Antologia Prévia de Antonio Vitorino

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este livro é dedicado a todas as pessoas que, ao longo destes trinta e tal anos de escrita, me têm encorajado (e às vezes desencorajado) a continuar. não vou mencionar nomes porque são mais que as mães e ainda me esquecia de algum ou alguma. mas vocês sabem quem são. vocês pah!


António Vitorino

Antologia prévia com prefácio do Excelentíssimo Professor Doutor Abreu Santinho

capa e arranjo gráfico Sturrefsit Adjukaatrix Edição Debaixo do Bulcão http://debaixodobulcao.blogspot.com Dados de copyright? Copyquê?

Almada, Abril de 201 6



CONFIDENCIOU-ME o meu mui prezado amigo António Victorino que, desenganado quanto à possibilidade de publicar os diversos tomos da obra literária a qual, laboriosamente e nas trevas, tem composto ao longo das últimas três décadas, optou por reunir em crestomatia uma selecta de alguns enunciados, com os quais espera proporcionar não uma colectânea dos seus melhores poemas, mas antes uma panorâmica diacrónica da evolução do seu fabro forjar de versos. E, amavelmente, convidou este humílimo escriba a tecer algumas considerações em forma de prefácio. Estando eu a trabalhar no meu próprio livro, intitulado Epifonias do Ágape Egineta, não obstante não quis, contudo, subtrair-me a assistenciar este cordato, porém não artiozoário, facharão de labor literário. É pois, com júbilo que me presto a esta abonação em prol de quem tanto tem pugnado em favor das artes de Ératro e - porque não dizê-lo? - de Melpômene, quando não até mesmo de Polímnia, e nunca em chave macarrónea, atente-se. Porém, representar o pensamento por meio de caracteres de um sistema de escrita a fim de ponderar operativamente em co-ocorrência com o enunciado dado e proposto a exame afigura-se, convenhamos, espinhosa hermenêutica. Todavia, e perante a conturbada biografia do autor, ocorre-nos antes de mais a este respeito a prédica de Aurélio Agostinho de Hipona, o qual reconhecia não haver "lugar para a sabedoria onde não haja paciência". Munidos, pois, dessa paciência (santa paciência, diria um jocoso que não queira entender no que digo mais que meros cavalinhos de tróia saindo de outros cavalinhos de tróia), tentemos entender e perorar sobre a polissémica e polimorfa arte poética que António Victorino representa neste opúsculo. Se “os pontos fracos de um livro são com frequência a contrapartida de intenções vazias que não se soube realizar”, como pretendia Gilles Deleuze, o efeito desta obra organizada que ora pomos diante dos olhos, demonstra-nos, com sagacidade e à saciedade, a pusilanimidade de um poeta que, sequencialmente, recusa ser crestado ou atralhoado pelo conjunto de conceitos proto-filosóficos logicamente solidários, mas considerados mais na sua coerência que na sua verdade, em vigor na actual sociedade do espectáculo e nos seus dispositivos culturais hegemónicos. Neste contexto, a poesia de Victorino afigura-se-nos como "arte oculta" e "agente de diferenciação", no sentido para que Deleuze aponta quando escreve que “um conceito é totalmente incapaz de especificar-se ou dividir-se; o que age sob ele, como arte oculta, como agente de diferenciação, são os dinamismos espaciotemporais”. De facto, há em Victorino toda uma ética de diferenciação via dinamismos espaciotemporais (e é por essa mesma razão que o título Antologia Prévia nos parece tão acertado), configurada numa gramática de constrições concomitantemente pós-estruturalistas e desconstrutivistas, sim, sem, contudo, se acercar mais que numa trajectória parabólica (algumas vezes elíptica, mas sobretudo parabólica) e minimalisticamente tangencial aos poetas associados a ou aparentados com as múltiplas ramificações da grande árvore conceptual do pós-modernismo. A poética de Victorino surge assim, iluminada por esta luz negra da crítica diferenciadora espaciotemporal, como, na asserção platónica, "o vento que não se vê", então claramente visto pelos "olhos do espírito". Ou, se nos apraz usar a mui adequada metáfora de Epimaníades Anatólio de Éfeso, como "um panóptico desterritorializado autorreferente num perene vórtice paroxistico e, frequentemente, peristáltico". Nem mais nem menos. Afirmou em tempos Umberto Eco que “o mundo está cheio de livros fantásticos que ninguém lê”. Que oxalá não seja este um livro fantástico são os meus mais sinceros votos. Campo de São Paulo, 26 de Abril de 2016 Professor Douctor Abreu Santinho provedor do Debaixo do Bulcão pozine


poemas de

Antrologia (1 981 - 1 987)


PROTOPOÉTICA-COSMOGONIA

não te vou falar da lua ela exacta material redescobre sua elipse preferida. e bem sabes não te vou falar de estrelas: são milhões e a prosa é dura. afinal que mais que ter os pés na terra sentir a terra? afinal que mais que ter o sol na boca (no céu da boca)? não te vou falar do abismo vertical falemos só do falar e do não sei bem de agora. deixa-me ser infinito: poesia é corrente de biciclo que saltou. é bichinho é bichano é bichoso. a lógica formal é outra coisa.


