Fagulhas ORGANIZAÇÃO
Rudinei Borges
____________________________________________________________ Fagulhas/ organização de Rudinei Borges. – São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2013. Referências Bibliográficas ISBN 978-85-61343-08-8 1. Teatro brasileiro. 2. Trupe Sinhá Zózima. I. Título. II. Borges, Rudinei. ____________________________________________________________
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realização cultural TRUPE SINHÁ ZÓZIMA www.sinhazozima.com.br contato@sinhazozima.com.br 55 (11) 96292-0447 concepção, edição e organização – rudinei borges arte, capa e projeto gráfico – deborah erê fotografia – christhiane forcinito & danilo dantas pesquisa de imagens – anderson maurício documentários sobre carpintarias – alex maurício, márcia nicolau & rudinei borges artigos – andrea cavinato, alexandre mate, márcia nicolau, helena coharik chamlian, josé simões de almeida junior & sidnei ferreira de vares testamentos – christhiane forcinito & luciana ramin notas: rudinei borges
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[anel de saturno] Pessoa é para o que nasce. Mas para que nasce uma pessoa se quando nasce uma pessoa nem é pessoa ainda? Pessoa é invenção: anel de saturno. Pessoa é coisa que a gente cria. Pessoa não nasce para coisa alguma. A gente é que diz: pessoa nasce para ser feliz, pessoa nasce para trabalhar, casar/ter filhos/criar filhos. Mas que será da pessoa se não quiser trabalhar, casar/ter filhos/criar filhos? Que será da pessoa se quiser ser vento-poeira-chão? Se quiser ser correnteza-estradaestirão? Se quiser amar um-dois-três amores? Se quiser amar ninguém? Se quiser partir-voltar? Se quiser ser o que quiser e mais nada? Que será da pessoa se não quiser ser pessoa? Se quiser ser andorinha e voar? Se quiser ser beija-flor? Se quiser ser arapuca? Que será da pessoa? Será pessoa a pessoa? [rudinei borges]
Atriz Alessandra Della Santa na Carpintaria em Teatro e Imaginário. Foto por Danilo Dantas 4 | FAGULHAS
ônibus antigo, do tempo da vó
- índice
entre fagulhas - 6 ofício I – artigos – 9 – Arte popular: um processo de permanente resistência, muito provavelmente, com a idade aproximada à da própria humanidade [Alexandre Mate] – 10 – O lugar teatral e a cidade: entre o visível e o não visível [José Simões de A. Junior] – 14 – Teatro e Imaginário [Andrea Cavinato] – 19 – A utopia como práxis transformadora em Paulo Freire [Sidnei Ferreira de Vares] – 24 – Narrativas autobiográficas: caminhos para a reapropriação da vida [Helena C. Chamlian] – 28
ofício II – testamentos – 35 – O documentar para além do documento [Luciana Ramin] – 38 – Sobre a minha experiência com a Trupe Sinhá Zózima [Christiane Forcinito] – 40
ofício III – documentários – 41 – Fagulhas à deriva: Carpintaria em teatro e imaginário [Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges] – 45 – Fagulhas em frestas: Carpintaria em teatro e espaço [Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges] – 48 – Fagulhas em ciranda: Carpintaria em cultura popular, dança e cantoria [Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges] – 51 – Serão: Santo Dias da Silva e o nosso teatro-labuta [Rudinei Borges] – 56 – Fagulhas em relampeio: Carpintaria em história oral [Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges] - 60 – Fagulhas em e.s.t.i.r.a.d.a: Processo de criação da peça Dentro é lugar longe [Rudinei Borges] – 63 – Últimas notas [Rudinei Borges] – 70 – Notas sobre o organizador [Sidnei Ferreira de Vares] – 72 FAGULHAS | 5
Entre fagulhas
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O livro da saudade que me contradiz [Rudinei Borges¹]
O diretor e ator Anderson Maurício em Conversações por um teatro do encontro. Foto por Christiane Forcinito
Às vezes, por motivos tantos, não sei quais, paramos para
pensar na vida, em coisas tantas que fizemos ou não fizemos. Uma menina de cabelos negros longos logo no início da peça “Dentro é lugar longe” diz o seguinte: “meu ofício é dizer: é contar: é debruçar olhos sobre estiradas: caminhadas longas: mergulhar firme na tessitura da vida: e rezar-lhes o que vi: não vi: vida não tem começo nem fim: vida é só meio: sempre-sempre partida: vez ou outra chegada”. E agora que escrevo o começo deste livro-ciranda, penso que isto aqui é chegada. Mas chegar deixa uma saudade, porque chegar significa que o caminho acabou. “Fagulhas” é um destes livros-ponte, que tenta ligar o que foi ao que será. Não é um livro conclusivo. Não põe considerações finais sobre a mesa. Lança um olhar, bem aberto, para o que a Trupe Sinhá Zózima, importante grupo de teatro da cidade de São Paulo, realizou nestes últimos anos (2012 e 2013, em particular). E para ser franco: tudo isto só foi possível graças ao Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. Não fosse este programa, a Trupe não estaria aqui a tecer poéticas-políticas, reunindo-se em ensaios tantos, encontros e experimentações várias. Em maio de 2012, a Trupe iniciou as ações do projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho: residência artística por um teatro do encontro sem fronteiras”. Uma proposta ousada de continuidade em pesquisa cênica com o objetivo de realizar ações artísticas na região do Terminal Parque Dom Pedro II, um dos maiores terminais da maior cidade do Brasil. Isto em razão do principal enfoque da pesquisa cênica do grupo: realocar a ação teatral para o ônibus. Passados seis anos desde o seu surgimento em 2007, a Trupe Sinhá Zózima man____________________ Verificar nota sobre o organizador na parte final do livro.
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teve-se firme neste propósito: levar teatro aos trabalhadores, aos passageiros de ônibus. Parece-me que, ano a ano, esta questão tem ganhado corpo dentro deste grupo, coordenado pelo diretor Anderson Maurício e pelas atrizes Priscila Reis e Tatiana Lustoza. E parece-me também que novos ares têm renovado o grupo. Talvez o maior alcance deste projeto realizado no último biênio tenha sido uma releitura muito peculiar dos procedimentos comuns à história oral em seus significados amplos. A questão do lugar teatral e da cidade também reaparece muita viva na sagacidade das ações da Trupe. É inegável o alcance de ressignificação do espaço realizado neste projeto. E mais ainda: a aproximação com os sujeitos sociais, homens e mulheres que transitam pelo centro antigo de São Paulo. Quase sempre esquecidos, eles reaparecem alumiados na proposição cênica do grupo. Acredito que a primeira parte do livro é uma contribuição relevante ao teatro brasileiro, pois reúne artigos que vão do tema da cultura popular à memória como reapropriação da vida. O mais interessante é o caráter multifacetado do livro: a questão teatral não aparece como ilha à parte, por isso perspectivas pedagógicas como a Paulo Freire aparecem com muita força. E em um segundo momento, a parte dos documentários, apresenta (em fractais, em fagulhas) momentos dos processos de criação do projeto que vão desde a realização de carpintarias (oficinas e encontros) à realização de um ato decisivo para a vida do grupo: a estirada. Trata-se do momento em que o grupo reuniu-se numa chácara por 24h ininterruptas para que os seus artistas-pesquisadores contassem as suas histórias de vida. Esta ação, sobretudo corajosa, resultou em um trabalho de experimento consistente: trazer a vida para o centro da criação. Mais ainda: não a vida documentada, mas a vida reinventada em ato poético. A estirada assumiu-se como uma peça: “Dentro é lugar longe”. Aí a matéria do universo é a encanteria. O que é rústico, rupestre, reata laços com o que é mais propriamente humano: o encontro. E mais: o rústico põese diante do urbano-caótico, não como oposição. Sei que muitas lutas precisam ser travadas no campo das artes e da cultura no Brasil, todavia, diante deste projeto, ouso reaver as palavras de José Celso Martinez Correa num comentário sobre a peça BR3 do Teatro da Vertigem: “Nenhuma sociedade decadente produz uma obra sim. O teatro passa a ser o lugar da energia produtora da alegria criativa capaz de enfrentar os impasses que a violência não resolve”2. Penso que “Fagulhas” tenta apresentar coisas pequeninas, que nem andorinha, do que foi a alegria criativa da Trupe Sinhá Zózima neste projeto. Aconselho a todos que vejam duas outras partes 8 | FAGULHAS
complementares de “Fagulhas”, os livros “Teatro no ônibus: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima” e “Dentro é lugar longe”. Com estas três obras, acredito que o grupo contribui de modo envolvente e engajado com a vida teatral brasileira e, sobretudo, com o fazer teatro em nosso país. Sugiro também que vejam o vídeo-documentário de Luciana Ramin sobre o projeto. Disto tudo, fica a saudade do corpo ávido no coração do tempo, da poesia no ônibus, do olhar dos passageiros, da residência no Terminal Parque Dom Pedro II e da cidade abrupta em chamas (um dia pode ser diferente). Só posso terminar este começo com um verso dum livro que publiquei faz uns anos, “Chão terra batida”:3 “amar significa olhar para as coisas sem sentir saudades delas”. Ouso me contradizer: vou sentir saudades de tudo que vivi neste projeto. “Fagulhas” é o livro da saudade que me contradiz.
Rudinei Borges 24 de Junho de 2013
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Verificar BR-3 / Sílvia Fernandes e Roberto Audio (orgs.). Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. 3 Verificar Borges, Rudinei. Chão de terra batida. São Paulo: All Print, 2009. 2
ofício I
artigos
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Arte popular: um processo de permanente resistência, muito provavelmente, com a idade aproximada à da própria humanidade [Alexandre Mate ] 4
O Professor Alexandre Mate em Conversações por um teatro do encontro. Foto por Danilo Dantas
[...] O tempo passa, mas a gente finge que não vê. A velhice vem, mas a gente luta contra ela, como se ela fosse um guerreiro inimigo. Os homens envelhecem porque querem. Só muito tarde é que compreendi isso. Tibicuera pode vencer o tempo. Tibicuera pode leiloar a morte. O remédio está aqui. (Tornou a bater na testa.) - Está no espírito. Um espírito alegre e são vence o tempo, vence a morte. Tibicuera morre? Os filhos de Tibicuera continuam. O espírito continua: a coragem, o nome de Tibicuera, a alma de Tibicuera. O filho é a continuação do pai. E teu filho terá outro filho e teu neto também terá descendentes e o teu bisneto será bisavô dum homem que continuará o espírito de Tibicuera e que portanto ainda será Tibicuera. O corpo pode ser outro, mas o espírito é o mesmo. E eu te digo, rapaz, que isso só será possível se entre pai e filho existir uma amizade, um amor tão grande, tão fundo, tão cheio de compreensão, que no fim Tibicuera não sabe se ele e o filho são duas pessoas ou uma só. Eu olhava para o pajé, mal compreendendo o que ele me ensinava. O feiticeiro falou até madrugada alta. Quando voltei para minha oca fiquei por longo tempo olhando para meu filho que dormia na rede. E eu me enxerguei nele, como se a rede fosse um grande espelho ou a superfície dum lago calmo. (As aventuras de Tibicuera - Érico Veríssimo)
O pressuposto básico da linguagem teatral é a representação. Na condição de fenômeno social, praticado por sujeitos de todas as idades, sexo, credos distintos etc, a representação não nasce dos rituais em homenagem aos deuses, desenvolvidos a partir do século VIII a.C. O processo representacional nasce nos espaços públicos (abertos ou fechados) e vem sendo praticado, é bastante seguro desde a origem dos humanos. A totalidade dos historiadores das artes afirmam que o homem primitivo, caçador por excelência, praticava práticas pré10 | FAGULHAS
antecipatórias para obter sucesso em suas jornadas na luta por alimento, principalmente de fonte animal. O que ocorre no século V a.C., no concernente à representação é a estetização dos processos representacionais. Desse modo, o fenômeno social, ao ser levado para os procedimentos rituais será estetizado, a partir de normas e valores artísticos do momento histórico de seu aparecimento. ____________________ Professor-pesquisador da graduação e da pós-graduação do Instituto de Artes da UNESP.
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O teatro cuja raiz histórica, derivada de theatron (significando lugar de onde se vê, de onde se vai ver), nasce de processos representacionais, desenvolvidos em espaços públicos e fechados (prédio construído especialmente), e se desenvolve a partir de um texto previamente escrito; interpretado por atores5, que se apresentam como se fossem as próprias personagens, no mesmo tempo e espaço dos que assistem; estes últimos sabem que nada do que veem é verdade, mas tendem a embarcar emocional, racional e prazerosamente naquela aventura. Ao representar/ reproduzir o comportamento de gente, bicho, coisa, planta, sentimento... Há, por parte do intérprete, a junção da mimese (imitação do que quer que seja) e a diegese (narração - discurso cuja tônica refere-se à impressão de alguém em relação ao falado, nomeado, apontado). A diegese é um termo grego que diz respeito à dimensão ficcional de uma narrativa, e que, normalmente, é apresentado em terceira pessoa. Homens e mulheres gostam e se comprazem em imitar, nas mais diferentes situações e , também, por naturezas diversas. Quando os dramaturgos (cujo significado corresponde a tecedor/ construtor de ações), durante a antiguidade clássica grega, retomam narrativas históricas de feitos e fatos interessantes ao Estado eles o fazem a partir de uma complexa estrutura formal, cujo protagonismo recai nos heróis e deuses do período. Efetivamente, a representação nasce na rua, mas se estetiza - mediado por todo tipo de lei e regra - pelo teatro. Desse modo, a representação que era procedimento relacional e social corriqueiro, ganha um estatuto de excludência. Por intermédio da palavra-ação - excludência já se começa a chegar mais próximo do tema da noite. Aqueles sujeitos que não conseguissem apresentar os mitos recriados ficcionalizadamente, ao gosto dos detentores do poder do momento e de acordo com os cânones (rígida estrutura formal) estabelecidos pelos ideólogos (ou porta-vozes do Estado), não teriam suas obras apresentadas nos teatros construídos para esse fim. Nesse particular, é bom não esquecer que o Estado grego, instituiu festivais de teatro nos quais apenas as obras vencedoras ganhariam notoriedade, que neste caso queriam dizer apoio econômico e espaço cedido para a montagem das obras. De qualquer modo, o conceito de cultura é amplo, complexo, rigorosamente histórico-ideológico e corresponde às mais diversas e díspares práticas sociais, tanto originais quanto imitativas. Inicialmente, refere-se a cultivo, que pressupõe o ato de cuidar e a transmissão, normalmente prática, desses procedimentos. Essa passagem, portanto, é pragmática e ativa e contempla, de modo dialético, o natural e o artificial, o que se faz e o que nos fazem. Sobre tal assunto e raciocínio, Terry Eagleton,
em A ideia de cultura, afirma: “Se a natureza é sempre de alguma forma cultural, então as culturas são construídas com base no incessante tráfego com a natureza que chamamos de trabalho” (2005: 13). Sobre o assunto, no livro Palavras-chave, Raymond Williams afirma: Culture é uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa. [...] cultura era um substantivo que se referia a um processo: o cuidado com algo [...] uma extensão dos processos específicos ao processo geral, que a palavra poderia carregar de modo abstrato. Naturalmente, é a partir deste último desenvolvimento que o substantivo independente cultura iniciou sua complicada história moderna, mas o processo de mudança é tão intrincado, e os sentidos latentes às vezes se aproximam tanto, que não é possível afirmar uma data definitiva. [...]
[Mas quando se vai além da referência físi-
ca, é preciso reconhecer] três categorias amplas e ativas de uso: (i) o substantivo independente e abstrato que descreve um processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético, a partir do século XVIII; (ii) o substantivo independente, quer seja de um povo, um período, um grupo ou da humanidade em geral [...]; (iii) o substantivo independente e abstrato que descreve as obras e as práticas da atividade intelectual e, particularmente, artística. Com freqüência, esse parece ser hoje o sentido mais difundido: cultura é música, literatura, pintura, escultura, teatro e cinema. Um Ministério da Cultura refere-se a essas atividades específicas, algumas vezes com o acréscimo da filosofia, do saber acadêmico, da história. [...] na arqueologia e na antropologia cultural, a referência a cultura ou a uma cultura aponte primordialmente a produção material, enquanto na história e nos estudos culturais a referência indique fundamentalmente os sistemas de significação ou simbólico (2007: 117-23).
Partindo, portanto, da complexidade semântica e de seu uso, mas insistindo em sua existência na condição ____________________
De modo diverso ao ocorrido com o teatro popular, no teatro grego não havia mulheres como atrizes (todos os papeis eram apresentados por homens), as mulheres eram quase obrigadas a assistir às tragédias, mas impedidas de assistir às comédias. Para os valores definidos pelos detentores de poder daquela sociedade, as mulheres eram tidas como seres inferiores assim como as comédias, em relação às tragédias.
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de prática social. É necessário voltar ao começo para retomar, historicamente as principais e mais aguerridas contendas sobre a cultura como prática intelectual e artística, como obediência a cânones e padrões formais, balizadores do “melhor e do pior” em artes. Retornando ao contexto grego da Antiguidade, quando o Estado toma para si a responsabilidade de educar, também por meio do teatro, estetizando as formas culturais (que correspondiam aos usos e costumes), os sujeitos que se dedicavam ao ato representacional, fundamentalmente alicerçado na improvisação foram impedidos de utilizar os espaços teatrais, impedidos de se manifestar na ágora e (de modo cabal ao apresentado por Platão no Livro IX da República) foram literalmente expulsos da pólis.6 A oposição às práticas culturais desenvolvidas e apresentadas pelo povo, tidas como simplórias, grotescas, sem elaboração, espontaneístas etc desenvolve-se desde a Antiguidade. Assim, por questão muito mais abrangente do que meramente semântico-conceitual, tendo em vista os diferenciados modos práxicos, é correta a afirmação segundo a qual não há uma cultura, mas culturas em processo de convivências. Michel de Certeau, no livro A cultura no plural (1995), defende a tese, que serve de título à obra, afirmando existir culturas no plural. Terry Eagleton, no livro A ideia de cultura (2005) afirma existirem: “alta e baixa cultura” ou Cultura e cultura, cujas naturezas e práticas, nessa classificação, são rigorosamente ideológicas e segregatórias. As lutas mais ferrenhas contra a cultura popular, sem considerar as atrocidades e sumiços dos artistas durante o longo período chamado de Idade Média (do século V ao XVI), ganharam novo fôlego e outras estratégias a partir do período denominado pré-Renascimento, cujo aparecimento pode ser datado, na Europa central, a partir do século XIII. De certo modo, atendo-se à transição entre a Idade Média e o Renascimento, o historiador italiano Carlo Ginzburg, na obra O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição (1987), desenvolve uma exemplar análise (tomando autos do julgamento de um moleiro de nome Menocchio) que ao aprender a ler, mesmo com infinda dificuldade, teve acesso a outras fontes documentais, que não aquelas impostas pelos ideólogos a serviço da “santa madre Igreja”. Naquele período, a leitura representava, mais do que apenas a mera leitura, um “passaporte” a outras concepções cosmogônicas. Também com relação ao teatro, a distinção, de modo mais explícito, entre popular e erudito, surge a partir do século XIII, com apreciações desenvolvidas nas recém criadas universidades laicas. Tratava-se, naquele momento histórico, de partir da oposição: criado pelos 12 | FAGULHAS
artistas e retransmitido (fruto do oral) por pessoas do povo, riscar o chão e definir os dois lados distintos de um fazer, absolutamente distintos. Para encurtar um pouco a história, o conceito etimológico de erudito, derivado do verbo latino erudíre, no infinitivo, significa, em primeira acepção, desengrossar e amoldar. Posteriormente, o sentido se bandeia para ensinar, instruir, formar; aperfeiçoar. Em razão da distinção e diferença apresentada pelos acadêmicos, a cultura popular era tida como grossa, por corresponder a manifestação de gente grotesca, irreverente, pouco atenta às normas do dito bom comportamento, e, sobretudo - é fundamental não esquecer -, pelo fato de artistas populares ainda acreditarem e defenderem valores de culturas seminais (e politeístas). Decorrente dos embates formalizadores e esquadrinhadores da arte: que (re)decretam as “manifestações populares como inimigas públicas número 1 da humanidade“, têm destaque, sobretudo no século XVI, entre a commedia dell’arte (basicamente improvisada e conservada oralmente: all improviso, sem texto escrito) e a commedia sostenuta (sustentada, isto é, escrita). Um pouco depois desse período e definição do que é cultura e do que não é cultura, irá se naturalizar o conceito de alta e baixa cultura, alta e baixa comédia... Não é preciso ser tão esperto para entender o que está em jogo nesse processo de rotulação sobre a criação humana. Desse modo, o conceito de cultura pode ser apreendido e acompanhado pelo adjetivo: popular, folclórico, hegemônico, de massa, entre tantas outras possibilidades e rótulos. Nessa ampla gama classificatória, tomando Marilena Chaui, é fundamental discernir que A questão que se coloca não é mais a de perguntar pela cultura dominante e pela cultura popular.
