EDITORIAL Sorte daqueles que se expressam! De tudo o que pode ser lido, ouvido e assistido, nada se compara a viver. Sentir o cheiro, ter as sensações afloradas na pele. Com essa certeza que os acadêmicos de Jornalismo e Publicidade e Propaganda propuseram-se a conhecer o cotidiano dos pacientes internos do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Santa Catarina (HCTP) e visitar o Instituto Psiquiátrico de Santa Catarina (IPQ), antiga Colônia Santana. Os pacientes psiquiátricos são comumente vistos através de um viés culturalmente enraizado. Depois de 300 anos de história de exclusão e abandono, a realidade dessas pessoas ainda é difícil. Os hospitais, que hoje visam à reinserção do sujeito na sociedade, ainda encontram como principal empecilho a dificuldade humana de aceitar o diferente. O homem muitas vezes só respeita o que conhece. Ultrapassar o lugar comum das doenças psiquiátricas foi a maior aprendizagem. As visões sobre os transtornos mentais expressas nas narrativas são fruto de uma experiência que foi além dos livros. Agradecemos imensamente pela receptividade dos pacientes e das equipes de direção e funcionários das instituições visitadas pela oportunidade única de nos possibilitar essa interlocução tão direta. Das nossas cabeças partiu a vontade de refletir sobre o lado humano, de perceber as diversas posições-sujeito, de dar voz ao outro. Interpretamos, exercemos nossa autoria nas mais diversas materialidades. Escrevemos, mas sabemos de nossas condições de produção, do nosso distanciamento. Se os entrevistados o tivessem feito talvez não fosse assim. Ainda são discursos de fora para dentro. Em meio a discussões de reforma psiquiátrica no Brasil, olhamos para dentro de lugares que tem olhos, que tem alma. Boa leitura!
EXPEDIENTE Diagramação DÉRICK PACHECO CAITANO
Supervisão Geral HELENA SANTOS NETO
Assistentes de Diagramação ANA BEATRIZ DE FARIAS BIANCA WINDMILLER CLARA CECI GRAH JHENEFER GARCIA CEZAR JUNIOR COSTA KAUANA DA SILVA PEREIRA MARIANA SMÂNIA PEDRO PAULO DE OLIVEIRA
Cursos JORNALISMO PUBLICIDADE E PROPAGANDA
Foto de Capa MARIANA SMÂNIA Produções Textuais ALUNOS DA UNIDADE AUTOR NA COMUNICAÇÃO E DAS DISCIPLINAS NARRATIVAS JORNALÍSTICAS E PRODUÇÃO AUDIO VISUAL II
Coordenação de Curso DANIELA GERMANN
ÍNDICE
RELATOS DE UM DETENTO LOUCOS COMO VOCÊ MOMENTOS INSANOS DEPOIS DA LOUCURA VEM A CURA CONCEITO DE LOUCURA O CRIME DA INSANIDADE ROTINAS ESCURECIDAS MAKING OFF PÁGINAS DA LOUCURA CADA UM COM SUA LOUCURA NOSSAS MANIAS VIZINHO DIFERENTE A DUPLAMENTE LOUCA AMANDO LOUCAMENTE O MEU TRABALHO RÉGIS MALLMANN SUICÍDIO - A ÚLTIMA FUGA? DIÁLOGOS, CORPOS, LOUCURA E GRADES SUBLIME SENTIMENTO LOUCURA POR DETRÁS DA PORTA POR TRÁS DOS MUROS ALGUÉM TÃO PRÓXIMO
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Relatos de um D Uma vivência, quatro visitas, parando para conversar no último dia Saber um pouco mais sobre as loucuras da vida. Hospital de Custódia, Tratamento Psiquiátrico Grandes histórias deixadas de lado Um leito, 16 companheiros, ou só em um quarto Transtornos da vida te deixam isolado Vivendo sob o olhar atento dos vigias Tiago e Paulo contam sua rotina; O meu cotidiano é um teste de sobrevivência Já to na vida, então, paciência Pra cadeia não quero, não volto nunca mais. Envolvido no tráfico, dinheiro fácil Um ano ganhando bem, agora passa quatro trancado. Coração amargurado pelo tempo perdido na Ilha Da Bahia pra Floripa, De BC pro HCTP Familia ficou longe, ninguém vem lhe ver. Meta ao sair, uma nova vida construir. Um interno francês, criado no Brasil Esquizofrenia paranoica, contando histórias aleatórias; Do Exército, para o Governo, do Governo para a NASA Histórias fantásticas, todas criadas. Pra sair depende do sim ou não de um só homem Que prefere ser neutro pelo telefone Hoje, tá difícil, não saiu o sol Hoje não tem visita, não tem futebol Alguns companheiros têm a mente mais fraca Não suportam o tédio, arrumam quiaca Cada crime, uma sentença Cada sentença, um motivo, uma história de lágrima. Lamentos no corredor, na cela, no pátio Ao redor do campo, em todos os lados. Mas quem vai acreditar no meu depoimento? Dia 22 de novembro, relatos de um detento.
por Evelyn Santos
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Detento
foto: Evelyn Santos
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Loucos como Você! Em um lugar repleto de biografias Corredores gélidos, repletos de portas, por vezes, gradeadas. Livres, porém apressados, são os sujeitos de jaleco branco. Os outros que vivem naquele mesmo ambiente, ao primeiro olhar, permanecem cruelmente isolados - mas não estão isolados, muito menos de forma cruel. Atrás de cada porta, há alguém que vive em meio a uma insanidade, a um desatino, desvario, a uma falta de juízo e senso de discernimento, a um transtorno, distúrbio. Enfim, que vive em meio a uma loucura. Loucos, é assim que o senso comum os define. Muitos deles estão cientes do próprio problema, mas ainda assim querem voltar para casa e serem acolhidos. Eles são os diferentes da sociedade. Não, diferentes não. Eles são iguais a qualquer um, sabe por quê? Pela história que carregam nas costas. Antigas histórias de percurso, fortes, difíceis, humanas. Se quiser entender o que os levou até lá, pergunte-os sobre o seu passado. Os que cometeram algum delito talvez falem sobre alcoolismo ou o vício em drogas que sustentavam desde a adolescência. Sobre uma casa que
atearam fogo ou sobre algum familiar próximo que agrediram. Ainda que com certo receio na fala e desconfiança no olhar, eles se expressam. Cientes de que o erro cometido um tempo atrás não foi por acaso. Existem os que possuem um acompanhamento médico maior devido a algum transtorno mental mais acentuado. Eles podem jurar que acontecimentos foram reais quando, por vezes, não passaram de delírios. Escutam vozes que sequer pertencem à realidade. Agitados, agressivos, sem controle de si mesmos. Muitos são extremamente introspectivos, o que acaba os tornando solitários. Talvez loucos sejam solitários, justamente pela sua loucura. Amargamente abandonados pelas pessoas que costumavam chamar de família. Há os que mantêm esperança de que receberão alta para, logo depois, serem levados para casa pela mãe, pelo pai ou por algum outro parente. A expectativa permanece, mesmo que a realidade prove o contrário. Embora sejam cuidados por bons profissionais, o desejo de um dia poder sair de lá é quase unânime. A vontade de
se recuperar é grande e, diga-se de passagem, admirável. Porém, há os que se acostumam, pois viveram uma boa parte da vida como nômades de hospitais psiquiátricos e existem até os que comemoraram muitos aniversários dentro do mesmo hospital. Eles sentem-se protegidos lá dentro, isentos de qualquer enxurrada de julgamentos e preconceitos da sociedade. Imunes a qualquer rejeição da própria família. Esses não sentem necessidade de voltar para casa, pois adotam o meio hospitalar como seu lar. Como qualquer ser humano, eles possuem histórias únicas as quais muitas vezes guardam para si mesmos. Quando existe, a vontade de inserir-se novamente na vida social é gritante. Se não, é porque estão cientes das possíveis consequências de sair de lá. De qualquer modo, eles são loucos. Loucos por carinho e atenção, loucos por quem os acolha, loucos por uma vida menos conturbada, loucos para concretizarem sonhos. Loucos com desejos tão normais que intitulá-los de diferentes da sociedade, seria loucura.
por Isadora Satie
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foto: Mariana Sm창nia
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Momentos Insanos Em um prédio branco, quadrado, no meio de um terreno grande, é onde mora a tensão de cerca de 140 homens internados. Cada um por uma causa, todos por um único motivo. A entrada é escura, não transmite paz, os barulhos atormentam quem não está adepto aquele tipo de ambiente. Vozes altas, barulhos de ferro, gritos. A ordem é mantida por trás das grades e pelos extensos corredores verde escuro. A única coisa que se destaca no ambiente são as cores laranja forte do uniforme dos internos encontrados por todas as partes. Seja nas enfermarias, nos pátios ou nos corredores, ocupando-se de reformas no prédio. Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), localizado em Florianópolis, Ilha de Santa Catarina. O que os trouxe para cá? Uma condição da mente humana, caracterizada por comportamentos e pensamentos considerados anormais pela sociedade. Segundo a psicologia, a loucura, transtorno ou insanidade mental. “Agressão. Eu agredi meu pai. Já tinha acontecido outra vez quando eu era de menor. Eu fiquei sem tomar o remédio, o remédio psiquiátrico. Fiquei sem tomar o remédio e fumei maconha também, aí eu tive um transtorno. Agredi com faca de cozinha, não queria matar. Meu pai quer vir me visitar, mas não veio porque a minha irmã disse que ele era muito xarope. As minhas irmãs e a mi-
nha mãe vêm me visitar, os meus cunhados também”, relata Guilherme com ar descontraído, 28 anos, internado há um ano e três meses. Em dias de chuva a rotina é mais pacata, alguns internos nem se levantam, outros ficam agitados na necessidade de fazer alguma coisa, andar no pátio, trabalhar na horta, jogar futebol, fazer exercícios, ou só conversar com os colegas. O odor também fica mais acentuado, o cheiro de urina é muito forte quando eles ficam trancados. Os funcionários já se adaptaram à rotina, às condições precárias e ao estilo de vida de cada paciente. Quem não tem aptidão para trabalhar num ambiente pesado como este não consegue nem passar do período de experiência, garante a psicóloga Laura, integrante do corpo clínico do HCTP. Tomás tem 30 anos, natural de Joinville, teve seu processo revogado e ficou internado por quatro anos, três meses e vinte nove dias. Recebeu alta em 25 de Novembro de 2013. “Roubei uma delegacia e também usava droga, crack. Lá tem muita arma boa, metralhadora. E uma metralhadora é 50 mil. Queria ela pra assaltar banco.” Esquizofrênico, já com condições de manter seu tratamento em casa, sente necessidade de manifestar a sua fé: “Deixa eu fazer uma pergunta para ti, sabes de onde vem Deus? Do infinito. E da onde o infinito vem é um mistério. Deus é muito bonito”. Com as mãos para o céu, com sentido de agradecimento, To-
más comemora: “Graças a Deus, segunda-feira eu vou embora.” Em um momento de alucinação, após o consumo alcoólico e de drogas, Joel de 25 anos, colocou fogo na casa onde vivia ele e sua mãe. “Fiquei fora da casinha, chamaram a polícia, eu não sabia o que fazer e me mandei pra cidade. A polícia me pegou e me condenou por tentativa de homicídio. Não sei se tinha alguém dentro de casa, mas falaram que tinha um piazinho de quatro anos e um bebezinho de seis meses da minha irmã. Eu não quis matar eles na verdade, mas eu fugi”, declara Joel. Sua família largou de mão, diz que sua mãe não que saber mais dele. Mesmo assim, ele tem um sonho: sair do hospital, arrumar um emprego e ir para a casa. Para qual casa ele vai ainda não sabe, mas seu desejo é “esquecer o passado e viver o presente”. Daniel está há cinco meses internado, tem 22 anos e é de Chapecó. Foi preso por homicídio. “Mataram meu pai e eu disse que fui eu. As polícias chegaram lá em casa e quando chegaram me apertaram, me agrediram pra eu dizer que foi eu. Eu agredi meu pai, mas não quis matar ele. Foi o meu amigo que matou”. Daniel já é aposentado por esquizofrenia, usuário de drogas e fazia tratamentos com remédios. Ao final da entrevista emociona-se: “Eu nunca mais vou ver ele, né? Agora é rezar, ir à igreja, acender vela, orar por ele. Por que agora já passou, tenho que levantar a cabeça”.
por Kamila Porto
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Mentalmente Doente No Brasil, referências a denúncias de insanidade mental são encontradas no Código de Processo Penal, Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Hoje, no Hospital de Custódia, os internos recebem tratamento para que possam receber alta a partir de uma lauda entregue à Justiça. Entre todo tratamento específico psiquiátrico, os internos participam de terapia ocupacional, exercícios físicos, atividades de nivelamento e, dependendo de suas aptidões e habilidades, trabalham na cozinha, na limpeza, na horta ou em reformas, ocupando o tempo livre durante a rotina hospitalar. Em um processo penal, a alegação de insanidade mental é a defesa na qual se argumenta que devido às questões relacionadas à doença mental, o réu não é responsável por suas ações. Essa defesa é realizada pro profissionais que buscam determinar se o réu era incapaz legalmente de distinguir o que é certo do que é errado. Aquele que declarar insanidade pode ser acusado por “não culpado por razão de insanidade” ou “culpado, mas mentalmente doente”, resultando que o réu seja sentenciado a cumprir pena em uma instituição de tratamento psiquiátrico. * Todos os nomes de personagens presentes neste texto são fictícios.