MINUTO DE SILÊNCIO

"Quem sou eu?" perguntava o pai ao filho. Depois de se entornarem num copo de cerveja com groselha. Parece sangue, mas é apenas uma bebida fermentada. Paga-me um copo de leite, ó paula Xis. Agora que já confessei as minhas mágoas. E agora que o dilema se deslumbra com o indício. E que bebi o leitinho que me quiseste dar, ó paula Xis. Depois de apanhar aquela bola transviada. Que me vinha direita às narinas e eu não gosto. Que as grandes penalidades me fustiguem as narinas. Agora, pois, que confessei as minhas mágoas. Só me resta aqui citar um tal poeta do caraças: "Que infeliz que eu sou e esta merda não faz rir. Este mundo custa muito e vai tudo acabar." Agora que este organismo violáceo chega ao fim. Pum-pam-pim! Pum-pam-pim! Pum-pam-pim! Venham dois ou três buscar o inestimável colete. (E antes que a estrela florescesse sob a sombra da Colgate. Filho ao pai o perguntava "?eu sou quem". O pai ao quem perguntava "o filho?" sou eu.)


BURNING WILD

nascidos, para quê serpentear entre paisagens de cimento? vejo a oblíqua trajectória do cocktail molotof e o homem da publicidade cujo cérebro não receia o fogo posto. para quê poisar, se o delírio apenas se manifesta? sapatos novos, ein, são le coq sportif e assim se artilham os pássaros subjugados à prisão de ventre mas para isso há pastilhas e sais de frutos e cansaços curam-se com proteínas vitaminas e orgasmos vegetais. assim, a estrada pós-sinalizada mente como se fosse e nunca deriva. chamem-lhe recta. chamem-lhe seta ou paisagem de andróginos figurantes obsequiando a figura do primeiro presidente. para quê penetrar se o dilúvio apenas se pressagia? observo as moles humanas são carne para comboio suburbano. quantas portas se abrirão durante a fuga não o saberei contar mas há um vesgo afirmando aqui mais perto tens os mouros. e tu morres. mas talvez não. arderá o continente antes da próxima estrofe?


VIDEOCLIP

imagens pró-diuréticas: eis que pelo monitor do vítreo sublimar cacofonias o absurdo é querer temporizar. ou seja predadores sobrevoando a superfície de seiscentas e tal linhas, pontos brilhantes, granulado nestlé sincronismo idiossincrático ou aquilo que. até. dúbio é o velocímetro para fora da galáxia. dupla é a via láctea principalmente nos meses em que o verde favorece e as vacas mais produzem. cacofónico projecto: e é por isto que o paraíso vem em folhas de alguns milhares de metros para usar e purificar com água (não diz aqui se é benta). ou como diria copérnico: não consigo trabalhar quando a TV está acesa. e isto equivale a um discurso.


MONÓLOGO PARANORMAL

Ich habe eine tia turbulenta e fria como a façanha feroz dos glaciares e um pouco mais de porte erecto germanófilo porrete baralhómetro sanguessuga minha macabra ironia ó tia quantos graus de parentesco alcoólico ó álcool quantos mânfios por dinheiro a minha tia prostituir-se, herself e o candeeiro a noite de um requintado ocidental. para normal acredito, só me falta a luz do dia. (ironia)


INDIQUEM O NOME POR FORA DO ENVELOPE

recebemos, de anónimo, desejos por detonar a redacção agradece agradece a gerência indiquem o nome, digam-nos o tema indiquem o sexo, o desejo, o esgar indiquem, por favor, quando é que vai rebentar indiquem-nos o sonho, a bem da tipografia a redacção agradece agradece a gerência e o resto da família


MIRADOURO DE SILVEIRA

"Quem sou eu?" perguntava o paixão ao filisteu. Depois de se entornarem num copo de cesário com groselha Parece santeiro, mas é apenas um bedum fermentado. Paga-me um coqueiro de leme, ó apócrifa recapitulatrix. Agora que já confessei as minhas maiorias. E que bebi todo o leme que me quiseste dar. E agora que o dilúvio se deslumbra com a indignação. Depois de apanhar aquele bolchevique transviado. Que me vinha direito à nascente e eu não gosto. Que os grandes pêndulos me fustiguem as nascenças. Só me resta aqui citar um tal poldro do cara-direita. "Que infinidade eu sou e este mês já não faz rir. Esta murça custa muito e vai tudo acabar." Agora que esta orientação de viração termina. Venham dois ou três buscar a inestimável coligação. (E antes que a estria florescesse sob a sonda da Colgate. Filiesteu ao paixão o perguntava "?eu sou quem". O paixão ao quem perguntava "o filisteu?" sou eu.)


poemas de

Ex Bรณcios (1 987 - 1 988)


INSOMNIA MEMORANDUM

1 .00 organização de vocábulos seminalmente lentos fluindo luar de outubro e o líquido receio de crismar estes momentos. montra quase secreta porque não a posso apunhalar com estes olhos de espanto sangue ou cisma quadrante de pequenos dísticos e o pó da terra: a definição do fumo é inconstante. este pássaro foi água e regride à reorganização das sensações rebeldes como se fosse o rasgar destes caminhos a dinâmica destruição dos símbolos do mundo. 2.00 mas há sempre um recomeço, espelho meu. 3.1 4 um que pensava ser poeta escrevinhou no wc “no limiar da passagem aguardarei por teu nome” mas agora que do outro lado a montanha revela vórtices estranhos de silêncio há ainda um talvez não que vem de longe embrulhado em papel de celofane. o poeta desafia suas próprias estruturas vejam como oferece a face oposta (dói-lhe o sangue) vejam como despe a farsa posta (arde em cio) 4.07 a quem nunca urinou na central de camionagem de viseu: há um estranho personagem feminino rabiscado, salvo erro, em meados de outro ano afirmando peremptoriamente: ”mas que fado!” 5.55 filosofia popular: que ninguém diga “à central de camionagem nunca eu irei mijar”


OBSCURO

seguramente, a experiência não foi má singularíssima pala para o manso da sabina unilateral relativamente bem sucedeu que sim a epistolice piorou mas não se pode querer tudo e ninguém vai acordar o menino que dorme lá em baixo ninguém quer arriscar uma descida a esse inferno. sabem que um homem não rebenta, nem que chore mas mesmo assim não querem.