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6 Sabe-se que houve cultura oposta àquela oficial documentada no período mencionado, e denominada mimos, sobretudo pelo fato de os romanos, em período posterior, terem desenvolvido suas práticas lúdico-populares tomando aquelas anteriores desenvolvidas na Grécia.
Carpintaria em Teatro e Imaginário. Foto por Christhiane Forcinito
Sabemos que, a partir das análises de ideologia, o lugar da cultura dominante tornou-se muito claro. É o lugar a partir do qual o exercício da dominação política, da exploração econômica e da exclusão social se realiza; e a cultura popular também se torna mais nítida a partir desse lugar, isto é, ela é aquilo que é possível ser elaborado pelas classes populares e, em particular, pela classe trabalhadora segundo o que se faz no pólo da dominação (CHAUI, apud BOLOGNESI, 1996: 76).
Em razão do exposto até aqui, e levando em consideração que a luta contra as artes, experiências e manifestações culturais populares é grande e histórica, e desenvolvida de modo ininterrupto, pode-se afirmar que os vestígios que chegaram até nós é fruto de luta insana e de resistência dos artistas populares contra todo tipo de cerceamento e de tentativa de apagar da memória histórico-cultural determinadas experiências. Se os artistas têm dificuldade em sobreviver de seus sonhos e trabalho (principalmente como decorrência da ausência de políticas públicas para a arte e, consequente ausência de verbas), os artistas populares, além de enfrentar tais dificuldades esbarram também no desconhecimento e preconceito contra as suas obras e manifestações. Para finalizar, e no sentido de compreender que não somos unos, de que nos fazemos ao agir, de que podemos nos revisitar permanentemente, de que o que chamamos de identidade é fruto de permanente contradição, é pertinente destacar algumas afirmações de Stuart Hall [...] O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidade que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nos mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu“. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. [...] os sistemas de representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente (2000: 13).
Referências bibliográficas BOLOGNESI, Mario Fernando. Política cultural: uma experiência em questão (São Bernardo do Campo: 1989-1992). Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Teatro da ECA-USP, 1996. CERTEAU, Michel. A cultura no plural; tradução Enid Abreu Dobránszky. Campinas, SP: Papirus, 1995. CHAUI, Marilena. Cultuar ou cultivar. In: Teoria e debate, 8. São Paulo, out./nov./dez., 1989. EAGLETON, Terry. A ideia de cultura; tradução Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora Unesp, 2005. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 4a ed. Rio de Janeiro. DP&A, 2000. WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade; tradução de Sandra Guardini Vasconcelos. São Paulo: Boitempo, 2007. VERÍSSIMO, Érico. As aventuras de Tibicuera: que são também as do Brasil. 21a ed. Porto Alegre: Globo, 1980.
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O lugar teatral e a cidade: entre o visível e o não visível7 [por José Simões de Almeida Junior ] 8
Pesquisador José Simões de Almeida Junior em Conversações por um teatro do encontro. Foto por Danilo Dantas
A localização geográfica do lugar teatral, num dado momento histórico, significa uma fração da totalidade-mundo-teatro. É nela, portanto, que ocorre a singularidade da produção teatral capaz de se renovar, adaptar ou mesmo criar outras teatralidades e modos de ocupação dos lugares teatrais. O conceito de lugar teatral9 é difuso e polissêmico sendo, muitas vezes, no senso comum, considerado como sinônimo do edifício cênico ou mesmo um depósito da cena. Nossa abordagem propõe a compreensão do lugar teatral como um espaço social no qual se constrói a atividade Teatro. Existem lugares teatrais que podem ou não ser edifícios teatrais, uma vez que não há necessidade de uma edificação (específica ou não) para que o Teatro possa existir. Temos, então, o lugar teatral compreendido como uma unidade cultural, artística e social organizada, num dado contexto urbano, pela prática, isto é, pelo uso que os artistas e o público fazem dele (território vivido). Dentre os vários elementos envolvidos na reflexão sobre o lugar teatral, discute-se a sua relação com a paisagem da cidade, isto é, os procedimentos ligados à visibilidade de tais espaços no panorama cultural e artístico da urbe. As discussões do tema ocorrem, principalmente, vinculadas aos estudos dos edifícios teatrais nas metrópoles, dadas as circunstâncias de produção cultural (quantitativas e plurais) e do ambiente repleto de oportunidades para a visibilidade (revistas, jornais, etc.) nos quais esses agentes estão inseridos. Mas também ocorrem em outra escala, nas cidades de pequena e média dimensão, na qual a discussão se trava em torno do pequeno, isto é, espera-se que os detalhes e a singularidade seja 14 | FAGULHAS
responsável pela visibilidade dos lugares teatrais nessas dinâmicas urbanas. Assim, o visível do teatro em tais localidades é resultado, por exemplo, da presença de um ou dois grupos, um festival, etc. A interferência dos mediadores de comunicação de massa (TV, Jornal, Rádio) adquire outra importância10 na interferência da visibilidade dos lugares teatrais. No caso das cidades de pequena dimensão a proximidade e as relações, fundadas na horizontalidade entre os moradores, interfere fortemente nos procedimentos de apreensão e visibilidade (percepção) pelo conjunto social11. ____________________
7 Texto apresentado no 1º Simpósio internacional de Comunicação, Cultura e Artes realizado na Universidade do Algarve, na cidade de Faro, Portugal. (1ª versão) 8 Pesquisador, Doutor em Teatro e pós doutorado do Centro de Estudos Sociais (CES) no Núcleo de Estudos sobre a Cidade e Culturas Urbanas (NECCURB) – Universidade de Coimbra. 9 Defino o lugar teatral como o local no qual ocorre a cena teatral. Trata-se de um espaço limitado pelo sensível biológico (visão, audição, etc.), fundado na intencionalidade do fazer teatral, na experiência e na memória, em que se constituí no território vivido da cena (diferenciando-se de qualquer outro tipo de espaço). 10 Acentuo outra importância, pois acredito que a natureza do fenômeno de comunicação de massa é distinta à do fenômeno teatral, como também a função desempenhada pelos meios de comunicação. Nas metrópoles, os media exercem um papel fortemente cartográfico e informativo dos lugares teatrais, dada a sua dimensão espacial (basta ver a importância dos guias de lazer disseminados pelos jornais das grandes capitais). Já nas cidades de pequeno porte, esse papel é minimizado ou, em alguns casos, reduzido. Por exemplo, num lugar ou numa aldeia, a informação dá-se por outras vias (um amigo que convida outro, um conhecido que é ator da peça, etc.). Não se quer dizer com isso que os media não influenciem no processo, mas, sim, destacar a força do lugar. 11 Nas cidades de grande dimensão e nas metrópoles as forças da horizontalidade não deixam e atuar. Cabe, aqui, considerar que muitos grupos de teatro localizados nas grandes cidades buscam estabelecer parcerias com o entorno.
A evolução da distribuição espacial dos lugares teatrais não é orientada por um único motivo ou sentido, sendo resultado de uma série de variáveis particulares, reunindo processos sincrônicos e diacrônicos, continuidades e descontinuidades, em uma inércia dinâmica. Fixá-lo, portanto, é impossível. Resta-nos refletir sobre um momento histórico, sob risco de transformá-lo numa fotografia envelhecida, que observa parte de uma realidade espacial. Nesse sentido, busca-se compreender o conjunto dos lugares teatrais a partir da noção de território e a sua relação com as políticas públicas estruturadas por meio de verticalidades e horizontalidades12. Destacam-se, geralmente de modo visível, as formas dos lugares teatrais produzidas em virtude do diacronismo, realizadas em ritmo e valores diferentes do conjunto e, segundo Santos, a verdadeira base da transformação (2004). Pois elas saltam aos olhos em relação às forças sincrônicas e de continuidade que atuam no desenvolvimento e crescimento dos lugares teatrais. É bem por isso que aquelas formas de lugar teatral resistentes a mudanças constituem um elemento fundamental para a explicação do processo social, não sendo somente o seu reflexo. Portanto, as rugosidades são estruturas que nos permitem investigar os valores socioculturais inerentes ao lugar teatral. Assim, ao se entrar no Teatro Municipal de São Paulo ou no Teatro São Carlos em Lisboa e, em seguida, em outro teatro qualquer, construído na atualidade, será possível observar o que os une e os separa como identidade no território do Teatro. Os elementos, então, que do ponto de vista arquitetônico estabelecem a diferença na paisagem das cidades, são as rugosidades. Elas não só nos revelam o tempo histórico, como também as espacialidades, realizadas pelos modos de apropriação do lugar. E de um tempo que se constrói no espaço. O conjunto dos edifícios teatrais, por exemplo, existentes na cidade de São Paulo ou noutra região do Brasil, é o resultado da acumulação, e se sobrepõem uns aos outros formando um imenso palimpsesto, no qual atua o complexo movimento cultural teatral. Esses arranjos espaciais existentes na paisagem das cidades constituem os indicadores da territorialidade do teatro, organizados ora por meio de continuidades, ora por descontinuidades. No entanto, sejam os arranjos espaciais contínuos ou descontínuos, os lugares no território teatral encontram-se ligados por uma rede no interior da totalidademundo-teatro, que é acionada pelos sistemas de ações que determinam o funcionamento dos referidos lugares. Tais ações são oriundas das necessidades, desejos e condições, inerentes ou não, à produção teatral, resultado de um conjunto de forças relacionadas ao eixo das verticalidades, compreendidas como vetores de uma racionali-
dade superior e, portanto, de motivação externa ao local, e cujo objetivo é criar um cotidiano obediente e disciplinado (SANTOS, M., 2004, p. 286), de modo a atuar hegemonicamente no lugar (objeto). Assim, é possível encontrar na paisagem arranjos espaciais que definem uma época. Ao mesmo tempo, temos as forças da horizontalidade, compreendidas como contra finalidade localmente gerada (objeto) (SANTOS, M., 2004, p. 286-287). A ação dessas forças horizontais é de origem e abrangência local, e não segue a racionalidade dominante sendo, portanto, forças portadoras, segundo Milton Santos, de surpresa e de emoção. Como essas contra-ordens não precisam ser uma reação antagônica à força hegemônica, podem atuar em conjunto, ou simplesmente ser algo indefinido ou oriundo de outras emergências das necessidades locais. Em alguns casos, são elas as responsáveis pela noção de solidariedade no lugar. Para cada situação histórica, portanto, foram construídos lugares teatrais “desejosos” e “dialogantes” a partir de forças socioculturais do momento, como por exemplo a arquitetura simbólica dos anos 80/90. Os lugares são, assim, a articulação do conjunto de ações e objetos sob a força das verticalidades e horizontalidades. Isso nos leva a redimensionar o papel do lugar na atividade teatral e compreendê-lo não como algo dado, nem como um reflexo da sociedade, mas como um agente, uma mídia definidora da atividade Teatro. Portanto, a distribuição sócio-espacial dos lugares teatrais, com suas características, indica-nos o modo como a atividade Teatro dialoga com a Sociedade. Desse modo, percebeu-se que os lugares teatrais nas metrópoles foram engolidos seja pela verticalização crescente do urbano, seja porque passaram a se encontrar interiorizados em outros edifícios, o que resultou numa aparente não visibilidade desses lugares em relação ao conjunto. Tal tipo de não visibilidade arquitetônica distingue-se da visibilidade dos teatros monumentos, assim como dos teatros de fachadas nas ruas. A não visibilidade13 arquitetônica na paisagem das cidades consiste, em alguns casos, na ausência de uma fachada voltada para a rua. Os teatros no interior dos shoppings centers, por exemplo, encaixam-se nessa categoria. Eles ainda são poucos, mas se constata uma tendência para o seu crescimento nas me____________________ Ver Milton Santos em A Natureza do Espaço, 2004, p. 264-288. A negação é aqui compreendida não como qualidade, mas como aquilo que “pode qualificar”.
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trópoles. (ALMEIDA JR, 2007) A rua, segundo Lefebvre (2004), não é somente o lugar da passagem e da circulação, mas um topos dialógico, referencial de localização, transferência e transporte de matérias que animam a vida urbana; é, ao mesmo tempo, o local da organização capitalista, dos perigos, da violência nas grandes cidades, do descontrole. Seja como for, é na rua que se torna possível a atuação do tempo lento proposto por Milton Santos (2004), que nos possibilita romper com a velocidade e aumentar a percepção do espaço. Um teatro com suas portas para a rua simbolicamente se abre para a cidade. Concluí-se parcialmente que, por um lado, determinados lugares teatrais podem ser vistos como monumentos arquitetônicos, índices da atividade teatral, como é o caso dos Teatros Municipais em algumas cidades, fato este que geralmente facilita a sua inserção no imaginário do panorama cultural visível da cidade, mesmo quando estes se encontram desativados. Por outro lado, há os lugares teatrais não visíveis na paisagem urbana, como as pequenas salas, improvisadas ou não. Ou, então, aqueles construídos de modo temporário (e por que não dizer efêmero) pelas manifestações teatrais nas ruas, naquilo que tenho denominado de lugares-outros14, como museus, palácios, entre outras localidades. É de notar, por uma série de fatores, que houve um crescimento do referido modelo de lugar teatral, dentre os quais destaca-se a ação mimética entre os grupos, a falta de regulação do mercado, as políticas culturais vigentes e um reposicionamento da própria atividade artística na sua relação com a cidade. Dado o já exposto, a partir dos lugares teatrais não visíveis (na paisagem da cidade, mas presentes e atuantes), é possível observar estratégias espacializantes na busca da visibilidade da atividade teatral. Em muitos casos, pode-se perceber a tendência das pequenas salas de espetáculos (e das pessoas de teatro) para se agruparem em determinadas regiões da cidade. Regiões geralmente capazes de criar um eixo de centralidade (quando já não associados à região centro das cidades) num bairro ou região. Um tal movimento de centralidade dos lugares teatrais sugere múltiplos significados. Um deles poderia ser a garantia da visibilidade da função Teatro no conjunto social, por meio de uma ação coletiva e solidária. Outro sentido estaria ligado a questões econômicas, uma vez que, no caso de São Paulo, em geral os grupos ocupam espaços degradados da cidade em virtude dos baixos valores dos imóveis15, além da disponibilidade de espaços vazios e com possibilidade de transformação em lugares teatrais. Daí uma presença maior de lugares teatrais no centro, do que noutras regiões da cidade, nas quais 16 | FAGULHAS
o espaço urbano encontra-se valorizado pela especulação imobiliária16. Se essa ação resulta na criação de territórios teatrais específicos têm-se, por exemplo, os grupos alocados na Praça Roosevelt, na cidade de São Paulo, que terminaram por tornarem-se um local de visibilidade, sinônimo de vanguarda do Teatro Contemporâneo Paulista. Do mesmo modo, a criação de redes independentes e solidárias entre os artistas não visíveis permite uma série de trocas e agenciamentos. Alguns fragmentos dessas ____________________
A denominação de lugares-outros tem como objetivo nomear as localidades transformadas em lugar teatral momentaneamente, ou por um curto período de tempo, portanto, distintos do edifício teatral. 15 Um dos casos emblemáticos na cidade de São Paulo é o caso da ocupação da praça Roosevelt pelo grupo de teatro Os Satyros. A ação artística e social do grupo transformou e chamou a atenção da população para o local. Antes um espaço esquecido, dadas as conjunturas de violência e degradação do lugar e, atualmente, para além das opções estéticas e da linguagem teatral do grupo, provocou a transformação do local num espaço de sociabilidade e de encontro dos moradores e das pessoas de teatro. Cabe destacar que esta região já viveu um apogeu cultural no começo do século XX; há, portanto, que se levar em conta nas análises a força da memória do lugar. 16 Aqui cabe uma ressalva para apontar aquilo que vejo como uma perversidade do mercado. Num curto espaço de tempo, (aproximadamente 10 anos), os imóveis ao redor da praça Roosevelt, graças à diminuição da violência visível, notoriedade da praça, enfim, de seu ambiente de sociabilidade, resultado das ações culturais , teatros, bares, livrarias, presentes foram valorizados, em alguns casos, em mais de 200%. Enquanto o IPCA acumulado de 1999 a 2009, até o momento, foi por volta dos 73% (fonte: IBGE http://www.ibge.gov.br/home). Se a especulação imobiliária prosseguir, não será difícil, diante da fragilidade econômica da atividade teatral, prever as inúmeras dificuldades que no futuro estas companhias terão de enfrentar. 14
redes, no sentido da visibilidade, organizaram-se sob forma de cooperativas e associações de classe, possibilitando a ascensão política dos grupos de Teatro, o que ocorreu na cidade de São Paulo, no período em questão. O modelo de lugar teatral (salas pequenas, adaptadas em prédios inadequados à função teatral) termina por revelar-se um tipo de unidade de cultura, com suas estratégias de reprodução, organização espacial e associação dos grupos, com o objetivo de torná-lo visível e vivo no panorama cultural da cidade. Na dialética do não visível e do visível, referente ao lugar teatral, é que se articulam os elementos para uma compreensão da teatralidade contemporânea. O lugar, segundo Milton Santos é esquizofrênico, pois recebe informações da modernização e da globalização, fatores que, ao invés de unificar, propiciam a criação de uma fragmentação dos lugares teatrais, fazendo conviver locais de excelência com lugares fragilizados tecnicamente (precários) quanto aos aspectos informacionais. A fragmentação é um fato. Não podemos dissociar nosso objeto – o lugar teatral - da noção de ideologia, que por sua vez se vincula à esquizofrenia produzida pela injusta distribuição do acesso à informação. É nesta moldura que ela, a ideologia, produz seus mitos e os transforma em símbolos da sociedade, criando, assim, a base das verticalidades hegemônicas e da normatização. A força hegemônica, quando eficaz, nos cega. Tal como a percepção da força da gravidade, sua ação por to-
dos os lados não nos permite dar-lhe a devida atenção, de tal modo que ela termina sendo, estranhamente, menos visível17. Todavia, é a partir da noção de escassez (que Milton Santos retoma de Sartre) que se consegue apreender a força hegemônica e seus procedimentos. Foi a escassez dos lugares que motivou grande parte dos grupos a buscar alternativas e recursos para a sobrevivência e a construir outros tantos lugares teatrais. A questão que se impõe é identificar se a reação originada pela escassez virá a reproduzir o mesmo modelo predatório que, após certo tempo, resultará novamente em “falta”. Nas cidades de pequeno e médio porte o teatro convive com a noção de escassez e de não visibilidade no conjunto social. Torna-se, logo, necessária uma reflexão acerca das questões que envolvem as culturais locais e suas respectivas dinâmicas, no embate pós moderno entre as noções do local- global. ____________________ Retomo a questão da não visibilidade. No caso português é preciso estar atento a todas as manifestações teatrais que ocorrem em outras regiões, e não somente aquelas que ocorrem, por exemplo, na região de Lisboa e que são tomadas como referência. Para exemplificar aponto dois casos exemplares (e distintos) de produção e resistência artística: Escola da Noite (Coimbra) e Teatro de Montemuro (Campo Bemfeito). É necessário estar atento para que possamos dar visibilidade a outros modelos distintos de relação do teatro com a cidade. Não no sentido de superação. Não penso que deva ser válido pensar em “ultrapassar” Lisboa como referência. Tornar visível o outro sem obscurecer os demais, esse é o desafio.
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A atriz Tatiane Lustoza no espetáculo Dentro é lugar longe. Foto por Christhiane Forcinito FAGULHAS | 17
Uma das promessas não cumpridas pela globalização (SANTOS, M., 1994) é fazer acreditar ser possível “diminuírem” as distâncias sociais resultantes das distâncias geográficas. Entretanto, o que se vê é a manutenção da injusta dificuldade de acesso à informação, o que mantêm ativa a segregação social no mundo. É certo que cada lugar constitui um espaço, do ponto de vista artístico, oferecendo múltiplas possibilidades cênicas e de criação. Porém, os lugares teatrais vão sendo notadamente marcados pelo uso que se fazem dele. Nesse sentido, é possível observar nas cidades a existência de determinados grupos teatrais que conseguem imprimir com regularidade em seus trabalhos a identificação com o lugar/local, e ampliam essa ação estendendo-a para os bairros ao redor dos lugares teatrais. Vale dizer, os usos dos lugares terminam por constituir um território teatral, como é o caso do Teatro dos Satyros, em São Paulo, na Praça Roosevelt, e no interior do estado de São Paulo o grupo LUME em Campinas, A Escola da Noite em Coimbra (Portugal), o Teatro de Montemuro em Campo Bemfeito (Portugal), para citar apenas alguns. Esses agenciamentos entre o espaço teatral e a cidade são mais significativos quando existe uma forte ligação entre a ação teatral realizada e a localidade. Por fim, pode-se discutir a interação do teatro e da cidade em muitos níveis, sendo necessário estar atento para não tomar o teatro como um reflexo da cidade ou da sociedade, ou vice-versa. Teatro e cidade dialogam cada qual com as sua especificidade, e fundam, por meio da cena, o imaginário teatral. Este deve ser compreendido como uma via que permite pensar o lugar para além do conhecimento estabelecido.
