Hum Thema Para Assessinos

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Revisão Ana Pessoa Projeto Gráfico Débora Escudeiro Diagramação Débora Escudeiro Capa Débora Escudeiro Ilustrações Pessoa Araújo

Xavier, L. F., 1989 Hum Thema Para Assessinos / L. F. Xavier - 1.ed. - Pernambuco : Editora Fictícia, 2015. 188 p. ; 20,7 cm. : il. ISBN 686-25-6974-251-4 1. Ficção Brasileira. I. Título 13-98563.

[2015] Todos os direitos desta edição reservados à Editora Fictícia Ltda. Rua Alguma no Recife, 93, 2º andar 33451-810 - Bairro do Recife Recife - Pernambuco Tel: (81) 3454-1790 www.editoraficticia.com.br

CDD: 339 CDU: 823.211-4


O título do livro, Hum Thema Para Assessinos, bem como os títulos dos capítulos, possuem uma grafia particular que, a princípio, pode parecer um mero erro de ortografia, mas não é o caso. Todos os títulos aqui expostos, assim como alguns trechos de cartas e/ou documentos, além de certos termos, são grafados na forma usada pelos feiticeiros, que é um pouco diferente do Português contemporâneo. O Português escrito no mundo dos feiticeiros é uma mistura de espanhol, Português antigo, Latim e características próprias da sociedade artífice. Cada Tradição possui suas particularidades e maneirismos próprios, sendo a normatização da língua extremamente variável (para não dizer nula). O leitor deve levar em consideração, portanto, que apesar da aparente grafia incorreta, as palavras estão corretas, inseridas em seu contexto.





“auras que já se foram grato pela graça a graça que eu acho em tudo que fica por tudo que passa” paulo leminski

− Qual é a história de Monte Merínea, Mãy Vélia? Já haviam me perguntado isso cento e uma vezes, e me perguntariam cento e uma vezes mais se fosse necessário, até o dia em que eu deixasse de existir. Contudo, minha resposta, entre uma baforada e outra no cachimbo, era sempre a mesma: − É uma longa, longa história, criança. Longa até demais pro meu gosto. Mas, assim como todas as vezes anteriores, minha resistência inicial não seria suficiente (nunca seria suficiente) para fazê-los parar de perguntar sobre aquela história antiga, quase que um mito agora, quase, quase esquecido por todos, à exceção de mim e outros poucos. Recostada na velha cadeira de embalo rangente, a sala me parece escura, apesar do som dos pássaros na janela me dizerem que é dia. Meus olhos não são mais os mesmos, e minha verdadeira visão se limita ao meu eterno compa9


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nheiro, meu cajado Meáren, que descansa, assim como eu, apoiado na cadeira. Também meu Meáren está cansado da vida. Logo ele, que deveria atravessar o tempo com indiferença, assim como sua árvore-mãe o faz (ou fazia, pois já não mais sei se ela permanece cravada pelo tempo como nós ou se já pereceu diante dalgum homem). A criança sentada aos meus pés não irá embora, contudo, para deixar-me sozinha com minha escuridão e meu Meáren. Não, ela irá insistir. Como toda criança, faz as perguntas que nenhum adulto ousaria proferir. − Qual é a história, Mãy Vélia? Vai, conta! Meu bem, são tantas as histórias de Monte Merínea!... Não existe apenas uma. Nunca existiu. Sobre coisa alguma, aliás. Nunca. Por onde deveria eu começar, então? Quando os três Grandes chegaram ao Novo Mundo e iniciaram a construção ambiciosa da Escola? Ou mesmo antes, em suas viagens e batalhas nas áfricas e arábias, e como vieram a se tornar tão próximos? Próximos o suficiente para irem contra todas as tradições e ousarem algo novo... Ou quem sabe até antes disso, antes mesmo dos fundadores sonharem em nascer... Que tal começar por aí, quando a tribo dos Arambarés chegou ao sopé das montanhas Merin e Nínea e lá descobriu todos os fascínios daquela terra oculta pela neblina e pela mata, aonde um Deus Caído dormia? Por onde começar, me diga? − Comece pelo começo, oras. Todos sempre dizem a mesma coisa, o que apenas me lembra de como viver é um ato repetitivo e que, após alguns séculos, torna-se pesado demais, longo demais, igual demais para qualquer um. Quantas gerações de crianças já se sentaram aos meus pés e fizeram aquela mesma pergunta? Já não consigo lembrar... 10


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− Diga-me você qual é o começo, então, criança − falo logo, pois a cada ano que passa, mais facilmente perco-me em pensamentos, e me afasto tanto da realidade que esqueço o assunto da conversa. Devaneios senis... A criança pega em minha mão ressequida pelo tempo − sua pele rosácea contrastando com a minha pele negra. − Quando os fundadores anunciaram que a escola estava pronta, que tal? − essa é a sugestão. Essa sempre é a sugestão. Era isso que todos consideravam o “começo”. As palavras. As formalidades. O palco. Suspiro. A neblina de meu cachimbo cobrirá a neblina em meus olhos. É o único motivo que ainda me faz fumar, após tanto tempo. A erva já se tornou amarga demais em minha boca para trazer qualquer prazer. O vício dissolveu-se no tempo. Nem o amor, nem o vício resistem ao tempo. Tusso. Passo uma mão pelos cabelos outrora escuros, agora brancos. Estão curtos, também. Não gosto assim, mas não consigo me lembrar quem os corta, quem nunca os deixa crescer soltos em minha cabeça e cobrir meu rosto e meus ombros... Engraçado como não me lembro disso, mas me lembro de todo o resto. − Muito bem. A inauguração de Monte Merínea. − Com Cepheus Phoenicis ainda fiel, a inteligente Bella Apus ainda viva, e Synius Seraphim ainda são! − Exatamente, minha criança. Exatamente. Fecho os olhos e lembro. Lembro com uma clareza que nenhuma outra memória minha tem. Lembro com uma vivacidade que o presente não tem. Lembro, lembro, lembro... E lembrar é tudo o que posso fazer. Pelo incalculável terreno de Monte Merínea, a mata atlântica que era a floresta Opara se estendia, cobrindo 11


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quase toda a totalidade da área. Quando era inverno, ou quando era verão, ou quando havia um incêndio em algum ponto da floresta, sempre se refletia no Instituto. Quando algo de ruim acontecia, Monte Merínea perecia junto com Opara, e quando as árvores davam seus frutos e os animais multiplicavam-se fartamente, Monte Merínea crescia com eles. Era assim que era, e era assim que devia ser. O Instituto conseguiu unir em seu âmago todas as forças que o cercavam, e por isso, não havia nada no mundo igual a ele. Os poderes dos homens feiticeiros, dos homens que eram apenas homens, dos cendis, dos centauros e de tantas outras criaturas que numa noite de lua crescente se uniram para abençoar a construção... Tudo, tudo estava ali. Talvez a única força que não tenha contribuído para o nascimento de Merínea tenha sido a Floresta. Opara era densa, não gostava de visitas, e cercando Monte Merínea e seus casarios, quase não se continha diante das construções e pátios – tinha o impulso de tomar novamente para si o terreno onde tão penosamente foi-se construído o Instituto. Opara foi a única força indomada, a única força poderosa demais para ser subjugada aos desejos humanos, por mais nobres que fossem. Seu instinto era forte, mas mais forte era o pacto selado entre os fundadores e aqueles que habitavam a floresta... E sem eles, Opara não era tão forte quanto deveria ser. Depois do Pacto, a floresta, enfim, silenciou-se. Então, por entre o verde quase indomável da floresta, edificou-se o Instituto Monte Merínea de Arte Trínea. E a lembrança, hoje, é tudo o que me resta. Deveria eu contar-lhe que a História é apenas uma história? Dentre tantas as histórias de Merínea, por que a dos fundadores? Por que não me pergunta ela sobre outras histórias? Sobre os Nouris, talvez, e suas traições, e de como foram traídos também. Ou mesmo Iglasius, cuja idade nem 12


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mesmo ele se lembrava... Por que não a história da outra Bella de Merínea, que não Bella Apus? E se não eles, por que não a história de Marí, a primeira cendi a ser mencionada em toda essa grande História? Tantos foram aqueles que passaram e viveram em Monte Merínea... Tantos foram os feiticeiros que deram suas vidas por aquele lugar, e tantas foram as vidas roubadas por Monte Merínea – a minha, por exemplo. Todos os papéis podem ser queimados, todo aquele lugar pode ruir, todas as pessoas podem morrer... Mas enquanto eu lembrar – enquanto alguém lembrar – estará viva. Monte Merínea. E todos os fantasmas que abriga. Por que, dentre tantos personagens, ela pergunta sobre os fundadores? Por que não pergunta sobre mim, e sobre a história que nunca contei? Por que deveria eu contar-lhes o que querem ouvir?

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“[...] O silêncio é tão largo, é tão longo, é tão lento Que dá medo... O ar, parado, incomoda, angustia... Dir-se-ia que anda no ar um mau pressentimento. Assim deverá ser a natureza um dia, Quando a vida acabar e, astro apagado, a terra Rodar sobre si mesma estéril e vazia. O demônio sutil das nevroses enterra A sua agulha de aço em meu crânio doído. Ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra... [...]” Desesperança, Manuel Bandeira


Pelos corredores vazios e empoeirados, um grito ecoou. Raiva. Frustração. Amargura. Netuno. Seus sentimentos foram mais fortes do que o silêncio imperativo da noite e da cumplicidade do escuro. Seu transe foi quebrado e o cajado caiu, com um baque seco, no chão de pedra fria. Fracasso foi a palavra que ecoou com ele. As quatro velas que demarcavam o círculo à sua volta apagaram-se. A sala foi engolida pela escuridão, como se essa tivesse rastejado rapidamente pelas paredes do aposento como um véu silencioso e vivo. Mas Netuno respirou fundo, com alívio, pois não se incomodava com aquela intrusão. Pelo contrário, era bem-vinda. Pelo menos naquele momento. Ainda sentia a cabeça girar pelo abuso que fizera de sua própria energia. Havia fracassado. Mais uma vez. Seus sentidos hiper15


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sensibilizados pelo transe ouviam as aranhas tecendo suas teias no negrume da sala, vagamente cientes do ritual que acabara de se suceder. Antes que pudesse pensar no que fazia, chutou o pequeno caldeirão de ferro de onde o incenso ainda queimava. Cinzas perfumadas espalharam–se pelo chão empoeirado, eriçando a presença das criaturas noturnas. O cajado Meáren, ao chão, vibrou com a manifestação repentina de Netuno, que baixou a cabeça. Não perca o controle, Netuno Lencastre. Mas não era tão simples. Não importava o quanto tentasse, não importava quantos diferentes rituais fizesse ou quantos feitiços invocatórios sussurrasse pelos corredores, nada funcionava. Não sentia nenhuma faísca no ar, nenhuma vibração ou energia. Nada. Era como se o que procurava estivesse morto. Mas Netuno não se enganava; sabia que estava vivo, sabia que estava apenas adormecido em algum lugar... Talvez emparedado em alguma das construções mais antigas, talvez guardado entre os fólios na Bibliotheqa ou até, quem sabe, enterrado dentro da floresta... Era apenas uma questão de saber onde procurar, de proferir as palavras certas... Porque estava viva. Disso tinha certeza. Uma maldição não morria nunca, não quando preservada num objeto. Netuno não desistiria de despertá-la. Apesar da pouca idade, conhecia alguns mistérios ocultistas; mais, talvez, do que a maioria dos feiticeiros. Afinal, carregava o sobrenome Nouris, e havia sido autodidata na tradição Ocultista desde muito criança. Sua memória fotográfica nunca lhe falhara. Netuno era superior; principalmente entre os feiticeiros daquele lugar. Monte Merínea. Instituto Monte Merínea. 16


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– Esses mentecaptos de tríneos – sussurrou com asco, enquanto agachava-se para pegar seu cajado Meáren, de superfície lisa e escura –, achando-se muito especiais por cometerem o sacrilégio máximo de misturar as Tradições... Dessa vez, o cajado não retrucou. Enquanto o acariciava, Netuno suspirou. – Eu sei que você está cansado. Eu também estou. Mas não podemos tolerar sacrilégios assim... – a madeira de que era feito o cajado Meáren perdeu seu brilho, e Netuno escutou atentamente suas reclamações. – Eu sei, eu sei. Misturar nossa Arte, nossos segredos... Misturá-los às impurezas e superstições de Naturalistas e Elementistas... O cajado Meáren ficou quente em suas mãos, igualmente raivoso. Sabemos que nada de bom pode surgir disso... E ainda há a Vingança... Sim, pensou Netuno, ainda há a Vingança. Suspirou pesadamente mais uma vez e olhou à sua volta. O pequeno aposento era empoeirado e abandonado, teias de aranha estavam dependuradas nos cantos escuros e no teto alto. A única janela do lugar era baixa e comprida, sua vidraça de alabastro quebrada, permitindo a entrada do vento quente daquela noite de verão. A escuridão era total, já que a noite sem lua lá fora não colaborava nem com sua tênue iluminação natural. O cheiro de bolor era forte, e a pouca mobília quebrada que restava ali rangia a qualquer toque ou vento mais forte. Cada passo que Netuno dava marcava o chão empoeirado com o contorno de seus pés descalços. Um retrato do abandono e do fracasso – e ao se dar conta disso, apertou seu cajado fortemente com ambas as mãos, como que para ter certeza de que ele ainda estava ali. Aquela sala era muito igual ao estado de espírito de Netuno, o que não lhe agradava nem um pouco. Contudo, sempre teria seu cajado Meáren consigo, não importava o 17


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que acontecesse. Ele era uma parte de si. O poder de Netuno estava selado naquela madeira escura. Seria uma eterna companhia, seu vínculo com a Arte e todas as outras coisas inclassificáveis além desse mundo. E no escuro, segurando seu Meáren, Netuno podia sentir o elo entre eles ainda mais nitidamente, apertando um nó em seu peito – sensação que apenas reconfortou seu espírito e afugentou suas dúvidas. Teria sucesso. Havia criado aquele vínculo desde cedo. Por isso, sabia que teria sucesso no que quer que fizesse como artífice. A dor de cabeça aguçou-se um pouco mais, e Netuno levou uma mão à têmpora, fechando os olhos. Havia abusado de suas forças. Aquela saleta havia sido palco de longos, complexos e cansativos rituais invocatórios. Era o único lugar seguro que Netuno havia encontrado para esse propósito. Afinal, precisava ter certeza de que ninguém ouviria suas palavras ecoando nos grandes espaços vazios do prédio. Suspirou mais uma vez, encostando a cabeça no seu cajado, em busca de apoio não só físico, mas também mental. A dor de cabeça diminuiu levemente. A verdade é que Netuno, apenas com sua tradição Ocultista, não conseguia transpassar o que quer que estivesse selando a maldição. É certo que não era um simples feitiço preso numa caixinha de joias, e sim uma maldição, presa em algo muito mais poderoso, mas Netuno também não era medíocre. Tinha capacidade para se apossar de uma maldição, ou pelo menos assim pensava. Esfregando o rosto, aproximou–se da única janela da sala e olhou o negrume da noite lá fora, que se estendia pela propriedade do Instituto. A exceção dos retângulos de luz recortados no elegante casario que era a Caza dos Lentes, todas as outras construções estavam apagadas. A sinfonia noturna dos insetos abafava qualquer voz humana. As mon18


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tanhas gêmeas erguiam-se além da propriedade de Monte Merínea, um recorte da mais profunda escuridão contra o céu estrelado e sem lua. Dois pequeninos pontos de luz, um em cada montanha, delatavam a posição das cabanas dos Vigilantes (ou pelo menos a posição que eles queriam fingir que estavam). Era uma noite quente de novembro. O primeiro ano de Netuno no Instituto estava acabando, e até o momento, todo o seu progresso se resumia a estar frequentando o lugar. Já havia percorrido talvez todos os corredores de todas as pomposas construções coloniais que compunham Merínea. Enquanto perambulava feito um fantasma por salões e salas de aula vazias, entoava seus cânticos evocativos, no compasso da batida de seu cajado Meáren no chão de pedra... Mas nada respondia. Netuno sentiu um calafrio. Era mentira. Alguma coisa, sim, havia respondido suas evocações, mas não o que procurava. Era algo desconhecido, mais forte do que qualquer energia que já havia sentido. Uma força que aparentemente se sentiu ofendida por suas buscas. Meses atrás, numa madrugada, quando procurava a maldição próxima à ponte do rio Ereima, Netuno sentiu aquela força invisível pela primeira vez focada exclusivamente em si. Não lhe agradou nem um pouco. Monte Merínea podia ser desprezível por seus hábitos sacrílegos, mas certamente escondia muitos mysterios em sua propriedade... Disso, Netuno Lencastre nunca duvidara. É engraçado como um ato errôneo carrega tanto poder consigo... Baixando a cabeça, passou a mão pelos cabelos pretos, afastando a franja do rosto. Caminhou até a janela, o ar quente da noite servindo–lhe para afastar seu estado ainda sensível de pós-transe. 19


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Não havia movimento algum pelos terrenos de Monte Merínea. O prédio principal, no centro da propriedade, tão distante, estava imerso em escuridão, assim como os dois jardins que o ladeavam. O pátio central, que se estendia à frente da construção, era um grande círculo preto, como um lago de água estática contra a grama do terreno. A fonte no centro do pátio ainda devia jorrar água, mas Netuno não conseguia ouvi-la, e do outro lado, a Casa dos Lentes tinha apenas duas ou três janelas iluminadas. Vizinho de onde Netuno estava, o elegante casario que abrigava os quartos dos aprendizes tinha quase todas as suas luzes acesas. Eles deviam passar a madrugada estudando, como nas noites anteriores. Ela tinha que voltar logo para a Caza antes que dessem por sua falta. Netuno já havia sido pega duas vezes, não queria levantar mais suspeitas. Ela encostou o rosto em seu cajado Meáren e sussurrou–lhe: – Nós vamos encontrar, Lóc. Nós vamos encontrar. Mas a verdade é que não sabia mais ao que recorrer para encontrar a maldição dos Nouris, tão bem escondida dentro de Merínea. Lóc sentia a insegurança de sua portadora, mas manteve-se silencioso ao seu lado. – Ano que vem, nós vamos encontrá-la. – e Netuno apoiou os cotovelos no parapeito da janela, pensativa. – É só uma questão de tempo. Vamos descobrir o que fazer para encontrá-la, e quando a tivermos em nossas mãos... Nós vamos acabar com esse lugar, assim como eles acabaram com nossa família... É apenas uma questão de tempo. – ela afastou-se lentamente da janela, protegendo o rosto da tênue luz exterior. – Apenas uma questão de tempo. Silenciosamente, quase como um gato, Netuno esgueirou-se pela janela para fora do bloco compacto de pedra que era o Armazém de Merínea. A construção de três an20


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dares era grosseira e medieval em comparação aos outros belos prédios do Instituto: a Caza dos Aprendizes ao lado, há apenas duzentos metros, tinha uma bela fachada colonial, ricamente trabalhada. Nem mesmo as quatro torres do Armazém conseguiam dar alguma elegância ao prédio: pareciam solitárias e rústicas. Netuno sentiu uma imensa empatia por elas, desde a primeira vez que as vira contra o céu vespertino que a recebera em Merínea. As torres, porém, continuariam estáticas em seus lugares – Netuno tinha uma missão a cumprir. Atenta e cautelosamente, a garota olhou para todos os lados, certificando-se que era seguro afastar-se da parede de pedra. Ambas as construções, o Armazém grosseiro e a elegante Caza dos Aprendizes, lado a lado, apesar de distantes, abriam-se para a grande circunferência de pedra lisa que era o pátio Central. De sua posição próxima à janela quebrada, Netuno já podia ouvir novamente o som da fonte jorrando água, apesar de não poder vê-la. Esse era o grande problema da lua negra em Merínea: alguém poderia estar de pé, no pátio Central, observando os movimentos da garota, e ela jamais saberia. Quase não havia iluminação exterior no Instituto – as exceções eram esparsas lamparinas dependuradas nas fachadas dos casarios, e o pátio interno da construção principal, o chamado Pátio do Pau D’Arco. Fora isso, a escuridão era absoluta... Era quase como algo proposital, para evitar perambulações noturnas pela propriedade... Ou para atrair as forças da noite, tão afugentadas pela luz. Contudo, Netuno era uma feiticeira esperta. Uma feiticeira esperta com um cajado esperto. Lóc avisaria de qualquer energia que sentisse concentrada nela. As luas negras podiam ser um problema, mas também eram uma vantagem, pois a encobriam da mesma forma. 21


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Era nessas noites que Netuno se sentia mais a vontade para procurar pela maldição a céu aberto, levando consigo apenas um lampião amarrado ao seu Meáren. Naquela noite, porém, ela não trazia consigo nenhum lampião. Ainda com cautela, deu os primeiros passos para longe do Armazém, seguindo o meio-fio da calçada de pedra. Isso a levaria direto para a porta da frente da Caza dos Aprendizes – a princípio, podia não parecer uma boa ideia, mas Netuno aprendeu da pior maneira que, em certas épocas do ano, era uma boa ideia. Naquela noite, por exemplo, todos estavam estudando – em suas camas, ou no quarto andar do casario. Nunca no salão do térreo, que há essas horas deveria estar deserto. Por alguma razão, o ambiente não lhes agradava. Netuno apressou o passo, confiando que os ouvidos de todos não estavam atentos a ruídos noturnos, e precipitouse quase que nervosamente para a porta da frente. Ela andava a passos largos, seu Meáren dando-lhe apoio e fazendo um suave toc quando tocava a calçada de pedra, a intervalos periódicos, acompanhando os passos de sua portadora. Ela estava quase lá. Na noite de verão, seus pés nus tocavam pedra fria, o que fazia os pelos da nuca da garota se eriçarem – ou talvez fosse o medo. Seus passos eram rápidos e leves. Seu porte pequeno a ajudava bastante nessas horas furtivas. Já podia divisar os três degraus que levavam à porta da frente, iluminados pela tênue luz amarela de dois candeeiros ladeando a entrada. Mais um pouco e estaria livre de suspeitas. Empunhou seu cajado para abrir a porta e deu um passo mais largo para subir o primeiro degrau e – O que faz a essas negras horas fora da Caza, jovem aprendiz? Netuno sentiu como se todo o sangue tivesse sido dre22


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nado de seu corpo – parou com um braço erguido, segurando o cajado agora gelado de medo, e um pé descalço ainda no ar, ensaiando pisar no primeiro degrau da escada que levava à sua porta da salvação. Ela havia sido pega. Das sombras do prédio, uma silhueta curva e barbuda surgiu, apoiando-se em seu cajado, que de tão apagado nem sequer parecia um Meáren, um cajado com alma. Netuno podia jurar que não havia ninguém ali há dois segundos, mas lá estava o velho, em carne, osso e Meáren. Ela estava levemente familiarizada com a voz roufenha e sorridente, mas não o suficiente para associá-la a nenhum nome ou rosto. Foi apenas quando o velho homem aproximou-se de uma das janelas e deixou-se iluminar pelas lamparinas lá de dentro que ela percebeu quem era. De olhos muito pequenos e negros, nariz quebrado, cicatrizes transformadas em rugas, um sorriso de canto. A longa barba, toda branca, era amarelada próxima à boca, devido ao fumo, e sua pele era visivelmente áspera e queimada de sol, fazendo seu tom cor de oliva do rosto fulgurar à luz dos lampiões. Os longos cabelos estavam amarrados desajeitadamente numa longa trança, coisa que Netuno desaprovava acima de tudo, até das alpercatas de couro que ele usava. Ele sorriu-lhe um sorriso enrugado, disfarçando sua bisbilhotice. O porteiro. A porcaria de um porteiro de Monte Merínea. Isso pelo menos explicava o Meáren apagado de vida. Ele era apenas mais um daqueles tolos que nunca conseguiram falar com seus Meárens... E terminou como um porteiro do Instituto. Típico. Aliás, o único porteiro, pelo que ela se lembrava. O que ela não se lembrava era o nome desse porteiro enrugado. – E então? Jovem aprendiz? – ele insistia, o insolente. 23


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Outra coisa que não lhe vinha à memória era desde quando ela, uma Nouris e aprendiz de Monte Merínea, dava satisfações a porteiros. Netuno decidiu ser educada, contudo. Pelo menos para seus padrões de educação com inferiores. Vestindo sua máscara de superior indiferença, e ciente de que estava às portas da Caza e que qualquer sussurro um pouco mais alto poderia delatá-la, ela retrucou, sussurrante: – E você? Por que não está guardando o portão, Velho guardião? – Ela tentava recuperar sua compostura, escondendo-se na sombra, mas alguma coisa na forma despretensiosa do velho a fazia sentir-se como uma criança pega com a caixa de fósforos na mão. A princípio, ele nada respondeu, apenas encarou-a. Netuno, impaciente, estava prestes a falar novamente quando, para seu total espanto e pavor, o velho abriu a boca e gargalhou. Uma gargalhada de proporções titânicas, sem nenhum pudor para com a noite silenciosa ou a delicada situação da aprendiz. Netuno teve o ímpeto de calá-lo com um golpe de seu Meáren na cabeça do velho, tal o pânico que sentiu. Por todos os deuses, não era possível que aquela gargalhada tivesse passado despercebida dentro do salão! Ela sentiu ódio naquele momento, quase irracional. Contudo, por baixo do ódio, um sentimento de vergonha brotava-lhe. Um sentimento de ridículo. Ela havia dito alguma coisa estúpida? Pois o velho ria-se como se ela tivesse dito, e se havia uma coisa que Netuno Nouris Lencastre II não admitia era bancar a estúpida, em qualquer circunstância. O porteiro, porém, parecia considerá-la bastante estúpida, pois sua gargalhada prolongouse além do bom senso, deixando a garota congelada de medo e raiva. Depois que a risada finalmente cessou, ele voltou 24


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a olhá-la. Ela ainda usava a máscara da indiferença, a única coisa que denotava seu turbilhão de sentimentos eram as bochechas levemente rosadas. – Bem, sim. – ele pelo menos sussurrava agora – E você deveria estar na Caza. Os aprendizes são proibidos de perambular pelas noites sem Festim, não são...? – e piscou para ela. O imbecil queria ganhar sua confiança. Tá certo. Ela cruzou os braços, segurando mais firmemente seu cajado. Ambos estamos infringindo as regras, Netuno, pergunte o que ele fazia. – Então estamos os dois infringindo as regras – observou ela. O velho guardião deu de ombros. – O que fazia espreitando por aqui, Velho Porteiro? Ele sorriu marotamente. – Se você não perguntar, eu não pergunto. Netuno sentiu-se frustrada. Agora ela teria uma maldita duma dívida prendendo-a àquele velho doido?! O que faço? Insista. Você está na vantagem, é uma aprendiz. Ele não passa de um porteiro. – Considerando que eu sou uma aprendiz e estava apenas esticando as pernas perto da Caza, acho que a filosofia do “se você não perguntar, eu não pergunto” não se aplica aqui – seu tom era insolente, apesar dela não se sentir tanto na vantagem assim. O porteiro deu de ombros e tirou algo do bolso da capa escura. – Você quer raiz de gengibre? Faz bem pra garganta – e mostrou os cubinhos da iguaria dentro de um saquinho de pano encardido. – O quê? – ela não mais sussurrava, sibilava agora. – Será que não entendeu?! Eu disse que não tenho nada com 25


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que me preocupar se quiser delatar você, Velho! Ele suspirou. – Pena. É uma raiz de gengibre especial. Foi cultivada pelos cendis. Netuno ainda levou dois segundos para absorver isso. – Você é surdo, é?! – involuntariamente, ela levantou a voz. Havia definitivamente perdido a paciência e sua máscara havia ido junto. – Minha jovem, – começou ele, mordendo um naco de raiz, – se eu fosse surdo, nesse momento, seria a pessoa mais abençoada do mundo. – Netuno ergueu uma sobrancelha, confusa. – Aí eu não teria que ouvir essa sua voz de taquara rachada se esganiçando. Ela sentiu o queixo cair. E ele, lentamente, mancando e apoiando-se em seu cajado, afastou-se dela. Netuno estava pronta para correr na direção do porteiro e pedir satisfações, mas o pior ainda estava por vir. Virado de costas para ela, andando lentamente, ele ainda murmurou: – Eu sei o que você está tramando, Netuno Nouris. E é melhor tomar cuidado... Você pode ser boa, mas não é boa o suficiente. Pela segunda vez naquela noite, Netuno sentiu seu sangue evaporar de seu corpo. Mas o Velho Porteiro ainda não tinha terminado. Ele parou de andar e, ainda sorrindo, olhou por sobre o ombro para uma Netuno estupefata. Seu sorriso se alargou. – Mas eu ainda tenho esperança em você. Ela sentiu um nó na garganta, que a impedia de lançar um feitiço pelos ares direto nas costas do velho. Atordoada, olhou de relance para seu cajado, que havia emudecido ao seu lado. E agora, Lóc? Quando Netuno olhou novamente para o velho Guardião, porém, ele já não estava mais lá. 26


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Havia sumido, como se fosse um fantasma. Ou um bom feiticeiro. O que era mais improvável ainda.

Antes que pudesse ter qualquer outro impulso, ela entrou em disparada no salão da Caza, onde nenhuma alma era vista. O que era uma taquara rachada, afinal de contas? Suspirou. Mal havia chegado, e uma dupla de aprendizes descia pelas escadas. Era apenas Lionel e Eulália, noviços como ela, esta última cumprimentando-a com seu típico sorrisinho açucarado. Netuno teria revirado os olhos, mas a adrenalina ainda era muita. Ela apenas se contentou em enviar uma prece silenciosa para todos os deuses que conhecia, por não ter sido pega pela dupla, e seguiu seu caminho, passando despercebida pelos outros aprendizes, e enquanto subia as escadas, fazia seus cálculos mentais com seu Meáren. A noite em si havia sido infrutífera, e só lhe acrescentara mais um problema, que era simplesmente um porteiro louco do qual ela não lembrava nem o nome. Seu Meáren estava exausto, suas últimas ervas para o feitiço de invocação haviam-se acabado... E o ano letivo terminava em um mês. Ao percorrer o corredor do primeiro andar, ouviu várias vozes falando sobre girar o cajado quarenta e cinco graus para a esquerda, ou concentrar–se com o lado direito do cérebro, ou até das cuecas expostas de um certo Artur... Mas todas as conversas passaram-lhe como brisa pelos ouvidos. Quando alcançou seu quarto, Netuno encontrou o aposento às escuras: as sombras de baús abertos, roupas espalhadas e cinco beliches eram evidentes mesmo 27


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na penumbra. Para seu alívio, porém, as garotas com as quais dividia o quarto não estavam. Os deuses receberam mais uma prece de agradecimento por isso. Lentamente, ela percorreu os últimos metros que a separavam de sua cama e, sem nem sequer trocar de roupa, jogou-se em cima dela, agarrada com seu Meáren, que parecia amaciar-se ao seu lado, convidando-a a abraçá-lo. Um ano havia se passado. E tudo que ela conseguira fora conhecer intimamente o fracasso. Cansada, ela acendeu a vela na sua mesa-de-cabeceira e puxou uma carta – uma pequena, breve carta – de debaixo do colchão. Suspirou profundamente e começou a lê-la, apesar de já conhecer aquelas palavras de cor.

Neptuno, Podes neggar, mas eu sey a verdadera razãom de estar en Muonte Merynnea. Nãom vai consseguir nada a nãom ser arruinarse e aa famiglia, já tãom arruinada. Sabes qe nãom vou ayudar, nãom me emvolvo más nisso. Sei qe nãom vais respponder, mas já dise o qe devia diser. Desista, antes qe seja tard. Y.N.

Ela fechou os olhos, seu rosto transformando-se numa carranca de ódio. Não conhecia tia Yordana pessoalmente, mas sentia que podia ouvir a voz da mulher falando aquilo, após anos trocando cartas com ela. Lentamente, Netuno virou-se mais uma vez para sua mesa-de-cabeceira e aproximou uma ponta da carta à 28


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chama da vela. Lentamente, o fogo consumiu o papel amassado, e mais lentamente ainda, Netuno Nouris Lencastre II sorriu. – Você não passa de uma desertora maldita – ela cuspiu as palavras, possuída por ódio. O fogo apagava com sua força os vestígios daquela carta, tão avassalador quanto a determinação de Netuno. – Você está muito errada. E eu vou provar. Depois que as palavras de Yordana foram reduzidas a cinzas, Netuno abraçou-se com seu Meáren. Não há mais nada a perder... Nossa famiglia não tem mais nada a perder. – Eu sei... – sussurrou ela no escuro, encolhendo-se em sua cama. Naquela noite, não se ouviu som algum vindo do quarto número cinco no primeiro andar, mas se alguém estivesse ali para ver, teria observado um leve tremor vindo da única ocupante do ambiente. Mas não havia ninguém.