foto: Diego Stefanovichi
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Depois da loucura, vem a cura. Era a terceira vez que pisava no chão de madeira do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Santa Catarina (HCTP),percebia que muito havia a ser dito daquele lugar tão singular.Podia sentir que, se fosse concedido o dom de falar, os quadradinhos de lenha que estavam debaixo dos meus pés, poderiam me contar a história de cada um que por ali passou. Já que eles ficam ali inertes e silenciosos.. O medo, a insegurança e os preconceitos ficaram lá atrás, na porta de entrada.Não os queria como companheiros . Nada parecia ter mudado, as cadeiras da recepção, a pouca luz, os quartos dos pacientes, os grandes cadeados nas portas. Mas meus olhos já não viam aquele mundo particular da mesma forma. Ao entrar no refeitório da unidade vi pela primeira vez. Um homem alto de pé, em posição de sentido no canto do refeitório do HCTP. Com os olhos cerrados e o rosto com a expressão fechada, era possível encontrar linhas de expressão tensa. O clima estava pesado para iniciar uma conversa.Ninguém diria que aquele homem sério poderia ser uma das pessoas mais sensível e atenciosa que se pode conhecer. Essa foi a minha impressão ao encontrar pela primeira vez Jorge Senra, o professor de Educação Física dos pacientes do hospital. Ao ser convidado para se apresentar, Jorge desconstruiu aquela primeira impressão. Para ele trabalhar naquele lugar foi algo tão inesperado quanto meu convite para o entrevistar. Contou-me que para estar ali bastou um telefonema na hora certa.ocasião .A professora de Educação Física do
HCTP estava se aposentando e era preciso que alguém a substituísse. Até o mês de abril deste ano, Joge trabalhava com o treinamento dos novos agentes do sistema prisional do Estado e também com atividades esportivas para detentos do presídio de segurança máxima em São Pedro de Alcântara. “No dia que fui convidado para trabalhar no HCTP, estava à procura de alguns profissionais na área da saúde para realizar um teste com os futuros agentes que eu estava treinando. Foi então que liguei para cá e ao conversar com o diretor da unidade o convite surgiu”. A princípio, o desafio parecia ser grande demais para ele. Porém, com o passar dos meses percebeu que não trilharia esse caminho sozinho. Antes de se tornar funcionário do hospital de custódia, Jorge teve uma caminhada com grandes dificuldades. Sua primeira profissão foi a de bombeiro. O que explica a posição de sentido quando o encontrei pela primeira vez. Porém, sentia que não era aquela profissão que desejaria ter para o resto da sua vida. Gostaria de zelar e proteger as pessoas, mas, ainda não era desse jeito. Após deixar a carreira como bombeiro, ele optou por ser caminhoneiro e assim foi até o fim de sua graduação em Educação Física na Universidade Federal de Santa Catarina. Conta que em muitas ocasiões a correria era tanta que ele ia para faculdade de caminhão, assistia à aula e saía para trabalhar novamente. “Não me arrependo de nada, hoje vejo que valeu todo o esforço”. Sete meses passaram-se desde a sua chegada e ele relata que mais tem aprendido do que ensinado aos pa-
cientes. Às vezes, nem sabe ao certo o porquê de estar ali.Talvez pelo espírito aventureiro que se pode encontrar em seu olhar. Para Jorge, é desafiador poder passar seus conhecimentos a pessoas com particularidades tão próprias. “Sou totalmente realizado profissionalmente, é muito bom poder ver cada um aqui evoluir. Aceitar trabalhar aqui foi algo muito diferente, pois, não era minha área de atuação. Confesso que, pra mim, como profissional de Educação Física, é muito mais fácil trabalhar com eles aqui do que trabalhar com pessoas ‘normais’”. Os meninos, como ele chama seus alunos, “gostam e têm disposição para realizar as tarefas propostas, para eles é algo diferente e ajuda a amenizar a realidade que estão vivendo”. Quando chegou pela primeira vez ao hospital, Jorge conta que pensava que seria muito complicado trabalhar com pessoas que têm algum distúrbio mental; a convivência diária com os internos fez ele perceber que a situação era outra. “Com o tempo nós fazemos da dificuldade como um degrau para chegar mais longe”. Para ele não há dificuldades maiores em realizar seu trabalho a não ser o tempo, pois, quando chove as atividades ao ar livre não podem ser realizadas porque a área externa não possui cobertura. Jorge traz em seus olhos um brilho singular, uma esperança viva. Deseja ajudar a transformar a realidade de muitos que estão passando pelo HCTP. A expectativa é muito grande com relação à seus alunos. Ele traz em seu coração o desejo de que todos que ali passam por tratamento possam um dia ser reinseridos à sociedade e assim tenham
seu rosto se enche de brilho ao imaginar esse desejo se tornando real. Mesmo idealista, com o tempo fui percebendo que meu entrevistado era um piadista e tanto. Então pedi que ele me contasse alguma situação divertida que presenciou com os internos. Ele olhou pensativo: “são tantas histórias, deixa eu pensar em uma”. Nesse meio tempo que Jorge pensava um de seus alunos se aproximou de nós querendo chamar sua atenção. Ele o acolheu mais uma vez com seu sorriso e exclamou “olha aqui minha história” apontando para ele. A história que Jorge queria contar era a de Carlos Mendes, que está em tratamento há quatro anos e tem esquizofrenia paranóica. Carlos tem grandes dificuldades para se comunicar, porém, é só cantar um dos clássicos da música brasileira perto dele que o sorriso já surge. Jorge conta que antes de iniciar o tratamento Carlos era músico profissional, cantava e tocava muito bem. Com o tempo a doença foi se agravando,mas a música é a melhor forma de tocar e se comunicar com Carlos. Mesmo com pouco tempo de trabalho, Jorge passa-nos uma segurança muito grande sobre o que está fazendo. Ele demonstra que é possível desconstruir certas realidades ereconstrui-las de formas diferentes para fazer do mundo um lugar melhor. O professor não tem tantas coisas para contar como o chão de madeira que nos recebeu naquele lugar, mas, sua esperança em dias melhores é contagiante e faz com que tenhamos outro olhar para aquela realidade. Jorge deixa uma dica ao final de nossa entrevista: “depois da loucura vem a cura, pense nisso”.
por Giovanna Laurea Dutra
foto: Mariana Smânia
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Conceito de Loucura
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Os marcos históricos da loucura desde suas primeiras manifestações e a formação do seu conceito social
Em seu livro História da Loucura, Michel Foucault investiga e apresenta a loucura desde o Renascimento até o seu total estabelecimento na sociedade. A maneira com que a loucura foi encarada sofreu diversas transformações com o passar dos séculos, assim como a maneira pela qual o homem passou a encarar esse fato. A primeira manifestação de loucura foi com a disseminação da lepra através das Cruzadas, expedições medievais realizadas em nome de Deus. A contaminação deu-se na ida até o Oriente, principal foco da lepra, e de lá traziam a doença que se espalhou significativamente pela Europa. O leproso era excluído da sociedade por conta das marcas que carregava consigo. Segundo a Igreja, a manifestação da lepra nada mais era do que um domínio de Deus sobre esta pessoa. Foi ele quem criou os leprosos e ordenou sua vinda ao mundo. Inúmeros estabelecimentos foram construídos para isolar os contaminados e, mesmo com o “fim” da lepra, a estrutura aonde o leproso era isolado foi mantida e essas ficaram conhecidas como um local em que os excluídos ficavam à espera da salvação. Após os leprosos terem habitado esses lugares, a próxima doença que exigia o isolamento foram as doenças venéreas, hoje em dia, conhecidas como Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST). Apesar da contaminação das DST’s terem sido muito rápidas, elas não tiveram repercussão como a lepra, enquadrando-se junto às doenças costumeiras. Para não carregarem a marca da discriminação e exclusão, as pessoas acometidas de lepra, doen-
ças venéreas e loucura necessitam desaparecer da visibilidade das pessoas. Essa parte das pessoas representam os excluídos da sociedade, segundo Foucault. Por conta da loucura ser uma fraqueza humana, ser visível e não esconder nada, ela atrai as pessoas pelo fato de conseguir manter uma dominação sobre as coisas. A loucura diz respeito à realidade que o homem acredita existir. O primeiro sintoma de loucura é quando o homem se apega a si mesmo, causando a ilusão. Os alienados não possuem atitudes que condizem com a realidade do mundo, possuem atitudes que condizem com a realidade do que ele acredita existir. LOUCURA NA ARTE Na metade do século XV, a loucura passa a ser tema principal das artes em um todo, e neste espaço o louco é visto como um detentor da verdade, segundo Foucault. Inúmeras imagens, telas, quadros enigmáticos, de difícil compreensão surgem. Essas imagens foram obtidas através dos sonhos e por isso exercem tanto fascínio através dos tempos. Bosh e Brueghel tinham uma visão de que a loucura está ligada ao homem, suas fraquezas, ambições e sonhos. As pessoas mais providas de inteligência não aceitavam a ideia de existir demônios e feitiçarias. Não acreditavam que os atinados eram corpos que foram possuídos por espíritos malignos. Acreditavam na alienação e na perda das funções da mente. Após esta época passou-se a ver a loucura como um processo mental. Com o movimento renascentista descobriu-se a circulação do san-
gue e nervos, época em que passou a fazer sentido a doença mental surgir por causa do mau funcionamento da mente e da circulação sanguínea. Para Foucault, a loucura é percebida no meio social inferior pela incapacidade ao trabalho e a impossibilidade de integrar-se ao grupo. O internamento é a eliminação espontânea destes. O século XVII foi marcado pela criação de diversas casas de internamento. Aumentando significativamente o número de internados. Os primeiros hospitais para loucos surgiram no mundo árabe, onde os médicos voltavam-se totalmente à cura dos loucos. Na Europa, a Espanha teve o seu primeiro hospital fundado por conta da influência árabe no país. Após isto, os hospitais espalharam-se pelo mundo. Os desatinados que eram mantidos nesses lugares tinham péssimas condições de vida e eram tratados de forma desumana. Esses hospitais ofereciam o atendimento médico e tinham o direito de decidir pelos internos. O louco era excluído de todas as formas possíveis no século XVII, além de ter que viver juntos aos miseráveis, pois perturbavam a ordem social. O parlamento de Paris passou a humilhar em praça pública aqueles que não retomavam o seu lugar na sociedade. A sequência era a expulsão da cidade, isto quando não recebiam a força da guilhotina. É durante o século XVII que surgiu o conceito de que a doença mental é um déficit com a razão. A loucura, nada mais é do que o lado negativo do homem. O homem identificou no século XVIII uma nova maneira de perceber a loucura. Ela está fora da compreensão com a razão, por
isso, o homem deixou de se comunicar com o louco. Para a ciência, o louco era desprovido da percepção da essência e do verdadeiro. A consequência era o isolamento, acarretando assim a construção de instituições psiquiátricas. A loucura percorreu todo o histórico da humanidade. As mais diversas razões dos seres humanos eram tidas como desatino. A homossexualidade não pertencia ao amor racional e sim à loucura. Os blasfememos, que difamavam os deuses, não só eram internados como tinham seus lábios queimados com ferro em brasa. As pessoas que praticavam rituais de magia causavam desordem social, eram punidas, internadas e muitas vezes condenadas à morte. Com tantos diagnósticos sobre a loucura, o louco perdeu a individualidade. Dentro dos hospitais não se diferenciavam o louco dos muitos tipos de aberrações da época. A loucura durante séculos vinha alcançando as mais diversas formas de violência, desde desordem da conduta até desordens dos hábitos e costumes, segundo Foucault afirma em seu livro, História da loucura. FALHA A Era Clássica (Séculos XVI, XVII, XVIII) ao tratar doente e criminoso da mesma maneira, cometeu uma grande falha. Apesar de alguns insanos receberem tratamento especializado, o número de loucos era muito superior à capacidade e isto causava um amontoamento. Para Foucault, o internamento era mais visto como um “tempo para que o castigo se cumprisse” do que para o tratamento. Os loucos, nessa época, eram vistos como doentes e criminosos. Na França, no século XVIII, os loucos eram encontrados nas prisões misturados a detentos criminosos. Instituições recebiam apenas os doentes que
tinham cura, já outras queriam livrá-los da discriminação na sociedade e os mantinham internados. Ainda na Era Clássica surgiram as casas de correção, que separavam o louco do criminoso. A loucura envolvia diretamente os médicos, somente eles poderiam determinar a natureza da doença após verificar todos os sintomas e a história de vida do paciente. No século XVIII, Philippe Pinel, o pai da psiquiatria, rompe com a ideia de que os loucos são demoníacos e passa a considerá-los como doentes mentais. Surgiram assim os manicômios, espaços somente destinados a loucos, pessoas que necessitavam não apenas de remédios como principalmente do apoio de outras pessoas. DEPÓSITOS DE POBRES Na Idade Clássica o louco passa a ocupar o lugar dos pobres. Era difícil determinar o motivo pela internação das pessoas, bem como para descobrir as doenças que elas tinham. Nesta época conclui-se que a loucura e o crime não se confundem, mas são tratados com a mesma racionalidade. A loucura involuntária, que não possui o consentimento do homem e a intencional, que é usado como “disfarce” pelos lúcidos, são os dois tipos de loucura propriamente dita. O internamento vale para as duas, pelo fato de terem a mesma origem e por ser a forma mais eficaz de evitar escândalos. Para a área do Direito, a loucura quando ocorre com consciência dos seus atos, torna-se um crime. E aquele que atingido pela loucura involuntária não será punido, pois o louco vai ao encontro com a sua vontade e desejos. Para Foucault, o conceito de loucura começou a se estruturar a partir do momento em que se criou a distância entre razão e não razão. Qualquer forma de liberdade
na loucura era banida, para que o louco não fosse uma ameaça para a sociedade, ele era vigiado em qualquer situação. Conclui-se que a internação não foi criada como medida médica, mas sim como prática de exclusão. Além de excluídos e humilhados, Foucault afirma que “ser internado como os loucos, significava receber uma punição adicional”. O louco se destacava comparado a outras pessoas. As manifestações de loucuras mostram a sua diferença com o meio em que vive, assim como mostram a incapacidade de um ser se relacionar. Por conta dessas diferenças, os insanos eram objetos de curiosidade. Na Renascença a loucura era exibida publicamente, hospitais como Bethleem e Bicetrê, exibiam os internados aos domingos para a população que pagava uma taxa pela visita. ÁGUAS QUE CURAM As causas da loucura não paravam de aumentar nunca. Motivos como emoções, crises, tristezas e amores eram causas distantes do desatino. As crises, por sua vez, quando ocorriam com frequência, levavam as pessoas ao delírio. Para acalmar o espírito da loucura e dos delírios, acreditavam-se em benzedeiras. Até a água, na Idade Média, era usada como forma de cura. Costumavam mergulhar os insanos para que eles perdessem a agitação que dominava o seu corpo. A crença de cura pela água tem-se desde o Renascimento, quando os loucos eram colocados em navios e barcos e carregados para outras cidades, em busca da razão. O fato de serem levados através da água tinha o efeito purificador e causava a sensação de incerteza da sorte. Somente no ilusionismo que a loucura começa a “retomar” o seu lugar na sociedade. Via-se o lado inofensivo que os loucos tinham, foto: Mariana Smânia
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11 permitindo, na Idade Clássica, uma relação limitada entre o louco e o racional. Porém, a angústia que a loucura trazia junto de si, nunca sumiu. Os loucos traziam na sua essência aquilo que oS diferenciava dos outros. Muita coisa mudou na loucura no século XVIII. O número de internados oscilava e dependia da miséria. Em momentos de recuperação econômica a diminuição era significativa. Outro fator importante para a queda brutal de internamento foram as casas que recebiam apenas os insensatos, não permitindo que eles se misturassem aos criminosos. Ainda no século XVIII, iniciaram-se os protestos em prol dos alienados e suas condições de vida durante a internação. A loucura passou a ter uma imagem social positiva, e isso se deu quando ela foi separada do crime e de outras formas de desatino. O internamento para o louco se dava apenas em casos complexos. O hospital não era mais visto como criador de doenças e sim como o curador dela. Com a diminuição de internamentos a família passou a ser responsável pelo alienado. Para aqueles que continuavam internados, a dedicação ao trabalho era a forma de pagarem pelos seus erros. Por mais que os maus tratos contra os loucos não fossem de tanto conhecimento público, o conceito social de loucura permanece até os dias atuais.