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Referências bibliográficas ALMEIDA JR, José Simões de. Cartografia política dos lugares teatrais da cidade de São Paulo - 1999 a 2004. Tese Doutorado em Artes. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2007. FORTUNA, Carlos; SILVA, Augusto Santos (orgs.). 2002. Projecto e Circunstância. Culturas Urbanas em Portugal, Porto, Afrontamento. LEFEBVRE, Henri. The production of Space. Oxford: Blackwell Publishers Ltd, 1991. ______. A revolução urbana. Belo Horizonte: Humanitas, 2004. SAMI-ALI, Mahmoud. L´espace imaginaire. Paris: Gallimard, 1974. SANTOS, Milton (org). Território: Globalização e Fragmentação. São Paulo: Hucitec, 1994. SANTOS, Milton. Testamento intelectual. São Paulo: UNESP, 2002. SANTOS, Milton. A Natureza do espaço - Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: EDUSP, 2004. SIMMEL, Georg. A filosofia da Paisagem. Revista Política e Trabalho n° 12, Programa de Pós Graduação em Sociologia – UFPb, 1996.
A professora Andrea Cavinato na Carpintaria em Teatro e Imaginário. Foto por Danilo Dantas
Teatro e Imaginário
[Andrea Cavinato18]
(...) Que fazemos demais ao afirmar que um ângulo é frio e uma curva é quente? Que a curva nos acolhe e que o ângulo muito agudo nos expulsa? Que o ângulo é masculino e a curva é feminina? Uma pitada de valor muda tudo. A graça de uma curva é um convite para habitar. Não se pode fugir dela sem esperança de regressar. A curva amada tem poderes de ninho; é um apelo à posse. É um canto curvo. É uma geometria mais habitada. Nela estamos num mínimo do refúgio, no esquema ultra-simplificado de um devaneio do repouso. Só o sonhador que se arredonda a contemplar anéis conhece essas alegrias simples do repouso desenhado. (...) (Bachelard, 2000, p. 154-155)
Introdução Esse texto tem várias camadas. Como uma sólida casa que possui uma fundação invisível, tanto aos olhos de quem a habita, quanto de quem, de fora, a vê; a casa possui extratos de construção que são sua base de sustentação. Nesse lugar de texto-casa, filósofos e encenadores são os pilares da construção: M. MerleauPonty, Gastón Bachelard, Gilbert Durand e Eugênio Barba. E quem constrói esse texto-casa e dialoga com os autores é uma artista pesquisadora que, a princípio, conhece e pratica um “método” de pesquisa. Por método esclareço que é como um conjunto de estratégias, como um caminho a ser trilhado, aberto ao imprevisível. E como pesquisa é um processo de construção para compreender o instante, assim sendo é fenomenológico, e as amostras que escolho para expor esse processo, o método e a pesquisa “falam” também da pesquisadora. Que não exclui elementos que possam não ter se ajustado ou que a tenham surpreendido - que se dividem entre quais foram os objetivos e quais foram as respostas. Duas instâncias bem diferentes. O diálogo com a teoria é parte integrante do que então construiremos: uma reflexão sobre a formação em Teatro e Imaginário, proposta por mim, para a Trupe Sinhá Zózima, em seu projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho: residência artística por um teatro do encontro sem fronteiras” promovido pela Lei do Fomento ____________________ Andrea Cavinato é doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, SP, Brasil. Atriz, professora e contadora de histórias é fundadora do grupo Caixa de Fuxico, com o qual atua desde 1999. Mestre e Especialista em Arte Educação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. É professora convidada no Curso de Especialização em Linguagens da Arte do Centro Universitário Maria Antônia da USP e no Núcleo de Investigação em Teatro e Imaginário.
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ao Teatro da Prefeitura Municipal de São Paulo, iniciado em 2012. A proposta de uma formação para atores é um difícil paradoxo, pois sabemos que, como outros artífices, se constroem com o tempo da experiência nos processos de criação, no embate com a matéria dura que é dar forma, através do corpo e da palavra, às imagens. Nosso tempo, esse, em que vivemos, às vezes, nos deixa perdidos dentro desse labirinto-tempo, como nos diz Borges. Pois o tempo artesanal da criação e o tempo cronológico são de diferente natureza e nem sempre, ou dificilmente coincidem. O artesão, assim como o ferreiro que, na forja dá forma ao metal, tem sua maestria construída no tempo. A Trupe Sinhá Zózima nomeou as oficinas de carpintaria, demonstrando seu ideal de construção e processo. A carpintaria em Teatro e Imaginário propôs experiências do corpo em relação ao espaço que fossem simbólicas e poéticas. Como característica dessa proposta se busca estabelecer relação com o Sagrado, que pressupõe uma imersão; a entrega ao trabalho corporal e o mergulho nas imagens são algumas das condições para que essa delicada e complexa alquimia aconteça. O ritual e o Sagrado no teatro foram questões amplamente aprofundadas em A. Artaud e em J. Grotowski e posteriormente em E. Barba. Essa presença cênica que possui uma qualidade de contato que só os corpos que passaram por longos e intensos processos de desobliteração possuem, como acontece no entrelaçamento da cultura, das festas populares em que se dança e se canta durante horas, noites e dias inteiros, o Sagrado como “irrupção no tempo cronológico e no espaço profano que aponta para o mistério da comunhão com uma dimensão transcendente” (FERREIRA-SANTOS;ALMEIDA, 2012, p. 159). Na alquimia, a busca por alcançar a opus alquímica (opus alchymicum) pela transmutação da matéria é uma metáfora do ser, e a pedra filosofal ou o ouro dos alquimistas como a elevação do espírito. Entre o princípio do teatro e da alquimia há uma misteriosa identidade de essência. É que o teatro, assim como a alquimia, quando considerado em seu princípio e subterraneamente, está vinculado a um certo número de bases, que são as mesmas para todas as artes e que visam, no domínio espiritual e imaginário, uma eficácia análoga aquela que, no domínio físico, permite realmente a produção de ouro. (ARTAUD, 2006, p. 49)
Na alquimia a matéria muda de estado, e para
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isso passa diferentes tipos de matéria passam por diferentes processos de transformação. Utilizando imagens simbólicas em técnicas de improvisação o processo em Teatro e Imaginário busca essa transmutação da imagem no cadinho do corpo. A imaginação é o lugar de transmutação ideal e para que possa haver materialização dessas imagens pelo corpo é necessário longos processos em que toda a complexa rede do corpo e suas interações possam ser estimuladas, despertadas, desobliteradas para que, corpo e a mente possam, finalmente, expressar essas imagens. Os encontros geram então essas imagens e ainda trazem uma formação que chamo de poética imaginativa, um espaço de criação e aprendizagem de uma prática que se propõe a reconhecer imagens internas e materializar as imagens em corpo e em palavra. Para isso as oficinas/encontros se estruturaram em propostas para o corpo, para o espaço e para a imagem a partir de elementos do treinamento técnico e energético do ator, da cultura popular, da Festa como rito de encontro e de celebração em que a comunicação, a troca é simbólica é feita com canto e dança.
O Corpo A proposta de criação a partir da corporeidade, conceito integrador da percepção do corpo em si mesmo, em relação ao Outro e em relação ao mundo, percorreu o caminho do trabalho corporal, de consciência corporal, misto de técnicas da Eutonia de Gerda Alexander e de princípios da dança-teatro, em um “acordar” do corpo e se apropriar do movimento. O treinamento energético do “sats”, - de estar preparado, a presença, a expansão da energia em uma zona de criação e percepção e as ações físicas - é inspirado nos treinamentos propostos por E. Barba e que também acontecem no grupo Lume de Campinas, a partir das propostas de Grotowski ao dar continuidade ao método de ações físicas de Stanislávski. A atriz Alessandra Della Santa na Carpintaria em Teatro e Imaginário. Foto por Danilo Dantas
No instante que precede a ação, quando toda a força necessária se encontra pronta para ser liberada no espaço, mas como que suspensa e ainda presa ao punho, o ator experimenta a sua energia na forma de sats, preparação dinâmica. O sats é o momento do qual a ação é pensada-executada por todo o organismo que reage com tensões também na imobilidade. (...) É a mola antes de saltar. É a atitude do felino pronto para tudo: pular, recuar ou voltar a posição do repouso. (...) (BARBA, 1994, p. 84). O desafio nessa proposta, para atrizes e atores, é vencer os próprios repertórios e se permitir novas experiências. Para que estruturassem a improvisação, para que os atores e atrizes abandonassem os hábitos incorporados e abrissem mão do repertório conhecido as danças da cultura popular abriram espaço para o imprevisível, para estar presente, ativar a “presença” ao mesmo tempo em que são feitas propostas de improvisação com temas em que são articuladas imagens pessoais, “ouço” a presença do outro em um refinado exercício de escuta e materializo a imagem com o corpo. Nessas dinâmicas, a procura pela exaustão foi uma tentativa para se chegar a uma região nova de expansão de imagens, em danças e ritmos da cultura popular essa estrutura foi experimentada a partir do coco, em um exercício rítmico dos pés, e também com elementos do reisado. Mas o tempo de experimentação para acessar essas fontes, que são treináveis, são tempos dilatados com os quais sempre temos que negociar. Brincantes da cultura popular desde criança, velhinhos e velhinhas dançando e brincando no côco, no cacuriá, no cavalo marinho e no maracatu possuem uma qualidade de presença em que o visível e o invisível se transmutam no corpo e quase podemos vê-los “brilhar”. Essa qualidade da presença foi o que chamou a atenção de E. Barba em sua pesquisa com o teatro eurasiano, e que foi muito discutida por Grotowski e também o é atualmente pelos pesquisadores de etnocenologia em Artes Cênicas, esse estado de prontidão como característica da improvisação. O filósofo Merleau-Ponty nomeia de quiasma esse “embricamento das corporeidades: meu corpo, corpo do outro, corpo do mundo: uma filosofia da carne no entrecruzamento das avenidas (...)” (FERREIRASANTOS,M; ALMEIDA,R. 2012, p. 164).
O espaço O espaço da cidade, o espaço do ônibus como es-
Carpintaria O sentido e as águas, realizada em 2013. Foto por Danilo Dantas paço cênico foi uma das constantes. Ao mesmo tempo em que a cidade de São Paulo não acolhe a presença humana, deixando claro com sua arquitetura e suas largas avenidas que somos indesejados, ainda assim, buscamos um eixo interno em relação ao externo que nos trouxesse “um lugar” que, nos processos de criação simbólica, foi metaforizado em uma imagem. A imagem de ninho, em G. Bachelard na Poética do Espaço desencadeia a ideia de habitar, de quem habita. O projeto se propunha a habitar lugares inóspitos e trazer calor, vida para corpos em que faltava um espaço íntimo, uma morada interna. A oikos grega, a morada, a casa interna como imagem duplicada no corpo gerou a imagem de recolhimento e intimidade profunda e assim a imagem do labirinto retorna, símbolo do conhecimento, da busca pelo centro. As improvisações com tema do labirinto e a partir dele a constelação de imagens que compõe o mito do Minotauro foi desenvolvida pelo espaço do centro da cidade de São Paulo, na região do Parque D. Pedro, em uma intrincada proposta simbólica e trouxe a criação de uma narrativa pessoal em um labirinto pessoal, narrativas míticas que espelhavam narrativas pessoais. Misto de gente com bicho, gerado pela cópula de Pasifae com o touro enviado por Poseidon, o minotauro representa essa presença dos instintos nos seres humanos. Sombrio, vive oculto no labirinto construído por Dédalo. O encontro com o minotauro é vivenciado como uma possível descoberta do lado sombrio de si mesmo, aquilo que se esconde nas dobras. São imagens, metáforas de um si mesmo. É um processo de, através da linguagem teatral, colocar o corpo como centro das experimentações em imagens que são geradas no processo de improvisação. A qualidade desse contato com as imagens depende do quanto o corpo está disponível, flexível e o que chamamos de refinamento da percepção. FAGULHAS | 21
Estrutura para criação A mitopoiésis é criação a partir do mito, a poiésis, do grego fazer, que implica em criar e transformar conciliando pensamento, matéria e tempo, cultivando o imbricamento entre a pessoa e o mundo. O mito que segundo G. Durand são símbolos em forma narrativa ou narrativas simbólicas E a mitopoiésis a criação de narrativas simbólicas que partem da criação e que expressam o ser no mundo. O símbolo traz pregnância, torna a palavra prenhe de significados. Dos lugares percorridos na cidade labirinto, no ciclo no centro de São Paulo, guiados que foram, pelo fio de Ariadne, trouxeram desenhos, - os mapas das narrativas-, trouxeram imagens; o exercício é o de romper com a linearidade, estabelecendo relações entre o si mesmo, o Outro e o mundo, em quem os estímulos sensíveis possam desencadear um modo de adentrar essa paisagem e conhecer, ter uma experiência. Na ordenação do material recolhido: desenhos, colagens, mapas e improvisações com temas, as imagens, os símbolos vão gerando as narrativas pessoais que se tornam narrativas míticas nos meandros de um Labirinto mítico. A estrutura das festas populares, os mitos e sua constelação de imagens inspiram a criação de um roteiro de temas para o fechamento do ciclo de oficinas. Com as imagens já garimpadas todos adentram o labirinto: a entrada é feita cantando, e a passagem pela porta do labirinto é feita em movimentos de espiral utilizando palavras para descrever o caminho em que surgem os seres que indicam o centro do labirinto, a chegada ao centro, o encontro com o ser que habita o habita, a transformação, a vivência do segredo e finalmente a saída e a passagem pelo último portal. As narrativas que se entrelaçam criam um labirinto de encontro e desencontros em que aparecem as imagens da chave, da espada, da árvore, dos pássaros - a coruja, a gaivota - e a porta. E os seres monstruosos, inferiorizados, um dragão babão e uma bruxa. A hermenêutica simbólica é um método de leitura que permite atribuir sentido às imagens que são geradas, essa leitura depende da formação do hermeneuta que deve se esforçar por conhecer o mais que puder da historicidade daquele grupo com o qual desenvolve o processo. Essa interpretação das imagens está longe de uma interpretação psicanalítica, tentamos nos aproximar de um viés antropológico em uma leitura dos símbolos, mas os processos psicológicos não estão isentos de aparecerem. Um impedimento para chegarmos ao si mesmo é se proteger através do ego, ao invés de se entregar à experiência profunda, que em alguma instância pode causar incômodo, dor, ou medo do desconhecido. A “falta” universal do ser 22 | FAGULHAS
humano, que para Lacan é o que os gregos chamavam de amor, para Freud, a spaltung, a cisão, a separação, lacuna, que para Merleau-Ponty é a falta de sagrado. Nosso cotidiano sem alma, ou em que as coisas não simbolizam. A capacidade simbólica, a função simbólica, que é tão presente na infância, - é um “não-lugar” que o artista criador (mas não só) pode visitar, articular e atualizar - e talvez, podemos mesmo supor que o processo de mitopoésis, o caminho percorrido, tenha preparado um campo fértil para que, as narrativas pessoais pudessem então ser re-significadas. Habitando lugares inóspitos, lugares de passagem, de travessia que, fora de nós mesmos, espelham as profundezas de nós mesmos. Iluminando com pequenos lumes da Arte essas regiões pouco habitadas e obscuras do embricamento do si mesmo - do outro - com o mundo, o teatro se afirma como linguagem que nos humaniza, no modo artesanal de produção é resistência aos modos de produção do capital, re-encantando o mundo em um fazer e fruir que, em oposição à razão cartesiana, não separam o sensível do conhecimento. E desse processo podemos re-conhecer e re-afirmar que o teatro é alimento, nutrição para a alma de quem faz, pelo amor, pela falta, pelo sagrado, o teatro é artesania, é vocação, é poiésis que no mundo do capital busca humanizar, render homenagem à memória, a experiência de vida, a capacidade de se encantar e de sonhar. Referências bibliográficas ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BACHELARD, G. A Poética do Espaço. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2000. BARBA, Eugenio. A Canoa de Papel. Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hucitec, 1994. BARBA, Eugenio ; SAVARESE, Nicola. A Arte secreta do ator. Dicionário de Antropologia teatral. Campinas: Editora Hucitec e Editora da Unicamp, 1995. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, Arte e política: ensaio sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994. CAVINATO, Andrea. Processos de criação: Teatro e Imaginário. Tese (Doutorado em Educação), Faculdade de Educação: Universidade de São Paulo, 2011. DURAND, G. Estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 1997. LEÃO, Lúcia. A Estética do Labirinto. São Paulo: Ed. Anhembi Morumbi, 2002. MOTTANA, Paolo. La visione smeraldina. Introduzione alla pedagogia immaginale. Mimesis Edizioni Milano-Udine, 2009. FERREIRA-SANTOS, Marcos; ALMEIDA, Rogério. Aproximações ao Imaginário: Bússola de investigação poética. São Paulo: Képos, 2012. QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud. Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume, 2004.