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Na pequena cidade de Ibacapora, litoral pernambucano, Yordana Nóbrega acordou sentindo as pontas dos dedos queimarem. Ela sentou-se na cama, nervosa, esfregando suas mãos, tentando aliviar a dor, mas não adiantava. Os longos cabelos negros e cacheados caíam–lhe sobre o rosto, suas pontas tocando a pele ardente. Há milhares de quilômetros de distância, sua carta ardia nas mãos de Netuno. – Maldita! – sibilou ela, levantando-se de supetão e correndo para o banheiro. Antes mesmo de acender a luz, ela abriu a torneira e molhou as mãos. Quando a dor aliviou-se, ela finalmente acendeu a lâmpada e observou a água caindo em sua pele avermelhada, tornando-se vapor ao tocar a superfície quente. É claro, não havia sinais de queimadura, apesar da dor e da vermelhidão. Era uma sensação extrassensorial, Yordana sabia, mas não deixava de ser agonizante. Enquanto 30


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enxaguava as mãos, tentando aliviar a sensação de ardência, a mulher sabia o que aquilo significava. Netuno havia ignorado seu aviso, e agora, Yordana acabara de descobrir que fim sua carta havia levado. Cinzas. Ela fechou a torneira e apoiou as mãos no tampo de cerâmica, baixando a cabeça e respirando fundo, aliviada. Feitiços como aquele podiam produzir sensações extremamente reais, mas eram rápidas. Graças a todos os deuses. Tantos anos de monotonia haviam desacostumado Yordana Nouris a sentir a Dor. O tempo havia amolecido seu ser. Ela ergueu a cabeça e olhou-se no espelho. O tempo também havia talhado seu rosto. O que ela via não lhe agradava, mas era provavelmente porque estava sem maquiagem e com o cabelo desgrenhado. Geralmente, evitava se olhar no espelho assim. Dele, uma mulher de quarenta e poucos anos, bela, mas cansada, olhava-a de volta, com os mesmos olhos azuis-escuros e pesados. As leves marcas de expressão que detectava próxima a área dos olhos e da boca eram praticamente imperceptíveis pela manhã, quando Yordana usava todos os truques que conhecia para rejuvenescer. Uns poucos fios de cabelo cinza surgiam... muito poucos, até para sua idade. Não havia manchas de idade em sua pele, e ela sabia que não haveria por muito tempo ainda. Apesar de detestar sua imagem refletida, sabia que não tinha nada do que reclamar – qualquer um na rua não lhe daria mais do que trinta e cinco anos, apesar dela já ter passado dos quarenta. Yordana sabia que devia sua juventude às suas antigas práticas da Arte... Mas isso não apagava a lembrança da imagem do seu rosto há vinte anos atrás, e nem a ideia de que ele deveria continuar impecável até hoje, se ela não ti31


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vesse abandonado seu trabalho de Artífice. Jovem. Bela. Perfeita. Yordana sempre soube. – Bela Bela... Bela Ave, qe nem parece ter pasaddo... – cantarolou ela sarcasticamente, aquela antiga música de sua infância. Ao contrário da Bela Ave da cantiga, porém, seu rosto e seus olhos não escondiam seu passado cinzento e vergonhoso. Não. Ela tinha que ser franca. Os anos e a falta de prática nos ensinamentos da Arte haviam-na finalmente castigado com o envelhecimento. Yordana Nouris não havia sido ensinada a lidar com aquilo, fato mortal demais para uma grande feiticeira como ela havia sido... como ela ainda era, corrigiu-se mentalmente. Teve vontade de rir de si mesma naquele momento. Cansada de olhar para seu patético reflexo, e ainda preocupada com Netuno, deu as costas à sua imagem no espelho e voltou para o quarto. Vagarosamente, Yordana aproximou-se da pequena janela de seu pequeno aposento, para observar a noite tranquila e quente de Ibacapora. Pequena noite, numa pequena cidade... Própria para a vida pequena que Yordana Caelis Castrvm de Nouris, Alta Feiticeira, Sacerdotisa da Tradição Oculta e Primeira Herdeira da Ave Negra, levava. Quinze anos atrás Yordana não teria acreditado que estaria ali, sentada na janela de um pequeno apartamento alugado de dois quartos, encarando uma pequena cidade litorânea se descortinar à sua frente. Quinze anos atrás, se alguém lhe tivesse dito que trabalharia numa sorveteria... Ela provavelmente teria arrancado a língua do desgraçado. Ao longe, Yordana podia ouvir as ondas do mar, indo e vindo, indo e vindo, indo e vindo... Tudo tão tranquilo... E tão repetitivo... Um frio percorreu sua espinha, deixando-a bastante irrequieta. Seus pensamentos se voltavam para 32


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Monte Merínea novamente. Netuno iria arruinar-se. Yordana sabia. A menina que era praticamente o último suspiro da linhagem dos Nouris iria arruinar-se. E por quê? Por uma besteira de uma história que há muito havia virado hystoria de feiticeiro, nada mais que uma lenda... Balançando a cabeça, e ainda sentindo aquele calafrio, a mulher ouviu um sussurro em sua mente. Um sussurro suplicante, indignado. Toda noite, nas altas horas da madrugada, ela sonhava com aquele sussurro. Mesmo acordada, como ela estava naquele momento, ela podia ouvir o clamor indignado dirigido a si. Por favor... Esfregou os olhos, e viu seu reflexo no vidro da janela. Velha. Naquele momento, fez algo que não fazia há muito tempo: dando as costas à janela aberta, ajoelhou-se ao lado de sua cama e de debaixo dela tirou uma grande caixa de madeira escura, estreita e com certa de um metro e sessenta de comprimento. Um cadeado lacrava seu conteúdo. – Bela Bela... – suavemente, a mulher começou a sussurrar a cantiga – Bela Ave, qe de tãom bela... nem tem pasaddo... Se dependesse de Yordana, ela não se deixaria passar. Afastou os cabelos e desatou a pequena corrente de ouro que pendia de seu pescoço. Ali, uma pequena chave, escura como o cadeado. Encaixou-se perfeitamente. Ela girou a chave, abrindo a caixa. De dentro daquele caixão disfarçado, acolchoado com veludo negro, Yordana retirou um cajado – um cajado não de madeira, mas do mais puro cristal, transparente e reluzente. Tinha pouco mais de um metro e meio de altura, e 33


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era num formato de um octógono que se afinava até que a ponta que tocava o chão parecesse uma arma pontiaguda. Nomes e números e siglas estavam inscritos nele, e uma corrente de prata pendia da cabeça do cajado, a qual tinha um pequeno orbe de uma pedra reluzente e escura coroando-o. A parca luz da cidade lá fora fazia um arco-íris no interior do objeto. – E agora, tenho um bom motivo para praticar a Arte de novo – um sorriso pouco amistoso formou-se no belo rosto pálido de Yordana. Ela retirou a pequena chave da corrente de ouro e colocou-a no chão, ao lado do cadeado. Então, pegou a própria correntinha e dependurou-a ao lado da de prata. Senti sua falta, Yordana. – Eu também – os olhos dela encheram-se de lágrimas. – Eu também, Ysmin. Mais feitiços de proteção? – Dessa vez não – ela sorriu maliciosamente. – Talvez tenhamos um pouco de ação, Ysmin. Acha que estamos em forma? O sorriso do Meáren lhe foi resposta suficiente, e Yordana sorriu de volta. Uma sombra de seriedade cobriu o cajado, porém. – O que foi? – Yordana franziu o cenho, preocupada. Ele está acordado. Ante a declaração do Meáren, Yordana segurou-o com força e precipitou-se para a porta de seu quarto, nervosa. De supetão, abriu-a. Não havia ninguém do lado de fora. Ela sabia, no entanto, que Ysmin jamais se enganaria, não importasse quanto tempo passasse, esquecido e inutilizado, no fundo de uma caixa debaixo de sua cama. Estavam fracos, é verdade, mas não haviam perdido seu talento natural. 34


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Logo, sem hesitação, seguiu para a porta no extremo oposto do curto corredor. Estava entreaberta. Com cuidado, ela a empurrou, fazendo-a ranger. Um facho de luz adentrou o quarto, iluminando apenas o pé da estreita cama. – Biel? – sussurrou ela para a escuridão que a recebeu. – Tive um pesadelo – foi a resposta do menino encoberto por sombras, vindo da cama. Yordana levantou a mão para o interruptor, na intenção de acender a luz, mas ele foi mais rápido: – Não, deixe apagado. – Ah – Yordana ficou surpresa. – Ok. Você está bem agora? – Mãe – disse o menino na escuridão, aparentemente enfadado. – Eu já tenho treze anos. Acho que consigo superar um pesadelo sozinho. Yordana não pôde evitar um sorriso. – Certo... – O que você vai fazer? A pergunta do menino pegou-a de surpresa, e ela, a princípio, não entendeu. Mas enfim, apesar de não vê-lo, percebeu que a atenção do menino estava concentrada em seu Meáren, que tentava parecer o mais insignificante possível ao lado de sua portadora. – Eu... preciso reforçar aqueles encantos de proteção, Biel, você sabe... – Mas é lua nova – ele sussurrou de volta, a voz embargada de sono, e Yordana ouviu-o mexer-se sobre o colchão. – Você disse que era bom fazer isso na lua crescente... Yordana podia não ver o menino no escuro do quarto, mas podia visualizá-lo em sua mente, franzindo o cenho, questionador como sempre. Mas ela não tinha paciência para aquilo, e suspirou, exasperada. – Não dê pitaco no que não entende, filho. – respondeu ela rispidamente. – Agora volte a dormir. 35


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Da escuridão, ela ouviu um resmungo inconformado, mas ignorou-o, enquanto voltava a fechar a porta do quarto. O que Yordana não sabia, enquanto andava a passos lentos para a pequena sala do apartamento, era que seu filho sabia muito mais do que ela imaginava... E que os pesadelos constantes do ano que acabava eram mais do que meros pesadelos. Mas Yordana não sabia nada disso. E não seria agora que iria descobrir. Em sua cama, no menor quarto do apartamento alugado, Gabriel Nóbrega pensava, ouvindo os passos suaves de sua mãe no corredor do outro lado da porta. Gabriel pensava, enquanto sua mãe e seu cajado conspiravam segredos, sempre ocultos para ele. E a única coisa que Gabriel conseguia pensar, enquanto deitado em sua cama, no menor quarto do apartamento, ouvindo os passos de sua mãe, conspirando com seu cajado, era: mentirosa. Yordana e Gabriel podiam ser mãe e filho, mas suas personalidades chegavam ao ponto de serem inconciliáveis. No que faltava de franqueza em Yordana, sobrava em Gabriel. Ele não tinha paciência para segredos. Sua mãe, por outro lado, parecia viver de guardar segredos e ocultar fatos dele, o que sempre o havia exasperado. Gabriel desconfiava que ela havia sido criada para ser mentirosa, cheia de histórias ocultas, que ela nunca deveria revelar. Isso, contudo, não despertava em Gabriel o menor sentimento de compreensão; pelo contrário, apenas o irritava ainda mais. Fosse o que fosse, ela não iria lançar feitiços protetores no apartamento ou neles. Não. Ia fazer qualquer outra coisa, qualquer outra coisa que ela tinha que esconder dele, como sempre fazia quando o assunto era essa mania de mágica dela – por mais que ela detestasse mencionar o tópico ou sequer admitir que ainda praticava. Gabriel revirou-se, impaciente, e tateou a cabeceira da 36


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cama até topar com o interruptor de seu abajur. Clic. A luz do abajur, por mais discreta que fosse, machucou seus olhos, produzindo reluzentes pontos de luz à sua frente, até que ele finalmente se acostumasse com a claridade. Se Yordana ia passar a madrugada acordada com seu cajado, fazendo seus rituais Nova Era/Wicca/Seja-LáQual-Fosse-A-Doideira-Dessa-Vez, Gabriel também ficaria acordado. Até porque os pesadelos não o deixavam dormir. Ele sentou-se na cama e, por algum motivo, sua atenção foi atraída para o espelho sobre sua cômoda: ninguém além do próprio Gabriel retribuía seu olhar. – Droga – grunhiu ele para sua imagem. O primeiro pensamento que vinha à sua mente quando ele se olhava no espelho é que gostaria de ser menos parecido com sua mãe – menos cabelos cacheados e escuros, menos rosto redondo, menos olhos grandes e cílios espessos. Porque ele sabia – e todos diziam – que ele era a imagem perfeita de sua mãe, não havia como negar. Mas pelo menos seus olhos não eram azuis – eram pretos, os mais pretos que ele já vira, e sua pele era morena como a de seu pai. De alguma forma, era um consolo. Pelas poucas fotos que vira, na verdade, os olhos pretos eram também uma herança que seu pai lhe deixara. Realmente, a única coisa, já que as poucas lembranças eram vagas e imprecisas, típicas de uma primeira infância desatenta e alheia ao significado de “efemeridade” ou “morte”. O menino desviou o olhar do espelho, e deteve-o sobre a cômoda. À exceção de uma foto de Gabriel e sua mãe, não havia mais retratos no quarto. O aquário, ao lado do porta-retratos, continha seu pequeno cágado, Chicó. A pequena criatura comia suas folhinhas tranquilamente, alheio a confusão de pensamentos de seu dono. 37


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O menino sacudiu a cabeça e voltou a se deitar, mas não apagou a luz. Ele poderia ir perguntar à sua mãe exatamente o que ela estava planejando fazer, mas sabia por experiência própria que tudo que receberia como resposta era um olhar enviesado e um “não se meta”. Ela era assim mesmo, um tanto bipolar. Nunca havia tido muita paciência com ele, disso Gabriel se lembrava claramente. – E agora, o que eu faço, Chicó? – indagou ele para o cágado silencioso em seu aquário. Chicó podia não ser um grande conselheiro, mas era um ótimo ouvinte, e sempre fazia Gabriel sentir-se melhor. Dessa vez, a única resposta que ele deu foi se encolher para o que o menino achava que era sua “posição de dormir”. Mas sua mãe e suas manias de mágica – o que ela insistia em chamar de “A Arte” – não eram a única preocupação de Gabriel. Os pesadelos estavam se tornando insuportáveis. E ele nunca diria isso a Yordana. Nem em um milhão de anos. Se sequer mencionasse pesadelos sobre assassinatos, música e “A Arte”... Bem, ele não tinha ideia do que ela poderia fazer. Essa era a uma coisa que Gabriel ocultara, o momento em que sua mania de franqueza não fora mais forte do que o medo e a mágoa em relação à mãe. Mas apesar de seu medo de dormir e ter aqueles sonhos de novo, e apesar da raiva que sentia por Yordana no momento e a curiosidade sobre o que ela estaria fazendo, bastou a Gabriel fechar mais longamente os olhos para cair num sono profundo e dessa vez sem pesadelos.

O que ele não sabia era que Yordana acabara de lançar um feitiço sonífero nele, pouco antes de sair de casa no meio da madrugada. Numa cidade pequena e monótona como Ibacapora,

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a noite acabava cedo quando não era período de férias e as casas de praia enchiam-se de turistas. Então, quando a figura vestida de negro que era Yordana passava pelas ruas sem calçamento, só os gatos encarapitados em muros e telhados a notavam. Ela carregava consigo seu Meáren, sem nenhum pudor. Ninguém a veria. E se a vissem, Yordana não estava exatamente preocupada com o que diriam. Ela tinha muito mais coisas para se preocupar. Seu querido filho, por exemplo. Enquanto caminhava pela noite, ela pensava nele, e no que seus atos noturnos poderiam causar-lhe. A seus olhos, Gabriel estava são e salvo sob sua asa protetora. Ele era intocável. Enquanto Yordana mantivesse uma distância segura da Arte, ele era intocável. É por isso que, naquela noite, enquanto caminhava pelas ruas, moldando seu plano, sabia que poderia estar colocando o filho em risco. Naquela noite, ela não faria os feitiços de proteção de todos os anos. Naquela noite, Yordana faria algo que não fazia há muito tempo. Ela se deixaria ser feiticeira de novo. E sabia que mesmo que apenas por uma noite, estava expondo seu filho. Muitos eram os que queriam um pouco de sangue Nouris em suas mãos... Sangue de Yordana. E se eles não conseguissem seu sangue, certamente se contentariam com o sangue de seu filho. Ou sangue de sua sobrinha. Não que esta última chegasse a preocupá-la de fato. Netuno havia feito suas escolhas, ela não era mais nenhuma criança e havia sido criada na Arte, absolutamente ciente dos perigos que espreitavam qualquer 39


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Nouris nesse mundo. Netuno não era sua responsabilidade, nunca havia sido. A atenção que Yordana havia dispensado à menina havia sido por mera consideração à sua falecida irmã... E, se ela fosse sincera consigo mesma -- o que não costumava ser --, também um certo medo de que, se deixada por conta própria, Netuno expusesse Yordana e, consequentemente, Gabriel. As ruas tinham uma iluminação precária e amarelada, e como as mangueiras e cajueiros eram frondosos e em grande número, os postes tornavam-se ainda mais inócuos. As sombras que a folhagem fazia por sobre as casas, ruas e prédios baixos produziam figuras pouco amistosas. Os latidos de cães vira-latas a acompanharam por todo o caminho, assim como os saltos furtivos e inesperados dos gatos, com seus olhos que brilhavam na escuridão das ruas desertas, seguindo o poder misterioso que Yordana emanava de si e do seu cajado Meáren. Logo, haveria uma procissão de felinos seguindo-a a uma distância segura. As pessoas nunca gostaram de escuro, mas Yordana tinha a impressão de que cada vez mais a noite – a verdadeira noite, escura e absoluta – apavorava as pessoas. Talvez fosse por isso que houvesse tão pouco movimento no bairro em que morava. Apesar de ser uma noite quente de outubro, a brisa marinha não deixava que a cidadezinha se tornasse uma pequena estufa. Depois de percorrer algumas quadras a passos largos, ela finalmente chegou a seu destino: a sorveteria. Era uma casa pintada chamativamente de rosa e amarelo, com uma grande placa sobre o telhado, anunciando S ORVETES DUBOM. De dia, aquela rua larga de paralelepípedos era uma das mais movimentadas – ao 40


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longo de sua extensão havia mercados, bares, quitandas e lojinhas de balangandãs. De madrugada, porém, era tão deserta quanto qualquer outra rua do bairro. Na sorveteria, a área onde se espalhavam as mesas e cadeiras estava vazia. As janelas, fechadas; assim como a porta de entrada. Mas Yordana não estava interessada em sorvetes àquela hora da noite. O que lhe interessava era quem morava ao lado da sorveteria. Rubens. O dono do lugar. Um cachorro latia ao longe, o que fez Yordana sobressaltar-se, assim como todos os gatos que a haviam seguido. Não há perigo, Yordana. A mulher sorriu. A casa de Rubens era unida à sorveteria por um corredor interno, Yordana sabia. Ela, é claro, não tinha acesso à casa do homem, mas sendo a mais antiga empregada do lugar, tinha acesso à sorveteria. Assim, pegou a chave que carregava consigo e abriu os cadeados e a porta da Dubom, entrando rapidamente, mas não sem antes lançar um sorriso furtivo para seus seguidores felinos, que se amontoavam nos telhados e árvores próximas. Yordana seguiu na escuridão, tateando, conhecendo com as pontas dos dedos o ambiente, já tão conhecido com os olhos. Não foi difícil achar a porta que ligava a sorveteria à casa de Rubens. Trancada. Yordana soltou um suspiro exasperado, antes de aproximar o orbe de pedra escura que era a cabeça de seu Meáren à maçaneta. Um suave empurrão, um pouco de concentração e Clic. 41


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– Abre-te, Sésamo – sorriu ela, enquanto passava rapidamente pela porta. Aquela área lhe era desconhecida, e tomada pela escuridão como estava, Yordana sabia que cedo ou tarde tropeçaria em algo. Assim, arriscou-se um pouco mais e, colocando a mão por sobre o orbe, sussurrou: – Luz. Um suave feixe de luz se fez visível dentro do orbe negro do cajado, iluminando fracamente o ambiente, mas o suficiente para ela divisar mobília e portas. Yordana não era particularmente adepta do proferir de palavras que alguns feiticeiros faziam, mas como estava fraca e sem prática, não queria se arriscar a evocar um feitiço de luz mentalmente. Abrir cadeados era simples. Conjurar luz, nem tanto. Todavia, ela se sentia um tanto estúpida com isso. Mas Yordana estava a apenas alguns passos de não precisar mais pronunciar feitiços... Estava na sala. Sofá, poltrona, mesa de centro e televisão. Mais ao fundo, portas. À sua direita, a cozinha se abria. Ali, Yordana. E ela seguiu a direção para a qual o cajado a apontava. O mais suavemente que pode, abriu a porta mais próxima, que não rangeu. Colocando a mão por sobre o orbe iluminado, para bloquear a luz que emanava dele, ela olhou dentro do aposento. Uma cama de casal e, no meio dela, uma silhueta dormia. – Rubens... – sussurrou ela, satisfeita, apagando a luz do cajado e entrando no quarto, fechando a porta atrás de si. 42


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A passos lentos, ela caminhou até o pé da cama, observando o homem, deitado de bruços, a parte superior do seu torso descoberta, revelando pele morena e músculos. Com as duas mãos, Yordana segurou seu Meáren de cristal, abaixou a cabeça e fechou os olhos, começando a entoar um suave cântico. – Dême lux, dême forza, refaçame essa nuoite, Cosmus. Dême lux, dême forza, refaçame essa nuoite, Cosmus. Dême lux, dême forza, refaçame essa nuoite, Cosmus. Sua figlia está fraca, fria e frágil. Dême lux, dême forza, refaçame.

Ela abriu os olhos e ergueu a cabeça, observando a figura adormecida de Rubens na cama. – Qe assim seja. Qe assim aconteza. – finalizou ela e, após tomar fôlego, abriu os braços, erguendo a cabeça para o teto e expirando. Seu cajado, que outrora era acolhido pelas mãos de sua portadora, agora não tinha mais sustentação – e continuava de pé, à frente do corpo de Yordana, mais vivo do que nunca. E ali permaneceu, enquanto Yordana afastava-se dele, na direção de Rubens. Lentamente, ela deixou o robe preto que usava escorregar pelo seu corpo, desnudando-a. Ela se agachou ao lado da cama, observando o rosto adormecido de seu mais novo sacrifício. As feições do homem eram relaxadas – ele dormia um sono suave. As sobrancelhas retas, os lábios grossos e o maxilar frouxo demonstravam sua tranquilidade, absolutamente alheio à presença intrusa em seu quarto. Yordana sorriu. Nunca pensara que faria aquele ritual novamente – muito menos com Rubens, mas lá estava ela. Então, o mais suavemente possível, quase como um fantasma, ela inclinou-se para ele e depositou um beijo quase imperceptível 43


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no canto da boca do homem. Foi o suficiente para ele arregalar os olhos e fitá-la, estupefato. – Rubens... – sussurrou ela. – Eu preciso de um favor... – Yordana?... O quê...? Isso é um sonho? – sua voz era rouca de sono, seus olhos estavam nublados de cansaço. – Rubens – em nenhum momento ela se deixou abalar pelo espanto dele. – Silêncio. E ele se calou imediatamente, apesar dos seus olhos se arregalarem ainda mais ao constatarem a nudez impudica de Yordana quando esta inclinou-se em sua direção. – Eu estou fraca – sussurrou ela, com voz embargada. – Há anos, estou muito fraca – sua voz ia ficando cada vez mais sussurrante, mais envolvente, enquanto ela, sutilmente, movia-se para sentar-se na cama ao lado dele, enquanto ele se afastava dela tão suavemente quanto possível. Estava assustado e confuso, ainda incerto sobre a realidade dos fatos. Ela, percebendo isso, parou de se aproximar e colocou uma mão sobre o ombro nu dele, fazendo-o ficar imóvel por um instante. Agora ele estava completamente acordado e atento às palavras da mulher, completamente ciente do que se passava a sua volta, apesar de não poder perceber o cajado, mascarado por um encanto de percepção. – Você pode me ajudar – dessa vez, Rubens não a teria ouvido se ela não estivesse a centímetros do rosto do homem. – Eu preciso de você essa noite, Rubens... – Yordana... Você...? – Estou tão fraca, querido... – sussurrou ela, levantando uma mão para o rosto de Rubens e acariciando seu pescoço. – Tão fraca... – Yordana... – ele ainda estava inebriado de sono e, agora, de desejo. Começava, lentamente, a aceitar as carícias da mulher, e se dissolvia em torpor. Havia muitos anos que o homem queria Yordana, que alimentava por ela amor 44


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e desejo, e ela sempre soube disso, mas nunca havia tido interesse nele. Não até precisar dele. – Estou bem aqui, Rubens – ela aninhou-se mais próxima a ele, e dessa vez ele não se afastou. Ela sorriu um sorriso sedutor e, inclinando-se em sua direção, sussurrou em seu ouvido, seus lábios roçando a pele do homem: – Não funciona se você não quiser, querido. Mas eu sei que você quer... Há muito tempo... Yordana afastou-se, esperando a reação do homem. Ele não precisava de mais argumentos. Quando deu o primeiro beijo em Yordana, o Meáren começou a girar lentamente em sua própria órbita, invisível aos olhos pouco atentos e destreinados de Rubens. Lá fora, a gataria iniciou uma ópera desafinada e histérica.

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Ela estava às margens de um mar tranquilo, de águas cristalinas e fundo cheio de vida. As areias que a cercavam eram de uma tonalidade clara e vistosa – e olhando para o céu, ela não conseguia determinar que horas eram. Acima de sua cabeça, era tudo de um branco ofuscante. O canto de diferentes pássaros enchia seus ouvidos: gaivotas, bem-te-vis, pardais e tantos outros, bem como o ruflar de suas asas. Ela podia ouvi-los todos, mas não conseguia vê-los. Batia um forte vento, mas não forte o suficiente para ser violento. Um vento gostoso, refrescante, que, contra as copas das esparsas árvores na praia, lançava a melodia das folhas em toda a região. Mas então, mesmo naquele cenário diáfano e aconchegante, ela sentiu um aperto no peito. Onde estava seu Meáren? Nervosa, olhou por todos os lados. Aonde estava...? Ah, ali. Lóc descansava sobre um conjunto de pedras cercadas 46


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pela maré alta. Ele estava bem, muito bem. Netuno sorriu e, sem hesitar, tirou a roupa e nadou até a pedra, sentindo a deliciosa sensação da água fresca contra sua pele naquele dia quente. Alcançou a pedra com facilidade, e subiu nela, pegando seu Meáren. Levantou os olhos e observou a bela vista ao seu redor – o mar, a areia limpa, o céu branco, as árvores. Isso lhe era estranhamente familiar... Sim, sim. Era isso. A casa de praia em Santa Catarina. Ela deu um giro de 360 graus em sua própria órbita, apertando os olhos para tentar ver mais longe. Lá estava. No topo de uma encosta de declive suave, a casa de verão que ela, secretamente, chamara de lar. Simples e pequena, tão diferente da Casa de Famiglia. Está me ouvindo, Netuno? A paisagem pareceu borrar-se, como uma aquarela maculada por água em excesso. – Lóc? – ela franziu o cenho. Não, não era Lóc. Netuno olhou para os lados. A casa de praia estava se dissolvendo rapidamente, e Netuno podia sentir algo dentro de si torcendo-a... Netuno podia sentir a Dor crescendo. Está me ouvindo, Netuno Lencastre? – Quem é? – a garota ficou nervosa, sentindo-se vulnerável em sua nudez, e empunhou seu cajado, levantando-se na pedra e Não estava mais sobre a pedra – não estava mais na praia, não estava mais nua, não estava mais na casa de verão. Não estava mais com seu Meáren. E isso foi o que realmente a apavorou. Estava num vácuo preto, sem forma. E sem Meáren. Estava sonhando, e alguém havia invadido seu sonho. Era fácil perceber isso – a sensação de que estava caindo havia começado e acabado, mas ao contrário do que acon47


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tece normalmente, Netuno não havia acordado de súbito. Permanecia ali, naquele lugar sem forma. Presa em sua própria mente. E o desconforto crescente em seu peito só confirmava suas suspeitas: o que ela sentia era a Dor de algum alumbramento. – Quem é você?! – gritou Netuno, enraivecida. – Saia do meu sonho! Saia da minha cabeça! Então você está me ouvindo! – Quem é você?! Você tem uma chance, querida. Todo aquele negrume estava deixando Netuno angustiada, e ela não conseguia pensar direito. Onde estava seu Meáren, onde estava seu Meáren, ondestavaseuMeáren, onde estava...? Sou eu, tia Yordana. – Tia...? – Netuno franziu o cenho, confusa, a surpresa fazendo-a esquecer momentaneamente da angústia por seu Meáren. Então algo estalou em sua mente. – Eu queimei sua última carta, há semanas. Eu sei. É por isso que tive que apelar para minhas enferrujadas habilidades de somniet. Demorei algum tempo para pegar o jeito de novo, mas cá estou finalmente, Netunina. – Não me chame assim! – disse Netuno, exasperada. A voz de tia Yordana então se tornou mais inflexível. Eu a chamo do jeito que eu quiser. Esse sonho agora é meu. Netuno bufou. – Eu quero acordar. Você vai acordar quando eu quiser que você acorde. – Saia da minha cabeça. Agora. Ela estava nervosa com aquilo. Olhou em volta, angustiada. Sentia-se violada e despreparada sem seu Meáren – sentia como se lhe faltasse um pedaço. Como alguém conseguia viver daquele jeito? Pela primeira vez, ela estava tendo um sonho invadido. E não estava gostando nada da48


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quilo. A Dor era mais forte do que qualquer outra Dor que Netuno já sentira. Assim que você me deixar falar, eu te deixo em paz, Netuno. Então não adianta reclamar, isso é um somniu e agora eu estou no controle... Tia Yordana provava-se, então, muito mais poderosa do que Netuno havia imaginado para uma feiticeira desertora. A garota detestou aquilo. Ela não tinha controle do seu próprio sonho, sua mente estava sendo violada por uma pessoa que ela nem conhecia, uma pessoa que era potencialmente uma inimiga... E nem seu Meáren estava ali. E a escuridão... Pelo sagrado Signo da Lua Negra, toda aquela escuridão... Eu não posso fazer mais do que isso, Netuno. E agora a desertora ainda lia os pensamentos dela! Não te conheço pessoalmente, mal consegui estabelecer essa conexão. Não consigo criar nenhum cenário melhor, não consigo me materializar para você. Não consigo nem sequer vê-la em minha mente. Tudo o que eu posso fazer é falar. Netuno cruzou os braços. Sabia que estava encurralada. Em sua própria cabeça. – Então fale. Desista, Netuno. Ela revirou os olhos. – Você já falou isso, e eu já te ignorei, lembra? Netuno, preste atenção. Você não vai conseguir nada além de se matar. Pelo sagrado Signo, menina, você é o último suspiro da linhagem dos Nouris!, deveria tentar restaurar a honra da famiglia, e não se delegar uma missão suicida correndo atrás de uma hystoria! Netuno soltou uma risada áspera. Mesmo aquilo sendo um diálogo a altas vozes, ela sabia que a última palavra escrevia-se “hystoria”, e não “história”. Sabia exatamente do que Yordana estava falando. 49


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– Engraçado. Achei que fosse você a grande artífice que “não se envolvia mais com a Arte”. O que está fazendo no meu sonho, então? Praticando a Arte, preocupada com a famiglia que você abandonou... Com a nossa honra? Deixe de ser hipócrita, tia Yordana! Ela esperava receber um longo discurso da voz da tia, mas tudo que conseguiu foi o silêncio. Nenhuma palavra. Por um tempo longo demais. – Tia? Netuno olhou em redor, apesar de saber que tudo o que veria era escuridão. Será que ela havia ido embora? Será que a conexão havia sido quebrada, e Netuno poderia acordar agora? – Tia Yordana? Você sabe como seus pais morreram, Netuno? A menina engoliu em seco. Aquilo havia sido inesperado. – Sim. Eles morreram na Inglaterra. Eles foram assassinados na Inglaterra. Apenas diga, Netuno. Você já é bem grandinha para os padrões da Arte... Eles foram assassinados quando tentavam voltar ao Brasil, depois de sua mãe ter feito o “serviço” que ela ia fazer lá. – Eu sei que minha mãe era uma Assessina, tia Yordana – retrucou Netuno, revirando os olhos. – Afinal, metade dos Nouris também o foram, não? Sim, foram, Netuno. E observe como nós usamos o pretérito. Netuno levou um segundo para conseguir retrucar, entre dentes trincados de raiva, o que apenas fazia com que a Dor se intensificasse. Ela tentava resistir, e quanto mais tentasse, mais doeria. Netuno arfou antes de falar. – Você é só uma traidora. Não tem o direito de falar sobre nossas tradições. Não existe lealdade entre Nouris. Achei que já sabia disso. Também é uma tradição. 50


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Netuno não respondeu. Saia de Monte Merínea, aquilo não é lugar para um Nouris. Vá para Renovatio, como sempre foi a tradição da famiglia, deixe essa hystoria de maldição de lado... Eu não vou te ajudar em nada, e esse é meu último aviso. Netuno ponderou por um segundo e, antes mesmo que pudesse pensar direito, retrucou: – Do que você tem medo, Yordana? – O silêncio foi novamente sua resposta. Netuno sabia que havia algo de muito estranho no interesse de Yordana, e então decidiu arriscar. – É seu filho? Me disseram que você tem um filho. Ele é o que? Um inapto que não consegue falar com o próprio Meáren? Você tem medo que todos os inimigos que você fez, todas as famílias das pessoas que você matou vão atrás dele? E se eu resolver contar onde você está vivendo? Dessa vez, a resposta veio retumbante como um trovão, machucando os ouvidos da menina, que involuntariamente se encolheu de Dor e medo. CALE A BOCA, NETUNO! CALE AGORA. VOCÊ NÃO TEM IDEIA DO QUE ESTÁ DIZENDO, VOCÊ NÃO TEM IDEIA DO QUE EU FARIA! VOCÊ NÃO TEM IDEIA, CRIANÇA...! Netuno sentiu a raiva tomando conta de si. – Eu não sou uma criança! – e no segundo depois que disse isso, sentiu-se uma criança por dizê-lo. NÃO, NETUNO, VOCÊ NÃO É UMA CRIANÇA! VOCÊ É UMA AMADORA DE CATORZE ANOS! UMA AMADORA! Mesmo que haja uma Maldição Nouris em Monte Merínea, mesmo que você tenha capacidade para encontrá -la – o que eu duvido que tenha – você não tem capacidade para manipulá-la, não importa quão boa você seja ou sequer ache que seja!... E você sabe disso! – Cale a boca, Yordana. – Netuno quase cuspiu as palavras. 51


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Você não pode controlar uma maldição, Netuno. E um feiticeiro despreparado é um feiticeiro morto. – CALE A BOCA, YORDANA! – CALE A BOCA! Ela abriu os olhos para encontrar-se sozinha, suada e gritando, no quarto de número cinco do primeiro andar na Caza dos Aprendizes de Monte Merínea. No chão, malas e baús prontos para a viagem. As outras camas estavam forradas, e havia qualquer coisa de sufocante no quarto. Onde estava seu Meáren? Aqui. Ah. Assim que Netuno tocou seu cajado, que estava apoiado em sua mesa de cabeceira, o ar sufocante se dissipou instantaneamente, e a garota só teve tempo para pensar que ela o reconhecia de seus tempos de infância, antes de ter um Meáren: aquele ar sufocante era o peso da solidão. Mas agora estava tudo bem, pensava Netuno, ao deitar-se novamente e se abraçar com seu Meáren. Estava tudo bem... Mas não está, Netuno. Ela suspirou pesadamente e olhou seu relógio de cabeceira. – Estamos atrasados. As outras meninas já tinham carregado quase todas as suas malas para fora do quarto. Nenhuma delas fazia questão de falar com Netuno... Bem como Netuno não fazia questão de falar com nenhuma delas. Não importava. Ela não estava em Monte Merínea para fazer amigos, pelo contrário: ela havia optado pela Escola Trínea para arruiná-la. A Vingança. Sacudindo os últimos suspiros que vieram com aquele ar sufocante, ela levantou-se e começou a se preparar para a longa viagem de volta para casa, sabendo que um ano havia se passado... E ela não conseguira nada além de humilhar-se. 52


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– Então tia Yordana é uma somniet – sussurrou ela para Lóc. – Da próxima vez que aquela desertora vier em meu sonho, vou mostrar a ela... Nós vamos mostrar a ela... Ao despertar em sua própria cama, há milhares quilômetros de distância de Netuno Lencastre, Yordana sabia que estava perdendo aquela batalha. Ela também sabia, no entanto, que ainda havia esperanças, e que talvez, só talvez, ela pudesse convencer a sobrinha se tivesse a oportunidade de invadir mais um sonho dela. Levantou-se com esforço, cansada física e mentalmente. Fazia muito tempo desde a última vez que praticara suas habilidades de somniet. Estava fora de forma, e apenas a noite de amor com Rubens não seria suficiente para restaurar seus poderes completamente. Ela precisava de outros ritos para isso, além de uma boa dose de chás e toda aquela porcaria de incenso que ela detestava. No entanto, sabia que estava fraca, tinha que apelar para tudo – inclusive para os incensos, caso quisesse invadir a mente de Netuno mais uma vez. Yordana abriu a janela do quarto e deixou a brisa noturna acariciar seu rosto, enquanto ouvia, lá longe, uma coruja piar. O sol não ia demorar a nascer, e amanhã ela precisaria estar de pé cedo para o trabalho na sorveteria. 36Com um suspiro exausto, Yordana voltou-se para o quarto e pegando seu Meáren, colocou-o embaixo da cama. – Preciso de algum descanso, Ysmin, boa noite. Ela dormiria suas poucas horas tranquilamente, apesar de tudo. Sendo uma Nouris de sangue e alma, fazia o possível para livrar Netuno de uma história insana como aquela de Monte Merínea – mas se falhasse, sua consciência não estaria tão pesada assim. Os problemas de Netuno eram os problemas de Netuno. Se ela se humilhasse completamente, bem... Yordana pelo menos poderia dizer com um largo sorriso depois: “eu te avisei”. 53


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A mulher só não esperava que dali há algumas poucas semanas os problemas de Netuno não seriam só mais de Netuno, e que eles se estenderiam cruelmente até ela, usando o caminho mais inesperado possível. Naquela manhã derradeira, Gabriel acordara para encontrar sua mãe irritadiça, evitando olhá-lo nos olhos e dando-lhe respostas ríspidas, fosse qual fosse a pergunta. Chegou até a lhe responder com um mal-educadíssimo “nada, merda!” quando ele perguntou abertamente o que estava acontecendo. E Yordana não permitia palavrões, pelo menos não debaixo de seu teto. Quando ele acordou naquela manhã de dezembro, encontrou sua mãe sentada à mesa, uma caneca de chá esfriando à sua frente, e uma das mãos tapando a boca, como que para conter um grito – se de raiva ou desespero, ele não sabia. A outra mão segurava um papel meio amassado, denotando que já havia sido manuseado incansavelmente. Os olhos da mulher estavam fixos nele. Gabriel espantou-se que os longos cabelos pretos e cacheados, tão parecidos com os dele, estivessem embaraçados, e foi isso que mais o preocupou: sua mãe era muito vaidosa, não saía do quarto sem antes estar perfeitamente alinhada. Aqueles olhos azuis-escuros estavam mais escuros que o normal, e as marcas de expressão em seu rosto, geralmente tão suaves e tão tênues para a idade que tinha, estavam terrivelmente evidentes. Ele aproximou-se lentamente da mesa. – Mãe? A tensão no ambiente era tal que Gabriel sentiu seus tímpanos apitarem. Ela baixou os olhos do papel e finalmente voltou-se para o filho. – O quê? – seu tom era ríspido. – Hã... Tudo bem? – naquele momento, ele sentiu uma vontade imensa de baixar os olhos para o chão, mas susten54


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tou o olhar da mãe. Ele não era mais nenhuma criancinha fazendo trela para abaixar a cabeça para ela, pelo menos não naquele momento. Mas o olhar intimidador de Yordana lembrava-lhe daqueles momentos de culpa. Ele pestanejou. – E por que não estaria, Biel? – ela havia respondido com outra pergunta. Estava escondendo alguma coisa. Ele deu de ombros e rapidamente desviou o olhar, seguindo para a cozinha. Yordana esfregou os olhos, como se sentisse dor de cabeça. – Você almoça em casa hoje? – Acho que sim, mas lá pras quatro tô saindo... – Não vá arrumar briga de novo, Biel – disse ela, dando as costas e saindo da cozinha. – Já basta a semana passada... Aquele menino Dinho ainda está com o braço numa tala, sabia? Gabriel sorriu para si mesmo. – Tô sabendo. De dentro do quarto, ele ouviu sua mãe murmurar: – Eu consigo ouvir o seu sorriso, Gabriel Nóbrega! Ele sorriu ainda mais, mas não retrucou, ocupando-se de seu café da manhã. Normalmente Yordana faria questão de fazer companhia para o menino – aliás, normalmente ela esperaria ele acordar para tomarem café juntos, mas não naquele dia. Depois de comer, tentou assistir alguma televisão, mas seus treze anos e sua educação pouco ortodoxa não deixavam que ele se entretivesse com desenhos estranhos repleto de explosões pirotécnicas. Logo, desistiu e voltou para o quarto. Seus professores e amigos o chamavam de hiperativo por isso. Gabriel chamava de “desenhos chatos”. Fosse um dia normal, sua mãe provavelmente arrumaria alguma coisa para fazerem juntos, mas ela permaneceu trancada no próprio quarto. Só saía para pegar alguma co55


