povo da peça dentro é lugar longe Dramaturgia – Rudinei Borges Direção – Anderson Maurício Atores – Alessandra Della Santa, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis e Tatiane Lustoza Direção musical – Junior Docini e Priscila Reis Cenário e figurino – Anderson Maurício e Maria Alencar Costureira – Maria das Dores Iluminação – Anderson Maurício e Otávio Dias Produção – Thais Polimeni Assistente de Produção – Maria Alencar Documentarista – Luciana Ramin Fotografia – Christiane Forcinito e Danilo Dantas Redação – Rudinei Borges Desing Gráfico– Deborah Erê Webmaster – Danilo Peres Orientação na confecção das malas cênicas – Adalberto Lima
Fotografia: Danilo Dantas
"Para o todo Para a terra Para que cada um de n贸s Sejamos melhores". (L铆dia Z贸zima)
Fotografia: Danilo Dantas
No chão imenso, meninos narram o ir e vir da vida, do nascimento à morte, da peleja à conquista. Entre vindas e partidas, no ônibus em movimento onde é encenada a peça, são contadas histórias tantas. Num ato de valentia, são desveladas, com sagacidade poética invejável, memórias de dor e contentamento.
Fotografia: Christiane Forcinito
Informações dentro é lugar longe Local de encenação: Ônibus Duração: 90 minutos Público por apresentação: 28 passageiros Classificação: Livre
Fotografia: Christiane Forcinito
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A peça Dentro é lugar longe, com dramaturgia de Rudinei Borges e encenação de Anderson Maurício, foi escrita a partir de história oral dos artistas-pesquisadores da Trupe Sinhá Zózima. A tessitura dramatúrgica é perpassada, sobretudo, por memórias da infância dos narradores, em que lembranças de nascimento e morte são contadas compondo a metáfora da vida como estirada, estrada longa. A vida é desvelada como viagem, caminhada das distâncias, num itinerário em que malas vazias e abarrotadas são carregadas como presentificação de conquistas e de pelejas. A encenação em um ônibus em movimento, característica singular do grupo, potencializa a ideia de viagem, partida que ao mesmo tempo é chegada. É significativo que os narradores da peça sejam cinco meninos, todos diante do chão imenso. Neste sentido, a palavra na dramaturgia e na encenação é um artesanato poético, conjunção de vozes tantas, em que tempo e espaço são reinventados à mercê do jogo de narração estabelecido pelos meninos. Com isso, é difícil dizer, com alguma certeza, se está no passado ou no presente o fato narrado. Se estamos no espaço evocado pela memória ou se somos passageiros duma andança sem destino certeiro. Entretanto, é possível perceber logo de imediato, que é a lembrança a matéria árdua que compõem “Dentro é lugar longe”. Já no início da peça, a Menina de cabelos negros longos diz, meio à cantoria: “a gente vive para contar”. Ou seja, contar é o modo que o ser humano criou de partilhar suas lembranças. “A gente vive para contar o que fez: não fez: o que viu: não viu: a gente vive para acocorar os pés sobre o chão e andar por azinhagas”, diz a menina.
A opção pela história oral levou o grupo a um roteiro de ações que norteou o processo de criação da peça. Os trabalhos iniciaram com uma oficina, coordenada pelo Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO). Depois foi escolhido um recorte para a composição do texto: narrativas de vida dos artistas que integram a Trupe. Estas narrativas foram registradas em setembro de 2012, numa chácara nos arredores da cidade de São Paulo. Ali, lembranças foram narradas em 24h ininterruptas, duma madrugada à outra, da alvorada à noite. O tempo foi reinventado em ofícios: da alvorada, da manhã, do meio dia, da tarde, do entardecer, da noite, da meia noite e da madrugada. Cada ofício foi vivenciado numa parte da casa da chácara: sótão, quintal, cozinha, rua, sala, quarto, cabana e porão. As narrativas todas foram gravadas, transcritas, textualizadas e transcriadas até que chegassem às mãos do dramaturgo para que, mediante exercícios cênicos, se tornassem dramaturgia. Até que ganhasse corpo a peça e, numa decisão coletiva, fosse batizada de “Dentro é lugar longe”, frase-viva fincada no coração do texto. O caráter coletivo da montagem foi marcado por intenso diálogo entre encenador e dramaturgo. E explicita um novo momento na pesquisa da Trupe Sinhá Zózima: o desejo de compor uma dramaturgia própria, que dialogue com a realização cênica do grupo em ônibus. A encenação da peça acarreta meia década de pesquisa continuada, ação sagaz e peculiar no panorama do teatro de grupo da cidade de São Paulo e do Brasil. “Dentro é lugar longe” é o chamamento para um teatro que manifesta a completude da ação cênica no ordinário da existência humana. E é exatamente nesta ação de se debruçar sobre o corpus da vida ordinária que o ser humano lembra o que foi (e é) e se dispõe a narrar. São as coisas simples, movidas pelo tempo presente, que reavivam as lembranças do passado. Neste reavivar, pouco importa se são verdadeiras ou imaginadas as lembranças, porque, neste caso, – como afirma Manoel de Barros – só 10% é mentira, o resto é invenção. “Dentro é lugar longe” é invenção-reinvenção da vida vivida/não vivida.