ORANGOTATÓRIA

nem operação sarcástica me tolhe caravaggio e picasso derretidos na alfândega de andorra e o carregamento de coca-cola e a bala perfurando os ossos cranianos de um qualquer personagem secundário na merda de porca de vida de cidade sinal des contentamento in contentamento labial verde que te quero sede dos cânticos positivistas alguns te contam as tragédias. mas não a minha gata. um dia destes rifo os teus telões e a tua salubridade também. por algum motivo eu não sou o kaiser guilherme segundo.


poemas de

Os dias comem-se tristes (1 995 - 1 996)


OS DIAS COMEM-SE TRISTES

momentos mudam de cor. transformam o prazer em golpe súbito. então jorram as palavras sílabas por desvendar que não se acabam em coágulo dos dias fica o frio da morte anunciada. ao ritmo do coração embalas para o lado esquerdo o leite materno da paisagem que já foi amor e hoje, agora neste preciso tormento a temperatura aumenta, mais um átomo sensível não o podes contornar. nem mesmo sabes nem sabes quais as sílabas que há ainda para unir, agora despedaçaste a moldura inquebrável destes dias: excesso de lucidez, o sol queima os teus versos, mergulhas na euforia. esquecer de ser. é isso.


EIS AS PALAVRAS ARTICULADAS

o nome de um poema é o mais importante do mundo logo a seguir vem a carruagem do primeiro verso e a do segundo e a do terceiro até formar o poema. mas o que é um poema? para que serve um poema? o mundo não explica. a poesia não explica o mundo serve-se das vísceras como água se fosse bebida talvez. ainda ninguém sabe. ainda não há ciência. eis as palavras articuladas. um pequeno deus arrisca a pergunta: para quê?


CIRCUITO FECHADO

"il tuo dovere è di migliorarti di stare bene di realizzarti cerca di essere il meglio che ti riesce per poi darti agli altri" Eugenio Finardi

a fonte das lágrimas secou. também as palavras o que resta de ti? meter os punhos sangrentos na raiva dos dias ruídos da cidade cega por modelar argila pobre dos dias, massa lunar do silêncio fragmentos da cidade cega, impossível o afecto o que resta de ti? amar o labirinto, abres os poros à sedução de todas as dificuldades, amar o que é difícil. fechas-te na sala oval do desespero e atrás de cada porta o mistério. olha: abre esta devagar, talvez seja o armário da poesia. não dormes, pensas o coração promete dar-te mais um dia.


FRASE LAPIDAR

escrever é sobreviver: voar por cima da vida, talvez esquecer.


REMAR, MAS DEVAGAR

retiro a mão da água tépida do lago onde os rafeiros patos boiam. a mão turva o momento indeciso de agarrar no remo e remar. mas devagar. deixo que o cigarro se apague na água suja do lago onde boiam pauzinhos de gelado e papéis de rebuçado.


poemas de

Pequena incursĂŁo no labirinto (1 997)


E PRONTO AGORA JÁ PODES CHORAR

e pronto, agora encerraste os teus lírios na camera obscura do esquecimento e pronto agora ranges dentes apertas parafusos no cérebro no torno regulas o torniquete que evita o jorro de palavras necessárias para que te possas entender quem és quem estás a ser que peixes voadores pululam teus tropismos ou teu sal de lágrimas que evitas de águas perdidas de silêncios na volta do fumo para casa do mar. e pronto agora agora já podes mudar a cor do rosto e já podes apertar a porca regular o torniquete da tua inquisição metódica teu índex teu ódio teu pesar. e pronto agora agora que desistes e te fechas no teu quarto mostra ao mundo a massa de que é feito um poeta. agora já podes chorar.


RASO CHÃO

1. o cosmos que encerra esta densidade. semente: cápsula no campo raso das sílabas que ainda dormem. cápsula será: nascente de palavras quando explodir em mil significados: cápsula que agora desperta as sílabas, conduz o ser vivente ao caminho de seu próprio discernimento. caminhar, a grande azáfama: fertilizar os dias largar hipóteses na terra; de algumas nascerá fruto de outras só a flor da dúvida, conceito incompleto mas novamente fértil. 2. afias a farpa da contradição. e assim adulteraste uma vez mais a sementeira. diz-me: que fruto amargo emerge dessa água? qual o poema que vai morrer depois do júbilo? que discernimento quase cego em ti te adivinha os caminhos do exílio figurado ou sonhado? quantas peles vais deixar pelo fio do tempo até que alcances respirar a casa, tua casa? e existe em que horizonte, se existe?


A BOMBA DA PAZ

todas as nações deviam ter uma bomba nuclear. afinal, todos os supersticiosos têm a sua moedinha da sorte, não é assim?