por Junior Costa
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Os loucos traziam na essĂŞncia aquilo que os diferenciava dos outros.
foto: Mariana Smânia
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O crime da Insanidade A loucura é completamente variável. Que ser humano não tem um pouco de insanidade dentro de si? Há por exemplo, pessoas que rasgam dinheiro e são consideradas loucas, assim como pessoas que pegam este mesmo dinheiro e gastam desesperadamente em shoppings. Ser louco pode ser uma questão de opinião, ou não. Quem nunca ouviu falar sobre o famoso “crime passional”? Aquele em que a pessoa mata por amor? Mas quem ama, mata? Matar. Este é o ponto. É possível matar por ser louco? É possível matar por ser insano demais para evitar o crime? O que acontece a quem comete uma loucura a esse ponto? O que a lei diz? No processo jurídico, alegar insanidade mental permite ao sujeito ser declarado isento de suas atitudes. Há quem realmente pode ser considerado louco e completamente impossibilitado de ser condenado como um meliante comum, outros parecem utilizar esse fato somente como desculpa para evitar que sejam condenados. Quando se visita o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Santa Catarina (HCTP), é possível ouvir histórias que podem em certo ponto parecer cruéis demais. Histórias que classificaríamos como absurdas, se elas não fossem tão reais. O hospital foi inaugurado em 1971 para, inicialmente, 42 pacientes. Lá são consideradas três vertentes principais da doença mental, uma delas é quando o juiz, embasado em um laudo pericial que comprove a insanidade, absolve o réu do delito cometido. Este meio nada mais é do que uma medida de segurança e um método de propor o tratamento do sujeito. Outro caso é o sentencial,
quando o preso é condenado e então cumpre a pena como paciente do hospital, numa das celas do espaço, mas com tratamento psiquiátrico a fim de promover a reabilitação em sociedade. O último caso é quando, em um exame de rotina, de um encarcerado já sentenciado, o perito mental constata que o preso tem de permanecer no hospital para que possa ser acompanhando de perto, ou quando já precisa realmente de um tratamento. Existem três casos para diagnósticos do exame: o imputável, inimputável, ou semi-imputável. O primeiro é quando o réu é culpado pelo crime cometido, sabendo daquilo que estava fazendo; o segundo, quando ele não tinha consciência do ato cometido, estando passível de uma prisão comum, mas sendo levado a tratamento psiquiátrico; o terceiro, quando o sujeito é parcialmente culpado, quando ele sabia do que estava fazendo, mas não totalmente, situação em que também recebe tratamento psiquiátrico em paralelo ao cumprimento da pena pela qual foi sentenciado. Há quem considere o HCTP uma “instituição de sequestro”, um exemplo de reality show, onde cada passo é acompanhando regularmente, desde o acordar até o adormecer. Um povo que não frequenta livremente o mesmo espaço do restante da população não é notado. As pessoas não ligam, não procuram, pois não importa. O quanto isso dificulta na inclusão do sujeito novamente em sociedade? Essas pessoas merecem uma segunda chance? Após recuperados, podem tornar-se pessoas completamente sociáveis novamente, de modo que possam se misturar aos considera-
dos sãos, na visão médica e social. Da Boca de Quem Vive Um jovem, o qual usaremos o nome fictício de Luiz, conta um pouco de sua história e, independente da culpabilidade, deixa estupefato qualquer pessoa que a ouve. Acusado de assassinar o próprio pai, o jovem afirma não ser o culpado pelo crime. O caso corre em julgamento, ainda após, segundo ele, já terem descoberto o verdadeiro culpado, e este culpado já estar cumprindo pena em regime fechado. O uso regular da maconha reforça, para a promotoria, o fato de Luiz estar envolvido. Mas será que o jovem teria coragem de matar o próprio pai? Até que ponto a droga pode afetar a sanidade mental? A médica Shirley de Campos, especialista em neurologia, afirma, em seu blog pessoal, que o que influencia no desempenho neurológico ao ponto de causar ilusões ou alucinações, as quais podem provocar uma agressão não planejada, seria a alta quantidade de THC (Tetrahidrocanabinol). Esta substância é responsável pelos maiores efeitos da planta no organismo. O efeito da planta pode durar até 12 horas, mesmo depois de um período de espera de uma hora para o início das sensações. O jovem conta também que a visita de alguns parentes ao HTCP acontece sempre que possível. Geralmente a visita se dá por parte da irmã. Uma frase dita por Luiz nos faz refletir: “Não parece que estamos presos”. Frase marcante dita pelo jovem que está em regime fechado há cinco meses. A história de Luiz não é a única.
HTCP, pode-se ouvir outros rumores ou até histórias dos próprios encarcerados. Outro jovem, a este atribuiremos o nome de Gustavo, conta-nos que sua prisão é devida a ter ateado fogo na própria casa. Ele afirma que ouvia vozes. “Elas queriam me matar”, afirma o jovem de 25 anos de idade. Questionado sobre o relacionamento com a família, ele fala que hoje sobra saudades e a vontade de ser perdoado. Existem, claro, pessoas que estão prestes a serem liberadas do tratamento, como é o caso de um senhor de 57 anos, encarcerado por cometer delitos por conta do álcool. Ele é alcóolatra desde os 15 anos de idade. Paulo é um dos mais antigos paciente do HTCP, está desde 2008 em tratamento e cumprimento de pena. A saudade do filho é a parte mais dura do tratamento; este afastamento foi a parte mais dolorosa que a bebida trouxe. O jovem, de 15 anos de
foto: Mariana Smânia
idade, mora em Lages com a mãe. o namorado e o cunhado. Quatro O pai só gostaria de ter uma chance anos depois, eles foram condede poder falar com ele novamente. nados por homicídio triplamente qualificado. Uma reportagem Crimes Insanos na Mídia exibida na Rede Globo mostrou o A mídia já trouxe muitos casos de momento em que o advogado de crimes ligados à insanidade. Quem Suzane pede para que ela chore não se lembra do “Atirador do Ci- na entrevista. Neste caso, quando nema”, “Suzane Von Richtofen”, solicitado um habeas-corpus, aleo mecânico “Francisco de Chagas gando que Suzane era portadora Rodrigues de Brito”, considera- da oligofrenia, que afeta as capado o maior assassino em série do cidades intelectuais do sujeito e país, condenado a 250 anos de que, se comprovada, pode causar prisão? Pelo mundo, há muitos a inimputabilidade do criminoso, casos de pessoas que declararam o advogado teve-o negado. Em eninsanidade para que fossem isen- trevista dada ao Portal Terra, o detados da cela comum e ganhas- sembargador que negou o pedido sem um outro tipo de reclusão. do advogado fala que em momenEm outubro de 2012, o casal Ri- to algum houve dúvida a respeito chtofen foi encontrado morto em do entendimento e determinação sua mansão em São Paulo. Na épo- da ré. Suzane cumpre pena na Peca com 18 anos de idade, a filha do nitenciária Feminina Santa Maria casal, Suzane Von Richtofen, con- Eufrásia Pelletier, no complexo fessou o crime. Seu intuito era fi- do Tremembé. Já se passaram 10 car com a herança da família. Jun- anos desde o assassinato cometido to com ela, mais dois envolvidos, por Suzane e os irmãos Cravinhos.
por Dérick Pacheco Caitano
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Rotinas Escurecidas
Fotos e Matéria por Mariana Smânia
A grafia do sentimento
A fotografia é concreta e subjetiva ao mesmo tempo. O autor de uma fotografia precisa entender que nem sempre o sentido primário dado à imagem será entregue para todos da mesma forma. A fotografia é sensível e metamórfica. Pode representar algo vazio, duro, e ao mesmo tempo estar recheada de sentidos fervorosos. Uma foto não é como um texto, que diz o que diz. Textos podem até dar margem à futuras reflexões, mas a fotografia obriga o observador a refletir no momento em que percebe a imagem captada. A sensibilidade no olhar e a necessidade que o fotógrafo tem de mostrar seu trabalho para o maior número de pessoas possível está ligado diretamente à pluralidade de olhares e sensibilidades. Cada ser possui uma forma de pensamento diferente. Cada indivíduo interpreta o mundo de acordo com a sua vivência. E cada fotógrafo tem o dever e a missão de proporcionar momentos de pura introspecção por parte do observador, possibilitando até mesmo uma maior compreensão sobre si mesmo. A vida na escuridão O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP) abriga homens em conflito com a lei, mas que, ao mesmo tempo, foram diagnosticados com algum transtorno mental. Esses pacientes vivem em celas individuais ou conjuntas. Durante o dia eles vão ao pátio para ter um mínimo de convivência social.
As paredes verdes e frias aumentam em muito o desejo de ir para casa. As luzes fracas combinadas com o teto alto escurecem as chances de resgatar a vida anterior. Família e amigos são contatados, mas poucos são os que mantêm a conexão. Os dias vão passando e a escuridão vai invadindo a alma. Aos poucos os olhos transbordam a agonia presente nas paredes da construção. Tudo o que eles querem é sair dali.
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Making Of
Razão para chegar ao amanhã A loucura está presente na nossa sociedade, mas, às vezes, passa-nos despercebida. Nossos vídeos demonstram a participação de futuros jornalistas e publicitários tentando entender uma outra realidade neste mesmo mundo. Procuramos gravar informações que passassem a nossa visão de contraste entre o sofrimento e a esperança de um mundo melhor.