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Assim é que começo, terminando. Com o olho feito uma lagoa – cheio d’água: com a luz das estrelas no céu da boca. É que ontem faz parte do hoje. E hoje faz parte do amanhã. Tudo que foi-vem, tudo é estirada: caminhada das distâncias. Perco-me nas distâncias. Mas confesso: perder-se é encontrar-se. (Sussurros) Só aquele que se perde encontra andorinhas.
Fotografia: Christiane Forcinito
(Rudinei Borges – Dentro é lugar longe)
Trajetórias trupe
sinhá zózima
A Trupe Sinhá Zózima é um grupo brasileiro de teatro, fundado na cidade de São Paulo, em 2007. O ônibus (Omnibus: para todos) é o lugar onde a trupe tece um teatro do encontro sem fronteiras, com inspiração na filosofia do diálogo de Martin Buber (1878-1965), na poética do espaço de Gaston Bachelard (1884-1962) e na pedagogia de Paulo Freire (1921-1997). O nome da Trupe é uma homenagem à Lídia Zózima, coordenadora da Escola de Teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, SP. É de lá que vêm os atores da Trupe. Já a palavra Sinhá, variante – na linguagem das ruas – do termo Senhora, resulta de uma opção da Trupe por um teatro popular, que visa ir fundo às raízes da cultura brasileira, da dramaturgia, da literatura e das artes produzidas no país. Em 2009, o documentário Teatro e Circunstância do SESCTV apontou a Trupe Sinhá Zózima como um dos grupos que se inscrevem e representam as novas tendências do teatro atual, por desenhar com vigor e nitidez os contornos de um movimento artístico, que cresce e se avoluma a partir da consciência social, marcadamente caracterizado pela vontade de tirar o teatro dos guetos e democratizá-lo, levá-lo a novos públicos, aos excluídos e aos socialmente não privilegiados – velho sonho jamais plenamente alcançado. O não- lugar o foi título dado para o bloco de documentário que tratava das diferentes formas de encenação em locais mais acessíveis à população, como a proposta apresentada pela Trupe Sinhá Zózima. O grupo que encena o Cordel do amor sem fim, mostra que é possível fazer teatro fora da caixa preta convencional. O mesmo raciocínio é defendido por Zé Celso, do Teatro Oficina, no centro de São Paulo, que após anos de intervenções arquitetônicas conseguiu adaptar o teatro a um projeto mais inclusivo, no qual o público se aproxima mais do espetáculo. A Trupe, como destaca o critico e teórico Sebastião Milaré, “propõe outro diálogo com a cidade: do ponto de vista do ônibus, ou seja, do transporte coletivo”. Desbravar o arcabouço do ônibus como espaço cênico e falar diretamente ao trabalhador, ao homem simples, aquele que quase nunca vai ao teatro, que passa quase quinze horas por dia entre a ida ao trabalho e o retorno para casa, aquele que tem o próprio corpo abatido – dia a dia – pelas insuficiências do transporte coletivo, é um dos pontos cruciais e fundantes dos movimentos de pesquisa desenvolvidos pelo grupo, desde a sua origem.z
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Segundo a critica Marília Beatriz, na Trupe Sinhá Zózima “há uma inversão do papel teatral. O véu de teatro como um objeto eleito para poucos, fica por terra no momento em que se busca, no ônibus, a fatura da arte cênica”. Para a artista Nina N. Hotimsky, se hoje temos um número bem razoável de edifícios teatrais tradicionais, entraves do ponto de vista de sustento fazem com que o local de apresentação ainda seja um problema para grupos de teatro. Mas o ônibus, a arena intimista da Trupe Sinhá Zózima, tem outras razões de ser, que não a da viabilidade comercial. Realizar um trabalho cênico dentro de um ônibus em movimento é promover choques entre a realidade e a ficção, vivenciados pelos passageiros em tempo real. A delicadeza com que os atores sustentam essa linha tênue entre realidade e fantasia é uma das maiores qualidades da Trupe, destaca a critica Deolinda Vilhena.