ÁLVARO VELHO EM LISBOA

encalho num beco sujo de lisboa. meu primo josé pereira já saiu. vem o bafo do bafio agoniar-me. olho à volta do quarto. quem sou eu? que morte me convidou a vir? olho as paredes encardidas, o papel a descolar... ah, sim! papel na parede, cartografia de outros inquilinos desta casa. quem eram? pensamentos, olhos de noite à deriva... é sempre assim: acostar ao dorso de outra cidade. sempre assim: eu venho lá da telúrica vida das grandes pedras, dos silêncios matinais, das serpes do cheiro vigoroso da terra removida após a chuva... aqui o cheiro é forte, mas é cansaço de corpos é mistério de gerações por decifrar entre quatro paredes é um espasmo adivinhado, agonia, dias de álcool noites de amor intenso, choro e raivas outra vez... o ar do quarto carregado de mensagens desses corpos que passaram... abro a janela. olho a rua sonolenta: recanto de lisboa. quem é esta cidade? tento lembrar-me... cidade grande com muitas cidades dentro, apoteose de sentidos, novelo de ingratas vidas, ir e vir, pegar, largar... capital da complicação superlativa? artifício, pirotecnia de febres? ou apenas um formigueiro maior? aqui, não. mas a vida anda talvez por outros lugares, ou por largas avenidas ou por bairros mais variados. penso que só pode ser assim. então, a lisboa que conheço sempre existe ou ficou perdida no meu antigo pensamento? são horas de comer: vou almoçar que não se enche a barriga por pensar.


KANT SÃO

a vossa evidência visual arde nos olhos corpos na pupila estranhos de entranhar. e não mais ofendam este sensitivo globo: hábeis sois apenas na matéria dada não na cúpula, perfeitos só na cópula pois é universal e necessário copular. mas se matéria bruta vos conforma não tendes mais razões para um cisma vinde cá quantos são quero contar chegai-vos vinde até cá criticar a priori se ousais a razão dura o tempo que durar se vos chegardes à minha mão fechada raiva pura.


PRIMEIRO MONÓLOGO BARATO

vinte e três milhões de galáxias cairam na minha cabeça. foi assim na primavera dos dias no tempo em que nosso pai adão comia os frutos proibidos e conversava com eva na língua bifurcada das serpentes. assim foi na infância do poema.


SEGUNDO MONÓLOGO BARATO

por essas alvoradas da palavra articulávamos severos sons: poetas fomos. depois, erguemos uma torre muito alta e deus zangou-se. é por isso que a poesia não vende: porque não e também não é passível de verter em outros moldes. e trair é atrair a tradição, não vá deus zangar-se novamente com os versos.


TERCEIRO MONÓLOGO BARATO

os milagres da palavra, edição encadernada papel de alto risco e delambida lombada. de galáxias só milhões são vinte e três de profetas só milhares, trinta e dois de rimances, muitas rimas, multidões. outras contas de poetas: contas feitas trinta e três, noves fora quase nada. compre cá. aqui o compre calhamaço de palavra condenada: enforcada nesta guita. o cordel não custa nada e a prosa é barata.


TRAGÉDIA: PRANTO DE POETA ENTRE MILHÕES

não. apontas para mim o sol. não quero. deixa-me crepuscular aqui na mesa do canto quietinho. animal submerso em sono e evidentemente, litros de água com sal. quanto custa um poema? sangue, furnas de sangue. vulcão que expele a raiva toda e por fora... ... o quê? faz-de-conta, rigidez de pedra? não olhes para mim. não quero. desisto: não apontes para mim o sol dos olhos nem a noite da imaginação, ponto final. ... mas final? quando? que final? não. apenas hibernar dormir como um pequeno bicho... isso, para saber que o inverno há-de passar e o ciclo se renova como papel higiénico. isto era uma piada mas também era um ovo de verdade que há-de nascer. como uma cobra. eu não. mas há quem coma.


PROMETESTE?

com tantos deuses, tanto amor e ódio era preciso mais amor e ódio? pois tinhas de criar mais cio e sangue, não te bastava o mundo consentido? que espécie de loucura te perdeu? não sabias, ó deus, que essa promessa só amassa na dor a mole humana? e olha para zeus: alcmena engana como tantas mortais já enganou. não te rias. tu sabes que essa hora só promete por fim tua justiça. mas chora, prometeu, que ainda tarda o dia em que te vou largar o fígado.


PROMETEU

prometeu dar-nos a vida, e deu. prometeu dar-nos o fogo, e deu. olhámos para nós: eramos vivos e também tinhamos o fogo para incendiar o mundo. olhámos para o mundo: era verdade e tinha-nos a nós para o poder queimar. lançámos corpos todos a essa longa tarefa. isso foi há muitas vidas, hoje estamos quase a cumprir o prometido.


poemas de

Autogeologia (1 998)


FOI ASSIM:

à meia noite fria nós quentes pousámos na varanda e ordenámos a cada um dos olhos que nos dissessem do fogo que além suspenso estralejava e mesmo só para se ver alguns de nós desperdiçaram certo vinho impulsionado a gás alguns de nós mastigaram frutos secos desejando não se engasgar no último alguns de nós meninos beijámos algumas de nós meninas e assim é que deve ser depois continuou a eterna noite eterna bebedeira de todos nós e depois continuou a noite tão de todos como de cada um de nós e no resto do mundo outras noites coincidiram com dias antes e depois consequência natural da rotação da terra sobre o seu imaginário eixo. de manhã inda mal o sol se via chegar turbulento a casa arrancar a folha ao calendário vem o sol e nós dormir...


AUTOGEOLOGIA

este vulcão adormecido não sou eu mas a sua massa é igual ao meu silêncio este magma não ameaça o ser vivente que é em cima por agora ruminam os ruminantes e comem os predadores ignorantes do vulcão adormecido que há em baixo mas não sou eu. o vulcão há-de acordar vai ser obrigado a cuspir o seu calor de morte e não sou eu que tenho sempre a escolha de permanecer sereno com o meu inferno interior só para mim descansem, pois, pequenos habitantes de pompeia.