“Só porque você está condenado em uma sala do tribunal não significa que você é culpado de alguma coisa.”
por Anderson Almeida Lucas Golfetto Matheus Hoffmann
Pedro Padilha
Charles Manson
youtube.com/revistametamorfoses
Páginas da Loucura Dom Quixote, Chapeleiro, Máscara, Coringa, todos são loucos! Veem coisas inexistentes, ali acham que tem gente. Esses são alguns dos mais conhecidos loucos da nossa cultura, quem nunca ouviu falar deles? Ou quem nunca leu uma história em quadrinhos deles? O tema loucura é amplo, tem vários assuntos a serem tratados a serem explorados, experimentados. Na literatura foi muito bem utilizada, chegando a criar um estereotipo do louco, uma pessoa de aparência judiada, olhar perdido, que comete as “loucuras”. Mas o louco não é exclusivo apenas da literatura estrangeira, na literatura nacional temos alguns casos, talvez o mais conhecido seja “O Alienista”, de Machado de Asis. A história do livro se passa na cidade de Itaguaí. O Dr. Simão Bacamarte abre a Casa Verde, uma casa de custódia para os loucos da cidade, não só para cuidar deles, mas para os estudar de forma mais minuciosa. Com o passar dos dias, o número de internos vai aumentando, até mesmo sua esposa vai presa. No decorrer da história os loucos são soltos e os sãos vão para a Casa Verde onde serão estudados. No fim, o Dr. Simão chega à conclusão de que os cérebros bem organizados recém curados eram desequilibrados como os outros e que em cada cérebro havia os
dois. Achou nele o perfeito equilíbrio mental, convencido disso se prendeu na Casa Verde e se pôs a estudar. Morreu dezessete meses mais tarde. “Boatos diziam que o único louco que havia em Itaguaí foi o Dr. Simão Bacamarte.” Realidade x Ficção Na literatura a figura do louco tem um valor, mas na vida real não foi assim. Pessoas com deficiência tinham sua existência negada, os “insanos” eram jogados em asilos, presos em porões, abandonados à própria sorte ou até mesmo mortos por seus parentes, já que os tempos eram difíceis para as famílias dos séculos XVI ao XVIII, poucas tinham condições o suficiente para cuidar de seus entes. Se pegarmos o ano em que as obras Dom Quixote de La Mancha e Alice no País das Maravilhas que foram escritas em lugares e séculos diferentes, Dom Quixote em 1605 na Espanha e Alice que foi 200 anos mais tarde, em 1865 na Inglaterra, a realidade dos deficientes mentais não mudou. Ainda não reconhecidos e não respeitados pela sociedade e mesmo com o aumento no numero de casas de custódia o tratamento ainda era de forma grosseira e primitiva. Consistia em punições físicas, a cada “erro” cometido, o deficiente apanhava. Nesse período de tempo,
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nestes 200 anos de diferença entre as obras, acreditava-se que a única maneira de corrigir a loucura era através das punições físicas, toda e qualquer ação considerada imprópria cometida pelo interno era corrigida, alguns livros chegam a comparar o tratamento com as torturas medievais do tribunal da Santa Inquisição. Com os avanços da medicina, as coisas mudaram de figura, os tratamentos de punição foram caindo no desuso, o uso de medicamentos, terapias construtivas como aulas de artes, educação física, trabalhos manuais garantem um melhor desenvolvimento do interno. Mas a recuperação, a melhora progressiva dessa pessoa só ira se dar por completo se houver apoio da família, não basta larga-lo numa clinica, num hospital num instituto, a família tem que estar presente sempre que possível para que o interno se sinta seguro e progrida cada vez mais em seu tratamento. Não importa o quanto avance a medicina se não houver participação da família encorajando, apoiando e comemorando cada conquista. Os medicamentos, recreações, atividades não iram fazer total efeito se não forem administradas junto da convivência, do apoio que vem da família. e duas horas sem dormir. O tempo que tinha para descansar ia visitar os cavalos com fisionomia animada.
por Luiza Chiquetti Henrique
foto: Mariana Smânia
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Cada um com A loucura pode simplesmente ser uma maneira diferente de ser julgado pela sociedade, porque a constatação da insanidade mental de uma pessoa só pode ser feita por especialistas. A loucura é, segundo a psicologia, uma condição da mente humana caracterizada por pensamentos considerados anormais pela sociedade. Segundo o livro, O que é loucura? Do autor Darian Leader, não há duvidas de que, às vezes, a loucura é acompanhada por uma sintomatologia impressionante. Mas, o que dizer do homem que cuida calmamente de suas atividades, de sua vida familiar e, um dia, vai para um local público, saca uma arma de fogo e atira numa figura pública? Não há nada de errado na sua conduta até este momento. Na verdade ele pode ter sido um cidadão modelo, responsável e equilibrado. Mas, será que, no momento em que aconteceu o ato homicida, poderíamos dizer realmente que ele não era louco? Isso por certo nos convida a refletir sobre as estâncias de loucuras que são compatíveis com a vida normal. Trata-se de uma loucura silenciosa e contida, até o momento do ato de violência. O conceito psiquiátrico de loucura nem sempre pode expres-
por Leandro Lima
sar o que de fato uma possível loucura exteriorizada no corpo e mente de uma pessoa representam as ditas loucuras. Muitas vezes, são formas atípicas dentre a normalidade existente nos quadros sociais, ou seja, uma forma diferente daquilo que é comum, e isso diante da sociedade podem ser classificados como loucura. As formas da loucura são maneiras de viver libertas de clichês, de conceitos e parâmetros sociais, é como se fosse uma válvula de escape para não sofrer com os males da vida no cotidiano normal e com todas as imposições sociais. Loucura pode ser um ato mais inteligente do que se possa parecer. ALCOOLISMO E DROGAS Em Palhoça vive o jovem Marcelo Schimidt, 22 anos: “Minha infância foi de muita alegria, porém, nunca fui um bom aluno, na minha adolescência frequentei muitos bares, aprendi a fumar, beber, virei usuário de drogas; quando dei por mim, já era um dependente químico, minha família sofreu muito com isso, principalmente minha mãe. Procurei vários tipos de tratamento, não adiantou, até que por fim me internaram
no IPQ Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina, em São José. “Após dois anos internado consegui voltar para minha casa, junto de minha família, hoje faz quatro anos que não bebo nada de álcool, cigarros e muito menos drogas, por fim fiquei com algumas sequelas, mas voltei a viver”. Cada um de nós carrega dentro de si um tipo de loucura, ou seja, existem vários sintomas que se movimentam de varias maneiras dentro das pessoas, onde a própria família, amigos e sociedade convivem na maioria do tempo normalmente. Quem sabia numa data próxima com o avanço da medicina chegaremos a um grande entendimento dos sintomas “ Loucura”.
foto: Leandro Lima
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sua Loucura Cada um de nós, carrega dentro de sí uma loucura.
foto: Mariana Smânia
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Nossas Manias
“Vícios” normais que podem transfigurar-se em doença
Todos nós temos manias, “esquisitices”, perfeccionismos, comportamentos estranhos, o jeito de se comportar ou pensar, particulares, que cada indivíduo leva consigo, e que muitas vezes pode gerar dependências com objetos, pessoas e/ou situações. Algumas dessas relações são sadias, como entrar no campo de futebol sempre com o pé direito ou posicionar objetos encima da mesa nunca de maneira paralela a outros objetos. Esses são comportamentos simples, muitas vezes até estranhos ou sem sentido para as outras pessoas, mas pode trazer satisfação, confiança e prazer para quem a pratica, e isso não traz transtorno algum. Mas, esquisitices quando levadas ao extremo, podem causar prejuízos como perda de autonomia e até depressão. É quando as manias se tornam doenças, “se não fizermos de determinado jeito, nós paralisamos ou nos sentimos muito angustiados”, afirma a psicóloga Kely Schettini. São pensamentos obsessivos, ideias persistentes, impulsos ou imagens que ocorrem de forma invasiva na mente da pessoa, gerando muita ansiedade e angústia. O indivíduo distorce a realidade de modo a não enxergar os riscos e perigos embutidos em suas ações. Ele precisa fazer algo de determinada maneira, jeito, para então se sentir bem. Esse estágio já se configura como doença, onde a pessoa tem ações repetitivas. São vícios, compulsões que torna o indivíduo escravo delas, ele precisa realizar esses comportamentos para se sentir aliviado, caso contrário, é tomado pelo medo e ansiedade intensa.
Em 1895, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, já afirmava que “manias são desordens lutando contra algum tipo de complexo”, e que “as defesas maníacas protegem o ego do desespero total e muitas vezes consistem na única forma de superar o sofrimento”. Geralmente, os sintomas são acompanhados de ansiedade, medo e culpa, causam muito sofrimento e interferem nas rotinas pessoais, na vida social e da família. Muitas vezes não são reconhecidas como sintomas de uma doença e por isso não busca-se tratamento ou acontece muito tarde. Abaixo seguem alguns exemplos (tirados do blog praticandopsicologia.blogspot.com. br) do que seriam comportamentos normais e outros quais já passaram o limite e podem precisar de tratamento especializado. • Permanecer na internet 1 ou 2 horas está dentro do normal, mais que isso (fora quem depende dela para o trabalho) já deve ser observado mais atentamente; • Checar se a casa está fechada antes de sair é normal, ter que fazer isso repetidas vezes para só assim conseguir sair é sinal que algo não está bem; • Lavar as mãos antes de comer e depois de chegar da rua é normal, ter que lavar várias vezes já, devemos prestar mais atenção neste comportamento; • Fazer coleções é normal, guardar objetos sem deixar que ninguém jogue fora, como se dependesse deles já é um problema;
É a repetição dos comportamentos sem finalidade nenhuma e a falta do controle dos pensamentos e de tais atos, transfigurando-se como doença, que precisa de tratamento com medicamento e psicoterapia, afirma os especialistas. Onde os medicamentos irão diminuir a ansiedade e as angústias sentidas e a psicoterapia irá ajudar a pessoa a desmistificar suas crenças ao comportamento repetitivo, se desvincular dos “vício” e se libertar das ações das quais ela se tornou prisioneira, seja em comportamento ou pensamento. Em entrevista, a jovem Sabrina Freitas, 20 anos, revela que sofreu com o distúrbio em boa parte de sua infância, e a fazia subir na balança diariamente para conferir seu peso. Afirma que “perdia a autoestima, a balança era meu pior pesadelo, tinha medo de olhar o resultado ao terminar a pesagem, mas ao mesmo tempo era o que aliviava a minha angústia”. A balança era a vilã e ao mesmo tempo, a única ferramenta capaz de amenizar sua baixa estima, era o objeto de obsessão que poderia lhe trazer um pouco de tranquilidade. “Tinha ânsia, sentia uma angústia em pensar ficar fora do meu peso. Sempre fui ‘fofinha’ para não usar o termo ‘gordinha’, e isso me incomodava, pois não conseguia perder peso fácil e não conseguia parar de comer. Então, subir diariamente na balança era um meio de me policiar para diminuir meu peso, e quando verificava diferença para menos, eu comia guloseimas para satisfazer meus desejos, sem peso na consciência por causa dos exageros”. Preocupados com casos do tipo
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de vários estados do Brasil fez um estudo aprofundado do caso e chegou a conclusões importantes sobre as características e as formas de tratar o problema. “Temos evidências de que tanto a terapia cognitivo-comportamental quanto os medicamentos, usados de forma independente, são igualmente eficazes para os casos leves e moderados”, diz a psiquiatra Roseli Shavitt, do Instituto de Psiquiatria da USP. Em casos mais graves, é preciso combinar a psicoterapia com uma classe de antidepressivos, os inibidores de recaptura de serotonina. “Os medicamentos não mudam o comportamento diretamente, mas diminuem a ansiedade e o desconforto causados pelos medos. Já a terapia incentiva o paciente a enfrentar a situação ou pensamento amedrontador sem recorrer aos rituais”, diz a psiquiatra Albina Rodrigues Torres, da Unesp. Estudos também mostram que 5% dos pacientes têm melhora completa e espontânea sem tratamento e 20% alternam períodos sem aparecimento de sintomas com fases agudas da doença. O que os pesquisadores ainda não sabem de maneira precisa, quais são as causas do transtorno. Nossos vícios podem gerar ansiedade, angústia e comportamentos repetitivos, mas o fato é que “esquisitices” são relações que fazem parte da natureza do homem. Desde nossa existência, vivemos em um estado de dependências. Cabe a nós nos policiarmos para que tais desordens e ações não nos aprisionem em nossos próprios comportamentos e pensamentos. E quando necessário, procurar um especialista para tratar do complexo.