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O teatro no ônibus, como comentou o crítico Matteo Bonfito, pretende materializar a metáfora da vida como viagem, como trajetória dinâmica, pois, para Bachelard, “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa. É graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados”. A pesquisa do ônibus como espaço de experiências e encenações possibilita não só o encontro do público e do artista, mas uma relação do Eu com o Tu, porque – nas palavras de Martin Buber – “o Eu se realiza na relação com Tu; é tornando Eu que digo Tu”. A primeira montagem da Trupe foi a peça “Cordel do Amor sem fim” (2007), de Claudia Barral, com direção de Anderson Maurício, em um ônibus que circula pela cidade, enquanto em seu interior, entre os “passageiros”, desenrolase uma trama regional, falando de um amor impossível no sertão, às margens do Rio São Francisco. Há intensa gama de significados na contradição da cena, como escreveu Sebastião Milaré, representada no interior do ônibus e a paisagem urbana que ele percorre. Para o pesquisador de teatro Valmir Santos, “o espetáculo prima por um elenco que sustenta a sua verdade no olho – como a enamorada Teresa enxerga no amante que promete retornar um dia. O ‘palco’ mais evidente é o corredor do ônibus, daí a proximidade movediça da qual o espetáculo se safa com interpretações e cantigas que garantem a viagem do início ao fim, sem sucumbir aos solavancos, aos olhos surpresos da janela do outro veiculo emparelhado ou mesmo na breve interação com os passantes na calçada, numa parada ou outra”.
Vou atravessar este trajeto por outros caminhos. Que minhas lembranças são minhas e doutros. Que minhas lembranças vão pelas estradas e me perco-encontro. Isto tudo para olhar os vossos olhos e dizer, neste instante, que quem conta, conta porque tem coragem. E coragem é coisa rara. Porque coragem, vos digo, coragem não é braveza. Coragem é danação. E danação é ter peito e pé para deixar rastros fundos no mundo.
Fotografia: Christiane Forcinito
(Rudinei Borges – Dentro é lugar longe)
Prosseguindo a investigação estética, a Trupe realizou, em 2009, a adaptação do monólogo “Valsa n° 6” (2009), de Nelson Rodrigues, Na Revista Camarim, publicação da Cooperativa Paulista de Teatro, o crítico Edgar Olímpio de Souza destaca que a peça desconstrói a cena com ousadia e atrevimento na linguagem. A peça, no mesmo ano, concorreu ao prêmio da Cooperativa de melhor espetáculo em espaço alternativo. Para o jornalista Miguel Arcanjo Prado, “a direção de Anderson Maurício inova ao utilizar com propriedade tanto o interior quanto a área externa do ônibus, como quando os atores surgem, de repente, nas janelas, surpreendendo os „passageiros . A direção musical de Thiago Freire, assim como o figurino soturno de Priscila Reis e Tatiane Lustoza, ajudam a compor o ambiente de alucinação e mistério da peça”. Um dos detalhes interessantes dessa montagem, é que o preço do ingresso foi o mesmo da passagem de ônibus.