DÚVIDA METÓDICA OU DISCURSO DO VELHO DO RESTELO AO INVESTIGADOR CIENTÍFICO

agora que descobriste a molécula tens a certeza que descobriste a molécula? eu sei que és sagaz mas pensas que os teus olhos nunca te enganam? descobriste o cristal mereces o prémio nobel mas tens a certeza que descobriste o cristal? sim descobriste mas sabes o que vive dentro daquilo que descobriste? tens a certeza? por dentro viste?


ESPARSA AO DESCONCERTO DO MUNDO

agora que deviam regressar as andorinhas regressou o inverno. a diferença é: as andorinhas são seres vivos o inverno é entidade mitológica as andorinhas enchem o céu de alegria e o inverno molha-nos.


FALTA DE IMAGINAÇÃO

"Ainda por cima os homens são os homens Soluçam, bebem, riem e digerem sem imaginação." José Gomes Ferreira

boa noite. o dia esteve lindo mas poderia ter sido melhor. enfim não choveu e cá estamos outra vez. ah! dêem-me um copo de vinho suor das noites quentes dos poetas frios (ou será o contrário não me lembro) e um copo de vinho e um copo de vinho e um copo de vinho. olha lá (diz a musa) não te esqueceste de referir a ganza? e digo eu à musa: vai bardamerda mas isso já não é poesia, boa noite.


PEQUENA CRÓNICA DA NORMALIDADE "Para os heróis­de­passagem concebi ainda um pedestal ao estilo clássico onde, a troco de uma remuneração simbólica, eles poderão, sentados na nobre coluna, usufruir os benefícios de uma glória temporária" Sam, Homenagem ao Caracol e Outras Cerimónias

conseguiste, finalmente eles sabem qual a perfeita engenharia para essa virtualidade. o insaciável é demente e eu aqui que sou um ser humano mais normal misturo-me com outros seres humanos mais normais e damos grandes braçadas na merda da normalidade. mas assim é que está bem. e enquanto eles te esvaziam o furúnculo da imaginação nós ficamos de boa saúde alucinados pela glória prometida mas saudáveis a imitar uma torrente de espermatozóides só que em vez do óvulo teremos o pedestal se o tivermos.


TODOS OS DIAS UM PATO DIFERENTE cf "Um Pato Chamado Harry" Fernando Namora, "Marketing"

estamos irremediavelmente sós na cidade. não estamos irremediavelmente sós dentro do mundo que se mexe e fervilha dentro da cidade. enfim estamos sós por isso vamos ao jardim vamos conversar com patos escolheremos todos os dias um pato diferente. se fosse cisne chamar-lhe-íamos poesia porém é pato: chamemos-lhe verso branco. mas onde se afoga o jardim? que pato? não. a cidade já não tem jardins. a cidade já não tem patos. estamos irremediavelmente sós na cidade.


POEMA PLATÓNICO OU QUASE ISSO

se eu pudesse ser imaterial pensamento estado puro se eu pudesse existir só por pensar existir só em pensamento ser o pensamento pensar compulsivamente nascer do pensamento em pensamento ser menos que ser nuvem, que é matéria ser muito mais subtil que o próprio ar ser puro pensamento... e agora penso e agora pensando paro para pensar penso que vocês já entenderam mas também penso que talvez não tenham entendido. vem cá, discípulo incrédulo: faz um pequeno esforço e desloca-te inspira, abre a boca, faz vibrar essa garganta diz-me que coisa é pensar. não digas, que não sabes não tropeces nessa laje, que te aleijas e depois ainda ficas a pensar na dor e assustas-te com o sangue que é vermelho mesmo quando pensas que sabes que a cor é ilusão. é complicado, pensar. e é triste pensar que não se pensa só com pensamento quando teu joelho esfolado também pensa pensou na dor antes de ti ou do que pensas ser tu e agora inteligentemente está inchado mesmo que tu penses que melhor seria não estar. é triste pensar que a matéria também pensa e não saber se há pensamento sem matéria ossos, sangue, nervos e massa muscular. pensamento é sobre a terra não sabemos se o há noutros lugares. e penso que por fim sei o que sou mas quem estou agora a ser não o saberei pensar. isso, acabou, vai lá fazer um penso e pensa em não voltar a tropeçar.


VLADIMIR MAIAKOVSKI NA PONTE DE BROOKLYN

saúde industrial! aviões que devem ser para todos! lâmpadas eléctricas! (a poesia é o poder do aço temperado pelo homem e a iluminação do mundo) mordo fortemente a maçã do júbilo alegro-me por estar aqui onde quem não quer morrer de fome cai de cabeça nas águas oh tão sujas do moderno rio east e onde os fios eléctricos dão à morte um tom mais brilhante milhares de vóltios a brincar no corpo do condenado. alegro-me por estar aqui onde a gigantesca pata central de manhattan faz amor com a despudorada brooklyn e os comboios subterrâneos também dão razão a freud e os altos edifícios também dão razão a freud. eia maiakovski! quando uma coisa parece ser boa parece ser mesmo boa, não é?


LIMO

há um fermento de medo. e germina dentro do corpo das palavras que não se dizem. fervilha: e é um fogo plasma do silêncio na mais profunda caverna do que é ser revolve o sonho ancestral da solidão. é tenebroso: porque não tem vocábulos eppur si muove onde já não há pensamento labora o limo da razão.


