um tom de intimidação exaspera. – O que é tão engraçado assim? Por acaso esta rindo de mim? – Ah, mas a Danni não fica atrás quando o assunto é barraco. – Por acaso, agora precisamos pedir permissão a você para rir?! Não acha que passou do limite? Eu dou risada quando quiser e não devo satisfações a você! Não vê?! O Marcos não ta nem ai pra você! Deixa ele em paz, que saco! Tamires era barraqueira, mas não sujava as mãos, era isso que ela dizia: – Não vale a pena sujar as mãos com essa medíocre! – eu acredito que na verdade ela era ruim de briga e morria de medo de perder os tufos de seus belos cabelos loiros. – Logo assumia uma postura de indiferença e novamente me assediava. Agora era a parte mais bruta, ela com a micro-saia que já puxara mais a cima, sentava sobre minha mesa e erguia uma perna mais acima, por centímetros a sala não via sua calcinha. Talvez passe pela cabeça de muitos: “Uau! Que garota sensual!” – Quer saber, para mim era assim: “Desgraçada, sua vulgar!”. Cada um pensa o que quer não concorda?! Tenho o direito de pensar diferente da maioria. Garota terrível se esticava com o decote quase na minha cara e sorridente continuava. – Mas podemos marcar para outro dia, afinal... A entrega é só segunda que vem e hoje ainda é terça. O que acha de fazermos no sábado, já que você deve ir visitar sua tia no domingo... Não seria capaz de dar um não... – Que carinha de dó sedutora mais desprezível!
Eu olhava em volta e não via outra escolha, mesmo engasgando, respondi que sim. – Tudo bem então. Vai ser rápido mesmo, podemos terminar tudo em menos de uma hora, ai volto pra casa. – Tamires deu um sobre-salto, seus olhos brilhavam, como o de uma leoa que tem a preza entre seus dentes. – Ótimo! Vai ser muito divertido! – Divertido... imagino o que seria divertido para ela, e acho que não seria nada divertido pra mim. Por responder que sim, os garotos da minha sala ficaram atônicos. Tamires voltou sorridente para suas amigas vulgarzinhas e quando olhei de lado vi Danni, que cara mais triste. – O que foi Danni? Por quê você esta assim? – Por nada! – assim mesmo, seca como um dia abafado. – Eu... eu nunca pensei que você Marcos seria como os outros rapazes... me decepcionei! – Como assim? Como os outros rapazes? – Como aceitou o convite dessa galinha para ir na casa dela? Você sabe o que ela quer não sabe? Como pode? Se fosse alguma garota descente pelo menos, mas essa bisca! – Ela já me chama para fazer trabalho com ela a tempo, se eu for dessa vez ela para de me encher... assim ela não poderá dizer que eu nunca aceitei um convite dela entende? Me livro de vez dessa perseguição. – Ta. – O que acontece é que Danni tava era com muito ciúme, muito mesmo. – Você é um idiota! Isso vai piorar a situação, você vai ver! – Mesmo sentando do meu lado ela virou de costas pra mim e começou a ler as matérias do caderno. Eu achei melhor não mexer com quem esta com raiva. “Depois passa”. – pensei. A aula começou e tudo foi como sempre. Até que não mexeram comigo muito hoje, apenas um papel que nunca sei de onde vem e sempre acerta minha cabeça, essa pessoa deveria tentar entrar pro basquete ou outra coisa de arremesso, por que fala sério! Infeliz!
No final da aula, eu, lerdamente... guardei meu material e tentei conversar com a Danni, mas em vão. Ela me disse até amanhã e se mandou. Puxa, eu não sabia que ela era tão rápida, fiquei pra trás. Clarisse ficou comigo rindo baixinho. – Ai, ai... não esquenta não Marcos, depois passa. Mas sabe, ainda acho que foi uma bobeira ter aceitado o convite da Tamires, tomara que não se arrependa. – Eu também espero que não me arrependa. Senti algumas sombras muito próximas, no meu encalço. Quando virei para trás, eram eles, os mais idiotas da sala, burros, retardados, tudo isso! Lucas é um bruta montes, fortão gostava de regatas para exibir os músculos, cabelos espetados, parecia um porco espinho. A sua sombra, Caio, o bosta! Não valia de nada a não ser seguir os passos de seu mestre. Tirando os outros dois inúteis que sempre andavam com eles. Lucas estava todo sorridente. – E ai carinha?! Mandou bem ein? Tamires a gostosa! Eu até pensava que você não passava de um gay sem futuro. Mas você pelo visto não é um boiola, é um safado que se escondia no armário da pureza. – seguia-o varias gargalhadas. Um bando de cães sarnentos cheios de maldade e dúplice nas palavras e corações. – Nada a ver, nós vamos apenas fazer o trabalho de inglês e terminando volto pra casa! – Hum, claro. O garoto purinho... deveria virar padre ou pastor, sua santidade! – risos medonhos sem fim. Como eu sou idiota, numa hora dessas eu devia dar um de valentão, esbravejar, chutar algo, sei lá... fazer alguma coisa. Mas não sou de brigas também. Prefiro me calar e andar mais rápido. – Ei carinha! Vê se não decepciona a mina! Faz tudo o que ela quiser e aproveita pra deixar de ser viado!