por Evandro Thiesen
foto: Mariana Smânia
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Vizinho Difere
Há mais de dez anos o Hospital Colônia Santana (HCS) tem o nome de Instituto de Psiquiatria de Santa Catarina (IPQ), em São José, mas apagar da memória dos moradores do bairro – e não apenas do bairro, mas de todo o estado de Santa Catarina – o nome “Hospital Colônia Santana” e todos os sentidos que ele carrega consigo, não parece ser tarefa das mais fáceis. Se você caminhar por alguns metros nas proximidades do IPQ e perguntar por algum hospital, provavelmente receberá como resposta: “Ah, o Hospital Colônia Santana? Fica logo ali”, com a indicação da direção onde ele está localizado. Durante décadas o IPQ ficou muito conhecido por ser a única instituição no estado a tratar doentes com transtornos mentais, neurológicos - dentre eles a epilepsia -, usuários de drogas e, em outras épocas, até mesmo tentar curar criminosos e homossexuais. Em sua dissertação de mestrado, Ana Maria Espíndola Koerich busca retratar esta realidade :
“O HCS, por mais de meio século, assumiu integralmente a assistência psiquiátrica no Estado. Essa realidade começou a se modificar somente na metade dos anos 90, em razão dos reflexos da nova política de saúde mental, advinda do movimento da Reforma Psiquiátrica no país.” Acerca dos pacientes da instituição, já discorreu em seus escritos particulares Frei Antônio Wilhelm Frinken, padre franciscano alemão que morou no local entre a década de 1960 e o ano de 1994, da seguinte forma : “Nem todos os internados são doentes mentais no sentido próprio da
palavra. Há uma certa porcentagem de criminosos que estão em observação ou para lá se transladaram com o fim único de fugir ao regime da Penitenciária Estadual. Depois há os alcoólatras, que são, via de regra, internados à força por seus familiares. Facilmente pode-se deduzir que estão lá contra a vontade e, por isso, negam redondamente qualquer colaboração, o que invalida por completo qualquer tratamento”. Assim, durante quase meio século, o bairro levava a fama de dar abrigo a loucos (utilizando um termo do jargão popular), pessoas depressivas e viciados nos mais diversos tipos de drogas. Em toda a Grande Florianópolis, quando alguém tem algum amigo ou conhecido que fala muitas bobagens ou conta muitas histórias ‘sem pé nem cabeça’, é normal surgir a brincadeira: “Vamos internar você na Colônia Santana”, não diferenciando o bairro Colônia Santana do Hospital Colônia Santana. Se alguém diz que está indo para a Colônia Santana – por qualquer motivo que seja -, muito provavelmente será motivo de chacota, com questionamentos, se está indo para lá para ficar internado ou se ficou maluco e não vai mais sair de lá. Mas, será que essas brincadeiras e a associação do nome Colônia Santana com a loucura, a depressão, o vício e os diversos transtornos mentais incomoda aos moradores do bairro? Foi esta a pergunta a que foram submetidos alguns moradores da localidade. Para a professora Raquel Passos, que atua na Creche Frei Antônio, exatamente em frente ao Instituto, o nome Colônia Santana não atrapalha nem incomoda. Ela diz que an-
tigamente ninguém queria morar no bairro, “mas o Estado passou a doar a terra e dar um incentivo àqueles que labutavam no hospital para morarem próximos do local de trabalho”. Assim, ela destaca que muita gente veio morar na região e trouxe suas famílias em função do hospital, o que considera “um impacto positivo”, já que eram trabalhadores e, supostamente, pessoas de bem. Ela não enxerga qualquer negatividade no fato de viver na Colônia Santana. Já para Patrícia Estevão, diretora da Creche Frei Antônio, a região recebeu uma miscigenação de culturas muito interessante, pois num determinado momento vieram para a região colonos da Alemanha, em outro período chegaram funcionários para o hospital. Num momento posterior, funcionários da Macedo Koerich – hoje com o nome Tyson Foods, uma empresa de produção de frangos – também passaram a morar na localidade e, por fim, com a instalação do Complexo Penitenciário do Estado em São Pedro de Alcântara (município que faz limite com o bairro), também veio uma nova leva de moradores para a região – tanto de policiais e funcionários da Secretaria de Segurança Pública do Estado, como familiares daqueles que estão encarcerados. Patrícia afirma que entre os alunos da creche que administra há filhos e netos de todos esses “ramos” que colonizaram o bairro Colônia Santana. Para ela, hoje chama mais a atenção a quantidade de pessoas provenientes da região Nordeste do Brasil que veio morar no bairro para trabalhar na Tyson, do que propriamente a fama do bairro por abrigar o hospital psiquiátrico. Patrícia considera a presença do
ente IPQ positiva, pois gera emprego e renda não apenas aos trabalhadores da instituição, como para as redondezas (lanchonetes, mercados e outras pequenas lojas que lucram com os pacientes e visitantes). E é exatamente nesse sentido a afirmação da costureira Veranda Kess. Ela morou no bairro na década de oitenta e voltou a viver na região há cerca de dois anos: “antigamente, quando morei aqui, havia uma certa vergonha de dizer que você vivia na Colônia Santana. Tinha muita chacota e zombaria com a gente, pois diziam que aqui só viviam loucos”, mas, ela destaca que hoje não sente mais isso: “Como ter vergonha de viver num local bonito como esse, que abriga um hospital, escolas, fábricas e tantas lojas de comércio?” Ela explica que o hospital deixou o bairro com uma fama negativa no passado por tantas histórias sem fundamento e invenções que eram feitas, de que “os loucos fugiam do manicômio e se infiltravam nas casas”, ou de que “todos os que moravam na localidade eram um pouco doidos”. Ela garante que era tudo lenda e diz ainda preferir “a vizinhança de um hospital do que de uma cadeia ou delegacia aonde pode sair tiroteio a qualquer hora do dia”.
foto: Mariana Smânia
As lendas citadas por dona Veranda incomodam um pouco a aposentada Ana Elisabeth Lohn, que mora na região desde que nasceu, há mais de setenta anos, como ela prefere dizer, sem revelar a idade exata. Para ela, o hospital trouxe benefícios, por ter médicos, enfermeiros e bons profissionais por perto, mas ao mesmo tempo trouxe um clima ruim, pela fama – que considera negativa – e por tantas histórias de dor e sofrimento que ouviu falar que teriam acontecido no local. Apesar da fama negativa, ela diz que os benefícios são maiores do que qualquer tipo de prejuízo que o hospital, por ventura, tenha trazido: “sem dúvidas a presença do hospital é benéfica. Surgiram brincadeiras no passado, mas não passaram de histórias. A realidade é que muita gente teve oportunidade de ganhar uma nova vida após a passagem pelo hospital”. Outros moradores foram ouvidos sobre a presença do IPQ no bairro. Alguns não quiseram falar, outros apenas responderam que sim ou que não, quando questionados se a presença do hospital no bairro era boa ou ruim e como o enxergavam. A conclusão, porém, nestas quase dez conversas com moradores da localidade, é de que as novas gerações,
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em especial as pessoas com menos de 40 anos de idade, não vêem problemas na presença do IPQ e também não se incomodam com as brincadeiras sobre os “loucos” ou “malucos”. A imagem negativa e algum tipo de vergonha ou constrangimento foram observados apenas em pessoas mais velhas, que convivem com o hospital no bairro há mais tempo. Mesmo assim, elas pontuam mais benefícios do que malefícios sobre a presença do IPQ. As novas gerações encaram na esportiva as brincadeiras, levam o assunto com naturalidade e vêem apenas pontos positivos na presença do hospital. Sem dúvida, se houver uma análise sócio-econômica mais apurada, será possível observar que muitos comerciantes da região (e consequentemente muitos empregados também) se ergueram e construíram seu patrimônio justamente pela presença do IPQ. Bares, restaurantes, lojas de roupas e calçados, farmácias e outros tantos pontos comerciais lucram todos os dias com os pacientes e com as visitas que recebem. Qualquer fama negativa de piadas ou chacotas com o nome do bairro não supera os benefícios trazidos pelo hospital.
por Leonardo Costa
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A dupla mente Antes de chegar à casa nova Alicia adormeceu com sua boneca favorita nos braços. Boneca de pano, cabelos coloridos, com olhos de botões que cheirava camomila quando foi dada à menina. Jandira era nova na vizinhança e tinha passado por uma turbulenta fase que havia lhe causado muita dor e sofrimento. Enquanto terminava de desempacotar as coisas da mudança, a doce Alicia brincava no quintal. O casebre daquela cidadezinha deserta conservava suas estruturas originais e um declive nos assolhados pouco menor que o gramado do quintal. Não havia vizinhança muito próxima. Isso se puder dizer que existia uma vizinhança, já que a distância de uma casa para outra era grande. Ao entardecer daquele dia, Jandira já tinha acabado de desempacotar as coisas da mudança, então, chamou sua filha para dentro. Ela apareceu com um sorriso reluzente estampado no rosto e aparentava estar histericamente feliz. Os profundos olhos castanhos da menina brilhavam de tanta felicidade. Alicia queria brincar de um jogo chamado “Você viu o ganso?”, que sempre brincava. Neste jogo Alicia me perguntava: – Você viu o ganso? – Que ganso? – respondia. – O ganso... – ao mesmo tempo em que se faz um gesto como bater palmas ou bater os pés, por exemplo. – “Ah! O ganso...”, imitando o gesto. Quem não con-
seguia imitar o gesto perdia. As duas ficaram até a madrugada brincando enquanto em risadas profundas, imitavam os gestos uma das outras. Jandira não decifrava o olhar vazio da infância da sua filha. Talvez porque não conseguisse recordar a resposta de seu próprio olhar na infância. Com treze anos começou a trabalhar em um quartinho pequeno nos fundos de uma casa velha que abrigava mais doze meninas. O cheiro de mofo, as marcas na parede e as goteiras do telhado intensificavam a crueldade daquele lugar que tirava a inocência das meninas que ali chegavam. Em seu primeiro dia de trabalho a jovem menina ouvira a estória de um rato que tinha medo de gato. Nisso eu não era diferente dos outros ratos. Pavor, tremor, ânsia, vida incerta. Mas iguais a todos outros de sua espécie, aquele rato teve, no entanto, um fato diferente em sua vida – encontrou-se com um mágico, que permitiu que aquele rato virasse um gato. Mas o rato passou a temer animais maiores: como leão, tigre, onça e boi. O mágico surgiu mais uma vez e resolveu transformá-lo então, em um leão, o mais poderoso dos animais. O ratinho receoso com a classe animal começou a recear os passos dos caçadores. Então o mágico chegou, transformou-o de novo em um rato e disse: – Meu filho, quem tem coração de rato, não adianta ser leão. E Jandira passou o inverno inteiro
pensando na história do rato que tinha medo. A cada animal que ali iria se satisfizer usando as meninas como pobres objetos, Jandira desejava ser maior do que eles. Qual a mais importante experiência que existe na vida de um rato? Durante sete anos Jandira sobreviveu à sombra da luz vermelha. No segundo andar, sentada diante da janela dos quartos que trabalhava, ficava contemplando os flocos de neve que nunca caíram na grama seca aos fundos daquela casa noturna. Jandira desenhava no espelho sua própria face magra, de ossos salientes, ampla testa reta e escuros cabelos encaracolados, olhos cor de pinho, muito afastados e de pesadas pálpebras. A cada noite que caía o mesmo olhar consternado marcava o começo de uma nova jornada de trabalho. Apesar da dor, Jandira acordava cedo para ir ao mercado e esfregar o chão todos os dias. Eram as atividades domésticas que lhe permitiam receber o banho quente, as refeições e sua melhor amiga. Quando estava com ela o medo ia embora e preenchia o estranho vazio que assolava seu peito. O pó branco e a garrafa de 51 expulsavam os sentimentos ruins. As colegas de trabalho, o patrão e os clientes a consideravam louca. Tudo inveja de sua beleza. Jandira não se importava com o que eles diziam. Ela não era louca. Nunca pensou que sentiria falta dos animais da casa da luz vermelha. Era comum que Jandira ficasse setenta
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louca “Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a ideia de que não é louca, só fará mostrar-se duplamente louca. Segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também, a mulher é sempre mulher, isto é, é sempre louca, seja qual for a máscara sob a qual se apresente.” Elogio da Loucura- Erasmo de Roterdã
foto: Mariana Smânia
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e duas horas sem dormir. O tempo que tinha para descansar ia visitar os cavalos com fisionomia animada. Os únicos animais que haviam por perto eram os próprios humanos. Em uma noite de outono, enquanto o vento batia as janelas e portas incessantemente, apareceu Lourival. Aos 40 anos de idade tinha um rosto rígido que parecia ter sido esculpido em pedra, queixo quadrado, nariz de pontas longas e narinas maiores ainda, olhos castanhos e uma floresta de cabelos negros. Era
mais baixo que alto e mantinha uma boa forma. Jandira sabia que era a mulher mais bonita sob a luz vermelha. Andava com Jandira de mãos dadas pela casa, elogiava seu trabalho e dizia que a mulher estava no frescor de sua juventude. Voltava todas as semanas cantando feliz logo que avistava a moça. Jandira nem cobrava mais por seus serviços. Guardava cada pétala de rosa que o rapaz nunca levou. Com a chegada do tempo úmido, Lourival parou de frequentar a casa noturna e Jandira parou
de visitar os cavalos no jardim. Os dias começaram a se tornar mais compridos. E seu tempo havia se tornado pó e seus sentimentos transformados em ferro. Será que Lourival nunca teria prestado a atenção? Se queria que ela fosse sua mulher porque não a levou embora? As colegas de quarto não a poupavam e rasgavam em pedacinhos seu coração. O pó branco não a aliviava mais, ela sentia um profundo desgosto. Contava para si a história do rato que tinha medo e o rato contava para mágico a his-
tória de Jandira. A barriga começou a crescer e junto um medo assustador vindo de seu íntimo. Foi para uma zona mais pobre da cidade, onde as mulheres trabalhavam na calçada confeccionando cadeiras de vime, assentos de palinha ou capas de garrafas com os filhos no colo. Jandira sabia que logo seria ela amamentando seu bebê. Enquanto Alicia crescia a pobre mulher embolava seus pensamentos em uma confusão dolorida que tocava o próprio nervo da nostalgia.
40 O dinheiro que ganhava mal dava para ela, quem dirá para as duas. Ela precisava do pó branco. E ele escorria sob suas mãos. Então Jandira conheceu a pedra. O contato com a pedra deu-lhe a sensação de que seu mundo se endireitava de novo. As noites se tornavam luminosas e cintilantes. Acima de todas suas alegrias ficava uma satisfação negativa: não se pode ser um leão com um coração de rato. Logo teria a prova disso. O jogo do ganso com Alicia era um passatempo para descarregar compridos dias de tristeza e enfado. Ensinava Alicia a escovar os dentes, pentear os cabelos, amarrar os sapatos. Mas o que a menina gostava mais era de jogar o jogo do ganso e empinar pipa. Não tinha força suficiente para segurar a linha quando o vento puxava. Achava graça quando a pipa perdia um pedaço da rabiola, ficava doida e caia. Era o momento que contava para sua mãe as histórias que aprendia. Todos os dias contava uma história sobre aventuras. Jandira gostava de imitar o ganso. Ensinar a filha a ler e escrever era um dos seus momentos preferidos, pequenos detalhes que faziam uma grande diferença. Lembra com lágrimas nos olhos de quando a filha fez seu primeiro desenho: um cavalo. As comemorações eram sempre iguais: mãe e filha. Jandira não podia fazer a festa que desejava, pois o pó sempre consumia boa parte do seu dinheiro. Mas sempre havia o bolo de chocolate, favorito da menina e pendurava alguns balões na parede. Nos poucos momentos em que a lucidez invadia seu corpo, Jan-
dira sentia-se feliz por poder oferecer algo bom para a filha. Nos momentos em que se encontrava sozinha Jandira procurava às cegas uma resposta para tantas perguntas. Qual a mais importante experiência que existe na vida de um rato? As colegas de trabalho advertiram que Jandira precisava de ajuda e aconselharam-na que fosse procurar algum médico que pudesse curar a mente. O primeiro diagnóstico: esquizofrenia. É uma destas descobertas cujo pensamento leva a tudo menos uma conclusão. Duas pessoas diferentes passaram a habitar o mesmo corpo, provocando conflitos entre si. Houve um momento em que a sua mente se desintegrou completamente. Jandira perdeu o controle do próprio corpo. Ele foi possuído por ansiedades intensas que se tornaram mais tarde em fobias intensas. Até aquele momento ela se considerava uma pessoa normal, igual a todas as outras, mas aquele seria o ponto que marcava a desintegração da sua mente, ela não foi mais a mesma. Alucinações visuais, sinestésicas e auditivas, delírios, fala desorganizada (incompreensível), catatonia, sintomas depressivos, confusão mental, embotamento afetivo e a apatia começaram a fazer parte do seu dia a dia. Talvez já fizessem antes. O que mudou foi o excesso de antipsicóticos, antidepressivos e ansiolíticos que provocaram um efeito colateral pior que o outro. As vozes diziam sempre o pior: suicídio. Humilharam-na. Compararam-na com o que ela era e o que é hoje. Mas tinha certeza que ainda era uma mulher bonita.