OLHOS

esses dois glóbulos que eu amo chamam-se olhos (são os teus olhos) e nascem lá de dentro da caixa craniana servem para ver são portanto apêndices do sistema nervoso central esses olhos onde bebo a tua alma ou há qualquer anomalia nestes versos


HIPÉRBOLE

escrever poemas é como deitar: pérolas a pombos milho a porcos pão a famintos de justiça.


CIBERLĂ?RIO

descer a cave: ex cavar cavername: cavernar ideia morta na pasta: eis pastar inferno frio: fritar aqui sufoca-se contando excesso dar


poemas de

Elogio da Retroescavadora & Homenagem aos Normais (2002 - 2003)


ICH BIN EIN IRAQUIANO

eu sou um escarro de polvo tu és o escárnio do povo (discurso de ibn salamaleikun - nome fictício para proteger a nossa fonte enquanto tentava derrubar à cabeçada mais uma estátua do grande timoneiro do sério encantador que teria encantado sinbad o marinheiro do apócrifo apocalíptico génio da lâmpada eléctrica daquele que lá se babava enquanto dava de comer aos quarenta ladrões daquele que se pudera axadrezara xerazade e abocanharia nabucodonosor o grande rei de babilónia e que por ser herói e erudito retiraria a côdea do pão codificado de hamurábi para dar ao verdadeiro povo eleito o coiro e a carcassa do corão a caspa e a casta do autêntico profeta o coro e o coral da vera kalashnikov aliás ak47. mas para sermos ainda mais rigorosos ibn salamaleikun bebe vinho come porco e fuma ópio e em pequeno sofreu um ataque de asma sarin antrax varíola e gás mostarda que aliás é o único condimento que ele põe por baixo e por cima dos hamburgers do mac donalds - que a paz do verdadeiro deus seja com ele pois - afirma a gente ímpia - é só dos pobres de espírito a mais certa reservation para esse reino dos céus que talvez já não seja o antigo jardim do éden mas é sem qualquer dúvida um paraíso novo chamado the land of the brave and the home of the free.)


A CAUSA DAS COISAS

a maçã que eu encontrei hoje debaixo da cama só lá foi parar porque eu a deixei cair há dois dias atrás e me esqueci dela até que hoje não sei porquê espreitei para debaixo da cama e lá estava ela a maçã que encontrei hoje debaixo da cama. é claro que se eu não tivesse espreitado para debaixo da cama a esta hora ela ainda lá estaria a maçã que hoje eu encontrei debaixo da cama. só não está lá ainda porque hoje não sei porquê eu espreitei para debaixo da cama e a encontrei. se eu não tivesse tirado de baixo da cama a maçã que hoje encontrei debaixo da cama a esta hora ela ainda lá estaria por baixo da cama. e isto é como tudo na vida.


QUE CÉU INTERURBANO

eu sei que a esta hora (são quatro como se diz da manhã) não deveria comer feijão. mas estou autenticamente com fome (antes deveria dizer verdadeiramente) e por isso abro uma lata de feijão que como (não a lata, o feijão) às colheradas. depois vou à janela fumar um cigarro e é então que noto como se fosse a primeira vez (e é) que o vejo o horizonte de edifícios sobrepondo-se ao horizonte de edifícios que por sua vez se sobrepõe ao horizonte de edifícios. na verdade nunca me tinha apercebido disto: o quão interessante é viver no limiar de uma cidade e poder daqui observar outra cidade e mais adiante outra cidade. as formas geométricas monótonas pela sobreposição deixam de ser monótonas (mas se as visse amanhã diria o mesmo?) (melhor mesmo é vê-las também amanhã) e crescem (como se crescessem) no horizonte da noite cidade sobre cidade até quase florear o céu (que céu interurbano!) digo eu.


AINDA BEM QUE CHOVE EM JULHO

ainda bem que chove em julho pode ser que assim não chova em agosto que é quando eu tenho as minhas férias marcadas isto diz o pobre citadino que não percebe nada de meteorologia popular. se estivesse lá na terra perguntando ao tio júlio augusto este dir-lhe-ia que o tempo já não é o que era mas que de qualquer forma deus é quem manda na máquina do mundo e talvez deus tenha enlouquecido ou então fomos talvez nós que pelas nossas malas artes enlouquecemos ou envenenámos a alma da terra.


ELOGIO DA RETROESCAVADORA

escavas retrospectivamente o meu passado removes a tonelada que soterra os ossos de quem fui a terra que me comeu e há-de comer mais uma vez (lá fora passa um pequeno ser com um avião na mão a mãe afasta-o cautelosamente do trabalho da retroescavadora) e de quem fui no tempo em que voar só nos delírios do padre bartolomeu que nunca inventou o avião de gusmão embora tu saibas que isso é mentira que os fenícios já voavam sobre as rotas do mediterrâneo e vinham atafulhar-nos de comércio e bugigangas úteis a pasmaceira que viria a ser a panaceia nacional já bocage que não sou fez um poema em que laudava o mérito e a audácia do balão de ar quente assim se hoje as pequenas criaturas andam com aviões na mão os aviões voam sim com pequenas criaturas dentro e observam lá de cima o trabalho das mil retroescavadoras que (aqui em baixo) esgravatam o passado removem ossos e entulho até chegar à canalização de água ou de esgoto ou de televisão por cabo arranham ou apenas fazem cócegas na carne viva do planeta e eu finjo acreditar que o que fazem é arqueologia que buscam buscam uma civilização menos tardia que recuperam do pó e da lama um meu corpo anterior os nossos corpos anteriores que o seu labor é profundo em favor da humanidade quando afinal apenas estão a descarnar um tubo útil para a minha rua para que os habitantes da minha rua possam descansadamente excrementar o que no intestino grosso ainda resta do almoço e isso não é trabalho meritório? dizes tu sem dúvida! responde a retroescavadora