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mida na cozinha, e uma outra vez, quando arrastou a extensão do telefone da sala até o quarto. Gabriel observava tudo isso meio alheio, meio consciente do que aquele comportamento estranho podia significar. E à medida que o dia ia passando e o humor de sua mãe não mudava, Gabriel sentia sua própria tensão crescendo, pois sabia que em algum momento, ela teria que falar com ele. Já havia acontecido algumas vezes, esse comportamento retraído e alheio dela. Quando Gabriel tinha nove anos, ela passara mais de um mês sem quase dirigir-lhe a palavra. Das primeiras vezes, o menino havia ficado confuso e desesperado, mas não naquele dia. No auge de seus 13 anos, Gabriel sabia como se comportar naqueles momentos. Era só ficar longe do caminho da mãe, nunca contrariá-la, e tudo daria certo. Só que algo estava diferente, e Gabriel não tinha mais tanta certeza de como agir. Ele sabia que aquela carta trazia alguma notícia ruim, e que envolvia a ele próprio. Como ele sabia disso, não sabia dizer, e seu instinto já lhe dizia para se preparar. Pouco depois do meio-dia ele foi preparar seu almoço, e bateu à porta de Yordana, perguntando se ela não iria almoçar. Ficou mais desapontado que surpreso com a resposta negativa, e foi nesse momento que perdeu a calma e indagou abertamente sobre o que diabos se tratava a carta, recebendo a resposta mal-educada dela. O almoço foi rápido e frio. Quando acabou de comer, voltou para o quarto e passou a chave na porta, coisa que nunca fazia. Em seu quarto, sentado na cama estreita, naquele ambiente pequeno e bagunçado, ele olhava pela janela o sol lá fora, sem realmente vê-lo. Chicó, o cágado, sempre tranquilo, observava Gabriel, que franzia o cenho, absorto em pensamentos. No fundo, Gabriel sabia o que estava acontecendo. Sim, ele sabia. Mas a experiência o havia ensi56


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nado a não ter muitas esperanças, pelo menos não em relação àquele tópico que era considerado tabu em casa. Mas mesmo assim... Mesmo assim, ele as tinha. E naquele dia, Gabriel vira suas esperanças inflando como nunca. Toda aquela comoção por parte de sua mãe só podia ter relação com o passado dela – A Arte. Era o único motivo para ela estar alterada do jeito que estava. Gabriel sempre fora um menino curioso, e já muito novo havia pesquisado em todos os meios (livros, internet, falatório, grupos Nova-Era) o que podia sobre “A Arte”. No entanto, nada parecia convincente; pelo menos não condizia com as raras observações de Yordana sobre sua Arte e a única exceção à lei de ouro do Nunca-Falar-Disso: os feitiços protetores que ela lançava no apartamento e neles. Nenhum texto na internet ou livro que Gabriel havia lido condizia com a realidade que ele entrevira em sua casa. Yordana e seu cajado, com longos momentos silenciosos, não se encaixavam nas descrições Wiccas ou Nova Era que o menino encontrava. Depois de algum tempo, Gabriel havia chegado à conclusão que também nesse tópico sua mãe era inclassificável. Enquanto ruminava pensamentos imprecisos sobre sua mãe, A Arte e a carta misteriosa, Gabriel observava o sol sumir lentamente por detrás dos prédios baixos e das casas encardidas de Ibacapora. Tinha a sorte de morar numa cidadezinha onde edifícios altos eram exceção, sendo uma cidade de veraneio, onde as casas elegantes só eram ocupadas nas férias da escola. Ele gostava disso, pois assim não tinha que realmente conviver com nenhuma criança por muito tempo; elas eram amigas por um verão. Com as crianças de Ibacapora era difícil, pois elas estranhavam mãe e filho, com seus hábitos pouco comuns e o humor tão volátil da mulher, que uma hora agradava os amigos de Gabriel, e na outra, era ríspida e seca. 57


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As crianças de Ibacapora não gostavam muito de brincar com ele. Elas gostavam, sim, de brigar com ele. E ele não hesitava em revidar. Era tudo uma grande brincadeira, de fato, mas à medida que Gabriel e seus “inimigos” foram crescendo, brincar de brigar tornava-se cada vez mais brigar e menos brincar, até que ele mesmo se via relutante em revidar. Quando tinha doze anos, tivera dois dentes quebrados. Felizmente, disse sua mãe, eram dentes de leite, e Gabriel não ficou banguela para o resto da vida. Mas antigos hábitos são difíceis de largar, e vez ou outra ele não resistia, partindo para a luta. Mariana, que morava a três quadras dele, era uma das poucas que achava as estranhezas de Gabriel fascinantes, e era a responsável pelo mínimo de convivência que ele tinha com os outros meninos da sua idade. Ele procurava nunca recusar nenhum convite de Mariana. Por esse motivo, quando as quatro da tarde iam se aproximando e sua mãe não saía de dentro do quarto, ele sentiu-se um tanto infeliz quando constatou que teria que desmarcar com a amiga àquela tarde. Ele ligaria para Mariana e pediria desculpas. Só havia um problema: para tanto, ele teria que pegar o telefone no quarto da mãe, pois celular não tinha. O menino ficou deitado em sua cama por uma boa hora, apenas criando coragem para bater à porta do quarto. Enfrentar sua mãe nunca havia sido uma opção, especialmente quando o humor dela estava tão instável. Quando o relógio apontava três e quarenta, ele não tinha mais como adiar o inevitável. Suspirou profundamente e levantou-se da cama, dirigindo-se para a porta no outro extremo do pequeno corredor. Ele bateu duas vezes. – Mãe? – Quê?! – Posso pegar o telefone? 58


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Ele ouviu o barulho do colchão de mola, o andar rápido de pés, e então a porta entreabriu-se, revelando a mão estendida de Yordana segurando o telefone. – ‘Brigado. A porta fechou-se sem mais delongas. Gabriel voltou-se para o corredor, mas antes que ele pudesse dar um passo na direção da sala sua mãe falou: – Você ainda vai sair hoje? – Hã... Não. Ante ao silêncio do outro lado da porta, Gabriel seguiu seu caminho para a sala. Foi quando se sentou à mesa de jantar com o telefone numa mão que ele viu. Aquele envelope amarrotado, cujo remetente era “I.M.M.”, sem endereço ou CEP. Simplesmente “I.M.M.”, como se todos soubessem o que diabos aquilo era e onde ficava. Gabriel virou o papel para checar o destinatário, mesmo sem saber por que estava fazendo aquilo. Bastou ler o primeiro nome para arregalar os olhos de surpresa: Gabriel Nouris Nóbrega. – MÃE! Se perguntado anos depois sobre como havia sido aquela conversa com sua mãe, Gabriel ainda poderia citar tudo o que eles disseram sem grande esforço. Sua memória daquela conversa específica seria para sempre bastante vívida, talvez por ter sido a primeira que ele tivera sobre Monte Merínea com Yordana. E uma das únicas, também. Lembraria que ela estava sentada no sofá da sala, ainda agarrada ao papel, enquanto ele andava de um lado para o outro, passando uma mão nervosamente pelo cabelo rebelde, enquanto a outra segurava firmemente o envelope, como se fosse a prova do crime. O que, de fato, era. Quando Gabriel gritara por ela, a mulher viera em disparada, achando que algo havia acontecido, e ficara pálida quando o viu agarrado ao envelope, olhando-a com o mesmo olhar intimidador com o qual ela o olhara naquela 59


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manhã. Querendo “conversar racionalmente” sobre o assunto, ambos sentaram-se no sofá da sala, mas assim que Yordana abriu a boca e disse “eu posso explicar”, Gabriel explodiu, gritando impropérios e acusando-a de violação de correspondência e de ser uma mentirosa. Ele nunca havia sido bom em conversas racionais mesmo. Dinho, com a tala no braço, que o diga. – É melhor baixar o seu tom de voz, mocinho! Você não é mais nenhuma criancinha para ficar histérico desse jeito... – Yordana tentava manter a postura autoritária de mãe, mas Gabriel percebeu claramente a ferrugem de incerteza que aquela armadura tinha. – Como é que você pode explicar o que fez, mãe? Como? – ele cruzou os braços sobre o peito, os olhos negros como carvão. Yordana sempre se impressionara com o negrume que eram os olhos do filho, muito mais negros do que os do pai dele. – Como é que se explica uma mentira? – Agora preste atenção, rapaz, eu estava... – mas o discurso sério dela morreu em sua garganta quando Gabriel a interrompeu: – Eu até tolero, mãe – começou ele, a voz fria, os olhos pretos fixos nela – eu até tolero, mesmo não entendendo, o seu vício em ocultar informação sobre você, mas...mentir? Sobre algo que me diz respeito? Desde quando você mente assim pra mim? Gabriel nunca havia achado, em toda sua curta vida, que algum dia estaria dando uma reprimenda em sua mãe. Na verdade, naquele momento havia esperado que ela se levantasse e simplesmente o batesse, mas o rosto da mulher empalidecera de tal forma que Gabriel percebeu, surpreso consigo mesmo, que pelo menos naquele momento ele estava certo e sua mãe, errada – e ela também sabia disso. Ele não entendia de onde havia tirado a coragem para passar um sermão em sua mãe – e nem como ela permanecia ca60


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lada e inerte naquele momento. Gabriel olhou-a fixamente, e ela devolveu o olhar. – Você ia me mostrar a carta, mãe? – perguntou ele, aproximando-se dela. – Você, em algum momento, ia me mostrar a carta? – Sim – e Yordana baixou os olhos. – Por mais que isso vá contra o que eu acredito, sim, eu ia te mostrar. – Como é que eu vou saber se você está dizendo a verdade agora, mãe? – perguntou ele, cético. Porque ela não estava, e ambos sabiam disso.

Yordana soltou uma risada que disfarçou seu soluço, mas não aos ouvidos atentos de Gabriel. – Você é realmente um Nouris, Biel – sussurrou ela, olhando-o nos olhos. – Tão desconfiado... Eu não te ensinei a ser assim. – Talvez você tenha, só não percebeu. Antes daquele dia, Yordana nunca havia mencionado sua família para Gabriel; e isso o menino se lembrava bem, pois até seus dez anos de idade havia insistido muito no tópico “Nouris”, sem muito sucesso. Ela encarou-o sinceramente, e Gabriel percebeu, não pela primeira vez, que sua mãe gostaria que ele fosse menos perceptivo. – Eu tentei tanto deixar toda a minha instrução sobre a Arte de lado quando você nasceu... – A carta é sobre isso, não é? Novamente, a mulher desviou o olhar ao mesmo tempo em que acenava positivamente com a cabeça. Gabriel soltou um suspiro e, sem dizer uma palavra, estendeu a mão para ela, num pedido silencioso. Yordana passou-lhe a carta, e o menino nunca esque-

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ceria a expressão impassível em seu rosto, praticamente desprovida de emoção. Naquele momento, os olhos de sua mãe não refletiam nada – nem tristeza, nem preocupação, nada. Aquela falta de emoção em sua mãe era algo que ele nunca conseguira entender, e que aparentemente continuaria sendo um mistério. Ele acomodou-se no chão, sentindo seu coração apertar de ansiedade quando segurou o papel. Finalmente pôs-se a ler.

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Al Cvatorze de Nvovembre de Dós Mil y Cinco,

Del Calendariv Christianvs, Como Officializado Pello Cvonselio Trynneo no Tocante a Assvmptos Esxternos Con Mortales en Occidente Mayor

Sigñor, Saudaçõens artiffices! É com gran alegria qe inforamos por meyo desta qe vossa vagga al Instituto Muonte Merynnea de Arte Trynnea, reggistrada a 12 de ffevereyro de 1994, sob o signal exsplícito de “0205 - Noctus Asio stygius - GNN”, recoñhecidamente Gabriel Novris Nóbregga, figlio de Yordana Novris & Joachim Silva Nóbregga, está garantida y disponíbel no presente anno, coo reqerido qando do reggistro. Solyccitamos vossa confirmaçãom por meyo de Otra, para fins oficiales d’el Instituto, e sobreavisamos qe, ao comfirmar presença, concordais com nostros Termos y Direcçõens, qe nãom seguem anecxos porqe os Correios Mortales sãom mvy dispendiosos. Estãom, contvdo, disponibeis em nostra Bibliotheqa (Tomo I, Pholio IIII). Sobreavisamos tambén qe vosso transporte será efectvado al últio sábat (“sábado”) de yanero, n’o puonto más alto de sv región (vide verso para conceito de “región” & “puonto más alto”). Qalqer contacto posterior al transporte a Mvonte Merynnea éh esxtremamente improvável, porconsegvinte, recoendamos aos alvmni noviços qe garantam qe TODOS os materiales necessáryos al Ano Lectivo estejan presentes qando do embarqe. Deseyando-le huma bella viagen, A Direcçãom & Bae (Banca de Assvmptos Esxternos do Mvonte Merynnea)

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Mesmo depois que ele terminara a leitura da breve, porém chocante, carta, Gabriel continuou encarando-a, e ante ao seu silêncio prolongado, ele sentiu que, aos poucos, a emoção voltava a tomar conta de sua mãe. A carta era tudo o que ele precisava que acontecesse em sua vida naquele momento – a carta não era simplesmente uma carta, mas sim um convite, para um lugar que ele havia apenas idealizado em sonho, e nem sequer sabia se era real, ou possível. Quando Yordana falou, sua voz parecia distante como um eco para Gabriel: – Você quer ir, não quer? – ela disse, num sussurro derrotado. Ele voltou o olhar estupefato para ela, e abriu e fechou a boca duas ou três vezes, sem articular nenhum som, simplesmente chocado demais para isso. – Suponho que isso seja um sim? – indagou ela, erguendo uma sobrancelha. – Mas é claro que sim, mãe! – exclamou Gabriel, finalmente voltando a si. Ela suspirou, pesarosa, e fechou os olhos, para depois abri-los e encará-lo novamente. A partir daquele momento Gabriel sabia que não teria o apoio dela em nenhum aspecto. – Querido, eu espero que você perceba que ao aceitar ir para o Instituto Monte Merínea você estará abrindo mão de sua educação... convencional. – Yordana começou a falar, mas aparentemente já se sentindo derrotada. – Não é uma maravilha? – indagou ele, sorrindo marotamente. Ela esfregou o rosto com as duas mãos, como que para espantar um mal pensamento. – Não, querido, não é. Gabriel ergueu uma sobrancelha, confuso, e passou uma mão pelos cabelos, embaraçando seus cachos. – Mãe? – Hum? 64


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– Você não acha que, sei lá, me deve uma explicação? Apesar da firmeza com que havia dito aquilo, Gabriel sentiu seu medo profundo apertar sua garganta. Tinha medo que sua mãe explodisse e finalmente o batesse, mesmo que não fizesse mais isso desde que ele completara dez anos – às vezes, ela dava um tapa nele, quando muito irritada, mas diante da situação, talvez ele recebesse muito mais do que um tapinha. Yordana soltou um grande suspiro exasperado, e desviou os olhos do filho, levantando-se do sofá rapidamente. – Não, Gabriel, eu não acho. Se está tão interessado nesse caminho, descubra as coisas por si só. Eu não quero ter mais nada a ver com esse mundo. Naquele momento, Gabriel não percebeu o quão sério ela estava falando. E assim, ela deu por encerrada a discussão, andando a passos largos em direção ao seu quarto. – Se você ainda for sair, leve a chave. Vou dormir agora. – ela disse, sem virar-se para trás, e logo em seguida, sumiu no corredor, entrando no quarto e fechando a porta com suavidade. Gabriel permaneceu ali no chão, sentado, uma confusão de sentimentos correndo pelas suas veias. Ele estava tão eufórico com tudo aquilo que não percebeu a gravidade da situação para sua mãe. Estava apenas levemente consciente de que Yordana não estava nem um pouco feliz com a nova condição de Gabriel. Contudo, tudo o que ele fazia naquele momento era ler e reler a carta, observando, maravilhado, aquela língua estranha que ele conseguia entender. Anos depois, relembrando aquele momento, Gabriel gostaria de ter tido mais tato em relação à sua mãe, e ter conversado mais com ela – pois assim que a porta do quarto se fechou, também se fechava a porta para o diálogo entre eles. Gabriel foi apenas muito leviano para notar aquilo no momento em que acontecia. 65


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Naquela noite ele saiu de casa, mas não foi visitar Mariana nem ninguém. Ele simplesmente pegou sua bicicleta e pedalou praticamente a cidade inteira, muito eufórico para dormir ou ficar confinado naquele pequeno apartamento. Ele precisava se mexer, pois seus pensamentos estavam tão caóticos e agitados que nem ao seu corpo ele podia permitir algum descanso. Com a carta bem guardada em seu bolso, ele pedalou por horas e horas, até mais de meia-noite, percorrendo a mesma rua várias vezes, simplesmente alheio demais ao percurso que fazia para notar isso. Gabriel só parou quando o vigia noturno o cumprimentou, perguntando o que ele estava fazendo até altas horas no meio da rua de bicicleta. Ele nunca havia se dado bem com o guarda, que já o considerava um delinquente, de forma que assim que falou o com velho de barbicha foi para casa, sentindo-se exausto. Gabriel não conseguia se lembrar claramente do que fizera quando chegou em casa naquela madrugada, apenas que entre a porta da cozinha e sua cama, ele ouviu um soluçar abafado vindo do quarto de sua mãe. Na manhã seguinte, e mesmo com todo o exercício da noite anterior, Gabriel continuava eufórico, tendo dormido apenas quatro horas. Yordana não podia faltar ao trabalho, de forma que tudo o que o menino encontrou foi o café-da -manhã na mesa e um grande silêncio na sala. Como Yordana esperava que ele ficasse quieto em casa depois de uma notícia daquelas? Enquanto Gabriel pensava nisso e considerava outra pedalada pela cidade, o telefone tocou. Ele correu para atender, e não porque esperasse uma ligação importante, mas apenas para extravasar um pouco a euforia que sentia. – Alô? – Que bom que já acordou – murmurou a voz impassível de sua mãe do outro lado. – Já que você escolheu fazer 66


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isso, Gabriel, você tem que se preparar. – Como assim? – Essa sexta-feira eu saio mais cedo do trabalho e nós vamos até a capital fazer umas compras. – A capital? – É. Você lembra da data que eles marcaram a saída? – Último sábado de janeiro, ponto mais alto do estado, onze horas da noite. – Gabriel já havia lido e relido aquela carta dezenas de vezes, já sabia proferi-la de cor se a mãe pedisse. – Você terá tudo o que precisa até lá. – Certo. – E não fale para ninguém, Gabriel. Nem praquela tonta da Mariana, ok? – Ok. – Até a noite. – Mãe? – Sim? – Como... como fica isso? Quer dizer, você disse que não quer se envolver... – Simples, querido. Eu não vou me envolver. Você vai embarcar para Monte Merínea e estará por conta própria. – Como é? – Gabriel não só sentiu o pânico crescer em si, como também o ouviu claramente em sua voz esganiçada. – É melhor discutirmos isso pessoalmente, Gabriel. Até. E desligou. Naquela noite, quando Yordana chegou em casa, eles não “discutiram isso pessoalmente”: a mulher despachou Gabriel para a cama e trancou-se em seu quarto, como se tornaria um hábito até que o menino fosse embora para Monte Merínea. Depois de dois dias de euforia extrema, Gabriel não estava nada menos do que exausto. Portanto, quando se deitou em sua cama para dormir aquela noite, não levou mais do que cinco minutos para cair num sono profundo. 67


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Ele estava em casa. No seu quarto. “Querido, venha aqui, por favor!” No quarto de Yordana, ela sorria para ele. “O que foi, mãe?” Ela o faz sentar na cama ao lado dela. “Preciso de sua ajuda, meu filho. Você faria uma coisa para mim?” Sorriso. A lua estava alta no céu claro do amanhecer. “Claro, o que é?” “Você poderia abrir aquela caixa para mim?” Uma caixa nas mãos dele. Dentro, o avião que havia trazido o carregamento dos Correios onde estava a carta de Monte Merínea. “Vamos segui-lo” diz Yordana, pega a mão dele, e o avião sai voando pela janela, veloz e barulhento. Eles logo atrás, velozes e silenciosos. “Vamos, vamos, vamos!” “Mas para onde, mãe?!” “Vamos seguir o avião!” “Até Monte Merínea?!” Felicidade. Êxtase. “Até Monte Merínea! Quero lhe mostrar algo...” No escuro, tudo é igual e aterrador. Um soluço ao longe. – Mãe? – O QUE VOCÊ PENSA QUE ESTÁ FAZENDO?! Ele dá um passo para trás, assustado. – Mãe? O que foi?! E então, uma voz que ele nunca havia ouvido antes: – AGORA VOCÊ SABE COMO É! – POR TODOS OS DEUSES, NÃO! Você vai nos matar! – Mãe, o que está acontecendo?! – ele gritou, e correu. Mas correr parecia levá-lo a lugar algum naquela escuridão total. – Quem é que está te machucando?! – O QUE É ISSO? – Eu não estou sozinha, sua idiota! Você nos prendeu num labiryntho! – MÃE! – Filho? Aqui! 68


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– MAS QUE DEVILIDADE É ESSA, TODA NOITE VOCÊ VIOLA O SONHO DE ALGUÉM?! Medo. A terrível sensação de algo gelado caindo em seu estômago. Os ecos das vozes perseguindo-o. Na escuridão, tudo era igual e sufocante. – MÃE! O som do avião que ia para Monte Merínea era distante e ecoava pela escuridão do nada. – PROMETA QUE VAI ME DEIXAR EM PAZ. – Sua idiota! SAIA! Um momento de silêncio profundo. Por um instante, Gabriel achou que tudo havia deixado de existir, e ele estava em um daqueles terríveis pesadelos em que só havia ele – e mais nada, nunca. – EU... EU NÃO CONSIGO. – MÃE! O que...? – Calma, querido! Netuno, sua completa idiota!... Como ousa tentar o que não sabe dominar?! Você tem ideia do que...?! Ela soltou um gemido. Gabriel não conseguia vê-la, ele não conseguia encontrá-la, ela não estava... – VOCÊ VAI ME DEIXAR EM PAZ OU NÃO? Ele estava entrando em pânico. De repente, o medo era tudo o que ele tinha – sua mãe, a voz estranha, nada importava. O medo era a única coisa real ali, apesar de não ser palpável. O avião dos Correios se distanciava ainda mais, seu som sendo um mero eco agora. Estavam sob ataque. Isso ele sabia – sentia a invasão, a violação de sua mente, e isso lhe atormentava, mais até do que a escuridão. – PARE DE SE INTROMETER, YORDANA, MANTENHA-SE LONGE DE... Gabriel gritou, sentindo a Dor pela primeira vez diretamente nele. – SUA IMBECIL! Quebre o 69


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contato! AGORA! QUEBRE! – EU NÃO CONSIGO! – Você vai nos matar! – MÃE! – GABRIEL, CALE A BOCA! E mais um silêncio daqueles aterradores. – ENTÃO É ESSE O NOME DELE, YORDANA? – Não ouse! E então, Gabriel ouviu o gemido de dor de sua mãe. E o medo finalmente o engoliu por inteiro... E dessa vez, quando ele gritou, não havia apenas medo em sua voz. Havia raiva. – FIQUE. LONGE. DA GENTE! – ele gritou com tanta força que mal se reconheceu. E tudo se misturou em escuridão e gritos – dele, sua mãe, da voz da desconhecida... E quando Gabriel acordou em seu quarto, suando e com uma terrível dor de cabeça, tudo o que ele podia fazer era chorar – de raiva e de medo. E enquanto se contorcia de dor na cama, ia esquecendo lentamente do sonho... Tinha câimbras por todo o corpo, a cabeça latejava e girava, o sonho se desvanecia na realidade... Quando finalmente as dores passaram, ele só se lembraria de fragmentos. E da Dor. Do outro lado do corredor, Yordana também chorava, mas não por medo, nem sequer por raiva. Chorava porque havia falhado. Duas vezes, com duas pessoas diferentes. E Yordana não era acostumada a falhar. Nunca.

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Pelos próximos dias, Gabriel não ouviria uma palavra que fosse sobre Monte Merínea, ou o que havia acontecido, ou qualquer outra coisa relacionada à Arte. Ele não sabia como, mas sua mãe fora capaz de evitar o tópico “Monte Merínea” até a sexta-feira à noite, quando eles entraram no fusca vermelho-cereja 1968 de Yordana e rumaram para a capital. Durante aqueles dias que precederam a viagem, Gabriel tinha a leve impressão de que algo estava errado com ele. Primeiramente, os pesadelos foram embora. Desde aquele sonho estranho, do qual ele só recordava o medo e gritos, ele não havia tido mais pesadelos com música e assassinos, e muito menos a Arte. Aliás, ele não havia tido mais nenhum sonho, nem mesmo o mais simples, e, no entanto, sentia como se conseguisse pensar e se lembrar de coisas que ele não conhecia. No meio-dia da sexta-feira marcada, por exemplo, ele 71


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estava com a estranha sensação de que algo estava faltando nele, só não tinha certeza do que era. Quando Yordana apareceu pronta para sair e mandou que ele se arrumasse logo, era quase como se Gabriel tivesse se convencido de que estava faltando um braço em seu corpo. Durante a viagem de carro, a princípio, o clima era tenso. A incompletude misteriosa de Gabriel dera lugar à raiva que ele sentia da mãe, e ele nem sequer se deu ao trabalho de enveredar uma conversa, sendo Yordana a primeira que falou sobre o assunto, quando eles já haviam saído de Ibacapora e estavam na autoestrada. Ela deu um grande suspiro, olhou-o de esguelha e começou a falar numa voz adocicada, que ela usava para persuadi-lo a ir dormir ou entrar no banho quando ele era menor. – Meu bem, aqui você é só uma criança... – Eu não sou uma criança, mãe! – Gabriel foi rápido em retrucar, só não batendo o pé no chão porque não havia espaço. – Eu já tenho treze anos! No mínimo me chame de adolescente. Ele cruzou os braços sobre o peito, indignado. Ela revirou os olhos, mas seu enfado não mascarou sua tristeza, e quando falou, manteve os olhos na estrada a sua frente. – Biel, para os feiticeiros essa classificação etária não existe. Quando você chegar lá, meu amor, eles vão exigir tudo que você puder dar. Você não será visto como uma criança, pré-adolescente, adolescente, jovem-adulto, ou seja lá qual for a convenção internacional em voga, você será visto como um aprendiz, e acredite, isso não é sinônimo de puberdade. – Eu sou bom com trabalhos físicos, mãe, você sabe... Nesse ponto, Yordana finalmente havia se irritado e aumentou o tom de voz, agarrando o aro do volante com força. – Preste atenção, Biel! Não é simplesmente “trabalho 72


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físico” como colocar um prego numa parede! É o nosso mundo real. São disputas. Criaturas cruéis. Gente ruim, que pode te matar só por prazer. Maldições. É um perigo verdadeiro, não algo que você lê num livro ou vê na TV, e pode desligar a hora que quiser. Ninguém vai te proteger porque você é “só um adolescente”! – ela fez uma pausa, respirou fundo e prosseguiu: – Doze anos, Biel. Essa é a idade que os feiticeiros consideram como o fim da infância e o início da vida adulta. Eles são medievais e você não sabe viver nesse mundo. Você realmente pode morrer, e acredite, não será nenhuma grande tragédia para ninguém, a não ser para mim. Gabriel não poderia querer mais nessa vida: aquela realidade parecia maravilhosa e excitante! A questão era que ser considerado um adulto, dono de si, era tudo que Gabriel sempre quis que sua mãe fizesse. Algo dentro dele dizia que ele devia sentir-se assustado nesse ponto da conversa – deus sabe que o tom de voz de sua mãe era assustador, e como talvez soasse realmente desesperado. A verdade é que ele não saberia dizer: nunca havia visto sua mãe desesperada antes. A não ser... – Mãe, eu tive um sonho muito estranho. Ele não precisou dizer mais nada para confirmar que havia sido, sim, real. Toda a linguagem corporal de Yordana denunciava o envolvimento da mulher naquela noite: seu maxilar contraiu-se, suas mãos apertaram o volante, ela aprumou-se no assento. Pronta para uma batalha. – O mundo da Arte não tem regras claras, meu filho. Você não tem ideia de como é o mundo real... De alguma forma, Gabriel não estava surpreso com a completa anulação de um assunto que nem havia sido começado ainda – ele meio que esperava que sua mãe simplesmente fingisse que nada havia acontecido. Como Gabriel 73


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não se lembrava de quase nada do sonho, apenas dos gritos de sua mãe e do avião, era difícil argumentar também, e no momento, ele estava mais interessado no mundo sem rei nem lei dos feiticeiros... A dor que sentia pelo pseudobraço fantasma formigava na boca no seu estômago, mas até ela havia sido posta de lado. – Você faz parecer um cenário de um filme de guerra, mãe, acho que... Gabriel foi obrigado a engolir o resto da frase quando Yordana fez um movimento abrupto com o carro e freou, parando no acostamento da estrada. O menino sentiu sua pulsação acelerar rapidamente, enquanto observava sua mãe virar-se para ele. – Você não pode achar nada, Gabriel! Você não sabe nada, meu filho! – e ela puxou-o com força, perdendo toda sua delicadeza e seu olhar de mãe, forçando-o a inclinar-se para frente, o cinto enterrando-se em seu pescoço e machucando-o. – Quer saber por que eu me afastei? Quer? Nesse ponto, Gabriel, pela primeira vez desde que lera a carta do Instituto, sentiu sua felicidade murchar, e engoliu em seco, mas fez um sinal afirmativo com a cabeça. Ele não saberia o que fazer além de concordar com o que quer que ela dissesse. Ele conhecia aquele ciclo de mudança de humor da mãe, mas desde a carta, as explosões de raiva haviam cessado misteriosamente, o que não podia ser algo bom. Ela se tornara apática; mas agora, Gabriel via a raiva que ela havia guardado todos aqueles dias. Ele não podia discordar dela nessas horas. Não podia. – Foi porque uma pessoa muito próxima a mim, – e aqui, finalmente ele percebeu as lágrimas nos olhos de sua mãe, cuja voz tornou-se trêmula. Não era raiva, meu deus, pensou ele, era desespero. – a quem eu amava muito, matou outra pessoa que me era igualmente querida... E sabe o que mais? 74


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Gabriel permaneceu estático, seguro pelas mãos firmes de Yordana, sem saber o que dizer. Ela apertou-o ainda com mais força quando proferiu as próximas palavras, e ele sentiu finalmente sua respiração ser cortada pelo cinto firme contra seu pescoço. – Ele também amava essa pessoa. E eu não fiz nada. O menino não conseguiu sustentar o olhar de sua mãe, de forma que ficou encarando o console entre eles, assustado demais para pedir que ela o soltasse. – Era o trabalho dele, meu filho – sussurrou ela, ainda trêmula, soltando-o levemente. – E é nesse mundo que você vai entrar. E não que no mundo em que vivemos hoje isso não exista, mas não é só isso. Você não tem ideia de como está seguro aqui, longe dos feiticeiros. Não ache que é tudo fogos de artifícios e criaturinhas voadoras, porque não é. – ela parou de falar por um segundo, sua expressão tornando-se mais tenra, mais materna: mais o que Gabriel conhecia dela. – Não é um conto-de-fadas, Biel, por mais magia que você veja, é tudo menos um conto-de-fadas. É pra esse lugar que você está indo... – Monte Merínea? – Gabriel finalmente conseguiu achar sua voz, e Yordana olhou-o francamente. – Monte Merínea não é exatamente o modelo de escola de Alta Magia, Biel – murmurou ela, afastando-se dele, voltando os olhos para a estrada. – Há muita controvérsia no que eles fazem por lá. – Quer dizer que você não estudou lá? – Não. – E por que eu não vou pra onde você estudou? – Se você quer mesmo ingressar nesse mundo, é mais seguro para você manter-se longe da Arte Oculta, que é a minha tradição e a da minha Escola. – ela tirou o carro de ponto morto e finalmente retomou seu caminho, sua expressão serena não denotando nenhum traço do ataque que 75


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ela acabara de dar. – Lembre-se disso. – Manter-me longe da Arte Oculta – repetiu ele, sem realmente entender, ainda com medo que ela tivesse outro ataque. – Isso. E de forma alguma, sob nenhuma hipótese, use o sobrenome Nouris. Entendeu? – e nesse momento, ela o encarou franca e abertamente, para fazer de sua declaração algo absolutamente inquestionável. – Nunca associe esse nome a você. – Mas por quê?! – Gabriel deixara sua revolta infantil dominá-lo nesse momento, e a partir do segundo que proferira a pergunta, já se arrependera. É certo que ele vinha pensando em só usar seu sobrenome feiticeiro naquele meio, talvez para impressionar, para mostrar que realmente pertencia àquele mundo, mas jamais lhe ocorrera usar o seu outro sobrenome, Nóbrega. Todavia, aquele não era o melhor momento para desafiar sua mãe, não quando ela estava falando sobre o assunto pela primeira vez. Mas ele retrucou, e Yordana não pareceu nada satisfeita com aquilo. – Simplesmente não o use. E estamos encerrados nesse assunto. Ela nunca mais falaria sobre isso. Como Recife não estava muito longe, a viagem silenciosa não durou muito mais tempo. Apesar de terem estacionado o carro numa avenida larga e sombreada por árvores, com um nome engraçado de um visconde, sua mãe o levara para ruas estreitas e becos sujos, onde um carro passaria mal e mal no espaço diminuto. Eles não visitaram nenhuma rua larga, nenhuma avenida: seu caminho era costurado pelas entranhas mais esquecidas, pelas ruas mais abandonadas possíveis – ruas que Gabriel tinha certeza que nem os próprios moradores daquela cidade sabiam que existia. Yordana guiou-o solenemente por essas vielas, através de lixo e calçadas quebradas, batendo em sobrados pichados e tristes do Recife Antigo, que por fora, pareciam casas 76


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residenciais – ou mesmo abandonadas –, mas quando se entrava, havia prateleiras e prateleiras de objetos, livros e plantas a venda. De fachadas quebradas e cores desbotadas, com tábuas e tijolos tapando as janelas e varandas, as casas eram velhos sobrados, que causaram em Gabriel uma forte impressão – ele nunca havia visto tanta imponência decadente antes. Os homens e mulheres que os recebiam eram igualmente estranhos – silenciosos e desconfiados, sempre olhavam Yordana e Gabriel de cima a baixo com cautela, e só deixavam eles entrarem quando a mulher mostrava-lhes seu imponente cajado de cristal e falava alguma coisa que Gabriel não conseguia entender. Aí então eles faziam uma mesura e abriam cadeados e grades e portas, dando espaço para eles entrarem naquelas salas repletas de mistérios. Enquanto que por fora suas lojas eram tristes e abandonadas, por dentro a limpeza e ordem eram, geralmente, impecáveis – ou pelo menos muito melhor do que se esperaria de um sobrado que aparenta completo abandono. Eles não falavam com Gabriel, apenas com Yordana, e exclusivamente quando esta se dirigia diretamente a eles, perguntando preços e tamanhos. Eles haviam acabado de comprar uma arca de madeira enorme e outras tantas pequenas coisas, e, o que foi mais estranho, um par de facas – uma de cabo branco e outra de cabo preto. – Os meus punhais são de prata e ouro, mas acho que esse pessoal de Merínea prefere os cabos de madeira – ela disse, como se Gabriel fosse entender alguma coisa. – Qual foi da paranoia desses donos de loja? – indagou ele, enquanto empurrava um carrinho de mão que continha a arca envolta em panos velhos, além do resto das compras. Gabriel se sentia um morador de rua transportando seus poucos pertences pra cima e pra baixo. 77


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Yordana deu um meio-sorriso. – Não são “lojas”, Gabriel. São emporiuns. E não é paranoia, é precaução. Manter um emporium numa cidade grande não é tão tranquilo quanto você supõe. Há sempre o perigo de visitas de nãofeiticeiros, ou mesmo de autoridades. Discrição é a alma do negócio. A verdade é que apesar de toda a excitação de Gabriel, ele estava exausto. A pior parte, talvez, fosse ser deixado completamente no escuro. Enquanto Yordana comprava coisas inimagináveis, ela não dizia quase nada sobre nada – e Gabriel não iria perguntar. Ela arrastou-o por toda a parte velha da cidade, impressionando-o com seu conhecimento das ruas e lojas, já que eles haviam tão raramente ido a Recife, e certamente nunca visitado aqueles lugares, mas ele estava cansado demais para perguntar. A compra da panela de ferro, com três pés, foi o que despertou Gabriel. Os feiticeiros não esperavam que ele cozinhasse nada, certo? Porque se havia algo que Gabriel não sabia fazer era cozinhar. E não adiantava o quanto sua mãe tentasse lhe ensinar de temperos e medidas de sal, ele nunca acertava. Era por isso que gostava tanto de macarrão instantâneo. E junto com a panela de ferro Yordana o fez comprar um espelho envolto em veludo preto que ela proibiu-o expressamente de desembrulhar. E um candelabro de quatro braços. E um sino. Um sino, desses que fazem blém–blém. E ele não tinha a menor ideia do por quê. Mas por fim Gabriel desistira de entender aquelas compras quando Yordana comprou-lhe um lampião. – Não tem energia elétrica lá não? – resmungou ele ao pegar mais a sacola com o lampião e o óleo, e colocá-los dentro do carrinho-de-mão que empurrava e que, a cada parada, ficava mais pesado. 78