Em meio a um dos seus surtos, Jandira tentou suicídio,fracassou e isso se procedeu. Na segunda tentativa, porém, algo a impediu. Sua filha, Lourival, o mágico ou o ganso? Não se sabe. Hoje Jandira vive perambulando pela casa, chamando pela filha que nunca aparece. Não precisa mais ganhar dinheiro com o corpo, sobrevive agora gerenciando meninas que optam por levar suas vidas à sombra da luz vermelha. Mas os ratos continuam a aparecer, alimentando seus vícios, só que com menos frequência. A imagem da filha fica cada vez mais distante em sua memória. Jandira acha que sabe das coisas. Mas a única coisa que Jandira não soube é que Alicia foi uma criança natimorta.
“Um dia, ela descobriu sozinha que era duas! A que sofre depressa, no ritmo intenso e atroz da noite, e a que olha o sofrimento do alto do sono, do alto de tudo, balançada num céu de estrelas invisíveis sem contato com o chão”. Cecília Meireles
por Bianca Queda foto: Mariana Smânia
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Amando loucamente meu trabalho! Rogério é um homem alto, forte, com o corpo definido e visivelmente saudável. Poucos lhe dariam sua verdadeira idade – 49 anos –e facilmente poderia ser ilustrado como um homem que acabou de chegar à casa dos 40. Casado e pai de dois filhos, Rogério já foi caminhoneiro e se diverte ao lembrar-se da época da faculdade de Educação Física, onde parava seu caminhão dentro do campus universitário. “Terminei a faculdade para ter um diploma, porque se eu quisesse, poderia continuar nas estradas. O caminhão era meu!”. Formado em Educação Física e uma família para sustentar, resolveu prestar concurso para agente penitenciário para garantir um futuro a sua filha. Trabalhou na Penitenciária de São Pedro de Alcântara, onde lidou com presos de alta periculosidade e, segundo ele, lá aprendeu a malandragem do seu trabalho. Rogério conta que, em seu primeiro trabalho, os presos que incomodam dentro da penitenciária são conhecidos como “chinelo”. São esses que arranjam brigas, tentam fugir e se fazem de durões. Mas os internos que são mais perigosos são extremamente educados e obedecem às ordens sem retrucar. “O objetivo desses é sair da prisão para continuar seu ‘trabalho’ na rua”. A malandragem do trabalho penitenciário não está escrita e deve ser vivida para a entender. Mas, segundo Rogério, o importante é estar disposto a aprender. Em suas experiências, seu objetivo foi tentar “sugar” ao máximo os conhecimentos do seu dia a dia para aplicar permanentemente em seu trabalho. Para ele, existe uma troca de sabedoria entre todas as pessoas, sejam elas agentes penitenciá-
rios, médicos, psicólogos, psiquiatras, enfermeiras ou internos. Mesmo trabalhando como agente penitenciário, Rogério sentia a necessidade de incluir seus conhecimentos da Educação Física às pessoas com quem convivia. Passava pelos corredores onde ficavam as celas e dava dicas de exercícios e posturas aos presos que gostavam de manter a forma. E com este pequeno gesto plantou uma semente que despertou o desejo em um dos detentos em cursar faculdade de Educação Física. “Pra mim, não existe melhor recompensa do que estimular uma pessoa que tinha um futuro incerto”, diz ele. Com essa mistura de sentimentos pelos dois tipos de trabalho, Rogério deu um novo passo em sua vida profissional no ano de 2013. “Quando fiz o concurso para agente penitenciário, nunca passou pela minha cabeça que chegaria aonde estou hoje”. Convidado a trabalhar no Hospital de Custódia e Tratamento de Florianópolis, ele aceitou o desafio. Rogério conta, com o sorriso no rosto, sobre um emprego que lhe faz muito bem. “Aqui eu posso trabalhar as minhas duas áreas profissionais e ainda tive a oportunidade de conhecer pessoas que mudaram minha vida”. Hoje, como educador físico dos pacientes psiquiátricos, Rogério trabalha oferecendo mais qualidade de vida a pessoas com uma tentativa de resocialização e reinserção à sociedade. Mesmo, por vezes, com dificuldades de coordenação motora ou na linha do raciocínio rápido, os pacientes que passam pela atividade coletiva apresentam sensível melhora na convivência em
grupo. Além disso, a saída da rotina do pátio e da medicação traz a eles um momento de liberdade. Rogério não procura saber o motivo de cada interno para estar dentro da instituição, segundo ele, o importante é passar seus conhecimentos sobre atividade física e saúde e deixá-los experimentar um pouco de alegria. Seu cenário não é um dos melhores. Entre pacientes psiquiátricos, agentes, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiras e professoras, ele busca a felicidade por trás do sofrimento. Por isso, gosta de conhecer os pacientes, conversar, saber o que eles gostam de fazer e o que não gostam. Amilton é um dos exemplos que fazem os olhos do professor de Educação Física encher de lágrimas. Ele conta que Amilton era um dos pacientes e tinha um retardo mental. Alemão, ossos largos, com um andar torto e a fala enrolada, pois não tinha dentes, sempre se deu bem com o professor. Rogério conta que decidiu dar um par de tênis de basquete, já esquecido dentro de casa, para Amilton. Ao entregar o presente, deixou-o tão feliz que ele fez questão de mostrar para todas as pessoas do hospital e ainda ligou para sua mãe para contar. Amilton é apenas um dos pacientes que estampam a felicidade no rosto de Rogério por estar trabalhando com essas pessoas especiais. Segundo ele, chega a esquecer de que é um agente penitenciário. “Ser professor aqui é muito gratificante, mas tentar entender a loucura é uma grande loucura”, diz ele. Rogério acredita que encontrou um lugar em que toda a troca de experiência é valida: “todos têm um mundo a me ensinar, principalmente os pacientes”.
por Maria Luíza Bolzan
42 Régis Mallmann, um louco pelo jornalismo. “Isso mesmo, na esquina da Rua Búzius com a Rua Lagosta.” Depois de uma QUEDA e de ter ido ao endereço do seu antigo reduto parece que finalmente o dia em que falaríamos sobre sua obra tinha chegado. – Régis, Tô na esquina, mas acho que da rua errada! – Não faz mal, não tem problema. Vou até aí. A solicitude em falar sobre jornalismo, literatura, teatro, arte, música, gastronomia, gênios, mesmo em um domingo com o tempo nublado, com um céu que anunciava uma chuva de verão a qualquer momento, condizia com toda sua fama a mim relatada anteriormente. “Ele foi meu primeiro chefe no jornalismo”. Felipe Alves, agora repórter, relembra a época em que chegou ao Diário Catarinense como assistente de redação, caiu na editoria de variedades para trabalhar com Régis. “Ele sempre foi meu colega, mesmo sendo meu chefe. Sempre queria minha opinião.” Na última das seis passagens pelo jornal, em 2009, Régis Mallmann trabalhou como editor do caderno de Variedades do Diário. “Ele foi pauteiro de geral por muito tempo. A cabeça dele não para”. Antes de ser chefe do Felipe, o menino que queria ter feito história e que se inscreveu no vestibular para jornalismo por optar estudar sob a luz da lua, alternativa indisponível para o curso planejado, saiu de Estrela, 30 mil habitantes e a 92 Km de da capital gaúcha, para formar-se em 1985, na PUC de Porto Alegre. Logo os livros já não eram suficientes para que ele conhecesse o mundo, teria de tomá-lo com as próprias mãos. Começou sua cami-
nhada profissional pelo periódico O Informativo do Vale em Lajeado - RS, cidade que tem o rio Taquari como fronteira para sua terra natal. O próximo passo seria o primeiro dos seis dados em direção ao DC, primeiramente em Joaçaba quando o jornal completava seis meses de edição em Santa Catarina, depois o A Notícia de Joinville em 1988, e logo após ter cansado da cidade mais populosa do estado e chegado na capital como repórter do mesmo jornal, resolveu pedir demissão. Foi procurar emprego no O Estado. Ao sair do primeiro dia como repórter desta redação parou em um bar na rua Esteves Júnior, próximo ao local de trabalho, para conversar com o garçom, amigo e confessor a quem contara sobre a decadência anunciada. Seu ouvinte lhe ofereceu um vinho, o frio e todo o pessimismo em relação ao emprego novo eram sugestivos. Depois de dizer sim, algumas taças e horas de conversa, resolveu que não voltaria a trabalhar no outro dia. Em 1990, preparou um jantar para o editor chefe do DC, foi contratado novamente, lá permaneceu por quatro anos até ser contratado para cobrir sua amiga Silvia Quevedo como correspondente da sucursal da Folha de S. Paulo em Santa Catarina, agora mais prestigiado por estar escrevendo nacionalmente. Problemas, revelados depois, fazem-no pedir demissão em nome do desejo de viajar e conhecer outros lugares. Quando volta de viagem retorna para a sua quarta escala na redação do DC, em primeiro de janeiro de 1995. Iria para a editoria de cultura, mas regências internas o fizeram repórter de geral até que o pauteiro fosse
demitido após o carnaval. Solicitaram e ele aceitou ocupar o cargo. Em março do ano seguinte tornou-se editor do caderno de variedades, aos trinta e um anos. Demitiu-se. “Ele conta piada o tempo todo, sério. O motorista é quem deve ter boas histórias”. Felipe, o ex-assistente de redação, justifica o fato dele conhecer muita gente e ter muitos amigos. “Ah! Eu já fui em altas festas na casa do Régis, o cara sabe dar uma festa. Vai gente de tudo que é canto, toda imprensa. Ele conhece muita gente”, diz Vilmar de Souza, que foi responsável por levá-lo até seus entrevistados enquanto trabalhavam no A Notícia, sucursal de Florianópolis. “Quando ele descia do carro ele já sabia o que ia fazer”. Vilmar trabalhou por 21 anos naquele jornal e hoje continua como motorista de um veículo de comunicação, mas desta vez presta serviços ao Notícias do Dia, e continua com o carro repleto de jornalistas. “Jornalista tem muito de dupla personalidade, lá em cima é um e no carro é outro. O Régis sempre foi o mesmo cara, passa pela rua e cumprimenta.” Cheio de histórias para contar sobre tudo o que houve e ouviu dentro do carro enquanto dirigia, ele parece ter uma admiração pelo exercício da lida diária: “O motorista faz parte da equipe, se o fotógrafo não viu alguma coisa, e nem o repórter, eu posso avisar.” A fase que eram da mesma equipe corresponde ao tempo que Régis chegou ao AN depois de ter saído de Joinville e antes de trabalhar por um dia n’O Estado. “De repente dá uma loucura nele e ele desce o morro a pé mesmo. No AN ele era repórter de variedades
foto: Mariana Smânia
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Suicídio, a última fuga? Quando morrer torna-se uma opção na solução de um problema
Quem nunca pensou em morrer para escapar de uma sensação de dor? E quando o desespero é insuportável? A cada dia, o sofrimento torna-se mais intenso e viver passa a ser um fardo pesado e angustiante. A vida perde o sentido. O mundo torna-se cinza. E a possibilidade de fechar os olhos e tudo que incomoda ser resolvido é tentadora. Mas, será que a morte é a melhor opção? Diariamente milhares de pessoas de diferentes idades retiram suas vidas, movidos pelas mais diversas circunstâncias, mas todas têm o mesmo interesse: dar um fim em seu sofrimento, nem que para isso seus corações parem de bater. Uma das principais causas de morte entre os humanos, o suicídio estarrece, incomoda, silencia. E mesmo atualmente, o assunto ainda é visto por muitos, como um tabu, motivo de condenação, sinônimo de loucura. Mas dados revelam que o suicídio precisa ser entendido e discutido, pois esta “ideia” pode fazer parte da mente de pessoas próximas e você nem imagina. Quando viver vale à pena Quando somos jovens, com saúde e felizes, a morte parece ser algo sombrio e indesejável. Afinal, ninguém quer deixar de ser feliz para encarar o desconhecido ou mesmo o nada. Mas quando a velhice chega trazendo consigo doenças ,dores,depressão, a morte muda completamente de conceito e passa a ser algo desejável, quase uma eutanásia. O suicida se sente assim, “velho” o tempo todo não importando a idade,etnia ou classe, ele
não consegue identificar alternativas viáveis para a solução de seus conflitos, optando pela morte como resposta de fuga.Eles se tornam criaturas despersonalizadas, e muitas vezes não conseguem conviver com as angústias e dores que acometem sua alma. Morrer parece ser o ultimo golpe contra o sofrimento, contra uma vida aparentemente sem sentido, contra um futuro amedrontador. Mas o que faz uma pessoa visivelmente feliz e satisfeita seja na vida pessoal e profissional, abandonar tudo e todos? Talvez no seu mais íntimo, trancado a sete chaves, exista algum desespero que,em um dia qualquer, explodiu a ponto de ele pôr uma corda no pescoço e chutar o banquinho, ou esta pessoa guardava uma insatisfação perante a vida que ele só considerou resolvida depois que a bala de uma arma perfurouo próprio crânio. Segundo a psicologia, existem vários comportamentos que indicam a possibilidade de ideação suicida. Dentre eles o relato de querer desaparecer, dormir para sempre, ir embora e nunca mais voltar ou mesmo objetivamente o relato do desejo de morrer, mesmo quando falado num tom de brincadeira,podem ser fortes indícios de que algo está errado e que não podem ser ignorados. Algumas pessoas são levadas a esse ato por desespero, outras chegam a premeditar o fim da própria vida. O que os motiva é a falsa idéia de que sua vida não tem mais valor nem para si mesmo nem para os outros. E incapazes de comunicar a própria dor,usam fantasias para justificar sua atitude. O indivíduo vê no suicídio a oportunidade de
interromper uma existência infeliz e recomeçar, com uma nova chance para acertar. Também pode ser um jeito de acelerar o reencontro com pessoas queridas já mortas – o pai, a avó, um amigo, o cônjuge. Às vezes, o suicida responsabiliza as pessoas à sua volta por sua decisão, assim sua morte vale como um castigo para os que o cercam, como se ele estivesse se vingando de atitudes recebidas. Quando escolhem este caminho, alguns se justificam e se despedem através de cartas, telefonemas ou pequenos, enquanto outros, simplesmente se vão no mais absoluto silêncio. Uma passagem só de ida, por favor! Se por algum segundo,seja la qual for o motivo,um individuo pensa em se matar, ele precisa entender três coisas: Suicídio NÃO tem volta.Depois de realizado, será o seu fim e isso é tudo. Não há restart oupossibilidade de arrependimento. Pense nos prós e contras, nas consequências para a sua família, para os amigos, para o seu trabalho e para a sociedade. Suicídio exige RESPONSABILIDADE. Tem pessoas que tentam suicidar-se e acabam ficando vivos, vegetando e dando trabalho para a família. E outros que correm o risco de matar outras pessoas se jogando de prédios, explodindo coisas ou mandando balas perdidas. Não existe garantia de que o método que você escolher vai ser rápido e indolor, talvez possa apenas entrar num sonho permanente, como também pode passar horas e mais horasquem sabe um ou dois dias?- agonizando lentamente até a morte.