A PONTE (PRONTO: SALAZAR)

salazar grande estadista era também um tipo esperto: está-se mesmo a ver que quando construiu a sua ponte do pragal até alcântara era só para bater certo com o nome árabe de alcântara que significa a ponte. se não fosse a ponte a margem sul era hoje um deserto se não fosse a ponte não víamos lisboa tão defronte. louvemos pois salazar o homem perto da perfeição: não sei como há quem defeitos lhe aponte. e aproveitemos para atravessar a ponte várias vezes ora de cá para lá ora de lá para cá. é bela a vista da ponte: faz-nos esquecer os revezes da vida e da portagem que nos coube em sorte e que há só para gratificar a lusoponte pelo favor que nos faz nos meses de agosto em que não desembolsamos. que sobre para as férias: oxalá!


RESPOSTA DA VAIDADE HUMANA AO MENINO JEJUM

o menino jejum nasceu a 25 de dezembro desse ano e veio a falecer (morreu portanto) a 25 de dezembro desse mesmo ano. a sua fugaz passagem por este mundo breve apenas serviu para confrontar a vaidade humana com as humildes perspectivas de quem muito poderia fazer neste mundo se aqui tivesse vivido mais tempo. a vaidade humana encolhe os ombros e diz que viver neste mundo mais tempo sem fazer nada ĂŠ bem melhor que morrer apressadamente sem fazer tudo aquilo que poderia vir a fazer e ainda por cima em jejum.


RESPOSTA DO MENINO JEJUM À VAIDADE HUMANA

aqui do alto assunto a que ascendi vejo bem o quanto és vã ó vaidade humana e só não te perdoo porque tu lá sabes muito bem aquilo que fazes. (aliás é essa a única coisa que tu sabes.) muito eu te poderia ensinar sobre o não ser mas sei também que tu não queres aprender porque aprender implica trabalhar, como bem sabes. apenas te digo que já não estou em jejum pois agora que ascendi a um alto assunto aqui me alimento com todas as palavras do mundo: sou um poeta. e mais não digo porque no alto assunto a que ascendi o meu latim é muito caro. ó vaidade humana que te contentas em ser apenas a vaidade humana: continua a dormir bem vaidade humana que eu fico acordado a aprender e a escrever mas sei que quando me for deitar também dormirei bem embora sonhe sonhos um bocado bem diferentes dos sonhos que tu sonhas ó vaidade humana.


RESPOSTA DA VAIDADE HUMANA À RESPOSTA DO MENINO JEJUM À VAIDADE HUMANA

a inveja exacerbada (companheira de quarto da vaidade humana) acordou ao meio dia e vinte e três a vaidade humana do sonho hiperactivo no qual como habitualmente hiperagia para lhe dizer que do planeta alto assunto a que ascendeste recebera uma comunicação urgente do menino jejum. a vaidade humana refilou um pouco não muito com a inveja exacerbada (a vaidade humana refila sempre com qualquer um ou qualquer uma que a acorde ao meio dia e vinte e três) e por uma vez na sua hiperactiva vida dispôs-se a fingir que ouvia uma comunicação vinda do planeta alto assunto a que ascendeste. depois disse eu quero é que te vás foder e voltou para o seu sonho hiperactivo onde sempre hiperage queira ou não queira o menino jejum ou qualquer outro habitante do planeta alto assunto a que ascendeste.


HOMENAGEM AOS NORMAIS

esta tarde andando a pé de mochila às costas (lá vai o anormal) porque não tenho dinheiro para autocarro veio um gajo pedir-me lume e vender uma arma vê lá não é das grandes é assim das pequenas a mim que não tenho dinheiro e por isso ando a pé e que de qualquer forma não queria comprar uma arma àquele gajo. também esta tarde um gajo motorizado que decidiu mudar de direcção mesmo em cima do desvio para a estrada que eu já estava a atravessar enfiou-me a focinheira do pópó à frente sem fazer pisca mas como eu abri os braços então é assim? ele parou e pediu-me desculpa. afinal era desculpa lá como é que se vai para o alto das barrocas, coincidências... esta tarde estava eu a ir para o alto das barrocas ouço no meio do trânsito um gajo num comercial ligeiro berrar muito comercialmente ainda te vou matar hoje não sei se essa ligeireza era para mim mas se fosse parece que afinal o gajo é dos que não cumprem o que prometem ou então o gajo ainda não comprou a arma ao outro gajo. mas já se sabe que eu tenho a mania da perseguição: mais feliz é o meu amigo joão que esta tarde ao fim da tarde estava a conversar nitidamente a ser gozado por um bando de normais mas olha quando eu lhe disse que não estava para os aturar ele respondeu-me que estava para os aturar. é assim a vida.


MEDITAÇÃO DE UM FUNCIONÁRIO PÚBLICO NÃO INFORMATIZADO

às vezes penso que a solução para a minha vida seria desistir agora a meio, arquivá-la numa pasta de arquivo morto e abrir a segunda gaveta do lado direito a contar de cima de onde tiraria uma outra vida essa novinha em folha como um formulário ainda por preencher. às vezes penso estas coisas mas o pensamento é tão concreto tão vago tão banal e tão absurdo que logo o arquivo na pasta dos pensamentos mortos e desisto de pensar.


