Idílio XI Da obra Idílios, de Teócrito (III a.C.) Tradução de José Cardoso*
Nenhuma outra medicina, nem em unguento em pós, ó Nícias, parece-me, há para cura das coisas de amor que a recreação com as Musas. É este comércio leve e agradável para o homem; não é, porém, fácil de encontrar. E julgo que tu, médico que és e das nove Musas estimado mais que todos, entendes isto muito bem. Assim, o nosso Ciclope, o velho Polifemo gastava, sem dúvida, muito facilmente seus ócios, quando se enamorava de Galateia, naquela idade em que, à volta dos lábios e das têmporas, lhe começava a despontar a barba. Não lhe manifestou seu amor, nem com maçãs, nem com rosas, nem com madeichas de cabelos, mas com verdadeira paixão, e, de tal modo, que tudo julgava supérfluo. Muitas vezes as mesmas ovelhas deixavam o verdejante prado, e dirigiam-se sózinhas para o estábulo. E ele, cantando para a Galateia, ficava na praia coberta de algas, desde o romper da alva, tendo no mais íntimo peito cruel ferida, provocada pela poderosa Cipre, que lhe cravou no fígado um dardo de amor. Mas encontrou esta medicina: sentado no cimo de um alto rochedo e olhando o mar, cantava assim: «Ó branca Galateia, porque repeles o que te ama? Tu que és mais branca de ver que o leite coalhado, mais terna do que o cordeiro, mais alegre do que o novilho, mais reluzente do que a amarga uva verde? Tu costumas vir, logo que o brando sono vence meus músculos: mas, por outro lado, de novo, prestes te afastas, logo que o brando sono me deixa e foges qual mansa ovelha que vê avizinhar-se o padacento lobo. Enamorei-me de ti ó pulcra donzela, quando com a minha mãe foste colher no monte folhas de jacinto: e eu servi-vos de guia. Depois que te vi, ó Galateia, não posso de modo algum, nem agora nem mais tarde fugir de seguir teus passos: e por Zeus, nada disso te dá cuidado. Eu sei, afinal, a razão, ó formosa donzela que me foges; porque de uma orelha a outra, em todo o meu rosto se estende uma só e grande hirsuta sobrancelha, porque tenho um só olho e porque sobre meus lábios tenho um grande nariz. Mas eu mesmo sendo assim, apascento mil ovelhas, e, depois de as ordenhar, bebo-lhes o melhor do seu leite; mais: nem no verão nem no outono, nem no pino do inverno me falta o queijo e, o seu peso, me vergam sempre as queijeiras. E, como nenhum dos Ciclopes daqui, eu sei tocar flauta, cantando, a um tempo, para ti, ó minha doce maçã, e para mim mesmo, quantas vezes de noite a desoras! Crio onze veados, tendo cada um deles, na fronte, uma estrela branca, e quatro crias de ursos. Mas, aproxima-te de mim, ó Galateia, e partilharás, igualmente de tudo. Deixa que o mar glauco venha a espreguiçar-se na praia. Na minha caverna, passarás, junto de mim, uma noite muito agradável. Em seu interior há loureiros, e há ciprestes flexíveis, e há hera verde escura, e há vides de doces cachos, e há água fresca que o arborizado Etna da neve branca me oferta como bebida imortal. Quem preferirá ter o mar e as ondas a isso? Se eu te pareço mais hirsuto, tenho troncos
de carvalho, e, sob a cinza, o fogo inextinguível. Eu suportaria que com tua própria mão me queimasses a alma e o meu próprio olho, que é o que tenho de mais útil. Infeliz de mim porque minha mãe não me gerou com barbatanas. Se assim fora, como nadaria até junto de ti e havia de beijar-te a mão se não me deixasses beijar-te a mão se não me deixasses beijar-te a boca! Levar-te-ía ainda ou brancos lírios ou uma delicada papoila com sua carola vermelha. Mas uns nascem no verão, outros, no inverno; portanto, não poderia realmente, na mesma ocasião, ofertar-te lírios e papoilas. Agora, sim, ó donzelinhas, agora mesmo aprenderei a nadar, se acaso algum estrangeiro, em sua navegação, com seu barco, aqui arribar; de modo que eu saiba um dia qual o prazer que poderás sentir em habitar o fundo das águas. Oxalá que tu saias, e, que depois de sair, te esqueças, como eu aqui sentado, de regressar a teus passos. Quiseras tu comigo apascentar meus gados, mungir o leite, coagular o queijo, deitando o coalho que fermenta... Minha mãe é a única que me molesta, mas eu desprezo-a. é que nunca te disse a ti, que é sua amiga, palavra a meu respeito, não obstante ver que, de dia para dia, estou a emagrecer. Dizei que tenho a cabeça e ambos os meus pés febris, para que sofra, já que também eu sofro. É Ciclope, ó Ciclope, por onde tu distrais o teu espírito? Se fosses fazer cestinhos para lá e se fosses colher pequenos talos para levar às mansas ovelhas, farias bem melhor. Munge a ovelha que tens à mão. Porque persegues a que te foge? Encontrarás provavelmente uma outra Galteia mais bela. Muitas ninfas me pedem que me recreie com elas durante a noite, e todas elas riem às gargalhadas quando lhes dou ouvidos. Isto mostra que eu pareço ser alguém de (importância) na terra.» Assim tocando (a sua flauta) mitigava o ardor de sua paixão e consumia seus lazeres mais facilmente do que se desse dinheiro (ao médico).
Referência *RODRIGUES, Nuno Simões. Traduções Portuguesas de Teócrito. Lisboa: Universitária Editora, 2000.