por Débora Laurindo
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? Pequenas categorizações
sobre morrer A palavra suicídio vem do latim sui, “próprio”, e caedere, “matar” é o ato intencional de matar a si mesmo. O suicídio nada mais é do que uma forma de escolher como, onde e quando a pessoa irá morrer. Mas não é uma maneira garantida de que não se vá sofrer ao morrer ou mesmo que você vai obter êxito ao tentar tirar a sua própria vida. Sendo que as influências mais comuns são os transtornos mentaisou os psicológicos como, por exemplo, o transtorno bipolar, a esquizofrenia, o abuso de drogas, a depressão, sendo que esta é responsável por 30% dos casos relatados em todo o mundo segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) no ano de 2000. Dificuldades financeiras e também emocionais desempenham um fator significativo. Os tipos normalmente são classificados como: Suicídio primário é cometido em geral por pessoas com quadro psicótico agudo (esquizofrênicos, usuários de drogas pesadas) que por culpa de alucinações cometem o suicídio, como se estivessem sendo ameaçados ou perseguidos pelas alucinações. É perda de juízo da realidade. Suicídio secundário existe quadro depressivo grave, onde a idéia de negatividade, desesperança absoluta, faz com que a mente em trevas não enxergue luz nem motivação alguma para viver. Morrer torna-se uma ideia menos dolorosado que a de viver cada dia angustiante e sem sentido, tendo na morte um alívio. O suicídio reativo é um ato extremo em que pessoas fragilizadas afetivamente, seja por luto, por perda afetiva, ou falência financeira ou até por vergonha e culpa (comum em japoneses) cometem o autoextermínio. Suicídio por acidente ocorre com pessoas que sempre “tentam se suicidar”, mas não querem tal objetivo, algumas buscam chamar a atenção por teatralidade ou chantagem emocional, outras o fazem por impulso, assim acabam errando o tipo de “calmante” e,consequentemente,falecendo. Não podendo esquecer é claro, do suicídio medicamente assistido, a Eutanásia ou o “direito de morrer” que é atualmente uma questão ética muito discutida pois que envolve um determinado paciente que esteja com uma doença terminal, ou em dor extrema, que tenha uma qualidade de vida muito mínima através de sua lesão ou doença
foto: Mariana Smânia
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Diálogo, corpos, leitura e A escada, o corredor tão frio que quase congela o coração. A decepção dos meus pais, a vergonha de quem me esqueceu porque estou aqui, mas que algum dia na vida, nem que por instantes, já demonstrou grande afeto pelo que aqui vos fala. A questão não sou eu, nem vocês. Meus pais me criaram, uma criança amada e até com um capricho demasiado que beirava o mimo. Somos engolidos pela vida ou engolimos a ela? O que dói nesse mundo dos loucos é a linha, fina como uma linha de uma teia de aranha, que nos faz iguais aqui. Porque somos todos loucos como as bulas de remédio, a nossa tarja preta assusta todo mundo, sem exceções. Não há o queridinho, não há o esperto e nem o brincalhão. Há loucos. Aqui não há santo ou assassino, há malucos. Há pessoas de classe baixa, cheiro ruim, unhas dos pés sujas, carinho jogado. Digo que o carinho é jogado, pois simplesmente ganhamos ele de quem nos ama, ele vem no contrato de trabalho de pessoas que, muitas vezes, nem sabem quem somos. O carinho, antes de chegar até nós se perde no ar, mas, no lugar, dele, marmitas com feijão, arroz e bife; beliches e banheiros em quartos que possuem grades nas janelas e nas portas nos são concebidos. A nós tudo e todos se esquivam. Até eu me esquivo deles, e se eu me esquivo deles, eu sou um deles, eu me esquivo de mim mesmo. Como exigir amor de funcionários que fazem exercício e baixar punho, em uma busca incessante ao momento de olhar para as horas e ver, pontual a hora de ir embora. Não há conversa ou santo que me faça acreditar que alguém tenha amor verdadeiro por mim. Nem mesmo minha mãe que mantém as visitas constantes não
consegue tirar do outdoor dos seus olhos a angustiante situação de ter um filho aqui. O beijo no rosto e o tempo que passamos juntos só causam dor, por ter eu feito sofrer a mulher que um dia já foi menina e que não merece de maneira alguma perder tempo e vida sofrendo com um fantasma vivo que tem nome e sobrenome, que, naquela manhã de amor, entre ela e meu pai, fui justo eu o esperma vencedor. Coitada da minha mãe e coitado de mim! Porque vejo aqui, tão feliz e atenciosa, já meio bronzeada do verão, com certeza uma menina que vive muito a liberdade, só pela expressão no rosto. E vejo a mim, no que o meu futuro guardava dentro do nada, quando algum dia eu pensei besteiras, besteiras e besteiras. Culpei-me com aquilo, tanto que ocupei em esquecer, mas um dia tranquilo, andando, fui eu estuprar duas e três meninas. -Não consigo eu como a menina que sou, beirando a normalidade, não sentir nojo do que ouvi e a confusão mental estava feita. Amar ou odiar aquele ser humano que está ali, só não sozinho porque carrega com ele a solidão e as lembranças dos três estupros que contemplaram a história da praça verde do bairro onde morava em Florianópolis. Razão, emoção, um meio termo, talvez? Posso eu simplesmente ignorar esse lugar e essa história, como todos os moradores que fazem parte de uma sociedade com cadeiras ocupadas onde para um não ser padronizados a resposta será o dejavú viciante repetido e repetindo e repetido: - cadeiras ocupadas; cadeiras ocupadas. Como um eco. Se fossem bonecos, poderíamos guardar na estante para enfeite. O meu entrevistado, é até um pouco bonito, poderia sim ir para a
estante, enfeitar a sala. Mas, não dá, além das necessidades básicas, ele sonha, pensa e vive. Um tamagoshi de pele e osso. Um humano que, ainda por cima, tem sentimentos, como eu e você! No HCTP ele vive o mundo paralelo, ele participa quase que de uma seita, não! Melhor dizendo: ali vivem os homens da sociedade secreta. Algum genezinho, algum azão – azinho, que não cruzou no coito e pumba! Vamos todos para a sociedade secreta. Terror! A minha mais sincera confissão, estilo verdade nua e crua é que me sinto tranquila em saber que, depois dessa aula, não preciso mais bem ler esse texto, nem lembrar desse homem, nem pensar na confusão mental ou no nojo que tive ali. A minha sincera verdade que em coragem voz digo que desejo não ter mais que voltar lá. A minha sinceridade jogada na cara dos bons cidadãos que pregam a ajuda ao próximo, mas que nunca estiveram por lá, ou aqueles que foram algumas vezes e nunca mais voltaram. Nossa verdade? Eu não faço parte da sociedade secreta, nem você! E estamos muito ocupados vivendo na nossa sociedade pública, seguindo horários, padrões e tentando não matar ninguém para que, assim, não viremos um tarja preta qualquer, sem passado, presente ou futuro. Que os comedores de arroz, bife e feijão fiquem bem longe de nós. A nossa sociedade é assim, e essa não sou eu falando, somos nós, você faz parte disso e, tenho certeza, que nas próximas horas, dias, semanas, meses, não voltará tão cedo a “dar uma atenção” aos órfãos da vida, aos desprovidos de padrão que choram como criança e imploram mais do que tudo o inatingível perdão!
por Bruna Moraes Silva
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grades.
foto: Mariana Sm창nia
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Sublime sentimento. A mulher que amou demais na visão de uma criança Todos nós temos um pouco de louco, pois, afinal, o que é ser louco? É ter uma mania que mais ninguém tem? Gostar de coisas estranhas aos olhos dos outros? Ou ter um sentimento reprimido dentro do peito, de forma que ninguém mais consiga sentir ou entender aquela angústia? São perguntas que não têm respostas precisas, mas ao menos cada sujeito tem a sua própria opinião sobre a loucura. Em um corredor escuro, assombrado pelos fantasmas, bruxas e outras criaturas presentes em um espelho antigo com ornamentos em volta, estava sentada a menina loira de cabelos curtos, olhos verdes, pequena e frágil, com os seus cinco ou seis anos. Suas mãozinhas tapavam seus ouvidos para abafar o som dos berros e choros que vinham ao encontro das suas lágrimas também. Esta cena tornara-se frequente por uns tempos, até que certo dia a solução foi encontrada no Instituto São José, localizado no centro histórico do município de mesmo nome. Os gritos eram de sua mãe. Desde que nascera esta menina enfrentava muitas coisas na vida, situações que poderia nunca ter passado, não fosse o erro médico que sua mãe havia passado durante seu parto. Na sala do parto estava a mãe dando à luz a sua primeira filha, enquanto o médico que deveria lhe dar assistência naquele momento preferiu conversar sobre sua doce lua de mel com as enfermeiras. Este tempo sem a presença médica foi crucial. Um bebezinho pequeno e frágil que chegaria ao mundo como qualquer outra criança, teve falta de oxigenação no cérebro, fator que com-
prometeu seu crescimento e desenvolvimento em alguns aspectos. Aos sete anos a menina aprendeu a dar seus primeiros passos, após muito rastejar pela casa para poder brincar com seus outros quatro irmãos que vieram após sua chegada ao mundo. Sua fala continua até hoje um pouco enrolada, assim como seus passos atrapalhados. E como se não bastassem estes percalços da vida, a menina cresceu. Ao vinte anos ela também se apaixonou, como qualquer outra mulher. Uma paixão que não era esperada pelos seus familiares e que só chegou ao conhecimento de seus entes no sexto mês de gestação, após ter tido uma queda no banheiro durante o banho. Junto à queda veio a notícia de que estava grávida. Desde então muitas especulações sobre quem seria o pai daquela criança que carregava em seu ventre vieram a lhe atormentar. Vários vizinhos foram alvo de questionamentos. Quem teria sido o homem que usou daquela paixão, daquele corpo, sem ter nutrido um sentimento real por ela, indefesa e irracional em algumas questões da vida. Seu único confidente sobre aquele nome foi um velho amigo que sempre estava lá, sentado na vendinha da casa de interior. Certo dia ele não se conteve e contou aos familiares da moça o nome de quem fez aquilo. Cinco dias após completar os vinte e um anos nasceu a filha, fruto de uma paixão e de um amor não correspondido, de um homem que teve cinco filhos com a mulher com quem era casado; sim, ele era casado! Esse foi o estopim para que a mãe
da menina loira chegasse mais tarde ao que seria a sua ‘loucura’. Ela não compreendia porque as outras pessoas podiam se separar de seus cônjuges e juntar-se a outro amor, sendo que com ela isto não acontecia. Seus sonhos eram como o de qualquer outra pessoa romântica: casar, construir uma família, trabalhar. Porém, nada daquilo lhe era possível devido as suas condições e também por não ter correspondido o amor por quem nutria. Sua fúria aumentou de tal forma, que ela chegava a ameaçar a sua mãe: gritava, queria extravasar a sua dor, seus sentimentos. A filha pequena presenciava aquelas cenas diariamente. A avó da menina pedia para que ela ficasse quietinha em seu quarto, que fosse brincar com os vizinhos, enfim, queria proteger aquela doce infância das cenas rotineiras. Até que certo dia a solução foi a internação da mãe no Instituto. A menina sempre que podia ia com sua avó visitar sua mãe, o presente que mais gostava de levar para a mamãe era uma bandeja de Danoninho. Sua mãe até hoje gosta de Danoninho. Os corredores do lugar pareciam longos para a pequena garotinha, tudo era grande para seus olhos pequeninos. Havia um lindo jardim no local, com banquinhos e árvores que faziam sombras acolhedoras, mas ela via a tristeza nos olhos de sua mãe por estar naquele local, longe de seus parentes e do fruto de seu amor. Lembra-se de ouvi-la reclamar de sua colega de quarto, mas tudo muito vagamente, pois era pequena demais para guardar tantos detalhes em sua memória.