O ator Leonardo C么nego na Carpintaria O sentido e as 谩guas, realizada em 2013. Foto por Danilo Dantas. FAGULHAS | 23
A utopia como práxis transformadora em Paulo Freire [Sidnei Ferreira de Vares ] 19
O professor Sidnei Ferreira de Vares em Conversações por um teatro do encontro. Foto por Christiane Forcinito
Falar de Paulo Freire e de sua importância para o pensamento brasileiro não é uma tarefa fácil. Em primeiro lugar, porque não se trata de uma personagem qualquer, mas de uma pessoa que dedicou grande parte da sua vida ao tema e à prática da educação e que nos legou uma obra complexa, pois atravessada por influências múltiplas, das quais ocuparemo-nos no decorrer desta apresentação. Em segundo lugar, porque, tendo Freire tornado-se um autor de grande alcance, não só dentro, mas também fora do país, muitos intérpretes têm dedicado-se a compreender as implicações de seu pensamento, de modo que minha contribuição aqui não passa de uma aventura, cuja pretensão não ultrapassa os limites da mera reprodução, isto é, daquilo que já se falou
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a respeito deste autor. Em outros termos, não desejo, em hipótese alguma, lançar novas luzes sobre o pensamento freireano. Intenta-se, simplesmente, salientar o caráter transformador da educação em sua obra e também o modo como a ideia de utopia projeta uma educação de cunho emancipatório. Aliás, a educação é um tema bastante caro ao pensamento do autor. É quase impossível dissociar educação e Paulo Freire, à medida que este erigiu seu edifício teórico assentado no tema da educação. Mas, e aqui talvez haja brechas para se discutir outros aspectos de sua teoria, pouco se fala das influências as quais o autor foi submetido ao longo de sua trajetória, ou
seja, as fontes teóricas com as quais flerta. Nesse sentido, é possível dividir a trajetória de Freire em três grandes momentos, a saber, (1) o momento de composição de seu método, que vai do final dos anos 50 até o final dos anos 60; (2) o momento de politização, que inicia-se em meados dos anos 60 e se estende até o final dos anos 70; (3) e momento final, onde, nos anos 80 e 90, Freire defrontase com alguns temas, como o neoliberalismo e a globalização, e produz suas últimas obras com vistas a desconstruir a coerência destes discursos. Além de percorrer esses momentos, pretende-se desenvolver esta comunicação em torno de alguns temas que se apresentam como fulcrais, a saber, os temas de “indignação”, “liberdade”, “autonomia” e da “esperança”, e como estes inserem-se na discussão da educação transformadora. É o próprio Paulo Freire que, ao avaliar sua trajetória, afirma que, durante a década de 50, quando o método de alfabetização de adultos, por ele criado, torna-se conhecido nacionalmente, ainda não tinha alcançando “politicidade”. Até ali, Freire ainda não tinha se dado conta de todas as implicações políticas de sua teoria e de seu método. Embora o método de alfabetização de adultos fosse eficaz e viesse demonstrar às autoridades que, com pouco, mas como boa vontade, era possível transformar a vida das pessoas, não havia ainda, reconhece Freire, uma conotação política. Parece óbvio, entretanto, que o exílio durante a ditadura militar, deflagrou essa percepção. Afinal, Freire foi considerado uma persona non grata pelo Regime Militar, instaurado em 1964. No contexto da Guerra-Fria, onde toda e qualquer ação de caráter popular era entendida como uma ação “subversiva”, as ideias de Freire soavam como revolucionárias e foram acusadas de comunistas. O MOBRAL, criado pelos militares, embora inspirado no trabalho desenvolvido por Freire, esvaziava a educação de todo seu valor crítico, reduzindo-a a uma experiência meramente técnica. Não se trata, portanto, de um método compatível àquele desenvolvido por Freire, cuja principal característica assenta-se na conscientização. Cumpre lembrar que o método freireano vincula o aprendizado à realidade da qual o indivíduo era parte integrante, partindo de temas geradores. O contexto político e o exílio, sem dúvida, contribuem para que Freire reelabore sua própria percepção acerca do método que criara. O contato com a literatura marxista nos idos dos anos 60 e 70, consolida a posição política de Freire. Sua “politização”, enfim, se processa em comunhão com as teses marxistas, sobretudo na ótica do filósofo italiano Antônio Gramsci, e também com a teologia da libertação, o que certamente autentica a dimensão humanista de seu pensamento. A transformação social, portanto, não tem valência revolucionária (entenda-se, não dá-se pela
violência), mas, por meio de uma mudança subjetiva e comportamental. Desse modo, Freire está longe das soluções infraestruturais assumidas pelos marxistas ortodoxos. Sua posição aproxima-se da de Gramsci, cuja ênfase na superestrutura é conhecida. A escola, nesse sentido, ganha projeção, pois é ela, enquanto espaço dialógico, que possibilita essas mudanças. A consciência da luta de classes levou Freire a revisitar suas posições iniciais e a conceber uma teoria na qual as classes oprimidas passam a ser o foco de seus esforços. A obra “Pedagogia do Oprimido”, elaborada nos anos 70, durante seu exílio no Chile, resulta do despertar dessa consciência política. Nela o autor desvela como a educação pode tanto oprimir como emancipar. Não se pode perder de vista que os anos 60 e os anos 70 são marcados pela contestação. Os eventos em maio de 1968, tanto na Europa quanto no América Latina retraduzem certo sentimento de transformação e de mudança que se anuncia. Freire soube catalisar esse sentimento e dar a ele vazão em sua obra. Nesse momento, a “indignação” a qual me referi no início do texto, fica explicitada. Freire dá ao oprimido aquilo que a ditadura e as classes dominantes desejam calar: voz. A pedagogia do oprimido é, assim, o ponto alto da intersecção entre o humanismo, a politicidade e o papel da educação na sociedade capitalista. E aqui, dois outros pontos, também ressaltos no início, ficam nítidos, a saber, a noção de liberdade e a noção de autonomia. A primeira dessas noções pode ser entendida em dois sentidos. Pode-se entender a liberdade no sentido político, isto é, como o ato de externar uma posição livremente, o que faz de Freire um antagonista dos regimes autoritários que, há essa altura, dominam a América Latina; mas, também entendê-la no sentido “existencial”. No que concerne a esta percepção, não é demais ressaltar a influência do pensamento existencialista sobre Freire. A ideia de que o homem é um ser em construção e de que não existe uma essência humana pronta e acabada, abre espaço para Freire reforçar sua “esperança” num futuro diferente daquele. Quanto à noção de “autonomia”, fica claro que este é o objetivo de Freire. Homens e mulheres “autônomos”. Mas tudo isto só pode se concretizar na medida em que não se perde a “esperança”, vista por Freire como um “imperativo existencial”. Daí o papel da “utopia” em Freire. Utopia, aqui, nada tem a ver com a ideia de “sonho irrealizável”, mas com a noção de “projeto”. Originalmente, a palavra utopia deriva do grego, significando “lugar nenhum”. Muito embora possamos entender utopia como aquilo que não tem lugar num de____________________
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor do Centro Universitário Assunção e do Centro Universitário Sant’Anna. Autor dos livros “Reprodução e resistência na escola capitalista” (Multifoco, 2010) e “Durkheim: o legado de um fundador” (In House, 2012).
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terminado momento, mas que pode vir a tê-lo em outro, insiste-se em relacionar esta expressão a algo irrealizável. Neste sentido, utópicos seriam aqueles que concebem o que não pode ser efetivamente concretizado. Contudo, esta trata-se de uma análise negativa, pois tem a utopia como algo sem espaço para sua concretização efetiva. Cabe-nos então perguntar: se a utopia é algo irrealizável, por que o homem caracteriza-se como ser utópico? Por que perdemos tempo projetando utopicamente um algo melhor, se este não se realizará? Grande parte dos pensadores tem sido extremamente reducionista ao analisar este conceito que, mais do que um vir-a-ser fantasioso, mostra-se como um algo possível. As discussões em torno deste conceito são bastante diversas, o que instiga nosso propósito de verificar qual seu real significado. Num mundo onde se apregoa o fim da história e dos sonhos, resgatar o conceito de utopia é mais do que uma meta: é uma necessidade. Afinal, vivemos num mundo marcado por profundas desigualdades, onde o número de excluídos e a desesperança têm aumentado significativamente. Buscar uma definição precisa sobre o conceito de utopia não é uma tarefa tão fácil como a princípio pode parecer. A utopia parece operar entre dois registros: sonho e a realidade, mediada pela esperança da concretização. Segundo Teixeira Coelho (1980, p.09): [a utopia] (...) não é delirante, nem fantástica. Ela parte, sim, de fatores subjetivos, num primeiro momento, apenas no âmbito do indivíduo. Mas, a seguir, ela se nutre dos fatores objetivos produzidos pela tendência social da época, guia-se pelas possibilidades objetivas e reais do instante, que funcionam como elementos mediadores no processo de passagem para o diferente a existir amanhã. Como constata o autor, a utopia oferece uma dimensão subjetiva, uma vez que parte sempre de um indivíduo. Porém, este mesmo indivíduo é produto de uma determinada circunstância histórica, estando situado no tempo e espaço. A utopia possui igualmente uma dimensão objetiva, acompanhando o momento histórico (político, econômico, social, cultural, etc.) no qual o indivíduo está inserido. Como bem define o autor, é guiandose pelas possibilidades objetivas e, portanto, concretas, que a utopia constitui um processo que lança no hoje as sementes de transformações futuras. Dessa forma, está implícita a idéia de mudança, ou seja, a utopia é sempre não-conformação de uma situação instituída, projetando um algo diferente/melhor para o futuro. Destarte, podese definir a utopia como desejo de mudança, um projeto que parte do inconformismo a uma realidade dada, bus26 | FAGULHAS
cando transformá-la. Utopia não é sinônimo de fantasia, pelo contrário, é um projeto de mudança real. Nas palavras do professor Ênio da Costa Brito (2000, p.121): O ponto de partida de qualquer projeto utópico é a realidade ou melhor a insatisfação diante de uma dada realidade. A força da utopia está na sua dimensão simbólica. Claro que a busca de sua realização é necessária. (...) Pode-se descrever a utopia como “a capacidade do ser humano de viver no provisório. Projetar uma nova realidade com vistas a superar a realidade tal como se nos apresenta. Ora, uma posição deste tipo só obterá êxito se houver um espaço capaz de fomentar a esperança, organizando-a em termos de projeto coletivo. Isso, sem dúvida, explica porque Freire não pode ser dissociado do tema da educação e, portanto, da instituição “escola”. E escola é, para Freire, um espaço contra-hegemônico (no sentido de Gramsci), onde os “intelectuais orgânicos” devem atuar. As obras de maturidade de Freire, elaboradas pós-anos 80, coincidem com a distensão pós-anos 80, coincidem com a distensão do regime militar, mas, sobretudo, com um cenário econômico muito diferente daquele que caracterizou os anos 60 e 70. A força do capital, refletida na influência exercida pelas grandes corporações econômicas, é agora o centro das preocupações de Freire, que percebe os instrumentos de dominação burguesa passam por um refinamento. Já não se tratam de instrumentos puramente coercitivos e violentos, típicos de regimes autoritários, mas de instrumentos que operam sutilmente no plano econômico e ideológico. Os trabalhos finais de Freire são de denuncia. Talvez o caso mais emblemático seja “A Pedagogia da Autonomia”. Grande parte deste trabalho dedica-se a crítica ao neoliberalismo e à globalização que, segundo Freire, são fenômenos complementares, cujo efeito imediato é o fatalismo, a castração da esperança e a supressão da dimensão histórica que define a própria existência humana. Sob o invólucro do fatalismo, do “não há mais nada a fazer”, as classes dominantes pretendem, de maneira hipócrita, consolidar a ideia de que a história humana está encerrada. Nesse sentido, toda possibilidade de luta e resistência transforma-se em “conformismo”, pois todas as soluções “desmancham-se no ar” frente ao determinismo econômico e político, o que implica na “coisificação” do ser humano, na sua redução a condição de objeto. Ora, Freire não concorda com isto. Afinal, o homem, ser indefinido, em construção, é o próprio motor da história e, portanto, nem o homem e nem a história estão prontas e acabadas. Esperança e utopia são
os próprios motores da história, e é por meio delas que o homem refaz sua experiência com o mundo e consigo mesmo. Com efeito, a educação e, em especial, o educador, não pode se deixar levar pelo determinismo paralisante apregoado pelas classes dominantes. Daí Freire defender que a educação não é um espaço para aventureiros. A educação, assim, tornar-se o instrumento promotor da mudança. Retomando a ideia gramsciana segundo a qual é possível imprimir uma transformação social por dentro das superestruturas, Freire entende a escola como um espaço privilegiado, onde o diálogo é possível e também a construção de novas perspectivas e valores. A dialogicidade, nesse sentido, é o primeiro passo para uma resistência ao fatalismo que o discurso neoliberal imprime. O resgate da própria condição humana (dialógica) e a percepção de que nada está pronto, é o que dá ao educador a esperança de um modelo social diferente. A “utopia”, assim, é determinante para o pensamento de Freire. Um educador incapaz de projetar o futuro, de romper com as amarras da realidade presente, se perde diante do determinismo neoliberal. Isto não significa que Freire seja ingênuo, como alguns críticos defendem. Sua posição é lúcida. Sem esperança não há ato educativo. Sem espe- rança não há transformação. Daí a necessidade de ousar. A ousadia, a teimosia, a insistência de que é possível mudar, é o que deve movimentar a ação educativa. Se o educador não trás esta dimensão utópica, certamente, o discurso do “não há mais nada a fazer” predo-
mina. Com efeito, na ótica freireana a educação é um instrumento de emancipação cultural e política, é o elemento capaz de libertar o oprimido de sua ignorância e de suas limitações. Disso depreende-se a necessidade da esperança do educador, pois, se o educador, a partida, mostra-se desesperançoso, então, como poderá inspirar esperança ao educando? Referências bibliográficas BRITO, Ênio da C. “A Cultura como desafio”. Revista Lumen, v. 6, n. 13, 2000, 113-124 p. COELHO, Teixeira. O que é utopia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. __________. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. __________. Política e educação. São Paulo: Cortez, 1993. __________. Pedagogia da Autonomia. 27. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996. __________. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: Unesp, 2001. __________. Pedagogia do Oprimido. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. STRECK, Danilo R. (Org.). Paulo Freire: ética, utopia e educação. Petropólis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
A professora Helena Coharik Chamlian em Conversações por um teatro do encontro. Foto por Danilo Dantas FAGULHAS | 27
Carpintaria em Teatro, dança e cantoria, realizada na Praça Fernando Costa ao lado do Terminal Parque Dom Pedro II. Foto por Danilo Dantas
Narrativas autobiográficas: caminhos para a reapropriação da vida [Helena Coharik Chamlian ] 20
Eu vou tentar discutir o tema proposto: “Narrativas autobiográficas: caminhos para a reapropriação da vida” a partir de um lugar, que é aquele no qual tenho dedicado toda minha atividade profissional, como docente da FEUSP, preocupada com algumas questões sobre a profissão docente, em especial a formação do adulto. Para tanto, vou procurar, primeiramente, apontar os desafios do contexto em que vivemos; a seguir vou tratar da questão da formação do adulto para localizar como o movimento autobiográfico tem considerado essa formação e a aprendizagem. Os desafios do contexto De acordo com Zigmunt Bauman (2004), em meados do século passado a sociologia era vista como a “ciência da sociedade” que veiculava o tipo de conhecimento que deveria ser adquirido com mais urgência, dominado e colocado em prática. Havia a crença, portanto, de que ela poderia melhorar a vida humana ao reformar o meio social. Tal convicção sobre a missão da sociologia e tal fé em seu poder de realização devem, sem dúvida, intrigar um leitor contemporâneo, mas somente porque vivemos 28 | FAGULHAS
hoje numa era diferente, quando o mantra não é mais ‘salvação pela sociedade’; infelizmente, o que se ouve agora, como homilias insistentes, é que devemos buscar soluções individuais para problemas produzidos socialmente e sofridos coletivamente. (BAUMAN, In: PALLARES-BURKE, Tempo Social, 2004). Para todos aqueles preocupados com as questões de formação de professores, especialmente voltados para suas condições pessoais e para as características do contexto social do exercício de sua tarefa, não podemos deixar de refletir sobre as atuais condições da vida social. Nesse sentido, as transformações aceleradas a que assistimos, desde o final do século passado e esta primeira década de novo milênio, caracterizada por muitos como “pós-moderna”, ou como Bauman prefere “modernidade líquida”, colocam questões que vale a pena explorar. O que acontece hoje? A que modelos de construção biográfica e a que tipos de narrativas os indivíduos das sociedades pós____________________ 20
Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
modernas ou hiper-modernas21 recorrem? Assistimos a uma transformação, a uma renovação da narrativa biográfica, em suas formas, suas estruturas, mas também em seu funcionamento e em seus modos de ação? O sociólogo e historiador norte-americano Richard Sennett (2008) relata que, no fim dos anos 70, os operários e os funcionários contavam a história de suas vidas ainda segundo uma estrutura linear contínua e orientada, na qual a atividade profissional constituía o motivo organizador e integrador: essa história era a deles e eles se identificavam com ela. Vinte anos mais tarde, a capacidade de produzir uma narrativa unificada da vida foi consideravelmente reduzida: no lugar de uma história única que integra todos os aspectos da vida sobre um esquema social e profissional dominante, os informantes oferecem histórias plurais e fracionadas em meio às quais eles encontram dificuldades para estabelecer a continuidade e a permanência, e que demandam um trabalho biográfico22 intenso. No caso da profissão docente, que se ancora de modo muito particular na identidade pessoal do professor e que em seu exercício se forja, em decorrência, a construção de outras subjetividades, consideramos que o trabalho biográfico é elemento substantivo para a formação e aperfeiçoamento profissional. Nesse sentido, pareceu-nos que a modalidade de formação baseada nas histórias de vida auxiliaria o enfrentamento dos desafios anteriormente mencionados. Para tanto, a reflexão desenvolvida por Mathias Finger (1993) diante desses desafios, foi decisiva para nossa escolha. Segundo ele, a ideia de formação e de desenvolvimento do adulto, a partir dos paradigmas existentes era altamente duvidosa e sugeria a aprendizagem coletiva de uma saída, que conduzisse a procedimentos mais humanistas e, nesse caso, os procedimentos autobiográficos de formação, pareciam oferecer alternativas. De acordo com os pressupostos apontados por Finger, na educação de adultos, o ensino de soluções pré-estabelecidas a indivíduos isolados deveria ser substituído por uma formação coletiva, vertical, horizontal e transdisciplinar, promovendo-se unidades de aprendizagem coletivas, funcionando no interior dos limites biofísicos concretos. Para ele, “aprender uma saída” incide principalmente sobre o processo de aprendizagem, ou seja, sobre a maneira de tomar consciência e de integrar os limites biofísicos e as restrições culturais, tendo muito claro que o círculo vicioso aciona um processo que continuará a restringir e não a estender os limites. Fica claro, também, que a “aprendizagem de uma saída” passa, necessariamente, por uma revisão dos processos e das práticas de formação de adultos.
A questão da formação do adulto Desde os anos oitenta, quando nos voltamos para a discussão da educação continuada de professores a partir de uma pesquisa intervenção em uma escola pública de 1º Grau, em que se verificou a dificuldade de transposição do diagnóstico dos problemas enfrentados pelo professor para a criação de alternativas práticas no cotidiano de sua atuação, temos perseguido a questão sobre a existência de uma especificidade na aprendizagem do adulto, pensando, naquele que participa de programas de educação continuada, e também, em especial, na formação do professor para o ensino superior. São poucas as referências a essa questão, porém, o trabalho de Smith (1982, Apud, MASETO, 1991, p.100). ) ofereceu-nos algumas pistas, ao afirmar que existem três grandes características em sua orientação para a aprendizagem, resultantes de seus múltiplos papéis e responsabilidades e das experiências acumuladas em suas vidas. Assim: apresentam preferências por estilos e modalidades diferentes de aprender; aprendem melhor quando eles sentem a necessidade de aprender e quando assumem a responsabilidade sobre o que, porque e como aprender. Ou, ainda, a de que uma das características do processo de aprendizagem do adulto estaria no uso da experiência pessoal como recurso para aprender. Tais considerações eram mais descritivas do que explicativas e não nos satisfizeram. Encontramos na abordagem das histórias de vida em formação, promovida principalmente por Pierre Dominicé e Marie-Christine Josso, uma perspectiva mais abrangente e mais fecunda na exploração do tema da aprendizagem do adulto. ____________________
A noção de pós-modernidade acentua a ruptura com os grandes “mitos” (e, portanto, com os “grandes relatos”) de que a modernidade era portadora, e que contribuíram para sua constituição (em particular, a crença no progresso e no poder da razão), desenhando a figura de um indivíduo autônomo e responsável pelos seus atos; o indivíduo pósmoderno é caracterizado pela perda das referências e do sentido que lhe forneciam os discursos de legitimação das grandes ideologias. (Cf. J.-F. Lyotard, La Condition postmoderne, Paris, Éditions de Minuit, 1979). Mais do que a ruptura com os fundamentos da modernidade, a noção de hiper-modernidade ou de super-modernidade, que tende a se impor hoje, insiste sobre o excesso e a superabundância que caracterizam as sociedades avançadas contemporâneas: os fenômenos de hiper-consumo, de hiper-informação, de hiper-atividade designam uma exacerbação e uma radicalização da modernidade. Muitas publicações recentes dão conta das características das sociedades hiper-modernas e das formas de individualidade que elas contribuem para desenvolver. Ver entre outros: G. Lipovetsky, Les Sociétés hypermodernes, Paris, Grasset, 2004; N. Aubert (dir.), L’individu hypermoderne, Paris, Erès, 2004. 22 A noção de trabalho biográfico designa a atividade produzida pelo indivíduo para dar coerência e sentido aos acontecimentos de sua vida. Ela tem sua origem nas pesquisas sociológicas sobre a flexibilidade do trabalho nas sociedades industriais avançadas e sobre sua incidência sobre os processos de biografização. Cf. R. Sennet, op. cit.; no domínio da formação, cf. M. Kraull., W. Marotzki (éd..), Biographische Arbeit, 21
Oplade, Leske+Budrich, 2002.
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Essa vertente se assenta sobre uma concepção global de formação e sob o termo biografia educativa Dominicé (1990) desenvolve em Genebra uma experiência de pesquisa-formação que tem por ambição teórica atingir um conhecimento do processo de formação nos seus modos de constituição e em seus efeitos de transformação. Trata-se para ele de “compreender os pressupostos através dos quais os adultos se formam” (DOMINICÉ, 1990, p. 18) e de “identificar os processos de aquisição do saber do adulto aprendiz” (Idem, p. 7). Christine Delory-Momberger (2008) em recente trabalho sintetiza de modo ainda mais explícito o paradigma no qual se inscreve nossa pergunta. Segundo ela: O recurso à pesquisa biográfica nas ciências da educação apóia-se na dimensão central da formação nos processos de biografização e na estreita relação entre aprendizado e biografia: todo percurso de vida é um percurso de formação, no sentido em que organiza temporal e estruturalmente as aquisições e os sucessivos aprendizados no âmbito de uma história; todo aprendizado está inserido numa trajetória individual na qual ele encontra sua forma e seu sentido em relação a um conjunto de habilidades e de competências articuladas numa biografia. (DELORY-MOMBERGER, 2008, p. 19). Josso (2004), por sua vez ao caracterizar o processo de aprendizagem, na dimensão biográfica, afirma que este corresponde à indicação dos processos e modalidades de aprendizagem, faz aparecer as estratégias, as posturas e os recursos do aprendiz em sua relação com os saberes. Desse modo, o trabalho biográfico tem como finalidade fazer produzir no sujeito a perícia de sua história de formação e de seus modos de apropriação do saber e torná-lo consciente de seu potencial de autotransformação e de auto-orientação. (Cf. JOSSO, 2004). O efeito de formação da história de vida, na sua versão de biografia educativa é um efeito de conhecimento: individual e íntimo para quem relata sua história de formação e teórico para o pesquisador que procura alcançar um saber sobre a formação. Essa teoria desenhada em Genebra faz da experiência um conceito central na compreensão do processo de formação e da competência de aprender do adulto23. Para tanto, o fundamento “ontogenético” da relação dessa competência com a formação deve ser pesquisado nas relações estabelecidas com a escola. Segundo Christine Delory-Momberger a pesquisa de Genebra vai além das observações costumeiras que 30 | FAGULHAS
se traduzem por uma rejeição coletiva ao universo escolar. A pesquisa demonstra que aquilo que se estabelece para cada um durante o período escolar, e que é re-atualizado no tempo de formação adulta, é uma configuração de relações entre a escola, a família, os grupos de pares, o mundo social em geral. Esta configuração articula formas de saberes diversificados e vividos freqüentemente sob um modo de oposição (saberes da escola versus saberes da vida) cujo equilíbrio, ou desequilíbrio, marcam durante muito tempo a história de formação do sujeito. Ora, para que a formação do adulto tenha sentido, é preciso que ele possa se re-situar nessa história e que o adulto esteja em condição de imputar uma significação às primeiras etapas de sua formação na escola. ____________________
Esta competência de aprender deve ser entendida em seu sentido mais amplo, podendo recobrir “objetos” bastante diversificados e não exclusivos dos saberes disciplinares ou formalizados. Já a competência biográfica deve ser entendida como o conjunto de saberes (saberes formais, saberes de experiência, saber-fazer, saber-ser) mobilizados ou mobilizáveis em situação de formação.