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– Provavelmente não. Gabriel parou, chocado. – E como eu vou carregar meu laptop?! – indagou ele estupidamente. Yordana soltou uma risada de desprezo. – Quando você chegar lá, vai perceber que para o seu computador funcionar é bem mais complicado do que não ter energia elétrica. Ela falava e andava ao mesmo tempo, mas Gabriel viuse grudado à calçada naquele momento. – ‘Cê tá de brincadeira comigo – murmurou ele, observando Yordana afastar-se lentamente pela noite que já ia alta na cidade. – Não, não estou – disse ela em resposta, sem olhar para trás. – Agora vamos logo, Gabriel, pelo amor de deus, isso aqui não é Ibacapora, daqui a pouco somos assaltados. A conclusão desse passeio pelas antigas ruas do Recife foi o banco traseiro do fusquinha cheio de sacolas e um baú de madeira desengonçado que atrapalhava a visão de Yordana. Naquela noite, eles chegaram em casa de duas horas da manhã, e Gabriel estava tão exausto que dormiu por cima da colcha, se dando ao trabalho apenas de tirar o tênis. Vagamente, ele percebeu Yordana andando de um lado para o outro no quarto dele, guardando as compras dentro do baú, procurando em uma gaveta os vários cadeados que Gabriel tinha e, no fim de tudo, o murmúrio: “Durma bem, meu anjo...” O murmúrio tão costumeiro, mas dessa vez, acompanhado de uma melancolia tão estranha a Gabriel que o acordou. A silhueta de sua mãe já estava na porta do quarto, pronta para sair, quando ele sussurrou: – Mãe? – Sim? – O que você quis dizer quando falou que eu estava por 79


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conta própria? Silêncio. – Amanhã, Biel. Amanhã. E amanhã veio, por mais que Gabriel não quisesse. Naquela madrugada, o menino descobrira que não estava tão firme assim em sua decisão de ir a Monte Merínea, não se isso significasse que sua mãe o abandonaria. Quando acordou, encontrou Yordana sentada à mesa já posta para o café-da-manhã, nada especial, a comida de sempre. Mas havia qualquer coisa de solene naquele dia, que ele não conseguia identificar. – São dez horas – murmurou ela. – Achei que você “sempre acordasse cedo, não importa a hora de dormir” – ela citou a frase que ele usava sempre que queria ficar até mais tarde jogando ou assistindo a filmes. Gabriel dera de ombros e sentara-se a mesa, pouco disposto a jogos verbais – ele bem sabia que sua mãe também não estava nada disposta hoje. – Então, fizemos as suas compras – murmurou ela. – Era um baú que usávamos para ir à minha escola, é bastante prático. As coisas que compramos são básicas, seja qual for a tradição, acho que não errei nada... – ela fez uma pausa maior do que o normal, até que emendou: – Aquele baú é a sua mudança, Gabriel. A sensação de pânico que se instaurou nele ante à palavra “mudança” não se equiparava, de forma alguma, com o pânico que havia sentido no sonho – era muito pior. Era como um banho de água fria enquanto ele estivesse dormindo. – Mudança? – ele tentou parecer igualmente solene. – Você vai morar em Merínea, ficar indo e vindo para casa não é viável, nem mesmo nos finais de semana. – E as férias? – Acho que não – ela disse simplesmente, baixando os olhos para a comida em seu prato. – Não sei onde estarei 80


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essas férias, Gabriel. Sem você aqui, pretendo fazer algumas coisas que venho querendo fazer há muito tempo... O pânico começou a sufocá–lo, mas ele ainda não estava pronto para explodir. – Mas Merínea vai cuidar de você – murmurou ela casualmente. – Pretendo viajar. Não sei quando vou voltar. Esse trabalhinho medíocre que arrumei aqui em Ibacapora definitivamente nunca foi meu sonho. O apartamento, entretanto, eu comprei. Paguei com o seguro do seu pai e coloquei em seu nome. Então, aqui está a chave da porta da sala e a dos fundos – ela passou-lhe por sobre a mesa um molho de chaves com duas chaves recém-forjadas. – Mandei trocar as fechaduras. Agora só eu e você temos acesso aqui, nem mesmo o porteiro ou o antigo dono. Gabriel queria perguntar o por quê de tudo aquilo, mas por algum motivo que ele não conseguia compreender, encontrou-se sem palavras. – Você deixa Chicó com Mariana – continuou Yordana, como se fizesse uma lista de compras, e não determinasse que eles não eram mais uma família. – Não acho que Merínea aprove essa coisa de bicho de estimação. – Mãe... – sua voz saiu mais rouca e insegura do que ele esperava. – E não se preocupe com a casa – Yordana prosseguiu rapidamente, sua voz finalmente quebrando ante ao chamado de Gabriel. – Eu vou selar todas as portas e janelas com alguns feitiços e ninguém vai... – Mãe! – ele sentiu-se à beira das lágrimas. – O que você está fazendo?! Yordana levantou-se abruptamente. – Eu não estou dizendo que não vamos mais nos ver, Gabriel – sussurrou ela, de costas para ele, mas o menino podia sentir as lágrimas dela. – Mas é que precisamos nos proteger. Seu disfarce com o nome Nóbrega não vai durar 81


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para sempre. É bom estarmos prevenidos desde já. É bom que você não saiba onde eu estou... – Mãe! Ele agarrou-a por trás, enterrando seu rosto nas costas dela, incapaz de argumentar. Yordana virou-se abruptamente para ele e abraçou-o de volta, muito apertado, até quase sufocá-lo. Ele se engasgava com o próprio choro, incapaz de verbalizar sua dor e pânico. Algo se rasgava dentro dele, algo muito importante, e que doía muito, uma dor que Gabriel jamais experimentara: a dor da despedida. Durante todo aquele tempo, desde que a carta chegara, ele nunca levara muito a sério as palavras dela sobre estar por conta própria – pelo menos, não imaginava esses critérios extremos que ela estava impondo a ambos. – É mais seguro assim... É mais seguro assim... – ela repetia e repetia, beijando o topo da cabeça de Gabriel, mas nenhuma lágrima sendo derramada. – Pelo amor de deus! Isso não faz o menor sentido! – reclamou ele, indignado, odiando-se por estar chorando na frente de sua mãe. Se ela conseguia segurar as lágrimas, por que ele não conseguia? – Eu não estou entendendo! Por que você não me explica? Por que não me diz o que está acontecendo? Por que você nunca diz?! Seria tão mais fácil... – Não! Não seria mais fácil, Gabriel, acredite. – ela afastou-o de seu abraço, levantando-lhe o rosto para encarar aqueles olhos tão escuros dele, tão pretos que nem o próprio Gabriel se acostumava. – Apenas viva a sua vida, ok? E... por favor, por favor, tente viver o mais tranquilamente possível... Não... Não se envolva em nada além do essencial para viver em Merínea, ok? Não vá atrás das ideias megalomaníacas de nenhum feiticeiro. Lembre-se: viva sua vida como uma sombra. Não chame atenção. Seja discreto. Gabriel fazia um sinal afirmativo com a cabeça a cada sentença dela, apesar de já ter perdido o fio da meada há 82


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muito tempo – ou melhor, apesar de nunca ter tido o fio da meada quando sua mãe falava. A raiva se misturava com a tristeza e sua cabeça girava. Infeliz, ele repetiu debilmente: – Isso não faz o menor sentido, mãe... Yordana enxugou as lágrimas do filho com as próprias mãos, e sussurrou: – Faltam duas semanas – ela afastou-se finalmente dele, dando por encerrado o momento sentimental, e prosseguiu: – É bom começar a preparar o seu baú. Para Gabriel, as semanas que se seguiram foram um borrão em sua memória. Ele se lembraria vagamente de passar horas e mais horas simplesmente deitado em sua cama, pensando em nada e em tudo, enquanto via o sol mover-se lá fora. Ou então ele passava horas deitado na areia da praia, com Chicó andando de um lado para o outro, explorando a praia sempre diferente. Gabriel passou horas com Chicó. Ele não entendia como podia ter-se apegado tão profundamente a um maldito cágado, mas a perspectiva de separar-se do pequeno réptil lhe doía tanto quanto a ideia de separar-se de sua mãe. E o menino ainda não conseguia absorver o fato de que dali para frente aquele apartamento em Ibacapora não era mais seu lar, para onde podia correr quando tivesse problemas ou entrasse em brigas. Naquelas duas últimas semanas, Gabriel se envolvera em mais brigas do que nunca. Sabia que sairia impune – estaria fora de Ibacapora antes que os pais dos meninos que ele arrebentava pudessem fazer uma queixa formal contra ele. Então Gabriel descontou toda sua raiva e tristeza nas brigas de rua. Levara muitos socos e pontapés também – os seus rivais rapidamente perceberam que ele não estava mais “brincando”. Entretanto, ele batera muito mais do que apanhara, mesmo estando em menor número. Em duas semanas, Gabriel havia entrado em seis bri83


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gas feias. Yordana não ligava mais. Não fazia mais nenhum comentário sobre o “passatempo” do filho. Só quem havia falado alguma coisa era Mariana. A menina, sim, ficou possessa com as rinhas em que Gabriel se metia, e se não fosse por ela, talvez ele tivesse se metido em muito mais. A arrumação do baú era lenta e sofrível. Arrumar aquela mala significava a materialização de sua despedida. Apenas dois dias antes de viajarem para o Pico do Papagaio, o ponto mais alto de Pernambuco, foi que Gabriel passou na casa de Mariana e deixou Chicó lá. Lutou contra as lágrimas para não chorar na frente da menina. Mariana não sabia da história verdadeira, ela achava que Gabriel e a mãe estavam se mudando para o Recife, e havia dito repetidas vezes que poderia ir visitá-lo um final de semana. Gabriel nunca fizera menção de dizer não: pelo contrário, disse que quando chegassem lá, ele ligaria e avisaria onde estavam morando. Para sua surpresa, Mariana não apenas acolheu Chicó em sua casa: ela tinha um presente de despedidas bem embrulhado em suas mãos. Era um pacote azul marinho, com cerca de dois palmos de largura e um tanto grosso. Gabriel não tinha ideia do que seria, mas antes que pudesse abrir o pacote, sua mãe chamou, pouco comovida com a despedida dos amigos. – Quando eu abrir eu ligo! – exclamou Gabriel, mentindo. – Tchau! Não se esquece de avisar onde vão ficar! – gritou Mariana em resposta, acenando com Chicó nas mãos. Voltando para casa, Gabriel estava começando entender a frieza e o distanciamento da mãe. Ela achava que assim o ensinava a viver sem ela. Não que ele jamais fosse se acostumar – e não que aquela fosse a melhor forma de ensiná-lo. O tempo voou e o dia para embarcar para Monte Merínea chegou. Yordana estava cada vez mais reticente e im84


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paciente com Gabriel. Este, que por toda sua vida havia suportado e tentado compreender as mudanças de humor de sua mãe, havia desistido de tentar convencê-la que aquilo tudo era mais uma loucura dela – uma loucura muito exagerada. Ele sabia que seria inútil tentar convencer Yordana do contrário, por mais que isso lhe doesse. Ela não ouviria. Ela nunca ouvira. Eles partiram bem cedo naquele último sábado de janeiro. A viagem de carro até Triunfo, município onde estava localizado o Pico do Papagaio, foi incomodamente silenciosa. Eles não falavam mais do que o indispensável um com o outro. Horas e horas de estrada, o único som no carro sendo o rádio ligado e o vento veloz que entrava pelas janelas. Algumas paradas para comprar comida e ir ao banheiro. Reabastecer o carro. Checar o mapa. Eles entraram e saíram da cidade de Triunfo, mais movimentada do que Gabriel imaginara. A estrada para o Pico do Papagaio era terrivelmente esburacada, ladeada por cercas de sítios e mato crescido. Volta e meia, um muro mal ajambrado. Mas acima de tudo, silêncio. E assim, distraidamente e antes que o menino se desse conta, eles já avistavam o seu destino bem de perto, o céu alaranjado do anoitecer colorindo aquela despedida iminente. Gabriel estava tão imerso em seus próprios pensamentos, em suas infinitas conversas imaginárias com a mãe, que ele havia até se esquecido de imaginar como seria quando eles chegassem ao Pico do Papagaio. Afinal de contas, como os redatores da carta de Monte Merínea esperavam que eles chegassem ao topo do Pico? Escalando a montanha? Gabriel teria perguntado à sua mãe se ela tinha alguma 85


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ideia de como eles chegariam lá, mas foi desnecessário. Saindo da estrada principal, e tendo como imagem predominante o imenso Pico, Yordana seguiu por uma ruazinha de terra esburacada, até um casebre de taipa, cercado por uma cerca magra que mal se sustentava de pé, o mato crescendo bravio e selvagem ao seu redor. Havia um grupo de árvores próximas, mas Gabriel não poderia nomeá-las. Dentro da propriedade, o menino teve uma visão inusitada: entre bodes e cabras, árvores e cercas, vários carros estavam estacionados, lado a lado com cavalos e carroças. Várias carroças. – Outros alunos? – indagou ele para Yordana. – Outros aprendizes – corrigiu ela. Contudo, e apesar dos vários carros e carroças à vista, Gabriel não viu sequer uma pessoa na propriedade, e ele sabia por A + B que seria impossível que todos coubessem dentro daquele pequeno casebre de taipa. Eles já estavam pegando sereno e ouvindo a sinfonia noturna dos insetos quando desceram do fusca e começaram a trabalhar no enorme baú de Gabriel. Era pesado e desengonçado, mas Yordana insistira: disse que já havia sido construído com feitiços antifurto e outros “apetrechos”, como ela chamava. Até o momento, porém, o menino não havia visto nenhuma grande vantagem em ter adquirido o trambolho de madeira -- a não ser o estranho espaço interno do baú, que parecia ser um tanto maior que seu exterior demonstrava. – Vamos – chamou Yordana, arrastando o baú na direção do casebre. – Sem bater? – indagou Gabriel, desconfortável com a situação. – Eles já sabem que estamos aqui, seu besta. – Ah. E, de fato, já sabiam: bastou se aproximar da casa de taipa que a porta rangeu e se abriu, revelando uma mulher 86


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mais velha que o tempo e mais enrugada do que maracujá de gaveta. Quando sorriu, ficou apenas mais enrugada. Era tão magra quanto sua cerca de espetos, o vestido azul pendia folgado em sua silhueta. As sandálias de couro pareciam prestes a se desintegrar, e ela secava as mãos num pano de prato esfarrapado. Gabriel pôde perceber, porém, que apoiado na mulher havia um cajado retorcido de madeira, tão velho quanto ela. – Qual a ocasião, minha senhoria? – indagou a velha, no seu sotaque forte do interior. – O trem das onze! – respondeu Yordana sem pestanejar. – Mas é claro, mas é claro! – ela sorriu seu sorriso banguela. – Desculpe minha intromissão, mas é que nesses tempos de hoje todo cuidado é pouco! – Eu entendo – respondeu Yordana cordialmente. – Posso, hem, ver o permisso? – perguntou a velhinha enrugada. – Gabriel, a carta – murmurou Yordana para o menino, que se atrapalhou na hora de tirar o papel amassado da mochila que levava nas costas, e acabou derrubando metade de seus pertences no chão de terra. – Ah, desculpa... – gaguejou ele, encabulado, sentindo seu rosto queimar, pegando desajeitadamente as coisas do chão. – Aqui, aqui está... – e enfim mostrou a carta de Monte Merínea para a velhinha. Ela passou os olhos rapidamente e sorriu sua aprovação. – Que formosura de carta! – exclamou ela. – Quem escreveu a tua carta, menino, escreveu com capricho! Tu sabe, cada carta é diferente, mas a tua, com essa caligrafia, ah!, dá pra dizer que foi alguém muito cuidadoso, muito considerado por você... Gabriel piscou, lacônico. Yordana pigarreou. – Nós podemos...? – perguntou ela, já impaciente. A velhinha sorriu. – Ah, mas sim! Sim! Pois claro que 87


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já pode entrar, venham, venham! – ela afastou-se da porta, abrindo caminho para mãe e filho passarem. O casebre, para surpresa de Gabriel, era exatamente o que aparentava por fora: uma casa de um único cômodo, pobre e empoeirada. Havia um velho (tão velho quanto a velhinha que os atendia) dormitando numa rede. Ele roncava sonoramente, alheio aos visitantes. A velhinha deu-lhes as costas enquanto murmurava, segurando firmemente seu cajado de galho retorcido e batendo-o ritmicamente no chão: – Vocês devem ser os últimos, sabe. Eu já tinha fechado a passagem quando Mará me avisou do fusca... – ela não elaborou, mas Gabriel suspeitou que Mará fosse o homem dormindo... Como ele havia avisado sobre o fusca, ele não tinha ideia. A velha terminou de batucar no chão de terra batida com o cajado e então Gabriel viu o que, há dois segundos atrás, parecia não estar ali: o claro contorno de um alçapão. Com certa dificuldade, a velhinha abriu a passagem no meio do casebre e acenou positivamente com a cabeça: – Vai, vai logo, que já tô velha demais pra ficar segurando isso muito tempo... – reclamou ela, mas eles podiam ouvir riso, e não desgosto em sua voz. Yordana, para surpresa de Gabriel, fez uma mesura. Ele, impulsivamente, imitou-a. – Muitíssimo obrigada, senhora. Tenha uma ótima noite. – Muito obrigado – disse também Gabriel, e seguiu a mãe pelas escadas estreitas do alçapão, puxando o baú que quase o esmagou lá embaixo. – Faz uma boa viagem e fique bem em Monte Merínea, Gabriel Nouris! – cumprimentou a velhinha, fechando o alçapão sobre as cabeças do menino e de sua mãe, antes que qualquer um dos dois pudesse ter uma reação. – Assim que você subir a bordo, Gabriel – murmurou 88


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Yordana, subitamente puxando uma lanterna da bolsa e ligando-a. – destrua essa maldita carta com seu nome completo. – Sim, senhora – confirmou ele, sem hesitar. Com a luz da lanterna de Yordana, Gabriel podia ver um longo túnel se estendendo à sua frente. – E agora? – indagou, sentindo seu ânimo diminuir. Eles nunca conseguiriam arrastar o baú por toda aquela distância... E subir o Pico do Papagaio? Como? – Nós pegamos um carro – murmurou Yordana, como se tivesse lido os pensamentos de Gabriel. Ela caminhava, decidida, enquanto Gabriel a seguia empurrando o baú. – Um carro? Num túnel subterrâneo? – o menino estava incrédulo. – Não é esse tipo de carro, Gabriel – respondeu ela, rispidamente. – Você vai aprender que algumas palavras não são o que você está acostumado a entender... É uma outra realidade, uma outra cultura. Se quiser realmente fazer parte dela, vai ter que se livrar de muita coisa que aprendeu. Enquanto ela falava, caminhava lentamente, com o cajado levantado um pouco acima da cabeça, vasculhando a escuridão do túnel com a lanterna. Gabriel olhou para o cajado da mãe, só então se dando conta de que ela havia saído do carro com ele e que o carregava como a uma arma. E então, um pensamento lhe ocorreu. – Por que você não faz, sei lá, uma mágica com seu cajado pra iluminar tudo ao invés de usar uma lanterna? – em sua opinião, a lanterna se tornava medíocre e obsoleta diante do poder que Gabriel sabia, apesar de nunca ter visto, haver dentro do cajado da mãe. – Porque, meu filho, nós não fazemos espetáculos de fogos de artifício à toa. A Arte é muito sagrada e muito complexa para ser usada levianamente. Se temos lanternas, desperdiçar poder num raio de luz não faz o menor sentido. 89


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Aha, aqui está! – ela interrompeu sua linha de pensamento para exclamar. – Mais longe do que eu imaginei, é verdade, mas está aqui... E Gabriel logo viu do que ela falava: a seus pés, havia um trilho antigo, e logo à frente, um “carro”, parecido com aqueles de carregar carvão dos filmes de faroeste, só que menor. Ele tinha assentos e espaço para o baú de Gabriel logo atrás deles. Depois de acomodarem o baú, sentaram-se lado a lado e, antes que Gabriel entendesse como, o “carro” saiu em disparada, e o menino teve que agarrar-se à mãe para não cair para trás. Ela segurou-o com firmeza, mas soltou-o rapidamente. Tudo se iluminou: os trilhos que traçavam o caminho à sua frente ganharam uma incrível tonalidade de azul turquesa, iluminando aquele túnel sinuoso, dando à escuridão um aspecto onírico. Não demorou muito para, num solavanco, eles estarem subindo, como numa subida de montanha russa – só que num túnel magicamente iluminado, e sem a menor noção de quando a subida acabaria. O menino podia ver, de relance, que havia pontos brilhantes nas paredes do túnel... Pedras preciosas, talvez, ponderou Gabriel. Ele imaginou os trilhos azuis-turquesa subindo pelas entranhas do Pico do Papagaio, e depois do que pareceu uma eternidade, mas na verdade não foi mais do que vinte minutos, eles avistaram, acima de suas cabeças, uma luz. O fim do túnel, afinal de contas. A parada foi tão abrupta quanto a saída. Se Yordana não tivesse segurado Gabriel pela gola da camisa, este teria saído voando pelos ares. Aparentemente, ela estava bastante acostumada a esses solavancos inesperados. – Vamos, você ouviu a velha lá embaixo – murmurou Yordana, já saindo do carro e indo pegar o baú. – Nós somos os últimos a chegar. 90


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– Mas... é cedo! – retrucou Gabriel, ainda atordoado com a viagem e bastante enjoado. – Pontualidade não costuma ser o forte dos feiticeiros, Gabriel – disse Yordana, puxando sozinha o baú, já que Gabriel parecia incapaz de se mover. – Eles podem tanto chegar atrasados quanto bastante adiantados. Foi só depois de alguns minutos lutando contra o enjoo que o menino finalmente olhou ao seu redor. E a primeira coisa que percebeu é que estava morrendo de frio. O vento fustigava seu rosto e parecia cortar tanto sua roupa quanto sua pele. O frio intenso varreu o enjoo de Gabriel para longe, substituindo-o por um constante tiritar de dentes. Já era noite plena, mas ao contrário do que ele esperava, não havia um agrupamento em volta de uma fogueira no topo do Pico, ou sequer um castelo medieval escondido pela neblina... Havia, na verdade, umas duas dúzias de pessoas enroladas em roupas de frio, sentadas em grandes baús e aquecidas por seus cajados, divididas em vários pequenos grupos. A animação parecia ter morrido já há algum tempo, a exceção de um grupo que partilhava uma garrafa de líquido verde e ria em voz alta, reverberando nas pedras do pico. Yordana tirou uma longa manta de sua bolsa e envolveu-se nela. Em seguida, abriu o baú e começou a revirá-lo, até achar uma blusa de manga comprida e um casaco. Deu os dois para Gabriel, que se encontrara petrificado no assento do carro de trilhos. Ele vestiu a blusa e o casaco, e seu estado melhorou um pouco depois que sua mãe, mais uma vez, sussurrou algo para o cajado e Gabriel pôde sentir, aliviado, um delicioso calor emanando do cristal no topo. – Vamos nos sentar. Pode demorar – murmurou Yordana e, com a ajuda do filho, arrastou o baú para longe dos trilhos. Assim que eles se afastaram, o carro desapareceu de vista, e eles podiam ouvir o som que ele fazia nos trilhos su91


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mir rapidamente. – Não fale com ninguém – sussurrou sua mãe, e foi a última coisa que disse antes de ambos caírem num silêncio gelado como o Pico do Papagaio, que duraria horas a fio. A última vez que Gabriel teria qualquer lembrança de sua mãe seria apenas poucas horas antes de embarcar para o Instituto. Estavam os dois lá, no Pico do Papagaio, enrolados em seus respectivos casacos, as pessoas a sua volta indiferentes a mãe e filho. Gabriel ficara impressionado com a quantidade de pessoas ali. Muito mais do que ele imaginara, de fato. Mas todos eles já pareciam conhecer o sistema, o que o fez apenas sentir-se ainda mais deslocado. Ele havia contado uns vinte alunos além dele. Yordana havia-se sentado sobre o baú, ao lado de Gabriel. – E pra onde você vai daqui? – ele havia indagado, depois que o silêncio quase congelara sua voz, sem realmente ter esperanças de obter uma resposta objetiva. – Eu não sei... Talvez eu saia do estado – disse ela simplesmente. – Por que... Por que você simplesmente não me conta? – insistiu ele, nunca a olhando nos olhos. Não sabia se suportaria. – Você quer que eu minta ou que eu simplesmente oculte a informação, Gabriel? – ela perguntou, o que fez com que o menino levantasse o olhar para ela. – Acho que se você pensar bem – murmurou Gabriel em resposta, um sorriso triste brotando-lhe nos lábios – vai perceber que ocultar é o mesmo que mentir. Essa foi a última coisa que ele disse para sua mãe. Depois disso, ela ficou em silêncio, não o olhando mais nos olhos, e depois de algum tempo, afastou-se, alegando que iria andar um pouco para afastar o frio... E assim le92


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vando o cajado que havia mantido Gabriel aquecido por todas aquelas horas. Ele nem sequer fez menção de dizer algo em resposta. O tempo passou e Yordana não voltou de sua caminhada. Gabriel sentiu as lágrimas nos olhos, e se amaldiçoou por isso. Não podia chorar no meio de feiticeiros desconhecidos, com os quais ele dividiria um teto. Não podia chorar. Por favor, volte, volte, volte, volte... Mesmo sabendo que não era possível, ele não conseguia se impedir de desejar, de desesperar, por sua mãe. Gabriel estava tão absorto em seu mantra silencioso que nem ouviu quando gritaram: – LÁ VEM A NAU! O menino havia imaginado que um avião miraculoso ou algo parecido surgiria para levá-los, mas o que viu o surpreendeu mais ainda. Quando ele percebeu que havia algo estranho, um forte vento batia, mais forte do que o normal, e luzes desciam do céu para iluminar o topo do Pico do Papagaio e os feiticeiros e aprendizes. Atordoado, Gabriel olhou para o céu – e ali, sobrevoando lentamente o Pico, estava o maior zepelim do mundo, prateado, preparando-se para pousar. A “nau” havia chegado. Se Gabriel estivesse mais consciente do mundo à sua volta, poderia ter ficado muito mais fascinado pelo tamanho da Nau Voadora e sua cabine de comando, e os homens fardados que vinham recolher a bagagem e dar bilhetes de viagem para os aprendizes, e a trombeta que anunciava a última chamada para entrar no zepelim, e a longa escadaria de metal que levava até a entrada do zepelim, e os outros meninos olhando curiosos para ele em sua apatia, e o interior lustroso da Nau e suas várias gôndolas para passageiros, ligadas por corredores mal iluminados. Todos embarcaram, inclusive Gabriel, com uma sensação engraçada de dormência no corpo e na mente, seguindo 93


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os outros meninos como a um rebanho. E todos falavam excitados de Monte Merínea, mas para Gabriel, essa era a última coisa em sua mente. A única coisa que ele conseguia pensar era em sua mãe. No fundo, ele não esperava que ela estivesse ali para lhe beijar seu adeus, sabia que ela daria um jeito de fugir antes da hora derradeira. Mas isso não diminuía sua dor nem um pouquinho. Nem um milímetro sequer.

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Frio. Muito frio. Muito mais frio do que o Pico do Papagaio... Era mais gelado ali do que ele imaginara. É verdade que sabia que lugares altos eram frios, mas não sabia que podiam ser tão frios assim – alguns graus negativos, tinha que ser. A única coisa positiva era que ele já não sentia frio nas mãos... Pois já não as sentia mesmo. Aquele vento forte parecia furar seu rosto com mil agulhas, e ele sentia as bochechas queimando. Respirar lhe doía os pulmões. O ambiente era basicamente hostil. Entretanto, nada era suficiente para impedi-lo de ficar ali fora, naquele pequeno nicho que se parecia com uma varanda que ele havia descoberto, próximo à gôndola de comando, exposto às intemperanças da altitude. Ele observava aquela noite espetacular se desvelar diante de seus olhos tão escuros como aquele céu, com suas nuvens e estrelas e lua, tão ofuscante como 95


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jamais vira. Gabriel tentou lembrar-se de suas aulas de geografia. Cúmulos, cirros, nimbos, estratos... É, devia ser isso. Só precisava lembrar o quê era o quê. O mundo naquele momento não era mais nada além de céu e nuvens. Era a sensação mais estranha e mais fantástica que ele já havia sentido: não havia terra, nem mar, nem prédios, nem montanhas, nada. Era apenas céu. Não havia para onde fugir. Tudo era céu, escuro, estrelado, infinito e sufocante. Era uma sensação absolutamente nova para ele, uma experiência que ele sabia ser inesquecível... Mesmo porque nunca havia passado tanto frio em toda sua vida. É claro, nunca estivera num lugar tão alto em toda sua vida. De fato, Gabriel não estava simplesmente num lugar alto, mas sim sobrevoando a própria noite num dirigível gigante ao qual todos chamavam de Nau Voladora, e que ele ainda não conseguia conceber como possível. Enrolado em seu casaco, tendo ido à sua cabine já duas vezes para colocar mais blusas e uma calça por cima da sua roupa original, ele agora se agarrava a uma pilastra bem à frente daquele zepelim, observando a noite à sua volta, os cabelos cacheados e pretos atrapalhando sua visão, devido ao forte vento. Aquela viagem era mais atordoante do que uma primeira vez num barco, constatou ele, em que tudo a sua volta era mar – mas sempre havia um céu acima de sua cabeça e uma vida marinha abaixo, lembrando que realmente havia mais coisas entre o céu e a terra do que ele podia imaginar. Mas naquele momento, não havia terra, apenas escuridão embaixo dele; era tudo só céu. Não parecia haver tanta coisa assim no mundo além de nuvens. Bem, talvez houvesse. Depois de ter superado a apatia inicial com a partida de 96


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sua mãe, Gabriel se viu fascinado pelo meio de transporte no qual se encontrara. Sabia que era um dirigível – não que já houvesse visto algum antes, mas porque já havia visto em filmes antigos. Um zepelim, nos anos 2000, com várias gôndolas de passageiros divididas em cabines, além do que ele havia concluído ser um salão de jantar, e uma área de carga a qual ele não havia conseguido localizar. As engrenagens misteriosas que entrevira no interior da estrutura pareciam antigas, o que lhe fez sentir apreensivo. Havia ainda aquelas cordas finas e prateadas que pareciam segurar a “nau”, e elas não podiam ser suficientes para manter tudo unido numa única estrutura. Parecia haver um sutil equilíbrio de pesos ali que estava além da sua compreensão. A Nau Voladora em si era enorme, e Gabriel tinha certeza que havia espaço ali para mais de duzentas pessoas, mas ele também tinha certeza de que não havia gente suficiente para ocupar todo aquele espaço. Por vezes ele se sentiu num navio fantasma. Os outros pareciam evitar a primeira gôndola de passageiros, onde ele havia encontrado a porta para aquela balaustrada e, bem, ele não podia realmente culpá-los: se não fosse a vista deslumbrante dali, e a novidade que tudo aquilo era, ele certamente estaria bem enrolado dentro de uma cabine, bebendo alguma coisa quente de preferência e Meu deus, ele estava a bordo daquela coisa. Inacreditável. Agora eles voavam acima de uma tempestade que atingia sabe-se-lá-que-lugar. Era uma visão fantástica: o mar tempestuoso de nuvens abaixo do dirigível, com suas tonalidades escuras de chuva contra a noite negra e estrelada. De vez em quando, o brilho rápido de um relâmpago aqui e acolá, seguido por trovoadas ensurdecedoras. Ele sabia que se houvesse um fim do mundo, devia soar daquele jeito, devia tremer os ossos dos homens da mesma forma que tremia 97


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os seus. Em alguns momentos, as nuvens formavam caras risonhas – rindo-se da sua cara abobalhada, com certeza. Em outros, eram figuras que quase pareciam uma mensagem dirigida a ele. Em certo ponto da viagem, o menino podia jurar que havia visto o rosto de sua mãe emoldurado pelos longos, infinitos cabelos negros e cacheados dela... Nem nas nuvens sua expressão era feliz. Já havia perdido o rumo desde que eles levantaram voo do Pico do Papagaio. Ele não era nenhum grande especialista em geografia do Brasil, mas tinha a ligeira impressão de que estava mais longe de casa do que jamais estivera antes, e isso era ao mesmo tempo emocionante e assustador. Aliás, Gabriel podia já considerar-se o mais longe de casa no exato momento em que eles ganharam a ‘altitude de cruzeiro’, como ele ouviu os mais velhos falando. E ouvir os outros falando era só o que ele havia feito. Normalmente ele não era um garoto tímido, mas a situação era por demais absurda e fantástica e impressionante e, e... Em suma, era demais para ele ser ele mesmo. O menino não estava certo se jamais voltaria a ser quem ele era antes daquela noite. E pensar que há três semanas ele havia chegado à mesma conclusão, com os difíceis diálogos com sua mãe... Parecia-lhe que as coisas estavam mudando rápido demais, em muito pouco tempo, e ele não sabia se isso era exatamente bom. A verdade é que pouca coisa havia realmente acontecido até o momento, mas ele não precisava de muito mais para ficar estupefato, não depois de sua mãe lhe dizer que a “Arte” da qual era adepta era um pouco mais do que fazer chás medicinais. Não que qualquer coisa que sua mãe dissera tivesse ajudado muito, uma vez que ela se recusava a falar sobre o assunto e nunca – Você não está com frio? Se ele não estivesse tão congelado, teria saltado de susto 98


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ante a voz inesperada atrás de si. Virando-se lentamente para encarar a dona da voz, ele se deparou com uma menina baixa, mas mais velha do que ele, olhando-o com uma curiosidade risonha enquanto se apoiava num cajado quase de sua altura. Quase todos os aprendizes carregavam cajados como os da garota. Ela estava bem agasalhada, ao contrário dele, num conjunto de roupas escuras, os olhos verdes dela brilhavam mesmo na tênue iluminação da lamparina sobre a balaustrada, mas o que mais chamou a atenção foram os cabelos – longos, escuros e cacheados, reluzindo com a parca luz do ambiente. Era como rever a imagem que vira há algumas horas atrás nas nuvens, só que dessa vez mais sólida – e falante. Afinal, não era sua mãe nas nuvens que ele vira... – Garoto? Ele percebeu, encabulado, que estava encarando-a. Ela apenas sorria em resposta. – Hã, sim. Ela pareceu simpática o suficiente para ignorar sua má-educação inicial. Poderia de fato considerá-la parecida com sua mãe, mas seus olhos eram claros e seu rosto mais redondo e simpático. – Dá pra ver que você é noviço, quando eles acham esse lugar sempre ficam por aqui no começo da viagem... Mas você ultrapassou todos os recordes, eu acho – ela riu, uma risada educada. – Não é muito inteligente ficar aqui fora exposto ao frio por tanto tempo... especialmente com tão pouco agasalho. Ela tinha sotaque do sul. De onde exatamente, Gabriel jamais saberia dizer. – Eu sei que é tudo bem incrível quando a gente embarca na Nau Voladora pela primeira vez, – ela olhou-o pelo canto do olho, o cajado que carregava apoiado delicadamente entre ela e a balaustrada – mas você não vai querer chegar lá já doente, e perder toda a festa. 99


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Ele esfregou a cabeça, sentindo as pontas dos dedos adormecidas, e considerou o que ela disse por alguns segundos. – É, realmente – ele suprimiu uma risada ridícula que queria lhe sair da garganta, e voltou-se novamente para a noite. – Meu nome é Eulália. Eulália Circinus – ela afastouse do beiral do convés e esticou a mão direita, enquanto a esquerda segurava firmemente seu cajado. – Gabriel Nou... – ele deu-se um chute mental e tossiu dissimuladamente, corrigindo-se: – Nóbrega. Gabriel Nóbrega – ele acolheu a mão oferecida na sua, admirando-se de como ela podia estar tão aquecida exposta àquele mesmo vento frio que ele. – Por todos os mundos, você está congelando! – ela soltou o cajado e cobriu a mão dele com as suas. Mas Gabriel estava tão ocupado encarando o cajado dela que apenas tinha a vaga noção de que Eulália tentava aquecer suas mãos, porque o bastão de madeira permaneceu de pé. No ar. Sem nenhum sustento. Simplesmente lá. Como se tivesse vida própria. E piscou para Gabriel. O menino não entendia como, mas aquele pedaço de madeira escura havia piscado para ele. E a coisa nem sequer tinha olhos pra isso, mas havia piscado do mesmo jeito. O frio finalmente tinha cessado suas sinapses, concluiu Gabriel. – Você tem razão – murmurou ele, rouco, ainda com o olhar fixo no cajado. – Me tira daqui. Eulália encarou-o por mais um segundo, como se finalmente tivesse percebido a perplexidade na expressão de Gabriel, mas não disse nada. Apenas pegou seu cajado, segurou o menino por um braço e guiou-o para fora da área 100


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aberta da balaustrada, passando pelas portas de vidro duplo e finalmente entrando na gôndola quente, iluminada e aconchegante, onde cabines e mais cabines com almofadas confortáveis o esperavam. Ele finalmente havia enlouquecido. Era simplesmente coisa demais para sua pobre cabecinha absorver, pensava Gabriel. As alucinações eram inevitáveis, apenas uma questão de tempo. E por que ele tinha a impressão de que aquele pedaço de pau continuava encarando-o? Quando Gabriel abriu os olhos, deparou-se com um teto encardido e uma lamparina a gás que não lhe eram tão desconhecidos assim. Estava deitado no sofá de uma cabine, coberto por um pesado sobretudo preto, a cabeça apoiada num pequeno travesseiro, o cheiro de café quente sendo o principal responsável por tê-lo despertado. Ele poderia ter-se levantado com um pulo, mas percebeu que estava cansado demais para isso. Assim, lentamente, virou a cabeça e deu de cara com Eulália segurando uma enorme caneca de café e aquele cajado antipático ao seu lado – pelo menos dessa vez ele estava apoiado na parede. E parecia estar dormindo. Meu deus do céu. Ele ainda estava louco. Os neurônios não se regeneram. Nem descongelam. – O que aconteceu? – lentamente, Gabriel afastou o sobretudo e sentou-se, flexionando os dedos das mãos ao perceber que sua sensibilidade havia voltado. – Você não lembra de nada? – ela perguntou, espantada, os olhos verdes arregalados em surpresa. – Minha nossa, você estava pior do que eu imaginei... Aqui, café quente. Sem hesitar, Gabriel pegou a caneca e bebeu avidamente. Não era nenhum grande apreciador de café, mas no momento era mais do que bem-vindo. Sentiu seu estômago aquecer-se, e a sensação lentamente começou a se espalhar 101


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agradavelmente pelo resto do seu corpo. Ainda não entendia como havia parado lá, mas o café já era um grande consolo. – Você estava realmente congelando lá em cima, eu te trouxe pra cá, você sentou aí e apagou. Ah. – Ah. Gabriel sentiu uma pontada no estômago, prova de sua vergonha descomunal por “apagar” em frente à estranha... Ele estava corando? Estava sentindo seu rosto ficar quente, e não era o café. Eulália sorria para ele. Gabriel baixou os olhos para a caneca em suas mãos, dando mais um gole, e pensando no que iria dizer. – Você percebeu meu Meáren, não foi? – Seu o que? – Ela o estava acusando de alguma coisa? Discretamente, Eulália sinalizou o cajado encostado na janela. E Gabriel não precisou de mais explicações. – Sim! Isso... – Ele. – ...piscou para mim! – É um cajado Meáren, sabe. – Um o quê? Os dois pararam e se encararam por alguns segundos. – De onde você veio, Gabriel? – Hum, do Pico do Papagaio? – Não, eu quero dizer... de onde você veio, sabe. Gabriel finalmente entendeu o que ela queria dizer, e sentiu ainda mais raiva de sua mãe naquele momento. Ele deveria saber. Ele deveria. – Minha mãe era uma feiticeira, mas ela abandonou tudo. Nem queria que eu viesse para cá. Eulália ergueu uma sobrancelha, intrigada. – Ah, é? Gabriel baixou os olhos para o café e deu um grande 102


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gole. – Muito obrigado pelo café. Onde você conseguiu? A garota percebeu que ele estava dando o assunto por encerrado, e não pressionou: – Tem uma cafeteria aqui – ela deu uma risada. – Você não viu? Gabriel sentiu-se ruborizar de novo. – Não. – Pelo visto, estava mais entretido na balaustrada do que eu imaginei! – ela continuava rindo, e Gabriel começou a sentir raiva de Eulália. Abruptamente, a garota parou de rir e encarou-o seriamente. – Desculpe – ela levantou-se e pegou seu cajado. – Olha, eu estou lá atrás, na segunda gôndola de passageiros, com uns amigos. Se você quiser vir, é a cabine 207. Foi então que algo estalou na mente dele. – Espera. Que cabine é essa? – Hum... – ela abriu a porta e olhou o número inscrito. – Cento e dois. – Minhas coisas estão na cento e catorze. – observou ele, preocupado, levantando- se. – Você acha que tem algum problema? Eulália sacudiu a cabeça negativamente. – Muito improvável, a não ser que você não tenha despachado seu baú no compartimento de carga. – Então está tudo bem – murmurou Gabriel, mais aliviado. – Você... vai agora? Ela sorriu. – Agora que você acordou posso ir sem peso na consciência. A gente se vê. – Eulália deu um último sorriso e saiu da cabine segurando seu Meáren, os passos firmes dela sincronizados com o bater do cajado no chão. Então o nome era cajado Meáren. E eles tinham olhos... Ou algo que o valha. E podiam ficar em pé. Eram mais do que meros instrumentos, então. 103


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Gabriel ficou mais dois ou três segundos ainda de pé no meio da cabine, com a estranha sensação de que estava esquecendo de alguma coisa. Foi então que ele se virou para os bancos em que estivera deitado e viu o sobretudo preto, que definitivamente não era dele. Agarrou-o rapidamente e saiu para o corredor com piso de madeira – podre, pelo visto. A iluminação das lâmpadas a gás era precária, formando sombras incertas nas paredes encardidas. – Eulália! Ela já havia alcançado a porta no fundo do corredor e seguia para a outra gôndola. Levantou a cabeça e sorriu para ele, voltando-se e aproximando-se a passos lentos. Naquele momento, um grupo eufórico de meninos saiu de uma cabine, atrapalhando o avanço de Gabriel, que perdeu Eulália de vista por alguns segundos. Ele ainda esbarrou em um garoto, empurrando-o contra a parede de pintura descascada. O menino gritou um “EI!” para Gabriel, mas este último não se deu ao trabalho de pedir desculpas, sua atenção focada na figura de Eulália no outro extremo do corredor. Desvencilhou-se da confusão de meninos e a alcançou. – Você esqueceu seu casaco – murmurou ele, meio esbaforido, oferecendo a peça à garota. – Ah, obrigada – o sorriso de Eulália parecia nunca se desmanchar em seu rosto branco. – Mas se quiser ir pra balaustrada, pode ficar com ele, você me devolve no Instituto. Gabriel ficou confuso. – E eu vou te ver lá? – É claro, nós vamos morar lá por um ano inteiro, Gabriel, o que você acha? Ele considerou aquilo por um instante. – Mas você está numa série mais avançada – foi uma afirmativa disfarçada de pergunta. 104


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– Entrei ano passado – ela deu uma pequena risada. – As coisas ainda são bem novidade para mim também. Ela pegou o sobretudo e apoiou-o num ombro. – E pode me chamar de Lália, só meus pais me chamam de Eulália, ok? – Pode me chamar de Gabriel mesmo – a observação fez Lália rir, virando-se lentamente para o corredor e finalmente sumindo de vista. Gabriel deu as costas para a porta, observando o movimento de aprendizes que havia se formado e agora impedia sua passagem. Eles se agrupavam em frente à cabine cento e doze, gritando e empurrando-se na tentativa de atravessar a porta e entrar. Gabriel aproximou-se lentamente, abordando um rapaz – evidentemente bem mais velho – que segurava seu cajado com displicência e assim como Gabriel, apenas observava. – O que está acontecendo? – indagou, não tirando os olhos da cena. – Parece que descobriram uma arara azul nas coisas de uma menina – respondeu o outro, moreno e forte, mas apenas um pouco mais alto que Gabriel. Tinha cabelos louros, tendo um tipo exótico: de cabelos claros e pele escura, destacava-se em qualquer multidão, a despeito da pouca altura. O menino arregalou os olhos. – Eu não sabia que podia trazer bichos pra Monte Merínea... O mais velho riu. – E não pode! Eis o motivo da confusão. Algum dedo-duro já pode ter visto e denunciar quando chegarmos lá; todos estão querendo aproveitar pra ver a arara... De repente, a multidão de garotos se afastou da porta da cabine, no mesmo momento em que Gabriel sentia-se nocauteado na barriga por algum empuxo invisível no ar. Os mais próximos da porta caíram, Gabriel e o rapaz ao seu lado apenas bateram contra a parede, ficando aturdidos. 105


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– Mas o que...? – Gabriel estava tonto. – Feitiço repelidor! – exclamou o rapaz, espantado, mas com um sorriso de canto a canto – Ela é boa! – e riu. Enquanto estavam todos tentando se levantar e recuperar o fôlego, uma menina ruiva passou correndo por eles, carregando um cajado, uma mochila nas costas e um caixote grande nas mãos, pisando em todos que estivessem em seu caminho, correndo para a escadaria pela qual Lália havia acabado de descer. Quando ela passou por Gabriel, deu-lhe uma breve olhada de esguelha, provavelmente temendo que ele pulasse nela também, mas seguiu seu caminho. Assim que desapareceu no vão da escada, alguns já se haviam recuperado e corriam para ela, enquanto outros acabaram decidindo que a arara azul não era tão interessante assim. – Então era Anabette – murmurou o rapaz ao lado de Gabriel, balançando a cabeça e sorrindo. – Eu devia saber. – E o que vai acontecer com ela? – indagou Gabriel, virando-se para ele. – Eu acho que vão fazê-la devolver a arara para o lugar em que ela foi capturada. Se é um animal da família, vai ter que ser levada de volta para casa. Em Monte Merínea ela não pode ficar. – E por que não? – a simpatia de Gabriel estava com a tal Anabette, que lutava para ter seu bicho de estimação consigo. Ele pensava agora em Chicó, e como sentia falta de seu cágado estúpido. – Olha, isso pode causar uma confusão tão grande que você nem imagina... Campos energéticos diferentes podem ser ruins pra arara e pra Monte Merínea, a gente nunca sabe que tipo de energia esses animais carregam, se você sai misturando as coisas por aí, pode causar tantos desequilíbrios... – FEBO! Felizmente, a ladainha que era incompreensível para 106


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Gabriel foi interrompida por uma menina morena, que se jogou nos braços do rapaz com quem Gabriel conversava, ignorando-o completamente e interrompendo o discurso. – Você viu? Você viu a arara? Tocou nela? – a menina estava eufórica. – Ah, Febo, viu porque eu quero tanto uma arara? É linda! – Artemísia, por todos os mundos, quantas vezes a gente vai ter que discutir isso?! – Febo parecia irritado. – Olha, Anabette já fugiu lá pra trás, com certeza para uma dessas passagens ocultas que só os deuses sabem como ela encontra. Vai ficar no compartimento de carga a viagem inteira... Se você não viu a arara, não vai ver mais. Artemísia, que aparentemente era irmã mais nova de Febo, pequena e morena, assim como ele, cruzou os braços, contrariada. – Mas que mer---! – Ei! – Febo olhou feio para ela. – Desculpa, mas é que é mesmo! O rapaz esfregou os olhos, contrariado. – Você é uma menina, Mísia, não pode sair por aí falando essas coisas... – Por que garotos podem e eu não posso? – Mísia... Gabriel cansou-se de ouvir a discussão do casal de irmãos e seguiu para a cabine cento e catorze, onde havia deixado seu mochilão e sua sacola de coisas. Ficar ali não levaria mais a lugar algum. Quando abriu a porta de sua cabine, encontrou tudo onde havia deixado, além de mais duas pequenas malas que não conhecia. Na certa alguém havia se acomodado ali também. Assim que o vissem, sairiam rapidinho. Gabriel não queria companhia. Ele geralmente não gostava de companhia, especialmente naquele momento em que poderia apreciar o céu infinito lá fora e ruminar sobre sua mãe. Não queria ser atrapalhado por conversa fiada. 107


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Queria ficar quieto em seu canto, apenas observando a paisagem através da janela. Assim que ele se sentou no sofá e afastou a cortina para ver a noite, a porta da cabine abriu-se novamente, fazendo-o sobressaltar-se. Uma menina de cabelos e olhos castanhos, aparentando ter a idade dele, olhou-o desconfiadamente por alguns segundos. Ela tinha a pele morena e cheirava a flor de laranjeira. Gabriel não fez menção de se mexer ou falar, e apenas esperou. Se ela não tinha a mesma idade que ele, observou Gabriel, tinha entrado aquele ano em Merínea, pois não carregava aquele “cajado Meáren” consigo, e parecia tão desconcertada quanto qualquer noviço. – Essas coisas são minhas – ela disse, apontando para as duas malas desconhecidas na cabine de Gabriel. – Eu já estava nessa cabine – disse ele, não muito preocupado em ser educado. Só queria que o deixassem em paz. A menina deu um meio-sorriso e um passo a frente, fechando a porta atrás de si. Gabriel fechou a cara para ela imediatamente. Ela puxou uma fita de dentro do bolso da calça jeans e amarrou os cabelos, ou pelo menos metade deles, já que a parte frontal era curta demais para ser presa. – Eu sei, mas... – ela olhou pelo vidro embaçado da porta a silhueta das pessoas passando do lado de fora. Ela voltou-se para ele e sussurrou: – Você não ouviu o que eles dizem? – O que eles dizem? – repetiu Gabriel, não realmente interessado. – Ah, que coisas... ruins... acontecem com as pessoas que andam sozinhas pela Nau Voladora. Ele franziu o cenho, incrédulo. – Coisas ruins? A menina balançou a cabeça veementemente. 108


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– É, já ouvi dizer que alunos já sumiram dentro do dirigível, só porque resolveram andar por aí sozinhos... E que quando ficamos numa cabine sem companhia, ela pode trancar a gente aqui dentro e só abrir com um feitiço... E que aquela menina da arara ficou louca depois de andar muito tempo sozinha por aqui... Gabriel soltou uma risada incrédula. – Você não pode estar falando sério! Ela deu de ombros. – Foi o que me contaram, mas sabe, eu sou noviça também e... Eu não sabia nem sequer que feiticeiros existiam de verdade... É tudo muito apavorante, na verdade. Gabriel sentiu uma pontada de empatia por ela naquele momento, por menos que quisesse admitir. Assim como ele, a menina havia sido criada longe da Arte, e assim como ele não sabia nada sobre aquela loucura de lugar ou como as coisas funcionavam por ali. – Eu acho que eles inventaram isso pra te assustar – ele retrucou, mas não protestou quando ela se sentou no banco à sua frente. – Na certa é uma daquelas peças que eles pregam nos noviços... Eu fiquei sozinho um tempão na balaustrada e não me aconteceu nada de ruim... – Não aconteceu, é? Gabriel reconsiderou. – Bem, eu quase congelei, mas isso foi por causa do frio e do vento, não porque eu estava sozinho... – Me disseram que feiticeiros com cajados são mais resistentes a ficar lá fora, expostos ao tempo, porque eles não estão sozinhos, sabe, eles tem os Meárens deles... Gabriel soltou um grunhido exasperado. – Com quem você andou falando? A menina deu de ombros. – Ah, com algumas pessoas. Tem um grupo de noviços que se juntaram numa cabine, sabe, com medo de ficarem cada um em um lugar, 109


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sozinhos... – E por que você não está com eles? – por favor, meu deus, pensava Gabriel, vá ficar com eles! Ela ficou encabulada. – Ora, e você vai ficar aqui... sozinho? Gabriel suspirou. – Não tem problema. A menina encarou-o em silêncio por alguns segundos, considerando-o seriamente como um lunático. – Meu nome é Ana. – Gabriel. – Você tem muita coragem, Gabriel. Não pela primeira vez naquela noite, ele sentiu-se estupidamente encabulado, e rezou a um deus que ele não acreditava para que não o deixasse corar. – Hã... Não é isso, eu só não acredito nessas histórias de trancoso... Ana arregalou os olhos escuros para ele. – Mas... são todos feiticeiros! E estamos num zepelim! Como você pode ter certeza de que essas histórias não são reais? Ele deu de ombros. – Vamos ver se eu fico trancado aqui quando você sair. Ela sacudiu a cabeça negativamente. – De jeito nenhum! Depois eu é que fico com peso na consciência... Você não quer ir lá conosco? Eles estão na sala do candelabro, é a maior desse patamar. Somos uns dez. Gabriel sentiu-se sufocado só pelo número de pessoas que Ana mencionou. – Não, obrigado. Mesmo – reforçou ele, quando percebeu a insegurança de Ana. – Então é sua primeira viagem para Merínea? – murmurou ela, acomodando-se ainda mais no banco, mostrando que não estava nem um pouco disposta a sair dali e deixá-lo 110


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sozinho. Gabriel soltou um suspiro resignado. Pelo visto não se livraria dela nem tão cedo. – É, embarquei no Pico do Papagaio. – Eu embarquei no Pico da Neblina. – Pico da Neblina? Esse não é... – ... o ponto mais alto do Brasil, é, sim. – Caramba. – É, eles têm que rever essa história de “ponto mais alto da sua região”... Não é fácil, sabe. Mas eles já tinham uma estrutura toda montada pra gente. – Lá também. Embarcou muita gente no Pico da Neblina? – Não muita, na verdade – e nesse ponto, Ana inclinouse para ele, como se confidenciasse um segredo. – Sabe, ouvi dizer que lá perto do Pico da Neblina mesmo também tem uma escola como Merínea... E que a maioria dos feiticeiros preferem ir pra lá do que para onde estamos indo. Gabriel ergueu uma sobrancelha, intrigado. – E por que isso? Ana deu de ombros. – Eu não sei... Qualquer coisa sobre tradições diferentes da “Arte”, como eles dizem. Ele considerou aquela informação por um instante, observando as nuvens escuras pela janela. A tempestade já havia passado – ou melhor, eles já haviam passado pela tempestade. Agora, nada de relâmpagos para iluminar a escuridão lá fora. – É, eu já ouvi falar de outra escola sem ser Monte Merínea... – a imagem apavorante de sua mãe avisando-o para ficar longe da escola e dos feiticeiros da “tradição Oculta” estava bem clara em sua mente. – A que temos é a mais antiga, ou pelo menos é o que eu ouvi falar. Tem alguma onde você mora? Gabriel coçou a cabeça. – Se tem, eu não saberia dizer. 111


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Sou como você, não sei nada desse sistema. – Tem mais noviços como nós, sabe – murmurou ela, recostando-se em seu assento. – Você devia conhecer o resto. Gabriel virou o rosto para a janela. – Não, obrigado. – Dizem que a maioria dos alunos que vai para Monte Merínea é como a gente, sabe, criados por “mortais” (eu ainda não me acostumei com essa palavra...), porque os que são filhos de feiticeiros geralmente vão para essas outras escolas no Brasil... E até no Paraguai e na Colômbia. Gabriel deixou o último comentário dela morrer no silêncio da cabine encardida, ponderando todas aquelas informações. Ana inclinou-se novamente para frente, esperando alguma reação de Gabriel, mas sem muito sucesso. Depois de algum tempo, desistiu de continuar o diálogo e recostou-se novamente, olhando a noite lá fora também. – Como é que você sabe de tudo isso, hein? – a voz inesperada do menino fez Ana sobressaltar-se, e ela olhou-o, surpresa. – Como eu sei o que? – Essas coisas. Tudo. – ele deu de ombros. – Ah... – ela desviou o olhar do dele e afastou algumas mechas de cabelo castanho do rosto. – Eu ouço as pessoas falando, sabe. É a única coisa que eu tenho feito desde que embarquei. E depois que eu conheci os outros noviços a gente ficou conversando sobre de onde viemos, essas coisas. Gabriel cruzou os braços. – E você acredita em tudo que te dizem? – E por que não acreditaria? – ela parecia honestamente confusa. Gabriel sacudiu a cabeça depois de alguns segundos, tentando amenizar sua paranoia, resultado da pouca conversa que ele tivera com sua mãe sobre “A Arte”. – Deixa pra lá, eu acho que estou com sono... – Mísia, que tem um irmão em Monte Merínea, disse 112


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que a gente vai fazer uma parada na Ilha de Fernando de Noronha e depois ainda paramos em mais três lugares, só então indo para o Instituto... A gente deve ter a noite toda viajando ainda, dá pra dormir bastante. Gabriel franziu o cenho. – Imagino a que velocidade esse zepelim voa... Ana novamente inclinou-se para ele como se fosse lhe confidenciar um segredo inestimável: – Ninguém sabe onde fica Monte Merínea, sabia? Algumas pessoas acham que é no Meio-Oeste, outras que é até fora do Brasil... Mas ninguém sabe direito. – Ninguém sabe, é? – repetiu Gabriel, curioso. – E por que todo esse mistério? Ana deu de ombros. – Pra guardar seus segredos. Ouvi dizer que o segredo é a arma principal entre os feiticeiros... Gabriel deu um pequeno sorriso conspiratório para Ana, um que ele sabia que a menina não entenderia. – Nisso eu acredito, Ana. Nisso eu acredito.

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A primeira coisa que lhe veio à cabeça foi que sua mãe havia finalmente perdido a paciência e cumprido a promessa de virar a cama com ele ainda em cima. Depois, como num piscar de olhos, todas as lembranças daquele turbulento mês de janeiro lhe voltaram, e Gabriel abriu os olhos para encontrar-se no chão da cabine de número cento e catorze, Ana já sentada no banco acolchoado à sua frente. – Ah, a Bela Adormecida acordou! – murmurou ela, bem desperta. O dirigível inteiro fazia um barulho dos infernos, não como o aconchegante zumbido do resto da viagem, e parecia estar diminuindo a velocidade aos trancos e barrancos, como se houvesse um motor e estivesse engasgando. – O que está acontecendo? – Gabriel fez a pergunta mesmo já sabendo da resposta. – Chegamos – Ana respondeu, olhando a paisagem pela janela. Gabriel fez menção de se levantar do chão, mas as114


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sim que ficou de joelhos, a Nau Voadora sofreu outro abalo e ele caiu de costas com um gemido. – É bom se segurar. – disse a menina, escondendo o riso. – Está balançando bastante! O menino finalmente se levantou e sentou-se de frente para Ana, que estava absorta com a paisagem lá fora. – Ah, olha lá! Deve ser Monte Merínea! – exclamou Ana, excitada, apontando para fora. – Estamos aterrissando! Ele também se inclinou para a janela, e o que viu o deixou deslumbrado como ele jamais estivera antes. Descortinando-se à sua frente por entre as nuvens estava o Instituto Monte Merínea – e era muito maior do que Gabriel jamais imaginara. À medida que o zepelim ia perdendo altitude, os campos e as construções do instituto iam-se revelando aos poucos para eles, através da iluminação do sol do meio-dia. De sua perspectiva do alto, Gabriel via tudo: envolta por uma leve neblina, uma densa floresta envolvia protetoramente a escola (ou talvez fosse ameaçadoramente, Gabriel ponderara depois), que havia sido construída numa gigantesca clareira onde se erguiam prédios e torres e pátios e jardins. Por trás de tudo isso, duas montanhas enormes coroavam a planície, de uma imponência que o menino só havia visto em filmes e imaginado em livros. Entre as montanhas e os prédios do instituto, uma campina sem construção alguma se estendia até encontrar com três colinas, a partir das quais a floresta voltava a imperar na paisagem. Do outro lado das montanhas, a norte, um rio no sentido oeste-leste surgia da floresta e cortava um pedaço dos campos do instituto, atravessando os muros poderosos que cercavam a área construída, provavelmente através de um fosso, e seguia seu caminho para leste, perdendo-se na floresta tropical novamente. Havia mais construções ali do que Gabriel imaginara – e, para sua leve decepção, nenhuma delas se assemelhava 115


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ao castelo medieval que ele havia desenhado em suas noites depois de receber a carta. Ainda assim, eram prédios imponentes, grandes – ele conseguia perceber isso mesmo daquela altura. E ele também podia perceber como seria difícil chegar ali por terra, fosse qual fosse o meio de transporte. – Quantos prédios esse lugar tem? – indagou Gabriel, imediatamente já contando a quantidade de construções que eles conseguiam ver. – Eu contei oito! – Ana teve que gritar sua resposta, pois o barulho da Nau Voladora já era ensurdecedor. Nesse momento, a porta da cabine abriu-se violentamente, e por ela entraram três meninos e uma menina – a mesma que havia pulado no rapaz Febo no corredor. Mísia, se Gabriel conseguia se lembrar direito. Ela tinha a pele queimada de sol e grandes olhos amendoados. – Ana! – gritou a outra menina, sentando-se ao lado dela. – Procuramos você em toda parte! – ela finalmente olhou Gabriel de esguelha. – O que você está fazendo aqui? – Mísia, olha! – gritou um dos meninos, aproximandose de Gabriel e olhando a janela por cima dele. – Daqui dá pra ver direitinho lá embaixo! Gabriel olhou-o de soslaio por sobre o ombro. O menino, muito magrela, de cabelos castanhos claros e pele morena, coçou a cabeça ante o olhar dele. – Ah, eu sou Marcus Maximus – cumprimentou ele, estendendo uma mão. Ele tinha um certo ar de despreocupação que Gabriel só havia visto em Lália antes. Os cabelos claros eram um pouco maior do que o esperado, mas não longos o suficiente para lhe chamarem de metaleiro. – Gabriel – ele apertou a mão que Marcus oferecia, voltando-se imediatamente para a janela. – Vocês vão ficar aqui? – indagou outro menino, moreno e alto, ainda na porta, ao lado de um outro menino 116


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muito pálido e gorducho. – Túlio, Luiz! Dá só uma olhada! – exclamou Marcus, já se acomodando ao lado de Gabriel. – É fantástico! Túlio, o moreno e alto (e Gabriel só sabia que ele era um noviço porque, assim como os outros, ele não carregava um cajado), aproximou-se e olhou por sobre as quatro cabeças de Gabriel, Marcus, Ana e Mísia. Aparentemente, o tal Luiz não estava disposto a olhar Monte Merínea, pois continuava escorado no batente da porta, entediado. – ...seis, sete, oito! – exclamou Túlio, apoiando-se no ombro de Marcus. – Mas eu só ouvi seu irmão falando de sete prédios, Artemísia! – ele parecia indignado. – Aquele casarão ali, do outro lado do rio – e todos olharam para onde a garota apontava, o que parecia ser uma enorme mansão branca, isolada pelo rio que nascia da floresta e cortava a propriedade do Instituto – está abandonado. Era o casarão dos antigos fundadores. Não usam mais, nem pra dar bailes. – E aquele lugar mais aberto ali? – indagou Gabriel, apontando uma construção que lembrava muito uma pista de corrida de Fórmula 1 sem asfalto, perto da vasta campina que se estendia até o sopé das três colinas. – São os estábulos, com pista de treino para os nures – respondeu Marcus, aparentemente muito satisfeito consigo mesmo em saber a resposta. – Nures? – repetiu Ana, confusa, finalmente olhando para Marcus. Até o momento, ela não havia desgrudado os olhos da janela, assim como Gabriel. – Um tipo de cavalo encantado – esclareceu o menino. O zepelim deu outro solavanco maior, quase derrubando a todos no chão. – Galera – chamou Luiz, o menino pálido e agora aparentemente sem fôlego, ainda afastado do resto. – Vocês 117


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vão ficar aqui? Eu já estou me mandando... As cinco cabeças voltaram-se para ele. Marcus e Mísia não fizeram menção de se levantar, dando de ombros. – Vamos, eu vou contigo – disse Túlio, afastando-se e dando um adeus aos que ficavam na cabine. Ao passar pela porta, ele a fechou. – Por todos os deuses, esse lugar é maior do que Febo me contava! – exclamou Mísia por trás de Ana. – Olha lá, aquela deve ser a Torre do Olho! Gabriel olhou para o que a menina apontava. Uma torre solitária, redonda, se erguia no meio de um pátio vazio. Parecia uma construção totalmente despropositada, já que o prédio mais próximo estava longe demais para ser associado a ela. – O que tem lá? – indagou Gabriel para a menina, que deu de ombros. – O sino, que toca para anunciar as aulas e os horários de festa, essas coisas. – e então, ela baixou o tom de voz, forçando todos a se aproximarem para ouvir suas próximas palavras, por sobre a barulheira do dirigível: – Só que o mistério é quem toca o sino. – Quem toca o sino? – repetiu Ana estupidamente. – Essa é a grande pergunta, Ana – Artemísia piscou para ela. – Que tal fazermos uma visita à torre do Olho qualquer dia desses? – Ai, Mísia! Eu não, deus me livre! – Ana afastou-se da outra garota, voltando o olhar para a paisagem lá embaixo, que se aproximava rapidamente. – Pessoal... – murmurou Gabriel, afastando-se da janela. – O que? – disseram todos, olhando para ele. – O que é que a gente tá fazendo aqui dentro quando temos a balaustrada inteira pra olhar a paisagem? Houve um segundo de silêncio, quando todos se entreolharam. De repente, Gabriel e Ana já haviam agarrado 118


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suas coisas, e todos corriam para a porta, a fim de irem à balaustrada. Enquanto avançavam pelo corredor, perceberam que todas as cabines tinham as portas escancaradas, e não parecia haver mais ninguém além deles ali. Alguns papéis de bombons e um casaco azul haviam sido deixados para trás, único vestígio da passagem de pessoas por ali. – Já estão todos lá! – lamentou-se Marcus, ofegante. – Aposto que vamos ter que lutar por um lugar! – Vai ter espaço, Marcus – retrucou Artemísia – não é possível que não tenha lugar pra todo mundo... Tem pouca gente aqui! Quando eles finalmente alcançaram as portas de vidro duplo que davam para a balaustrada, a Nau Voladora deu outro solavanco, mais forte do que qualquer outro, e todos começaram a sentir uma forte pressão nos ouvidos. – Estamos descendo! – exclamou Mísia. E então eles ouviram o inconfundível som de algo se quebrando. A pressão nos ouvidos cresceu e houve uma gritaria histérica do lado de fora. – Estamos caindo! – berrou Marcus. – CORRAM! E antes que eles pudessem saber quem havia dado o último grito, uma cabeleira ruiva passou em disparada por eles, empurrando-os com os cotovelos e pisando em vários pés. Em meio à turbulência do zepelim, todos caíram ao chão, vislumbrando a garota que abrira com violência uma das portas para a balaustrada, carregando um mochilão nas costas e uma caixa nas mãos. – É a menina da arara azul! – exclamou Gabriel, levantando-se e, em seguida, ajudando Ana a se levantar. Artemísia levantou-se de um pulo, sendo seguida por Marcus. – Por que ela disse “corram”? – ponderou Ana, olhando 119


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para a porta escancarada e os aprendizes lá fora, se espremendo na sacada, sendo contidos apenas por sete ou oito homens fardados de prateado, os tripulantes. A turbulência não havia diminuído em nada, e o barulho do zepelim só fazia aumentar. – Pessoal... – Marcus estava atrás do trio, e seu sussurro não foi ouvido em meio ao pandemônio de sons. – PESSOAL! – O quê? – disseram os três de uma vez, virando-se abruptamente para ele. – CORRAM! – gritou Marcus, disparando pela porta de vidro duplo. Só levou dois segundos para os outros o seguirem com o mesmo desespero. Atrás deles, o chão começava a ceder, afundando gradativamente, do fim do corredor até eles. Marcus estava à frente do grupo, mas logo foi alcançado por Artemísia, que parecia ser bastante atlética. Gabriel, logo atrás deles, corria o máximo que suas pernas permitiam, mas o peso de sua mochila de acampar o atrapalhava bastante. Ele cruzou as portas de vidro e estava quase alcançando a sacada lá na frente, onde os aprendizes se amontoavam, quando – SOCORRO! Ele se virou abruptamente, quase perdendo o equilíbrio, e viu Ana de joelhos ainda no corredor, uma mão contra o peito, arfando. Sua palidez era assustadora, e o brilho das lágrimas em seus olhos era evidente. Angustiada, ela parecia lutar para respirar. Gabriel entrou em pânico mais rapidamente do que ele julgava sensato. – EI! – ele gritou para Marcus e Artemísia. Os dois se viraram, ofegantes. Gabriel não precisou dizer mais nada, pois a visão de Ana lutando para respirar foi suficiente. Artemísia foi a primeira a correr em seu socorro, 120


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sem pensar duas vezes. Passando por Gabriel, exclamou: – Deixa suas coisas aí! Vamos! – e puxou-o por uma mão, forçando-o a largar seu mochilão. Andando aos tropeços, temendo que o chão cedesse embaixo de seus pés, Gabriel quase caía em direção a Ana, mas conseguiu manter o equilíbrio. Artemísia, em certo momento, agarrou-se ao seu braço para não cair. Debaixo de seus pés, os dois podiam sentir o chão de madeira instável, cada rangido arrepiando-lhes a espinha. Ana parecia absolutamente incapaz de dar um passo sequer por conta própria. Atrás dela, o que restou do piso se pendurava nas pilastras do andar inferior, que era o andar cargueiro. Artemísia e Gabriel podiam visualizar o esqueleto do zepelim, e as vigas que não haviam cedido completamente. Um grande buraco onde antes houvera uma cabine, bem próximo a eles, mostrava os estragos no andar de baixo. Artemísia agarrou Ana por um braço e Gabriel a segurou pelo outro. Juntos, levantaram-na com esforço. – Ana! Ana! – berrava Artemísia. – Asma... – foi tudo que Ana conseguiu dizer, e logo estava sendo arrastada para a balaustrada. O mochilão que Gabriel largara junto à porta de vidro duplo não estava mais lá – Marcus havia pego e agora os esperava na balaustrada, um olhar de pânico em seu rosto. Quando finalmente estavam todos ali, junto com os tripulantes, eles viram como a terra lá embaixo se aproximava rapidamente: estavam sim caindo. Os homens fardados gritavam ordens para todos manterem-se quietos e longe das sacadas, ou seja: ninguém fazia o que era ordenado. O caos era completo. Gabriel podia ver Lália mais a frente, segurando-se a um rapaz aparentemente da mesma idade, ambos com olhos arregalados de medo. É, aquilo não devia ser o pouso normal da Nau Voladora. 121


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Ana estava sentada no chão agora, com Artemísia debruçada sobre ela, falando-lhe alguma coisa que Gabriel não conseguia ouvir direito com tantos gritos e tantas coisas se despedaçando no zepelim. Um tripulante aproximou-se deles. – Ah, graças a todos os deuses! – gritou ele para Ana, Artemísia, Gabriel e Marcus. Virando-se para seus companheiros de trabalho, gritou: – ACHEI OS ÚLTIMOS QUATRO QUE FALTAVAM! – Senhor, por favor! – gritou Artemísia. – Minha amiga está passando mal, ela tem asma! O homem ergueu seu cajado (de ferro, escuro e fino) e encostou a ponta dele na garganta de Ana. Se fosse em outra situação, Gabriel teria achado que aquilo era uma ameaça, mas assim que ele afastou o cajado da garganta dela, Ana estava respirando normalmente, e a palidez ia embora lentamente. – Fiquem próximos, noviços. Vamos fazer esse trem pousar de qualquer jeito! – disse o homem, voltando-se para seus companheiros. – Eu gosto da forma como ele chama um zepelim despencando do céu de “trem” – disse Marcus, laconicamente, incapacitado pelo medo. – APRENDIZES! – gritou o mineiro fardado para os jovens em pandemônio. – APRENDIZES, ATENÇÃO! Finalmente, houve uma pausa no pânico, quando os mais velhos aproximaram-se dos tripulantes. – Nós vamos ter que amortecer a queda com um feitiço! Pedimos àqueles que sabem dominar a arte da levitação que ajudem! Vocês sabem de que feitiço estou falando, e se não sabem, nem tentem ajudar! Alguns poucos aprendizes aproximaram-se dos homens fardados, entre eles o rapaz que era irmão de Artemísia, 122


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Febo, com quem Gabriel havia falado anteriormente. Eles fizeram um círculo e seguraram seus cajados à frente de si, tocando suas extremidades no centro. Eles fecharam os olhos e começaram a vocalizar sons guturais. Para Gabriel, era estranho ver o semblante calmo e a voz controlada daqueles feiticeiros, entoando um cântico, no meio de uma queda lenta, mas verdadeira, de um dirigível de proporções astronômicas. Ao seu lado, Artemísia havia se sentado no chão ao lado de Ana, e agora as duas se abraçavam, temerosas. Logo Marcus se juntaria a elas, sentado no chão, olhando com olhos assustados o ritual acontecer em meio à queda. Gabriel, mesmo se quisesse, não poderia sentar-se. Estava estático em sua posição, e sabia que se sentasse no chão não conseguiria levantar-se de novo, e queria evitar o constrangimento. Os noviços, assim como ele, pareciam apavorados. Os outros aprendizes, já com seus cajados, também estavam assustados – ele via Lália, apoiada na sacada, observar tudo com medo no rosto pálido, mas ela parecia ter uma segurança de que as coisas iam dar certo, assim como o rapaz que estava ao seu lado. E quando finalmente toda a mecânica do zepelim silenciou e Gabriel sabia que a queda livre ia começar, nada aconteceu. O zepelim, com o nariz em forma de cone inclinado para o solo, estava parado no ar, descendo lentamente, sem mais solavancos ou o som de engrenagens engasgando. Uma descida suave, como se esperaria de um pássaro habilidoso – ou de um dirigível funcionando. Gabriel ouviu os suspiros de alívio em uníssono que ecoaram pelo ar. Estava dando tudo certo, afinal de contas. Os feiticeiros conseguiam fazer um zepelim gigante flutuar calmamente até o solo, e a ideia só fez Gabriel querer ainda mais ser um deles, com todas essas habilidades e poderes. 123


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Ele finalmente conseguiu mexer as pernas e caminhou para a sacada, arriscando olhar lá embaixo, agora que não parecia haver nenhum perigo de queda iminente. No solo, ele pôde vislumbrar o ponto de pouso deles: uma área descampada próxima ao rio, na altura da única ponte que ligava uma margem à outra. E de pé nessa ponte, estavam várias pessoas – homens e mulheres, cada um com seu cajado erguido para os céus, como numa saudação. Não. Não era uma saudação. Era uma ajuda. Os feiticeiros em terra lançaram seus próprios feitiços de levitação para o dirigível, ajudando a pousá-lo com suavidade. Todos estavam concentrados em fazer com que o veículo chegasse são e salvo a terra firme. E quando eles finalmente pousaram e todos pularam pelas sacadas para fora do dirigível e se encontraram com os feiticeiros que estavam ali para recebê-los, em meio a soluços e desmaios, Gabriel só ouviu uma única pergunta, que veio até mesmo antes do clássico “vocês estão bem?”. Era algo que ele não esperava ouvir, e pela cara dos outros aprendizes, que se amontoavam à frente do comitê de boasvindas, trêmulos e traumatizados, ninguém – nem mesmo os mais velhos – esperavam. Foi um homem de estatura média, de penetrantes olhos escuros, com uma barba longa e loura, que perguntou, apoiando-se em seu cajado de madeira branca: – Muito bem. Quem foi o infiel que sabotou a nossa Nau Voladora? Ninguém sabia o que dizer. Os aprendizes estavam todos aparvalhados, olhando para o homem imponente à sua frente, usando roupas que Gabriel nunca vira ninguém usar – mais parecia um vestido, mas não havia nada de feminino na longa bata verde-musgo que ele usava, com um cinto de corda amarrado na cintura, o cajado alto (o maior que 124


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Gabriel vira até o momento) ao seu lado, com um cristal translúcido na ponta. Aquela vestimenta, aliás, dava ao velho homem todo um ar de respeito e autoridade maior do que um terno daria. Sua barba loura fulgurava ao sol, juntamente com o cristal de seu cajado, formando uma estranha simetria. As outras pessoas ladeando o homem barbado usavam o mesmo estilo de roupa, e segurando seus Meárens o conjunto mais parecia um tribunal inquisitorial, pensou Gabriel, do qual não se poderia escapar – nem mesmo sendo inocente. Todos usavam aquele mesmo tom de verde-musgo, e agora que o choque inicial havia cedido, Gabriel podia observar que havia um símbolo bordado no lado esquerdo das vestimentas – ele apenas não conseguia reconhecer o que era. – Sigñor Paramondius – o tripulante mineiro do dirigível se aproximou do velho de barba loura. – Os homens das máquinas disseram que foi uma interferência por meio da Arte, mas não sabem o que ou quem – ele fez uma breve pausa, e pareceu sombrio enquanto ponderava as próximas palavras: – Nós nunca vimos algo assim antes, sigñor. Perdemos inclusive nossa invisibilidade. O homem que aparentemente se chamava Paramondius ficou em silêncio por alguns instantes, observando os recém-chegados – ele mirava-os um a um, olhando os rostos pálidos e assustados dos aprendizes. Quando se deteve em Gabriel, seu olhar demorou-se apenas um segundo mais do que o normal – e o menino teve a mesma sensação que tinha quando tentava encarar sua mãe sem pestanejar. Mas como era de costume, ele piscou e abaixou a cabeça. – Paramondius – um homem velho, com muitas rugas e cicatrizes, ainda mais baixo que Paramondius e de barba preta e pontuda, aproximou-se mancando. – É melhor discutirmos isso mais tarde. O homem louro concordou com um leve meneio de 125


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cabeça. – Tens razão, Ártico – e voltou-se para os recémchegados. – Desculpem-me, aprendizes – começou ele, falando em voz autoritária, mas muito mais branda do que anteriormente. – Deve ter sido um grande susto para todos, acredito, principalmente para os nossos noviços. Por favor, entendam que isso não foi, em absoluto, algo normal ou tolerável. Para aqueles que não me conhecem ainda, sou Paramondius Magnus, o diretor-mestre do Instituto, e garanto que os responsáveis por esse absurdo serão devidamente encontrados e castigados, e gostaria de pedir a colaboração de todos para tanto – ele pigarreou e lançou mais um olhar para os rostos assustados dos alunos, alguns já cochichando freneticamente sobre quem seria o culpado. – Eu e os lentes-mestres vamos cuidar dessa bagunça... Ele olhou longamente para os destroços do dirigível, e além. Aparentemente, a Nau Voladora havia deixado vestígios de madeira e equipamento ao longo de todo seu percurso desde que adentrara o perímetro da propriedade, e seguindo o olhar do diretor-mestre, Gabriel viu o tamanho do estrago que o dirigível havia feito. O poste onde a Nau Voladora deveria ter sido atracada estava partido ao meio. – Sigñor Cosmus! – chamou Paramondius Magnus, e prontamente Febo, o irmão de Mísia, deu um passo à frente. – Sim, diretor-mestre – respondeu ele, quase como um soldado. – Por favor, o senhor e os outros do ciclo tríneo tomem a dianteira do grupo e guiem seus colegas aprendizes para a Caza; vamos tomar as providências para que as bagagens sejam levadas para lá assim que possível. – Vamos imediatamente. Se precisar de nós, é só avisar – ele acrescentou, enquanto outros aprendizes, aparentando ter a mesma idade que Febo, começavam a pedir para que aqueles que estavam sentados na grama se levantassem. Não houve, Gabriel percebeu, muita simpatia com o 126


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trauma ou o susto dos mais novos ou mais histéricos. Eles pediam para que todos se levantassem, independentemente do estado. – Tríneos – disse ele, referindo-se ao grupo de doze aprendizes que haviam começado a organizar os mais novos, tendo em Febo seu líder. – Evitem dispersões pela propriedade. Quero todos os aprendizes na Caza, por uma questão de segurança. E Febo, venha aqui um segundo, por favor. Paramondius Magnus e Febo andaram alguns passos para longe dos outros aprendizes, e o diretor-mestre cochichou alguma coisa para o rapaz, que ouvia atentamente e confirmava com a cabeça de forma frenética. Enquanto isso, os outros aprendizes começaram sua lenta caminhada, alguns tendo que amparar os colegas que não pareciam nada bem – um noviço como Gabriel chorava histericamente, e era carregado por um “tríneo”, como Paramondius havia se referido aos mais velhos. Muitos se amparavam entre si: havia um cadeirante entre eles cuja cadeira e rodas havia se despedaçado, e agora ele era ajudado por dois colegas. A caminhada começou, lenta e silenciosa. Logo, Febo estava com eles, acompanhando a marcha dos aprendizes. Os cochichos, porém, começaram assim que todos se viram mais afastados dos lentes e dos tripulantes da Nau Voladora, que agora começavam a inspecionar os restos do dirigível. Febo aproximou-se de Mísia, que andava ao lado de Gabriel e Marcus, todos em silêncio, os três ainda bastante assustados. – Você está bem, Mísia? – perguntou ele, abraçando-a rapidamente. – Estou, estou bem... Quem não ficou bem foi Ana. – Ei, onde está ela? – murmurou Marcus de repente, 127


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olhando para os lados, sendo imitado por Gabriel. – Eu não a vi depois que desci do zepelim... – respondeu Gabriel, agora preocupado. – Ela desmaiou – disse Mísia dando de ombros, um tom cansado na voz. – Um dos tríneos está carregando ela até a Caza – acrescentou Febo. – Ela está lá atrás, junto com a galera mais abalada – disse, apontando para trás do grupo. De fato, mantendo ainda alguns metros de distância da maioria dos aprendizes, vinham uns oito tríneos amparando e até carregando alguns colegas, como era o caso de Ana, desacordada no colo de um rapaz, que tentava equilibrá-la junto com seu próprio cajado, o que era uma tarefa difícil. – Minha nossa – murmurou Marcus. – Ela realmente tava mal... – O que vai acontecer agora? – indagou Gabriel, olhando o mais velho nos olhos. Febo deu de ombros. – Eu nunca vi nada do tipo acontecer antes. Sei que há regras a serem seguidas quando Monte Merínea é ameaçada, mas... – Monte Merínea foi ameaçada? – exclamou Gabriel, meio incrédulo. – Isso não é meio exagerado, não? Quer dizer, certo, alguém fez alguma porcaria dentro do zepelim que deu pane, mas... Por que alguém ameaçaria Monte Merínea? Isso não é uma escola? – indagou Gabriel. – Exatamente – respondeu Febo. – É uma escola, e como toda escola da Arte, temos nossos segredos... E Merínea ainda tem a “vantagem” de ser uma escola detestada pelos tradicionalistas, aqueles que seguem uma tradição da Arte e rejeitam as outras. Gabriel balançou a cabeça, claramente confuso. – A Arte tem, basicamente, três “tradições”, Gabriel – explicou Mísia, solícita. – Tem uma escola para cada tradi128


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ção no Brasil, mas Merínea não é nenhuma das três. – A gente aprende uma mistura das três tradições e, bem, isso não deixa ninguém feliz – acrescentou Febo. – Estamos sempre em alerta, Merínea já foi atacada várias vezes ao longo de sua história... E agora, isso acontece. – Então... é uma ameaça real – concluiu Gabriel. – Sim. E esse alguém que causou a queda da Nau está exatamente aqui, entre nós, dentro de Monte Merínea – retrucou Febo, olhando em volta, para os outros aprendizes. – Se essa pessoa já causou tanto estrago só na Nau Voladora, imagine o que poderia fazer aqui, em solo? – Quer dizer que foi um aprendiz, Febo? – indagou Artemísia, surpresa. Marcus deu uma sonora risada. – Isso não seria possível, Mísia! Peraí, o cara tinha que ser um feiticeiro muito bom pra conseguir fazer o que fez no zepelim! Não dá pra ser um aprendiz! Deve ter sido algum infiltrado na tripulação... Pela expressão sombria de Febo, porém, ele não tinha tanta certeza, e logo os três noviços perceberam isso. – Febo? – indagou Mísia, erguendo uma sobrancelha. – Bem, vocês são noviços, então não sabem disso, mas... Há alguém entre os aprendizes que poderia ser capaz de uma coisa daquelas – e sua voz não passava de um sussurro nesse momento. – Quem? – Marcus mal podia conter a curiosidade. – Olha, eu não estou acusando ninguém, só quero deixar isso bem claro – começou ele, nervoso. – É só uma possiblidade, ok? E eu posso estar errado, mas... Bem, eu não quero que você se exponha a esse tipo de perigo em potencial, viu Mísia? – Eu? Mas o que foi que eu fiz?! – ela estava indignada. – Nada, ainda. É por isso mesmo que estou falando dessa minha suspeita pra você, e seus amigos também – ele indicou Gabriel e Marcus com um meneio de cabeça. 129


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– Olha, tem uma garota no segundo ano do ciclo prieiro que, pelo que eu ouvi, poderia muito bem ter a capacidade mágica de gerar uma pane daquelas no zepelim... – Diz logo quem é! – insistiu Mísia. – Qual é o nome dela? – reforçou Gabriel, mal se contendo também. Febo inclinou-se para eles e sussurrou: – Ela se chama Netuno Lencastre. – Netuno é o nome de uma menina? – espantou-se Marcus, incrédulo. – Coitada... – murmurou Mísia. – É, com um nome desses eu ia ter raiva do mundo também. Um sorriso estranho alargou-se no rosto de Febo naquele momento, o que fez qualquer comentário sobre o nome da menina chamada Netuno murchar nas bocas dos noviços. – Ah, mas a questão não é o primeiro nome dela... O que importa mesmo é o outro sobrenome dela. Gabriel estava confuso e impaciente, então perguntou, sem mais delongas: – E qual é o outro sobrenome dela? – O nome completo dela é Netuno Nouris Lencastre... E todo mundo sabe que o nome “Nouris” não pode estar relacionado a nada de bom.

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Depois que encontraram um almoço servido na sala comum da Caza e comeram fartamente (“traumas dão fome!”, exclamara Mísia, com uma incrível montanha de comida, desproporcional à sua condição de menina baixinha e magra), todos os aprendizes estavam espalhados por ali, sentados em sofás, esparramados em poltronas, encostados em pufes, ou mesmo ao longo das escadarias que davam para os andares superiores – estavam todos tão cansados, e depois de comerem fartamente até mesmo o burburinho das conversas era pouco. Alguns faziam a sesta, outros simplesmente relaxavam em poltronas, e alguns poucos jogavam nos tabuleiros de xadrez e damas. Os que haviam tido alguma crise nervosa ou desmaio por causa da quase-queda do zepelim já estavam devidamente tranquilizados, pois não havia muito tempo que alguns feiticeiros curandeiros de Monte Merínea haviam chegado ali e dado todo tipo de líquido estranho para eles beberem – inclusive para aqueles 131


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que, assim como Gabriel, não aparentavam ter tido nenhum grande trauma. – O trauma, meus queridos, sempre há. Alguns apenas se esquecem de demonstrá-lo – foi o que disse D. Firmina, a mulher de meia-idade que parecia ser a líder dos curandeiros, quando houve um gemido generalizado contra a ideia de terem que tomar algum remédio sem motivo aparente. Gabriel não poderia discordar mais da velha senhora. Posteriormente, D. Firmina apresentou-se como a governanta de Monte Merínea, e também a curandeira do lugar. De acordo com o que Gabriel havia entendido, ela era a responsável por manter o pessoal que trabalhava no instituto na linha, assim como os aprendizes – coisa que ela fez questão de destacar. Os baús de viagem deles chegaram pouco depois que os curandeiros foram embora, o que não significava que todos os pertences estavam lá. Alguns baús haviam se aberto devido à queda do dirigível e tudo o que restou foi o próprio baú e nada mais. Muitos haviam perdido quase tudo o que tinham despachado na Nau Voladora, como foi o caso de Ana, que recebeu um baú sem tampa, com seu nome escrito na frente, não deixando espaço para dúvidas: “ANA MAIA”. – Isso está indo de mal a pior... – gemeu ela, olhando, desolada, para o baú sem nada dentro. Ela, Gabriel, Mísia e Marcus estavam sentados num sofá em L a um canto da sala, afastados da porta de entrada e próximos a uma janela de alabastro. O ambiente do primeiro andar era grande, todos os aprendizes estavam confortavelmente sentados, discutindo as tragédias de seus próprios baús, e Gabriel estava distraído observando a decoração do lugar, que era bastante diferente do que ele estava acostumado ou sequer imaginara. Havia todo um ar colonial ali, combinando com o exterior do prédio ao qual todos chamavam de “Caza dos Aprendizes”, mas havia um 132


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quê de medieval misturado nas decorações coloniais, as quais ele podia facilmente associar às visitas escolares que ele fizera a museus com peças do Brasil Colônia. Contudo, aquele toque medieval trazia ao ambiente algo bastante distinto do que ele já havia visto, deixando a sala fora de quaisquer padrões que ele pudesse tentar encaixá-la. Quando Ana falou, Gabriel forçou-se a prestar atenção na conversa, ainda que estivesse muito mais interessado em conhecer a casa dos aprendizes e os arredores. – As suas coisas devem estar espalhadas por aí, aposto que vão recuperar tudo – consolou-a Mísia, cujo baú havia chegado inteiro e bem fechado. – É, você não deve ter perdido tudo – emendou Gabriel, que olhou para o próprio baú, intacto e forte, provavelmente por causa dos tais feitiços que sua mãe mencionara. Ele agradeceu silenciosamente, pela primeira vez, por ter comprado aquele trambolho. – Aposto que eles vão achar um monte de coisas pela propriedade. – Aliás – começou Ana, passando uma mão pelo tampo do baú de jacarandá de Mísia – o que eu não entendo é como alguns baús não se espatifaram como o meu. – Minha mãe colocou um feitiço de proteção no meu – defendeu-se Mísia. – A minha também – emendou Marcus. Ana suspirou. – A vida com feitiçaria é muito fácil... Marcus e Mísia se entreolharam, e ambos os seus olhares diziam “não mesmo”, mas nenhum dos dois falou nada, afinal, Ana já estava suficientemente derrotada, depois da asma, do desmaio e da perda de sua bagagem. A última coisa que ela precisava era uma reprimenda sobre como a Arte não era, em absoluto, algo que necessariamente “facilitava” sua vida. Eles já estavam ali há bastante tempo, e a maioria dos aprendizes estava começando a ficar impaciente com aquele 133


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nada-pra-fazer que o diretor-mestre determinara: quando eles chegaram, Febo foi quem reportou as ordens que Paramondius havia cochichado para ele: – Paramondius mandou que nós ficássemos dentro da casa dos aprendizes pelo resto do dia, até segunda ordem. O Baile Verde e a iniciação dos noviços, é claro, acontecerá normalmente essa noite, mas vamos passar o dia aqui dentro. Eles estão recolhendo os destroços do zepelim e querem evitar acidentes, além de não quererem que nada se ‘extravie’ das bagagens que se abriram. Estão conduzindo uma investigação pelos campos, pra ver se detectam a essência do feiticeiro responsável pela sabotagem. Naquele momento, um aprendiz mais velho, alto e de cabelos de um loiro escuro, havia se levantado e retrucado em alto e bom tom para Febo, com bastante sarcasmo na voz: – Isso, Febo, e não se esqueça de dizer que ele suspeita de todo mundo e quer nos manter bem fechadinhos e aprisionados aqui até que possa vir nos interrogar. – Cala a boca, Artur – foi a resposta contida de Febo para o companheiro, depois de respirar fundo. Havia uma certa tensão entre eles, que era palpável até para Gabriel, que não fazia ideia do que estava acontecendo. – Você não manda em ninguém aqui, pau-mandado! – retrucara Artur, o provocador, levantando-se de onde estava sentado, visivelmente pronto para uma briga. Seu porte era atlético, e ele era bem mais alto que Febo. No entanto, Gabriel não tinha certeza de qual dos dois ganharia num corpo-a-corpo. Febo, porém, havia simplesmente revirado os olhos e dado as costas ao tal Artur, enquanto muitos vaiavam a atitude dele e outros gritavam “isso, você é melhor do que ele, Febo!”. Mísia estava logo ao lado do irmão, dando-lhe todo o apoio. 134


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A confusão foi breve, e Gabriel não viu sinal do provocador depois disso. Febo, porém, aparentava estar bastante irritado quando aparecia perto deles para falar com Mísia – ele a tratava com um zelo exagerado, concluíra Gabriel, mas isso não era de todo ruim. Graças a essa atitude, Gabriel ficava sabendo de algumas coisas que, tinha certeza, não saberia de outra forma; é por isso que havia decidido que andaria com Mísia. Fora graças a isso, por exemplo, que Gabriel ficara sabendo de uma outra pessoa com o sobrenome “Nouris” em Monte Merínea, coisa que ele não esperava de forma alguma. Ainda não entendia o porquê de sua mãe ter insistido tanto em ocultar o nome, mas depois que Febo falara que um Nouris “não podia estar relacionado a nada de bom”, Gabriel se convencera de que Yordana devia ter um bom motivo. Em dado momento, depois de terem se lamuriado o suficiente e comparado os estragos de seus baús, os aprendizes começaram a subir com suas cargas (vazias ou não) para os quartos, e a se arranjarem por lá. Isso incluía Marcus, que subira em disparada dizendo que ia guardar uma cama para Gabriel no mesmo quarto que ele – não que Gabriel fizesse questão de ficar no mesmo quarto que o outro menino, mas visto que não conhecia mais nenhum outro noviço, teria que se contentar com isso. Mísia e Ana também subiram para os quartos femininos, e, finalmente, Gabriel se encontrou, pela primeira vez, sozinho. Ainda havia alguns grupos de aprendizes na sala, mas ninguém que ele conhecesse – nem mesmo Lália, por quem de vez em quando procurara. Sentado no mesmo sofá em L no qual havia sido deixado por seus colegas, Gabriel se viu com algum tempo para enfim pensar na informação que, inadvertidamente, conseguira com Febo – havia uma garota chamada Netuno 135


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Nouris em Monte Merínea, o que fazia dela uma parente em potencial de Gabriel (o menino não tinha ideia se o sobrenome era comum entre os feiticeiros). Ele tinha que encontrá-la: afinal, se a sua mãe praticamente o abandonou e sumiu no mundo, ele tinha o direito de procurar outro membro da família para conversar e descobrir, afinal, qual era sua história. O primeiro objetivo de Gabriel era descobrir sobre si mesmo: quem eram os Nouris, de onde vieram, o que faziam, por que eram tão odiados entre os feiticeiros. Se sua mãe achava que o estava protegendo, pensava Gabriel, ela estava muito enganada. E antes que ele pudesse racionalizar o que estava acontecendo, Gabriel já estava se sentindo mal. Pensar em tudo o que sua mãe não havia dito só o fazia lembrar-se de como ela havia simplesmente o abandonado. Com toda aquela agitação do caso do zepelim, Gabriel não havia mais tido tempo para parar e pensar na mãe, mas agora, sentado a um canto da sala comum dos aprendizes, o pensamento voltava a invadi-lo e a dilacerar sua carne – pois Gabriel sentia uma dor física quando pensava em sua mãe. O sentimento de traição e abandono eram amargos e frescos em sua boca, e Gabriel nunca sentira algo tão intensamente antes. Ele não sabia se queria quebrar alguma coisa ou chorar – mas sabia que qualquer uma das duas opções aliviaria sua dor. Logo, escolheu a primeira: violenta e inesperadamente, ele levantou uma mão e socou a mesinha de canto ao lado do sofá. E para sua completa surpresa e embaraço, ela se espatifou no chão como se fosse de cristal. Todos os olhares se voltaram para ele – ainda havia bastante gente ali. Gabriel corou. Ele não sabia o que dizer, então tudo o que saiu de sua boca foi um lacônico e absolutamente patético “eu, hã...”. O silêncio era o pior. O menino podia ouvir a respira136


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ção dos outros ocupantes da sala, e os olhos fixos deles não ajudava em nada. Gabriel não conseguia pensar em nada para dizer, e podia ver nos olhos dos outros aprendizes as palavras “ele é louco”. E então, quando ele estava prestes a um ato de desespero, um estrondo muito maior na porta de entrada fez com que todos os alunos de olhos arregalados voltassem seu espanto e atenção naquela direção, inclusive Gabriel. Da entrada da sala agora escancarada, um velho curvado, de barba muito longa e amarelada, usando roupas velhas, estava parado, encarando a todos com um ar carrancudo. Ele havia aberto a porta com seu cajado Meáren, o que quase arrebentou a fechadura da mesma. – Boas vindas... aprendizes – cumprimentou ele, mas seu tom de voz queria dizer qualquer coisa, menos “boas vindas”. Ninguém se mexeu. O que quebrou o silêncio constrangedor que havia se instalado foram as passadas apressadas dos aprendizes nos andares de cima que começaram a descer rapidamente as escadas. Logo, havia o triplo de alunos ali, todos encarando, confusos, aquele velho de barba amarelada. Ele tinha olhos muito pequenos e negros, e o nariz havia sido claramente quebrado num passado distante. Havia cicatrizes por todo o seu rosto, e os longos cabelos brancos estavam amarrados numa trança desajeitada e frouxa. Se Gabriel o visse na rua, diria que se tratava de um mendigo que se cuidava. Ana, Marcus e Mísia também haviam descido dos quartos, e logo Gabriel juntou-se a eles – mais para se afastar da cena do crime da mesa quebrada do que por qualquer outra razão. O velho deu um longo e pesaroso suspiro – não parecia nada feliz em estar ali. – Boas tardes, aprendizes, eu sou Iglasius Julianus, 137


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o Guardião dos Portões! – começou Iglasius para todos, numa voz retumbante. – Os menos jovens sabem que não costumo vir aqui, muito menos falar-lhes, até porque não gosto disso, mas todos os lentes e outras pessoas mais elegantes do que eu estão tão atarefados com esse feito agnogênico do submarino voador. Então me foi incumbida a tarefa de dar as boas-vindas e cantar a ladainha anual... Ai, ai... Apesar de velho, Iglasius falava com uma voz límpida e alta, o tipo de voz que Gabriel jamais associaria à figura curvada do guardião dos portões. Ele também observou que o cajado do velho era diferente de todos os cajados que ele vira até o momento – era fino como uma vara e parecia... apagado. Assim como Gabriel fora capaz de perceber o cajado de Lália piscando para ele, podia dizer que o cajado do guardião estava dormindo. Então, Gabriel ouviu alguém sussurrar seu nome: – Ei, Gabriel! Ele virou-se, e deu de cara com Lália Circinus sentada na escada, chamando-o. Ele cutucou Marcus, que puxou Ana e Mísia, e logo os quatro noviços estavam sentados na escadaria, junto à Lália e um desconhecido, o mesmo menino que a acompanhava na Nau Voladora. – Oi, Lália. Iglasius, próximo à porta escancarada, continuava seu discurso: – Vocês teriam pousado no pátio central e recebido todo esse falatório do próprio diretor-mestre, mas com os destrambelhamentos recentes, aqui estou eu. – Vá logo ao ponto – murmurou Gabriel, impaciente. – Ele é sempre assim... – sussurrou em concordância o amigo de Lália, sentado entre ela e Gabriel, olhando fixamente para um ponto qualquer à sua frente, não para Iglasius Julianus, nem para Gabriel. – Sou Lionel, prazer. 138


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– Gabriel. E foi com um estalo que ele percebeu que Lionel era cego. Enquanto falava, Iglasius gesticulava incansavelmente, o que lembrou a Gabriel um grupo de turistas italianos que passaram um verão em Ibacapora e que gostavam de conversar com ele. – Mas, como diria um velho amigo, vamos direto ao ovo da ema – ele pigarreou. – Os avisos anuais continuam os mesmos. A entrada na floresta Opara sem autorização é proibida... mas é claro que vocês não iriam conseguir uma autorização, como já sabem os que tentaram ganhá-la. – nesse ponto, Gabriel viu no velho Iglasius a primeira sombra de um sorriso. – A cachaça de boas-vindas... Digo, o Baile Verde vai acontecer no mesmo lugar de sempre, na mesma hora de sempre. – E que lugar e hora seriam esses, pelo amor de deus? – cochichou Ana para Gabriel, que nem se deu ao trabalho de dizer que não sabia. – Quanto à Iniciação dos noviços, estejam prontos com suas adagas e bem alimentados na escadaria principal do nosso castelinho tropical, às nove horas da noite... – Castelinho tropical?! – exclamou Marcus. – Ele está falando do prédio principal – respondeu Lália num sussurro. – ...e eu tenho certeza que tem um monte de outras regras que eu devia dizer, mas também tenho certeza que não são tão importantes assim, senão eu teria me lembrado. – E quanto a Nouris e Sonídea, Iglasius? – questionou Lionel. Ao ouvir seu sobrenome, Gabriel gelou. O que tinha Nouris agora, meu deus? Ele olhou para Lionel de soslaio; e constatou que ele realmente era cego: quando fez a pergunta, continuou encarando apenas a parede próxima à Iglasius, não diretamente o rosto dele. Seus olhos, porém, 139


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não pareciam ter nada de errado neles. Iglasius virou-se para Lionel, sentado ao lado de Gabriel, e lançou-lhe um olhar desconfiado... E por um segundo fugaz, Gabriel teve certeza de que o velho guardião desviara os olhos do rapaz mais velho para encará-lo. Logo, ele voltara a falar, como se não tivesse ouvido a pergunta, apesar de respondê-la: – As visitas às cidades de Nouris e Sonídea estão liberadas a partir do carnaval... Como sempre. Gabriel franziu o cenho. Tinha uma cidade com o nome dele? Legal. – Alguma notícia das nossas coisas? – dessa vez quem perguntou foi Febo, sentado próximo à porta de entrada, e portando perto demais de Iglasius para ele ignorá-lo. Em troca da pergunta, o rapaz não recebeu sequer um olhar, mas a resposta veio rápido: – Os balangandãs que saíram voando na quase-queda tiveram mais sorte do que vocês: a maioria das coisas caiu no manto de Merínea e ficaram flutuando por ali. – houve um suspiro geral de alívio... – E que eu cegue se os lentes de Merínea conseguirem recuperar tudo até o final do ano – ...seguido por um gemido de descontentamento, e Ana quase deu um gritinho de indignação, contido bem a tempo por uma mão firme de Mísia em seu ombro. – As saídas e entradas são controladas por mim, como vocês já sabem. Então, se não for um fim-de-semana, feriado ou um funeral, nada de saírem por aí serelepes e saltitantes – a não ser que conheçam uma passagem secreta pela floresta Opara, o que eu duvido, e o que é duplamente proibido, já que penetrar floresta adentro já é proibido por si só, e eu não vou nem comentar o quanto é proibido usar passagens subterrâneas ilegais... 140


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Houve um gemido generalizado quanto a isso, inclusive de Lionel. – Tem passagens subterrâneas? – cochichou Marcus para o mais velho. – Ter, tem. – sussurrou Lionel em resposta – Mas a gente só conhece duas, e nenhuma saindo de Merínea. – Agora, notas rápidas: – nesse ponto, Iglasius respirou fundo e disparou a falar, incrivelmente usar pontuação alguma. – Problemas como doenças amputações ataques psicóticos efeitos colaterais de feitiços e quaisquer outros danos físicos devem ser encaminhados à Governanta desta instituição Dona Firmina Gama mortes por causas naturais mágicas ou acidentais devem ser reportadas imediatamente à Diretoria os cursos e horários devem ser tratados no jantar de recepção do Baile Verde já que eu não sei bulhufas animais domésticos são proibidos assim como inalar ou injetar qualquer tipo de substância tóxica ou ingerir bebidas alcoólicas ou ter relações íntimas com uma ou mais pessoas de quaisquer sexos dúvidas sobre o funcionamento de Merínea quanto às férias de carnaval e julho devem ser perguntadas aos professores porque eu também não sei patavina tenham uma boa tarde àqueles que gostam estou distribuindo permanentemente balinhas de gengibre fazem bem a garganta e ao ânimo procurem-me em qualquer horário socialmente adequado na minha torre de vigia. Até. E antes que alguém pudesse sequer piscar, Iglasius havia disparado porta afora, deixando para trás mentes confusas e aprendizes estupefatos. A primeira a falar na sala foi Ana, de olhos arregalados: – Como é a história de “doenças e amputações” de novo...? A hora do jantar chegou mais rápido do que Gabriel esperava. Depois de Iglasius ter ido embora, todos foram tomar 141


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seus banhos e terminar de organizar seus quartos. Como Marcus havia dito, ele havia arrumado uma cama para Gabriel no mesmo quarto que ele – e eles dividiriam o ambiente com Lionel Virgilius, o amigo de Lália, além de Túlio e Luiz, dos quais Gabriel tinha uma vaga lembrança no dirigível, e um rapaz chamado Dionísio, mais velho que todos eles. O quarto, na verdade, tinha espaço para oito leitos, com seus quatro beliches, mas, segundo Lionel, Monte Merínea andava tão vazia que os funcionários da manutenção estavam até pensando em serrar as camas de cima e retirá-las. Havia uma elegante, porém pequena, escrivaninha para cada aprendiz nos seus quartos, o que Gabriel achou bastante digno, além de um armário onde ele havia despejado o conteúdo do seu baú. A partir das seis horas, alguns alunos começaram a seguir para o prédio principal, onde ficava o salão de baile. A distância entre a Caza dos Aprendizes e o prédio central era bem razoável, o que dava uns bons dez minutos andando a passos rápidos e fazendo o percurso mais curto, que era seguindo o perímetro do pátio central, uma enorme circunferência de pedra clara, com uma fonte elegante no centro e o mastro de ancoragem do zepelim. Havia um grande animal de pedra enfeitando a fonte, e de longe, Gabriel assumiu que era um lobo ou uma raposa com asas. Eles andavam a passos lentos: Lionel, Ana e Gabriel iam à frente do grupo, esses dois últimos olhando com olhos arregalados a propriedade ao seu redor enquanto Lionel explicava o que era cada prédio. Ele usava seu cajado Meáren, que era fino e um pouco menor que a maioria dos cajados, como sua bengala para não tropeçar em nada. Atrás vinha Lália, Marcus e Mísia, também atentos ao que Lionel falava. Cinco eram os prédios do instituto que se abriam para o pátio central: do lado norte da circunferência, a Caza dos Aprendizes, que ficava há uns quatrocentos metros de uma 142


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outra construção feiosa e medieval – a qual Lionel e Lália se referiram como “o Armazém” –, que também estava voltada para o pátio. Do lado sul, eles podiam avistar mais dois prédios, muito parecidos com a Caza dos Aprendizes: o que estava exatamente à frente de seus dormitórios era a “Caza dos Lentes”, o dormitório dos Mestres. A outra construção, que era menos conservada, porém maior, era a Caza dos Funcionários, onde moravam os mais de cem trabalhadores do Instituto Monte Merínea. O prédio principal era, de longe, o maior e mais elegante de todos. Parecia mesmo um palacete, e Gabriel entendia porque Iglasius havia chamado a construção de “castelinho”. A longa escadaria principal que dava no pátio central era ladeada por estátuas elegantes de pares de asas fechadas, dando a impressão de estarem encobrindo um gigantesco ovo de pedra. Tinha duas altas torres, cada qual de um lado, fazendo uma bela simetria, e Gabriel parecia incapaz de contar a quantidade de janelas do lugar. Encimando as duas torres, o menino avistou a mesma figura que enfeitava a fonte do Pátio Central: um tipo de lobo com as asas bem abertas. Subindo as escadarias principais, eles se depararam com um enorme portal aberto para um salão de entrada cheio de espelhos e todo iluminado à luz de velas e elegantes lamparinas, onde vários aprendizes já circulavam, conversando e rindo, todos usando roupas de festa – inclusive Lália e Lionel, o que causara certo pânico inicial em Ana, mas que foi logo esclarecido. O Baile Verde não contaria com a participação dos noviços, que iam fazer os rituais de iniciação fora do prédio principal. – Aliás – acrescentara Lionel, sorrindo para o chão – é melhor até vocês usarem roupas que possam sujar e rasgar... – Quê? – a pergunta foi em uníssono, mas Lionel recusou-se a falar sobre o assunto. “Vocês vão entender na hora 143


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certa” foi o melhor que eles conseguiram arrancar do mais velho. Deixando o saguão de entrada, eles seguiram para o salão de jantar, que estava mais tumultuado: ali, havia não só boa parte dos aprendizes, como também os lentes e os funcionários arrumando as mesas e indo e voltando com pratos imensos de comida. Havia pratos de frutas coloridas, cheirosas sopas verdes, carnes assadas fumegantes e grandes pratos de salada. A um canto do enorme salão, um quarteto animado de aprendizes tocava instrumentos de pau e corda. A música soava como algo entre um baião e uma valsa. Não demorou muito para que os que ainda estavam no saguão viessem para o salão de jantar, acomodando-se nas várias mesas disponíveis, que tinham lugar para até dez pessoas. Gabriel e seus companheiros logo se sentaram em uma, já coberta de pratos deliciosos, e logo o irmão de Mísia aproximou-se deles, sorrindo. – Tudo bem aí, Mísia? – perguntou ele, sentando-se numa cadeira vazia ao lado dela. – E por que não estaria? – a menina já estava ficando cansada do irmão, e não havia nem se passado um dia inteiro em Monte Merínea. – Bom, vocês por acaso não viram Netuno Lencastre por aí, viram? – indagou Febo, olhando para os lados. – Você a viu? – a pergunta num tom ansioso de Gabriel veio antes que ele pudesse se conter. Temia se expor perguntando muito, mas imaginava que sua curiosidade soaria natural para os outros – seu único medo era que o seu tom de voz o denunciasse. Febo, porém, estava muito distraído olhando para o outro lado do salão para perceber isso. – Vi, está zanzando sozinha por aí com aquela cara de zumbi dela, mas pelo menos não falou com vocês – ele voltou-se para os ocupantes da mesa. – Você fala com Netuno, 144


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Lália? A menina deu de ombros. – Ela entrou na nossa turma, mas não nos falamos muito, na verdade... – Você desconfia dela, não é? – a pergunta veio de Lionel, inclinando-se para Febo, apesar de não olhá-lo nos olhos. – Sobre o acidente com a Nau Voladora? – Bem, é possível – ele respondeu, cauteloso. – Quer dizer, os Nouris são ocultistas há mais de quinhentos anos, e todo mundo sabe que eles mandam os filhos pra Renovatio... Por que ela está em Monte Merínea, se não para causar problemas? – Redenção? – sugeriu Mísia. – Por que redenção? – indagou Gabriel, curioso. – E o que é Renovatio? – Ana perguntou. Febo esticou-se na cadeira, ficando mais confortável e dando sinais de que não estava disposto a sair dali. – A Escola Renovatio é uma escola onde só se aprende a Arte Oculta, um dos ramos tradicionalistas. – É essa a escola que fica perto do Pico da Neblina? – indagou Ana. – Não, essa que você tá falando é o Centro Sídhe – explicou Febo, demonstrando total domínio sobre o assunto, que parecia ser lugar-comum entre os artífices. – Centro Chí? – Ana e Gabriel perguntaram ao mesmo tempo. – Sim, Centro Sídhe. É um braço da escola elementista irlandesa. Arte Elemental é o currículo deles, não Oculta. – E aqui em Monte Merínea a gente aprende o que? – Gabriel estava mais preocupado com o aqui e agora para ponderar sobre uma escola no extremo norte do país que não tinha relação com a Tradição Oculta e sua família. Febo riu-se. – Realmente, é terrível esse dirigível ter caído. Vocês teriam aprendido tudo isso assim que chegássemos... 145


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– Então? – disse Gabriel, impaciente. Ele não gostava de ser chamado de burro. Nem mesmo quando não estava sendo chamado de burro, mas apenas se sentia um. – Aqui em Merínea estudamos Arte Trínea, Gabriel – explicou Lália. – A Arte Trínea mistura as três tradições clássicas de magia: a Oculta, a Telúrica e a Elemental; da qual, aliás, minha família toda é adepta, mas eu decidi estudar aqui e aprender Arte Trínea. – E eu que achava que as coisas eram simples por aqui... – murmurou Ana, inclinando-se em sua cadeira. – Mas a Arte Trínea não é considerada uma “tradição” oficial como as outras – acrescentou Lionel, e depois ele riu. – É quase como viver na clandestinidade, sabe. – É, todo o nosso sistema ainda é divido em só três tradições, e ainda tem muita gente que detesta a tradição trínea – Febo falava enquanto olhava em volta pelo salão, procurando alguém. – Gente como uma Nouris – emendou Marcus, num sussurro. – É por isso que é tão estranho essa tal de Netuno estar estudando em Monte Merínea. Lentamente em sua cabeça, Gabriel começava a juntar as peças. Sua família Nouris era ocultista, e talvez sua mãe tenha sido adepta dessa tradição trínea, por isso teve que fugir e se esconder... Sim... Parecia razoável. Febo deu um suspiro, aparentemente desistindo de buscar pela pessoa que procurava, e voltou-se, afinal, para seus companheiros de mesa: – E, bem, os Nouris e Monte Merínea têm uma história juntos, sabe? A matriarca Nouris veio com os fundadores nas caravelas dos feiticeiros, e depois seus descendentes quase arruinaram o instituto – ele olhou novamente para os lados, atento – mas certamente eu não acredito que Netuno queira “redimir” sua família vindo para cá. Não, ela é toda ocultista ainda. 146


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– Mas o que isso quer dizer, “ocultista”? – Ana perguntou antes que Gabriel pudesse articular as palavras, e ele ficou grato por isso. – Hã, explica aí, Mísia, eu tenho que fazer um negócio... – e Febo levantou-se, sem dar mais uma olhada para a mesa, focado em alguém que estava fora do campo de visão deles. – Ei, Bella! Bella, aqui! Droga... BELLA! – gritava ele, afastando-se. Mísia, sorridente, explicou prontamente para Ana e Gabriel: – Ocultistas são feiticeiros maus que gostam de metais preciosos, fazem rituais bizarros para as estrelas, e juram que sabem prever o futuro. E preferem tríneos como nós bem assados num churrasco. Ana arregalou os olhos, chocada. – Eles também são canibais?! Eles tiveram que conter o riso, enquanto Marcus revirava os olhos e elaborava: – Não, Ana. Quer dizer que eles... – mas o resto de sua frase foi interrompida pela exclamação de Lália, que atraiu a atenção da mesa inteira. – Olha ela ali! – disse ela, enquanto apontava para um canto do salão. Todos se esticaram em suas cadeiras para ver quem ela apontava. – É Netuno Lencastre. – Quem? Quem? – indagava Marcus, curioso. – Aquela de cabelo liso e preto, vestida com um caftan azul-marinho. Mas Gabriel não precisaria da descrição para reconhecer a Nouris: assim que ele olhou na direção do dedo de Lália, localizou-a imediatamente. Havia qualquer coisa de familiar na imagem da garota pálida, de cabelos muito negros – como os dele próprio e o de sua mãe –, mas que eram muito lisos e curtos. A forma rígida com a qual se postava próxima a uma pilastra 147


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de pedra e se inclinava para seu cajado Meáren lembravam a Gabriel sua própria mãe, nas raras vezes em que ele a vira segurando seu cajado. Ela vestia o que Gabriel concluiu ser a roupa tradicional dos feiticeiros - - aquela bata longa chamada “caftan”. A dela era de um tom ondulante de azul-marinho. Netuno Lencastre era menos impressionante do que ele havia imaginado-a, e se não fosse pela observação de Lionel, ele jamais a teria fitado o suficiente para reconhecer nela traços que lembrassem sua mãe. Ela estava distraída, sozinha naquele canto do salão, sendo ignorada categoricamente por todos que passavam por ela. Havia uma apatia perturbante no semblante da garota, que Gabriel reconhecera em sua própria mãe algumas vezes. O olhar distante e sua indiferença deixavam claro o quanto aquele lugar a deixava desconfortável. Gabriel sentiu uma pontada de pena pela menina, misturada com uma crescente curiosidade em falar-lhe. Ainda tinha receio de revelar o sobrenome Nouris, mesmo que fosse para alguém que também o carregava, mas a possibilidade de falar com alguém sobre sua família e descobrir algo sobre seu passado era bastante tentadora. – Credo, ela é muito esquisita – foi o comentário de Mísia, olhando criticamente para a garota de pé e sozinha. O badalar de um sino poderoso ecoou pelo salão de jantar, calando a todos os aprendizes, e fazendo com que os olhares de todos na mesa com Gabriel se voltassem para o diretor-mestre. Três toques depois, o sino silenciou, e da maior mesa, retangular e comprida, postada em frente ao restante das mesas circulares, Paramondius Magnus levantou-se e ergueu seu cajado em cumprimento aos aprendizes. – Aprendizes! – gritou ele, em sua voz autoritária, que ecoou pelo salão como o sino havia feito anteriormente. – Sejam bem-vindos ao Instituto Monte Merínea de Arte Trí148


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nea, nesse novo ano que se inicia. Quero, primeiramente, avisar que os pertences foram localizados no manto de Merínea, mas o resgate de todos eles será lento, afinal, o manto é maleável e carrega os pertences para lugares diferentes e muitas vezes inacessíveis. Creio, porém, que em cerca de três meses tudo terá sido recuperado. À medida que forem resgatados estarão disponíveis sob os cuidados de nossa governanta, Dona Firmina Gama, a qual todos vocês já conhecem. D. Firmina, a curandeira e governanta, estava sentada na ponta da mesa, e levantou-se para cumprimentar os aprendizes, voltando a se sentar em seguida. – Três meses? – cochichou Marcus para os outros, incrédulo. – O velho do portão disse que ia levar o ano todo... – Ele é um velho doido, não dá pra confiar – Lionel deu de ombros. Quando Ana abriu a boca para retrucar os comentários, foi interrompida pela voz do diretor-mestre, que quando prosseguiu, tinha um tom mais duro: – Em segundo lugar, quero avisar que os responsáveis pelo que aconteceu à Nau Voladora serão severamente punidos. Já foram eliminadas as possibilidades de intervenção terrena e por parte de qualquer membro da tripulação, o que deixa, infelizmente, os aprendizes como únicos prováveis suspeitos. Nunca imaginei o dia em que um membro dessa instituição fosse capaz de um ato assim, e garanto que isso não se repetirá. Não há necessidade de entrar em detalhes aqui, mas saibam que as providências para descobrir quem foi estão sendo tomadas. O silêncio entre os aprendizes tornou-se pesado, cheio de culpa. Era como se cada um se sentisse responsável pelo acidente com o dirigível – ou pelo menos, que desconfiasse do seu melhor amigo. Gabriel não conseguia parar de pen149


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sar que poderia ter sido Netuno – e se não fosse, como ela seria sempre vista como culpada. – Os envelopes nas mesas, de praxe, contêm o horário e as informações básicas de Monte Merínea e do calendário. Por favor, cada um pegue seu envelope... E apenas um envelope, senhor Artur – acrescentou ele, lançando um olhar para uma mesa tão próxima a de Gabriel que ele achou que o diretor-mestre estava olhando para ele. Na verdade, seu olhar de águia era dirigido ao tal Artur – o mesmo Artur que provocara Febo naquela tarde quando ele falava as ordens de Paramondius. Agora Gabriel podia dar uma boa olhada nele, sem tantas pessoas na frente: Artur tinha o rosto e o porte de um arruaceiro convencido. Seu cabelo era de um loiro escuro, tinha a pele avermelhada pelo sol, era muito alto e atlético, um sorriso brilhante no rosto, mas um olhar de malícia que Gabriel reconhecia em si mesmo quando estava prestes a começar uma briga. Quando Paramondius falou seu nome, o rapaz fez um cumprimento militar debochado para o diretor-mestre. Seus companheiros de mesa riram discretamente com aquilo, mas o olhar severo de Paramondius ainda estava neles. – Bem, até segunda ordem, os banhos no rio Ereima estão absolutamente proibidos... Nesse ponto, houve um protesto geral, vários gritaram contra a decisão, muitos gemeram, enquanto os noviços apenas observavam o espetáculo, sem entender a revolta geral. – Ah, isso não! – gemeu Artur em alto e bom tom de sua mesa. – Mas que absurdo! – gritou Lionel, revoltado. – Não, por favor! – gritavam outros aprendizes no salão. – Acalmem-se, acalmem-se! – bradou Paramondius, tentando suprimir os gritos de protesto, que só faziam au150


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mentar. – ACALMEM-SE! Com o grito que retumbou no grande refeitório, com teto alto e uma bela acústica, todos enfim se calaram, assustados. O diretor-mestre Paramondius Magnus olhou longamente para seus aprendizes, agora quietos como ratinhos, apesar da revolta silenciosa que ainda era palpável. – O dirigível caiu muito próximo ao rio Ereima, vai ficar ali enquanto fazem os reparos iniciais, e teremos que vasculhar o rio e o fosso para garantir que nada caiu em suas águas. Portanto, nada de banhos, é para sua própria segurança. – E quanto à pescaria? – quem perguntou foi Dionísio, o outro garoto mais velho com quem Gabriel, Marcus e Lionel dividiam o quarto. Ele estava sentado numa mesa mais distante, mas Gabriel conseguia reconhecer sua voz, apesar de terem falado apenas brevemente no quarto. – A pescaria está liberada... Mas se vocês pescarem um pedaço da Nau Voladora ou algum item que se perdeu dos baús, devolvam, não guardem, nem pendurem na parede, por favor. Mas os aprendizes ainda estavam muito ocupados reclamando da proibição do banho de rio, e não pareciam dispostos a parar nem tão cedo. – Muito bem! Agora, um aviso aos noviços. Eu suponho que Iglasius já tenha falado- lhes sobre algumas regras básicas, mas como sempre, é bom reforçar... E ele começou a dizer tudo o que Iglasius Julianus, o Guardião dos Portões, já havia dito, e Gabriel pegou-se encarando o nada e franzindo o cenho, até que a voz sussurrante de Ana atrás de si chamou-lhe a atenção: – Mas afinal o que são esses ocultistas? – murmurou ela para Marcus e Mísia, e Gabriel voltou-se para os colegas, inclinando-se para ouvir. – O Ocultismo lida com estrelas e portais interdimen151


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sionais, trabalham muito com metais preciosos... E não fazem churrascos humano, aliás – corrigiu Lália. – Eles são super fechados e exclusivos, cheios de sociedades secretas e tal... Por isso é tão estranho Netuno frequentar Monte Merínea... Até onde eu sei, os Nouris ainda estão envolvidos com essas sociedades secretas. – Ela não poderia estar aqui como uma espiã? – ponderou Ana num sussurro. – É bem provável – concordou Marcus. – E eu aposto que foi ela que causou a queda do dirigível... – sussurrou Mísia. Marcus coçou o queixo. – Não sei não... – Você não acha que foi ela? – perguntou Gabriel, sussurrando também, e um pouco surpreso. – Vocês não acham meio óbvio demais? – questionou Marcus. – Meio arriscado demais ela fazer isso? Afinal, ela é uma Nouris, não uma burra. Devia saber que todo mundo ia achar que foi ela. – H – Mísia franziu o cenho, ponderando. – Vai ver ela fez pensando exatamente assim, que seria óbvio demais para apontarem para ela. Gabriel soltou um suspiro e resolveu compartilhar seu pensamento, coisa que geralmente nunca fazia: – Se querem saber, eu acho que o diretor-mestre falou besteira. – Hã? Como assim? – Ana arregalou os olhos para ele. – Como é que ele já eliminou todo mundo menos os aprendizes? E por que alguém dentro do dirigível iria provocar uma queda? Qual a lógica disso? Marcus meneou a cabeça, concordando com Gabriel. – Tem razão. Aposto que foi alguém em terra. Mísia coçou a cabeça. – Mas é impossível... Só há mestres e funcionários aqui, todos acima de qualquer suspeita... 152


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Gabriel soltou uma risada seca e discreta. – É, aparentemente, todo mundo está acima de suspeitas... Menos os aprendizes, em especial Netuno Lencastre. – Pssiu, vocês vão querer ouvir isso – Lionel interrompeu a conversa sussurrada do quarteto e apontou para Paramondius. Todos voltaram-se para ele. – ... das tarefas são anuais. Afinal, vocês bem sabem, os anos de estudo aqui em Monte Merínea são livres de custos para suas famílias caso elas não possam arcar com eles. O pagamento, nesses casos, é feito por vocês, ao longo dos anos, nessas tarefas. Gabriel olhou para Ana, ambos confusos. Tarefas? – Ele quer dizer “dever de casa”, né? – sussurrou Ana, mas Gabriel não tinha tanta certeza. – A partir do segundo semestre letivo, – continuou Paramondius – depois das férias de Julho, os noviços que não puderam pagar também ingressarão no rodízio das tarefas. Atender aos nures, vigiar os muros, limpar os pátios, trabalhar na Bibliotheqa, caçar, pescar, trabalhar na cultura dos campos de feijão, mandioca e jerimum, na colheita das frutas, na patrulha da floresta, na supervisão nas hortas e no importante trabalho de mensageiro. É sempre bom lembrar-lhes, pois alguns de vocês, especialmente filhos de mortais, talvez não tenham entendido: inicia-se hoje suas vidas de aprendizes na sociedade artífice. E ser um aprendiz requer mais do que o estudo das estrelas, dos livros ou do treino com seu Meáren: ser um aprendiz requer trabalho duro e suor. Monte Merínea oferece-lhes conhecimento, um conhecimento maior do que outros centros de ensino artífice oferecem. Aqui, as tradições se misturam. Aqui, vocês dominarão o Ocultismo, o Naturalismo e o Elementismo. Mas nossa diferença com os outros centros encerrase aí: aqui também todos os aprendizes contribuirão para o 153


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fortalecimento de nossa Tradição, tão necessitada de novas mentes e seu apoio. Gabriel e Ana ouviam o discurso, aparvalhados, enquanto viam Mísia, Lionel, Lália, e quase todos os aprendizes à sua volta fazerem meneios de cabeça, concordando com cada palavra que o diretor-mestre dizia. Marcus apenas observava, quieto como eles. – Lembrem-se que lá fora não somos vistos com bons olhos, lembrem-se que nós, tríneos, somos excluídos dos Grandes Conselhos Artífices, e que, portanto, mais do que as outras tradições, precisamos dessa autossuficiência. O salão explodiu em ovação. Aparentemente, a revolta sobre a proibição dos banhos no rio Ereima foi esquecida, e todos aplaudiam, excitados, o discurso de Paramondius Magnus. Gabriel podia contar nos dedos a quantidade de pessoas que não aplaudiam, e entre elas estavam Ana, Marcus, Artur, o arruaceiro, e Netuno Lencastre, no mesmo canto escuro do salão. Gabriel localizou com facilidade os cabelos louros de Febo há algumas mesas de distância, aplaudindo de pé o discurso. – Obrigado, obrigado... Que o jantar de buoas-vindas se inicie! – exclamou, sendo ovacionado mais uma vez. – E noviços, lembrem-se: estejam pontualmente às nove horas da noite na escadaria principal com seus athames. Os outros sigam para o Grande Salão para o Baile Verde e a seleção dos aprendizes do Ciclo Tríneo. Paramondius fez uma reverência e sentou-se, dando início ao jantar. Logo todos começaram a comer os pratos que já estavam dispostos em suas mesas, famintos. O assunto do rio Ereima foi esquecido logo nas primeiras garfadas. Enquanto Lionel passava a Gabriel uma taça de sangria cheia até a boca, este olhava ao redor, ansioso, procurando por Netuno Nouris, que havia desaparecido de seu campo 154


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de visão. Ele queria dar mais uma olhada nela... – Gabriel? – Lionel ainda segurava a taça de sangria – Você quer que eu beba pra você também? – Ah, desculpa – ele pegou a taça que lhe era oferecida e deu um gole. – O que há? – indagou Lionel, percebendo algo errado. – Nada – Gabriel deu de ombros. – Por que teria algo errado? – ele tentou desconversar. – Gabriel, eu posso ser cego, mas não sou uma porta. O menino limpou a garganta. – Ah, só olhando em volta... Fiquei curioso com Netuno Lencastre. – Sei... – mas ele não parecia convencido. Contudo, logo se voltou para seu próprio prato de comida, deixando Gabriel sozinho com seus pensamentos.

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Eram ao todo vinte e um noviços, e Gabriel só conhecia Ana, Marcus, Mísia, Túlio e Luiz, e com os dois últimos ele nem sequer conversara direito. Mas estavam todos lá, os mais novos vinte e um aprendizes de Monte Merínea. Às nove horas da noite, o clima era frio, o que havia causado muita estranheza a Gabriel, já que eles estavam em pleno janeiro, e o verão estava sendo particularmente quente naquele ano. Entretanto, desde que chegara a Monte Merínea percebera que não fazia tanto calor ali, e depois de pensar um pouco, concluíra que só podia ser por causa da floresta: as árvores deixavam Monte Merínea sempre numa temperatura agradável durante o dia, com sua sombra, mas a noite, esfriava bastante... Ou talvez Monte Merínea tivesse sido construída numa altitude razoável. Gabriel não podia ter certeza: mesmo chegando ao instituto pelo dirigível, não conseguia dizer onde estavam. A floresta era muito densa e as árvores muito altas; talvez eles tivessem sobrevoado um 156


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morro e ele nem estivesse visível, coberto de árvores cujas copas estavam estranhamente harmônicas em altura com as que estavam em terrenos mais baixos, e dava a sensação de estarem num mesmo plano. Havia também muita névoa e nuvens no caminho. Eles poderiam estar em qualquer lugar do mundo agora, e Gabriel não conseguiria se localizar. Logo, completamente despreparado para sentir frio numa noite de verão, o menino estava andando de um lado para o outro nos degraus da escadaria principal, e muitos o imitavam. Marcus estava sentado tranquilamente na escada, dando uma olhada no livreto dentro do envelope que havia pego na mesa. – Algo interessante? – perguntou Gabriel, andando de um lado para o outro, completamente desinteressado e ocupado demais em não morrer de frio. – Botânica, Ilusionismo, Cosmologia, Cajatodologia, Equitação, Trabalhos Manuais, Somniu... – murmurou Marcus, distraído. – É, pode-se dizer que sim. Ana inclinou-se por sobre o ombro dele e começou a ler o livreto também, sob a fraca luz das lamparinas da escadaria. – Eu acho que já deve passar das nove... – murmurou Mísia, que também não parecia feliz com o frio. Ela estava encolhida a um canto, com uma cara extremamente malhumorada. – Eu tô falando sério, ninguém me avisou que ia ser frio aqui... Não estou acostumada com isso, que droga! – Nem eu – murmurou Gabriel – mas meu exercício tá tendo algum resultado... – Ah, qual é, nem está fazendo tanto frio assim... – retrucou Marcus, fechando o livreto. – De onde você é, Gabriel? – perguntou Mísia, levantando-se e começando a andar de um lado para o outro também. – De Pernambuco. E você? – Do Maranhão! 157


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– Somos quase vizinhos... – Põe quase nisso! – E eu de São Paulo – disse Marcus, guardando o livreto num dos bolsos. – Acho que não vai dar pra visitar vocês nas férias. Pelo menos existe internet fora de Merínea. Então, finalmente eles ouviram passos vindos de algum lugar do pátio central, e quando se voltaram para lá, puderam distinguir quatro silhuetas caminhando em sua direção, cada uma carregando seu cajado Meáren com um lampião preso a ele. Todos estavam vestidos com aquelas longas batas que Gabriel vira os lentes usando anteriormente, só que dessa vez, elas eram negras e tinham capuzes, que ocultavam a identidade dos quatro comensais. – Esses caftans pretos são assustadores – cochichou Marcus para Gabriel. – Caftans? – A roupa deles – esclareceu, impaciente. – Vocês que não trouxeram seus caftans vão receber alguns trajes – sussurrou Marcus, e Gabriel não gostou da ideia de usar uma daquelas batas. – Noviços, sigam-nos – disse uma das figuras encapuzadas para o grupo de vinte e uma crianças que se amontoaram instintivamente na escadaria. Gabriel reconheceu imediatamente a voz de Paramondius Magnus naquela figura, mas ainda não sabia quem eram os outros três. Cautelosamente, o grupo de crianças desceu os degraus da escadaria principal, e começaram a caminhar vagarosamente atrás das quatro figuras encapuzadas. Entretanto, qualquer vagarosidade teve que ser deixada de lado quando eles perceberam que seus guias andavam a passos muito rápidos, e logo eles tinham que quase correr para alcançá-los. Atravessavam o pátio central, e o som dos sapatos contra a pedra do calçamento era como uma explosão para os ouvidos sensíveis de Gabriel. A sinfonia noturna dos insetos era 158


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quase ensurdecedora. Sendo uma noite nublada, a luz da lua era quase que completamente bloqueada. Era difícil distinguir qualquer coisa além das quatro figuras e seus lampiões. Gabriel andava bem próximo a Ana, Marcus e Mísia, e os quatro formavam uma pequena barreira, seguindo por último o grupo de noviços. – Sabe, vivendo na cidade a gente esquece que a noite é tão... escura – Ana olhava para os lados, na vã tentativa de identificar onde estavam, mas era inútil. Tudo o que eles podiam distinguir era o prédio principal atrás de si e a linha que separava céu e terra no horizonte. Todo o resto era pura escuridão, de uma forma que Gabriel jamais havia visto. Eles passavam agora por uma fonte de água, que puderam distinguir apenas pelo som borbulhante que fazia. – Não sabia que você morava na cidade, Ana – comentou Mísia, erguendo uma sobrancelha. – O quê, só por que eu moro no Amazonas eu tenho que morar numa oca? – retrucou Ana, um pouco áspera demais. – Não, eu... – Mísia gaguejou, olhando para Marcus em busca de ajuda. O menino arregalou os olhos, sem resposta. Ana sorriu. – Tudo bem. Minha bisavó morava, sabe. Marcus também sorriu, olhando para os lados. – Eu já estou perdido. A gente já passou pela Caza dos Aprendizes? – Eu sei lá – grunhiu em resposta Gabriel, resfolegando, e percebendo que eles estavam ficando cada vez mais para trás, e isso o deixava mais nervoso ainda. – Ana, eu sei que você tem asma e tal, mas dá pra dar uma pressinha? Estamos perdendo eles. Ana respirou fundo e acenou com a cabeça, forçando o passo. Mísia, ao lado de Gabriel, deu-lhe uma cotovelada. 159


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– Seu grosso – sussurrou ela, para que apenas Gabriel a ouvisse. Ele não ligou muito. Todos se calaram e se concentraram em seguir os quatro comensais encapuzados, que praticamente corriam à frente do grupo sem fôlego de noviços. Eles já haviam perdido a noção do tempo e da distância quando finalmente pararam de andar – e se viram na margem do rio Ereima, mas dessa vez, numa altura longe da ponte e de onde o dirigível havia caído. Ali, uma grande fogueira os esperava, e a iluminação, enfim, os fez perceberem onde estavam: além de estarem à margem do rio Ereima, também estavam na borda da floresta Opara, cujas árvores rangiam com o vento que fazia, sussurrando coisas ininteligíveis para os aprendizes que, por sua vez, haviam parado há uma distância segura da fogueira, observando os quatro comensais fincarem seus Meárens em quatro pontos estratégicos ao redor dela. Instintivamente, e sem saber de onde aquilo vinha, Gabriel pensou: norte, sul, leste, oeste. E ele sabia que estava certo – como também sabia que a origem daquele pensamento era tão estranha quanto as vezes em que se sentira amputado. – Aproximem-se! – ordenou um deles que, para surpresa de Gabriel, era uma mulher. E, hesitantes, o grupo compacto de noviços aproximou-se. – Mais perto! – ordenou mais uma vez a mulher. E mais perto eles chegaram, até que as chamas da fogueira estivessem lambendo seus rostos, e eles começassem a suar. – Tirem os sapatos. E, intrigados, todos fizeram como era ordenado. O mato sob seus pés era suave e fresco, apesar da enorme fogueira. Duas figuras, menores e não encapuzadas, se aproximaram da fogueira então, mas se limitaram a ficar um passo 160


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atrás do perímetro que os quatro cajados Meáren haviam desenhado. – Olha, são aprendizes – murmurou Marcus para Gabriel, cutucando-o e apontando discretamente para as duas figuras afastadas. – E sem Meáren! – Não, são funcionários – retrucou Mísia, olhando na direção que Marcus havia apontado. – Funcionários? – indagou Gabriel, fitando as duas pessoas que, apesar de afastadas da iluminação da fogueira, podiam ser facilmente distinguidas como dois garotos não mais do que adolescentes. – Febo me contou sobre eles – sussurrou Mísia. – Foram banidos de Merínea. – Quê? – Ana e Gabriel exclamaram juntos, mas não houve tempo para a resposta, pois mais uma vez a mulher falava-lhes. – Aprendizes, atenção! – ela retirou o capuz, e Gabriel pôde distinguir feições suaves e olhos claros, além de uma longa cabeleira castanha e cacheada; o rosto de alguém que inspirava confiança imediata. – Vocês estão prontos a iniciar-se na Arte da Feitiçaria. O ritual que estamos prestes a executar é o primeiro de suas vidas. – É aqui, aprendizes, que vocês irão, enfim, nascer para o mundo real – emendou um segundo comensal, retirando o capuz e revelando-se como o velho homem moreno de barba preta que havia aconselhado Paramondius após a queda do dirigível. Suas feições eram árabes, rígidas e cheias de cicatrizes, e as sombras dançantes que a fogueira projetava apenas o tornava mais assustador. – É aqui que vocês irão despertar a força que está adormecida dentro de vocês – o terceiro comensal falou, revelando seu rosto ossudo e pálido, de grandes olhos escuros e um nariz pontudo e estreito. – É aqui – dessa vez, quem falou foi Paramondius, numa 161


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voz pausada e forte – que vocês se tornarão aprendizes. A mulher do grupo deu um passo a frente: – Eu sou Lisandra Gasparov, mestra em Combate. – E eu sou Telius Marberallis Morbidus, mestre em Ocultismo – falou o homem de nariz pontudo. Em seguida, o homem de barba preta: – E eu, Ártico Fel Félix, mestre em Cajatodologia e vice-diretor-mestre. – E eu – Paramondius aproximou-se da fogueira, encarando os noviços. Ele era, de longe, a figura mais imponente dos quatro, com sua longa barba loura fulgurando à luz da fogueira – sou Paramondius Magnus, o diretor-mestre. Que se inicie o ritual! BLÉIN! Todos se sobressaltaram diante do som, e se voltaram para os dois rapazes fora do círculo: eles tocaram um gongo, que ninguém havia notado estar ali até aquele momento. Por mais assustador que aquilo soava, Gabriel permanecia impassível. Sabia que agora não havia mais nada para ele além daquilo – a Arte era seu destino. Sua mãe podia abandoná-lo à própria sorte, podia querer negar quem ela era, podia querer negar toda sua família, mas ele não faria isso. Gabriel seria um feiticeiro. Gabriel seria um Nouris. – A hystoria que se conta aconteceu há tempos demais para ser calculado – começou Lisandra Gasparov, num tom cerimonial. – Aconteceu antes de haver reis ou deuses, magia ou devas. – Mas não aconteceu antes da guerra e da paz: ambas já existiam, porque elas existiram desde sempre, dentro dos homens – quem falava agora era Ártico Félix, o árabe, com sua voz rouca, aproximando-se da mulher. – E enquanto essas guerras eram pequenas, entre homens sem reis ou deuses, seu propósito era um só: água. 162


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Enquanto eles falavam, Telius Morbidus circulava entre os alunos, afastando-os uns dos outros, posicionando-os em círculo em volta da enorme fogueira, e dando-lhes um pequeno recipiente de barro, cheio de um líquido gelado que ele fazia todos beberem. Gabriel ficou entre Mísia e Marcus, que do seu outro lado tinha Ana. Quando chegou sua vez, o mestre em Ocultismo fez Gabriel virar sua bebida de uma vez, e ele sentiu o líquido queimar em sua garganta até chegar ao seu estômago. Definitivamente, aquilo não era água. – E enquanto os homens sem reis ou deuses lutavam por água, havia aqueles que os observavam – Lisandra Gasparov recolocou o capuz, ocultando seus olhos claros dos aprendizes. – E aqueles que os observavam achavam as guerras e os homens tão pequenos, tão ínfimos em sua luta, que queriam ajudá-los. Gabriel observou Ana tomar sua bebida, e ela não parecia nada satisfeita com aquilo, assim como ele. O menino lançou-o um olhar que hesitava entre apoio e socorro. – Esses que os observavam não têm nome, ou classificação, ou sequer explicação: por isso, os chamamos Perfeitos, pois eles apenas são, e nada mais, como a árvore da floresta ou os abismos do mar. – Ártico Félix também recolocou o capuz. Ele e a mulher faziam uma sutil dança de movimentos sincronizados, um seguindo o passo do outro, apesar de permanecerem parados e distantes, cada qual ao lado de seu próprio cajado Meáren fincado na terra. Gabriel permaneceu imóvel. Fosse o que fosse que tivesse bebido, havia-o deixado lento. – Eles são tudo aquilo que almejamos ser e que jamais seremos – continuou Lisandra Gasparov. Gabriel checou seu outro lado: Mísia parecia extremamente concentrada na fogueira, ao passo que Ana, ao lado de Marcus, havia saído da posição que Telius Morbidus a 163


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designara e agora segurava firmemente o braço do rapaz. – Cativados por homens em guerra, mas que só prosperavam em paz, os Perfeitos tomaram uma decisão: – Ártico Félix colocou uma mão dentro de um bolso de seu caftan e retirou algo – lançariam para eles um sopro d’Arte, darlhes-iam um espectro de Pó de seu próprio mundo, e esse pó seria suficiente para fazer brotar a tão almejada água para sempre, de forma abundante, de forma a acabar com o sofrimento daqueles pequenos homens sem reis ou deuses. Lisandra Gasparov aproximou-se de Ártico e recolheu em ambas as mãos o que o homem havia pegado dentro do bolso. Gabriel teria tido o impulso de inclinar-se para ela e espiar o conteúdo de sua mão, mas um torpor inesperado tomou conta dele, deixando todo o seu corpo amolecido e incapaz de se mexer. – E então, – ela continuou, aproximando-se da fogueira com as mãos esticadas para a frente, carregando algo – o mais velho dos Perfeitos inclinou-se levemente por sobre a terra, – ela inclinou-se levemente para o fogo – sorriu, e soprou uma ínfima parte da Arte para o mundo dos mortais – e ela assoprou o pó que tinha nas mãos, que fez pequenas explosões coloridas na fogueira arrancarem exclamações de espanto de todos os aprendizes, mesmerizados com a história. Ana segurou ainda mais fortemente o braço de Marcus, que grunhiu. Ao contrário de Gabriel, ela não parecia estar tão entorpecida assim. Parecia enjoada. Era a vez de Ártico Félix continuar: – E esse espectro de Pó viajou muitos e muitos quilômetros, até encontrar o que procurava: uma fonte d’água pura e prima. – e então ele caminhou para além do perímetro dos cajados, aproximando-se do rio Ereima e jogou ali também um pouco de pó – Ao cair suavemente nessa fonte prima, o Pó fez a água borbulhar e se multiplicar em milhões e mi164


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lhões de vezes, para inundar quase toda a terra, para quase afogar os homens de êxtase e perplexidade diante daquele feito, para acabar com as pequenas guerras de homens sem reis ou deuses. E enquanto ele falava, às suas costas, as águas do rio ficaram momentaneamente iluminadas com diferentes cores, as mesmas que ainda a pouco haviam explodido na fogueira, mas que logo foram levadas pela corrente. Ártico voltou para perto da fogueira e postou-se ao lado de Lisandra, que prosseguiu: – Mas os Perfeitos, ao lançarem tão mínima parte de seu mundo num mundo estranho e imperfeito, não sabiam que consequências aquele Pó teria. E o Pó, como todas as coisas, teve vários efeitos inesperados. – Ao cair na água e inundar o mundo, – prosseguiu Ártico, em sua voz meio rouca – acabou com as guerras por água, mas também acabou com aqueles homens sem reis ou deuses. Porque dali em diante, embriagados de tanta água, os homens esqueceram quem eram, e criaram reis e deuses, e não faziam mais guerra por água, mas por qualquer outra coisa que valia muito menos que ela. Telius Morbidus voltou a aproximar-se do círculo de noviços, guiando-os para afastarem-se um pouco mais da fogueira, para alívio de todos, que já suavam muito devido àquela proximidade. Gabriel deu passos cautelosos, pois temia pisar em algum espinho ou mesmo algum inseto com seus pés descalços. Lisandra seguia com a história: – Mas o Pó também trouxe a magia dos Perfeitos, que se diluiu em água, e quanto mais os homens bebiam da água do mundo, mais impregnados de Arte ficavam. E foi só muito tempo depois que os homens, agora com reis e deuses, e magias e devas, perceberam que algo havia crescido dentro deles. Algo diluído na água em seu sangue, que os 165


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fazia sonhar e levitar, e que quando preciso, era possível controlar. Ela voltou a retirar seu capuz, e afastou-se de Ártico Félix, que agora falava: – E só depois de muito mais tempo ainda é que alguns homens perceberam, afinal, a Arte. E dela fizeram sua vida. E a eles devemos agradecer, assim como à água, e ao Pó, e aos homens sem reis ou deuses, e aos Perfeitos, que sequer vivem essa vida, mas que acham graça nela assim mesmo. Paramondius Magnus, que havia permanecido a um canto, calado, finalmente voltou ao centro do círculo e ergueu os braços, o caftan negro fazendo-o parecer um morcego gigante na noite. Ele parou entre Gabriel e Mísia e baixou os braços, colocando uma mão na cabeça de cada um deles. Gabriel sentiu uma corrente elétrica atravessando seu corpo até o chão, e controlou o estremecimento que queria se apossar de seu corpo. – E essa é a história do surgimento da Arte, aprendizes! Não se trata de idolatria: é a hystoria que nos foi passada, por milhares e milhares de ano. É o que nos faz quem somos. E é essa a hystoria que vocês devem carregar em seus corações e em seus Meárens pelo tempo que viverem! E lembrem-se: esse será um longo tempo, pois graças aos nossos cajados e à Arte, nós veremos mais de um século de história passar por nós. Ele baixou as mãos, para alívio de Gabriel, e foi para o centro do círculo, próximo à fogueira, a qual começou a circundar, olhando cada aprendiz nos olhos. E então, para total choque e surpresa de todos, Paramondius retirou de dentro de seu caftan uma arma que era algo entre uma espada e um punhal, e que fez muitos noviços recuarem, mas que foram logo impelidos para suas 166


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posições iniciais por Telius Morbidus, Lisandra Gasparov e Ártico Félix. – Que o fogo os desperte! E antes que Gabriel pudesse entender o que estava acontecendo, Paramondius colocou a lâmina da espada na fogueira, para em seguida brandi-la, em chamas, contra os alunos mais próximos, que gritaram, assustados, mas os outros comensais estavam logo atrás para impedi-los de recuarem. Paramondius seguiu a circunferência para brandir novamente a espada em chamas na direção de mais aprendizes, para enfim chegar na área onde Gabriel e os outros estavam, já encolhidos em suas posições. – Que o fogo os purifique! – gritou ele novamente, recolocando a espada na fogueira e voltando a brandi-la para as crianças, que não deixaram de gritar. Gabriel sentiu uma brasa da fogueira em seu rosto, e foi rápido em retirá-la. Do ponto em que havia sido tocado pelo fogo, o menino começou a sentir um leve formigamento. Mas antes que pudessem tomar fôlego, ouviram Lisandra Gasparov gritar por trás deles: – Que o ar os purifique! – e uma rajada de vento absolutamente não-natural abateu-se sobre eles, aumentando assustadoramente as chamas da fogueira. E enquanto o redemoinho circulava entre eles, esvoaçando os caftans dos lentes e assustando os aprendizes, Gabriel sentiu aquele formigamento em seu rosto mais forte, e ele começou a se espalhar pelo resto de seu corpo. Começou a sentir uma leve eletricidade nas pontas dos dedos das mãos e dos pés descalços. E quando finalmente o redemoinho parou, todos puderam, enfim, respirar. – Aprendizes! Ao rio! – gritou a voz de Ártico Félix, e todos os noviços voltaram-se para o rio Ereima, onde 167


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o mestre em Cajatodologia os esperava. Eles fizeram um semicírculo em volta do homem, ainda assustados, alguns temendo serem jogados no rio, mas o que aconteceu foi menos assustador: Ártico chamou um a um para banharem seus pés nas águas do rio, e um a um eles foram. A chamada era feita em ordem alfabética, logo, Ana e Artemísia já haviam ido e voltado, e agora sentavam, quietas, próximas a fogueira, esperando os outros. Quando finalmente chegou a vez de Gabriel, ele hesitou apenas um segundo antes de mergulhar os pés no rio Ereima. Uma forte corrente elétrica passou pelo seu corpo – muito maior do que havia sentido quando Paramondius Magnus colocou a mão em sua cabeça. E quando ele saiu do rio e caminhou de volta para a fogueira, percebeu que a cada passo que dava podia sentir como se um fio de alta tensão o estivesse ligando à terra, e ele conseguia senti-la sob seus pés pulsando, como a um coração. Sentado em silêncio ao lado de Ana e Mísia, o menino colocou ambas as mãos no chão e fechou os olhos. Sim. Ele podia sentir a terra pulsando. Quando abriu os olhos, viu que todos já estavam de pé, e ele apressou-se em imitá-los. Na sua pressa, e ainda entorpecido, caiu novamente no chão, chamando a atenção dos outros, mas finalmente se levantou. Ele engoliu em seco quando percebeu o rosto árabe e cheio de cicatrizes de Ártico Félix encarando-o do outro lado da fogueira. – Não há pressa agora, Gabriel Nóbrega – disse o mestre. – Leve o tempo que precisar. – Falta apenas mais um passo, noviços – exclamou então Telius Morbidus, aproximando-se dos dois rapazes que não eram aprendizes e que agora empurravam um baú na direção da fogueira. – Apenas mais um passo para vocês se 168


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tornarem aprendizes. Ele abriu o tampo do baú e revelou a miríade de pedras coloridas e de diferentes tamanhos ali contidas. – Esse é o Último Ato: escolham uma pedra e joguemna na fogueira. Gabriel havia desistido de entender todo o significado daquele ritual – estava satisfeito em perceber que algo dentro dele estava, sim, sendo acordado. Algo que ele sempre soube que tinha, e que de vez em quando havia sentido, como um som distante, mas que só agora percebia estar realmente vindo à superfície. Aquela sensação de que lhe faltava um braço havia voltado, também, agora mais aguda do que nunca. Gabriel deu por si flexionando as duas mãos para ter certeza de que tinha os dois braços. Ele foi o primeiro a dar um passo em direção ao baú, sendo seguido de perto pelos outros. A escolha da pedra não foi como ele esperava: ele planejava em escolher uma grande e azul turquesa, por sua imponência, mas viu sua mão ser arrastada para uma outra pedra, pequena e transparente, como se ela estivesse imantada e atraísse a polaridade da mão de Gabriel, enquanto todas as outras pedras a repeliam. Quando finalmente a tinha em mãos, ele olhou-a longamente. Via as chamas da fogueira se refletirem nela, e por um instante, sentiu vontade de guardá-la para si, não em jogá-la na fogueira. Sentia as pálpebras pesadas, e os sons a sua volta eram apenas um eco distante. As chamas refletidas na pedra eram lindas, Gabriel nunca havia visto nada assim antes. Com pesar, ele forçou-se a andar na direção da fogueira, ainda com o olhar fixo na pedra transparente que ele segurava entre o polegar e o indicador. Era realmente linda... E se ele não a jogasse? 169


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Olhou para os lados: todos estavam ou escolhendo sua pedra ou já a jogando na fogueira. Paramondius Magnus estava a um canto falando com Lisandra Gasparov. Telius Morbidus e Ártico Félix falavam alguma coisa com os dois rapazes que não eram aprendizes. E então, sem pensar uma segunda vez, o menino baixou a mão e guardou sua pedra no bolso da calça, afastando-se em seguida da fogueira. Não demorou muito para que todos tivessem terminado, e logo Paramondius Magnus voltava-se para eles, com seus braços abertos, o caftan, como sempre, tornando-o um morcego gigante. – Aprendizes tríneos! Sejam bem-vindos à Arte! – e, com seu cajado já em mãos, apontou-o para a fogueira, cujas chamas elevaram-se mais ainda, fazendo todos recuarem. O movimento que o cajado Meáren fazia era acompanhado pelo fogo, e todos os aprendizes recém-iniciados observavam aquela demonstração de poder, boquiabertos. As chamas só subiam mais e mais alto, e quando Gabriel achou que não seria mais possível controlá-las, com um movimento brusco e violento Paramondius acertou o coração da fogueira com seu cajado, fazendo com que a explosão de fogo se espalhasse para todos os lados – e Gabriel e os outros aprendizes notaram, chocados, que havia tochas apagadas espalhadas pelo campo e até na outra margem do rio Ereima. Tochas essas que foram acendidas quando o fogo se espalhou pelo ar, voando para todos os lados. Agora, um perímetro muito maior do campo era iluminado, e havia uma longa fileira de tochas que seguiam a orla imprecisa de Opara. – Seus futuros cajados Meáren os aguardam, aprendizes! – exclamou então Paramondius Magnus, apontando para a floresta Opara – Vão! A madeira certa, da árvore certa, vai surgir. Estejam com seus athames em punho para cortá-la, se necessário. 170


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Gabriel então se inclinou para Marcus. – “Athames”? – Nossas adagas – sussurrou de volta o menino, pegando sua própria adaga, dourada e de cabo preto e reluzente. Gabriel, que havia guardado a sua no cinto da calça, também a pegou, retirando-a de sua capa. Então hesitou. Não sabia o que fazer. Os outros aprendizes lentamente se afastavam para a floresta Opara, então ele os seguiu, incerto. Gabriel seguiu em frente, ainda indeciso. Afinal, como se escolhia a madeira para um cajado Meáren? Como ele saberia para que lado ir? Não podia ser só instinto, como parecia. Sem opção, porém, ele seguiu para a floresta, e à medida que se aproximava das árvores, podia ouvir seus sussurros, chamando-o. Elas se inclinavam perigosamente para os aprendizes, que, involuntariamente, haviam se enfileirado entre o limite do descampado de Monte Merínea e a floresta Opara. Gabriel olhou para os lados. Todos tinham seus athames em punho, como se preparados para uma pequena guerra. Todos encaravam com olhos sérios a floresta gigante à sua frente, e o medo entre eles era palpável. Enfim, um deles deu um passo a frente, sumindo entre as árvores, e os outros fizeram o mesmo, cada um andando para um lado. Gabriel não queria ficar sozinho. Seu braço invisível doía-lhe todo o corpo e isso o assustava, pois a dor nunca havia sido tão forte. Olhando para os poucos que ainda encaravam a floresta, ele localizou Ana e Mísia, e se aproximou delas. Mísia parecia estar preocupada com Ana, que ofegava. – Ei – chamou-as, num sussurro, pois lhe parecia um sacrilégio falar alto naquela noite misteriosa. – Vamos juntos. As duas garotas acenaram com a cabeça e os três tomaram fôlego, expeliram o ar, e finalmente deram os primei171


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ros passos. A floresta Opara parecia ser feita de escuridão maciça. Apesar da parca iluminação proveniente das tochas nos campos de Merínea, ainda era difícil enxergar à frente. Os animais noturnos não se sentiam intimidados pela presença humana, e vez ou outra o trio de aprendizes vislumbravam algo furtivo passando por eles. Gabriel sentia-se incomodamente consciente de todos os pequenos olhos mirando-o. – De que árvore vocês vão pegar sua madeira? – indagou Gabriel para as duas, num sussurro. – Eu sei lá – foi a resposta de Mísia. – Vamos continuar andando... Todo mundo diz que quando nós vemos a árvore, sabemos que é ela. Então... vamos... continuar só andando. Juntos. – Esse é o plano? – murmurou Ana, confusa. – É assim que sempre funcionou, Ana, vamos – disse Mísia em resposta, voltando a andar e sendo seguida por uma Ana apavorada e um Gabriel que sentia a dor daquele braço inexistente ficar ainda mais forte... Eles podiam ouvir os passos de outros aprendizes andando pela floresta também, e vez ou outra cruzavam com alguém. Estavam todos muito ocupados observando as árvores, tocando-as, e voltando a andar até a próxima árvore e analisá-la. Gabriel tentou esse método também: por várias vezes, se aproximava de uma árvore e a tocava. Não sentia nada, apenas aquele pulsar de coração que agora era uma constância toda vez que pisava no chão ou tocava em algo. Ana e Mísia faziam o mesmo, mas Gabriel podia perceber que Ana estava cansada, e quando tocava numa árvore era mais para se apoiar do que para senti-la. Isso deixava Gabriel nervoso. Ele já estava se acostumando à floresta sombria, e a dor do seu “terceiro” braço inexistente agora era latejante. Gabriel não queria ver outra crise de asma, e muito me172


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nos ter que ser responsável por Ana. Então, discretamente, começou a andar mais rápido. Mísia estava muito concentrada em sentir as árvores, e andava lentamente, vez por outra observando Ana, que sempre ficava mais para trás. Gabriel se sentia ofegante, mas andou a passos largos, até perder as meninas de vista... E até perceber que havia andado demais. Estava tudo muito escuro. Estranhamente escuro. Por aqui. Ele seguiu pelo caminho indicado. Sabia que estava se afastando demais, mas não se importava. Suava frio e arrastava os pés, cansado. A dor fazia com que pontos de luz surgissem à sua frente. Gabriel tirou do bolso a pedra que deveria ter jogado na fogueira iniciática e apertou-a contra o peito. A dor diminuiu um pouquinho. Por aqui... Respirando com dificuldade, ele seguiu. Nem mais o frio da úmida floresta o incomodava mais. Ele precisava... precisava... chegar lá, onde quer que fosse. Cambaleando, ele se encontrou defronte a três enormes árvores, de troncos grossos e copas frondosas, rangendo contra o vento noturno. Percebeu uma suave luz, uma silhueta de alguém, talvez, do outro lado das árvores, mas foi rápido demais – talvez fossem apenas aqueles pontos de luz que bagunçavam sua visão. As três árvores, ele observou, formavam um triângulo perfeito. Quando ele andou até o centro, pode perceber que ali não havia mato, apenas raízes grossas e nodosas – o que era muito estranho, pois o mato selvagem crescia, dominante, por toda a terra... Menos ali. Ofegava. Ainda via os pontos brilhantes à sua frente. A voz silenciou, e ao longe ele podia ouvir o piar de um pássaro noturno. O terceiro braço queimava nele. Fechando os olhos, Gabriel respirou fundo. Sabia que ia 173


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desmaiar. Podia sentir isso. E estava longe demais, mesmo que pudesse gritar, talvez ninguém o ouvisse... Tudo estava muito escuro, muito frio, e a dor era excruciante... De repente, algo o atingiu em cheio no peito, e ele teve que lutar por oxigênio. Não caiu, porém, pois ao abrir os olhos, percebeu que não havia sido um golpe físico. Alguma coisa, alguma energia, algo intangível... E antes que ele pudesse pensar no que fazia, caminhou com uma firmeza que não possuía até uma das árvores frondosas que formavam o triângulo, tirou seu athame do bolso e com uma força que ele não reconhecia, cortou num golpe só um grosso ramo mais baixo da árvore. No mesmo momento, o braço invisível deixou de queimar: ele apenas formigava agora. Gabriel balançou a cabeça, desorientado. Seu cajado Meáren?, ele pensou, encarando aquele galho áspero e retorcido em suas mãos. Era essa a dor que sentia, o “braço” do qual sentia falta? De repente, ele estava bem ciente dos seus arredores: estava embrenhado no meio da floresta, escura, sem nenhum tipo de iluminação e sozinho... Talvez não devesse ter se afastado das meninas. Contudo... Ele olhou em redor, confuso. Apesar da noite de nuvens, que impedia a luz da lua, e apesar de estar longe das tochas de Merínea... Contudo, de alguma forma, Gabriel ainda podia ver a mais tênue das luzes iluminando o ambiente à sua volta. E claramente essa tênue iluminação fazia um caminho, deixando a floresta ao seu redor emersa na verdadeira escuridão da noite. Ele a seguiu, destemido. Não tinha outra opção, na verdade. Os sons dos animais noturnos eram aterradores, apesar de Gabriel não ter conseguido visualizar nem sequer um inseto. Mas ele os ouvia em toda parte, e quase podia sentir seus olhos fixados em sua presença intrusa. Seguindo a vaga iluminação azulada, que quase se con174


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fundia com o luar que não os agraciava naquela noite, Gabriel logo pode divisar a iluminação alaranjada das tochas de Monte Merínea, e foi para lá que ele correu, segurando firmemente seu futuro cajado e seu athame, a pedra iniciática já bem escondida no seu bolso da calça. Mais rápido do que esperava, estava em campo aberto novamente, mas bem mais distante do rio Ereima. Caminhou a passadas largas até a fogueira iniciática, onde alguns aprendizes já estavam debruçados sobre seus futuros Meáren. Ou melhor, onde a maioria dos aprendizes estava. Gabriel contou dezenove, contando consigo mesmo e, de seu grupo, deu pela falta apenas de Marcus. Os dezoito aprendizes estavam todos sentados na grama, de costas para a fogueira, encarando os quatro comensais que haviam regido o ritual, todos voltados para o rio Ereima. Gabriel não precisou ser instruído para se sentar, fê-lo assim que se aproximou do grupo. Ele podia visualizar, bem mais à frente, Ana e Mísia, sentadas uma ao lado da outra, cada qual abraçada com seu futuro Meáren. Quanto tempo ele havia ficado na floresta?, Gabriel se perguntava. Estavam todos em silêncio. Uns, admiravam seus “achados”, outros, pareciam pálidos e cansados. A maioria tinha o olhar perdido na direção da água corrente do rio Ereima. A única coisa que não havia naquele momento era conversa, nem mesmo entre os lentes de Monte Merínea. O único cochicho que Gabriel podia ouvir era o dos dois rapazes que haviam tocado o gongo no começo da cerimônia, e pareciam auxiliar na sua execução. Gabriel não saberia dizer quanto tempo se passou até que a mulher do grupo, Lisandra Gasparov, cochichou algo 175


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no ouvido de Paramondius Magnus, que assentiu. Ela se afastou, acompanhada pelo velho manco de nariz quebrado, Ártico Félix. – Paulo! Thomás! – Ártico Félix chamou os dois rapazes do gongo, que correram ao seu encontro. Ele se inclinou para os meninos, falou algo e eles consentiram. Os quatro, então, se espalharam e adentraram a floresta Opara. Gabriel só pôde perceber que cada um deles tinha uma pequena ocarina nas mãos, que começaram a tocar e cujo som se propagava na noite. – Parece que dois de seus companheiros estão tempo demais afastados – declarou Paramondius, em sua voz autoritária, para os que se encontravam sentados entre o rio e a fogueira. – Continuaremos assim que eles voltarem. Gabriel viu todos se entreolharem, receosos. Foi quando Mísia virou a cabeça para procurar por alguém no meio dos alunos (provavelmente ele e Marcus) que seu olhar cruzou com o de Gabriel. Ela parecia alarmada, e engatinhou até ele, deixando Ana onde estava. – Cadê Marcus? – perguntou ela num sussurro sacrílego. – A última vez que o vi, ele havia jogado a pedra na fogueira – respondeu Gabriel em outro sussurro. Mísia mordeu o lábio inferior. – Você sumiu. Saiu correndo, eu vi. – Eu... – Gabriel engoliu em seco, pensando no que diria. “Meu terceiro braço estava queimando”? Ou talvez “eu não queria ser atrasado por uma asmática”? Nenhuma das respostas parecia do agrado de Mísia. Ele pigarreou. – Eu... Mas Gabriel não precisou responder: assim que titubeou, todos puderam ouvir o som das ocarinas retornando para perto da fogueira. Os aprendizes viraram as cabeças, e puderam ver Lisandra e Ártico Félix ladeando duas figuras menores, cada qual carregando seu achado da noite. O lente mais velho, porém, 176


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puxava um dos meninos pela orelha – e com força. – Temos um perdido e um metido aqui! – exclamou ele quando se aproximaram do grupo. O menino que ele puxava pela orelha não era Marcus, para surpresa de Gabriel e alívio de Mísia. Era um outro aprendiz, que nenhum dos dois conhecia, e que gania de dor com a força que Ártico imprimia ao seu aperto na orelha. – Podemos prosseguir! – exclamou Lisandra, com uma mão sobre o ombro de um Marcus meio abalado, seu rosto moreno arranhado pela floresta. Ele se agarrava ao seu achado da noite, trêmulo. Tanto o “perdido”, Marcus, quanto o “metido”, o aprendiz desconhecido, juntaram-se aos outros na grama, e os dois lentes, Lisandra e Ártico, voltaram às suas posições. Thomás e Paulo voltaram ao gongo, em silêncio. – Aqui, aprendizes – retomou Paramondius, nunca perdendo sua pompa – inicia-se o seu primeiro ritual... O primeiro de muitos!, desejamos. Aqui e agora, sem regras nem critérios, vocês despertarão o que há de mais sagrado na vida dum feiticeiro: sua alma gêmea, como chamam os naturalistas; ou “seggunda alma”, como ensinam os ocultistas... Ou até, de acordo com a tradição elementista, o seu “gran deva”... Seu cajado Meáren! Ele é a sua força, a sua ligação com a Arte. Sem seu Meáren, um feiticeiro não é completo. Cada cajado é único, da mesma forma que cada pessoa o é. Não existe como repor um cajado quebrado ou perdido, lembrem-se disso! Ártico Félix, parado ao seu lado, estava inquieto com o discurso de Paramondius. Assim que o diretor-mestre fez uma pausa, Ártico interveio: – Aprendizes, ouçam com atenção, pois sou seu lente em cajatodologia! – Paramondius olhou-o de lado, mas manteve-se calado. Ártico prosseguiu: – O Meáren tem personalidade própria, e com o passar do tempo e o cres177


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cer da intimidade entre o portador e o cajado, o feiticeiro descobrirá o nome do seu Meáren. Às vezes, essa empatia acontece instantaneamente quando o jovem feiticeiro desperta seu cajado. Outras, não. E pode demorar anos até que o cajado revele seu nome... Ou nunca. Portanto, preparemse, pois ao banharem seu Meáren nas águas do rio Ereima, nem vocês, nem esse galho que seguram em suas mãos serão os mesmos. Ambos estarão despertos, ambos estarão vivos... Ambos verão e sentirão coisas que outrora estava além de seu alcance. Alguns compartilharão mais profundamente esses sentimentos. Outros, não. Que Bóreas, Euro, Zéfiro e Noto sempre soprem a favor, e nunca contra seus ombros! Gabriel sentia a tensão crescendo entre os recém-iniciados, e dentro de si mesmo. E se ele não conseguisse sentir essa conexão? E se a “personalidade” do seu cajado fosse contra a sua? E se não compartilhasse daqueles “sentimentos” com seu Meáren? Ele respirou fundo quando lhes foi ordenado que se levantassem e se aproximassem do rio. As águas do Ereima eram mais agitadas do que Gabriel imaginara – mas, se ele fosse sincero consigo mesmo, admitiria que não sabia nada sobre rios. Era um menino criado na praia, longe daquelas paragens. Quando todos estavam enfileirados na margem do rio, os lentes posicionaram-se atrás dos aprendizes e cada um levantou seu cajado. Para a surpresa de todos, grandes pontos de luz começaram a surgir dentro do rio. Vários pontos de suave luz amarelada, que iam juntamente com a correnteza, alguns rápidos, outros mais devagar. Os tamanhos, Gabriel percebeu, também variavam: cada vez mais luzes apareciam dentro do rio, lançando raios distorcidos para iluminar o ambiente. Era um espetáculo aquático fantástico. – Olhem! – exclamou um rapaz afastado de Gabriel, 178


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que reconheceu a voz de Túlio, o menino que encontrara na Nau Voladora. – São peixes! E assim que ele falou, Gabriel percebeu que Túlio estava certo: eram realmente peixes! Eram eles que brilhavam e iluminavam todo o caminho do rio, até perder de vista: as águas haviam se tornado uma estrada luminosa na escuridão da noite, da saída da floresta Opara, de onde a corrente vinha, até a ponta que se perdia pelo fosso das distantes muralhas de Monte Merínea. Um caminho aquático de luz! – Vamos! – exclamou Ártico Félix, impaciente. – Purifiquem-se! Mísia foi a primeira a entrar no rio: abraçada ao seu achado da noite, ela chapinhou na água até que esta lhe estivesse nos joelhos. Respirou fundo, lindamente iluminada pela luz das escamas dos peixes, e mergulhou seu galho por completo na água. Gabriel e outros recém-iniciados a imitaram, e se aproximaram para ver melhor: agora, o cajado emerso de Mísia estava rodeado por brilhantes peixes, que pareciam mordiscar a madeira. Os olhos da menina estavam cerrados, e Gabriel a viu estremecer. Deslumbrado e assustado, o menino tomou fôlego, como se fosse ele quem fosse mergulhar no rio, e submergiu seu próprio achado da noite. Assim que o fez, sentiu. Ele sentiu um milhão de coisas diferentes naquele momento: angústia e puro êxtase se misturavam, sentia-se repartido em dois e completo, sentia-se finito e esticado, mas também imenso e eterno. Ouviu uma voz. Não, não era uma voz. Era algo diferente... Algo que se comunicava, mas não através da fala, ou sequer usando qualquer linguagem conhecida. Era um laço. A água gelada que corria a sua volta havia se tornado milhares de agulhas penetrando sua pele, agulhas elétricas, que o conectavam a todo o rio e este, por sua vez, serpente179


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ando por quilômetros de terra, conectava-o a todo o resto, para em seguida lavar a sensação ruim. Mas a água era tudo o que ele podia sentir: não percebia seu próprio corpo, nem sequer o peso que segurava debaixo d’água, seu cajado Meáren. Gabriel não estava em si: naquele momento, não conhecia limites, espaciais ou temporais. Estava livre. Verdadeiramente livre. Você vê? “O quê?” Ali. “Você...” Sou Gótelo. “Eu sei”. E de alguma forma, ele realmente sabia. Mas você vê? “Eu não entendo...” Abra os olhos, Gabriel. E Gabriel os abriu. Não para fora, não suas pálpebras -- essas permaneceram cerradas. Ele abriu-se para dentro, e foi então que ele viu o que Gótelo via. Sua mãe. Ela estava num quarto pequeno e escuro, cuja mobília consistia em uma cama estreita, uma mesa e duas cadeiras. Havia uma pequena mala sobre a mesa, cuspindo roupas e sapatos. Yordana estava sentada em uma das cadeiras, com as duas mãos cobrindo-lhe o rosto. Parecia exausta. Usava um caftan feiticeiro, de cor azul-índigo, mas estava rasgado e os longos cabelos eram um emaranhado em sua cabeça. Estava completamente desalinhada, e quando ela levantou os olhos, Gabriel percebeu o rosto inchado e os olhos vermelhos. A porta abriu-se, e por ela entrou um homem desconhecido. Não. Pensou Gabriel, olhando-o de perto. O homem tinha seus olhos e cabelos negros cacheados, seu nariz... Mas ele era pálido como Yordana. 180


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Ela, ao vê-lo, deu um grito de raiva que deve ter-lhe rasgado a garganta, e partiu para cima dele, Meáren em punho, acertando-o com o cume do cajado no lado esquerdo do seu rosto. Ele caiu no chão, sua única reação sendo a de colocar uma mão sobre a ferida, que sangrava. Ela gritava. Gritava a plenos pulmões, e foi então que Gabriel percebeu que também chorava. Ela chorava de raiva e dor. Muita dor. Colocou a mão sobre a barriga e deixou-se cair no chão também, ainda chorando, agarrando-se a si mesma, até que começou a balançar o corpo para frente e para trás, enquanto ele sangrava sobre o chão de madeira, sentado e inerte. Então era Monte Merínea. Uma abóbada plúmbea sobre o instituto, um vento morto pairando. Gabriel não viu, mas sabia que nada mais restava de vida na floresta Opara. De repente, um som ensurdecedor ecoando pelo ar. Algo gutural e profundo, que ele não conseguia associar a nada. Homens encapuzados caminhavam todos em uma única direção: os portões externos, aonde Gabriel encontra-se parado, segurando seu Meáren, encarando-os. Acompanhando cada passo deles, quilômetros e quilômetros de hera espalham- se, encobrindo todas as construções, pátios, torres e fontes de Monte Merínea. Eles iam em direção a Gabriel, que apesar de estar suando frio, apavorado e querendo fugir, não se mexia. Alguém aperta sua mão, e é só então que ele percebe que não está sozinho. Uma mulher está ao seu lado, e vê-la faz Gabriel sentir algo que nunca sentira na vida: amor. Ele a ama. E eles vão morrer. “Socorro”, sussurra ele para seu Meáren. “Temos que correr”. Aqui nos quedaremos, Gabriel, respondeu Gótelo, impassível ao seu lado. 181


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“Vamos morrer!”, exclama ele, arregalando os olhos para o exército de homens encapuzados e plantas espinhosas, segurando mais firmemente a mão da mulher. E aqui nos quedaremos, reforçou o Meáren. Mas para onde os homens encapuzados caminham? E ao fechar os olhos para aquela cena de horror, abriu suas pálpebras, querendo fugir da visão, ver a noite palpável a sua volta, longínqua da angústia e do alumbramento, sua mãe destruída, os homens e a floresta morta... Mas ao invés do céu noturno, o que Gabriel viu foi um par de olhos negros, emoldurados por cabelos mais negros ainda, que o encaravam com espanto e raiva. Era o rosto de Netuno Nouris, flutuando à sua frente. Ela teria caído para trás, não fosse o fato de estar escorada numa pilastra no canto mais escuro e mais afastado da pista de dança, que era o coração do Baile Verde. Então, ao invés de uma queda constrangedora, a menina viu-se escorregando lentamente pela pilastra, até quase alcançar o chão. Ela sentiu suas forças abandonando-a ao ver, diante de seus olhos bem abertos, o rosto de um menino; um menino a quem ela nunca havia visto antes, mas que lhe encarava, numa mistura de espanto, medo e curiosidade. Ela pode detectar no rosto traços estranhamente familiares... Netuno não conseguia sequer entender como podia estar vendo, por sobre a realidade que a cercava, aquele rosto. Apenas uma vez na vida havia experimentado esse tipo de visagem antes, e hoje, completava-se um ano desde aquele primeiro vislumbre, em seu próprio ritual Mearenaes, quando a fenda das coisas desse mundo havia se mostrado a ela, e Netuno olhara, ansiosa, através, para vislumbrar seu futuro, ou algum fato passado intrinsecamente ligado a ele. Naquela noite, quando ainda não era uma convidada do Baile Verde, Netuno havia visto algo que não estava lá, mas que havia se sobreposto à realidade... 182


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Como havia acabado de acontecer. A diferença crucial aqui, porém, era que ela não estava em nenhum ritual de alumbramento, muito menos num Mearenaes, o que tornava a imagem do menino algo simplesmente esdrúxulo – pra não dizer impossível. Um bom artífice tem total controle sob suas faculdades e suas ferramentas, e Netuno Lencastre considerava-se uma ótima artífice. O alumbramento ou visagem só poderia acontecer caso o feiticeiro quisesse, estando num ritual ou mesmo numa situação corriqueira. Intrusões como a dos somniets, como ela mesma havia feito na mente de sua tia, eram uma forma da Arte também – não para quem estava tendo seus sonhos invadidos, mas para quem executava a invasão. Mas naquele momento, Netuno sabia que o alumbramento não tinha nada a ver com somniets, pois ela estava perfeitamente acordada e lúcida... Depois de recuperar a postura, Netuno sentiu a raiva subindo-lhe no peito. Seu cajado Meáren estava apoiado na mesma pilastra que ela, e parecia preocupado. Ela sussurrou palavras de conforto para ele -- sabia que o Meáren devia ter visto o mesmo que ela. À medida que a música tornava-se menos formal e mais agitada, Netuno sentia-se pior. Ela via suas colegas de quarto entretidas em seus próprios círculos sociais, e isso a irritava mais ainda. Toda aquela confraternização alegre e despreocupada a irritava profundamente, aliás. Sempre havia sido assim. Lá estava Eulália Circinus conversando alegremente com Lionel, o garoto cego, e outros dois rapazes que Netuno conhecia apenas de vista. Do outro lado do salão, Bella Elladora discutia com Febo e Artur, que estavam prestes a começar uma briga. Ainda um pouco tonta, Netuno pegou seu cajado Meáren e marchou para o portal do salão – não poderia conti183


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nuar ali, nem mesmo para manter seu disfarce de aprendiz merineana. Depois daquele alumbramento, pedir para que continuasse impassível era demais. A menina podia sentir a precipitação de suor em sua testa, mesmo sendo aquela uma noite fria. Antes de conseguir alcançar o portal, porém, Netuno foi interrompida por uma mão de dedos firmes que segurou-a pelo braço, forçando-a a se virar abruptamente. Ela fez um movimento brusco e livrou-se do aperto, dando de cara com Ricardo Rios, o Mestre Somniet de Monte Merínea, olhando-a intensamente através de seus olhos ígneos. Netuno ainda não havia tido aulas com ele, mas o conhecia de vista, e ele havia surgido em suas pesquisas sobre Monte Merínea e seus mestres da Arte. Ele não aparentava ter mais que trinta e poucos anos, mas Netuno sabia que tinha cinquenta, sua juventude denotando que era, de fato, um bom feiticeiro. Os cabelos eram escuros e curtos, o queixo quadrado e firme, nunca deixando margem para brincadeirinhas. Era um homem sério e dedicado à sua função, o que o tornava um dos mais jovens feiticeiros a se consagrarem Mestre Somniet -- e um dos lentes menos populares entre os aprendizes, devido a sua rigidez e total falta de humor. Ele não carregava seu cajado Meáren, mas Netuno pôde traçar, com facilidade, aquela linha invisível que liga um cajado ao seu portador, localizando-o a algumas mesas de distância, onde a mestre em Levitação, a velha caquética que era Gala Gräine, e a mestre em Ilusionismo, a simpática gorducha Giulia Fós, conversavam. – Netuno Lencastre – ele chamou-a pelo sobrenome do pai, não da mãe, desviando sua atenção da mesa onde seu cajado repousava. Ela achou estranho. Naquelas paragens, era lei silenciosa chamá-la de Nouris, como se aquilo fosse uma acusação ou uma cicatriz que ela deveria carregar no rosto para todos verem. 184


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– O que é? – Netuno nunca fora conhecida por sua delicadeza, e estava sentindo-se mal pelo alumbramento inesperado. – Eu sei que é fora da sua grade curricular, mas eu quero que você aplique para minhas lições de Somniu esse ano – a garota apenas olhou-o, esperando que ele continuasse. As classes de Somniu não estavam disponíveis para os estudantes do Ciclo Prieiro, que consistia em três anos de estudos, e Netuno nem havia começado seu segundo ano. Ela franziu o cenho, desconfiada e cética. – Pedi a Paramondius Magnus para abrir uma exceção e você ser admitida, mesmo não estando no Ciclo Fidelitas de Estudos ainda. Netuno cruzou os braços. “Mas que conversa estranha é essa?”, ela pensou. Não sei, mas fique atenta. “Certo”. – Certo, mas... Por que eu? – ela perguntou, ainda se indagando o que tudo aquilo significava. Se havia algo que ela não era, era a queridinha dos professores, ou de qualquer um em Monte Merínea, na verdade. O Mestre Ricardo fez um meneio de cabeça. – Sua família tem uma longa linhagem de mestres Sominets, até onde eu sei. A prática corre em suas veias. – É verdade... – murmurou ela vagamente, quando em realidade perscrutava o homem, semicerrando os olhos na direção do lente. Ela tentava entender aquela atitude tão inesperada, vinda de uma pessoa que nunca antes ela havia falado na vida. – Você deve estar se perguntando porque estou te abordando assim, não é mesmo? – ele falou, e Netuno admirouse. Pelo menos era direto. A menina gostava disso. – Sim, estou. O que você quer com isso? Foi o Diretor-Mestre que te mandou aqui? Você vai virar meu cão de guarda desse ano? – ela riu, sarcástica. – Ninguém acredita mesmo que estou aqui só para estudar, não é mesmo? Já disse que não posso frequentar Renovatio... Metade da185


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queles ocultistas querem algum tipo de vingança contra os Nouris. – ela estava assumindo que o estranho guardião dos portões do ano passado havia vigiado-a nas sombras pelo ano inteiro, até que decidiu se revelar. Na certa uma manobra daquele louco paranoico do Mestre Ártico Félix, que nunca aceitou o conto do vigário que Netuno contou antes de ingressar em Monte Merínea. Ricardo meneou negativamente a cabeça. – Não é nada disso – e ele suspirou, como se estivesse cansado, olhando os rostos de todos os aprendizes no salão. –Eu quero um bom aprendiz em Somniu, pra variar. Faz dez anos desde o último bom aluno que eu treinei, e pelas tabelas de progresso que os outros lentes me mostraram, Netuno Lencastre, você é a melhor dentre os da sua turma, quiçá do Instituto inteiro, estando no patamar de Charlotte Raposa, a nossa “criança prodígio”, como gostam de chamá-la, mas que é incapaz de sequer comparecer às minhas aulas. Eu acredito que você pode ser extraordinária em Somniu. Eu sei que você já era capaz de praticar a Arte com alguma eloquência mesmo antes de ter idade para ingressar em uma escola, mas sendo uma Nouris, os lentes fazem pouco caso das suas habilidades. – Netuno abriu a boca para falar, mas o lente levantou um dedo, silenciando-a. – Mas eu não tenho esse tipo de rinha, Netuno. Não me importa se você é uma Nouris, uma verdureira ou filha de um reneggado. Eu quero um bom aprendiz. Só queria que soubesse que minhas fichas estão em você. Não me desaponte. E com isso, virou as costas. – Tenha um bom baile, Netuno Lencastre – disse ele, séria e gravemente, desaparecendo por entre os pares na pista de dança. “Mas será possível?” indagou-se Netuno, boquiaberta. “Um homem sensato?” Não se iluda, Netuno. Ele é um tríneo, e estamos aqui para destruí-los. 186


Era o lugar mais lúgubre que ele poderia ter escolhido para executar seu ritual. Havia porta, janelas de alabastro, cadeiras de espaldar alto e quadros puídos. No centro, um belo piano de cauda, lustroso e novo; a antítese de tudo que o cercava. Havia castiçais enferrujados espalhados por todo o lugar, mas não havia sequer um único toco de vela; e mesmo que houvesse, muito provavelmente seria inútil: um vento sutil invadia todo o ambiente, entrando pela janela de alabastro quebrada e brincando com a poeira do tempo, indo desaparecer pelas frestas da porta de madeira apodrecida. Nos buracos de ratos, havia guinchos e ruídos, enquanto pequenas aranhas teciam suas teias como se tecessem o destino tortuoso daquele lugar. Numa das paredes, atrás do piano, quase beirando ao mórbido, cabeças de animais estavam dispostas da forma mais horrenda que alguém pudesse imaginar: cabeças de núbelos, os cavalos selvagens de Monte Merínea, todos contorcidos em guinchos e relinchos, com dentes expostos e olhos vítreos. Um presente típico da casta dos assessinos. Seus olhos de vidro, estáticos, fitavam a mesma figura alta do outro lado da sala: um homem vestindo um caftan azul-marinho, bordado com fios de prata, segurando um cajado Meáren maior do que ele próprio, meticulosamente polido e lustrado, de pedra tão negra quanto o próprio piano ou a sala onde se 187


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encontrava. Com uma das mãos enluvadas, percorria a superfície áspera e empoeirada de um aparador cujas gavetas se encontravam em lugar desconhecido. Com a outra, segurava o cajado firmemente, mas sem apoiar-se nele. Parecia exatamente o contrário: parecia que o homem dava apoio ao cajado, como que se assegurando da integridade do objeto. Assim que ele encontrou o espelho que não refletia nada além da mesma sala havia anos, ajeitou-o meticulosamente, apesar da luz difusa que penetrava o ambiente. Ele tinha uma vista excelente, a despeito da idade ou da iluminação. Passou a mão pelos cabelos grisalhos e lisos, penteados com esmero horas atrás para outra ocasião. Alinhou a gola do caftan, mesmo sendo desnecessário, e passou uma mão macia pelo cavanhaque grisalho. Olhos negros encararam os mesmos olhos negros, e ficaram assim por minutos a fio. O que aqueles dois pares de olhos procuravam, nem mesmo seus donos sabiam. Estava perfeito. – É a nossa vez, Sutil – disse ele, e ouviu a resposta do cajado ecoando em sua mente: Enfim. O homem sorriu discreta e alegremente, e se dirigiu ao piano, intocado por poeira ou pelo tempo. Era como se tivesse sido feito ontem, mas estava naquela sala há mais tempo do que o elegante senhor estava no mundo, e ele sabia disso. Sua Gran Ancestral havia tocado naquele piano o Minnueto Merynneano, e agora seria sua vez... Mesmo que não fosse um minueto que ele tocaria, mesmo que não fosse mais uma melodia fazendo ode à Monte Merínea. O dia finalmente havia chegado, sua chance de vingança repousava nas teclas pretas e brancas daquele piano. Tic-tac... Tic-tac... Era uma provocação. E ele sabia. Seus joelhos estavam a um palmo do banco de madeira 188


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defronte ao piano, e quando ele esticou a mão para tocar o tampo que protegia as teclas, estacou. Quase ia esquecendo. De forma banal, ele soltou o cajado no ar, que permaneceu estático, de pé no meio da sala. O homem tirou as luvas de couro que usava e colocou-as sobre o piano. Com seus dedos longos abriu a tampa do piano, revelando um fino veludo azul-escuro cobrindo o teclado. Ele dobrou-o com minúcia e deixou o pano ao lado de suas luvas. Pensou ter visto o cajado estremecer atrás de si, mas ele próprio estava tremendo. E foi com suas mãos trêmulas que tirou do meio das cordas do piano um escrínio de couro maltratado pelo tempo. Sorriu largamente, abriu-o, e colocou as folhas de partituras à sua frente. Elas estava em branco, mas ele pretendia remediar aquilo. – “No princípio, era o silêncio” – recitou ele, satisfeito consigo mesmo e com as folhas em branco. Bastou tocar a primeira nota para ela, magicamente, ser desenhada na folha. – Até ele ser quebrado. Ele e seu cajado sorriram, confiando no anonimato daquele aposento.

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Impress達o e acabamento:




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