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Em 2009, a Trupe Sinhá Zózima recebeu o Prêmio Míriam Muniz da Fundação Nacional das Artes (FUNARTE) para montagem do espetáculo “O poeta e o cavaleiro”, com direção de Alexandre Lindo e livre inspiração da obra de Pedro Bandeira, proeminente autor de literatura infantil no Brasil. A peça estreou em 2010. A dramaturgia realoca a problemática do transporte coletivo para uma história contada a partir da linguagem do palhaço. É o primeiro experimento cênico do grupo fora do ônibus convencional. O cenário lúdico contava com um ônibus inflável. A montagem foi apresentada em praças de varias cidades e também participou do Projeto Teatro nos Parques da Cooperativa Paulista de Teatro. Após montar três espetáculos, a Trupe chega a um dos principais momentos de sua trajetória. Em outubro de 2009, cria, em parceria com a São Paulo Transporte S.A (SPTrans), responsável pelos ônibus municipais, o projeto Arte Expressa – Mostra de Teatro dentro do ônibus. Nesse projeto, a encenação teatral é lançada para uma realidade outra: doze grupos de teatro foram convidados a encenar peças curtas em ônibus que circulam no Complexo Viário Expresso Tiradentes, num percurso que vai do centro da cidade ao bairro Sacomã e região de Heliópolis, a maior favela paulistana. No projeto Arte Expressa a Trupe realizou uma pesquisa sobre a relação dos passageiros de ônibus com as artes. Foi constatado que 75% das pessoas que usam aquela linha do transporte municipal nunca tiveram nenhum contato com as artes cênicas. 95% escolheriam para se locomover um ônibus, onde houvesse encenações teatrais.
Fotografia: Danilo Dantas
Tenho uma lembrança muito antiga. Uma lembrança duma viagem. Creio que eu era menina de três anos de idade. Meus pais me levaram outra vez para as distâncias do nordeste, entre Bahia e Sergipe: Paripiranga. Terra onde se planta feijão e milho. Terra onde se planta tudo. Uma terra imensa. Empoeirada. Eu ficava horas diante da terra imensa. Deixava a terra imensa amanhar os meus olhos. Dormir os meus olhos. Casar-se com eles. Um dia enquanto olhava a terra imensa, veio para perto de mim o meu tio com um chapéu enorme. Assustei-me. Nunca tinha visto um homem com chapéu de roça, moreno, queimado de tanto sol, com as mãos calejadas. Quando vi o meu tio, saí correndo pelas terras. Tive medo. (Rudinei Borges – Dentro é lugar longe)
Fotografia: Christiane Forcinito
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A percepção da realidade cruel do transporte coletivo, como também a força e a avidez da cultura do povo levou a Trupe, em 2011, a reaver a caminhada e a alicerçar os movimentos de pesquisa, além de realizar rodas de leitura, encontros, debates e oficinas. O grupo inicia o programa Artistas Residentes e recebe o dramaturgo paraense Rudinei Borges. O desejo de reavivar a pesquisa artística a partir da memória e cultura do povo leva a Trupe a iniciar uma de suas mais importantes investidas, o “Projeto Arte Expressa: Residência artística por um teatro do encontro sem fronteiras” no Terminal Parque D. Pedro II e Expresso Tiradentes. Em 2012, a Trupe Sinhá Zózima foi contemplada pela 20° Edição da Lei de Fomento para a cidade de São Paulo com o projeto “Plantar no ferro frio do ônibus o ninho”. Conta atualmente com os artistas-pesquisadores Alessandra Della Santa-Santana (atriz), Anderson Maurício (Diretor de teatro e ator), Júnior Docini (Ator), Maria de Alencar (Atriz), Priscila Reis (Ator), Rudinei Borges (Dramaturgo) e Tatiane Lustoza (Atriz e produtora). Com os redatores Alex Maurício e Márcia Nicolau. Com a documentarista Luciana Ramin e com os fotógrafos Christiane Forcinito e Danilo Dantas. A Trupe Sinhá Zózima segue em direção de sua própria estirada, a longa caminhada que á a própria vida, como afirma o dramaturgo e poeta Rudinei Borges, parceiro do grupo. Caminha para um teatro que não nega as suas referências históricas ao longo de sua formação e vivência artística, mas que busca um movimento próprio de viver a arte, que é o teatro do encontro sem fronteiras.
Aqui é a terra de onde vim. Aqui se pode seguir adiante. Ponha cortinas e voiles dentro das malas. Levem para fora as malas. Aqui é nossa paragem. Assim é que termina: o menino nasceu. Aqui o menino crescerá livre pelos campos. Poderá plantar e colher. Poderá apanhar, nas fazendas, todas as mangas do mundo. Aqui o menino deitará com a peleja e vencerá a labuta. Aqui as terras não são partidas. Não há cercas de arame farpado. Não há senhor. Não há escravos. E os córregos vão cheios d’água em direção aos rios. E os rios vão cheios d’água em direção ao mar. O nome desta terra é Travessia.
Fotografia: Danilo Dantas
(Rudinei Borges – Dentro é lugar longe)
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