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Carpintaria em Teatro, dança e cantoria, realizada na Praça Fernando Costa ao lado do Terminal Parque Dom Pedro II. Foto por Danilo Dantas
A própria autora aprofundou ainda mais esta perspectiva, introduzindo um “modelo” de formação, os ateliês biográficos de projeto, explorando a dimensão de projeto que a produção de histórias de vida possibilita, trabalhando no procedimento de formação com as representações que os indivíduos oferecem, nos relatos de suas experiências de formação e reinscrevendo-as na perspectiva de um projeto (DELORY-MOMBERGER, 2006). “A dimensão de projeto é assim constitutiva do procedimento de formação, na medida em que ela instaura uma relação dialética entre o passado e o futuro e em que ela abre à pessoa em formação um espaço de ‘formabilité”. (Idem, p. 366). Para ela: (...) As histórias de vida não formam nada que seja da ordem de um corpo de saber constituído, de uma competência instrumental específica, de um dispositivo procedimental ou conceitual determinado. As
“histórias de vida” não formam nada além da formabilité, isto é, à capacidade de mudança qualitativa, pessoal e profissional, engendrada por uma relação reflexiva com a sua “história” considerada como “processo de formação”24. A capacidade de mudança (a formabilité), postulada pelos procedimentos de formação pelas “histórias de vida” repousa no reconhecimento da vida como experiência formadora e da formação como estrutura da existência.25 .(DELORYMOMBERGER, 2006, p. 365) A corrente das histórias de vida em formação se ____________________
P. Dominicé, L’histoire de vie comme processus de formation, Paris, L’Harmattan, 1990. 25 Cf. B. Honoré, Pour une théorie de la formation. Dynamique de la formativité, Paris, Payot, 1977 ; Sens de la formation, sens de l’être : en chemin avec Heidegger, Paris, L’Harmattan, 1990. 24
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desenvolveu em um momento em que os indivíduos encontram dificuldades cada vez maiores para encontrar seu lugar na história coletiva, e em que são remetidos (reenviados) a si próprios para definir suas próprias orientações e “fazer sua própria história” (Cf. Delory-Momberger, 2009). Como resposta e ligada aos movimentos de educação popular e à formação de adultos apresentou uma “perspectiva emancipadora e militante” (LAINE, A., 1998, p. 102). Os primeiros formadores que recorreram às histórias de vida, queriam responder às necessidades de formação de pessoas à procura de emprego ou em reorientação profissional, e eles queriam desenvolver com esse público uma concepção e uma abordagem da formação que rompesse com a formação acadêmica da escola ou da universidade. Em síntese, eles consideravam que a pessoa é um todo, que a formação concerne ao todo da pessoa e que é a pessoa inteira que se forma: o objeto da formação, de certo modo, é o de “formar a pessoa para se formar”. Eles pensam também que todo indivíduo adquire no curso de sua vida, um saber-fazer e competências que não são reconhecidas pelas instituições acadêmicas e o processo de formação pelas histórias de vida permite que esses saberes subjetivos e não formalizados, adquiridos nas experiências e nas relações sociais, sejam reconhecidos. Este reconhecimento é importante, porque esses saberes “não sabidos” desempenham um papel primordial na maneira pela qual os sujeitos investem nas aprendizagens
e que vai permitir-lhes “apropriar-se de seu poder de formação”. É importante insistir na dimensão verdadeiramente política desse processo de formação que associa estreitamente as pessoas ao processo formativo e os considera como os atores plenos de sua própria formação. Vale insistir também na forte implicação sócio-política, pois se trata, de um lado de responder a necessidades nascidas em um contexto de perturbação socioeconômica e, em particular, de retração do emprego, e de outro lado de dar novamente às pessoas em formação os meios de agir em interação com seu meio, de desenvolver seus recursos de atores sociais. Christine Delory-Momberger acrescenta que o artigo 2.2 da Carta da ASIHVIF reconhece explicitamente esta dimensão sócio-política: «A visão que orienta, atravessa e sustenta as práticas de histórias de vida é a emancipação pessoal e social do sujeito». Esse conjunto de elementos muniu-nos para a realização das experiências de pesquisa, realizadas no início de modo exploratório e mais tímido, e com o decorrer do tempo, diante dos resultados obtidos, de modo cada vez mais seguro e entusiasmado. Consideramos, por exemplo, que tais pesquisas representaram para nós, primeiramente, um acúmulo de experiência. Vivemos, também, de modo intenso, durante os processos de pesquisa, dúvidas, incertezas, frustrações, motivações e entusiasmos que nos mobilizaram afetiva e intelectualmente, realizando o que Josso denomina de aprendizagem
Carpintaria em Teatro, dança e cantoria, realizada na Praça Fernando Costa ao lado do Terminal Parque Dom Pedro II. Foto por Danilo Dantas 32 | FAGULHAS
experiencial: (...) aquela que sobrevém quando realizamos uma experiência, que se apresenta, à primeira vista, como a incidência de um acontecimento inesperado em nossa vida, como uma situação surpreendente, que escapa às nossas rotinas (comportamentos, saberes) e o que precisamente não entra no campo da experiência adquirida e dos saberes disponíveis, de todas as ordens, que a constituem. (Apud: DELORY-MOBERGER, 2003, p.81.
- produção da primeira narrativa autobiográfica e sua socialização em tríades; - socialização da narrativa autobiográfica no grupo e a escolha de um escriba, que produz outra narrativa a partir da escuta; - o tempo de síntese, que é composto da produção de um novo relato e da constituição de um projeto a partir dele, forjado e discutido nas tríades e, também socializado no grupo. Finalmente, um mês depois, a realização de um encontro para um balanço de incidência da formação no projeto profissional de cada um.
Munida dessa convicção realizamos o primeiro processo de formação-investigação, ancorado na produção de relatos autobiográficos, tendo como eixo a memória de formação. Ele se realizou no período de um ano e meio e permitiu-nos efetivar tanto a auto-formação (Pineau, 1993), quanto refletir sobre as aprendizagens ocorridas no processo e construir princípios de formação do professor universitário, tendo em vista sua aplicação para o desenvolvimento de habilidades nos alunos do ensino superior. Consideramos, portanto, que seria importante promover: 1) a apropriação do patrimônio de vivências de cada sujeito; 2) a transformação individual na tríplice dimensão: saber; saber-fazer; saber-ser, sendo necessário, para tanto: implicação; participação, interação, cooperação; 3) a autonomização e independência intelectual (formação-ação, formação investigação, formação-inovação); 4) busca/definição de um projeto (de curto, médio e longo prazo).
Considerações Finais
O Ateliê Biográfico de Projeto A proposta dos Ateliês Biográficos de Projetos de Christine Delory-Momberger (2006) foi desenvolvida com a intenção de avançar na compreensão sobre os processos de aprendizagem biográfica, e em especial, de explorar a dimensão de projeto que a produção de histórias de vida possibilita. Nesse caso, a narrativa de vida é representada como uma forma de balanço prospectivo, que liga as três dimensões da temporalidade (passado, presente e futuro) e visa fundar um futuro do sujeito, fazendo emergir seu projeto pessoal. Partindo do modelo apresentado por Christine Delory-Momberger (2006), fizemos uma adaptação para adequá-lo ao formato de um curso de Pós Graduação, mas obedecendo às etapas previstas que compreendem as seguintes etapas: - explicações sobre a proposta; - elaboração, negociação e ratificação coletiva do contrato biográfico;
As experiências que realizamos com o emprego da produção de narrativas biográficas, tanto no formato das histórias de vida em formação quanto no do Ateliê Biográfico de Projeto mostraram-se bastante promissoras. Pudemos verificar, até sobejamente, que esses processos de formação promovem aprendizados para além dos saberes escolares, bem como a aquisição e ou reforço de uma “competência narrativa que corresponde a um modo de estruturação não só da língua, mas também da ação e do pensamento” (DELORY-MOMBERGER, 2008, pág. 33, grifos nossos). Se considerarmos que esse modelo contempla a formação de modo global, podemos perceber que as histórias de vida permitem que se estruture, se apreenda e se construam “objetos” de aprendizado, como reitera Delory-Momberger (2008), quer se tratem de saberes formalizados, de habilidades processuais, de competências multidimensionais e, sobretudo, à percepção sobre sua própria capacidade de mudança. Finalmente, como já dissemos alhures (2004) os procedimentos requeridos no processo de formação, mediante a produção de relatos autobiográficos, com sua natureza praticamente artesanal, permitem apenas “iniciar” o adulto no percurso de (auto)formação, mas, por outro lado, permitem-nos recuperar a essência do processo educativo: autonomia, reflexão, compromisso com o futuro.
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Tradução de Maria Carolina Nogueira Dias e Helena C. Chamlian.
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Carpintaria em Teatro, dança e cantoria, realizada na Praça Fernando Costa ao lado do Terminal Parque Dom Pedro II. Foto por Danilo Dantas Referências bibliográficas BAUMAN, Z. In: PALLARES-BURKE, M. L. Entrevista com Zigmunt Bauman, Tempo Social, 2004. CHAMLIAN, H, C. Experiências de Pesquisa: o sentido da universidade na formação docente. São Paulo: FEUSP (Tese de livre-docência), 2004. DELORY-MOMBERGER, Christine. Les Histoire de Vie. De l’invention de soi au projet de formation. Paris: Ed. Económica, 2000. _________ Biographie et Éducation. Figures de l’individue-project. Paris: Ed. Economica. 2003. _________ Formação e Socialização: Os Ateliês Biográficos de Projeto*. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 32, n.2, p. 385-410, Maio/Ago. 2006. __________ Pesquisa Biográfica em Educação: orientações e territórios. In: Pesquisa (Auto) Biográfica e Práticas de Formação. SOUZA, E. C.; PASSEGGI, M. C. e ABRAHÃO, M. H. M. B. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo: Paulus, 2008. DOMINICÉ, P. L’histoire de vie comme processus de formation, Paris, L’Harmattan, 1990. _________ A formação de adultos confrontada pelo imperativo biográfico. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.32, n.2, p.345-357, Maio/ago. 2006. FINGER, Mathias. Considérations socio épistémologiques sur l’éducation des adultes aujourd’hui. In Cahiers de la Section des Sciences de l’Education -PRATIQUES ET THÉORIE. Université de Genève, Genève, Nº 72, oct. 1993. JOSSO, Christine. Experiências de vida e formação. São Paulo: Cortez Editora, 2004. LAINE, A., Faire de sa vie une histoire: théories et pratiques de l’histoire de vie en formation. Paris : Desclée de Brouwer, 1998. LINZ, Elinor. The Art of Teaching Adults. New York: CBS College Publishing, 1982. MASETO, M. T. Em sala de aula de 3º Grau, ainda se aprende. Tese de Livre Docência, FEUSP, 1991. NÓVOA, António (org.). Vida de professores. Porto: Porto Ed., 1992. ________e FINGER, M. (Org.). O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa: Ministério da Saúde, 1988. PINEAU, Gaston. et LE GRAND, Jean Louis. Les histoires de vie. Paris: PUF, 1993 ________. As histórias de vida em formação: gênese de uma corrente de pesquisa-ação-formação existencial. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 329-343, maio/ago. 2006 SENNET, R. A Corrosão do Caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Record, 2008. 13ª Ed.
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ofĂcio II
testamentos
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[terminal parque dom pedro ii] aos pés de uma passarela uma canção sem voz uma rasteira a fumaça e a brasa carvão feito chama a carne de frango a carne de vaca a carne das gentes par-ti-das numa praça escura suja asas e corações em espetos e o nome de Deus num disco pirata as partes íntimas não-íntimas do corpo num verso sem métrica poesia-disparo nem Jeová nem Abraão nem Jesus Cristo nem São Paulo, o apóstolo pairam parados no ponto de ônibus ninguém vai chegar aqui não é o céu nem o inferno aqui é o centro de Sampa onde os rostos sucumbidos corroem risos anêmicos em bocas encardidas
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não será mais preciso nenhuma filosofia sobre telhados e barracas de camelôs porque estão todos certos o tempo passa as pessoas passam e todo o resto (inclusive as baratas) são passageiros são estrangeiros nesta terra-muralha nestas casas antigas tomadas de janelas fechadas e outros fantasmas que nem o diabo sabe a alcunha mas estão todos livres os fantasmas e as pessoas e vão para lá e para cá (entre escombros) na cidade-pressa na cidade-asco feito pombos ratos à espera de Deus
[rudinei borges, 25 de junho 2012]
Foto por Christiane Forcinito FAGULHAS | 37
parte 1 Partilha de Vivências - A Poesia do Humano - Conversa com Lídia Zózima e Trupe Sinhá Zózima. Foto por Christiane Forcinito
O documentar para além do documento [Luciana Ramin]
A fala é fabricada, as questões são fabricadas, mas, com que forças se diz o indizível? 26
Se eu lhe contasse o que vi, você não acreditaria; não pela grandeza dos acontecimentos que se passaram, mas sim pela ausência de palavras e sensações capazes de traduzir simultaneamente o momento onde e como tudo aconteceu. Mas, se eu te mostrar tal como vi você talvez possa imaginar melhor, não se atendo só ao que te mostro, mas sim, o que está revelado ali, na espontaneidade de cada gesto, na musicalidade de cada fala, na inconstância da luz e do movimento que se dispersa pelo momento presente repetidas vezes agora somente pelas imagens. Eis aqui uma de minhas tarefas, documentar, uma trupe de artistas teatrais que se lançam ao desafio de atuar em movimento dentro de um ônibus. No entanto o documento aqui a ser levantado, não parte de um desejado recorte anteriormente desenhado, para que ele aconteça, sua única condição é o anonimato, a solidão de um olhar de fora. Ele não é um filme, tal qual o moldes cinematográficos, ele é uma expectativa, ele é agente e ao mesmo tempo o reagente de seu próprio conteúdo, ele não tem controle, porque ele vive a espreita da ação teatral sobre um mundo, captar seu microcosmo e tenta-lo a expansão máxima de sua particularidade, a fim de tornalo catalisador de toda subjetividade por ele proposta. Nessa perspectiva, mostrar através da captação aleatória de um processo de outra linguagem, a teatral, uma possibilidade de narrativa fílmica, portanto, contada através de imagens em movimento ainda em busca de um sentido próprio, se torna por vezes um desafio dilaceran38 | FAGULHAS
te ao mesmo tempo em que o fortalecem como um sujeito filme, formado por pedaços como uma espécie de Frankstein digital, que vaga em busca de um sentido próprio para sua existência, que é o de contar, e é neste ponto que se dá o encontro com os desejos teatrais, já que por um lado, dramaturgo, diretor e atores buscam em suas narrativas de vida material para suas personagens e encenação, o documentário busca retratar essa busca, pelos seus próprios interiores, em suas confissões e relatos guardados na memória e na própria memória viva do acontecimento que consiste no deslocamento desses artistas, pelos arredores do parque Dom Pedro e o encontro com os personagens reais que habitam esse outro mundo ainda desconhecido. Desse modo, duas são as situações que compõem os materiais para a construção deste documentário, uma composta pela matéria subjetiva e particular dos artistas da Trupe, intitulado “Dentro é lugar longe” e a outra situação, agora localizada nas subjetividades e universalidades dos sujeitos que habitam a cidade, e seu sentido no mundo, aqui simbolizado pelo seu trabalho, o que constitui-se em “ TrabalhaDores”, a labuta diária de ambos, em existir e ao mesmo tempo de se expressar no mundo, e na vida, tornando o agora toda a lembrança em memória, e sim, fazendo um filme sobre alteridades. ____________________
Citação extraída do texto A política do documentário: dizer o indizível e a crise do documentário conexionista de Cezar Migliorin, de Livro: Imagem Contemporânea, org: Beatriz Furtado, editor ECidade, 2009.
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Partilha de vivĂŞncias I - A poesia do humano. Foto por Christhiane Forcinito
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parte 2 A Atriz Maria de Alencar em intervenção cênica coordenada por Eliana Monteiro do Teatro da Vertigem. Foto por Christiane Forcinito
Sobre a minha experiência com a Trupe Sinhá Zózima [Christiane Forcinito]
Comecei a fotografar por amor. Sei que parece clichê afirmar isto, porém foi este motivo que me fez ressuscitar de uma vida jogada no limbo e abrir meus olhos, meu olhar para a verdadeira realidade. Conheci a Trupe Sinhá Zózima no espetáculo “Cordel do amor sem fim”. Fiquei extasiada. Fui apenas assistir a peça, mas (como não largo a minha câmera) fotografei o espetáculo. Enviei fotos para o grupo fotos, pois queria retribuir o carinho. Fiquei muito impressionada com a proposta do grupo... Tempos depois recebi o convite do dramaturgo Rudinei Borges e do diretor Anderson Maurício para fotografar o projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho”. Senti-me privilegiada por trabalhar em um projeto muito bem elaborado com profissionais de muita competência. A priori, as conversações eram interessantes, mas eu ficava imaginando no que aquilo iria resultar. Em que tipo de peça aquilo acabaria? Minha função era de fotografar conversas. Eu ouvia, falava pouco, fotografava muito. A primeira vivência deles que fotografei foi no ônibus comum que partiu do Terminal Parque Dom Pedro II, no centro de São Paulo. Um ônibus com passageiros que voltavam para as suas casas. De início, não entendi nada. Neste dia, eu não podia chamar atenção ou estragaria a vivência, então acabei entrando no clima me passando por uma passageira de ônibus. Era uma noite de muito frio. Foi nesta noite que comecei a compreender o grupo, a pesquisa e as vivências. 40 | FAGULHAS
O auge vivencial para mim foi com o projeto E.S.T.I.R.A.D.A (que resultou na peça “Dentro é lugar longe). Em setembro de 2012, nos reunimos em um sítio da cidade Arujá, interior de São Paulo. Lá o grupo ficou dois dias interruptos em que os integrantes contaram histórias de suas vidas. Foi nestes dias que soube o que era vivenciar a construção de uma obra teatral. Percebi que não era apenas um grupo de pesquisadores focados na pesquisa em si. Havia muito mais. Primeiramente, as vivências mexeram comigo me remetendo a diversas fases da minha vida. E segundo: percebia que era assim que se construía não só um texto, uma obra, mas é assim que se deve viver e criar – coletivamente. É assim também que ocorrem transformações. Teatro é experiência. Teatro é construção. Teatro é vida. Nas últimas semanas de Março fui fotografar o ensaio aberto da peça “Dentro é lugar longe” e, em meio a lágrimas, pude “voltar” mais uma vez a todas as etapas do processo a qual a Trupe e eu vivenciamos. E agora, perto da estreia de “Dentro é lugar longe” escrevo este texto com dificuldade, afinal eu tive o privilégio não só de conhecer artistas de primeira grandeza e profissionais competentes, mas de vivenciar a construção de uma obra de arte. Tive o privilégio também de fazer amigos. Tive o privilégio de viver com quem valoriza o trabalho artístico (no meu caso, o trabalho fotográfico). Tive ganhos incomensuráveis.
ofício III
documentários
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[praça fernando costa] não sei o nome desta praça nem o nome de mulheres e homens que moram e passam e dormem e bebem e transam e riem e mijam nesta praça não sei o nome da árvore que deixou crescer raízes fundas no chão desta praça como se fosse outono não sei dizer ao certo se é verão ou inverno nesta praça se a primavera é cálida nesta praça se crianças correm e brincam nesta praça como noutras praças tantas da cidade mas sei e me espanto que não sei o nome desta praça
Foto por Christiane Forcinito 42 | FAGULHAS
nem do velho que vende camisas do corinthians e diz em alta voz um a zero e basta nem da moça que vai e vem nesta praça com dinheiro nas mãos como se folheasse o livro de jó e o apocalipse e não sei o meu nome porque não importa se entre o pátio do colégio e a rua 25 de março e um terminal de ônibus dissipado haja uma praça homens e mulheres que moram e passam e dormem e bebem e transam e riem e mijam numa praça sem nome [rudinei borges, 27 de junho 2012]
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A carpintaria é o espaço onde são tecidas mesas e cadei-
ras com o labor das mãos, do corpo. Mas o pensamento, a poesia e a memória são essenciais para a tessitura árdua da arte. A carpintaria é, sobretudo, movimento que rompe com o limiar entre teoria e prática. Ao propor carpintarias (oficinas) no projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho: residência artística por um teatro do encontro sem fronteiras”, a Trupe Sinhá Zózima optou por ações em que prevalecesse a ideia de conversação. Versar ações em que os movimentos do corpo e da voz do passageiro de ônibus fossem respeitados, sem impor uma forma suspostamente certa ou adequada de fazer teatro. As carpintarias foram coordenadas por artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima com a participação de pesquisadores convidados. Foram reinvenções do espaço e da memória, em que a nossa vida e a dos outros, aqueles de quem a Trupe ouviu histórias e lembranças, foram reinventadas em gestos, variações da voz, desenhos, cantoria e poemas. Lugar onde a rejeitada capacidade poética do ser humano não foi abafada. A tentativa foi outra. O sonho foi outro. Nas carpintarias da Trupe, para além do trabalho árduo de cada dia, para além do trabalho sofrido que o capitalismo selvagem nos impõe, houve o desejo de reinventar a vida e celebrá-la. A seguir apresentamos breves documentários, uma série de relatos que apresentam memórias, rastros do que foram as carpintarias realizadas pela Trupe Sinhá Zózima em 2012.