Como odeio, odeio do fundo do coração essas palavras! São repetidas diversas vezes em minha vida, como se me acompanhassem desde meu nascimento. As pessoas são tão maldosas, injuriadores! Julgam as pessoas pelo que estabelecem para si mesmos. Cretinos! Com certeza devem ter medos, inseguranças e podres, podres fétidos, mas escondem, por que são covardões. Descontam a frustração que sentem de sua falta de qualificações e capacidade nas outras pessoas, acham que eu sou saco de pancadas, e o pior é que sendo esse lerdo que sou, acabo sendo mesmo! Às vezes tenho raiva de mim também. A semana passa num vento forte. Dia a dia sempre o mesmo, trabalho, escola, chacotas! Sempre. Assédio de Tamires que parecia não ver a hora de me ter a sós. O que será que ela pensa que vamos fazer? Não quero nem saber. A Danni me perdoou depois de dois dias sem falar comigo. Isso em si foi muito bom. Mas o sábado chegava, e a apreensão em mim aumentava.
5 – Um erro terrível! O sábado chegou, eu já havia pensado varias vezes em desistir, dar uma desculpa qualquer e ficar em paz. Mas ai lembrava dos insultos do Lucas e decidi mostrar que pelo menos medo de garotas eu não tinha. Fui... como um pobre animal para o abate, eu fui até a casa da Tamires. Toquei a campaninha. Tamires logo apareceu na janela e acenou. Em alguns minutos ela já havia aberto o portão e me convidado a entrar. E lá estava eu, dentro da cova dos leões. Até que ela estava mais bem vestida do que na escola, o material escolar estava sobre a mesa e tudo parecia bem. Sentamos e até que foi divertido conversar sobre o trabalho com ela, não sabia que tinha senso de humor. Por um instante fiquei despreocupado. O trabalho terminou, e ficamos de boa, apenas jogando conversa a fora sobre filmes e televisão.
Papo bobo, mas dependendo de com quem a gente conversa, é a única coisa que dá pra falar. Se eu falasse dos meus livros e mundo nerd, ela iria se entediar. Me levantei e sorri. – Valeu Tamires, foi bom fazer o trabalho contigo. Agora já vou indo que o tempo passa rápido. Quero dormir cedo que amanha tenho de acordar cedo. Tamires deu um leve sorriso, mas seu olhar era muito sinistro, era como uma cobra que esta mirando uma vitima. Quando menos pensei, ela já estava sobre mim. Me derrubou sobre o sofá de sua sala, me beijou e começou a subir a blusa. Que situação. Nunca me imaginei ser pego por uma garota daquele jeito. Se uns pensam que isso era exótico, vulcânico e delicioso, para mim era nojento, insuportável! Eu empurrei-a para o chão, que queda, um enorme tombo. Levanteime aturdido. Por alguns segundos fiquei em estado de choque, então se tornou ira, muita ira. Joguei as almofadas na cara dela e me afastei para a porta. Não agüentei mais, mesmo sendo tímido e lerdo, desta vez eu não era mais eu. – Sua idiota! O que estava pensando?! Achou mesmo que eu iria... iria fazer aquilo com você?! Você é louca, retardada! Eu estava pensando até que podia ser uma pessoa boa, mas me enganei. Você é uma vagabunda! – Peguei meu material e sai daquela casa tão enojado dela, de mim mesmo. Horrorizado! Eu jamais na minha vida havia beijado uma garota na boca, nunca. Ainda mais daquela forma! Ela parecia um animal. – Enquanto eu saia horrorizado, desorientado, Tamires ficara sentada no chão chorando. Humilhada, ela se sentiu assim, humilhada. Nunca, nenhum cara havia negado sexo a ela. Nunca até aquele dia. Eu fui o primeiro a dizer não.
Passei o domingo todo perturbado. Ficava pensando e pensando. – “O que há de errado comigo? Qualquer garoto normal gostaria de estar em meu lugar, mas eu... eu não gosto dela. Eu não sinto desejo por mulheres... será que sou gay? Mas... eu também não sinto desejo por homens... o que sou? Será que tenho alguma doença?!”. – Esse foi meu péssimo domingo. Deprimente. Só não sabia que a segunda-feira seria pior. Trabalhei daquele jeito, tomei bronca toda hora. Deixava as coisas caírem no chão, atrasava mais do que de costume, estava distante. Na escola, quase não passei pela porta. Só entrei por que a Clarisse chegou ao mesmo tempo que eu e me puxou pelo braço. – Vamos Marcos! Já estamos ficando atrasados! Hoje tive que fazer hora extra e sai correndo do trabalho, afff... vamos! Entrei na sala e logo notei, olhares e olhares para mim. Primeiro vi o olhar da Danni, me observava com pena, tristeza, sombria, não sei dizer. Clarisse também percebeu, mas apenas sentou. Todos os outros olhares eram de desprezo, zombaria, desdém. Me senti uma criatura estranha em meio a um monte de cientistas sedentos por sangue, sedentos para me dissecar e descobrirem de que sou feito. Tamires estava com um olhar odioso a minha direção. Lucas e os outros idiotas do seu grupo me secavam com os olhos desejosos de humilhação. Mas a aula se seguiu. No intervalo, no entanto, desci e me sentei num dos bancos com Danni e Clarisse. Danni tava tão pensativa. Eu não pude deixar pra lá e perguntei.