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Foram uns dois meses de visitas ao local, até que sua mãezinha pudesse retornar. Desde então ela toma doses diárias de fluoxetina, um remédio controlado usado como antidepressivo; quanto faltam essas doses diárias a situação fica conturbada novamente. Quando a menina estava com doze anos, recebeu de sua vó a notícia de que seu pai, que nunca viria a conhecer, havia se matado com veneno de rato. Seu corpo foi encontrado em um posto de gasolina, por um de seus irmãos. Este acontecimento conturbou novamente os sentimentos da mãe da menina, que até hoje guarda esta paixão no seu interior, em segredo, mas que deixa transparecer alguns traços de suas lembranças. A loucura que vemos nos outros não pode ser compreendida por nós sem que entendamos o contexto de suas vidas, a sua trajetória, pois ninguém passa por situações deste tipo sem um motivo ou algo que lhes aflija. Você provavelmente já cometeu alguma ‘loucura’ ou pensou em algo do tipo também,
por Mariana Eli
foto: Mariana Smânia
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Loucura por detrás da Memórias e reflexões de uma visita ao hospital de custódia Do lado de lá daquele grande portão branco tem gente. Passando pelo estreito corredor, entre telas da pra ver a horta à direita. Ali tem alguém que capina, um dos únicos que se recusou a usar uma roupa laranja. Mais alguns passos e entramos por uma porta de madeira escura em uma “sala de espera” de onde se ouve gritos. Uma voz cala todas as outras. Da pequena entrada da pra reparar algumas portas a direita e à esquerda uma grade do chão ao teto. Alguém passa com a mão cheia de cartelas de remédios. E esse cheiro de abafado? Parece que o vento não quis entrar. Passando pela grade, um corredor, portas de madeira escura fechadas por cadeado, os homens com as chaves não vestem jalecos. As paredes são verde claro. Nada de luz fluorescente iluminando grandes corredores brancos, nada “Hollywoodiano”. Os que estão atrás das portas na antiguidade eram brinquedos dos deuses, na era cristã eram os possuídos por demônios, na Idade Média foram leprosos. Quem são eles agora? Um refeitório de azulejos brancos onde os pratos são potes redondos, parece que a comida não é tão boa. Um jardim interno, mais uma porta de onde se vê camas. Logo à frente uma sala pequena
com obras de Tarsila do Amaral, Romero Britto, Van Gogh e alguém cujo nome ainda não se sabe. Naquele lugar não há quem seja certo ou errado, porque no mundo particular de cada um, todos são reis. Esses homens trancaram-se dentro da própria mente e foram julgados por quem estava de fora. O mundo além do portão convencionou que para estar fora das grades não se pode pensar tão diferente assim. Lá fora, ao contrário do mundo daqui de dentro, é você quem controla a sua mente e não sua mente que controla você. Todo dia de manhã alguém acorda, lava o rosto, escova os dentes e troca o pijama porque aquela roupa não foi feita para sair à rua. Toda dia alguém nasce e vai crescer para estudar, trabalhar e acordar pela manhã repetindo uma rotina na maioria dos dias de sua vida, porque assim é dito por muitos como normal. Dentro do lugar de paredes verdes há poucos homens e mulheres que estabelecem que há hora certa para cada atividade. Enquanto loucos são assim chamados por viverem o mundo único de suas ideias e alucinações, as pessoas sãs vivem o mundo único de suas convenções. Talvez não se consiga ver saúde nas pessoas, apenas doenças. Tome um remédio para dormir, um
por Manoela Nascimento
para acordar, um para ficar feliz e outro pra ficar calmo. Tristeza é doença e a sua vida perfeita está a alguns passos, na farmácia mais próxima. Seu comportamento deve ser semelhante ao dos seus pais, irmãos, amigos e vizinhos. Todos loucos por dentro e normais por fora. Tudo leva a crer que o destino de todas as Casas Verdes, como aquela atrás do portão branco, seja o de fechar as portas e pôr fim a suas histórias de mais de 300 anos. Séculos em que parte da sociedade defendeu que uma parte dos seus membros não pode conviver com os demais. Por que não podem viver como nós, conosco, em nosso meio? Por que são negros? Por que são índios? Por que são loucos? Saber lidar com o diferente nunca foi o forte do ser humano, nós idealizamos uma vida, uma sociedade e comportamentos. Dizemos que assim é certo e diferente é errado, enfeitamos a realidade e nos colocamos numa zona de conforto. Transtornos psiquiátricos nos tiram desse marasmo. Ver o que tanto se tentou esconder dá medo, talvez de nos aproximar demais dessa realidade a ponto de se ver no outro. Afinal, quem gostaria de se ver espelhado em quem é chamado de louco?
porta.
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A psiquiatria nasceu com o nome de alienismo, ciência dedicada ao estudo da alienação mental. Alienado tem a mesma origem etimológica de alienígena, alien, estrangeiro, de fora do mundo e da realidade, mas também pode ser entendido como perturbação mental, na qual se registra uma anulação da personalidade individual. Quem tem personalidade individual no mundo dos iguais?
foto: Mariana Smânia
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Por trás dos muros. Rua Delminda da Silveira, nº 260, Agronômica. Este é o endereço da Penitenciária de Florianópolis onde em anexo está o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Em um primeiro momentocera percebida uma tensão dos trabalhadores com relação aos visitantes, o cuidado principal era para que as fotografias não identificassem o lugar e as pessoas que faziam tratamento. A primeira parada foi em uma espécie de recepção separada de um corredor por um portão de ferro. Ao atravessá-lo um cheiro extremamente forte invadia as narinas, não era possível definir o que era ou de onde vinha mas, era um odor único. Em toda a extensão do corredor havia portas trancadas lado a lado, e olhando através delas se via uma cama ao lado de uma mureta de aproximadamente um metro e meio onde atrás estava um chuveiro. Algo diferente das expectativas, embora não soubéssemos o que iríamos encontrar, aquilo era diferente. No final do corredor estava o refeitório. Organizado, com mesas e bancos de cor branca alinhados lado a lado. Os sons se misturavam, tanto da conversa que acontecia naquele ambiente, quanto da “pelada” que acontecia entre os pacientes do lado de fora e gritos que esporadicamente cortavam o corredor e
invadiam o espaço. Era uma sensação estranha. São vidas de pessoas desconhecidas que acabaram cometendo crimes por um devaneio. Ao sair do refeitório atravessamos mais uma vez o corredor, aquele cheiro forte ficou impregnado nas narinas de uma forma que mesmo em outro lugar era possível senti-lo. O grupo dirigiu-se a um pátio em que um grupo de pacientes conversava. No fundo desse pátio havia uma porta que, ao ser transposta, revelava o universo artístico. Pelas paredes, versos e desenhos. Carteiras escolares alinhadas ocupavam a maior parte da sala. Quadros de palhaços e releituras de obras de pintores famosos dividiam os espaço com livros, e o mais importante: alunos atentos e aplicados prestando atenção aos ensinamentos de uma professora que dava aula com o coração. Um ambiente inesperado dentro de um lugar onde as grades garantem o bloqueio dos espaços. A tensão da chegada ia dando espaço a uma alegria contagiante e as lágrimas da professora que falava como funcionava a escola de arte davam aconchego aos corações de quem a ouvia. Saindo de lá, outra vez o corredor aparecia mas, dessa vez dando adeus. Ou apenas, um até logo.
por Adriana Calazans
foto: Mariana Smânia
Alguém tão próximo. Um assunto abordado de uma maneira diferente, onde temos cinco mulheres em uma luta triste mas com muita perseverança contra uma doença incurável. Tive a honra de poder entrevistar uma dessas mulheres que vivenciou isso de muito perto e teve que ter muita força pra ver a irmã passar por tudo que passou. Começamos a conversa tranquilamente, foi bem fácil falar sobre o assunto que é, ao mesmo tempo, tão delicado. Vamos às perguntas: - Como ela era na infância, se era como as outras meninas, se era mais quieta que as outras, como ela agia? _ Cristiane sempre foi uma menina bem quieta. Somos cinco mulheres em casa, além dos homens, mas das filhas ela sempre foi mesmo a mais quieta. Mas, nunca percebemos que esse jeito dela de ser pudesse ter qualquer outra explicação, a não ser uma coisa de personalidade mesmo, ou seja, cada um tem um jeito diferente. Ela sempre foi a mais reclusa, a de falar pouco, de não se enturmar muito. Brincava como qualquer criança, com a ressalva de se resguardar um pouco mais. - Quando que a família começou a perceber a doença? - Foi por volta dos 15 anos dela, quando atendemos a um pedido de matriculá-la em uma aula de teatro. De repente, ela que era bem quieta começou a falar e a gesticular desordenadamente, falando muito o tempo inteiro, como se fosse uma vitrola descontrolada. Achamos aquilo muito estranho para um comportamento que até então era de uma menina pacata e tranquila. Começamos a notar a intensidade de gesticulação, alguma tremura nas mãos, voz desordenada e rápida demais.
Dali para o diagnóstico da doença foi um pulinho: esquizofrenia. - Como a família lidou com o caso? Deve ter sido bastante difícil, como foi o tratamento? - Foi muito difícil todo o processo, até porque as crises iam e vinham intermitentemente. Ela passou por várias internações no Instituto Psiquiátrico São José, e, no fim, até foi parar na Colônia Santana. Nas vezes em que a mantínhamos em casa, ela se desgovernava totalmente: queria bater em todo mundo, se morder, andar nua pela rua, quebrar coisas dentro de casa... Foi muito difícil, bem complicado mesmo. Lembro-me de que ela tomava um remédio punk, um tal de Haldol, forte, que a deixava mais transtornada ainda. Minha mãe já não sabia o que fazer para controlá-la. Quando ficava um pouco melhor, vinha para casa. Houve uma época em que nós nos revezávamos para ficar com ela fim de semana. Ela esteve comigo uns finais de semana, mas eu via claramente na tremura das mãos o transtorno de que era acometida. - E como ela vive hoje em dia, namora, cursa faculdade, trabalha, sai para festas, tem amigos? - A Colônia Santana foi o fundo do poço. Quando ela foi para lá, já tinha arranjado um marido na fase da melhora e estava grávida de cinco meses. Tomava chute na barriga, batiam nela. Quando íamos visitar, estava sempre suja, com piolhos, não lavava as mãos depois que evacuava, era uma aberração, muito, muito triste. Pensávamos que a criança ou não sobreviveria ou viria com sérios problemas de saúde. Rezamos. E te digo uma coisa: a fé tem razões que a ciência desconhece totalmente. Minha mãe, que é devota fervorosa de
Nossa Senhora Aparecida, foi à Basílica em São Paulo e fez uma promessa para minha irmã melhorar. Até hoje sabemos que foi a força da fé de minha mãe que a curou. Um tempo depois ela apresentou melhoras e foi para casa. Teve um filho lindo e saudável, o Kalled, e nunca mais teve quadros da doença. Hoje é uma pessoa normal. No ano passado engravidou de novo e teve mais uma menininha linda e saudável, a Ester. Tem uma vida regrada no que diz respeito à alimentação, come muita fruta, verdura e grãos, não consome carne vermelha ou branca. Do jeitinho dela, é feliz. E está bem, o que mais importa para a gente. - E como a você lidou com tudo isso? Eu cheguei a ter princípios de depressão cada vez que ia visitá-la. Foi uma experiência muito traumática. Em várias das visitas ela tinha de usar camisa de força. Era amarrada feito um bichinho. Às vezes vinha dopada, toda mordida, a pele lastimada pelos dentes ou pelas unhas. Eu via minha irmã definhando, suja, malcuidada e não podia fazer nada. Era uma sensação de impotência muito grande. Foi um período muito triste para nossa família, todos nós sofremos muito. E eu, por ser mais sensível, ficava muito mal. Graças a Deus hoje está tudo bem, ela está bem. Foi a fé que a salvou, até porque as crises iam e vinham constantemente. Depois da promessa, ela não teve mais nada. Nunca mais teve crises. Hoje tem 30 anos e depois do nascimento do primeiro filho, que tem seis anos, nunca mais a doença voltou. E que continue assim. É isso. Posso dizer que essa mulher que passou por tudo isso e que quase teve momentos de depressão é
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minha Madrinha. Minha família, mesmo que distante, assim como eu sentia a tristeza que era tudo o que estava acontecendo e ver que foi dada a volta por cima, que hoje ela tem uma vida tranquila tem dois filhos e que a família toda está bem, deixa-nos e deixa-me muito feliz. Assim com o testemunho de alguém tão próximo e poder mostrar para outras pessoas que sim, existe uma saída, tem sim como se tratar e viver uma vida “normal” que termino essa matéria.
por Anderson Almeida
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foto: Mariana Sm창nia