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Fagulhas à deriva Carpintaria em teatro e imaginário [Tessitura do relato: Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges]
Queria transformar o vento. Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto. Eu precisava pelo menos de enxergar uma parte física do vento: uma costela, o olho... Mas a forma do vento me fugia que nem as formas de uma voz. Quando se disse que o vento empurrava a canoa do índio para o barranco Imaginei um vento pintado de urucum a empurrar a canoa do índio para o barranco. Mas essa imagem me pareceu imprecisa ainda. Estava quase a desistir quando me lembrei do menino montado no cavalo do vento – que lera em Shakespeare. Imaginei as crinas soltas do vento a disparar pelos prados com o menino. Fotografei aquele vento de crinas soltas. (Manoel de Barros)
A atriz Alessandra Della Santa na Carpintaria em Teatro e Imaginário. Foto por Danilo Dantas
Ato 1 - Foi assim que começou O encontro entre artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima com a atriz e pesquisadora Andrea Cavinato deixou marcas profundas no desenvolvimento do projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho – residência artística por um teatro sem fronteiras”. Carpintaria em
Teatro e Imaginário foi um trabalho voltado ao desenvolvimento da expressão do corpo unido ao imaginário. Um encontro em que o corpo traduziu a palavra e a ação em exercícios de Deriva, palavra que originalmente significa sem rumo certo, ao sabor de novas experiências. FAGULHAS | 45
Ato 2 – Sobre desobliterar os canais de percepção Em entrevista para Fagulhas, a pesquisadora Andrea Cavinato explicou o processo de construção da Carpintaria em Teatro e Imaginário desenvolvida com a Trupe Sinhá Zózima.
O movimento do corpo; sentir cada ato; pés, mãos, o balanço dos quadris... Respiração: alimento da vida. Ar; Essência da mente; da criação; da imaginação no ato presente! Expira: a face da arte; encenação; vida criada na mente; reflexo puro; do poder do imaginário. Foto por Danilo Dantas
Como você considera que a Carpintaria de Teatro e Imaginário contribui para a pesquisa desenvolvida pela Trupe Sinhá Zózima? Andrea – É uma possibilidade de processo de criação. Em primeiro lugar, acredito que encontrar um coletivo de artistas que estejam interessados em criar coletivamente, e desenvolver processos, é coisa cada vez mais rara no tempo em que vivemos e na cidade onde vivemos. Penso que possa contribuir para estabelecer uma estrutura de formação para a arte do ator em que se pode criar a partir do corpo, coletar imagens, discutir. Estimular a percepção do espaço, refinar a sensibilidade e compartilhar a criação, tudo isso, creio que gere um material com originalidade e que reflita o mundo em que vivemos a partir de como cada um sente e percebe, como um mosaico. Também creio que fortaleça e amplie questões técnicas para a criação, trazendo instrumentos, consciência e prática. Porque acima de tudo é uma proposta prática, de formação e a partir disso fazemos as possíveis aproximações teóricas. Como você avalia os dois primeiros encontros realizados com a Trupe?
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(Márcia Nicolau)
Andrea – É difícil separar a alegria de poder realizar este trabalho com artistas que admiro pela tenacidade, pelo talento, pela leveza e também pela coragem de levar beleza e poesia a lugares onde parecia inimaginável sequer um traço de refinamento e humanidade. Acredito que estamos nos aventurando juntos com muita disposição, não existe certo e errado nessas searas da criação, acredito que existam afinidades e bons caminhos. Temos muitas afinidades. Tenho recolhido material muito rico das criações, tenho tido a oportunidade de refletir e estudar, aprofundar e amadurecer minha prática. Como a Deriva contribui com expressão cênica e teatral? Andrea – Boa pergunta. Agradeço por perguntarem, porque me faz procurar esclarecer a questão da “Deriva” que é bastante complexa. É um caminho para aprender a se apropriar e criar, de percepção e sensibilidade, a “Deriva” é minha proposta e desafio de coleta de imagens pessoais, uma alquimia – como diz Artaud. Passamos por um pequeno processo de transformação, de criação, que pode até contribuir para pensarmos o que é “cênico” o que é “teatral”. A “Deriva” pode fazer com
que novos espaços se abram dentro de nós, que nossa percepção de mundo e de nós mesmos se ampliem. Quer percebamos ou não que temos um ser em nós “à deriva”. Por isso, é também um exercício de autoconhecimento. Na “Deriva” o ponto de partida é o eu-corpo-mundo em suas relações complexas, subjetivas e múltiplas. Não tem função de espetáculo, não tem o objetivo de ser mostrada, de ser vista; é parte de uma proposta em que o ator “se” trabalha; gera um material que irá ser lapidado posteriormente através de outras propostas que envolvem unir recursos internos e recursos externos que irão criar fluxos de expressão e articular em novos códigos o material recolhido. Os exercícios e imersão propostos no primeiro encontro contribuem em que medida para a construção artística da Trupe? Andrea – Não fizemos imersão mesmo para valer, poderíamos começar. Consideraria imersão se tivéssemos juntos durante uma semana de trabalho, sete dias, todos os dias, por no mínimo quatro horas. Os exercícios são para tornar o corpo mais expressivo, para refinar escuta e presença. São trabalhos com imagens, assim o ator cria, temos a ideia de um ator criador, que pode contribuir com autonomia em processos de criação. As técnicas são para que tenham domínio das ações físicas, consciência do corpo em cena e domínio da energia, con-
trole da expansão da energia que contribuem para que o grupo possa atuar junto em sintonia, expressar junto uma ideia (cena). O trabalho ritualizado e a consciência interferem na qualidade da representação. É uma pequena proposta de formação que busca imagens em uma dimensão extra cotidiana, por meio de um treinamento energético, processos treináveis de percepção e domínio da energia, de chegar à exaustão (como nos contam Eugenio Barba, Burnier e Ferracini) para se chegar a uma região de energia “nova” e assim desobliterar os canais de percepção. A energia é treinável e através dela o ator em cena cria zonas de comunicação com o espectador. E temos um treinamento técnico, de ações físicas, de partituras de ações, com o objetivo de ligar, de materializar no corpo as imagens através dos recursos pessoais de cada ator, o que às vezes chamo de dança pessoal, às vezes de “o que você aprendeu com a Pina”. Ainda estou pesquisando, criei uma sequência de aquecimento a partir da consciência e percepção corporal dos ossos, com elementos da dança contemporânea, e movimentos que, para mim, recriam a ideia de evolução da espécie: baixo, médio e alto e que procuro aliar à ideia de schèmes de G. Durand, ou seja, uma busca por uma integração, pela corporeidade. E embora seja nomeado treinamento é um descondicionamento, uma forma de escutar o próprio corpo, de tornar conhecido os seus próprios limites, seu próprio ritmo e uma expressão própria através do movimento.
Passageiros de ônibus na Praça Fernando Costa. Foto por Danilo Dantas FAGULHAS | 47
Fagulhas em frestas Carpintaria em teatro e espaço [Tessitura do relato: Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges]
Espaços vistos. Não vistos. Histórias entrelaçadas. Paradas presentes. Tempo, Contemplação e devaneio. Imaginação estática. Olhos, Cheiro do ralo. Afinidades e Repulsas. O homem olha para o Homem. Pressentem-se. Não se imagina. “Preconcentualiza-se”. Digere, O que sobra, Do sonho, Guardado a sete chaves, No âmago de sua história. Preciosidade, Que descontrói. O espaço visto, Sim, agora visto. Pelos livros da memória. O movimento do tempo. Forjados nas raízes da Terra. Em sobrevivência. Se segurando. Sustentando no cerne. Um segundo de sua estória.
Eliana Monteiro do Teatro da Vertigem. Foto por Christiane Forcinito 48 | FAGULHAS
É uma árvore. Um fio condutor. Da luz, Da energia, De tantas vidas submergidas. Aos caos do cotidiano. Que podem ser despertados, Por um sorriso. Ou a simples ação, Da intervenção do artista! (Márcia Nicolau)
Ato 1 – Dentro dos objetivos da carpintaria A Carpintaria em teatro e espaço, realizada em 2012 na região do Terminal Parque Dom Pedro II, no centro antigo da cidade de São Paulo, foi coordenada pelos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima com participação da diretora e pesquisadora teatral Eliana Monteiro (Lili Monteiro). O foco central da carpintaria partiu das ideias do livro Poética do Espaço de Gaston Bachelard, visando investigar dois movimentos de experimentação do espaço: a) Primeiro Movimento – O teatro reinventa o espaço: A arquitetura do ônibus (omnibus: para todos) é ressignificada/reinventada por inúmeros elementos cênicos, como o cenário, a iluminação, a sonoplastia e o figurino. Esses elementos compõem um ambiente, no qual o ônibus não é mais apenas um meio de transporte. Ele é recriado como espaço, passagem em que os atores, seus personagens e o público vivenciam uma realidade outra. O ônibus, lugar para todos, modifica-se e modifica também o sentido primordial da palavra teatro (théa-
tron: lugar onde se vai para ver). b) Segundo Movimento – O espaço reinventa o teatro: A arquitetura do ônibus não é modificada, não há elementos cênicos, porque o espaço – como afirma Laban – não é para ser preenchido, pois ele não é espaço vazio, não é algo que vai ter vida depois que a pessoa se coloca nele. Portanto, coexistimos e convivemos com o espaço. O ônibus, espaço vivo, local usado pelas pessoas para locomoção, reinventa o teatro. Os atores são inseridos numa realidade outra, que não é o palco, não há luzes, cenários elaborados e sonoplastia. Há apenas passageiros, os próprios atores e o ônibus. O limiar entre o real e o imaginário é rompido pela comunhão/cumplicidade entre passageiros e atores (trabalhadores). Esse encontro acontece mediante a palavra proferida pelos atores (trabalhadores), através de suas narrativas. A relação, a reciprocidade, é fundada através da palavra/corpo, que é força motora, capaz de superar a distância e propiciar o encontro verdadeiro entre as pessoas.
Ato 2 – Uma entrevista com Eliana Monteiro Eliana Monteiro, integrante do grupo Teatro da Vertigem, é sem dúvida uma personalidade dotada de sensibilidade, inteligência e simplicidade intensas. O encontro de Lili com os artistas-pesquisadores da Trupe Sinha Zózima abriu, numa fresta, um universo de diálogos sobre teatro e espaço. Uma das primeiras ações, propostas pela diretora, foram caminhadas em torno do Terminal Parque Dom Pedro II, um dos locais de pesquisa da Trupe. Durante inúmeros encontros, o grupo realizou mapeamentos da região. Após várias andanças, era comum que todos os integrantes dos exercícios se sentassem em roda no centro da Praça Fernando Costa para partilhar impressões dos percursos estudados. Podemos acompanhar, a seguir, uma breve entrevista que Eliana Monteiro concedeu para Fagulhas. Fagulhas - Por que você começou a estudar teatro? Eliana Monteiro – Eu tinha um problema muito sério com a fala. Não conseguia falar, não conseguia me expressar, era muito fechada. Entrei no teatro para mudar isso, era muito difícil falar. Em 1994 decidi fazer o curso da Escola Célia Helena, em São Paulo. O diretor Antônio de Araújo foi meu professor e ele fazia todo mundo se expor e, com isso, venci uma batalha muito grande. Eu tinha um sobrinho que também não conseguia falar. Ele estava com dez anos, eu o ajudei a falar uma frase na feira de ciência na escola. Fui com ele na
feira e ele me disse depois de ter conseguido falar: “Nossa, tia, agora eu posso tudo”. Esse foi um marco na minha vida. Com o passar dos anos ou eu conseguia falar ou a vida não valia a pena. O ano de 1995 foi difícil, pois consegui “quebrar” a casca para que entrasse ar. Dentro de mim nasceu algo novo. Foi um ano decisivo para a minha vida. O teatro foi a única forma de mudar a minha forma de ser. Fagulhas - Como você avalia o trabalho realizado com a Trupe Sinhá Zózima? Eliana Monteiro – O projeto da Trupe Sinhá Zózima é audacioso. O dia quando realizamos um aniversário dentro do ônibus, aquilo me alimentou imensamente e quebrou literalmente a bolha. Começou a acontecer inúmeros depoimentos dos passageiros dentro do ônibus. Aquilo virou um encontro de verdade. Eu acho isso político. Isso quebra a bolha. Porque todo mundo quer que as pessoas vivam dentro de um bolha alienadora. E quebramos isso, por isso é político. Estar ao lado deste grupo foi incrível. Eu achei a ideia magnífica. É como se fosse um vírus que foi se espalhando, mas um vírus do bem. Isso faz com que quebremos a sociedade do espetáculo. Penso que a Trupe Sinhá Zózima é muito corajosa. Com vocês, a consciência politica é mais forte. Vocês quebram, com a encenação do Anderson e a dramaturgia do Rudinei, de forma muito poética a sociedade do espetáculo. FAGULHAS | 49
Ato 3 – Um aniversário dentro do ônibus
Era um fim de tarde, de um dia comum, no meio de uma semana de trabalho. O ônibus saía do terminal com seu destino traçado: cruzar a cidade de São Paulo e levar para casa dezenas de trabalhadores após horas de intensa labuta. O cenário era o mesmo: um ônibus lotado. Na face dos passageiros, a expressão era de cansaço, preocupação e ansiedade. Essa é a rotina dos trabalhadores da cidade de São Paulo. Passam mais de duas horas dentro de uma condução durante o deslocamento entre a casa e o trabalho. Naquele dia os artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima, ao lado de Lili Monteiro, embarcaram em um desses trajetos e fizeram dele uma verdadeira festa. O exercício proposto era comemorar um aniversário dentro do ônibus e sentir a reação imediata dos passageiros. A música era conhecida de todos: “Parabéns para você”. Imediatamente todos pararam para observar o que estava acontecendo. Uns estranharam, mas aos poucos
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foram se entregando ao convite e sem perceber já faziam parte daquela comemoração em que todos eram os parabenizados. A festa foi ganhando um sentido maior, pois espontaneamente abria-se uma roda de histórias. Cada passageiro trazia em cena suas memórias, suas histórias e acontecimentos. Falava-se de surpresas em cada aniversário já vivido. O tempo de duração da viagem passou muito mais rápido do que nos outros dias, considerados normais. Em cada parada, havia um gesto de despedida, como se – por razão de um aniversário – todos se transformassem em uma grande família. Palavras que geralmente não são muito usuais, como “Boa noite”, “Até Amanhã” e “Bom descanso” naquele dia foram frequentes aos passageiros que chegavam ao seu destino. A expressão facial, ao fim da viagem, era de alegria, sorrisos estampados e um ar de comunhão.
Fagulhas em ciranda Carpintaria em cultura popular, dança e cantoria [Tessitura do relato: Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges]
Minha ciranda não é minha só Ela é de todos nós A melodia principal quem Guia é a primeira voz Pra se dançar ciranda Juntamos mão com mão Formando uma roda Cantando uma canção (Lia de Itamaracá) A musicista Roberta Forte. Foto por Danilo Dantas
Ato 1 – Quando a Trupe Sinhá Zózima chegou à Praça Fernando Costa A escolha do local para a Carpintaria em cultura popular, dança e cantoria, coordenada pela Trupe Sinhá Zózima, com participação da musicista e pesquisadora Roberta Forte, partiu de uma proposta de buscar um espaço público que pudesse exercer o seu real significado: agregar pessoas com a promoção de ações artísticas. A carpintaria foi realizada entre setembro e outubro de 2013. Seguindo essa linha de pensamento, a Praça Fernando Costa foi o palco desses encontros de vida e de histórias orais e passou a ganhar um brilho especial, cores e sons. Localizada ao lado do Terminal Parque Dom Pedro II, um dos principais terminais de ônibus na região central da cidade. Em horário de pico, a praça é uma das principais passagens dos trabalhadores do centro da ci-
dade que utilizam o terminal como a ponte de locomoção entre a casa e o trabalho. Em uma descrição imediata, observa-se um espaço aberto tomado pelo povo, como um grande formigueiro humano. Neste espaço, concentram-se os vendedores ambulantes que comercializam todos os tipos de produtos; os moradores de ruas: muitos circulam em busca de pequenas doações para sua pobre sobrevivência; pessoas que vão e vêm na luta pela dignidade da vida na grande metrópole. Hoje, esse é o perfil da Praça Fernando Costa que outrora era espaço de descanso, encontros e passeio pelas margens do rio Tamanduateí, límpido, abundante em peixes e uma beleza natural extraordinária, típicas da época do império. Ao seu lado se localiza o Pátio do ColéFAGULHAS | 51
gio, a Catedral da Sé, o marco zero da cidade e o Mercado Municipal, principal distribuidor de produtos alimentícios. Mu itos dos elementos permanecem inalterados, como o centro de distribuição de alimentos, os marcos culturais, que vão ganhando cada vez mais destaque como ponto turístico do centro, mas a praça é apenas um ponto de passagem. Sentar-se no local e apreciar a paisagem é quase impossível pelo sentimento de insegurança. Sair do estereótipo que se estabeleceu de ser apenas um ponto de passagem para retomar seu real valor foi um grande desafio que os pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima encon-
traram. Desafio que foi ganhando destaque a cada semana, a cada novo encontro deste grupo de jovens artistas que visam promover arte com o povo. Nos primeiros encontros, a curiosidade das pessoas era imensa. A pergunta que ficava no ar era sempre a mesma: “O que estes jovens estão fazendo na praça? A resposta era imediata: Loucos. Uma loucura que se tornava mais valiosa a cada dia. Em um segundo momento, os jovens sentados em roda no meio da praça passaram a chamar a atenção. Os olhares espichavam para saber o que estava acontecendo. E o contato foi sendo estabelecido em cada um dos encontros.
Ato 2 – O povo vem para a carpintaria ao som da alfaia
Experiências vividas e compartilhadas! Que ganham força na dramaturgia; Encenação e expressão do povo; Para o povo! O coro forte brada a luta do homem Simples e trabalhador Que lutou pela sua classe Buscou seus direitos e deveres a serem exercidos! Santo Dias da Silva transformou-se Em símbolo de esperança da classe oprimida Obra de arte no coração da praça que se transformou em festa da cantoria (Márcia Nicolau) Carpintaria em Teatro e Imaginário. Foto por Danilo Dantas
A alfaia chama a atenção dos trabalhadores que passam. As vozes uníssonas ecoam e uma roda começa a se formar. O canto é simples e aos poucos agrega novas vozes, como uma oração em louvor à vida. Um coro de diferentes tons de vozes invade o espaço público, a praça, que por instantes retoma a sua função real: agregar as pessoas em prol da arte. Cotidianamente, o local é habitado por andarilhos que vivem no centro da cidade, vendedores ambulantes que comercializam os mais variados tipos de produtos, que vão desde o café preto, a média e o pão com manteiga até os prazeres carnais. Cada um com suas batalhas e 52 | FAGULHAS
histórias: o locutor frustrado e entregue, a garçonete que adora atender seus clientes e doar a eles um simples sorriso. A menina sonhadora que veio lá da região nordeste do país e conheceu de perto o dissabor das enchentes, mas que não perde o brilho da esperança de prosperar na cidade grande e retornar para casa com mais histórias e mais experiências para contar. A inspiração vem de outro herói anônimo que trilhou sua batalha pelos direitos dos trabalhadores, dos oprimidos, dos sonhadores que vieram para essa cidade em busca de melhores condições de vida e a conquistas dos seus desejos: Santo Dias da Silva.