– O que foi Danni? Por quê você esta tão calada? – Ela demorou um pouco em me responder. Mas finalmente saiu... saiu uma pergunta que eu preferia não ter escutado. – Marcos... você é gay? – Me engasguei com a própria saliva, quase fico sem ar. – Co-como?! Gay?! Não! Por quê você esta perguntando isso? – Calma. É por que a Tamires espalhou hoje de manhã, no orkut e no facebook que você é gay, pois foi na casa dela e não quis fazer sexo com ela. Por um lado eu achei foi bom, mas por outro... – Por outro o quê?! Eu já disse que não sou gay, e mesmo que fosse não seria motivo para virar chacota! – Então o que você é? Você não gosta de garotas! – Mas também não gosto de garotos! – Não dá pra entender... olha que já tentei. – Eu... não sinto desejo nenhum, eu gosto muito de você, por exemplo, da Clarisse, mas não sinto desejo de fazer aquilo com vocês. – Por quê você fala aquilo? É sexo certo! – Por que eu não gosto de falar essa palavra. Eu a acho suja, não sinto curiosidade de fazer isso, nem de falar sobre isso! Caramba! É tão difícil entender?! Não sou um alienígena só por ser diferente! Danni pareceu não entender ainda, talvez por que ela quisesse que não fosse verdade. Já Clarisse estava normal. Apenas segurou no meu ombro e me abraçou. – Calma ai maninho... eu sei o que você é, vi uma vez na tv falando sobre isso. Você é um purino, pessoas que não sentem desejo sexual, não são gays, apenas não tem sexualidade. Não sentem desejo ou prazer nisso. Normal, existem pessoas que adoram chocolate e por mais impressionante que seja, existem pessoas que não o suportam. O mesmo se dá com você. De boa, não liga para os boatos.
Gostei de ouvir isso. Me confortou, me fortaleceu. Me senti mais humano e normal. Mesmo que creio que nunca deixei de ser normal. É normal não gostar de certas coisas. Cada pessoa tem direito de decidir o que é melhor para si contanto que não prejudique ou desrespeite outras pessoas. Mas não durou muito. As chacotas foram aumentando, passaram a escrever coisas horríveis sobre mim na lousa, nas paredes da escola, até no chão do pátio. Postaram fotos minha, fizeram montagem com outros homens, fotos obscenas. Por onde eu passava era ridicularizado, humilhado, não estava mais agüentando isso.
6 – Fim trágico. Parei de ir à escola. Mas como se espalhou pela internet, até no trabalho que quase não tínhamos tempo para nada, começaram a achar tempo e me zoarem. Na rua onde eu passava alguém apontava o dedo. Riam. Eu passei a andar de cabeça baixa, aos poucos não quis mais andar na rua também. Deixei de atender os telefonemas de Danni e Clarisse, não queria mais ver ninguém, não queria mais viver. Se hoje estão lendo essas palavras, podem ter certeza... não estou mais aqui. Não consegui terminar meus estudos, não consegui ser o escritor que desejava tanto... não pude ser mais nada, apenas uma lembrança apagada na memória dos que um dia me conheceram.
Sempre tive fé de que não importa o que acontece na morte, deve haver paz. Sempre fui diferente. O cemitério é lugar de suspiros, tristeza e medo para muitos. Para mim, é lugar de descanso e paz, onde não existe quem nos humilhe, nem nos magoe que nos faça mal. Agora estarei em paz. Só espero que esse único livro ou conto que escrevi, possa de alguma forma tocar os corações de pessoas criticas e maldosas, para que pensem antes de maltratar uma pessoa, pois o que pode parecer brincadeira para você, pode acabar com o coração de outra pessoa. – Com essas palavras, eu encerro este discurso de formatura, onde Marcos poderia estar aqui se não fossem os olhos maldosos, as zombarias cortantes e os risos impiedosos. – As lágrimas e soluços de Danni não podem ser tapados, são um rio que escorre em seu rosto sem fim. Todos os presentes começam a chorar, mesmo os olhos outrora sinistro derramam lagrimas, pelo menos neste momento mostram-se compreensivos, empáticos. Mas agora é tarde de mais, Marcos se foi. – Eu peço respeito! Amor! Bondade! Sejamos pessoas melhores! Podemos ser! Assim, evitaremos perder pessoas tão especiais, com tantos sonhos que foram interrompidos, como meu amigo Marcos. Eu lamento a ignorância humana, a estupidez humana, a hipocrisia humana. Essas páginas foram encontradas do lado do corpo de Marcos após ele se envenenar e morrer. Este livro esta terminado, pena que tenha sido o primeiro e o ultimo livro de Marcos. Fim.
Daisy Fox 25/01/2012
Blog - www.escritoradaisyfox.blogspot.com.br