SONETO MUITO CONTEMPORÂNEO

explica-me lá essa história do branco é galinha o põe. ou nunca viste um ovo acastanhado? supões talvez que seja um ovo estragado como aqui ao meu lado alguém supõe? ai ai esta cidade (esta idade) que a todos predispõe a consumir sabedoria popular mas num invólucro esterilizado! é o mal de seres um artista contemporâneo: já nasceste estilizado carregado com os vinte quilos de bagagem cultural que a actualidade impõe. e agora vais fazer uma arte agressiva, uma abrupta rotura com o passado inovadora e expedita com os ovos e as caixas de ovos que conseguiste obter na luta com o patrocinador e mecenas que em arte não acredita mas que enfim lá deu a guita (que grande filho da puta!) para teu consolo abriu perto de ti uma loja que vende galinha frita.


ESTE POEMA CHAMA-SE ZAPPING (OBVIAMENTE)

cá estou eu à espera que alguém me traga o loto da felicidade de preferência já contemplado com o grande prémio. essa coisa do erotismo já me começa a enjoar nos noventa e nove canais mais um da televisão por acaso no hallmark passa um filme sobre a tragédia do titanic o pai de todos os naufrágios e no canal história um documentário sobre a queda do muro de berlim a mãe de todas as filhas da mãe queixo-me de quê se afinal o odisseia até me ensina que em nova iorque há quatro ratazanas para cada habitante agora procuro no canal dois mas não me dizem qual é a proporção dos mesmos bichos lá em mafra


PROIBIDO ESTACIONAR: OBRA EM URSO (AMO-TE MICAS)

nesta rua de cacilhas é proibido estacionar porque há uma obra em urso. não sei quem foi o urso que comeu o cê de cão da obra em curso. mas sei que alguém diz que te ama ó micas. será o urso?


HOMENAGEM AOS NORMAIS (SEGUNDA PARTE)

joaquim (para os amigos o quinzinho) rapaz de bom porte, de voz grossa testa baixa e sangue na guelra é um jovem português normal. joaquim (o quinzinho) como qualquer jovem português normal gosta de carros rápidos, gajas descomplicadas e fechaduras fáceis. há dias abriu a fechadura fácil de um carro rápido que (sorte a dele) era de um amigo mas que (azar o dele) espatifou contra um separador central mas não faz mal, que o pai paga. há dias descobriu que a gaja descomplicada com quem andava a foder está mesmo grávida e porque não está cá para aturar putos quer obrigá-la a fazer um aborto mas não faz mal, que o pai paga. ontem mesmo foi apanhado dentro de uma casa de fechadura fácil onde entrou com o justificado fim de arranjar dinheiro para a droga que todos os dias tem de enfiar na veia, coitadinho. agora vão obrigá-lo a fazer uma cura mas não faz mal, que o pai paga. e é este jovem português normal que passa por mim na rua e me diz: tu não vales um caralho. pois não. eu não sou jovem. nem português. nem normal. um jovem português normal, esse sim, vale um caralho.


O ÚLTIMO A RIR

quando joão se riu de fernando, fernando riu-se de joão pensando que assim seria o último a rir. mas andré riu-se de josé que se ria de joão. fernando riu-se de todos e pensou que assim seria o último a rir. mas lucília riu-se de marília e marília riu-se de lucília pensando que assim seria a última a rir. mas fonseca riu-se de alberta que se ria de natália que se ria de proença que se ria de lousada que se ria de albertino que se ria de francisca que se ria de tobias que se ria de cristina que se ria de afonso que se ria de antónio que se ria de baltasar que se ria de ana que se ria de mariana que se ria de marília que se ria de andré que se ria de fernando que se ria de joão. quando todos se calaram era já de noite e passou-lhes por cima um camião cisterna tipo tir que vinha com as luzes apagadas. ficou apenas fernando. mas esse coitado agora já não tinha ninguém de quem rir.


poemas de

A crรณnica da minha apostasia (2007 - ... [in progress])


NORTE POR NOROESTE

nestes longos campos de milho abrasados pelo fogo nestes largos campos de milho ao sol de agosto nestes rasos campos de milho sedentos de vingança nestes áridos campos de milho sem uma gota de orvalho nestes intermináveis campos de milho que se alongam só no meu pensamento nestes oh tão indolentes e tão absurdamente falsos campos de milho descobri finalmente o quanto a minha vida se resume a uma aparentemente interminável chatice nestes sinceramente monótonos campos de milho e não há uma merda de um avião (de preferência biplano) que venha para cima de mim e me faça pelo menos levantar o rabo da cadeira e correr nestes tão absurdamente crus campos de milho, passa-me aí as pipocas.


ULISSES O ROBOT FILOSOFANDO "As minhas palavras elevam­se mas os meus pensamentos ficam presos à terra: palavras sem pensamentos não chegam ao Céu." Shakespeare, 'Hamlet'

voltar a ser humano ou nunca mais voltar a ser humano saber sulcar a terra das palavras carpinteirar seu barco e navegar no mundo imenso e duro ser como num poema de Sophia o pensamento hábil que floresce semântico do plácido trabalho ou enxertar em nós o silicone do tudofeito&prontoaengordar a timidez do flácido neurónio, eis a questão.


ANZOL

ver ou n達o ver saber ou n達o saber morder ou n達o morder eis a quest達o:



Edição Debaixo do Bulcão Abril de 201 6 (imagem: Luisa Trindade 1 997)


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