Ato 3 – Uma conversa com Roberta Forte A relação de Roberta Forte e o canto popular vem de longa data. Formada em Educação Artística – Licenciatura Plena em Música pela Faculdade de Artes Alcântara Machado (FAAM). Estudou canto popular com Thelma Chan e erudito com Mariucha Lorenção, violão erudito com o maestro Enzo Bertolini e popular com Renata Montanari e Laura Campanér. A experiência adquirida junto aos trabalhadores com os artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima deixou Roberta entusiasmada. Por mais que sua experiência fosse vasta, ela afirma que foi extremamente rico os encontros a cada semana: “Os encontros foram uma caixa de surpresas. Não tínhamos uma noção exata de como se desenvolveria o processo de trabalho pelo fato de não termos um público definido. Eu sabia que seriam duas experiências muito distintas: trabalhar o canto com os artistas-pesquisadores, que já possuem uma bagagem pela formação em artes cênicas; de outro lado trabalhamos com pessoas que só nutriam o desejo de um dia se envolver com a arte de uma forma mais plena. E foi exatamente nesse ponto que pudemos apreciar a riqueza desse material humano que poderia ser lapidado”. A seguir podemos acompanhar a entrevista que Roberta Forte concedeu para Fagulhas. Conte-nos sobre a sua experiência pessoal com a música. Como a música surgiu em sua vida e como foi o deu desenvolvimento profissional? Roberta – A música em minha vida surgiu muito cedo, aliás, não lembro de minha existência sem a música. Quando era pequena, minha avó e minhas tias avós maternas adoravam música e todas tocavam algum instrumento. Todos os domingos havia o tradicional almoço em família, dia em que vinham todos os tios, primo e avós. Eram muitos, e muitas crianças também; por isso, quando chovia ou fazíamos muito barulho, as avós nos chamavam para cantar. Nesta época, aprendi muitas músicas que ainda canto e ensino para meus alunos. Ainda pequena quis aprender um instrumento, fui então aprender piano com a irmã do meu pai, mas a falta do instrumento em casa me fez desistir e optar pelo violão. Minha mãe tocava violão, minha avó tocava piano, meu pai gostava de brincar de João Gilberto e cantava baixinho. Na adolescência adorávamos fazer “violadas”, a gente reunia os amigos ou ia à festa de amigos dos amigos, pegava o violão e começava a cantar. Começamos a fazer arranjos, abrir vozes, as pessoas começaram a gostar e nos contratar para festas, bares, hotéis, e assim foi.
Como foi optar profissionalmente pela música? Roberta – Nunca pensei em fazer outra coisa na vida, mas minha mãe não me apoiou na decisão de fazer uma faculdade de música, também se recusou a pagar meus estudos de instrumentos. Nesta época eu me interessava por todos. Foi então que comecei a dar aulas de violão em escolas livre de música, gostava de ensinar. Aos poucos comecei a dar aulas em casa para pagar meus cursos de música, minhas roupas, minhas viagens. A pedido de minha mãe comecei a estudar Arquitetura na Faculdade de Belas Artes. Paralelamente, comecei a cursar canto popular na Universidade Livre de Música Tom Jobim (Atual EMESP). Éramos a primeira turma, o curso era gratuito. Fiquei sem trabalhar um tempo, mas continuei meus estudos de música. No último semestre de Arquitetura, estava me formando no Curso de canto popular, então, larguei a Arquitetura e fui viver de música. Ingressei, então, na Faculdade de Música, cursando licenciatura plena. Nesta época, eu já tinha um filho, resolvi então cair para o lado da educação, que me daria mais tempo com o Gabi e mais dinheiro também (se vocês acham que professor ganha mal, músico nesse país então, nem fale). Então, fiz alguns cursos sobre musicalização infantil e comecei a me especializar na área. Foi quando fui trabalhar na AUÊ Musical – escola de música do André Hosoi, Fernando Barba (Barbatuques e Marcos Azambuja). Por que você resolveu realizar pesquisa em música popular? Roberta – Meu primeiro contato com uma manifestação popular foi a capoeira, onde, além da tradicional roda de capoeira, dançávamos também samba de roda, maculelê, entre outras danças populares do Brasil. Comecei a pesquisar sobre o tema, primeiro a questão da rítmica e da corporeidade da capoeira, o quanto a música influenciava os movimentos e vice-versa. Escrevi meu primeiro trabalho de iniciação científica com esse tema e comecei me apaixonar pelo assunto: música e movimento. Foi quando o Barba me convidou para participar de um grupo de música corporal (Barbatuques). Quando os conheci, eles ainda não haviam gravado o primeiro disco, o Barba ainda estava fazendo algumas pesquisas sobre os ritmos Brasileiros, eu fui atrás. Então eles começaram a gravar o CD e surgiu a Daise (preparadora corporal do grupo) Ela é especialista em danças folclóricas e manifestações populares do Brasil. Me ensinou muita coisa. Comecei a fazer pesquisas próprias FAGULHAS | 53
e a perceber que o contexto era marcado pela questão social, diretamente ligado à identidade cultural, que os folguedos e as manifestações deste tipo devem ser respeitadas em sua essência e princípios, pois atrás dos foliões e preservadores dessas manifestações há história e tradição de uma comunidade inteira, que muitas vezes fazem dessas festas uma maneira de sobreviver. Há muitas questões envolvidas, e muitas razões para eu gostar desse tema, porém a mais forte delas ficou clara para mim quando assisti a uma palestra de Edgar Morin. Nesta palestra ele afirmou que “... o homem é o único ser vivo que depende da cultura para sobreviver, pois precisa saber de onde veio e como caminha, depende de saber sobre suas origens, pois elas definirão seus hábitos e sua maneira de se relacionar com o mundo”. Não foram bem estas as palavras, mas foi o que absorvi.
Conte-nos sobre a sua pesquisa com a Trupe Sinhá Zózima.
Roberta – Meu primeiro contato com a Trupe, ela ainda não existia, os atores ainda estavam completando o curso de formação na Fundação das Artes de São Caetano do Sul quando fui chamada para a direção musical da peça “Capeta em Caruarú”. Lembro-me de ter adorado a maneira como eles se apropriaram das coisas que ensinei e da maneira que as transformaram. Quando montaram a Trupe, eles me procuraram para a direção musical da peça “Cordel do amor sem fim”. Foi maravilhoso ver o crescimento deste povo, que chegaram ainda com o sotaque e trejeito de Caruarú, mas quando começaram a olhar para o texto como uma moda de viola, a pesquisa virou outra. O que quero dizer é que os atores da Trupe, assim como o diretor, o Anderson, são abertos para receberem novas informações, são sempre dedicados e concentrados no trabalho, e o resultado é sempre uma surpresa. Acho que os temas escolhidos são sempre um desafio, porém de forte humanismo, e essa proximidade e facilitação do teatro com a população é o que movimenta o grupo.
Ato 4 – Serão: Cultura popular e memórias de Santo Dias da Silva Para encerrar a Carpintaria em cultura popular, dança e cantoria, os artistas pesquisadores realizaram um manifesto junto com os participantes dos encontros em memória de um trabalhador que lutou e morreu pela dignidade humana. Após algumas pesquisas, chegou-se ao nome do operário Santo Dias da Silva, assassinado por defender a causa trabalhadora. Para conhecer a luta e pensamento de Santo, Anderson Maurício, diretor da Trupe Sinhá Zózima, e Rudinei Borges, dramaturgo, realizaram uma roda de conversa sobre este importante operário. O diálogo retratou a história de um homem simples, devoto, que sempre defendeu as causas da classe trabalhadora. Santo Dias viveu na cidade de São Paulo, na década de 1970, e foi um operário de fábricas que estavam no auge e em pleno desenvolvimento do movimento sindical. Assim como a vida de muitos homens comuns que trabalhavam e sustentavam suas famílias, Santo Dias era um homem que defendia os diretos dos seus companheiros e buscava melhorias para as suas condições de trabalho. E foi exatamente essa batalha que o evidenciou como um líder diante da sua causa. Sua luta também foi o motivo que ele permanece na memória de seus amigos e companheiros. Santo Dias perdeu a vida em frente a uma fábrica, defendendo os diretos de seu povo. Trata-se de um herói anônimo, um homem religioso, pai de família, que perdeu a vida por defender sua casa, dar voz às suas inquietações, buscar melhorias para 54 | FAGULHAS
o seu grupo social. “Um herói que se perde na história, um homem que se tornou um marco por sua luta e pelos seus ideais. Até hoje um grupo de amigos visita a porta da fábrica e o cemitério onde ele está enterrado para lhe prestar homenagens. Esse é um herói que não está estampado nas páginas dos jornais, mas que vive na memória de muitos trabalhadores que visam melhores condições de vida na capital. Uma bandeira branca estampava a foto de Santo Dias da Silva – um lutador anônimo, mas que deixou traços marcantes na memória de seu povo pelas suas ações e atitudes pelos direitos dos trabalhadores. O ato aconteceu no dia 31 de outubro nas ruas do Centro da cidade de São Paulo. Os artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima saíram em marcha tocando e cantando chamando a atenção dos trabalhadores que circulam pelas ruas do centro e que se unem no Terminal Parque Don Pedro II – um dos principais terminais urbanos que rumam para os bairros afastados da capital.
A atriz Priscila Reis no Serรฃo, manifesto em memรณria do operรกrio Santo Dias da Silva. Outubro de 2012. Foto por Danilo Dantas.
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Serão Santo Dias da Silva e o nosso teatro-labuta [Texto de Rudinei Borges especialmente para a Trupe Sinhá Zózima]
Serão, manifesto em memória do operário Santo Dias da Silva. Outubro de 2012. Foto por Danilo Dantas.
Considerado o trabalho extra noturno, o serão (palavra pouco conhecida) carrega no bojo de seu significado profundo, memórias da árdua labuta do ser humano: desde o trabalho escravo aos operários; desde o labor de um artesão que fica horas da noite tecendo rendas a um trabalhador de uma grande metrópole. A Trupe Sinhá Zózima assumiu, no dia 31 de outubro de 2012, o compromisso com um serão metafórico, pois buscou reaver, sobretudo, a lida diária dos trabalhadores que utilizam ônibus que partem do Terminal Parque Dom Pedro II e da Praça Fernando Costa, no centro da cidade de São Paulo. O manifesto cênico realizado, às 17h, na Praça 56 | FAGULHAS
Fernando Costa, fez memória de um trabalhador que lutou com toda força e coragem pela dignidade humana. Santo Dias da Silva foi um operário, líder comunitário e do movimento sindical de São Paulo, assassinado no dia 30 de outubro de 1979 em uma manifestação na frente da fábrica Sylvânia. È preciso dizer-destacar: Santo foi morto pela polícia que agia sob o comando da Ditadura Militar brasileira. Foram tempos difíceis. O Serão da Trupe Sinhá Zózima teve início no Pátio do Colégio, partiu por ladeiras e ruas, até adentrar o Terminal Parque Dom Pedro II em um cortejo movimentado por danças e cantorias tecida numa oficina que o grupo realizou nos meses de setembro e outubro.
assim vos digo da labuta: a(r)mar o corpo dia a dia como o vento arma a ventania e se põe no mundo pelos cantos/frestas/olhos a(r)mar o corpo é colocar-se no caminho como a pedra se coloca mesmo pisada por pés vários-tantos a pedra se verte em resiliência e luta para ser pedra mesmo gasta pelas horas de calor e frio CORO: labutar é para quem acredita labutar é para quem peleja labutar é para quem se anuvia da força das tardes labutar é trabalhar no campo na cidade na fábrica na rua na feira na eira das coisas labutar é carecer de sonho mas sonho não se carece sonho vem mesmo que não queiramos sonho se coloca na mente no peito e faz a vida pulsar
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CORO: labutar é para quem acredita labutar é para quem peleja labutar é para quem se anuvia da força das tardes labutar é tomar com valentia toda vida que já lutou
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Zumbi dos Palmares CORO: lutador Chico Mendes CORO: lutador Irmã Doroth Stang CORO: lutadora Josimo Tavares CORO: lutador Chicão Xucuru CORO: lutador
Dorcelina Folador CORO: lutadora Vladimir Herzog CORO: lutador Edson Luís de Lima Souto CORO: lutador Santo Dias da Silva CORO: lutador Santo Dias da Silva labutador trabalhador sonhador de noite e de dia homem-pássaro que nos faz continuar CORO na labuta no teatro na cidade no ônibus nas terras no mundão Santo Dias da Silva operário líder sindical homem de comunidade homem-pássaro que nos faz continuar
Serão, manifesto em memória do operário Santo Dias da Silva. Outubro de 2012. Foto por Danilo Dantas.
CORO neste teatro sem paredes neste teatro sem grades neste teatro sem tetos neste teatro sem chaves neste teatro-liberdade neste teatro-vento neste teatro-utopia neste teatro-labuta LABUTAR SEMPRE ONTEM AGORA AMANHÃ TODA HORA É AURORA TODA HORA O SOL ACOCORA MESMO NA ESCURIDÃO
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As atrizes Alessandra Della Santa e Maria de Alencar em intervenção cênica coordenada por Eliana Monteiro do Teatro da Vertigem. Foto por Christiane Forcinito.
Fagulhas em relampeio Carpintaria em história oral [Tessitura do relato: Alex Maurício, Márcia Nicolau e Rudinei Borges]
A história de vida de uma pessoa é a narrativa que ela constitui sobre si mesma. Esta narrativa baseia-se nas premissas de mundo e nas experiências por ela vividas. Essas experiências, as mais significativas, vão constituindo o conjunto de marcos que forma a memória de cada um de nós. A Carpintaria em história oral, realizada pela Trupe Sinhá Zózima e coordenada pelo NEHO (Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo), partiu da aposta biopolítica de reapropriação, pelos sujeitos sociais, da legitimidade do poder de criar e refletir sobre a criação de sua própria vida. A partir de círculos de conversação, foram analisados conceitos e métodos para ouvir e registrar narrativas de vida de trabalhadores/pas-
sageiros de ônibus e dos próprios artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima. É interessante notar que esta carpintaria foi imprescindível para que, durante a execução do projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho: residência artística por um teatro do encontro sem fronteiras”, a Trupe Sinhá Zózima tenha organizado o processo de criação da peça “Dentro é lugar longe”, com dramaturgia de Rudinei Borges e encenação de Anderson Maurício. A peça foi encenada em abril e maio de 2013 em um ônibus em movimento que partia Terminal Parque Dom Pedro II e adentrava ruas do centro antigo de São Paulo até o bairro da Luz.
CENA DO COMEÇO: a Trupe Sinhá Zózima e o NEHO em uma mesma mesa Uma vida é vida por si só Pelo encanto suave do ar respirado Uma vida é vida por si só Pelo desenvolvimento constante De forma simples e natural O homem anda e corre Mantem-se em pé Diante dos conflitos de uma geração Uma vida é vida por si só Quando de si emana sentimentos Amor, raiva, desejo e dor Linguagem comum a todos Sentido por todos Vivenciados nas suas mais diferentes formas 60 | FAGULHAS
Completamente única De humano a humano que se comunica que troca experiência que compartilha de sonhos e ideais Uma vida é vida por si só Pois é existente Que possui um enredo particular Uma história a contar Um fato Inusitado Uma expressão viva Da arte! (Márcia Nicolau)
Em uma mesa redonda estão as pesquisadoras do NEHO (Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo), Suzana Ribeiro, Marcela Boni e Andrea Paula ao lado dos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima e artistas convidados do Núcleo Macabéa que interagiram em uma grande roda de histórias. As pesquisadoras do núcleo expuseram as principais características do trabalho em história oral: entrevistas, transcrição, textualização e transcriação. Contando dessa forma, parece ser algo extremamente complicado, mas que ganha uma “simplicidade” quando se chega no elemento humano que existe por traz de cada história que as pessoas passam a contar . Os jovens se encantam com a força que as pesquisadoras trazem em sua fala abordando a importância da história oral e como essa coleta de dados e informações podem abrir os olhos da sociedade para um novo olhar diante de temas sociais em constante debate. O ponto de ligação entre os fatos são os sentimentos comuns que afloram no outro uma sensibilização e ai entra em cena as
novas de dialogar com as pessoas. Os artistas-pesquisadores foram se deixando levar pelas experiências vivenciadas pelas pesquisadoras do NEHO e começaram a também dialogar com as experiências vivenciadas no cotidiano. Uma troca de conhecimentos e saberes que foram se transformando em enredos, como o cotidiano dos trabalhadores que transitam e trabalham na região do Terminal Parque Dom Pedro II; também dos moradores de rua e dos vendedores ambulantes: um vasto campo de histórias que circulam de um lado para o outro, uma rede viva de fatos e histórias que se cruzam em elementos comuns, que se dividem em grupos que possuem um ponto de convergência que os ligam, seja uma ideia, religião, origem, trabalho; nesse exato ponto entra um diálogo, a interligação de dois pontos nessa rede. E quando todos se observaram naquela mesa de diálogo, logo perceberam que naquele exato local, se abriu uma infinita rede de histórias compartilhadas, que ali se convergiam.
CENA DE CANTO: alguma proposição A conversa entre a arte e a história oral rendeu novas reflexões para ambos os lados. De um lado, a arte busca nas histórias reais, no andar do povo e suas realidades ao redor, o compasso exato para dar vida à encenação. Do outro lado, as pesquisadoras do Núcleo de
Estudos de Histórias Orais (NEHO) observaram nesse diálogo a possibilidade de difundir os conceitos e estudos pesquisados por meio de uma linguagem que se aproxima mais do público em geral, saindo apenas das teorias acadêmicas.
ENTREATOS: histórias do Núcleo de Estudo em História Oral da Universidade de São Paulo O Núcleo de Estudo em História Oral da Universidade de São Paulo é resultado de duas experiências combinadas: uma pedagógica e outra de trabalho em oralidade em suas múltiplas formas. Tudo começou em 1991 quando pela primeira vez o professor José Carlos Sebe Bom Meihy ministrou um curso de história oral em nível de graduação. O entusiasmo de alguns alunos participantes propôs continuidades que se multiplicaram em pesquisas. Desdobramentos naturais de tais investidas fizeram com que fossem organizados grupos de estudos que sempre agregaram alunos e demais interessados atentos aos trabalhos em fontes orais. A formação do núcleo remonta ao início da década de 1990. Ele originou-se das atividades de pesquisa do projeto Kaiowá, coordenado pelo Prof. José Carlos Sebe Bom Meihy, que buscou entender as circunstâncias por trás dos suicídios de jovens índios kaiowás de uma reserva em Dourados, Mato Grosso do Sul. Para tanto, o Prof. Meihy e uma equipe de estudantes realizaram entrevistas de história de vida. O trabalho de campo do projeto
Kaiowá possibilitou um convívio acadêmico frutífero. Em pouco tempo, nasceu a vontade de manter as atividades do grupo para além do projeto, ampliando-as ao estudo de novos temas no campo de história oral. De tal período até os dias de hoje, o núcleo percorreu um longo caminho até institucionalização, sem perder o vínculo original com prática de pesquisa coletiva. Sendo que as reflexões teóricas acontecem a partir de problemas colocados no decorrer da pesquisa, o grupo retira sua força deste contato com o cotidiano dos trabalhos. O vínculo com a prática é imprescindível ao conceito de projeto coletivo no qual está fundado o NEHO.
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CENA PARA NÃO ESQUECER: outras azinhagas O encontro entre os artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima com as pesquisadoras do NEHO abriu uma nova porta tanto para a disseminação das histórias orais como também abriu caminhos para a criação teatral deste grupo de teatro. Desse encontro nasceu a ideia de captar também histórias de trabalhadores que utilizam o Terminal Parque Don Pedro II e compartilhar
novas histórias de vidas que serão levadas para o palco. O encontro também trouxe a oportunidade de cada artista-pesquisador do grupo de se observar também como protagonista de suas próprias histórias também desenhando os passos de uma nova peça teatral: “Dentro é lugar longe”.
Carpintaria em História oral com o NEHO. Foto por Christhiane Forcinito. 62 | FAGULHAS
Os atores Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria de Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza. O diretor Anderson Maurício e o dramaturgo Rudinei Borges. Foto por Christiane Forcinito.
Fagulhas em e.s.t.i.r.a.d.a Processo de criação da peça Dentro é lugar longe [Rudinei Borges]
A palavra Estirada não é o termo mais bonito da língua portuguesa, todavia é vestida dum significado poético-sagaz que nem todas as palavras possuem. Estirada significa caminhada longa ou distância longa. É exatamente neste sentido de caminhada que este termo alcança vazões singulares, ou seja, quando pensamos na composição de um projeto de dramaturgia e encenação inéditas que se alicerçam na história-caminhada de vida de artistas, trabalhadores de teatro da Trupe Sinhá Zózima. A caminhada longa que dá significado ao termo Estirada está, outrossim, relacionada à caminhada longa da vida de todo ser humano, de todo artista e de todo trabalhador. A envergadura desta inquietação consiste, sobretudo, no desejo de adentrar, com olhos vívidos, a seara da própria existência. Não com intuito egoísta de desvelar a história de vida para mostrá-la a outros como a mais relevante, porque toda história de vida é - em sua singularidade – importante. Somos compositores, mediatizados pelo mundo, de trajetos de vida os mais imprevisíveis. E acreditamos que na tessitura dos trajetos e em sua longevidade encontramos o material profícuo para a criação do quarto espetáculo teatral da Trupe Sinhá Zózima, grupo brasileiro de teatro que há cinco anos desenvolve pesquisa cênica
continuada na cidade de São Paulo. O presente projeto resulta deste itinerário de investigação que tem em seu cerne o ônibus como espaço de criação e ressignificação poético-política da grande metrópole. Assim, abrimos portas e janelas para desenhar na controversa paisagem urbana minuciosos movimentos cênicos centrados na história oral, na história de vida de sete artistas, trabalhadores de teatro: homens e mulheres advindos de regiões diferentes do Brasil que se encontram na região metropolitana da cidade de São Paulo para, sol a sol, tecerem a teia árdua da carpintaria teatral. A Trupe Sinhá Zózima contou, neste processo de criação de dramaturgia e encenação inéditas que deu origem à peça “Dentro é lugar longe”, com narrativas de vida de Alessandra Della Santa (atriz), Anderson Maurício (diretor de teatro e ator), Junior Docini (ator), Maria Alencar (atriz), Priscila Reis (ator), Rudinei Borges (dramaturgo) e Tatiane Lustoza (atriz). O projeto contou com a dramaturgia de Rudinei Borges e a direção de Anderson Maurício. Nas próximas páginas acompanharemos as perspectivas que nortearam este projeto: objetivos, justificativa, hipóteses, metodologia, corpus documental e cronograma.
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Ato 1- Objetivos Objetivo geral Composição de dramaturgia e encenação do espetáculo “Dentro é lugar longe” a partir de histórias de vida de artistas-pesquisadores, trabalhadores de teatro da Trupe Sinhá Zózima, mediante metodologia da História Oral.
histórias de vida quando estas são contadas aos seus companheiros de trabalho e lida artística? d) As histórias de vida de artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima compõem material profícuo para a criação cênica? e) A narrativa das histórias de vida dos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá configura um ato político-poético de resistência à história oficial?
Objetivos específicos - Realização de estudo profícuo de conceitos, categorias e métodos da História Oral, a partir de carpintaria com historiadoras do Núcleo de estudo em História Oral (NEHO) da Universidade de São Paulo; - Realização de entrevistas a partir de método proposto pelo NEHO (entrevista, transcrição, textualização e transcriação) que tenham como rede os artistaspesquisadores da Trupe Sinhá Zózima; - Realização de processos criativos que visem propiciar espaços de composição poética a partir de narrativas de vida dos artistas-pesquisadores, trabalhadores de teatro da Trupe Sinhá Zózima; - Realização de investigação do ônibus como espaço de apresentação de histórias de vida e composição do espetáculo “Dentro é lugar longe”; - Realização de investigação do corpo como manifestação da memória; - Composição de partituras corporais a partir de narrativas de vida; - Composição de dramaturgia inédita; - Composição de encenação inédita. - Apresentação do espetáculo “Dentro é lugar longe”.
Ato 2 - Hipóteses Expostos os objetivos, enumeramos algumas hipóteses que nos surgem, devendo ser exploradas no desenvolvimento deste projeto, sendo elas: a) O teatro pode tomar como base o projeto metodológico da História em vista da composição cênica? b) É realmente possível a composição de um projeto artístico a partir da proposição de entrevista coletiva? c) Os artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima se reapropriarão de suas
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Ato 3 - Corpus documental Selecionamos os seguintes meios de documentação para a realização deste projeto de composição de dramaturgia e encenação a partir de histórias de vida de artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima: a) b) c) d) e) f)
Gravação em áudio; Gravação em áudio e vídeo; Fotografia; Texto - Transcrição de entrevistas; Texto - Textualização de entrevistas; Texto - Transcriação de entrevistas.
Ato 4 - Metodologia Uma vez que este projeto de História Oral é realizado por artistas-pesquisadores de teatro, possui características outras, diferindo-se de um projeto de História Oral realizado por outras áreas das Ciências Humanas, como a História, por exemplo, pois tem em seu bojo, entre outros propósitos, a criação cênica. Assim, elaboramos etapas que concernem em um cronograma de metodologias do projeto proposto, a saber: PRIMEIRA ETAPA - Realização de Carpintaria em História Oral com pesquisadoras do NEHO; SEGUNDA ETAPA – Apresentação e discussão de proposta de criação dramatúrgica e cênica a partir histórias de vida de artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima; TERCEIRA ETAPA – Elaboração de projeto individual em vista de um projeto coletivo de composição de dramaturgia e encenação a partir de histórias de vida de artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima; QUARTA ETAPA – Elaboração de projeto coletivo de composição de dramaturgia e encenação a partir de histórias de vida de artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima; QUINTA ETAPA – Realização de encontro com
Cenário do espetáculo Dentro é lugar longe. Foto por Chrithiane Forcinito. FAGULHAS | 65
duração de 24h para entrevista-partilha com artistas pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima; SEXTA ETAPA – Realização de transcrição de entrevistas; SÉTIMA ETAPA – Realização de textualização a partir de entrevistas; OITAVA ETAPA – Realização de transcriação a partir de entrevistas; NONA ETAPA – Criação de dramaturgia a partir de transcriações; DÉCIMA ETAPA – Processo de criação e ensaios da encenação; DÉCIMA PRIMEIRA ETAPA – Apresentação de espetáculo teatro a partir de histórias de vida de artistaspesquisadores da Trupe Sinhá Zózima.
Ato 5 - Propostas para a quinta etapa A proposta de metodologia da QUINTA ETAPA parte da ideia do dia-vida como uma grande Estirada em que são compartilhados ofícios do trabalho árduo do artista de teatro. Sete artistas-pesquisadores partilharão suas narrativas de vida a partir de questões elaboradas por eles próprios em um encontro que durará 24h seguidas. Este encontro contará com um mediador, o diretor de teatro Anderson Maurício. Com um dramaturgo, Rudinei Borges. Com os atores: Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza. Com uma documentarista de audiovisual: Luciana Ramin. Dois fotógrafos: Christiane Forcinito e Danilo Dantas. E com dois redatores: Alex Maurício e Daniel Rodrigues. A) OFÍCIOS Neste sentido, elencamos momentos do dia que receberão significados outros a partir das histórias de vida dos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima. Estes ofícios são: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.
Ofício da Alvorada (5h às 8h); Ofício da manhã (8h às 11h); Oficio do meio dia (11h às 14h); Ofício da tarde (14h às 17h); Ofício do entardecer (17h às 20h); Ofício da noite (20h às 23h); Ofício da meia noite (23h às 2h); Ofício da madrugada (2h às 5h).
B)ESPAÇOS Todos os ofícios, partes do dia, são celebrados em espaços reais/imaginários que têm como referência 66 | FAGULHAS
a casa, grande morada do ser humano – aqui partimos de proposições do livro Poética do espaço de Gaston Bachelard. Os espaços são: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.
Sótão - Ofício da Alvorada; Quintal - Ofício da manhã; Cozinha - Oficio do meio dia; Rua - Ofício da tarde; Sala - Ofício do entardecer; Quarto - Ofício da noite; Cabana - Ofício da meia noite; Porão - Ofício da madrugada.
C) RITOS DE PASSAGEM DOS OFÍCIOS Cada artista-pesquisador terá a função de abrir passagens para estes ofícios, sendo uma espécie de porteiro que ritualiza o momento inicial da entrevista-partilha. Organizamos do seguinte modo: 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.
Sótão: Alessandra Della Santa; Quintal: Junior Docini; Cozinha: Tatiane Lustoza; Rua: Anderson Maurício; Sala: Anderson Maurício; Quarto: Priscila Reis; Cabana: Maria Alencar; Porão: Rudinei Borges.
D) PROCEDIMENTOS Para esta QUINTA ETAPA, elegemos procedimentos que norteiam as ações das 24h de entrevista-partilha. 1. O colaborador será entrevistado por seis entrevistadores; 2. O colaborador também será um entrevistador; 3. As entrevistas serão feitas em uma casa distante desconhecida por todos; 4. As entrevistas terão um período de 24h; 5. Será levada em conta momentos de passagens do dia, que aqui denominamos “ofícios”; 6. As perguntas das entrevistas partem da significação e ressignificação destes “ofícios”; 7. Cada período terá ações e alimentação inspirada no espaço e nos “ofícios”;
O motorista Wharley Frazão na pré estreia do espetáculo Dentro é lugar longe. Foto por Christhiane Forcinito FAGULHAS | 67
8. Teremos um mediador que fará as transições entre uma entrevista e outra, entre um ofício e outro – para que haja um fluxo continuo de perguntas, respostas e experiências; 9. Busca-se a interação entre entrevistador e colaborador; 10. Busca-se interação com o espaço e com a atmosfera dos ofícios (manhã, tarde, noite, madrugada etc); 11. Cada “ofício” será norteado por duas perguntas-chave; 12. Haverá um tempo aproximado de 20 minutos por entrevista em cada “ofício”; 13. Questões referentes ao tempo serão coordenadas pelo mediador em diálogo com todos os artistas-pesquisadores; 14. Poemas de autores brasileiros serão referências para o início de novos “ofícios”; 15. Cada colaborador terá uma mala, onde carregará pertences que representam a sua história de vida; 16. Pede-se que estes pertences sejam selecionados a partir de uma relação com os cinco sentidos: tato, paladar, visão, olfato e audição; 17. Estes pertences (objetos) poderão compor respostas às questões das entrevistas; 18. A mala é uma materialização da memória, pode guardar elementos que representam ou lembram lugares onde as pessoas passaram ou viveram. E) AÇÕES Os artistas-pesquisadores também organizaram uma sequência de ações que contribuem com a realização das entrevistas em cada “ofício”, a saber: 1. Ofício da Alvorada Celebrar o amanhecer com a música Alvorada de Cartola; Andar descalço; Poemas; Ação final: criação de arte com argila. 2. Ofício da Manhã Café da manhã no quintal; Estender toalha no chão ou grama; Preparar suco de laranja natural; Partilhar em roda.
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3. Ofício do Meio dia Cozinhar; Ouvir musica. 4. Ofício da Tarde Caminha na rua; Jogos com bola. 5. Ofício do Entardecer Jogar uno. 6. Ofício da Noite Ficar em silêncio. 7. Ofício da Meia noite Celebrar o breu com lanternas; Cantigas. 8. Ofício da Madrugada Dormir após partilha. F) QUESTÕES PARA A ENTREVISTA 1. Ofício da Alvorada Conte-nos a sua lembrança mais antiga. Quais são as lembranças que contaram/contam a você sobre o seu nascimento e primeiros anos de vida? 2. Ofício da Manhã Conte-nos o que você sonhava em ser quando crescesse. Quais eram as atividades que você mais gostava de fazer? Conte-nos o que você gostaria de não lembrar. O que você gostaria que não tivesse acontecido em sua infância? 3. Ofício do Meio-dia Quais eram os seus grupos de pertencimento na adolescência? Você lembra o que você fez com o seu primeiro salário? Quais eram os seus medos? Como foi sua primeira paixão ou amor? 4. Ofício da Tarde Quais foram os motivos das suas escolhas? (amor/estudo/profissional) Como foi sua primeira dívida?
5. Ofício do Entardecer Como foi a transição da adolescência para a vida adulta? Como é voltar ao lar? Em que momento você percebeu que o sol, a luz e a claridade estavam partindo? 6. Ofício da Noite Quando você pôde experimentar a liberdade/e a não liberdade? Quando você fecha os olhos, o que você enxerga? 7. Ofício da Meia Noite O que é a morte para você? Quando você morreu? Quando as velas se apagam, quando o silêncio reina, quando você adormece, quando o medo grita, quando a lua aparece... 8. Ofício da Madrugada Onde está o seu repouso? Como é abandonar o repouso/o conforto?
1. Poesia Adélia Prado; Cora Coralina; Manoel de Barros; Manuel Bandeira; Mário Quintana; Thiago de Mello. 2. Vídeos Narradores de Javé; O fabuloso destino de Amélie Poulain. 3. História Oral Andrea Paula dos Santos; Jose Carlos Sebe Bom Meihy; NEHO – Núcleo de Estudos em História Oral; Marcela Boni; Suzana Ribeiro. 4. Outras pesquisas
Ato 6 - Referências gerais Para a elaboração deste projeto selecionamos várias referências. A maior parte são referências já utilizadas nos processos de criação da Trupe Sinhá Zózima. São elas:
Gaston Bachelard; Martin Buber; Michel de Certeau; Paulo Freire.
A atriz Maria Alencar no espetáculo Dentro é lugar longe. Foto por Christhiane Forcinito FAGULHAS | 69
Últimas notas [Por Rudinei Borges]
Nota 1 – conversações por um teatro do encontro A Trupe Sinhá Zózima realizou umas das principais ações do projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho”, contemplado pela 20° Edição da Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo: a série “Conversações POR UM TEATRO DO ENCONTRO”. Em um ônibus estacionado na Praça Fernando Costa, região do centro antigo de São Paulo, em frente ao Terminal Parque Dom Pedro II, o grupo reuniu seus artistas-pesquisadores e vários fazedores de artes para vários encontros que refletiram questões caras ao teatro contemporâneo, além de analisar os principais motes da investigação cênica da Trupe. Participaram das conversões os pesquisadores-convidados Alexandre Mate, José Simões, Helena Chamlian, Sebastião Milaré e Sidnei Ferreira de Vares. Também conversaram sobre memória e poesia o diretor e ator Anderson Maurício e o dramaturgo e poeta Rudinei Borges. As conversações POR UM TEATRO DO ENCONTRO foram realizadas nos dias 27 e 28 de fevereiro e também nos dias 1, 4, 5 e 6 de março de 2013.
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Nota 2 – Documentário da Trupe Sinhá Zózima lança olhar poético sobre a peleja diária de trabalhadores no centro velho de São Paulo
Foto por Christiane Forcinito
TrabalhaDORes, um vídeo de Luciana Ramin, registra conversações de três atrizes da Trupe Sinhá Zózima com trabalhadores da região do Terminal Parque Dom Pedro II, centro antigo de São Paulo. O tema da conversa são memórias de trabalho, o ir e vir da peleja de homens e mulheres que lidam num dos lugares mais abonados da grande metrópole do Brasil. As atrizes partem da proposta do dramaturgo Rudinei Borges de construção de personagens a partir da história oral de trabalhadores. A criação ficcional do dramaturgo é desvelada no âmbito do real. A GuardaDORa de banheiros, oVendeDOR de tecidos e o DescaDOR de alhos são os três personagens propostos pelo dramaturgo. As atrizes, diante do turbilhão, procuram os personagens reais que possivelmente equivalem aos personagens ficcionais. O vídeo de Luciana Ramim se debruça sobre esta procura e registra momentos de grande alcance como a conversa com uma senhora responsável por um banheiro na Praça Fernando Costa, onde a Trupe realizou ações em 2012. O banheiro foi transformado numa casa e possui até cozinha. O capricho com que o trabalho desta senhora é realizado reacende o debate sobre a dignidade humana expressa nos ofícios mais simples. A documentarista capta com precisão o trânsito contínuo de pessoas nas regiões do Terminal Parque Dom Pedro II. Destrincha o cotidiano criativo de trabalhadores que encontram os mais inusitados ofícios como garantia de sobrevivência. Ramin norteia-se a partir de um olhar provocador para a condição humana quando inicia e termina o documentário com a fala da atriz Lídia Zózima, também ela trabalhadora das artes e da vida. Os cortes e fluxo de falas coadunam alguma crueldade com a preponderância da poesia de quem sobrevive à dor de viver na metrópole.
As atrizes Alessandra Della Santa, Maria de Alencar e Priscila Reis no espetáculo Dentro é lugar longe. Foto por Christiane Forcinito. FAGULHAS | 71
Nota sobre o organizador
O pesquisador e dramaturgo Rudinei Borges. Foto por Christhiane Forcinito
[Por Sidnei Ferreira de Vares]
Rudinei Borges atua, desde 2011, como pesquisador e dramaturgo na Trupe Sinhá Zózima, trabalho que resulta na feitura do livro Teatro no ônibus: pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima e no texto dramatúrgico da peça Dentro é lugar longe e na organização do livro Fagulhas, ações contempladas pelo Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo. A criação literária, teatral e filosófica de Rudinei Borges notabiliza-se, sobretudo, pela investigação do encontro como categoria existencial. A partir deste parâmetro, a memória surge marcadamente como a matéria mais relevante na tessitura da obra deste autor. Epifanias que eclodem de lembranças, as mais antigas, desvelam composições poéticas advindas de narrativas de vida: autobiográficas ou não. É o que ocorre desde o lançamento de seu primeiro livro Chão de terra batida (2009), que despertou o interesse de críticos como Affonso Romano de Sant’Anna. Rudinei Borges é dramaturgo, poeta e ficcionista. Ator e diretor de teatro. Nasceu em Itaituba, interior do Pará, onde iniciou a sua formação teatral e formou-se ator, integrando cursos oferecidos pela Secretaria de Cultura, e participando de movimentos sociais e comunidades de base. Em São Paulo, integrou o Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Formou-se em Filosofia no Centro Universitário Assunção e, atualmente, conclui o curso de mestrado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) com pesquisa sobre a Filosofia do Encontro em Martin Buber. Em 2010, escreveu e dirigiu a peça Poetas de vidro e, no ano seguinte, foi contemplado pelo Concurso de Texto Inédito de Dramaturgia do Programa de Ação Cultural (ProAC) do Governo do Estado de São Paulo. Em 2012, com o apoio do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VAI) da Prefeitura de São Paulo, escreveu e dirigiu a peça Chão e Silêncio, pesquisa poético-memorialista do Núcleo Macabéa, grupo de teatro com residência artística na favela do Boqueirão, na zona sul. Em 2013, também com apoio do VAI dirige a montagem de Agruras: ensaio sobre o desamparo, peça de sua autoria. É de sua autoria também textos ainda não publicados como: Alzira, Memorial do cais, Pássaros sem foices, O livro da embriaguez, Olhos do menino saathan e O menino morto em Sarajevo.
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Trupe Sinhá Zózima
artista-pesquisador/diretor/coordenador ANDERSON MAURÍCIO
artista-pesquisador/dramaturgo/editor RUDINEI BORGES
artistas-pesquisadores/atores ALESSANDRA DELLA SANTA JUNIOR DOCINI MARIA ALENCAR PRISCILA REIS TATIANE LUSTOZA
produção
THAÍS POLIMENI
assistência de produção MARIA ALENCAR
redatores
ALEX MAURICIO MÁRCIA NICOLAU RUDINEI BORGES
documentarista LUCIANA RAMIN
fotografia
CHRISTIANE FORCINITO DANILO DANTAS
webmaster
DANILO PERES
designer
DEBORAH ERÊ
desenhos
GUILHERME KRAMER
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realização cultural TRUPE SINHÁ ZÓZIMA www.sinhazozima.com.br contato@sinhazozima.com.br 55 (11) 96292-0447
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A Trupe Sinhá Zózima contribui de modo ávido com a formação de público para o teatro na cidade de São Paulo. As peças do grupo, encenadas em ônibus, falam diretamente aos trabalhadores que usam este meio de transporte, mesclam o imaginário urbano-interiorano e cruzam, em movimento, o universo caótico da grande metrópole. A encenação de obras como “Cordel do amor sem fim” [de Claudia Barral], “Valsa n°6” [de Nelson Rodrigues], “O poeta e o cavaleiro” [de Pedro Bandeira] e “Dentro é lugar longe” [de Rudinei Borges] integram o itinerário de seis anos de pesquisa continuada. Com colaboração de vários artistas e pesquisadores estas Fagulhas, acesas pelo dramaturgo Rudinei Borges, reúnem textos que refletem a significativa contribuição do grupo para o teatro brasileiro. Estas Fagulhas integram o projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho – residência artística por um teatro do encontro sem fronteiras”, contemplado pela 20° edição do Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo.