Revista Literária Pixé - Especial Letras da Amazônia

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LITERÁRIA

ANO 3 SETEMBRO/2021 EDIÇÃO ESPECIAL LETRAS DA AMAZÔNIA

PINTURA: RUTH ALBERNAZ


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LITERÁRIA

ANO I SETEMBRO/2019 EDIÇÃO ESPECIAL 100 ANOS DE JOÃO ANTONIO NETO


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REVISTA PIXÉ

Eduardo Mahon Editor Geral


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editorial

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ixé de novo! Não é nenhuma invenção esta revista literária, mais uma de centenas que o Brasil viu nascer e morrer. Costumam trombetear manifestos, reivindicando inovação. Afinal de contas, bom cabrito é o que mais berra, não é mesmo? Na Pixé, contudo, a gente não quer gritar. Pensamos que o sussurro funciona muito mais. Talvez seja essa a diferença: a regularidade e, modéstia à parte, a consistência. Autopropaganda? Claro! Por que não? Afinal de contas, faça chuva ou faça sol, parimos uma edição. É dureza reunir todos os meses mais de três dezenas de escritores e um grande artista para encantar os leitores. O poeta modernista João Antonio Neto lançou recentemente um dicionário amoroso de palavras, ressignificando surrados verbetes. Daquele cipoal semântico buscamos o que um homem de 100 anos de idade entende por novidade. “Caduco reintroduzido” – eis a definição. Estará errado? É claro que não. No afã de vanguarda, gerações de escritores abjuraram estilos, cuspiram nas cruzes da estética, recusaram influências literárias. Em resumo: negaram o passado três vezes antes de o galo cantar. Mais velhos, porém, esses mesmos iconoclastas desconversam e dizem que a paranoia da juventude foi a responsável pela pretensão de estar à frente do próprio tempo. Para quem viu muita coisa como é o caso de João Antonio Neto, a novidade não passa de um caduco redivivo. O nosso escritor homenageado com esta edição foi moderno sem ser modernista. Em meio a um grosso caldo parnasiano, ousou o verso livre. Hoje parece pouco, mas não era fácil divergir dos emplumados rouxinóis da época. Nas décadas de 30 e 40, a nova poesia que despontava sem a camisa de força dos versos alexandrinos era um gesto intelectual de rompimento. No fundo, os escritores acomodados com a tradição acreditavam que a liberdade baudelairiana era uma febre passageira, coisa de bárbaros. O poeta modernista era um viking literário: im-

petuoso, aventureiro e casca grossa. Mas seria o modernista realmente casca grossa? José de Mesquita, do alto do olimpo acadêmico, torcia o nariz para o modernismo e, claro, para a moçada do verso livre: “De vez em quando, um grupo de ‘novos’, com tendências iconoclastas, surge de tacape e bodoque, procurando revolucionar os moldes e formas de expressão, mata o soneto pela centésima vez e tenta liquidar os que não lhes acompanham os ardores e verduras da mocidade...”. Felizmente, João Antonio Neto e outros tantos trogloditas da poesia derrubaram o estilo grandiloquente dos Golias empoados. Ninguém pense, contudo, que o nosso centenário homenageado tenha precisado de tacape e bodoque. Preferiu o caminho sereno da discreta divergência e, como já dissemos, foi moderno sem ser modernista. Trouxe a novidade sem ser novidadeiro. Contrariou sem romper. Além do mais, João Antonio Neto fundou e contribuiu com várias publicações modernistas, em meio à tradição passadista da literatura encomiástica, da crônica memorialista, do academicismo redundante. Foi ele quem primeiro desencavou os méritos do inquieto Lobivar Matos, corajoso poeta que denunciava a preguiça intelectual dos “sapos da academia”, além de registrar a trajetória dos jovens Gervásio Leite, Rubens de Mendonça e JB Martins de Melo, unidos em prol da Revista Pindorama em 1939. Lançou a Ganga em 1951 e atravessou o tempo inspirando os irreverentes jovens do Caximir com poemas impressos no Saco de Gatos, toalha poética que alegrava as mesas dos botecos do “Baixo Coxipó”. Por tudo isso, dedicamos esta edição integralmente ao sempre jovial João Antonio Neto, o homem que não romantiza o passado, não se desencanta com o presente e não se ilude com o futuro. São raras as ocasiões nas quais encontramos escritores que escapam às armadilhas do idealismo. Enquanto muita gente bate a cabeça contra ou a favor do progresso, João Antonio Neto ri do tempo para vencê-lo.


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expediente Direção Geral e Edição: Eduardo Mahon Colaboradores desta edição: João Antonio Neto, Larissa Silva Freire Spinelli, Divanize Carbonieri, Marília Beatriz de Figueiredo Leite, Olga Maria Castrillon Mendes, Cristina Campos.


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SUMÁRIO 2 10 12 14 56 58 60 64

Projeto Gráfico/Diagramação: Roseli Mendes Carnaíba Artista Visual Convidado: Mari Gemma De La Cruz

Editorial Olga Maria Castrillon Mendes Marília Beatriz de Figueiredo Leite João Antonio Neto Mari Gemma De La Cruz Larissa Silva Freire Spinelli Divanize Carbonieri Edital Prêmio Pixé de Literatura


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POR ENTRE PLURI-VERSOS DE JOÃO ANTONIO NETO

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m tempos de reflexão sobre o que de poesia tem sido feita a literatura produzida em Mato Grosso e, mais especificamente, o que temos como dominadores de palavra, significativa é a contribuição de João Antonio Neto (19/04/1920), criador de uma “realidade superior”, como aquela que impulsionava Mallarmé. O escritor viveu e produziu em quase todo o século XX. Como jurista, crítico, ensaísta, poeta, atinge, lucidamente, o centenário de nascimento, em 2020. O que seja que cria, Neto é poeta até fazendo lista de palavras, como nos últimos lançamentos Banquete de palavras, Palavras grávidas e Revelação em palavras, de 2018. Uma trilogia linguística em que brinca com os sentidos. É como se estivesse gravando um recado para os contemporâneos e as novas gerações: sem leitura, pesquisa e muitíssimo bom humor, a vida se torna impossível. A poética- geografia (ou seria geometria?!) do verso nos é dada em forma de poemas-aprendizado. Em repouso, a palavra adquire dimensões de embriaguez e atravessa os silêncios com os que passamos a figurar e significar, no devir da encantadora ambiguidade. Ao longo de produtiva vida tem desenvolvido a faculdade de transitar entre a realidade pragmática e o maravilhoso espaço do imaginário em que tudo é possível. Acolhe vozes vindas de todas as direções, de culturas distintas e recria tudo na escolha do tom muito particular de sua insubstituível dicção. Nesse espaço mágico de poesia a literatura se expande e a palavra habita o poeta e com ela, todo o espetáculo do humano. Em diálogo com a obra poética e filosófica e até mesmo nos ensaios sobre literatura, colocamo-nos à espreita e somos interpelados por embates entre escuta e fala da linguagem. Penetra-se no “estado de palavra” como fala Manoel de Barros. Dessa maneira consegue-se ver o invisível ou as “(in)significâncias”. Nesse movimento do pensar se funda e se finda o

inesgotável acontecimento poético. É o espaço de doação que não retém o conhecimento, mas se doa no movimento do pensar. Saber é sabor (coincidência etimológica). É travessia invocada pela experiência do ser que surpreende a existência no instante da criação e floresce na dinâmica verbal. Por isso, se torna tridimensional: na iniciante poética de Vozes do coração (1941) e Remanso (1982), na prosa corrompida de Poliedro (1970), ou na fragmentação minimalista dos versos de Silhuetas e (in)significâncias (1988). Nesse conjunto criativo viaja-se pelas poliletras, ou poliversos, pois as imagens, de tão sofisticadas, são simples; de tanta preeminência, são exatas – palavras-símbolo de um tempo e de um lugar de quem não almeja nada mais do que a poesia verdadeira. Do poeta guardo memórias de um elegante e alegre professor do Instituto de Linguagem da UFMT, no auge dos anos 1980. Relembro-o numa feliz singularidade de jurista e ardente atitude de poeta. Também como um filósofo suas ideias alcançavam os jovens universitários e a mim me chegaram juntamente com os artigos e ensaios sobre a literatura mato-grossense, publicados na Revista Educação, fundamentais em tempos de escassez crítica. Como membro da Academia de Letras reconheci-o pelos discursos e escritos na Revista e como candidata ao ingresso na mesma instituição, nada mais se equipara ao prazer infinito de penetrar em sua biblioteca e prosear com o poeta ao ofertar-lhe o livro oriundo da minha tese de doutoramento sobre a imagem de Mato Grosso no conjunto da obra do Visconde de Taunay. Por isso e pelo crescente carinho e admiração que nutro por João Antonio Neto, digo que com ele e sua obra se aprende a viver, a envelhecer com sabedoria e a reinventar o futuro como única saída para a exploração de novas possibilidades e vontades humanas. Puro deslocamento que permite a “heterotopia”, do centro para a margem, como fala Boaventura Sousa Santos.


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Olga Maria Castrillon-Mendes É professora do Curso de Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, dos Programas de Mestrado Profissional em Linguagem/ PROFLETRAS e Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários/PPGEL/UNEMAT. É Sócia Efetiva do Instituto Histórico e Geográfico de Cáceres e da Academia Mato-Grossense de Letras; Líder do Grupo de Pesquisa “Questões históricas e compreensão da literatura brasileira” (CNPq/ UNEMAT/2002). Integra os Grupos: RG Dicke de Estudos em Cultura e Literatura de Mato Grosso (CNPq/UFMT). É autora de Taunay viajante: construção imagética de Mato Grosso (Cuiabá: EdUFMT, 2013) e Discurso de constituição da fronteira (www.unemat.br/publicações/e-book, 2017), além de artigos em periódicos e coletâneas nacionais e internacionais.


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Marília Beatriz de Figueiredo Leite É professora fundadora da UFMT, adjunta nível IV; mestre em Comunicação e Semiótica, pela PUC-SP. Ocupa a cadeira nº 2 da Academia Mato-grossense de Letras. Publicou O mágico e o olho que vê (Edufmt, 1982) e De(Sign)Ação: arquigrafia do prazer (Annablume, 1993) e Viver de Véspera (Carlini e Caniato, 2018).

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Ouro em João Antonio Neto

az muito tempo quando estive sendo Professora da Universidade Federal de Mato Grosso descobri um dos seres humanos mais envolventes, cativantes e inteligente que conheci, fui muito feliz de ter convivido com ele. Aprendi muito com meu pai Gervásio Leite, Rubens de Mendonça e com esse singular indivíduo. Ele é o João Antonio de Neto da risada gostosa, da facilidade de compreender e do abraço de acolhimento.


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Foi dessa convivência que contemplei a beleza da fuga das condições mesquinhas e fúteis do meio. Trabalhou e lutou pelo progresso em todos os campos que atuou. João Antonio Neto é como disse Gervásio Leite “ um ser iluminado, um homem completo, harmônico, livre que por conta disso ensejou a simplicidade. Ele é tão completo que jamais deixou entrever sua erudição, bem como sua constante batalha pelo Bem, pela Arte e pela Cultura. ” Ao constatar tudo que ele fez quer na Universidade, quer no Tribunal de Justiça ou na Academia Mato-Grossense de Letras é fácil verificar que com referência àquela época e ao ambiente em que viveu ele é diverso da maioria das gentes. Sua postura, sua maneira de falar e o gesto sempre de expressão compreensiva emoldurava a feição do homem eleito. A sua vitória ou a glória é que ele poderá e pode ser lembrado não como um representante de tempos passados, mas como signo do presente, deste agora com design da eternidade, dessa juventude da genialidade que é de todas as épocas e que se espraia pelos dias. Aumenta ainda a trilha de sucesso quando conhecemos seu processo de viver observando que até hoje ele cultiva muito mais que os medalhões de hoje ou de antigamente. A honradez, a competência e o trabalho marcam seus passos. Sua importância e sua força, o modo de ser poeta, sua caneta na justiça, o exercício como docente, seu companheirismo, as lições cotidianas fazem dele um ser de brilho. Sem apontar erudição surgia do recanto de sua generosidade os mais interessantes ensinamentos sejam aqueles cotidianos ou os mais notáveis. Tudo isso revestido na elegância de sua ereta postura que sempre sinalizou sua impecabilidade. João Antonio Neto não é apenas um intelectual de vanguarda pois ao estruturar signos novos derruba hábitos já fixados em alguns intelectuais de ponta. Desse modo lança novos olhares encontrando assim horizontes até então desconhecidos. Em Banquete de Palavras ele aponta FUTURO como um dos significados “.... Fazemo-lo, fazendo-nos...” Eis aí o desenho, o esboço do que ele entende por futuro: é o aqui e agora com acento nos nossos gestos e nas nossas ações. O alvo é o horizonte, alcançar depende da mirada. João Antonio Neto laça o futuro em todas suas extensões ou como um tempo para alcançar ou como algo adjetivado= vindouro. Seu trajeto de VIDA é um movimento constante entre o ir (futuro) e o vir, entre a ética e a estética, entre a justiça e a literatura, entre ensinar e apreender. Desse modo, como àquele que aprecia a Filosofia JAN encontra o desvelamento, a Alétheia. O movimento para o desvelar é circularidade pontual que conduz ao começo e fim. E com isso essa articulação leva o coração fundo ao desvelar. E de que trata a linguagem que fala de um coração fundo? É a palavra que brota do invisível, daquilo que só é possível revelar no que há de concentração “em si” como o próprio João Antonio anota: Palavras- utensílio para garimpos. Eis aí a abertura que ele carrega. Suas construções em todas as áreas têm o peso, o valor e a beleza do OURO, seu fazer é do garimpeiro abrindo fendas para descobertas de tesouros, de trabalhador incansável lapidando as formas auríferas. O lapidar de JAN é possível vislumbrar na obra mais recente Coleção Banquete de Palavras em que bateia cada palavra seduzindo uma outra dimensão significante: “Véu= Que torna a figura mais desejada” “ Chamar= Bebida de água salgada” Ou nos textos anteriores como em: “Quem dá aos pobres, Empresta a Deus... (Algo de muito obscuro!) E se Deus logo lhes desse, Não seria mais seguro...? “ A concisão que surge nesses escritos assinala o índice de novas possibilidades de leitura que perguntam sobre as escritas mais antigas retratando desassossego geral sobre os problemas das letras concomitante com uma necessidade de atualização da operação literária. Instaura-se a vanguarda em João Antonio Neto. Seu espirito irrequieto busca novas formas de ser presente “Dasein”. Aquilo que para Heidegger pode “ser em si” a poética dele persegue o desvão entre uma funda reflexão e o chão expressivo da luminosidade ambiente. Pós-vanguarda... Eis a magia surpreendente no jovem de 100 anos: sempre escavando em busca dos lampejos e no REMANSO ‘...-primeira escuridão do nosso dia, - derradeiro clarão da nossa noite...’ (Livro de 1982) mostrando o que brota do CORAÇÃO, o signo icônico e a ampla construção que estrutura a escrita e vida deste SER sem Tempo = inesquecível/imortal João Antonio Neto!

Tarde ensolarada de um mês qualquer em 2019.


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João Antonio Neto Escritor


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A ACENTOS: Passarinhos que pousam nas palavras, para cantar as sílabas...

2. Moinho literário... 3. Quem faz, revela-se, tanto de si como do criticado... 4. Só é legítima quando ajuda a melhorar.

ADOLESCÊNCIA: Frenesi provisório...

CRÍTICAS: Quando se poupam, escondem-se os equívocos... CRÍTICO: O que vê diferente...

ADVOGADO: Especialista em dificuldades...

CULTO: Sujeito que é poliglota na própria língua...

AGUACEIRO: Humor da natureza... AMAR 1. O próximo... e o distante... 2. Verbo que praticamos, antes de conjugar... ANTROPOFAGIA 1. Excesso de preferência por gente... 2. Gosto excessivo pela Humanidade... 3. Incorporação do outro, para reforçar o Eu... APOCALIPSE 1. Fato que não acontece... 2. Não haverá fim do tempo – mas dos tempos...

B BATOM: Sinal denunciador...

D DALÍ: Metafísico da forma... DARWINISMO: Drama cósmico, de que fomos testemunhas... DEMÔNIO 1. Entidade que gosta de fazer pactos... 2. Testificador de virtudes... DEPRESSÃO: Cansaço de ser si mesmo... DESERTO 1. Onde espaço e tempo não se encontram... 2. Sugestão de humildade...

BILAC: Astrônomo amador...

DIABO 1. O que também merece uma vela... 2. Personagem que também é bom...

BUROCRACIA: Agente da paciência...

DIPLOMA: Competência de papel...

CÍNICO: Idealista desencantado...

DIREITO 1. Aquilo que se tem, mas precisa buscar... 2. Não existe, fora de sua comunicação. 3. Público – Só pode ser feito o que a lei permite expressamente. 4. Privado – Tudo que a lei não proíbe, pode ser feito. 5. Relação de igualdade imanente às relações sociais.

CONSUMIDOR: O primeiro a ser consumido...

DIVÃ: Confessionário leigo...

COPIAR: Repetir as imperfeições.

DOENTE: Petisco de médico...

CRÍTICA 1. Purgante contra vaidosos...

DRUMOND: Poeta que pôs uma pedra no nosso caminho...

C CERTINHO: Catador de piolhos...


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Extraído do livro Banquete de palavras, de João Antônio Neto, Ed. Entrelinhas, 2015


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E ELITE 1. Oligarquia da boa vida. 2. Os que se julgam melhores no que são e fazem... ELOGIOS: O que dizes de mim é o que penso de ti...

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HÁBITO: Se não faz monge, faz o disfarce... HOJE 1. É sempre véspera... 2. Parte do ontem, levada para o amanhã... HOMENS: Iguais, procurando encontrar diferenças...

ENSIMESMADO: Preferência discutível... ESCRITOR 1. A fama contabiliza-se em vendas... 2. É preciso ser bom cozinheiro, para fazer livros apetitosos...

I IDEAL: Seria fazer outro mundo, com mais cuidado... IDEOLOGIA: Religião secular...

ESTILO: Traição e revelação... IDOSO: Móvel de difícil manutenção... EXISTIR: O que não existe, é para inventado...

F FATO: Primogênito da realidade... FEIÚRA: O que chama a atenção, mais que a beleza... FETO: Mergulhador olímpico... FÍGADO: Víscera temperamental... FOLHA: Biquíni paradisíaco... FUTUROLOGIA: Mergulho em lago sem fundo...

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IGREJAS 1. Algumas são apenas supermercados da fé... 2. Laboratórios das religiões... 3. Empreendimentos religiosos... 4. Tesoureiras do céu... 5. Repartições de garantias... IMAGINAÇÃO 1. País inatingível, mas capaz de ser vivido... 2. Terra do que não existe... IMORTALIDADE 1. Impossibilidade lógica... 2. Perdida por uma maçã... INFINITO 1. Alucinação sem começo e fim... 2. Cessação da arrogância... INIMIGO: O que me dá a medida dos meus amigos.

GELO: Pedra temporária...

INTERPRETAR: É ainda forma de legislar.

GENTE: Alma da casa...

INTÉRPRETE: Eco intermediário...

GRACEJO: Mel com limão... GRAVIDEZ 1. Protuberância do futuro... 2. Confirmação de gênero. ..

J JOIO: Erva que, há séculos, luta para se livrar do trigo... JOYCE: Todos já leram, inclusive Ulisses...


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JÚRI 1. Dramaturgia judiciária... 2. Jogo para ver quem comete pênalti...

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LUA 1. Buraco do céu, por onde escorre o luar... 2. Luminária gratuita... LUXO 1. Afetação de poder... 2. Satisfação pessoal, em exibição...

LASCÍVIA: Deusa de olhar estuprador... LER: Descobrir-se! LITERATURA 1. Efêmera eternidade... 2. Sintoma de um tempo, e vários espaços... 3. Vinculada à imanência, e não à transcendência...

M MAJESTADE: Pose de girafa... MALANDRAGEM: Habilidade para ultrapassar conveniências...


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MANICÔMIO: Mortuário da mente... MÁQUINA 1. A que nos há de devorar... 2. Salvação e perigo...

MEDO 1. Código ecumênico... 2. Insegurança da incerteza... 3. Olhos arregalados, calafrio e respiração opressa...

MARGINAIS: Órfãos da vida comum...

MEIO: Subproduto do homem.

MAS: Limitador de consentimento...

MELANCOLIA: Horas crepusculares...

MÉDICO 1. Competente criptógrafo... 2. Mecânico do corpo humano... 3. O indivíduo mais odiado pela morte...

MERITOCRACIA: Padronização na desigualdade... MIOPIA 1. Vantagem de usar os olhos, mais perto das coisas... 2. Ler, cheirando o que é lido...


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MITO: Começo coletivo explicativo.

ODONTÓLOGO: Profissional sujeito a dentadas...

MODELOS: Espelho da despersonalização chique...

OPOSIÇÃO: Até ser cooptada...

MODERNIDADE 1. Deslumbramento técnico... 2. Mais certezas e mais questionamentos...

ORÁCULOS: Simplificadores de mistérios...

MORTOS: Os que olham o mundo, pelos nosso olhos...

OUTRO 1. Aquele em que também estou... 2. Na hora em que nasci... 3. É o problema...

MUDANÇA 1. Roupa nova da história... 2. Vítima da resistência...

N NARCISO: Gênio de mau gosto... NEOLOGISMO 1. Filho retardatário... 2. Filho temporão... NEPOTISMO 1. Apoteose parental... 2. Beberam todos na mesma cuia... 3. Peste hereditária... 4. Homenagem à árvore genealógica... NEUTRO 1. Dito seguro de si mesmo... 2. O que não é... NOVIDADE 1. Caduco reintroduzido... 2. Coisa mais antiga do mundo... NOVO 1. Muito do que já é velho, e não sabíamos... 2. O que mete medo ao anacrônico... 3. Só por enquanto... NUNCA: Porta fechada da qual se perdeu a chave...

O ÓCIO: Descanso cansativo...

OURO: Magia diabólica...

P PALAVRA 1. Aspiração dos mudos... 2. Dicção que repudia o celibato linguístico... 3. Expressão da qualidade humana... 4. Expressão do alcance da percepção do mundo... 5. Expressão que também morre... pelo desuso... 6. Instrumento insuficiente para dominar a intenção... 7. Pronúncia da ideia... 8. Pode ser uma coisa, sem deixar de ser outra... 9. Que transmite mais do que conceitos... 10. Rosto da língua... 11. Som para ser ouvido, e não perder-se no ar... 12. Superação da ordem simbólica... 13. Vale pelo contexto ou por quem a profere... PALAVRAS 1. Menos significativas do que as coisas... 2. Razão de entendimento e desentendimento... 3. Sinais que encarnam as coisas... 4. Têm corpo e alma... PARTIDO POLÍTICO: Falta de ação, entre amigos... PARTO: Alvorada! PERFUME 1. Cheiro postiço... 2. Galanteio das flores... PÉS: Libertadores das mãos...


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PESSIMISMO 1. Ditadura dos malogrados... 2. Pecado contra a beleza... PODER 1. Aonde se chega e perde a vontade de sair... 2. É doce, mas pode azedar... 3. Mel e cola... 4. Orgasmo político... 5. Que não conjuga o verbo “sair”, mas apenas o “ficar”... 6. Transfiguração... 7. Triunfo da apetência! POETA 1. Namorado das palavras... 2. Oráculo de verdades fatais... 3. O que vê, sem abrir os olhos...

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Q QUASE: Salvação do desenlace... QUEDA: Ato de não passar do chão... QUINTAL: Éden doméstico...

R RADICAL: Destruidor de alternativas... REAL: Moeda republicana...

POLÍTICO: Entorpecedor de problemas...

RECONSTRUÇÃO: Volta ao passado para encontrar o presente...

PROÊMIO: Prefácio pedante...

REENCARNAÇÃO: Treinamento de vidas...

PRONOMES: Nós, sem eles, não tem sentido...

REIS: As famílias reais servem para ser exibidas...

PRÓXIMO: É também o distante...

RENOVAR: Doirar o antigo...


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RENÚNCIA: Covardia da conveniência... SAPO: Perfeição da feiúra... RICO: Pecador culpado de ter boa sorte... SEMPRE: O interminável... ROMA: Todo mundo sabe que não foi feita num dia... SEPULTURA: Quarto sem porta de saída... ROMANCE: Mentira acreditável... SER ROMANCISTA: Fabricante de complicações... RONCO: Moto do sono...

1. Esta aí... 2. Nossa própria consciência mais profunda... 3. O que se transforma em era...

ROTATIVIDADE: Remédio contra a inércia...

SERROTE: Dentadura que corta, sem morder...

RUA 1. Parte da cidade que tem olhos... 2. Via que pertence a quem nela anda...

SÍMBOLO 1. Discurso mudo... 2. Uma coisa que é outra...

RUÍNAS: Para reflexão melancólica e imagem pitoresca...

SÍMBOLOS: Gramática das religiões... SINÔNIMO: Riqueza das alternativas...

RURAL: Que deseja ser urbano...

S SABER 1. Espécie de sabor... 2. Sabermos que não sabemos...

SOLTEIRO 1. Indivíduo avulso... 2. Metade do gênero... SONO 1. Laboratório dos sonhos... 2. Roteiro de outras vidas... SORRISO: Aurora do rosto...

SAGRADO: Algo pelo qual também se mata... SALIVA: Lubrificante da palavra... SANTÍSSIMA TRINDADE: Impossibilidade lógica...

SUICIDA 1. Assassino impunível... 2. Inventor de morte...


REVISTA PIXÉ SURREALISMO: Realismo onírico...

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25 VELA 1. Armadilha para pegar vento... 2. Chama que se destrói... VENTO: Respiração da natureza...

TELEFONE: Devorador das Cartas... VERBO: Rei da frase. TERREMOTO: Febre telúrica delirante... VEREADOR: Titular das rendas do município... TERROR: Inimigo sem rosto... VÉU: Que torna a figura mais desejada... TESTAMENTO: Presente da morte... VIAJAR: Aprender o mundo... TIRANIA: Fim do tirano... VICE: Impaciente aspirante ao trabalho... TRAÇA: Bibliotecário inconveniente...

TROVÃO: Tosse do temporal...

VIVER 1. Atividade de risco... 2. Avançar, mesmo tropeçando... 3. Condição que custa caro... 4. É segurar a vida, para que não caia nos despenhadeiros... 5. Ter o que fazer... 6. Vivemos, com licença da morte...

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VONTADE 1. Cata-vento... 2. É como o vento, que enche as velas...

ULTIMATO: Conselho inimigo...

VOSSA EXCELÊNCIA: Cobertura de subentendidos...

TRADIÇÃO: Passado sempre presente... TRANSCENDÊNCIA: O outro lado fugitivo... TRAVESTI: Indivíduo autêntico...

ÚLTIMO: O primeiro, ao contrário... UTOPIA 1. Falsidade de valores harmonizados... 2. Lugar que está em toda parte... 3. Sem ela não se muda o mundo...

V VACAS: Filosofam, ruminando... VAGABUNDOS: Não nasceram assim, foram feitos assim... VAIA 1. Aplauso censurado... 2. Aplauso divergente...

X XIPÓFAGOS: Irmãos muito apegados...

Z ZERO 1. Algarismo que não pode viver sozinho... 2. Nada, que é também quantidade... 3. Olho dos números... 4. O que prefere se colocar no fim... ZONA: Proletária do desejo... ZUMBIDO: Confidência das abelhas...


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REMANSO

QUANDO EU MORRER...

Quem o vê rolar assim, transpor pedras e espinhos, sob a teia do sol e a cinza ional das brumas, há de pensar, talvez, que ele busca os carinhos do mar, qual se o mar fosse um tálamo de plumas...

Ali, sem ver angústias infelizes, construirei, de novo, a minha casa, e viverei no aroma e nos matizes, enchendo folhas, entre ruflos de asas!...

Mas, o certo é que o rio estrondejante sente uma saudade atroz do seu berço inocente por que seu grande amor, em convulsões, palpita...

Tende cuidado, pois, ó lenhadores, em não ferir essa árvore, com os vossos machados frios e destruidores!...

Tanto é que, no remanso, onde entra devagar, para, treme, reflui, nessa angústia infinita de quem não quer seguir, mas não pode voltar...

Que se a cortardes, do seu tronco exangue, em vez de cerne – hão de ranger meus ossos, e em vez de seiva – há de jorrar meu sangue!...

Este rio que aí vês, desfeito em redemoinhos, de grotão em grotão, desmoronando espumas, nasceu na serra, além, cristalino, entre algumas árvores festivas, cheias de alegres ninhos...

SEMELHANÇA

Há criaturas que são como as paineiras: vivem dando colchão aos friorentos; outras, preferem ser a laranjeiras: tecem grinaldas para os casamentos... Muitas, sem paina para os nevoeiros, nem tendo flores para os sacramentos, dão lenha para o fogo das lareiras e sombra para a união dos pensamentos!... Algumas vivem como as parasitas: matando quem lhes dá seiva e carinhos e o remédio das mágoas infinitas... Outras, lembram roseiras caprichosas: ramos cheios de espinho... Entre os espinhos, o silêncio balsâmico das rosas!...

Quero uma cova, que não seja rasa, escondida no meio das raízes dessa árvore que em flores se extravasa, para a glória dos pássaros felizes!...

ROCHA

Dizem-te morta, porque nada existe do gesto humano, em teu sereno rosto que, sem mover-se e sem chorar, resiste à água de março e ao duro sol de agosto... O semblante parado e descomposto, como que nada vê e a nada assiste... Ninguém nunca te viu mudar de gosto, fazer-se alegre ou revelar-se triste... Mas, talvez, teu silêncio acrisolado guarde a essência de um grito contrafeito, num grande pensamento congelado!... E quem sabe não tens, por arremate, um sentimento imóvel, sob o peito, e um coração que sente, mas não bate!...


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IMAGINAÇÃO

BÁRBARO ALVORESCER

Poeira de crenças perdidas, na solidão roxa e vasta, extrema-unção dos suicidas, beijo que doira e devasta...

Fina, filigranal, fofa, fluida, flutuando, nua, nívea, neblina, o céu sereno empola... E o dia avança mais, orvalhado, ofegando, e a luz, rasa, revel, rica, ruiva, rebola...

Sulcando mares proibidos, nada há que não junte e englobe na teia dos seus sentidos...

Ao pé da serra heril, onde o céu pôs seus mantos, freme a fronde feral, farfalhante e fremente da selva, a despertar, desfeita em castos cantos!...

Céu, onde inferno estremece... Mágoa alegre de quem sobe, gozo triste de quem desce!...

E quando o sol, enfim, fura o fundo dos valos, inda se pode ouvir, a ecoar, longinquamente, o grande gargalhar, galvânico, dos galos!...

Fio diáfano que engasta o fundo imóvel das vidas ao ideal que nos arrasta por terras desconhecidas...

O rio, rápido, rouco, ríspido, rábido, rola. forte, fundo, fugaz, furioso, fungando... Vem o dia a nascer, entreabrindo a corola da grande flor do sol, as trevas dissipando...


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Extraído do livro Remanso, de João Antônio Neto, Imprensa Universitária UFMT, 1982.


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EU E A MINHA SOMBRA

Eu e esta sombra negra a me seguir de perto, por onde que que eu vá, por onde quer que eu desça! E a se mexer no chão, como o desenho incerto duma caricatura extravagante e espessa... Muitas vezes, tal qual um corvo do deserto, alarga a asa, sem luz que agrade ou resplandeça... E, às vezes, se contrai tanto, que eu fico certo de estar calcando aos pés minha própria cabeça!... Não há como fugir, como desvencilhar-me dessa sombra augural, cheia de estranho alarme, de não sei que expressão adúltera e nefasta!... E não finda esta união que me angustia e assombra!... Quando fujo do sol – minha sombra me arrasta! Quando persigo o sol – arrasto a minha sombra!

A MORTE DO SOL

Acaba o Sol de ser assassinado! E, na câmara ardente da Montanha, seu corpo jaz, molhado de oiro e sangue!... Vésper, chorosa e santa, colocou a branca flor de um círio nos seus pés... O Arroio seguiu atrás do Mar para participar-lhe a infausta nova... E nas cartas das Asas Vespertinas chegam, de toda parte do Infinito, mensagens de pesar à Terra viúva... No templo da Floresta as Arapongas fazem dobrar os sinos a finados... E os fúnebres Morcegos cortam sombras para pôr luto nas Palmeiras tristes... Em homenagem póstuma, profunda, foi decretada a paz absoluta, pelo congresso augusto dos Silêncios... As flores, ao sopé da roxa Serra, inclinam seus nivosos lacrimários e choram, pelas pétalas dormentes, o pranto alabastrino dos Orvalhos... E do longo turíbulo do Vale sobe, fluidificando a imensa mágoa, o incenso litúrgico das Névoas...

CÉU E MAR

MAR! Abençoado Mar, que refletis o Céu!... Céu! Glorioso Céu, que vos mirais no Mar!... – Que crime vos alia, em vossa profundeza? – Oh! golfos abissais, que grande amor vos une?... Por que vos levantais, ó Mar, em ondas irosas, quando raiva no Céu o grito das procelas?... Céu, por que vos baixais para beijar de manso o repouso do mar sob as névoas marinhas?... Por que sois sempre assim azul, ó Mar pungente?... Por que viveis, ó Céu, perpetuamente azul?... E fico olhando o Céu, e fico olhando o Mar... No Céu, as brancas asas das gaivotas... Brancas velas, à flor inquieta do Mar... Será o Mar um grande Céu desmoronado, caído sobre a Terra e transformado em água?... Será o Céu um Mar antigo que se ergueu sobre algum vagalhão, e ficou preso no ar?... E fico olhando o Céu e fico olhando o Mar... E, ao longe, no horizonte, onde os dois se interfundem, não sei se é o Mar que sobe pelo Céu, não sei se é o Céu que desce pelo Mar!...

ÚNICA

Em taça de ouro condeno o vinho e o mel que me dão... – Mas beberia veneno na concha de tua mão!...


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MUTIRÃO

Veio o Chico Colodino na sua égua alazã; a Maria do Plotino, uma tia e sua irmã... O Rozendo mais o João, o Mané e o Capiau, o Nelo com o violão, e o José com o berimbau; mais atrás o Julião, com suas “testas-de-touro” na ponta fina dum pau... Ao lado, o Nego Maneco o grande corpo sacode, carregando o reco-reco e a sanfona “pé-de-bode”... Lia, irmã de Maricota, com um lenção sobre a cabeça, procura dona Carlota, muito rosada e travessa...

com uma chinela no pé e outra chinela na mão, passando por Barnabé, diz pra Maria José: — Vai ser no outro São João... Pararam todos de novo, para beber numa grota... — Cadê o Pedro, meu povo?... — Onde anda a Maricota?... Na subida do barranco, depois da bebida da água, Lolita levou um tranco, caiu... E mostrou a anágua... Todos riram do acidente, vendo-lhe o róseo joelho, mas o Raimundo Vicente foi quem ficou mais vermelho...

Dona Joana, mal montada num lerdíssimo jerico, grita forte e desdentada: — Isso num vai, Nhonhô Chico?!...

A velhota Sinhá Rita, solteirona sem pigarro, num salão feito de chita, fez questão de vir no carro, pitando, muito contrita, por seu cachimbo de barro...

— Ora se vai, dona Joana!... (Bate o bicho, cospe e xinga, enquanto dá viva à “cana” e chupa um gole de pinga...)

Mas, quem mais aparecia era a Lulu da Arabela, toda coleante e macia, com uma sombrinha amarela...

— Vamos parar, minha gente!... (Brada o velho Puxa Faca.) — O sol tá doido de quente!... (E a turma, aos poucos, estaca...)

Quase chegando, uma légua, o Maneco de Alencar arrancou a “mão-de-égua” e meteu bala no ar...

— Vamo esperá, minha gente!... (Convence o Júlio da Grota.) — Esse povo anda atrasado...! — Por onde anda a Maricota...?! — Cadê o Rui do Anastaço?... — Eu não vejo o Pedro Mota... (— Ai, eu morro de cansaço!...)

Era o aviso... Uns cavaleiros vieram para encontrá-los, suarentos e brejeiros, empinando os seus cavalos...

Vinte a pé, dez a cavalo... Ou mais – não sei quantos vão... Tudo alegria e regalo!... – É dia de Mutirão. A Lina, lá do Sapé, cabelo cor de limão,

Chegaram todos, cantando... Um grupo enorme e bizarro... A velha Rita pitando lá em riba do seu carro... Uns de a pé, outros de arreio, tudo mundo se ajuntou... Só Maricota não veio... E Pedro nunca chegou...


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MOLEQUE

Moleque lampeiro do fim de arrabalde, que fuma, que joga e é mesmo capaz até de matar... Moleque vadio que atira pedradas nas casas vizinhas, que bebe cachaça e dorme no banco mais duro da praça... Moleque sem letras, sem dons nem ofício, que xinga, que briga e vai pra cadeia, que nasce moleque, que vive moleque, que morre moleque... Moleque! Moleque, quem foi que te fez assim tão moleque?... Moleque na alma, moleque na cara. moleque no jeito, moleque por fora, moleque por dentro, moleque completo, moleque perfeito?!... Talvez tenha sido teu pai um moleque, talvez tenha sido moleca tua mãe, jogada no lado letal, infecundo... – Moleca é esta vida! – Moleque é este mundo!


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REFÚGIO

Ali estão os nossos mortos e os mortos dos outros... Todos reunidos na necrópole, como num canteiro de mortos... Os que morreram na hora da morte, os que morreram na hora da vida... E no dia dos mortos, até lá vamos nós, não porque os mortos estejam sozinhos... Nós é que estamos sós.

PERTINÁCIA

O apego à vida é tão forte, que o morto fecha os olhos para não ver a morte...

SUBTERFÚGIO

Quem dá aos pobres, empresta a Deus... (Algo de muito obscuro!) – E se Deus logo lhes desse, não seria mais seguro?...

NATIMORTO

Antes de ver a vida como ela é, perdeu a fé... Confiado no ovo, adormeceu de novo.

OPÇÃO

Em vez de histrião, torto e falho, em meio a homens daninhos, que tal ser como o espantalho: – palhaço de passarinhos?

PUDICÍCIA

A Justiça cobriu os olhos com aquela venda, em sinal de pudor, para não ver a venda e o vendedor.

ALUCINAÇÃO

O pigmeu acha que é um gigante que não cresceu...

BUQUÊ

Cobriram o anjinho de rosas ágeis, de lírios lépidos, miosótis frágeis, de cravos tépidos, boninas de opala... Mais parecia um arranjo de flores, para enfeitar a sala.


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SATÂNICA

A Pátria é grande e boa, merece viva e loa! É bamba, é de escol, é legal!... – É samba, é futebol, é carnaval!

SINETE

Até nas horas de luz, nossa fatal condição: – a sombra que o homem produz, a nódoa do homem, no chão!

ADESTRAMENTO INSENSIBILIDADE

Deitado eternamente em berço esplêndido, seria uma burrice (ou muita insônia) se não dormisse!...

Dormir é meio-morrer e desse jeito treinar para, quando a morte vier, a gente não se espantar...


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Extraído do livro Silhuetas & (In)significâncias, de João Antônio Neto, Fundação Cultural de MT, 1989.


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RELÓGIO

O tic-tac do relógio é a prece do Tempo e o nosso necrológio...

PANACEIA

Álcool para aquecer, álcool para esfriar... Remédio para esquecer, remédio para lembrar, remédio para dormir, remédio para acordar, remédio para fugir, remédio para avançar, remédio para querer, remédio para odiar, remédio para sofrer, remédio para gozar... Remédio para viver, remédio para matar! ...

REPULSA

A mão que esbofeteia a face mais bisonha, fica vermelha... de vergonha.

AUTENTICIDADE A caveira, desinibida, ri da comédia da vida...

INEVITAVELMENTE Inevitável é a morte; a vida, não; logo, a morte é a regra e a vida é a exceção.

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LAPSO

O culpado é Noé – o Patriarca – – e ninguém mais! – que devia ter ficado, e posto na Arca somente os animais...

PRORROGAÇÃO

A água que mata a sede nesse deserto de areia escura, não é a água que se encontra, – é a que se procura...

PRODIGALIDADE

A magnânima Lua esbanja tanta luz, quando está cheia!... Só porque a luz não é sua, só porque a luz é alheia...

PERPLEXIDADE

A borboleta pousou levemente sobre a flor, como joia no engaste... – E agora não sei quem saiu pelo ar e quem ficou na haste...

PARTO

Foi tanto o esforço do botão para se abrir em flor no jovem galho, que ainda de manhã suava orvalho...


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ASCENSÃO

Subindo pelo tronco, a trepadeira impávida grudou-se à casca, galgou os ramos, transpôs os nós... E lá na copa, íngreme e alta, como bandeira de triunfador, desfralda a flor!...

IMUTALIDADE

Mesmo feita de ouro, a algema é grilhão... Nem por ser de seda, deixa o casulo de ser prisão.

ESTIGMA

Se o sândalo perfuma o machado que o fere, também deixa na lâmina denegrida a mácula do golpe e a nódoa da ferida.

VÁCUO

Oco, imóvel, frio... Cheio de vazio...

RECEITA

Para pôr fim à aflição e retomar a doce calma, só uma pequena alteração: – arma, por alma.

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I.R.

O Leão pôs a mesa, para jantar a presa... Mas quem almoça o manjar e lambe os pratos são os ratos...

DESVANTAGEM

O que se tem visto é quase sempre isto, com poucas variações: – para cada Jesus Cristo, no mínimo dois ladrões.

ARITMÉTICA

O amor tem três operações: somar, multiplicar e dividir. O ódio tem uma só: – subtrair.

ANTÍPODAS O homem rouba, para fazer o mal.

A abelha rouba, para fazer o mel.

DESCUIDO

A cabeça guardou a ideia numa caverna de osso, grosso, bem fechada, trancada, lacrada, para ninguém perceber... – Mas esqueceu de fechar a boca... E pôs tudo a perder...


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IMPRUDÊNCIA

Poliedro

Meu prezado José,

Aqui cheguei ontem e já iniciei a medição das terras. O trabalho é fácil, pois se trata de cerrado plano, com pequenas fatias de mato alto a cercar cabeceiras de águas muito saborosas. Chove quase todos os dias, e venta muito. À tarde, há sempre, para ver, enorme e vívido arco-íris, o qual se diria feito tinta fresca, cintilante... Jamais contemplei coisa igual! De tão rútilo, parece palpável. Tenho a impressão de que, se fosse possível alcançá-lo, sentir-se-ia seu peso e a densidade das partículas da sua luz... ***

João

Meu prezado José, ...Anteontem passou por aqui uma vara de queixadas; matamos dois, enormes; a carne, assada, cheira a mais de mil metros; uma delícia!... Lamento não poderes vir, como estava combinado – pois encontrarias excelentes derivativos, inclusive o espetáculo do arco-íris que, conforme já te disse, é extraordinário e magnífico! ***

João

...Sim. Já conhecia a crendice popular, segundo a qual o arcoíris, quando naquela posição, está bebendo em algum rio – e que se a gente tentar atravessá-lo e for por ele também bebido, sairá, do outro lado, com o sexo trocado... (Até quando a estupidez humana continuará estragando as delícias da Ciência?...). Mas, por via das dúvidas, vou ver se alcanço o arco-íris e experimentar se ele me “bebe” – pois, embora esteja muito feliz como homem, de voz grossa e outros atributos masculinos, poderia (quem sabe?), como castigo, pela verificação, sair do outro lado do arco de minissaia, voz fina e tudo trocado, pelo avesso... João ***

– Decerto, há uma grande variedade de seres; mas, no fundo, o que existe mesmo é uma enorme unidade de tudo, no sofrimento e na glória!

SORTUDO

Velho, feio e doente, sob um sol de fundir diamante! Dor de dentes incômoda e fome devastadora. Sede medonha! A sola dos pés escalavrada pelos pedregulhos e espinhos. O único olho, ardendo pela constante perda de sono. Nem um cruzeirinho no bolso. O “bucho”, pendurado às costas doloridas, mal podendo suportar a pressão da alça. E a subida, por onde iam os meandros do caminho, sem querer terminar! Só o capim rasteiro do cerrado comburido! As árvores desnudas pelo fogo da queimada! *** Não suporta mais! Deixa-se, então, sentar à beira da estrada... De repente, salta! “— Ai!” — Um enorme formigão lhe ferroara o dedão do pé. Procura uma folhita verde, para mastigá-la e fazer um meizinha do sumo. Acha-a, tritura-a... Mas um ardor infernal lhe rói a língua, os lábios... Parecia fogo... Era uma erva daninha! *** Finalmente, coxeando – a picada lhe provocara uma dolorosa íngua – divisa um córrego... “— Água! Thalassa! Thalassa!”. Arrasta-se... Mas, acima do filete d’água está uma vaca imensa, morta, podre. Vai mais para o alto e é quando, emergindo da “pindaíba”, aparece uma vara de queixadas, matraqueando. Arrasta-se de novo, alcança uma árvore e ainda pode subir. Encolhe-se todo e deixa a manada passar, estalando, furiosa, fedendo. *** E é logo que vê, suspirando, aliviado, um Jipe que se aproxima, em disparada... Enfim, eis a salvação! Para o veículo, confundido com a poeira vermelha... E vem, lá de dentro, uma voz molenga: — Peguemo o cabra! Teja preso, ladrão!

Meu prezado José, Interrompi a medição... Fiz a experiência... Joana


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CALUNIADO

O tordo – trucila. O macaco – guincha. O leitão – bocareja. A abelha – zumba. A cigarra – fretine. O camelo – blatera. O galo – cucurita. O grito – guizalha. A rã – tintingalha. O grou – grugruja. O papagaio – grazina. O cavalo – trine. O gato – resbuna. O cisne – arensa. A ovelha – barreja. A cegonha – glotera. A andorinha – grinfa. O jumento – rebusna. O gafanhoto – chirria...

MACRO... MICRO...

– Ora... Tanto faz ser grande como ser pequeno! Aquela estrela pequenina, lá no fundo, não é maior do que a Terra?

*** E o coitado do Homem, a quem chamam de complicado, modestissimamente, apenas – FA-LA!


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SELENE

O SÁBIO

Era uma vez um Sábio, muitíssimo velho... Também muitíssimo diferente, pois não usava barbas longas nem óculos de lentes ovais nem carapuça, como Paracelso... Era um Sábio sobremodo estranho. Tudo havia descoberto, desde o próvido amor que se associara à fastidiosa opulência de Deus, até a inculpável resignação insigne dos caracóis... Conhecia todas as linguagens que não dizem nada e os mutismos que recolheram a hermenêutica de todas as palavras... Descera até onde os capilares da Vida vertem a linfa das continuidades... Entendia as montanhas e até a dor sanguínea dos corais... Abrira a cornucópia dos Sonhos e surpreendera as vontades da Indiferença e os abandonos da Esperança... O próprio conluio das constelações e das nebulosas fora atravessado pelo dardo da sua penetração. Era senhor dos territórios da Luz, e os seus pés fervilhavam em todos os pegos e litorais. Às vezes, ficava taciturno, preso ao fio das horas, nadando no silêncio inconsútil, enquanto a noite punha estrelas nos farrapos das nuvens... *** E aconteceu que um dia perguntaram àquele que sabia tanto: — Que mais falta para saberes, Ó Mago? E ele, tristemente: — Não sei...

A Lua é muito autêntica: inteiramente lunar... Nossa Terra é um verdadeiro poliedro: tem mar, tem animal, tem planta e água e vento e até céu... De cada coisa, a Terra ostenta ou insinua um pedaço, um vestígio... Ângulos de esperanças, contornos de penhas e girassóis, realidades sombrias, subúrbios de sonhos, celas de frades e de ladrões, alcouces fervilhantes e basílicas cheias de beatitudes... A Terra é um turbilhão, até na morte, na mansidão até... A Lua, não. A Lua é uniforme, simples, nua, quase incólume, como as coisas que devem ser sós, longes, misteriosas – desse mistério que apenas olhos devem tocar, sem mãos que profanem ou ouvidos o percebam e entendam... *** Desci exatamente sobre o Mare Imbrium, um pouco a leste da Montanha de Arquimedes. Primeira sensação agradável: a liberdade! Parecia que eu me tornara um passarinho; qualquer movimento era tão fácil, que eu tinha a impressão de que ia desintegrar-se, e fundirme, panteisticamente, na brancura silenciosa do horizonte limitado... Nenhum rumor. Mal sentia a respiração da minha alma, transbordando das rendas dos meus nervos. O olhar fluía em torno, preso duma doçura plástica, ondulante, até se perder pelos planos e picos estáticos e nítidos. Uma sensação de honestidade essencial dir-se-ia pulsar na poeira que se abria a meus pés – poeira que semelhava um talco de pérolas. E, quando percebi que nem monologar podia, então meu arrebatamento chegou ao máximo! Perdera essa condição lastimável, própria da Terra, onde o contato é o fio umbilical da vida e a consciência dolorosa e dramática das inquietações patéticas e inúteis. *** Mare Serenitatis, Mare Tranquilitatis, Mare Nectaris, Mare Foecunditatis! São nomes de ladainha!... E, se há Mare Frigoris ou Oceanus Procellarum, não senti nem frios nem procelas. Tudo é plumoso nesta Rainha do Silêncio – ou melhor, nesta transparente bolha de espuma cósmica. Daria o maior e o melhor, para não voltar. Mas era forçoso cumprir o destino melancólico de satisfazer ao resto dos dias, em cima da mumificada carcaça da Terra inevitável. Finalmente, tive a tristeza de não encontrar São Jorge... Mas, em compensação, não encontrei o Homem.


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OPULÊNCIA

— Dai-me uma esmola, pelo vosso amor! O mendigo pedia assim... Velho e estriado pelo tempo, parecia um pássaro mal empenado, com aqueles molambos sobre o esqueleto velho e desarrumado... — Dai-me uma esmola, pelo vosso amor! Estendia a mão igual a um galho seco e retorcido, onde já não pousavam cigarras nem floriam giestas... Os olhos amassados pelo pisotear dos dias e das noites, batendo no chão o cajado de bambu – o báculo do pobre – ia o mendigo, sem uma véspera salvadora, sujeito ao faro imperceptível da curiosidade... — Dai-me uma esmola, pelo vosso amor! E, de quando em quando, caía-lhe sobre a palma côncava o óbolo miserável – a dívida que prova a distância enorme em que estamos do nosso próximo. — Dai-me uma esmola, pelo vosso amor! *** Estranharam a rogativa insólita do mendigo... — Por que não pedes PELO AMOR DE DEUS?! E ele: — Deus já me deu sua esmola: a Vida.

TERRA E MAR

A Terra se oferece e se dá – O Mar se retrai e se recusa. A Terra exorta para a vida – o Mar convida para a morte. A Terra é feita para os encontros – o Mar para as dispersões. A Terra é franca e leal – o Mar é obscuro e pérfido. A Terra nos oferta a paisagem real – o Mar nos mostra apenas o reflexo dos panoramas. Se o Mar tem pérolas e corais – esconde-os. Se a Terra tem flores e pássaros – doa-os. O Mar é avaro – a Terra é generosa e pública. A Terra é multivária e nunca se fatiga de transmutar-se para o nosso conforto e o nosso êxtase. O Mar não se renova – repete-se, para a nossa fadiga. O Mar só tem gosto de sal – a Terra tem gosto de mel, de leite, de vinho. A voz do Mar apenas se altera entre os gritos da fúria e o murmurinho exausto do insondável. A Terra trila e trina, gargalha e fala e, se às vezes chora, quase sempre sorri. O Mar é masculino: certo da força. A Terra é feminina: convencida do poder. O Mar se confunde com o céu, e nunca sabemos o que virá depois. A Terra, não! Além do círculo onde se une ao azul, haverá sempre uma lareira, a bênção da nossa mãe, um copo d’água e os braços abertos do amor que nos espera!

SONHO

Nada chegou ao que é, sem ter passado pelo Sonho! Se a Verdade é a árvore – o Sonho é a semente. Se a Verdade é o dia – o Sonho é o alvorecer. O que hoje é real e fora outrora ignorado, veio do Sonho, que é a fonte de tudo que foi realizado, porque não existia. Sonha, pois, meu amigo, e não dês ouvidos aos que zombam dos sonhadores! Os castelos de pedra são modelados pelos castelos de sonho. Não há uma só beleza acabada sem sua anterrealização num grande sonho. Todos os sonhos são proféticos: falam do que há de vir, antes de vê-lo. O sonho é um advento incorpóreo. O sonho fez a essência, antes da forma. Criado no fundo imanifesto das imagens vagas, é prodigioso que haja o sonho engendrado todas as grandezas do mundo, todos os milagres das meditações infinitas! O sonho é a liberação total! Se não sonhássemos, não veríamos nunca outro horizonte, além deste que nos fecha dentro do mundo, roubando-nos alturas e negando-nos espaço. É o sonho que nos leva a ver o que somos, além do que temos! Há muitíssimos séculos, o homem sonha... E o sonho nunca se esgotou no seu manancial inexaurível! Semper florens! Ah, com certeza, no fundo de tudo, não há mais do que sonho, um grande e maravilhoso sonho! O sonho do bem, o sonho da virtude, o sonho do amor, o sonho da vida! Bem-aventurados os que sonham! Que o sonho é a única forma legítima de ser Deus!


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Textos extraídos do livro Poliedro, de João Antônio Neto, Ed. Rio Bonito, 1970.

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TUÍ

Tuí nasceu numa noite tempestuosa de sábado. Não se sabe, precisamente, a que hora veio à luz. Não era bem casa, o lugar onde Tuí nasceu; um simples galpão de zinco, todo esburacado, de forma que a mamãe Adélia não sabia como abrigar o pobre recém-nascido. O coitado grunhia, enrolando-se todo, como se estivesse com dor de barriga; mas era fome. Tuí já nascera faminto. Particularmente interessante é que Tuí, como todos os filhos sem pai (Tuí jamais saberia quem fora seu pai), não teve assistência outra, senão o acaso feliz de sua própria mãe ser parteira. Desproteção completa! Mas, como Tuí era viável, conseguiu resistir aos primeiros embates da vida, uma vez que (outra circunstância também particularmente notável) mais dois irmãozinhos de Tuí (tinham nascido três) morreram logo após o parto. O certo é que na manhã de domingo havia mais um ser bulindo sobre a Terra... *** Ao lado do galpão de zinco morava o Dr., e os meninos da casa próspera se interessaram, como era natural, pelo pequerrucho. Tuí, por outro lado, tinha ótimo acabamento. Possuía um narizinho róseo. Não mostrava manchas violáceas pelo corpo e seus berrinhos não incomodavam. Os pezitos, também róseos. Bem alvinho de corpo. Quando segurava, com a boquita úmida, o peito da mamãe Adélia, era de se admirar sua graça! Roncava, fungava, de delícia. Os meninos do Dr. queriam pegá-lo, mas mamãe Adélia não consentia nisso. Tuí estava muito novinho. ***

Correram dias. O Dr. resolveu encarregar-se da criação e educação de Tuí. Tuí, por sinal, era mimado. Todos gostavam dele. O certo ainda é que mamãe Adélia, vagabunda e descarada, entregou duma vez o filho e sumiu no mundo, em busca de suas costumeiras aventuras. Tuí crescia. Já sabia exprimir-se através de sua própria muito compreensível linguagem. De quando em quando D. Múcia, a mulher do Dr., punha-o ao colo e o afagava, enquanto ele agitava as débeis mãozinhas. Foi ficando taludo. Andava pela casa toda. Mexia em tudo. Era duma peraltice tremenda. Os meninos do Dr. é que gostavam daquilo. Não podiam prescindir de Tuí. Deu ele – por essa altura – de escapulir para a rua. Como no bairro ficava uma grande fábrica, todos os operários passaram a conhecer Tuí. Meio mundo tinha carinhos para o afortunado enjeitadinho. Até uma corrente de prata, com uma figa vermelha, lhe puseram no pescoço. *** Tuí era realmente feliz. Mas, um dia, Tuí brincava à frente da casa, que dava para a rua de trânsito intenso. O inevitável aconteceu. A bola rolou para o meio da rua, Tuí correu para alcançá-la. Vinha o monstruoso Fenemê, em disparada, e uma das suas rodas hediondas colheu a indefesa criaturinha! A morte do cachorrinho comoveu todo o bairro...


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O VELHINHO E A MORTE

Com o feixe de lenha às costas, o velhinho, outonal, ia... A estrada era pedra. O sol fervia no ar. As árvores pelada estavam mudas, com os galhos retorcidos num gesto inútil de agressividade anêmica. O velhinho arquejava como fole furado. Caiu a primeira vez, caiu a segunda vez, outra vez, mais adiante. Cada queda era uma sangria em sua força caduca. O suor lhe escorria do corpo todo, como se ele fosse um molambo que se torcesse. *** Depois da quinta queda, quase já não se pôde erguer... O molho de lenha jazeu ao lado, abandonado. O velhinho inda tentou erguê-lo, mas foi debalde! Desesperado, então, rogou: — Morte! Oh Morte bendita! Tu que és a última porta de quem não tem mais saída, vem a mim! Abre-me os teus braços! Leva-me contigo, ó Morte! Não quero mais viver! Acaba com este martírio! Já estou exausto! São setenta anos! Chega! Leva-me, ó Morte! *** — Aqui estou, meu amigo! E o velhinho viu a Morte ali à sua frente, muito viva e patente, sorrindo através da arquitetura irregular da cara enorme e branca. Sua voz tinha o som feio que o vento faz quando sopra pelas solapas escuras; uma aura glacial exalava da sua presença metuenda. O velhinho estremeceu. E a Morte: — Anda! Para que me queres? E ele, baixando o rosto e mandando-lhe um olhar transversal: — Cha... cha... chamei-te... — Vamos! — disse a libitina. Chamei-te para saber se tua sentença é irrevogável, se a tua palavra é como a do rei que não volta atrás. Se, ao decidires, está decidido... — E duvidas? — Eu? Ora, quem sou eu, dona Morte, para duvidar de ti? — e o velhinho abrandara o tom, tornara a voz macia e manhosa. — Pois é assim — falou a Parca, peremptória —, o que digo está dito! O que decido está decidido! — Então, minha amiga, quero que me prometas uma coisinha... Uma coisinha muito insignificante, antes que eu me entregue inteiramente a ti. — E é possível, o que me pedes? — Ora, sim! É! — Pois, então, está prometido! — Assim sendo — disse o velhinho —, quero que me dês mais vinte anos de vida. *** E o velhinho pegou, muito lépido, sua lenha, e se foi, assobiando...


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O HERÓI

A noite era tão fria que o próprio vento tiritava. Totô, o mendigo, fora colhido de surpresa. Parecia-lhe a roupa uma tapera de pano, mostrando as caretas dos remendos e buracos... Tempo selvagem! Nem um pouquinho de compaixão pelos seres e coisas agarrados pela desfortuna dos dias e das noites! O céu, embuçado como um bandido, não parava de soltar aquele hálito gelado, cortante. O mendigo, todo encurvado, abraçava-se a si mesmo, encaracolava-se, tentando diminuir-se e dar menos campo aos açoites do tempo. A rua era negra. A cidade toda uma furna preta, pois a própria luz elétrica estava em pane, e as casas inteiramente fechadas. Ninguém pelas calçadas. Somente Totô, o mendigo – e, com ele, aquela alma doída, sem rumo, como se todo o bemquerer do mundo o repelisse ou ignorasse! *** E foi naquele momento que uma rajada mais impiedosa o alcançou em cheio. Totô, o mendigo, buscou uma parede ao lado, encostou-se rapidamente e... Tra! Era uma porta, que alguém deixara mal fechada. E Totô se viu caído de costas, dentro de um aposento ainda mais tenebroso do que a noite lá fora... Levantou-se com dificuldade, tateou. Havia por ali alguma coisa parecida com móveis, prateleiras. Apalpou. — Panos! Panos! — foi o solilóquio do mendigo. ***

E houve, então, o barulho de uma porta que se abria em outro lugar do prédio. Uma luz de vela clareou lá no fundo... Totô, o mendigo, pensou ligeiro: — É alguém! Serei tomado por um salteador! Além de mendigo, ladrão?! Que seja! Agarrou aquela coisa que parecia uma coberta, aquele grande rolo de pano, pô-lo debaixo do braço e saiu para as trevas, deixando a escola (pois era uma escola o lugar onde esteve Totô, o mendigo). *** Correu, cambaleante. Aumentara o vento. O frio parecia ainda maior. Sentiu, por fim, que chegara à Praça da cidade. Já era sua conhecida. Procurou, quase pelo faro, um daqueles bancos amigos, debaixo de uma sibipiruna copada. Ajeitouse, cobriu-se, embrulhou-se dos pés à cabeça com aquele pano... E como era quente! Num instante, um calor gostoso inundoulhe as carnes. Jamais tivera um cobertor mais impermeável às intempéries! Dir-se-ia um banho morno de licor de rosas. E ele pensou: “Quantos ricos, neste mundo, desejariam morrer embrulhados num cobertor assim!”. Quando, pela manhã, o guarda viu aquela coisa, ficou passado de susto. Que seria aquilo? Aproximou-se, cautelosamente... E, ao puxar a ponta daquele pano, lá estava Totô, o mendigo, morto, encolhidinho como um feto, com um sorriso divino colado no beiço roxo – puro herói da desventura – entre as dobras da Bandeira Nacional!


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Mari Gemma De La Cruz É artista visual desde 2013 quando, aos 50 anos, inicia como autodidata na fotografia autoral e na arte contemporânea. Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1962 e vive em Cuiabá, Centro Geodésico e coração da América do Sul há cerca de 30 anos. Lá desenvolveu um olhar que define ser “socioambientalespiritual”. Antes disso, foi farmacêutica/ servidora pública e professora/pesquisadora, sendo Mestre em Saúde e Ambiente com especializações em Plantas Medicinais, Homeopatia, Acupuntura, Educação Ambiental e Gestão Farmacêutica. A partir de 2017 que iniciou a realizar cursos com a fotógrafa/artista Jacqueline Hoofendy (RJ) e com o fotógrafo/artista em novas mídias canadense Scott MacLeay (2018), que se desencadeou seu processo de produção único e, como ela mesma define, “alquímico”, hibridizando e transbordando a imagem para estabelecer múltiplas conexões. Algo bem significativo para uma farmacêutica que se tornou imagética. Premiada na convocatória Floripa na Foto/19, no Prêmio Urbs Brasil/16. Concurso Nacional Novos Fotógrafos. Obra selecionada: “Mobilidade Urbana IV” da série ‘(In)Divisível’, 2º Lugar na Maratona Fotográfica 2015. Cuiabá. Obras: ‘Mobilidade Urbana I, II e III’.


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Algumas exposições Convocatória “Universo Feminino -Singular e Plural”. Camaçari. Obra: Eu não pedi isso. Convocatória Floripa na Foto – Vestiremos as cores que quisermos. Florianópolis. Obras: Ensaio Peito de Pedra. Convocatória Foto Sururu. Maceió – Vestiremos as cores que quisermos. Obras: Ensaio Peito de Pedra. Exposição Maratona Fotográfica Cuiabá. Espaço Centro Cultural Silva Freire - Edição Cuiabá 300 anos. Obra: Curueiro e Siririeira da Série Movimento. ‘Precisamos falar sobre isso’. Exposição coletiva Museu de Arte e de Cultura Popular, temática ‘Setembro Amarelo’, UFMT. Convocatória Festival de Fotografia de Paranapiacicaba. Obra:Polípticos da série ‘Brasil que eu quero’. Convocatória Internacional FestFoto Bolívia. Obra: Série ‘Movimento’. Convocatória FotoRio Resiste - Fotografia + Cidadania. Lambe exposto na Rua da Ajuda Rio de Janeiro/RJ. Obra selecionada: ‘Respeito e Igualdade’, da série ‘Brasil que eu quero’. Convocatória Transformar o Silêncio - Fotógrafas Brasileiras. Obra selecionada: ‘Grilhões’, autorretrato do ensaio ‘Mãe d’água’. Feira Cavalete #8. Obras: ‘Vaqueiro’ e ‘Mandacaru’ , da série ‘Os Sertões’. 2018. MIS/SP. Convocatória ‘Avis Anima’ INTERFOTO 2018 (Avistar). Obra: ‘Aves d’água’, autorretrato do ensaio ‘Mãe d’água’. Convocatória Internacional do Paraty em Foco. Ensaio ‘Ser Tão Gente’. Autorretrato. Paraty/RJ. Concurso de Fotografia, 7º e Concurso de Audiovisual do SOS Ação Mulher e Família, 1º. Campinas/SP. Obra: ‘Não sou fruta #3’. Autorretrato. Convocatória FestFoto Internacional Porto Alegre. Finalista. Ensaio ‘Palavras são luvas que vestem pensamentos’. Autorretrato. Porto Alegre/RS. Convocatória do Sertão com o ensaio ‘Ser Tão Gente’. Autorretrato. Feira de Santana/BH. Territórios da Arte - Interculturalidades. Exposição Fotográfica Coletiva. Centro de Artes da UFF. Obras selecionadas: série parcial da ‘Cartografia Silvafreireana” . Niterói/RJ. Convocatória internacional do Paraty em Foco. Pré-selecionada com o Ensaio ‘Palavras são luvas que vestem pensamentos’. Autorretrato. Exposição “1ª Pessoa do Singular” em Paraty em Foco - Fotógrafas Brasileiras. Obra selecionada: ‘Caroba’ da série ‘Mulher Planta’. Projeção em mídia e Painel. Exposição Coletiva ArtShop. Fotos integrantes da exposição ‘Cartografia Silvafreireana’ Cuiabá. Shopping Goiabeiras. Exposição ‘Olhar Cuiabá - Cartografia Silvafreireana’. Setembro a novembro de 2016. Cuiabá, Cáceres e Rondonópolis. Mostra fotografia e instalação. Circula-Artes Visuais 2015/SEC-MT. Salão Jovem Arte Mato-grossense, 25º. Fotografia. Obras: ‘(In)Comunicável I,II e III’, da série ‘(In)Divisível’. Intercâmbio Internacional de Miniarte Moda, 24º e 25º. Foto-Poesia-Xilogravura - ‘A Flor da Pele - Caroba’, Gramado, RS. Exposição Coletiva Maratona Fotográfica. Edição Cuiabá Criativa. Obras: ‘Sebastião Silva e José Pereira’, da série ‘(In)Divisível’. Cuiabá. Exposição Fotográfica Coletiva Um Olhar Sobre Cuiabá. Sesc Casa do Artesão. Trabalhos: ‘Camadas Temporais II; Cores e Sabores I; Cores e Sabores IV; Movimentos III; Movimentos IV; São Jerônimo’, da série ‘Coisas da terra que escolhi’. - Exposição Fotográfica Coletiva Virtual Em Lugar Nenhum - Em Todo Lugar, Prêmio Funarte Mulheres nas Artes Visuais-Galeria Virtual. Trabalhos: Índio Aranha; O mar é mais azul na América do Sul. Exposição coletiva - Kuyaverá. 1ª Maratona Fotográfica. Museu da Caixa d’Água. Cuiabá. Trabalhos: ‘Revisitando Cuiabá 1910/2013’ da série Revisitando Cuiabá e ‘Azuis’ da série ‘Coisas de Cuiabá’. Mostra de Arte Contemporânea de Artistas Mato-Grossenses. Categoria Objeto/ Fotografia Híbrida e Poesia sobre o Suporte de Madeira). Obra: Procura-se.

Seleção em editais - Projeto “Porto Kyvaverá – Cartografia de um território marginal”. Resolução 01/2019 SMCE/CMC/CUIABÁ para o seguimento de artes visuais. - Projeto ‘Olhar Cuiabá - Cartografia Silvafreireana’ - Edital nº 006/2015/CEC/SECEL-MT, para a seleção de projetos de circulação de ‘Circula Artes Visuais/MT’. Mostra itinerante em 3 cidades mato-grossenses. - Projeto ‘Jardim da Vida - A Arte do Curar do Cerrado’ - Edital para Exposições 2016/2017 Artes Visuais - Sesc Casa do Artesão.

Algumas publicações da artista - DE LA CRUZ, M. G. “Fotografia em campo expandido – a palavra como parte da materialidade da obras”. Anais do I Congresso Poéticas da Proximidade. Cuiabá. 2019. pp 166-179. - Antologia Fotográfica, Prêmio Urbs Brasil 2016. Ed: Vivara. Fotografia. Obra selecionada: ‘Mobilidade Urbana IV’.


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Larissa Silva Freire Spinelli É Doutora em Estudos Interdisciplinares de Cultura (UFMT/FCA/ ECCO), Diretora da Casa de Cultura Silva Freire e Docente no UNIVAG – Centro Universitário de Várzea Grande.

A Cartografia Silvafreireana de Mari Gemma

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encontro do olhar da artista visual Mari Gemma De La Cruz com o do poeta Silva Freire nas imagens-poemas que ilustram esta edição da Revista Pixé, aguçam múltiplos e inusitados sentidos e sensações neste setembro (freire) tricentenário. Revisitar as fotografias apresentadas durante a exposição Olhar Cuiabá – Cartografia Silvafreireana baseada na obra Trilogia Cuiabana, volume 1, (Presença na Audiência do tempo) Tempo de Histórias & Espaços Cotidianos, nos leva a apreender duas narrativas que se entrecruzam no tempo-espaço, uma pela linguagem literária e outra pela fotográfica, imprimindo um sentido contemporâneo ao instigar o leitor a pensar a cidade de Cuiabá em meio aos seus trezentos anos. A relação dos escritores com suas cidades são tramadas na circulação entre o histórico, social, cultural, concreto e uma imaginação poética, criativa e inventiva, imaginativa. Poesia e cidade tornam-se assim uma coisa só. “Silva Freire é um poeta da cidade. Poeta-poética de sua cidade, de seu espaço‹‹��››cidade‹‹��››Cuiabá. PoetiCidade”, como o descrevem Leite & Spinelli (2018, p.125). Gemma parece transitar, no início do século XXI, pelos becos, ruas, ruelas e avenidas percorridas pelo poeta desde sua infância até a última década do século XX, em que sentiu e pressentiu o “crescimento” da cidade, mas sem deixar de lado o seu compromisso com o “telúrico” e a “herança atávica”. Vez em quando, temos a impressão de que ambos, com seus corpos em movimento pela cidade, se encontram pessoalmente, na Rua de Cima, bem na esquina de Dona Janoca (casa materna de Silva Freire), no Centro Histórico para registrar, inventar, imaginar a cidade. Na Trilogia Cuiabana o poeta e a cidade se fundem em um trabalho poético-amoroso-etnográfico de vinte anos de elaboração, resultando na sensação de “cuiabania”, descrita por ele como um “charivari-de-maçaroca-poética”, “sensação indizível” (efeito sensorial, não percepção racional, aesthesis decolonial). Uma explosão em seu anseio de dar um lugar para as múltiplas vozes que compõem a “cuiabania” no esforço de tirá-las do silêncio, da subalternização, do abandono mediante a cidade que se moderniza. “Documento poético” da realidade cuiabana como sugeriu Magalhães (2001). Por sua vez, a cartografia afetiva de Mari Gemma retira do texto silvafreireano imagens-sensações de cuiabania, perceptos da cidade, provocando o estranhamento do observador ao desconstruir cenas cotidianas em seus fragmentos visuais que borram a figuração e os clichês, mas deixando ver sua crítica cultural na medida em que apresenta forças ao invés de representar formas. Nas suas experimentações, a deformação, a multiplicação e a imprecisão da imagem refletida em estilhaços de espelhos e captada pela lente, dão lugar a uma ficção documental do cotidiano urbano onde se dilui os signos da tradição e da modernidade em diálogo com os fragmentos poéticos silvafreireanos. Ao explorar a palavra-tema produz, simultaneamente, desfocagem e repetição, que desviam o significado e o olhar do espectador realçando denúncias acerca de questões sociais, culturais, políticas, ambientais, urbanas. Nota-se o descaso com o Centro Histórico na imagem do Beco Torto, “esgualepado” e “descascados pelo tempo”; o esquecimento das brincadeiras infantis tradicionais na imagem de um menino negro segurando a pandorga quase imperceptível; a corrupção cravada pelo Minhocão do Pari que se revolta em pleno viaduto do que seria a trilha do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) ou com a poluição do rio e ainda violência urbana numa referencia aos crimes que atingem crianças e adolescentes. De modo intrigante e intensivista, onde “além da imagem está outro significado poético”, o leitor se depara com imagens-textos-cidade resultantes da indignação, da resistência, do (des)cobrimento das pulsões soterradas pela modernidade/ colonialidade que atinge o processo cultural e histórico cuiabano e o desenvolvimento urbano da cidade, convidando ao OLHAR CUIABÁ em tempos contemporâneos.


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Divanize Carbonieri É doutora em letras e professora de literaturas de língua na Universidade Federal de Mato Grosso. É autora de Grande depósito de bugigangas (2018), selecionado no Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá, e Entraves (2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura. Foi finalista do Prêmio Off Flip 2018 (Poesia) e do 3o Concurso Lamparina Mágica (2016).

O CONCRETO E O EVANESCENTE EM MARI GEMMA DE LA CRUZ

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ari Gemma De La Cruz é dessas artistas completas, que aliam experimentação estética com reflexão filosófica e (bio) política. Seus ensaios fotográficos não são apenas registros imagéticos de grande beleza. Eles também exprimem os questionamentos existenciais, sociais e ambientais de uma consciência incansável diante da realidade cambiante e caótica de nossos tempos. Nesse cenário, em que tudo se desmancha no ar, o que pode permanecer como gesto, visualidade e pensamento? É justamente no limite entre materialização e desaparecimento que se formam os verdadeiros manifestos assinados por ela e que dão vida à Pixé deste mês.


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A problemática de gênero é uma das preocupações mais constantes de De La Cruz. Ao mesmo tempo em que são apresentadas cristalizações históricas em torno do corpo e do comportamento da mulher, como no ensaio “Peito de pedra”, também se maneja a dissolução de estereótipos femininos e masculinos, característica da revolução das identidades de gênero que invade a contemporaneidade. Na série “Movimento”, personagens dos grupos tradicionais de siriri e cururu são retratados de uma forma que vai além da celebração de sua indumentária e caracterização. Se, como acontece com a maioria das danças típicas regionais, tais ritmos mato-grossenses se baseiam em papéis bastante dessemelhantes para homens e mulheres, o olhar de De La Cruz opera na desconstrução dessa diferença bem marcada. Recortes e recombinações de fragmentos de imagem produzem ícones que subvertem a estabilidade do gênero, configurando um movimento que, mais do que os volteios da dança, sugere o trânsito das performances identitárias atuais. Mesmo em “Peito de pedra”, que tem como substrato esculturas em pedra de figuras femininas, calcadas no ideal de beleza clássica do Renascimento, a rigidez pétrea é quebrada por meio do uso de reflexos em fragmentos de espelhos. Mais uma vez o paradoxo entre solidificação e diluição surge na poética de De La Cruz, borrando os contornos que a padronização do belo impõe, sobretudo às formas femininas, mas também às obras de arte. Ainda nesse processo de estilhaçamento, autorretratos e retratos de outras mulheres se dissolvem por meio da técnica da longa exposição, o que permite que corpos de carne e osso, de existência tão concreta quanto as estátuas, pareçam também diáfanos e impermanentes, em consonância com a fragmentação das subjetividades que ocupam tais corpos. O seio da mulher, muitas vezes identificado pela cultura como uma das sedes da feminilidade, aparece, por sua vez, como um território contestado, sujeito a cortes cirúrgicos ou simbólicos que implodem qualquer tentativa de fixidez. O feminino, assim como o masculino, é aquilo que não se apreende completamente, aquilo que escapa a qualquer definição precisa. São recorrentes os autorretratos na manifestação artística de De La Cruz, que, além de fotógrafa, se estabelece, dessa forma, como uma performer da imagem. A fotografia deixa de ser apenas suporte para se tornar vivência. Isso implica que um corpo cênico e uma subjetividade em processo se desdobram diante das lentes, emprestando significados existenciais à simples fruição estética. O corpo da performer, na maioria das vezes, não assoma em seu estado cru, mas se materializa envolto em tules, tecidos transparentes ou materiais plásticos. Tal envelopamento transforma o presente em ausente, o concreto em evanescente, o visível em oculto, o corpóreo em fluido. Continuidade e interrupção se alternam conforme se divisa ou se perde o corpo que se movimenta embaixo dessas camadas. Na série “Mãe d’água”, terra, água e ar emprestam suas características para que o corpo humano se dissolva mais uma vez, assumindo formas que lembram outras existências. A coreografia executada sobre o rochedo diante do mar é uma encenação de voos e movimentações de aves marítimas. Mas a correspondência entre os gestos só se faz possível pela presença do vento e da água, que agitam e colam o tecido do invólucro à pele da performer. O pássaro, abrindo e fechando suas asas, se adivinha nessa combinação de elementos e maleabilidade. A gestualidade de qualquer animal parece repousar abaixo da superfície da experiência humana, podendo ser trazida para fora a qualquer momento. Ao contrário de uma visão hierarquizada, essa perspectiva enxerga o ser humano como parte de uma teia a interligar igualmente todas as espécies. O todo está dentro do um e o um está dentro do todo. Portanto, qualquer tentativa de destruição da natureza é, na verdade, uma autodestruição. A consciência ambiental global se manifesta de forma ainda mais explícita no ensaio “Bolha temporal”. Dessa vez o corpo está coberto por uma extensão de plástico bolha, uma metáfora para a vida compartimentada que se experimenta hoje em dia. As novas tecnologias, com seus algoritmos cerceadores, permitem que as pessoas vivam dentro de verdadeiras bolhas sociais, compartilhando vivências e impressões apenas com aqueles que apresentam um perfil semelhante ao seu. O diferente, o oposto, o dissidente é eliminado das interações, o que acaba sufocando qualquer existência, condenada a ser encerrada em si mesma. Além disso, o plástico é um material que representa, talvez como nenhum outro, a destruição dos diversos ambientes e biossistemas, em virtude de levar séculos para se biodegradar. Nessa série, o cenário é mais uma vez uma cena marítima, e a espuma das ondas do mar se mistura ao aspecto bolhoso do envoltório. O borbulhar dinâmico da vida é posicionado em contraste com as bolhas artificiais e imutáveis do plástico. Assim como a bolha social sufoca o indivíduo, o lixo de embalagens plásticas asfixia a vida no mar, pondo em risco, por extensão, a vida em toda a terra. De La Cruz não propõe, dessa forma, uma experiência estética sem sobressaltos. Lirismo e angústia são as duas faces de seu empreendimento artístico. O olhar do espectador se enleva facilmente com a plasticidade bem elaborada de suas imagens. Porém, razão e emoção também são ativadas para a desconstrução de perspectivas normatizadas a respeito das identidades, existências, corpos e ambientações. O deslocamento de fronteiras surge ainda no seu procedimento de artista múltipla, que transita por diversos meios, como performance, fotografia, montagem, colagem, poesia e muitos outros, sempre que sejam necessários para a execução de seus projetos. E é justamente um recorte dessa criativa multiplicidade que é possível verificar agora nas páginas da Pixé de setembro.


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edital

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Concurso Literário Pixé é uma iniciativa privada construída a partir da parceria entre a Revista Literária Pixé (www.revistapixe.com.br) e a Editora Carlini e Caniato (www.editoracarliniecaniato.com.br), sem qualquer vínculo público. O objetivo inicial é a visibilidade de novos talentos na literatura mato-grossense, possibilitando a reunião, revisão e edição de textos reunidos em 1 livro a ser lançado nos sites oficiais da Revista Literária Pixé e da Editora Carlini e Caniato. O Prêmio Pixé de Literatura é uma iniciativa privada construída a partir da parceria entre a Revista Literária Pixé (www. revistapixe.com.br) e a Editora Carlini e Caniato (https://carliniecaniato.com.br), sem qualquer vínculo público. O objetivo é a visibilidade de novos talentos na literatura mato-grossense, possibilitando a reunião, revisão e edição de textos reunidos em 1 livro a ser lançado no site oficial da Revista Literária Pixé. 1 – As inscrições vão do dia 09 de julho ao dia 23 de outubro de 2019, valendo a data da postagem nos correios. Podem concorrer todos os(as) candidatos(as) que não tenham livros autorais publicados na categoria em que concorram, mato-grossenses de nascimento ou quem comprove residir em Mato Grosso no momento da inscrição. Para efeito de encerramento de inscrições, os organizadores esperarão até o dia 01 de novembro eventuais envelopes retardatários, atrasados e/ou eventualmente extraviados. 2 – O Concurso Pixé de Literatura está dividido em duas fases: a 1ª é a habilitação preliminar e a 2ª, o exame de mérito. Cada candidato(a) deverá enviar por correio à Rua Estevão de Mendonça, 1.650, Morada do Sol, Cuiabá-MT, CEP 78043-405, 1 (hum) envelope grande escrito por fora CONCURSO PIXÉ DE LITERATURA, contendo outros 2 (dois) envelopes menores. Eventuais retificações no presente edital, alterações de calendário por força maior, e todas as demais informações serão publicadas exclusivamente no site da Revista Literária Pixé e da Editora Carlini e Caniato. 3 – A fim de promover a habilitação preliminar, no 1º envelope o(a) candidato(a) deverá escrever por fora HABILITAÇÃO DO CANDIDATO, contendo somente: cópia de documento de identidade com foto caso mato-grossense de nascimento. Caso o(a) candidato(a) não tenha nascido em Mato Grosso, deverá mandar comprovante de residência ou carteira de motorista, a fim de comprovar suficientemente a residência atual. 4 – O(a) candidato(a) enviará também neste mesmo 1º envelope: uma folha A4, o nome completo, o CPF, o telefone, o e-mail, endereço completo e o codinome usado no texto literário. Indicará, ainda, na mesma folha: os dados bancários completos para o depósito do prêmio, seja pessoal, seja de terceiros. 5 – No 2º envelope, o(a) candidato(a) deverá escrever por fora TEXTO LITERÁRIO e remeter como conteúdo o texto literário em prosa ou poesia, indicando na autoria somente o codinome, a fim de evitar qualquer identificação à comissão julgadora. 6 – O texto em prosa (conto, crônica ou croniconto) deverá estar digitado em letra Times New Roman, fonte 12, espaço simples, tabulação padrão do Word Office, em até 5 (cinco) laudas. O texto em poesia deverá estar no mesmo formato citado anteriormente, com até 2 laudas.

7 – Serão selecionados 10 textos em prosa, sendo os 3 (três) primeiros lugares apontados como vencedores e 10 (dez) textos em poesia, sendo os 3 (três) primeiros lugares apontados como vencedores. Caso a organização descubra concomitante ou supervenientemente qualquer publicação de livro autoral impresso ou on-line por parte do candidato(a) até a data do encerramento das inscrições, será este(a) sumariamente eliminado(a), inclusive da classificação e da premiação. 8 – Os textos selecionados como vencedores estarão devidamente destacados pelo Editorial do livro produzido e os 6 (seis) autores(as) vitoriosos(as) serão remunerados(as) em R$ 1.000,00 (hum mil reais) cada, perfazendo a premiação total do PRÊMIO PIXÉ DE LITERATURA em R$ 6.000,00 (seis mil reais). 9 – Todo o projeto gráfico, diagramação e revisão ficará a cargo da Editora Carlini e Caniato, a partir da seleção realizada pela comissão julgadora. O resultado será divulgado no site oficial da Revista Literária Pixé e na respectiva fanpage www.facebook/revistapixe no dia 02 de dezembro de 2019 até às 18h e da mesma forma no site oficial da Editora Carlini e Caniato e na respectiva fanpage www.facebook.com/editoracarliniecaniato. 10 – O livro será lançado num prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias depois de divulgado o resultado e será integralmente disponibilizado, sem custos, em modelo PDF para download ao público visitante da publicação virtual. Os organizadores selecionarão artista plástico para ilustrar a publicação. 11 – O pagamento do prêmio dar-se-á no mesmo dia da divulgação do resultado por meio de depósito bancário direto. Os organizadores não se responsabilizam face ao erro de informação dos dados bancários fornecidos na inscrição. 12 – Todos os casos referentes à habilitação ou eventuais situações não previstas por este edital serão resolvidos unilateralmente e de forma irrecorrível pelo Editor-Geral da Revista Literária Pixé em conjunto com os Editores da Carlini e Caniato. O julgamento de mérito ficará sob responsabilidade de 3 (três) convidados com ampla experiência em literatura brasileira cujos nomes serão divulgados com o resultado. 13 – Os(as) autores(as) que aderirem ao presente chamamento declaram o expresso conhecimento e a concordância com a publicação do texto, doando todos os direitos autorais sobre o mesmo e não poderão reclamar quaisquer valores financeiros ou reservas legais na divulgação, editoração e publicação, mesmo que seja ela futuramente lançada em meio impresso tradicional e/ou usada de outras formas pelos proponentes do concurso. 14 – A Revista Literária Pixé reserva-se no direito de usar a fotografia de todos(as) os(as) candidatos(as) selecionados(as) na divulgação do resultado, assim como publicar em parceria com a Editora Carlini e Caniato os textos em prosa ou poesia no próprio corpo de uma de suas edições ou em uma edição especial, independentemente de cronologia ou de colocação, de acordo com a conveniência editorial do periódico e/ou da editora. Cuiabá-MT, 09 de julho de 2019. Pixé Revista Literária e Calini & Caniato


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REALIZAÇÃO

PATROCÍNIO

ESPAÇO RESERVADO PARA MARCA DO PATROCINADOR R E V I S TA

LITERÁRIA


ESPAÇO RESERVADO PARA marca DO PATROCINADOR

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LITERÁRIA

ANO I outubro/2019 EDIÇÃO ESPECIAL literatura e periferia


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Eduardo Mahon Editor Geral

editorial

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proibido proibir – eis a regra da contracultura que, de alguma forma, tornou-se cultura. A literatura é um eterno bolero entre o ser e o dever-ser. No salão, uns escritores dançam mais pra lá e outros, mais pra cá. Alguns acreditam que a literatura deva refletir a realidade e outros que a literatura deva transformá-la. Alguém está certo? Claro, todos estão. Os críticos acertam na mesma medida em que erram. A literatura não deve nada a ninguém. Não há pauta para a arte, nem muito menos cartilha a ser obedecida. O que há são escolhas que não são necessariamente boas ou más. São apenas opções que se provarão mais ou menos longevas, influentes e consistentes. Importante dizer claramente qual a tendência preferida pela Revista Pixé e deixar que o tempo seja nosso juiz e verdugo. A escolha editorial desta e das outras edições é privilegiar a literatura e a arte. Qual literatura? A literatura, ora! Importa mais outras questões: quais autores?, qual estética?, qual temática? Isso tudo diz respeito à nossa identidade ou, pelo menos, à identidade que queremos ter. Nessa edição, convidamos Fábio Roberto Ferreira Barreto e Márcio Vidal para fazer a curadoria dos textos. No nosso breve encontro na USP, pedimos aos dois estudiosos – queremos publicar escritores da periferia. Mas que periferia? – perguntariam os leitores. De todas as periferias – respondemos de pronto. Periferia é o lugar onde nos colocam e onde nos colocamos. Periferia não é o oposto do centro, os polos apenas estão longe. Juntos – margem e centro – compõem o todo. Não raras as vezes em que alternam-se de posição no universo artístico. Há periferias em pleno centro. Na melhor classe da escola mais prestigiada, não existem os que preferem sentar no fundo da sala? Há periferias na maior cidade do país, no maior país do mundo e, talvez, seja a Terra outra uma periferia no universo. A periferia é contexto, mas é também opção.


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A pobreza sempre será periférica, embora majoritária no Brasil. Isso é estrutural, diz respeito ao acesso das pessoas aos meios de produção e de informação. Entretanto, a periferia também é uma postura conceitual, uma opção consciente: ser maldito entre os benditos, ser minoria frente à maioria, ser divergente em meio aos consensos. Pensar de forma inovadora constitui as periferias eletivas, enquanto os cânones estão inevitavelmente no centro. Algo contra os cânones? De forma alguma. São eles quem inspiram o desafio, inclusive. Até mesmo eles – os autores canonizados – quase sempre já foram periferia em algum momento da vida. Não foi Cervantes a debochar da literatura de cavalaria? Não foi Shakespeare a satirizar a sociedade elizabetana? Não foi Joyce a confrontar a literatura de salão? Não foi Machado de Assis a caricaturar da burguesia tupiniquim? A divergência, a ruptura, o desafio e a ironia são sempre manifestações periféricas. É preciso haver quem dê voz ao novo e, para isso, colocamos a Revista Literária Pixé à disposição de autores nunca publicados ou de escritores experientes que estão muito longe dos lobbys editoriais. Formaremos um novo cânone? Não é esse o nosso objetivo, nem almejamos nós substituir o centro. Entendemos que nesse nosso mundo tão diverso é preciso haver vários centros e várias periferias que dialoguem entre si. Não temos bola de cristal para saber o que o futuro nos reserva. Por enquanto, queremos apenas existir e defender a nossa forma de ser e de escrever. Preservamos a nossa diversidade sem que, para isso, outras espécimes estejam ameaçadas. É bem verdade que, no grande bolero da arte, todos nós dançamos de um jeito. Os ritmos mudam com o tempo, as modas se sucedem, mas a verdade é uma só: Quer dançar? Não acredite em nenhuma academia. Elas só ensinam ritmos já conhecidos. Saiba que nem sempre são dois pra lá, dois pra cá.


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expediente Direção Geral e Edição: Eduardo Mahon Colaboradores desta edição: Akins Kintê , Allan da Rosa, Ana Lorena Teixeira, Augusto Cerqueira, Emerson Alcalde, Elizandra Souza, Gaspar Z’África Brasil, Jairo Periafricania, Jéssica Angelin, Luz Ribeiro, Márcio Batista, Walnice Vilalva, Fábio Roberto Ferreira Barreto e Márcio Vidal Marinho, Ludmila Brandão, Márcio Ricardo, Michel Yakini, Mayana Vieira,


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SUMÁRIO 2 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30

Editorial Akins Kintê Allan da Rosa Ana Lorena Teixeira Augusto Cerqueira Emerson Alcalde Elizandra Souza Gaspar Z’África Brasil Jairo Periafricania Jéssica Angelin Luz Ribeiro Márcio Batista Walnice Vilalva Fábio Roberto Ferreira Barreto e Márcio Vidal Marinho

34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 62

Gervane Ludmila Brandão Márcio Ricardo Michel Yakini Mayana Vieira Meimei Bastos Nelson Maka Ni Brisant Rodrigo Ciríaco Tula Pilar Zainne Lima Matos Thatá Alves Eduardo Mahon Caio Augusto Ribeiro Edital Prêmio Pixé de Literatura

Meimei Bastos, Nelson Maka, Ni Brisant, Rodrigo Ciríaco, Tula Pilar, Zainne Lima Matos, Thatá Alves, Eduardo Mahon, Caio Augusto Ribeiro.

Projeto Gráfico/Diagramação: Roseli Mendes Carnaíba Artista Visual Convidado: Gervane


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Akins Kintê É poeta, músico, produtor cultural, cineasta, arte-educador. Autor de Punga, em coautoria com Elizandra Souza, e Incorporos, em coautoria com Nina Silva. Além disso, publicou Muzimba – na humildade, sem maldade, bem como participou de algumas antologias, entre as quais, Cadernos Negros. Um dos poetas mais respeitados do circuito da literatura periférica (e um dos nomes mais promissores), Akins é idealizador do Sarau do Kintal, que tem uma antologia publicada. Também, articulou os documentários Várzea – a bola rolada na beira do coração e Vaguei os livros, me sujei com a merda toda (este último com Allan da Rosa e Mateus Subverso). Em 2014, foi o vencedor I Festival de Poesia da Cidade de São Paulo.


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A rodante Quando ela Erê Gaiatice Os olhos arco-íris Meninice Nos passos vitais Peraltice Caso algo eu perguntasse Na elegância Vinha na certeza De criança E o axé que nos abriga O Erê desfolhasse Minha intriga Quando Padilha Traz no passo encanto E elegância De quem compreende o pranto Vem na dança Desmoronando quebranto Intolerância Caso eu angustiado Em minha ilha A Padilha No olhar cheio de brilho Harmoniza, sopra a doce brisa Limpando o rastilho No caminho que a gente trilha Quando ela, Orixá Num deixa um cochicho Nem queixa ou buchicho Quando eu homem bicho Escrevo minha história em garrancho Magoado esguicho Ódio e me desmancho As ilhas de teus olhos fogacho No mais profundo me flecha Meu mundo se abre no facho E não há o que fecha Num abandona, remexe Até o momento que me acho Vento em meu feixe Moro nas águas do riacho Do sensível Orixá


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COSTAS LANHADAS

(Revides e Segredos antes do 13 de Maio)

O

interior paulista era um paiol de pólvora nos anos antes do 13 de maio. O medo saía no mijo dos barões, donos de vastos alqueires, e dos advogados encastelados nos escritórios de luxo, mas também aterrorizava os sapatudos que tinham uma merreca de três ou quatro escravizados pras negociatas miúdas cotidianas, porçãozinha de três ou quatro mandados mal nascidos chupados na jugular, gente, carne com sonho e memória e raiva. Meras peças para alguns, a negrada sentiu a hora do arranque, da retomada de si, sem dó. Décadas antes do 13 de maio que cuspiu uma liberdade requenguela, cagona e manca, vogou um tornado em SP, uma tormenta de legítima defesa e de vingança nem sempre comida fria, que fazia fornalhas das hortas e espetava zagaias em quem tava acostumado a levantar o chicote, a pena ou a xicrinha de porcelana. Eram só um pedaço do mapa de sangue pisado e de dignidade remendada, as campanhas abolicionistas e as rinhas de tribunal onde reinava o amado e odiado Luiz Gama, proibido de entrar em muitas cidades e com a morte comprada uma penca de vezes mas que permanecia pilar na missão. As disputas em colunas de jornais liberais, monarquistas ou republicanos, os processos nos fóruns da hipocrisia que referendava com seu amém o direito à propriedade vampira... isso tudo era só um bocado da guerra que apavorou os abonados de São Paulo pelas estradas de vacaria, pelos chafarizes da capital e principalmente pelos campos de plantio, de tronco e de revide negro. A paúra arrepiava duques do café, azedava o jantar, trincava os lustres e ilustres. Milhares de pretos já tinham devolvido com fogo um pouco da fuleiragem, já tinham debandado pra outras paisagens paulistas com ou sem os tais papéis que lhes garantiam ser gente, gente encurvada por uma liberdade ganha ou comprada – e dessas tais cartas de alforria, que podiam valer só depois de muitas primaveras ou apenas na cidade onde foi carimbada, sempre havia o risco da má-fé que engrupia o dinheiro juntado gota a gota. Carta nula. Nossos avós seguiam varando rumo com os pés sempre descalços, mas agora levando nos ombros os sapatos que só gente livre podia ter, já que o pé não aceitava mais correias e apertos depois de uma vida pisando a sola direto no chão. Nos ranchos de meio de caminho, nas hortas novas, nas curvetas e nos becos urbanos onde se vendiam doces,

se barbeava ou se carregava baldes e bacanas marcando o ritmo no lombo, rodavam as histórias dos acertos de contas com os fazendeiros. Histórias sem dó. Era nesse clima que, numa tarde em Capivari ou em Campinas, dois homens subidos de Santos já marcados com a queima na pele alertando sua rebeldia, depois da carga levantada desde a manhã, sentaram na sombra de uma mangueira. Mal a bunda assentou, súbita paranoia apontou o dedo lá da janela do casarão e o senhor gritou a acusação de levante. A madame que desfilava nos seus vestidos de cambraia e casimira, com suas jóias cintilantes veio até à janela ver a penitência nas costas dos seus escravos, a paga da insolência de tramar a morte de seus amos e a queima da fazenda. Negar não adiantou. Logo eles que ainda não tinham aceitado participar do que se armava pra dali uma semana com a malta de todas as fazendas vizinhas. Tomado de ira, o sinhôzinho veio empunhando o chicote. Mandou amarrar um, mas começou por sovar quem estava ainda sentado num tamborete. E descendo as chibatadas despejava uma ladainha sobre a ingratidão e o peso de administrar o mundo. Mas a cada lambada desferida nas costas do negro mais velho, ele ouvia um canto sussurrado em vez de gritos de dor. E despejava o rabo de tatu com mais força, xingando, tremendo, mas a lábia do mais velho continuava soltando um chiado ameno e ritmado. Ninguém diz se era curvado ou não que o angola recebia o arreio, mas a cada levada nas costas ele murmurava e se ouvia um grito, agudo, que vinha de dentro do casarão... Depois das tantas trinta vergastadas que o barão achou já ser lição, justiça pra ensinar sua propriedade a não desejar morte nem derrocada de quem lhe salvou de ser órfão, de ser mais um morrido de fome ou um demônio sem rumo; depois que acabaram as lanhadas que o barão, empapado de suor, derrubou na espinha do seu escravo, ele respirou, esfriou e viu que as costas do negro que cantava sussurrado estavam intactas, o pano arregaçado da camisa de napão não tinha um pingo de sangue. Por tanta raiva, o barão se preparou pra açoitar mais uma vez, com toda a força e medo que tinha e não tinha, mas atinou prum berro que vinha distante. Correu pra dentro da casa grande e ali ouviu uma longa agonia de último respiro. Viu, debaixo do vestido intacto de cambraia e casimira branca que desabotoava trêmulo, as costas lanhadas e arregaçadas da senhora dona que tombou gemendo no chão empoçado de vermelho.


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Allan Da Rosa É poeta, cronista, contista, escritor, dramaturgo, editor e capoeirista. Autor de Da Cabula (que recebeu o Prêmio Nacional de Dramaturgia Negra 2007), de Vão, de Reza de mãe, além dos infanto-juvenis Zagaia e Zumbi assombra quem? (finalista do Jabuti 2018, em sua categoria). Em coautoria, publica Morada, Mukondo lírico (Prêmio Funarte de Arte Negra 2014), A calimba e a flauta: versos úmidos e tesos. Também escreveu Pedagoginga, autonomia e mocambagem (uma nova tiragem está prevista para este mês). Um dos nomes expressivos da literatura periférica, é idealizador de Edições Toró, que visava à publicação de livros de autores da literatura periférica, e Nas Ruas da Literatura, na Rádio USP, para discutir a obra de grandes nomes da literatura africana, brasileira e latinoamericana. Doutorando pela USP.


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NUNCA MAIS

Tudo o que falta aqui é revolução Bolsolixo abomino, quem é você então?

Mário de Andrade se revira no túmulo

E a todos os mortos e torturados Que tiveram todo e qualquer direito humano negado As mães que nunca acharam os corpos de seus filhos E hoje presidente que defende assassino? E cita Ustra como herói brasileiro? Meu ódio profundo, rico, sincero! Pra quem faz slogan cristão E só propaga ódio e destruição.

“Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio Morte ao burguês de filhos Cheirando religião e que não crê em deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês” Imagino sua voz, neste seu poema, Vendo e vivendo tempos que se repetem. Penso em Drummond e em seu país bloqueado De Getúlio Vargas Penso no Henfil, no Geraldo Vandré Que de tanto tomar choque Hoje tantas sequelas colhe Penso em Marias e Clarices Neste cálice que não consigo beber Deste caos que não consigo fugir Neste armamento que não quer florescer Então, Mário de Andrade que desceu aos infernos Meu ode ao burguês ecoa singelo Ode à milícia Ódio aos assassinos Ódio à política de twitter Presidente clandestino Ódio ao descaso e falta de educação Ódio ao estado, senado e constituição

Povo oprimido? Jamais! Povo lutando por paz! Que você caia com seus ideais Ditadura aqui? Nunca mais!

Filosofia

Não tenho conserto Se eu fosse um boneco Talvez, no lugar do enxerto, Existisse um vago e profundo eco. Se não tenho conserto Tento me ressignificar Se não faço direito O torto posso aperfeiçoar. Pode ser que não consiga dormir e escreva até perder a consciência escrevendo, despida de eloquência nesse espaço etéreo entre pensar e sentir em que, ambos, me trazem aqui. Mas eu não tenho conserto

e essa ideia de revolução é utopia no lugar do enxerto me deram filosofia,

Presidente oco Dois preto, dois baseado Tive amigo preso E amigo assassinado Avião branco domina Na surdina E enche o cu de cocaína Tem deputado Que só anda cherado Trafica e nunca viu O sol nascer quadrado A política tá cansada Resolveu se aposentar Mas aqui não arruma nada Que aqui só aposenta militar De disse não disse Moro mora, morô? Justiça não existe É tudo comprado, doutô É laico este estado Feito de evangélico Por todo lado Mas, pior que o presidente calado É o presidente falando.

Ana Lorena Teixeira É feminista, poeta das nuvens e do caos paulista. Participa de saraus pela cidade. Amante da escrita e de toda forma de expressão. Possui gostos peculiares, sonhos maiores que arranha-céus e aquela velha vontade de mudar o mundo. Ama e odeia política e é fiel devota à sua religião: ‘Do it yourself’.


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É FOGO ele nem era tão ruim. a falta de carinho era suprida pela despensa cheia e as contas sempre em dia. fazia o tipo ‘duro e correto’ em suas convicções no que se refere à criação da nossa filha e no ofício de porteiro que exercia há mais de vinte anos em um prédio no itaim-bibi. quanto a mim, cabia os afazeres domésticos, os cuidados com a menina e a televisão, companheira das noites em que ele ficava no trabalho fazendo hora extra ou cobrindo a folga de algum colega. quando vinha pra casa, era seco nas conversas e fazia em mim um sexo rápido e mecânico, no qual só ele gozava. assim era a vida, até aquela véspera de ano novo em que chegou mais cedo em casa, dizendo estar exausto e descansaria um pouco no sofá para, aí sim, comer alguma coisa. a TV ligada noticiava um incêndio que acontecia naquele momento em uma favela da região, fato que se repetia sistematicamente todo fim de ano, mas, dessa vez, essa tragédia tocou a nossa casa de forma profunda, pois quando entrei na sala, lá estava ele com expressão aflita vendo a notícia e quando a repórter confirmou a morte de três pessoas que não conseguiram escapar das labaredas, ele deu um berro, se obrou todo ali mesmo no sofá e entrou em forte convulsão. chamei a ambulância e ele foi levado com princípio de um derrame que paralisou todo seu lado esquerdo e hoje eu cuido dele em casa, dando banho e comida na boca igualmente a um neném. num primeiro momento, fiquei revoltada com essa situação, depois fiquei com pena dele que perdeu a outra esposa e dois filhos no incêndio.

Augusto Cerqueira É poeta, agitador cultural e livreiro. Autor de CD Sarau do Augusto e dos livros Na década de 10 – Vol. I e Na Década de 10 – Vol. II, participou de diversas antologias, dentre as quais, O rastilho da pólvora, organizada pela Cooperifa, e Sarau do Binho Vol. 2, organizada pelo Sarau do Binho. Conhecido e respeitado no circuito da literatura periférica, é um dos membros mais ativos do Sarau Clamarte. Fundou o Sebo do Augusto, na Piraporinha, bairro da periferia de São Paulo, onde comercializa livros a preços acessíveis à população local.


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Emerson Alcade É poeta, arte-educador, dramaturgo, produtor e slammer. Autor de A massa, O vendedor de travesseiros e, recentemente, Diário Bolivariano; também publicou o livro infantil O boneco do Marcinho e o CD Spoken 1.0. Além de ser um dos nomes expressivos da literatura periférica, é reconhecido como um dos maiores nomes do Slam no Brasil. Campeão do Slam BR 2105, foi vice-campeão da Copa do Mundo de SLAM de Poesias de Paris, na França em 2014, é idealizador do Slam da Guilhermina, em 2012 (o segundo a se formar no país), que é um dos maiores do Brasil. Possui Curso Superior de Teatro e Especialização em Produção Cultural, ambos pela Universidade Anhembi-Morumbi.


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À PRÔ

para a professora Glauciane Catanho. 15/10/2017 Ô prô hoje ao acordar vi as fotos da campanha que fez pra mim com seus alunos da escola onde estudei juro que tentei conter as lágrimas, larguei o celular e ainda na cama me virei para o lado e lembrei-me de suas aulas quando lia as minhas redações, me incentivava a produzir mais, exaltava o conteúdo, apesar dos erros gramaticais quando cheguei na França, prô, o apresentador tirou sarro da minha cara porque eu não sei falar francês e nem inglês eles não fazem ideia de onde viemos, que na nossa escola não tem biblioteca, falta material e às vezes nem abre por medo, aí Pilote conversa com o meu dedo Ô prô nunca imaginei que sairia do país e nem que faria faculdade, a senhora me ajudou a passar no vestibular e vibrou comigo quando consegui a bolsa integral –entendo que a minha obrigação é retribuir trazendo autoestima através da literatura marginal assim como Jacques Prévert também quero escrever pras massas, aliás foi a massa que me trouxe aqui que essas crianças que estão aí segurando cartazes com o meu nome sentadas na mesma carteira onde sentei possam ter exemplos de que, contudo, pobres também podem vencer através dos estudos ainda não estou acreditando que passei da semifinal, meu objetivo era só não perder na fase inicial a ansiedade não me permitiu ficar no quarto. saí pra tomar um ar e descontrair. eu queria sentar na cafeteria daqui da frente para escrever ou ler uns poemas de Charles Baudelaire mas com o preço do café eu almoço no Brasil Ô pro estou em frente ao Teatro Comedie Française, tá passando uma peça do Victor Hugo, a senhora falava com tanta empolgação dos artistas do Romantismo, de como eles declamavam apaixonadamente, que sonhei em ser poeta Ô prô guardei o dinheiro que tinha e comprei dois perfumes uma pra minha mãe e outro pra senhora e agora toda vez que se perfumar com eau de toilette vai se lembrar que seu esforço e dedicação no ensino não foram em vão, te elevaram para outro nível e que lecionar é como esculpir diamante, o processo é duro, mas o resultado é sensível Ô prô amanhã é a final já dei o recado, falei da Z/L se pá, tá a pampa dos 20 países só sobraram seis: Canadá, Quebec, Escócia, Inglaterra, Israel e o Brasil é o único que não faz parte dos países desenvolvidos, as pessoas falam dois, três e até quatro idiomas – citam Beethoven e outras fitas das quais nunca tive acesso – tem horas que desanimo, as diferenças são imensas Ô prô eu vou indo apesar de ainda ter sol já são quase dez da noite, posso perder o metrô dizem que Paris é a cidade do amor, então vou encarnar o espírito romântico, e declamar com o peito aberto e sangrando como se tivesse sido rasgado há mais de 500 anos por uma navalha porque quem se formou em escola pública enfrenta destemido qualquer batalha


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É em Legitima Palavra de Defesa... Mulher Preta Só estou avisando vai mudar o placar... Já estou vendo nos varais os testículos dos homens, que não sabem se comportar Lembra da cabeleireira que mataram, outro dia, E as pilhas de denúncias não atendidas? Que a notícia virou novela e impunidade É mulher morta nos quatro cantos da cidade...

Palavra de Mulher Preta Mulher preta de palavra Preta de palavra Palavra de Preta Lava alma preta Palavra sagrada de mulher Se a minha alma é preta E a minha sociedade não me aceita Minha palavra sagrada sangra

Só estou avisando vai mudar o placar... A manchete de amanhã terá uma mulher, de cabeça erguida, dizendo: – Matei! E não me arrependo! Quando o apresentador questioná-la Ela simplesmente retocará a maquiagem. Não quer esta feia quando a câmera retornar e focar em seus olhos, em seus lábios...

Palavras que nos irmanam Separam o joio do trigo ... o barro do rio que decanta ...encantam os versos da preta ...palavras que declama

Só estou avisando, vai mudar o placar... Se a justiça é cega, o rasgo na retina pode ser acidental Afinal, jogar um carro na represa deve ser normal... Jogar a carne para os cachorros procedimento casual...

Palavra de mulher preta Mulher preta de palavra Preta de Palavra Palavra de Preta

Só estou avisando, vai mudar o placar... Dizem que mulher sabe vingar Talvez ela não mate com as mãos, mas mande trucidar Talvez ela não atire, mas sabe como envenenar... Talvez ela não arranque os olhos, mas sabe como cegar... Só estou avisando, vai mudar o placar...

Clama, canta, encanta De cantaremos o preconceito Até que ele reme para o longe Fique sem eira nem beira... Vá para o ontem...

Chamado

Vozeria, gritaria Identidades diversas O avesso do eu Colcha do retalho do nós Ancestralidade clama Para acendermos a chama

Elizandra Souza É Poeta, jornalista, integrante do Sarau das Pretas, ativista cultural há 17 anos. Autora do livro de poesias Águas da Cabaça, 2012. Coautora do livro de poesias Punga com Akins Kintê (Edições Toró, 2007) e participação em antologias literárias. Organizadora das publicações do Coletivo Mjiba, como Terra Fértil, de Jenyffer Nascimento (2014) e Pretextos de Mulheres Negras (2013), antologia de que participam diversas mulheres negras. Trabalhou como editora e jornalista responsável na Agenda Cultural da Periferia na Ação Educativa (2007-2017). Atualmente Educadora de Comunicação na Associação Bloco do Beco.


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REVISTA PIXÉ Gaspar Z’África Brasil É letrista, poeta, escritor e e co-fundador do Z’África Brasil, um dos pioneiros grupos de RAP em São Paulo, criado na década de 90. Autor de O Brasil é um Quilombo e de O Nômade Vol. 1 - Projeto Hip Hop Rap Histórico (ilustrado pelo grafiteiro Mirage), gravou o trabalho RAPSICORDÉLICO (de qual participam nomes expressivos, tais como Zeca Baleiro, KL Jay, Emicida, Lirinha, Buia e Dexter). Gaspar é uma referência entre os mc’s da cena Hip Hop, destacando-se por sua agilidade e versatilidade em rimas com conteúdos ligados a valorização da cultura brasileira de matriz africana. Importante mc brasileiro, desenvolve atividades na zona sul de São Paulo.


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PERIAFRICANIA BRASILEIROZ

A Cor que falta na Bandeira Brasileira

ão tenha medo em dizer que tu é Preto Não tenha espanto em dizer que tu é Branco Não seja omisso em dizer que tu é Índio nos toca discos corre sangue Nordestino Antigamente Quilombos, Hoje Periferia O Esquadrão Zumbizando as origens Z ́Africania. Somos filhos de uma terra sagrada Qualquer Periferia, qualquer quebrada é um pedaço D ́África. Ideologia Quilombola ferve da Sul até o Nordeste. Z ́África o Clã Brasil nordestino espalhando a peste, O som é RAP, verso Embolada Alá Zeca Baleiro A explosão do beco conheça o grande Eldorado Negro. O mar guiou, a mata abraçou entre terras e mares os Orixás abençoou A senzala do passado se perdeu na escuridão com ela a dor do extermínio e da escravidão. Quiloas, Bantos, Monjolos, Kambinda, Mina, Angola Brasil, Cuba, Ruanda, Haiti, Jamaica, Etiópia Conquistas glórias, derrotas, vitórias de tantas batalhas traçadas Misturando raças com as marcas da velha África. Periafricania a resistência, lendas são lendas Queimem os emblemas, quebrem as algemas Zumbi é consciência, é o terror da tirania O inimigo número 1 e segue a profecia. No terrorismo, no Brasil do Coronelismo País dos dízimos, do capitalismo, do egoísmo reduzido em ismos E vamos indo contra a elite suportando como pode É forte o choque, sua Rota não destrói meu Hip Hop. Quero ouvir os tambores, as vozes, os rumores No paredão o som regando a PAZ, a Trindade Solano amores Tirei do Cartola, Leniniei as poesias Saquei um Garrincha e da Luz de Luiz fiz a melodia. A fusão, a toada de uma raça libertária, Sou Halí Salissié ou não é Diamba sagrada, Sou Múmia Abujamal destruindo as celas, Sou James Brown, Berimbral, Nino Brown, sou da favela, Sou Kingston, show no Capão, sou Marroon, Sou Subupira, balanço Lundu, som Jongo, sou um da Sul. Nos antigos mistérios da Quilombologia, Toda quebrada é quebrada na grande Periafricania Não tenha medo em dizer que tu é Preto Não tenha espanto em dizer que tu é Branco Nào seja omisso em dizer que tu é Índio nos toca discos corre sangue Nordestino Brasileiroz Nóis somos todos Brasileiroz eu sou Latino Americano Brasileiroz Nóis somos todos Brasileiroz

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N

Gaspar Z’África Brasil e Theo Werneck

alí estava ela, hasteada, pra que todos pudessem ver as suas cores radiantes, simbolizando ORDEM e PROGRESSO e aos redores grandes quilombos periféricos Num lugar de guerreiros, cujo olhar vermelho É pela liberdade entre terras e mares Òh pátria amada, idolatrada salvem se salve. E do passado que restou, è rubro terror Como o vermelho de Xangô a cor do amor Que pulsa ao coração compassos de ódio e paixão Esparramando sangue ao chão Na eterna contradição de uma nação Verde amarela azul branca e vermelha São as cores que compõe a bandeira Brasileira Só que o vermelho não quiseeram botar É cor de sangue é cor de morte é cor de farsa É todo o sangue derramado nesses 500 anos É toda a história maquiavélica tramada nos nossos Mocambos A dominação de um fogo por ouro Foram sofrimentos de um povo que foram se acabando aos poucos Meus antepassados indígenas celebravam os Deuses Hoje me lembro que os Índios são poucos e só aparecem as vezes Quando são queimados vivos em praça pública Por uma raça sádica que faz um mal a sua cultura Luta, resistência, traçar a vida são batalhas A morte o salvamento Deus guiará suas almas Eram das matas, eram dos cantos Hoje os Índios são poucos mas significam tanto Isso é pra quem sabe pra quem tem raiz Por que sou Índio, por que sou negro por isso sou feliz Por ter esse sangue correndo nas veias Por ter nascido de três raças formada a Brasileira Habitada por Índios, construída por Negros Administrada por Brancos era nobreza herdeiro Era, era nada, era uma bandeira de gangues Falta o vermelho derramado por eles o vermelho do sangue Eu não me esqueço eu não me rendo Foram muitos erros foram muitos lamentos Que não há fortaleza que pague a dor a dor do passado Que não há receita que cura a dor da alma além da vida a dor do laço Que foi amarrado nos açoites nos arames farpados Na triste dor da luta é como a triste dor do parto Inevitável a lei da selva O sangue da criança nascida na senzala é a dor da época Se existiu um julgamento final ainda não foi divulgado É como sempre nesse país está certo o errado Esses assassinos serão julgados por Deus da mesma maneira E se afogarão nesse sangue a cor que falta na bandeira Brasileira


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Um poema Rasga carne sangra dor brinda vida cura amor Tá na multidão que o rap arrastou Na voz no furor que Racionais cantou Nos livros que o poeta Vaz eternizou Nas negras raízes no conto do griot No canto sagrado que uma tribo entoou É canta a liberdade pra quem tá confinado No povo unido caminhando lado a lado No raro “déjà vu”, loucura insensatez Onde forte sobrevivem, os fracos não tem vez É o ser ou não ser... eis a questão É respeitar a opção da irmã do irmão Do jeito que quisé bem me qué mal me qué No drible na ginga no grito de olé É pai filho pro espírito é santo Nos muros becos em todos os cantos No sorriso no pranto no trago no gole Na dor no peso da ressaca do porre Na escrita perdida num velho pergaminho E agora José? São as pedras no caminho. Na imensa solidão daquele na sarjeta Naquele rascunho esquecido na gaveta Nas entrelinhas no subliminar Nas metáforas que a vida não cansa de ensinar No mistério da morte no enigma de marte Num beijo roubado imitando a arte Na frase sem crase no verso sem métrica É usá e abusá da licença poética Nóis fomo, nóis vai, vi ela tanto faiz Verbo e mais consoantes e vogais Na prosa a rima na trova o verso Do nosso jeito simples complexo Erudito popular entre o bem e o mal La pra academia é um ser imortal Aqui a poesia desfila no sarau Cortejada por amantes etc. e tal Morô, na moral, isso memo papo reto É do nosso jeito é o nosso dialeto A palavra escrita na canção que embala Hey norma culta, se não me entende? Psiu! Se cala...

Bel, prazer Num momento raro as nuvens dissiparam O sol iluminou tudo fico claro O céu se abriu, um anjo desceu Um milagre surgiu você apareceu Por Deus! Quem te fez linda assim? Seu jeito de ser tudo enfim... Trouxe pra mim essa paixão tão delirante Intensa real louca pulsante Você não tem ideia do muito que sinto Transcende, explode, acredite não minto Somos nosso mundo, o todo, o tudo A força a vida viva é mútuo Que sentimento é esse? Nunca senti Jamais imaginei que pudesse existi Eu, homem feito tornei-me criança Me fez acreditá, encheu-me de esperança Ninguém jamais apagará nosso brilho Juntos viveremos filha, filho Tanto faz pra nós deixa assim está Seja como for é o que Deus mandá Pensam que sabem o que já passamos Só nós sabemos pra onde é que vamos Qualquer problema você pode me falá Velhas manias eu tento mudá. Conta pra mim, quero escutar Como foi seu dia vamos compartilhar Meiga senhorita uma linda mulher Juntos pra sempre pro que der e vier Acaso destino nada disso importa Amor, aceite minha proposta Somos amantes mais que amigos Bel prazer! Ae... Casa comigo?!


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Jairo Periafricania (nome artístico de Jairo Rodrigues Barbosa) é rapper, poeta, arteeducador e produtor cultural. Além de ter participado de algumas coletâneas literárias, tem o álbum solo O sonho não envelhece (2010), bem como um disco sem título em 2005; seu novo álbum será tem lançamento previsto para este mês. Colaborador do Sarau da Cooperifa, há aproximadamente 17 anos, participando ativamente da organização de seus eventos, tais como Semana de Arte Moderna da Periferia e de Mostras Culturais. Com a Cooperifa, participou de diversas turnês da Cooperifa pelo Brasil e pelo exterior. Já foi convidado a participar de atividades em SESCs, atividades culturais, presídios, shows e escolas da periferia. Também foi arteeducador durante cinco anos na Fundação Casa pela Ação Educativa.


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O encontro das águas em mim Um novo ciclo, metade de uma década eu enlouqueci tantas vezes que agora virou meu estado natural quando eu pari, meu pequeno riacho virou mar o encontro das aguas dentro de mim a vida, bem-vinda ao mundo a morte dos meus pedaços quando eu pari a água levou meus eus, sigo numa constante ressignificação dos pedaços da minha carne que encontro no caminho aquela água que limpa, lava, cristalina também faz inundar, tsunami no coração transborda pelos olhos furacão que treme o corpo Faz cinco anos que bati num iceberg mal pensei que era só a ponta mergulho nesse mar, para conhecer sua profundidade sinto também sua elevação quando aquecida pelo sol. uma viagem baseada em pequenos e grandes surtos um mergulho no fundo do meu oceano interior uma mistura de amor e desespero parir é entrar num buraco negro abrir uma caixa de pandora nunca se sabe o que vai sair de lá.

Jéssica Angelin É poeta, mãe, doula, fotografa e produtora cultural. Atua no Sarau das Mina e no Coletivo Cultura Viva. Aborda temas sobre maternidade, empoderamento feminino e culturas indígenas em suas intervenções.

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Essência Se ame a cada curva, traço, risco cada estrada, cada parada parágrafo, cada estrofe cada sílaba, e a cada trilha sonora, Você é Poesia cíclica , regida pela Lua Seu sangue faz florescer novos ciclos, novos olhares, Você é não só uma poesia, mas fragmento de todas as poesias do mundo, você é o sentimento mais sincero de liberdade o sonho das suas avós as memórias das suas bisavós você é o grito selvagem que atravessa gerações nações séculos milênios Você possui não só o portal da vida mas possui o dom de gerar novas ideias e sentimentos pelo mundo você é o fruto da maçã da cobra, da árvore, e do reino você é feita do avesso do que não se deve dizer você é feita do que não se faz é o azedo e o mel da vida é a flor e o espinho é a curva o traço a estrada a história a própria essência da vida e da morte.


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nos terreiros de umbanda evocam liberdade e entidade com esse idioma que tentou nos prender cada sílaba separada me faz relembrar de como fomos e somos segregados nos encostaram nas margens devido a uma falsa abolição que nos transformou em bordas me... je ne parle pas bien je ne parle pas bien tiraram de nós o acesso a ascensão

Je ne parle pas bien

e eis que na beira da beira, ressurgimos reinvenção

excuse moi, pardon me ...

nossa revolução surge e urge das nossas bocas das falas aprendidas que são ensinadas e muitas não compreendidas salve, a cada gíria

je ne parle pas bien français je ne parle pas bien anglais non plus je ne parle pas bien je ne parle pas bien je ne parle pas bien je ne parle pas bien ... eu tenho uma língua solta que não me deixa esquecer que cada palavra minha é resquício da colonização cada verbo que aprendi conjugar foi ensinado com a missão de me afastar de quem veio antes nossas escolas não nos ensinam a dar voos, subentendem que nós retintos ainda temos grilhões nos pés esse meu português truncado faz soar em meus ouvidos o lançar dos chicotes em costas de couros pretos

je ne parle pas bien temos funk e blues de baltimore a heliópolis com todo respeito edith piaf não é você quem toca no meu set list eu tenho dançado ao som de “coller la petite” je ne parle pas bien o que era pra ser arma de colonizador está virando revide de ex-colonizado estamos aprendendo as suas línguas e descolonizando os pensamento estamos reescrevendo o futuro da história não me peçam pra falar bem parce que je ne parle pas bien je ne parle pas bien je ne parle pas bien, rien eu não falo bem de nada que vocês me ensinaram


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Menimelimetros

mas reforçam a força e a tática do tráfico mais um refém

os menino passam liso pelos becos e vielas os menino passam liso pelos becos e vielas os menino passam liso pelos becos e vielas

esses menino num sabem nem escrever mas marcam os beco tudo com caquinhos de tijolo: pcc! prucê vê, vê ... vê? num vê! que esses meninos sem nem carinho não tem carrinho no barbante pensa que bonito se fosse peixinho fora d’água a desbicar no céu mas é réu na favela lhe fizeram pensar voos altos voa, voa, voa ... aviãozinho

você que fala becos e vielas sabe quantos centímetros cabem em um menino? sabe de quantos metros ele despenca quando uma bala perdida o encontra? sabe quantos nãos ele já perdeu a conta? quando “ceis” citam quebrada nos seus tcc’s e teses “ceis” citam as cores das paredes natural tijolo baiano? “ceis” citam os seis filhos que dormem juntos? “ceis” citam que geladinho é bom só por que custa R$ 1,00? “ceis” citam que quando vocês chegam pra fazer suas pesquisas seus vidros não se abaixam?

e os menino corre, corre, corre faz seus corres, corres, corres... podia ser até adaga, flecha e lança mas é lançado fora vive sempre pelas margens

num citam, num escutam só falam, falácia! é que “ceis” gostam mesmo do gourmet da quebradinha um sarau, um sambinha, uma coxinha mas entrar na casa dos menino que sofreram abuso de dia não cabe nas suas linhas

na quebrada do menino num tem nem ônibus pro centro da capital isso me parece um sinal é tipo uma demarcação de até onde ele pode chegar

suas laudas não comportam os batuques dos peitos laje vista pro córrego seu corretor corrige a estrutura de madeirite

e os menino malandrão faz toda a lição acorda cedo e dorme tarde é chamado de função queria casa mas é fundação

quando eu me estreito no beco feito pros meninos “p” de (in) próprio eu me perco e peco por não saber nada por não ser geógrafa invejo tanto esses menino mapa percebe, esses menino desfilam moda havaiana número 35/40 e todos que é tamanho exato pro seu pé número 38 esses menino tudo sem educação que dão bom dia, abrem até portão tão tudo fora das grades escolares nunca tiveram reforço ---- de ninguém

tem prestigio, não tem respeito é sempre o suspeito de qualquer situação “ceis” já pararam pra ouvir alguma vez os sonhos dos menino? é tudo coisa de centímetros: um pirulito, um picolé um pai, uma mãe um chinelo que lhe caiba nos pés um aviso: quanto mais retinto o menino mais fácil de ser extinto seus centímetros não suportam 9 milímetros porque esses meninos esses meninos sentem metros

Luz Ribeiro É poeta, slammer e produtora cultural. Autora dos livros (in)dependentes Eterno contínuo (2013) e Espanca-estanca (2017), é ganhadora dos campeonatos nacionais de poesia FLUPP BNDES (2015) e SLAM BR (2016) e vice-campeã na COUPÉ DU MONDE DE POÉSIE (FRA-2017). Também é dos coletivos Slam das Minas e Legítima Defesa. Luz Ribeiro, que prefere pousar em redes de balanços e afetos, tem alguns seguidores, mas sonha em ter sempre com quem seguir. Paulistana, nasceu antes de aquário pra presa não ficar. Luz é: mar-mãe de ben e filha-mar de odoya.


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Negro Ativo

Meninos do Brasil

Quem me nega trabalho, negô Não terá outra chance de negar Negro é homem trabalhador Todos sabem, ninguém pode negar.

Brasil, olha teus meninos às margens do Rio de Janeiro crianças sem esperança em Salvador sem dor pedras de Recife corroem por inteiro pés de moleques em Porto Velho em Boa Vista pupilos de olhos vermelhos Rio Branco no espelho devora meninas rezam pais de João Pessoa choram mães de Teresina ninguém socorre filhos de Belém em Natal não tem paz sem fé São Luís não aguenta mais plantação medonha em Belo Horizonte a erva enfadonha aflora Florianópolis o crack domina em Campo Grande guris de Porto Alegre tri-loucos de tristeza papelotes de esmolas para pixotes de Fortaleza sem escolas perdemos garotos de Vitória pivetes de São Paulo compram, vendem piás de Curitiba enrolam, acendem curumins de Manaus na troca de guaraná por Coca na Zona Franca mirins de Goiânia seguem receita da branca pó de Aracaju farinha de Macapá para massa de Maceió pasta de Cuiabá droga ofusca a balada de Brasília em Palmas abala famílias

Quem me nega salário, negô Não terá outra chance de negar Meu suor tem valor, meu senhor Senhor ainda se nega a pagar. Quem me nega oração, negô Não terá outra chance de negar Negro reza pra teus orixás, Pra Ogum, pra Xangô e Oxalá. Quem me nega a paz, negô Não terá outra chance de negar Nego-ativo livro o mundo sim senhor Zumbizando pro mundo se libertar. Quem nega a luta, negô Não terá outra chance de negar Capoeira é atitude do negro Atitude é a força pra lutar. Quem me nega a raça, negô Não terá outra chance de negar Preto é cor, negro é raça Sou negro e com raça não vou sonegar. Quem me nega justiça, negô Não terá outra chance de negar Justiça se faz com amor Negraz, a humanidade é incapaz ao julgar. Quem me nega amor, negô Não terá outra chance de negar Nega ama teu nego em nagô Negritude pro mundo amar. Me negaram de tudo Nesta terra de negro sem lar Sei que não me negas, senhor, Sou teu filho, ninguém pode negar

Márcio Batista É poeta, produtor cultural e professor de Educação Física. É Autor de Meninos do Brasil. Um dos principais poetas da Cooperifa, também poemas publicados nas antologias O rastilho da pólvora e no CD Sarau da Cooperifa. É produtor cultural, um dos articuladores de atividades da Cooperifa, exerce as funções de professor de diretor de escola, em quais fomenta cultura e atividades físicas aos estudantes, professores e demais funcionários.


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A PERIFERIA NÃO PARA!

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cabei de ler “Furagem”, de Divanize Carbonieri, agarrada pela palavra-carne, sucumbida pela linguagem que explode como estampido, carregando força e maciez, como que de punho fechado e olhos bem abertos. Mal me recomponho, sou levada a percorrer a antologia apresentada pela Pixé, duplamente exigente e generosa, organizada por pesquisadores da Universidade de São Paulo, ao lançar-se à procura pela arte que não está à parte de nossa época, tampouco é uma nostalgia do passado. A antologia pensada como “rito” é mais que uma homenagem, alguns poderiam achar um sacrilégio, uma violação: desaloja-se o centro, perspectiva-se a periferia. Se não bastasse a atitude, as vozes que ganham palco, periafricania, trazem pela poética da periferia, as Identidades diversas, o avesso do eu, apontando um sistema em contínuo e complexo movimento: a periferia não para. A arte da periferia é incansável e irredutível, diante de realidades “irrefutáveis”, profundamente históricas e ideológicas. Há mais que um esforço por realidades heterogêneas, pois eis que a arte da periferia carrega a visão pluralista da história, corrente de contra-discurso. Palavra de Mulher Preta Mulher preta de palavra Preta de palavra Palavra de Preta Lava alma preta Palavra sagrada de mulher Se a minha alma é preta E a minha sociedade não me aceita Minha palavra sagrada sangra

A harmonia, na descoberta da ambiguidade, o tom ora eloquente, ora de conversa afiada, traz o caráter eminentemente popular, de movimentos culturais, da rua; a efervescência da linguagem se realiza pelo verso compacto, o apelo ao efeito estético da voz (“Na voz no furor”), a transestilização da voz, que transita entre o dizer (imperativo) e o canto (melódico) A palavra empenhada carrega a intensidade de sua raiz oral, polifônica, plurissonora. eu tenho uma língua solta que não me deixa esquecer que cada palavra minha é resquício da colonização Na partilha do verso, nas dobras da prosa, o espetáculo da convergência, de uma pluralidade que se quer polêmica, um atentado, um grito: periafricania, “Não tenha medo em dizer que tu é Preto Não tenha espanto em dizer que tu é Branco, Não seja omisso em dizer que tu é Índio (...)” A linguagem é o homem e que somos feitos de palavras, ditas e não ditas, já dizia Octávio Paz; nesta antologia da periferia, algumas palavras carregam o efeito da ironia diante de “banalidades históricas”; noutras, são atrozes, como que respondendo a uma violência impingida. Eis a Pixé! O maior projeto de difusão da literatura brasileira em Mato Grosso. Grandiosa ao alargar as fronteiras, ao aproximar a arte contemporânea. Magnífica. Pixé é arte. Walnice Vilalva Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP (2004), Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. É professora adjunta da Universidade do Estado de Mato Grosso. Atuou como coordenadora do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários-PPGEL, gestão 2009-2013. É editora do Suplemento Literário Nódoa no Brim e da Revista Alĕre- Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários; e coordenadora do Núcleo Wlademir Dias-Pino. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas: memória e identidades literárias.


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Fábio Roberto Ferreira Barreto É mestrando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP) e Professor da rede municipal de São Paulo.

Márcio Vidal Marinho É poeta, pesquisador e Professor Mestre das redes municipal e estadual de São Paulo de São Paulo.

A MAIORIDADE LITERÁRIA

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Brasil vive no século XXI um dos seus momentos mais icônicos no que se refere à literatura. Desde a virada do milênio houve uma popularização da poesia como nunca visto anteriormente. Os modernistas, que idealizaram um projeto nacional de literatura, esbarraram no baixo nível de escolarização do país, limitando a grande massa a ter acesso, hábito e gosto pela leitura. No final do século XX, o entusiasmo toma conta do país com o fim do regime militar; porém, as periferias não partilhavam dessa exultação, de maneira que a precariedade nos modos de vida, a violência e o racismo permaneciam intactos nos espaços mais afastados do centro. Para enfrentar esse abandono, a juventude periférica se apropria da cultura estadunidense chamada Hip Hop, que já havia ajudado na conscientização da juventude negra dos EUA a enfrentar as questões do racismo e da violência nos guettos de Nova Iorque. O Hip Hop é composto por quatro elementos Disc Jockey (DJ), Mestre de cerimônia (MC), Graffiti e Breaking Dance. No Brasil, o rap se tornou o porta-voz das periferias por denunciar em suas letras o descaso, o abandono e os abusos sofridos pela população periférica. Nesse cenário se destaca o grupo Racionais MC’s, considerado ainda nos dias atuais o melhor grupo de rap da América Latina, conquistando diversos prêmios nacionais e internacionais, sendo o primeiro grupo a denunciar o abandono e a miséria em São Paulo. O direcionamento feito pelo Hip Hop nas periferias atingiu não apenas a cultura, mas todos os níveis da sociedade como na educação, nos estilo de vida das pessoas, inclusive, na economia. Hoje, o rap é o estilo musical mais ouvido no planeta, superando o Rock’n roll. O orgulho de ser da periferia toma conta da juventude que passa a acreditar que é possível realizar coisas dantes nunca imaginadas, como, por exemplo, a própria literatura. Nesse cenário surgem os primeiros autores advindos da periferia que se colocam no mesmo local de fala que o rap. Seu enunciador passa a ser testemunha do que é narrado em seus versos ou em sua prosa. Se fizéssemos uma linha temporal na literatura brasileira, veríamos que o sujeito periférico nunca teve lugar de destaque nas narrativas nem tampouco nas poesias – e, nas raras exceções, esse sujeito é apresentado de maneira jocosa e caricata. Mesmo Antonio Candido, em seu belíssimo Direito à Literatura, não prevê o acesso à escrita literária. Em 1997 a prosa brasileira ganha novos ares com Paulo Lins, que, em Cidade de Deus, apresenta uma novo enunciador da literatura, o sujeito periférico que não apenas escreve um realismo do que vive, mas, sim, traz uma reflexão de não compactuação com a realidade narrada/vivida. Em 2001, a poesia ganha seu próprio marco com a revista Caros Amigos, que traz uma edição especial intitulada Literatura Marginal, com diversos autores que fugiam de todo o estereótipo dos escritores brasileiros, de modo que em sua maioria são autores negros, todos da periferia e com profissões das mais variadas, desde dona de casa a vendedor de rua, reivindicando enfim, o direito à escrita literária.


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Inicialmente o termo Literatura Marginal ganha força, mas aos poucos com diversos estudos feitos pelos próprios autores desse movimento e de intelectuais advindos das periferias o vocábulo dá espaço ao que hoje se autodenomina por Literatura Periférica. Para entender essa mudança é preciso explicar no que esses termos são diferentes. Literatura Marginal é um termo que apareceu na França na década de 1960 partindo de fenômenos superficiais como nos mostra Robert Ponge em Literatura marginal: tentativa de definição. In: FERREIRA, João Francisco (org.). Critica literária em nossos dias e literatura marginal Definiremos literatura marginal como a literatura que, num momento dado, aparece à classe dominante (isto é, à classe dominante e/ou a seus ideólogos, seus críticos, sendo o consenso relativamente unânime) como sendo outra, como não lhe pertencendo. (PONGE, p. 139, 1981). Na tentativa de apontar as tendências de literatura marginal na França, Ponge (1981) delimita alguns pontos: a) a literatura de mulheres em revolta, na qual inclui Hélène Cixous, Victoria Thérame ou Igrecque, as quais são conscientes da opressão que as mulheres sofrem e, por isso, escrevem e produzem seus livros; b) a literatura proletarizante, que é inspirada nos proletários, que fala deles e através deles, por exemplo, Confessions d’um prolétaire, de Joseph Benoit ; c) a literatura dos indivíduos marginalizados, hippies, beatniks, drogados, misfists, mendigos, homossexuais etc. O que percebemos com isso é que para fazer Literatura Marginal não precisa vivenciar ou vir dos espaços narrados, mas, sim, se sensibilizar e expor isso nos textos, utilizando seu espaço na literatura para representar um grupo ou situações. Mas para ser um autor da Literatura Periférica é necessário advir dos espaços periféricos e vivenciar o que é narrado. Um exemplo é o poema de Mário de Andrade, Ode ao Burguês, que faz um ataque direto à burguesia brasileira, de maneira alguma para agradá-la, mas para criticá-la enfaticamente. Esse poema do paulista está dentro da Literatura Marginal. Temos, ainda, o tão conhecido e apreciado poema de Manuel Bandeira, O Bicho, que relata a miséria humana de maneira tão brilhante; porém, ao compará-lo com o poema do poeta Sérgio Vaz, Gente miúda, veremos nitidamente o local do enunciador da literatura da periferia. Enquanto o eu-poético de Bandeira narra uma situação inédita aos seus olhos e ao final confunde o homem com bichos, tirando dele sua humanidade, em Gente miúda, o eu-poético de Vaz, que narra a mesma situação, dá nome ao personagem, Daniel, que vive nas ruas das sobras do capitalismo e morre depois de 35 anos como se nunca tivesse existido. Dando ao personagem vida, identidade, humanidade, além da visão crítica-social de entender que aquela situação não é aleatória no mundo, mas parte do processo financeiro global. Diante disso, estabelecemos parâmetros do porquê Literatura Periférica e não Marginal, que também é importante para a literatura, mas é mais abrangente que àquela que vem das periferias. Qualquer escritor poderia ser marginal em algum momento de sua obra, mas isso não aconteceria com a periférica, pois é preciso vir desse espaço e se entender parte dele para ser um autor da periferia. Em 2001, Sérgio Vaz, um dos maiores nomes da literatura brasileira da atualidade, e Marco Pezão fundam a Cooperifa. Transcorridos dezoito anos, há muitas razões para soprar as velas e comemorar o nascimento de uma nova concepção de literatura em nosso país, na qual os excluídos não são apenas objeto de tematização – muitas vezes estereotipada –, mas sujeitos de suas escritas e, por conseguinte, de suas histórias. Se Michèle Petit afirmara, em seu Os jovens e a leitura, que na periferia “estava danificada a capacidade de simbolizar”, a literatura periférica possibilitou mais do que dar vez e voz a um segmento da população deste país: inaugurou uma era em que a capacidade de sonhar, por meio de uma potente expressão artística, passou a se constituir como direito inalienável de todos e não apenas de um seleto grupo social de nosso país. A literatura periférica nasce, cresce e se fortalece, embasando-nos em Antonio Candido, em reconhecer a “necessidade universal de ficção”; ou, afinal, como lembra o poeta Sérgio Vaz, em artigo publicado pela Folha de São Paulo no início deste ano, “o povo gosta de ler, só não sabe que gosta”. De acordo com pesquisa publicada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, da UnB (Universidade de Brasília), mais de 70 % dos livros publicados por grandes editoras brasileiras, entre 1965 e 2014, foram escritos por homens (leia-se, quase exclusivamente, brancos, héteros, quarenta anos ou mais, com ensino superior, cristãos). Ainda de acordo com o estudo, aproximadamente 90% das obras literárias são de homens desse perfil. Embora não se possa apontar uma única causa para as crises enfrentadas pelo mercado editorial e por grandes livrarias, como Cultura e Saraiva – haja vista a questão ser muito complexa, merecendo atenção de diferentes segmentos da sociedade –, parece evidente que mudanças se faziam necessárias nesse cenário. Aliás, talvez o fato de a produção e a circulação de livros independentes seguirem em alta, nesse momento, seja uma comprovação – não mais uma hipótese – de que a literatura periférica fez bem não só a seus autores, que puderam se expressar, mas à sociedade brasileira como um todo, uma vez


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que passou a ter a chance de ver o Brasil sob outras óticas: da empregada doméstica, do negro oprimido pela violência policial, do homossexual discriminado pela sociedade, do pobre privado de escola e dotado de conhecimentos... Para quem estiver tomando contato com a literatura periférica pela primeira vez ou estiver trilhando seus primeiros passos, vale observar que as atuais lufadas desse movimento literário têm suas primeiras brisas décadas atrás. Em outras palavras, apesar de se demarcar o início do Século XXI como o nascedouro do movimento da literatura periférica, é pertinente registrar que alguns de seus expoentes já vinham produzindo no século passado. O próprio Sérgio Vaz, por exemplo, estreia com Subindo a ladeira mora a noite em 1988. Nesse livro, alguns de seus poemas já apresentam as características que o consagrariam como um dos maiores nomes dessa estética. Distanciando-nos mais ainda no tempo, podemos lembrar de Maria Carolina de Jesus. Ela nem sequer supunha chamar de literatura periférica – ou literatura negra –, mas, ao lançar Quarto de despejo: diário de uma favelada, em 1960, teria encarnado todas as características de uma autora dessas estéticas. O mesmo se pode dizer sobre Solano Trindade e suas poesias, desde os anos de 1930. São de Solano Trindade (que completaria 111 anos em julho deste ano) os versos que ajudam a entender uma das dimensões estéticas da literatura periférica: “Senhora gramática, perdoai os meus pecados gramaticais/Mas se não perdoardes/ Eu errarei mais”. As escolhas lexicais, o emprego de neologismos, a argúcia e o esmero no trabalho com a palavra são opções e, ao mesmo tempo, estratégias muito sagazes de poetas, escritores, contistas, dramaturgos, romancistas do movimento literário periférico. Longe do preconceito linguístico com que se tenta discriminar as obras de representantes da literatura periférica, bem como distante do olhar míope de alguns acadêmicos, que insistem em não reconhecer o valor artístico dos textos produzidos nesse vertente, trata-se de um conjunto de obras singulares na transgressão da palavra. Embora se encontrem estilos diversos, em comum entre essas manifestações, no conjunto da literatura periférica, identifica-se um estilo de fazer arte que demarca seu lugar de fala na escolha de assuntos e, sobretudo, no como se trata deles. Ao recebermos o convite para colaborar com a PIXÉ, o júbilo e o cagaço foram inevitáveis. A honra de apresentar uma antologia, paradoxalmente, traz a responsabilidade de incluir alguns nomes representativos e não fazer o mesmo procedimento com muitos outros. Para comemorar uma data tão importante, a maioridade do movimento literário mais expressivo do Século XXI, nesta edição, selecionamos vinte e um autores e autoras da literatura periférica para o deleite do público leitor da revista. Embora tenham características caras ao movimento da literatura periférica, os autores e autoras destacados têm marcas bastante particulares. São textos que, sem deixar de posicionar sua autoria e sua estética periféricas, apresentam variações temáticas e estilísticas instigantes. Entre prosas e poesias, suas palavras, estética e estilisticamente potentes, são de protesto e crítica social, de reflexão histórica e sociológica, de emancipação feminina negra e de orgulho de matrizes africanas, mas também de afetividade e lirismo sentimental, de reflexão introspectiva e de sensibilidade poética. Trata-se de uma simbólica mostra de pequena parte de um grande movimento. Dela constam autores, possivelmente, mais conhecidos pelo leitor comum como Allan da Rosa, finalista do Jabuti 2018 e detentor de alguns prêmios importantes, Émerson Alcalde, um dos idealizadores do famoso Slam da Guilhermina e campeão brasileiro, Rodrigo Ciríaco, idealizador dos Mesquiteiros, que se engaja na promoção da literatura a estudantes de escolas públicas em São Paulo, mas, também, de outros bastante conhecidos – e reconhecidos – na cena da literatura periférica, tais como: Akins Kintê, um dos poetas mais potentes da literatura periférica e da literatura negra, quiçá, do país na atualidade; Luz Ribeiro, artista multifacetada, grande poetisa e primeira slammer campeã brasileira; Ni Brisant, grande como poeta, promotor do gosto pela leitura e pela escrita de literatura e, agora, editor; Elizandra Souza, dona de potente escrita, forte presença nos meios culturais da periferia e uma das idealizadoras do Sarau das Pretas; Márcio Ricardo, poeta, slammer e rapper, que coordena o CAPS, a famosa roda de poesia criada por Maria Vilani; Márcio Batista, poeta e um dos nomes mais importantes da Cooperifa; Augusto Cerqueira, poeta e cronista de estilo peculiar, que idealizou o Sebo do Augusto; Michel Yakini, que, além de transitar entre gêneros dos versos e das prosas, é um dos idealizadores do Sarau Elo da Corrente; Lorena, jovem voz negra do circuito literário; Jéssica Angelin e Mayana Vieira, que apesar de novas, já fazem barulho no Sarau das Mina. Ademais, temos: Nelson Maca, uma voz baiana que ecoa pelo Brasil a partir de sua Blacktude; Meimei, voz forte do Distrito Federal; Zainne Lima, uma real promessa da literatura brasileira; Thata Alves, artista multifacetada e articuladora cultural; o rapper Gaspar, que também é um potente escritor e um grande divulgador da cultura Hip Hop; Jairo Periafricania, rapper que faz parte da Cooperifa e envolvido em várias iniciativas pela promoção da leitura e da escrita; por fim, uma justa e póstuma homenagem a Tula Pilar, a poeta que, antes de partir, deixou entre nós o grito contra a opressão da cozinha da Casa Grande.


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Gervane Artista

BIOGRAFIA

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ervane de Paula é brasileiro e nasceu em Cuiabá-MT, onde reside e trabalha desde 1977. Integrou a “Geração 80”, movimento artístico brasileiro de grande relevância nas artes plásticas, e desde então vem participando de mostras individuais e coletivas em museus do Brasil e do exterior. Sua obra tem sua natureza na cultura de massa, popular e religiosa, e trata do realismo social falando sobre as várias formas de violência urbana, partindo do cenário local para retratar o mundo em que vive. Sua produção está situada entre a pintura, desenho, objeto e instalação, utilizando diversos suportes e materiais.


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Ludmila Brandão Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense e em História pela Universidade Federal de Mato Grosso, mestrado em Educação pela UFMT e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Pós-doutorado na Université d’Ottawa (Canada), na área de Crítica da Cultura. Atua no campo da Análise e da Crítica Cultural, da Crítica de Arte, no debate sobre a “contemporaneidade”, a colonialidade do saber e da arte, abordando especialmente os tópicos: arte, cidade, subjetividades, subalternidade e resistência, além das práticas de cópia e similares como práticas contemporâneas.

Gervane de Paula e sua encantação pelo riso Ride, ridentes! Derride, derridentes! Risonhai aos risos, rimente risandai! Derride sorrimente! Risos sobrerrisos – risadas de sorrideiros risores! Hílare esrir, risos de sobrerridores riseiros! Sorrisonhos, risonhos, Sorride, ridiculai, risando, risantes, Hilariando, riando, Ride, ridentes! Derride, derridentes! (Khlébnikov )


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enho um vivo encantamento, de longa data, pela obra de Gervane de Paula. Ela, principalmente, provocou um sutil desvio em minha trajetória acadêmica, fazendo-me passar das discussões sobre a cultura para o campo da arte contemporânea, ou da arte praticada em tempos atuais. O estopim foi uma exposição intitulada Acerto de Contas , no Sesc-Arsenal de Cuiabá, em 2003. Por essa época, andava irritada com o epigonismo crescente das artes visuais nestas bandas, cujo “imperativo da natureza ” havia reduzido a alguns elementos os motivos que animavam os artistas da região, com algumas exceções, é claro. Mangas, cajus, onças, tuiuiús, pequis e violas-de-cocho, para citar alguns. Além das obras ditas “regionais”, o esgotamento dos motivos (em suas formas já restritas) alastrou-se nos espaços públicos (os orelhões em formas animais!), nas mídias e nos discursos e práticas do turismo, que repercutiam grotescamente o pior desse processo. Foi com esse espírito, de total desânimo, que cheguei à exposição de Gervane, cujas primeiras impressões registrei em artigo de jornal local, republicado em 2005 no Jornal da Associação Brasileira de Críticos de Arte sob o título “Droga (!) de Arte”. À entrada da exposição, Gervane colocou a obra composta por um moedor de carne bastante enferrujado, com muitos pequenos tuiuiús (daqueles de loja do aeroporto) amontoados em sua boca e, abaixo, na saída do moedor, uma caixa contendo um pó branco. Desatei a rir descontroladamente. O artista falou-me ao fígado, de tal modo que, pela primeira vez, senti que precisava escrever sobre arte. Credito, também, a essa experiência, além do desvio para a arte (que se definiu na vida acadêmica, a partir de 2010), o gosto pela escrita crítico-ensaística com textos curtos que não ambicionam nenhuma crítica, apenas diálogo: uma conversa entre palavra e imagem. Com esse espírito, assinei vários textos em catálogos de exposições suas, individuais e coletivas. Nesta edição da Pixé, reencontro parte de sua obra e aqui tenho a alegria de uma nova conversa. Acerto de Contas marca, para mim, um divisor de águas (a ver se o artista concorda comigo): a iconografia que antes visava a dizer a região com ares de sobriedade identitária, é usada contra ela, mas não apenas. É com ela que o artista bota a boca no trombone (ou na tela) para esculhambar o pior da cultura, da política e da própria arte. Em texto de 2016, para a primeira edição de seu maravilhoso “Mundo Animal”, escrevi assim: (...) Ri da dor. Ri da morte, ri da guerra, ri da arte. Ri do falo, ri do sexo, ri do gozo. Ri do pau, ri do cu, ri da buceta. Ri do homem, ri do bicho, ri da grana.

37 Ri da bala, ri da mala, ri da mula, ri da droga, ri do vício. Ri do mato, ri do medo, ri da forca, ri da força. Ri do riso, ri do roubo, ri da cor. Ri do preto, ri do branco, ri do preto&branco. Ri de mim, ri de si, ri de você. Ri. (...) O riso, já foi dito por muitos, é político. Seu riso de cor, em pelo menos três sentidos (adivinhem quais!), ativa nossas células amortecidas por esse mundo de horrores, acende pavios de revolta. Mas é óbvio que para isso não basta querer fazer rir. Há trabalho cotidiano, aprendizado, refinamento do olhar e muita reflexão. Se hoje Gervane retoma imagens de seu próprio baú iconográfico, ele não o faz por repetição pura e simples, ou por esgotamento: há nessas retomadas um movimento espiral em que nada é mais o mesmo, apesar de continuar, em certa perspectiva, sendo. É isso o que vemos na obra de 2018, com Adão e Eva no pantanal e muitas maçãs (maçãs?!!!), que é também uma espécie de “Almoço na Relva” em que a terceira pessoa é uma serpente, ela própria, velho personagem de seu baú. Revólveres e buracos de bala são também personagens não-humanos. Os buracos, de modo especial, são sentidos como as feridas em que o pintor enfia o dedo para fazer doer mais, trazendo aqui dores negras: na cena de bang-bang, no estereótipo do homem negro que atrai a mulher loira com seu pau grande e, finalmente, no combate inglório (porque sabemos quem vence) entre artistas negros e curadores brancos, sobrepondo camadas de assujeitamento ao que já existe previamente no sistema oficial e colonizado das artes. Um contraponto é encontrado no elogio dos corpos negros que, por tabela, criticam os corpos da mídia e da moda. Nestas obras vemos com toda a força a paleta Gervane (à qual já me referi em outro texto ): As complementares vermelho e verde, as excludentes branco e preto. Passeiam entre elas o amarelo, o azul e o roxo. Os tons recorrentes dessas cores são como frases sonoras que reencontramos nas diversas telas. São afirmações do artista. São seus afetos prediletos. Por isso são reconhecíveis. Para terminar, destaco a presença também aqui do tema da morte que Gervane trás consigo desde muito longe. Lembro-me da exposição Campo Minado , em que uma obra rende homenagem a Leonilson que, como ele, fez parte da conhecida Geração 80, morto prematuramente em 1993. A morte no artista é sempre morte provocada, morte ignorada, morte trágica. Aqui, a soja (e tudo o que há por trás do signo) é a causa no curso da estrada. Mas é também aquela declarada pela arte dita “contemporânea” sobre a morte da pintura. O artista reafirma a pintura com objetos-pintados reclamando sua existência. Sim, a pintura segue viva com Gervane de Paula.


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Controle Eu falhei E também falei, Quando coloquei na cabeça Que éramos eternos. Quando prometi jogar o terno na poça Aquela da mesma linha que eu pedia você em casamento, Eu lamento e alimento A esperança de que tudo ficará bem aqui dentro. Liguei a TV E via você em todos os canais, E procurava que nem louco Quando eu nem via mais. Procurei você dentro da natureza Na natureza de acreditar que você ouviria ao menos uma vez: Desculpa. Você é um daqueles bilhetes da sorte Que achei em meio à tantos muros do meu coração, Que de tão confuso como um labirinto Quebrou as paredes e mostrou um único caminho: Você. A natureza foi desmatada Pela angústia da solidão, Os muros voltaram a ser labirintos Trazendo de volta o tanto de coisa que sinto. E os canais de TV Não te acho mais em nenhum, Tirei e botei novamente a tomada Ainda de vez em quando faço isso até hoje. Eu pareço você Quando dizia que eu não era mais um, Troquei as pilhas, mas minha expressão ainda está cansada Dentro de mim, percebi que não tenho você e perdi o controle. Ainda que hoje eu não seja tão ansioso, percebo que ainda me acho insuficiente pra outra mente, coração e corpo.

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Márcio Ricardo É poeta, slammer, músico, palestrante e produtor cultural. Autor de Felicidade brasileira, lançou, em 2016, o CD Gratidão, e, em 2019, o EP Existindo Poeticamente. O poeta ganhou notoriedade ainda muito jovem, fazendo com que ganhasse o respeito de pessoas como Maria Vilani; também, em razão de sua potência poética, é muito admirado nos saraus paulistanos pelos quais passa. Conduz a roda de poesia do CAPS (Centro de Arte e Promoção Social), no Grajaú, e realiza frequentemente a Palestra Gratidão em escolas públicas; em 2016, recebeu o Prêmio de Inovação Comunitária, oferecido pela Brazil Foundation, pelo Projeto Gratidão. Ficou em segundo lugar no I Festival de Poesia da Cidade de São Paulo, em 2014. Também é torcedor fanático do Boca Juniors.


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Aprendendo a conviver com os mortos “... A terra chama alguém pro chão. Mas eu não, eu não. Ainda não sei morrer. Ainda não sei não”. Viviane Mosé

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oi uma noite intensa aquela. O ano era 2005, eu fazia parte do movimento estudantil e, por convicções caducas, participei da ocupação do prédio da reitoria. Depois de muito empurra-empurra, assembleias sem fim e descoberta de um P2 no quórum, não dormi bem. Pela manhã, fui até janela pra ver se avistava alguém e fazer uma prosa de ventana. A primeira pessoa que me deu um salve foi a Neli, a menina-teresina. Ela sempre foi água, já sabia, mas fiquei surpreso em ver ela segurando uma dor estranha na íris. Ela tentou me dizer e sua voz não saia, pedi pra ir até a portaria e ficamos conversando pelos vãos. Neli me disse que tava apavorada, pois foi uma das primeiras a ver aquele amontoado de corpo na calçada. Contou que uma pessoa chegou antes dela e disse ter visto um rapaz subir pro 9º andar, mas não fez conta. Também quem imaginaria? Confesso, não tinha afeição pelo cara, ainda mais por ele ter se estranhado com um truta meu uns dias antes e por me incomodar quando ele vestia uma gandola de samango do Paraná com a bandeira nacional estampada na manga. Até aí era só um monte de rótulo e tomada de partido. Mas morte, seja como for, é uma bagaça que abala as nossas brisas, ainda mais quando é movida pela coragem de um suicídio e assim o Hermann, jovem estudante de História, bagunçou minhas convicções naquela manhã. Já havia aprendido, desde muleque em Pirituba, que a chama da vida é algo repentino. Banalizava qualquer assassinato e mesmo quando era alguém de perto prevalecia a lógica de aprender a conviver com os mortos, só que o suicídio não era um acontecimento de costume. Fiquei dias pensando nas aulas do professor Pedro Bodê, dichavando Durkeim e o suicídio da monotonia nas terras nórdicas e ficava relacionando o caso de Curitiba nesse espelho, do suicídio como efeito do tédio, mas com o tempo descobri que não é bem assim. Em São Paulo, a terra do 24 por 48, onde a correria não cessa, o fim voluntário da vida acontece em qualquer tanto. Seja nas quedas de viaduto e trilhos do metrô que não são computados ou noticiados, ou nas tragédias familiares de enforcamento no banheiro e pulos sem volta do último andar. Não queria escrever sobre isso, mas o suicídio anda derramando na roupa, na boca, fazendo a gente sentir o gosto amarrado dessa estranheza. Percebi que, só esse ano, soube de, pelo menos, uma dezena de pessoas que consumaram o fato. É um conhecido, o irmão de fulano, alguém que se ouve dizer, fora os que a gente nunca saberá. Dias desses um amigo veio aqui em casa me contar que tava escrevendo sobre, por já ter histórico na família e por ter deixado de lado essa vontade há pouco tempo. Depois de algumas semanas, tava conversando na laje de casa e vi um cara se jogando da ponte, por sorte não aconteceu nada. Na estante escolhi pra ler “Numa Terra Estranha”, do James Baldwin, prosa que fiquei na desconfiança de saber se o personagem Ruffus Scott, encontrado morto debaixo de uma ponte, havia se jogado ou sido assassinado. Esse livro ficou rondando minha leitura, bem na mão que aconteceu a mesma presepada com o poeta-sorriso da Zona Leste. Aí a gente descobre uma pancada de gente na mesma, e começam a surgir relatos públicos do silêncio e da busca por outros pensamentos. Só que na onda da vibração capenga e de tantos porquês, o que importa se Rufus Scott, a juventude preta de quebrada, o estudante de história ou o poeta se mataram ou foram assassinados? Pois, a vida vem dando conta de fazer esse serviço muito antes de qualquer gatilho disparar, de qualquer pulo sem volta ou de qualquer pensamento de coragem. A vida, cruelmente, anda matando a gente aos poucos, faz tempo. Basta saber se acabamos com ela ou se suportamos essa tortura sabe-se lá até quando e nesse dilema continuo sendo apenas um covarde, um sobrevivente, que escreve e caminha ofegante sob essa escadaria de gavetas frias.


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Michel Yakini É escritor, contista, poeta, produtor cultural e arte-educador. Autor de Acorde um verso, Crônicas de um peladeiro e Amanhã quero ser vento (um dos melhores lançamentos literários de 2018); também participou de diversas antologias, das quais O que resta das coisas, no ano passado, em homenagem a Caio Fernando de Abreu, finalista do Prêmio AGES – Associação Gaúcha de Escritores, em 2019. Um dos maiores nomes da literatura periférica, é um dos idealizadores do Sarau Elo da Corrente. Promove palestras e cursos escrita criativa, intituladas Com cheiros de palavras, em escolas públicas e unidades do SESC, além de fomentar práticas de alimentação saudável.


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Me destrói a ideia do inacabado É como se eu tivesse presa na garganta uma palavra que nunca sai O afeto não dado Me corrói a falta de tempo As não-brechas dos sorrisos semanais A solitude mórbida de quem ama amarelo Mas há tempos não reluz Os excessos excessivamente contidos A gente vai inventando desculpas pra desculpar nossos medos Encobrir desejos Negar plenitude Contemos alagamentos mútuos E nos afogamos sozinhas Tipo um poema sem fim.


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Era novembro quando eu me apaixonei por ela Que os livros nos perdoem, mas foram eles, muitas vezes, testemunhas do nosso amor É que ela tem a beleza de Oxum no olhar E carrega seu brilho espalhado sobre o corpo Quando ela sorri Os olhos dela se fecham E a alma parece sair pra fora Distribuindo, sem saber, o seu axé Me apaixonei pelo jeito que ela enfeita o Ori com tranças e turbantes De muitas cores, Tipo o arco-íris de Oxumarê É que ela é a sedução de Iemanjá Com a fúria de Iansã E a justiça de Xangô Ela é liberdade, É vento que voa E voa alto Mas que sabe a hora de parar Eu me apaixonei pelo jeito que ela me ama em patadas É que o sol dela é em aquário É preciso respeitar Eu me apaixonei e me apaixono toda vez que cê acorda com um bico enorme Reclamando pelo despertador despertar

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Eu acho fofo o jeito que cê lava seu rosto E como quando tá brava, arqueia a sobrancelha pra falar É que o jeito que ela respira é tão lindo Me apaixonei pela sua sacanagem Pelo jeito que nosso amor começa na boca E se espalha pelo nosso corpo um desejo sem controle Que nos rouba a razão E nos entrega ao outro lado Gosto dos nossos corpos despidos em confronto Da minha coxa Na sua coxa Nossas pernas entrelaçadas e o ofegar das nossas respirações Gosto dos nossos movimentos circulares de dedos Do nosso vai e vem Vem e vai Entra e sai Me apaixonei pelo jeito que nosso amor sempre termina na boca É que toda vez que te vejo “alguma coisa acontece no meu coração” Eu me sinto em paz Você me faz sentir a brisa gostosa de quem olha o mar E toda vez que eu olho o mar Eu só consigo dizer sim.

Mayana Vieira É poeta, mulher negra periférica e lésbica. É autora do livro Motumbá, publicado em 2017, em parceria com o Sarau das Mina; tem poemas publicados na coletânea Sarau das Minas, lançado em março deste ano. Slamaster no Slam do Grajaú, é educadora com formação em Letras. Acredita que as palavras são armas potentes que despertam transform(ações). Mayana Vieira escreve para não se afogar no que sente.


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Meimei Bastos É escritora e poeta, publicou Um verso e mei, pela Editora Malê, em 2017. Nascida em 1991, em Ceilândia, é formada em Artes Cênicas, pela Universidade de Brasília (UnB). É professora, atriz e coordenadora do Slam Q’BRADA. Atua em diversos movimentos sociais, promovendo saraus, slams, oficinas, debates, cineclubes e rodas de conversa, especialmente direcionados à população negra e periférica. Premiada em 2019, pela Secretaria de Estado e Cultura do Distrito Federal com o prêmio de Cultura e Cidadania, na categoria Equidade de Gênero. Participou de importantes eventos literários nacionais e internacionais, como a Flip, em Paraty e, a FILVEN, Feira Literária da Venezuela - FILVEN. Colaborou na publicação da antologia Mulher Quebrada, que reúne escritos de diversas mulheres das periferias do DF e Entorno.


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coragem dá em pé de querer tristeza na periferia é o que se alegra. aos seus olhos, quando parecer triste, duvide, receie. que para quem em carne sentiu, há de haver a maior alegria. possas crer! imagine você, que nuns anos destes, veio aqui em casa, um amigo de um amigo meu, dizendo de um caso que tinha passado o familiar de um conhecido. era dessas coisas absurdas, não por causa do que fizeram, também por isso, mas era por causa de uma espécie de coragem tão profunda, feito essa gente que ateia fogo ao próprio corpo em praça pública, feito corpos que param tanques de guerra, por uma coisa maior que si. de tão absurdo, de tanto de sonho que era, bonito foi. verdade. passeia pelas ruas, uma gente, na quebrada, braba, que não tem medo é de nada, nem de coisa nenhuma. tem essa estória do menino que não tinha nada, tinha, mas era só o querer. que querendo, foi se enfiar numa dessas festas de gente quarada, sem ter sido convidado. penetra. dizem que era curiosidade de saber como é pr’aquelas bandas grã-finas, dizem que era por causa de um irmão que ficou aguado por conta de uma comida que tinha visto num cartaz. parece que o irmão, queria tanto a comida, que sentia o gosto, sem nunca ter provado. queria tanto que não conseguia comer mais coisa alguma. ficou aguado, de verdade. de tal modo, que começou a amofinar. passava o dia salivando. era tanta saliva que foi ficando desidratado, magro. antes, traquino e espoleta, ficou parecendo uma caveira, coitado. dizem que a mãe tomou ciência da condição do filho, e que era quebranto e, só com simpatia desfazia. a mãe, tinha de pedir um punhado de comida em sete casas diferentes, juntar tudo e dar para a criança comer até se fartar. só a criança aguada podia comer dessa comida, é a simpatia. dizem que a mulher, passou o dia pedindo, de casa em casa, mais de sete, já que nem todo mundo tinha comida assim sobrando. rodou foi muito, mas conseguiu. chegou em casa, com um tanto de comida que apanhou, estendeu num pano e mandou trazer o coitado. dizem que de tão fraco, quem o trouxe nos braços foi o menino. a mãe, ofereceu a comida, dizendo que era toda só para ele, que podia comer tudo sozinho. cheia de esperança, crente que o menino ia se fartar e melhorar. ficaram assim: estáticos, esperando para ver a reação do menino. parecia com aquele segundo antes do gol, que a torcida toda silencia e reza. o pobrezinho, olhou, olhou e, vendo aquele tanto de comida, procurou, suspirou e deitou no ombro do menino. a casa toda virou silêncio, parecia que a fome do mundo tinha devorado seus corações. o menino, vendo a situação, entendeu que se não fosse a comida que o irmão queria, não teria jeito e, não tendo jeito o fim já se sabe. dizem. de um dia pro outro, danou a perguntar sobre uns lugares que só tinha visto na TV. ouviu toda gente. uns diziam que este lugar existia, mas que era tão longe, que pra chegar lá a pessoa tinha que pegar o primeiro ônibus que passava, depois, descer e pegar mais um. disseram que lá as pessoas usavam roupas novas e sapatos dentro de casa e, que comiam mais de uma vez no dia. dizem que o menino acreditou que era lá que tava a tal comida e em segredo inventou de ir. foi. sem nem saber bem pra onde. acompanhado de coragem. a lonjura nem bateu nas canelas do menino, nem nos olhos. não fez distinção da hora que saiu pra hora que chegou. era tanto caminho novo, que o menino nem viu o Sol trocando com a Lua. chegou num lugar. parecia na cabeça do menino com um tipo de festa. ele inocente, quis entrar na bendita. logo foi impedido por um parente de localidade, que na portaria do tal lugar, não vendo brancura na cara e nem na veste do menino, reconheceu-se. queria o ‘parente’ que esse desse um tal de convite, que tendo o menino, só tinha o querer. foi na querência de machucar, que o tal parente, botou o menino pra longe. pensava. ligeiro, de rato, acostumado a passar despercebível, que o menino nas ideias acreditou de pular a muralha, mais esta, que antes, era coisa de duas conduções pra ir, mais uma BR, mais duas estradas parque, um eixo e uma tesourinha, pra chegar. -tô falando que coragem nessa gente dá, e num é de repente, mesmo, dá é de nascença! obstinado com o querer de entrar, trepou na barra de ferro que dava bem na cerca de choque, pronta no querer de esturricar os meninos de coragem que dela queressem passar. fosse por sorte, vacilo da morte, erro humano, não se sabe. sabesse que o menino travessou num impulso a bicha mortal, parecesse treinamento de exército, passou espremido no meio das cercas e chegou no chão. -tenho pra mim, que é coisa de não saber, se soubesse o menino que o querer daquela cerca era por fim ni’preto, talvez, num tivesse travessado. talvez. coragem dá em pé de querer. disso eu sei e não é de teoria. já do outro lado, encantado, com tanta mesa com de comer. esfomeado. nem se deu conta da dor. na vista, só dava as pernas brancas e a fartura das mesas. num deu conta nem de dor, nem de presença. surpresa! questão de segundos, o menino foi tirado do sonho. suspendido, suspeito por querer. tava colado na guela do menino, o parente. vez dado conta da presença, veio a dor. na fissura de chegar, na travessia, tinha partido meia perna de menino. o que a cerca num esturricou, o chão quebrou. coisa do coisa ruim. que mal que tinha o menino querer? quem é que não quer? desde o ventre da mãe a gente já tem chance de querer. sem querer a gente não nasce! até pra vir ao mundo, passar o arrochado sinistro, a gente tem que querer. o querer nascer é o nosso primeiro querer. querendo ver que o menino não ficava de pé, quis o parente saber porquê. imagine que quando viu a causa, só pensou o parente em querer mais castigar. judiação. todo mundo vendo, mas sem querer ajudar o menino. querendo mesmo só ruindade. mé que pode um povo cheio de licença, de finuras, querer só ruindade pros pobres? quer ver essa gente virar, é nóis querer. querer é só pra eles. nóis existe só pra fazer o querer deles. pra eles. arrastado pelo tinhoso, com permissão, foi levado o menino, vermelho rubro, de pele e sangue. amarrado na grade, ficou soluçando o menino, querendo não sentir dor, não chorar. só querendo. até dar na espinha que ia morrer, tava na reta da morte. acreditou. tem um dizer por aqui, que diz que a morte usa farda. verdade. que eu já escapei dela. e olha que eu nem sou dessa gente toda de coragem, não. tava era vendo a morte o menino. ela vindo. querendo levar o menino. nem deu pio. quando chegou, de coturno, deu foi de querer revistar o menino. querendo que o coitado ficasse de pé sem poder. rumaram de levar o menino pra bura, algemado na perna quebrada. dava nem um pio, a cabeça erguida. que era pra num fazer querer de verme. subiu na bura, ninguém mais viu.


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Cores Diáspora A tatuagem nefanda diz minha carne importada Diz a frieza da corrente Diz às voltas do chicote Diz a madeira da canga Diz a dureza do tronco Minha carne entalhada é minha crônica de viagem Minha pele estampada é meu diário da descoberta Meu couro impresso é meu livro de registros Minha caligrafia torta é meu desvio de conduta Aprendi a soletrar de corpo inteiro Nos intervalos da existência Nos pigmentos da aparência Aprendi a decifrar meus códigos Não mais aquelas vozes d’áfricas nos quentes desertos Estranhas, vagas e sem respostas!

Entre escárnios Já fui chamado negro sujo Entre afagos Já disseram que não sou tão preto Que sou mestiço, escuro, mulato Todo tipo de palavra que me apaga Eu sou noite ébano azeviche Eu sou lápis risco preto sou grafite Entre escárnios Já fui chamado branca de neve Entre afagos Já disseram que sou um deus negro Que sou mestiço, escuro, mulato Todo tipo de palavra que me apaga Eu sou noite ébano azeviche Eu sou lápis risco preto sou grafite Entre escárnios Já fui chamado de negão Entre afagos Já disseram que a minha a alma é branca Entre escárnios Já fui chamado africano Entre afagos Já disseram que sou um belo cabo verde

Aprendizado Meu degredo minha escola Tempo de origem Nomeada Eu Que não sabia o significado da palavra Pigmento Eu Que não sentia o peso de minha Melanina Precisei apanhar um tanto Para pensar um pouco Precisei distender meus sentidos Para sentir minhas dobras Todos os cuidados não me ocultaram Os gestos dos que me apontaram Olhares secretos que se cruzavam Os risos todos que me cercavam Rumores rubores constrangimentos insultos desacatos Me revelaram Negro Qualificativo feio e inquietante Nunca antes trocado em família Tornou-se inevitável o meu aprendizado

Nelson Maca É poeta e professor de literatura brasileira. Mora em Salvador, onde fundou, há 20 anos, o Coletivo Blackitude: Vozes Negras da Bahia, que, há 10 anos, realiza o Sarau Bem Black. Lançou o livro de poemas Gramática da Ira. No segundo semestre de 2019, lança os livros Go Afrika (poemas) – na Balada Literária e no Sarau da Cooperifa, durante o mês passado, setembro – e Relatos da Guerra Preta: Bahia Baixa Estação (contos). Foto: Lucas Bernardi


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SE EU TIVESSE MEU PRÓPRIO DICIONÁRIO Mãe não me pariu poeta no entanto aqui jazz mim ADULTO: brinquedo que esqueceu como funciona. acredita que viver é pagar contas.

INFERNO: sala reservada para quem nunca foi paraíso para alguém

ÁGUA: vitamina para sertanejo BIBLIOTECA: casa de telescópios abrigo de livruniversos

JARDIM: filhote de floresta que ficou de castigo no quintal LITERATURA: grito dentro d’água

CACHAÇA: esparadrapo que as pessoas grudam sobre corações feridos (cuidado para não exagerar) DEPRESSÃO: quando todos os dias viram madrugada DIVÓRCIO: separação quando duas pessoas guardam o amor tão bem guardado [mas tão bem] que até esquecem ESCRITOR(A): quem leu o coração do mundo e não guardou segredo FELICIDADE: o que acontece aqui-agora. vixi... passou! era felicidade. viu? FÉRIAS: autopresente que se gasta o ano todo para pagar

LIVRO: semente de infinitos, dispositivo de visitas íntimas alguns fazem dormir. outros, despertam MÃE: ... só por garantia de nunca acabar nem precisar de palavra que explique MÚSICA: terra natal de passarinhos mapa para a liberdade POESIA: é o que a gente sente. O resto é literatura. o que fica quando o verso acaba se as palavras não nos tiram do lugar são só palavras QUADRIL: eixo que rege a dança o andar, o amor e outras importâncias

FILHO: 2º coração que pulsa fora do peito

REVOLUÇÃO: quando a justiça, a paz e o amor abraçam todas as pessoas do mundo ao mesmo tempo

GOLEIRO: passarinho, cuja maldição é vestir luvas no lugar das penas

SARAU: céu, onde as estrelas descem para aprender a ser gente

HORIZONTE: fronteira quando o coração sobe aos olhos e pergunta – falta muito pra felicidade chegar?

SORRISO: esboço do beijo

INFÂNCIA: matéria-prima limite da alegria dos sonhos

VENTO: capacete de poeta

TORNEIRA: rio com fechadura


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Ni Brisant É poeta, slammer, agitador cultural, revisor e editor. É autor de Tratado sobre o coração das coisas ditas, Para Brisa e Amor livre é pleonasmo; também publicou Se eu tivesse meu próprio dicionário e A revolução dos feios, ambos receberam versão em espanhol. Um dos nomes mais expressivos da literatura periférica, é idealizador do Movimento Cultural Sobrenome Liberdade e fundador da editora Trovoar. Frequenta circuito de Slam, especialmente o Slam do 13. Possui graduação em Letras.


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PE(R)DIDO

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ala perdida ou bala pedida? Na medida? Pedidos. Mas quem fez o pedido? Quem, todos os dias, ainda faz este pedido: Rio de Janeiro, quatorze tiroteios ao dia. Quatorze tiroteios por dia! Disparos a esmo na porta. Da escola, de casa, do bar. Na rua. Na quadra de jogar bola. Bala perdida? Já disseram: “não existe bala perdida se a mira é na favela”. Não existe bala perdida se a mira é na favela. E é tão sempre ela. É impressionante, o quanto a gente encontra. Perdida. Nos becos, morros e vielas. Quantas vidas perdidas? Quantos gritos? Quantas mães por chorar? Nunca se calar. Uma delas ainda diz: “ninguém cala a voz de uma mãe. Não é uma bala, um tiro que vai me calar”. Não vai calar. Não calar. Essa devia ser a única pedida. E não sangrar. Por mais uma. Bala perdida. Em corpos: pretos, pobres, pequenos. Do morro. Como se diz perdido algo que tem mira certa? Algo que não podemos gritar: socorro. Algo que tem destino certo. Endereço. Porque nunca chove pedidos de balas perdidas em bairros nobres? Copacabana, Leblon, Ipanema. Já imaginou, a cena? Alguém todos os dias, mirar: um revólver, uma pistola, um fuzil, para apartamentos e casas do mais caro metro quadrado do Brasil? O sangue escorrer na sala de jantar, no quarto de boneca da filha, na geladeira, fogão, o filho do asfalto tremendo pra se jogar esconder em baixo da mesa, como se corre, escorre no morro desde que foi ocupado? Não, isso não é um pedido. Nem desejo. É uma constatação. Não existem balas perdidas. Todas tem endereço. Uma bala nunca é cuspida, ferro e fogo assim, a esmo. Ela vai certa: no peito, na testa. No centro do coração. Raras passam pelos pés, braços e mãos. Essas balas não estão perdidas. Pergunte a quem morre. A quem diante do caixão chora, faz oração. Elas sabem: tem o mesmo endereço. Mesmo CEP. Mesmo resultado: uma comunidade perdida. Emocionalmente doente. Sofrendo na tragédia e nos traumas. A gente sabe quem dispara. A gente sabe por que disparam. A gente sabe quem morre. A gente sabe quem mata. A gente só não sabe como parar. Deus, como parar? Já foram mil a minha esquerda, dez mil a minha direita. Ao contrário de tua promessa, sou continuamente atingido e fico a sangrar. Vamos achar? Distribuir? Lápis-caderno-chiclete-pião? Sol-bicicleta-skate. Menos caixão. Vamos espalhar balas? Menta, chocolate, iogurte e caramelo. Menos pedidos de balas perdidas e crianças caídas no chão? Mas não. É sempre a mesma pedida. BOPE, PM, Caveirão. Tráfico, troca, guerra às drogas. Polícia e ladrão. Sobe e dispara. Não importa se vê a cara. O rosto. Cospe com gosto. A mesma pedida. A cidade-maravilha. Com endereço certo. Pro choro. Pra vela. Pra estatística na matéria.


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POLÍTICA

Estou farto da política comedida Da política bem comportada Da política partidária institucional com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço à v. excelência Estou farto da política que para e vai resolver problemas privados esquecendo-se do Público Abaixo os individualistas Todas as intervenções sobretudo as poéticas-terroristas Todas as manifestações sobretudo as sinceras do coração Todos os protestos sobretudo sobre o impossível Estou farto da política de gabinetes Paralítica Raquítica Pseudo Cansada De toda política que capitula ao que quer que seja para proveito de si mesmo De resto não é política Será corrupção tabela de mensaleiros secretária amante do tesoureiro exemplar morto para não falar demais obras superfaturadas e desvio de verba, etc. Quero antes a política dos loucos A política dos revolucionários A política pungente e difícil dos revolucionários A política dos poemas de Bertolt Brecht –Não quero mais saber da política que não é libertação!

Rodrigo Ciríaco É educador, escritor e produtor cultural. Autor dos livros Te pego lá fora, 100 mágoas, Vendo Pó...esia e do infantil Menino Moleque Poeta Serelepe (em 2018). Tem trabalhos traduzidos em francês, inglês, espanhol e alemão. Participa há mais de 13 anos do movimento de saraus da periferia. Fundador do coletivo Mesquiteiros, coordena ainda os projetos Pedagogia dos Saraus, Biqueira Literária e Slam Rachão Poético – Copa Mundão de Poesia.


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Sou uma Carolina Sou uma Carolina Trabalhei desde menina Na infância lavei, passei, engraxei… Filhos dos outros embalei Sou negra escritora que virou notícias nos jornais Foi do Quarto de Despejo aos programas de TV Sou uma Carolina Escrevo desde menina Meus textos foram rasgados, amassados, pisoteados Foram tantos beliscões Pelas bandas lá de Minas Eu sou de Minas Gerais Fugi da casa da patroa Vassoura não quero ver mais A caneta é meu troféu Borda as palavras no papel É tudo o que quero dizer Sou uma Carolina Feminino e poesia A negra escritora que foi do Quarto de Despejo aos programas na TV Hoje uso salto alto Vestido decotado, meio curto e com babados Estou na sala de estar No meu sofá aveludado Porque… Sou uma Carolina Feminino e poesia Pobreza não quero mais A caneta é meu troféu Borda as palavras no papel É tudo o que quero dizer… Carolina…

Tula Pilar Foi poeta, palestrante e agitadora cultural. Publicou Palavras inacadêmicas, de forma independente, e Sensualidade de fino trato, pelo Selo Sarau do Binho. Reconhecida como uma das grandes vozes da literatura negra feminina, Tula Pilar engajava-se em lutas diversas, especialmente contra a mentalidade escravocrata brasileira. Agitadora cultural, era figura marcante no Sarau do Binho, mas também em todos os espaços pelos quais circulava. Faleceu em abril deste ano, deixando um legado maior do que todas as palavras podem expressar. Dentre as homenagens, a Biblioteca Mário de Andrade, de São Paulo, inaugurou uma Sala Multiuso chamada Sarauzódromo, que foi nomeada Tula Pilar Ferreira.


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Zainne Lima Matos É poeta, contista, escritora e educadora. Autora de Pequenas ficções de memória, pela editora Patuá. Participou das antologias Jovem Afro, pela Quilombhoje, Raízes – Resistência Histórica, pela Coletânea Raízes, As coisas que as mulheres escrevem, pela Desdêmona, e Cadernos Negros, número 42. Nome promissor da literatura periférica e da literatura negra, vem ocupando espaços nos circuitos literários. Bacharela em Letras pela USP.

uma jovem promessa Gota seca da preta para Juçara Marçal

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oana? que Joana? me deixem logo sem nome, já que, em breve, o substituirão por “defunta”. chegar na minha casa a essa hora da noite e ainda reclamar do meu chulé? andei o dia todo com o pé no couro de jegue e quer que cheire a perfume? eu inteira estou fedendo. dos pés à cabeça. fez sol, choveu, esquentou, esfriou, teve ar condicionado, ventilador, fumaça de churrasco de gato, maconha, álcool, esbarrão de mendigo. e cheirar bem, na calada da noite? o cacete. meus pés estão cheios de feridas abertas que eu coço até sair pus. coço de ódio. e vai cheirar a quê? saí sem calcinha e veio a menstruação. tem isso, ainda. o cheiro de sangue escorrido. útero cansado que não pariu ninguém, nem vai parir. já desci uma centena de maldição sobre este órgão que me atrapalha a vida. esterilidade, câncer, mioma, endometriose, trombose. o meu útero é que não vai dar luz a filho de quenga alguma. desde que aquele branco maldito, fingido, sanguessuga me botou com a tal três letras miseráveis, DST, que o meu útero é o que mais odeio e mais quero matar em mim. toda a minha vontade suicida sendo peitada pela possibilidade de não só continuar com vida, mas multiplicar. que absurdo. para o caralho! não vou parir ninguém. vê se pode, fingir que me amava, me fazer esperar, mãos-atadas, enquanto ele fodia a apertada e rosinha? me enganar para arrancar matéria prima e escrever poema. para escrever poema! que as palavras que eu dizia eram bonitas demais. que ele precisa da minha dose de exagero no sentir para que seu coração batesse. que, sem mim, a existência não fazia sentido. desgraçado! me sugou até os fios de cabelos brancos que esperavam por nascer. me deixou nesse estado. se ouço qualquer grunhido esquisito, já me vem a voz dele dizendo que eu demandava demais, que ele não podia suprir as minhas necessidades. que eu era muito difícil de amar. e é isso, não é? como Joana. me amar é um inferno. eu sou um inferno. sinto demais, choro demais, fodo demais, escrevo demais. que, pelo menos, eu calasse a boca. se ele pisasse na bola, virava logo texto. que vire mesmo. faz anos e continua virando, pois a vontade de morrer, de me assassinar por causa dele, permanece em mim. cravada. e nem a arte consegue me lembrar que é necessário um tempo para o respiro. dou aulas às crianças ricas e, de repente, me surpreendo com o querer ser mãe. peguei ódio a babás. ser mãe de quem? para o Estado matar meu filho? eu não. nasci sozinha, cresci sozinha, ninguém me defendeu da violência e assim vai permanecer. ninguém ousaria tirar um pedaço de meu corpo dos vermes debaixo da terra para empalhar como lembrança, não é? não valho a pena; esta é a prova de que nasci pelada. não existe amor para mim. não serei mãe, meu útero está amaldiçoado pelo pão que o diabo consagrou – por isso mesmo, toda vez que o sangue se encaminha, meu corpo definha de dor. dói tudo. dói escrever, agora. vou caminhando pelas ruas segurando o ventre debaixo das mãos quentes, calejadas, cheias de verbos de estado, como se carregasse uma criança que matei antes de plantado o esperma. um ventre oco, duro, seco. um ventre que chora apenas com gemidos, sem lágrimas. um ventre fedido como os meus pés de couro de jegue. um ventre cansado, usado; uma mulher usada para a conveniência masculina. envelhecida pela falcatrua masculina. uma poeta apagada pela hegemonia masculina. e branca. porque amar uma mulher branca é mais fácil. o que ela demanda além de prazer? de gozar? comigo, vinham os traumas, as neuroses, as cobranças de séculos marcados com chicotes nas costas. comigo seria a própria queda após o precipício. colher água do deserto. eu amaria na mesma intensidade, caso o amor fosse para mim. contudo: Joana. Joana sim. este é o meu nome. sequer a arte possui o direito de trazer à tona o pus das minhas entranhas. a justiça não me alcança e não tem vontade de me enxergar. hoje eu não quero cheirar nem feder. a desafeição já é minha própria (e arquitetada) morte. aqui jazz um adeus.


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Mão Preta Tijolo posto Por ordem de um arquiteto, Mas o teto ele não sabe levantar. Edifício enorme que de longe se enxergue quem ergue? Mão preta! Escudo de preto Na linha de frente dos palácios Ricaços curtem a festa A desritmada dança e a segurança, quem faz? Mão Preta Quitutes, sobremesas, manjares Quem é que faz? Experimenta por dona Bia na cozinha não conseguiria Mesmo sendo nutricionista Especialista na cozinha, tem mão Preta O anel com pedra de diamante Pro evento de debutante de sua filha quem que extraíra? No minério seu império Nada seria Se lá na mina, na gruta A luta pra remover a pedra na caverna escura escura também a sua pele Mão Preta Quem que te leva em segurança, Que pega as suas crianças, Os filhos dos Bitencu Aqueles capeta Seus caminhos quem conduz? mão Preta! A engrenagem dos trilhos, O alpiste dos seus passarinhos, O depósito do seu cheque, O paletó na lavanderia do seu chefe, O eletricista do abajur do seu escritório, Quem que cava a cova do seu velório? Contabiliza! Se por um dia a mão preta, pare-se

Se afasta-se dos serviços (Risos) Porque a gente movimenta esse lugar Vivemos um crime social E na moral Você não paga o meu salário a movimentação do monetário É o meu suor a percorrer que faz pagar A casa grande entrará em choque Quando em seus estoques não tiver mais Mão Preta Pra puder cuidar. Metade de mim desespera Metade de mim diz, espera.

Levanta, Preta! Levanta, Preta Levanta a cabeça Porque não dá tempo pra lamentar Enquanto chora as chagas do coração Há os meninos querendo sair pelo portão, e a roupa pra lavar A roupa tá lavada e precisa ser estendida e depois de estendida Tira pra chuva não molhar A chuva de Oxalá Vem Deixa elas também seu corpo tocar Levanta a cabeça, preta Porque o turbante fica melhor enaltecido E saiba que o que aconteceu contigo Não é a primeira vez no mundo e nem a última será Díspar Enquanto desliza as águas a banhar Quando toca o ori refrigera pensamentos

e descendo pela face mistura com as águas dos olhos Nos poros faz carícias E é por isso que precisa deixar banhar Levanta a cabeça, preta! Porque a coroa com teus cachos Eu não só acho, mas tenho certeza Que toda sua realeza Não combina com essa tristeza e que você só mereça Os raios de sol que tem o teu sorriso E que amar é preciso Se não for machucar Preta Há uma continuação de teu reinado que do seu ventre fora gerado Então joga no chão esse fardo E sorria!!! Porque de novo se fez dia e tens a chance de recomeçar

Identidade Negra Não me chame de crioula porque eu posso interpretar que você é meu senhor querendo me abusar Parda não é normal porque não sou filha de pardal E morena o que seria? Uma nova etnia? Pra mim uma palavra sem classificação então me chame de negra porque sou filha de negrão --Metade de mim desespera Metade de mim diz, espera.


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Thata Alves Ou Thayaneddy Alves – é escritora, autodidata e artista multimídia, transita entre vídeo, performances e poesias. É autora de Em Reticências e está trabalhando no próximo livro, cujo título provisório é Ascenção. Precursora do Sarau da Ponte Pra Cá, é mãe dos gêmeos Bryan e Brenno, que já dão os primeiros passos na poesia e declamam poesias autorais ao lado da mãe nos saraus aos quais vão. Para difundir a palavra escrita, criou objetos poéticos, como pequenos espelhos, em formato de bottons, com trechos de poesias e artes gráficas. Thata também é militante de questões raciais. Inspirou uma coleção de roupas da marca Tendência Urbana e teve o rosto estampado em várias peças da grife. Também estrelou uma peça publicitária de vídeo da Dove, sobre cabelos cacheados. Thata Alves também é membro do coletivo Sarau das Pretas, onde atua com poesia, música e resgate da ancestralidade há 1 ano. Além disso, participa e propõe espaços de discussão realizando trabalhos em parceria com os coletivos Praçarau, Fala Guerreira, Casa de Cultura Candearte, onde realiza a produção cultural e a comunicação da casa e Cantinho de Integração de Todas as Artes (CITA).


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Eduardo Mahon Eduardo Mahon, 41, é carioca da gema, advogado e escritor. Mora em Cuiabá com a esposa Clarisse Mahon, onde passa sufoco com seus trigêmeos: José Geraldo, João Gabriel e Eduardo Jorge. Autor de livros de poemas, contos e romances, publica pela Editora Carlini e Caniato.

O centro e a margem

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ia desses, ouvi uma senhora que falava sobre centros. Procurava centros. Queria centros. E, para ela, havia muitos centros por aí: centro da cidade, centro do país, centro de convenções, centro de umbanda, centro de zoonoses, qualquer centro que atraísse para si a convergência. É claro que me veio à mente o centro de gravidade que é uma espécie de rebojo cósmico, para o qual são tragados planetas, estrelas e até a própria luz. O centro é o equilíbrio, o centro é uma espécie de consenso, de destino inexorável. Mas que chato é o centro, convenhamos. Nada mais insuportável do que uma pessoa muito centrada. Pior é o camarada que se coloca no centro da conversa. O centro é um porre! Nem lá, nem cá, nem sal, nem açúcar. O centro odeia divergências. Aliás, para falar em termos de física, a força centrífuga não serve apenas para secar as roupas na máquina de lavar, mas atrai também o pensamento. Num dado momento histórico, é muito comum uma manada de bois mansos seguir bovinamente o líder seja lá pra onde for. Criam-se doutrinas centrais. O totalitarismo é o centro absoluto no umbigo de alguém. O centro sempre quer se manter firme, único, total. Um centro de consumo, um centro de pensamento, um centro de arte, um centro de qualquer coisa não aceita concorrência. É por isso mesmo que se chama centro: o mundo é pequeno demais para dois. Qual seria, no entanto, o antônimo de centro? Talvez a margem. A margem cria o marginal, o que não está contemplado, o inovador, o divergente. O centro quer cooptar o que está à margem ou expulsar tudo logo de uma vez. É um bolero. São dois pra lá, dois pra cá, numa contradança eterna. O que está no centro geralmente não vê a margem. Por isso, é pouco criativo. A margem – divergente – cria o novo, parindo o que o núcleo ainda não viveu, ainda não pensou, ainda não experimentou. A margem traz uma certa poeira cósmica com novos elementos ainda não estudados ou simplesmente desprezados pelo centro. Então para que se encafifar com os centros? Não sei. Talvez porque qualquer centro é confortável. É um consolo estar no centro. Ser o centro das atenções infla o ego que, por sua vez, é o um centro egoísta. Ocorre que atravessamos uma fase de descentralizações. Ao longo do tempo, desapareceu aquela antiga igrejinha no centro da cidade e, com ela, foram sumindo as teorias centrais que davam conta de tudo. Perdeu-se o referencial central e isso não é tão mal assim. O pensamento sem centro é o que se convencionou chamar de pós-moderno, onde mais vale olhar para as abas, para as regiões limítrofes. Hoje em dia, as atenções estão nos bárbaros, os viventes do além-muro. No centro, a gente perde muita coisa. Nenhuma surpresa. Tudo o que é sólido desmancha no ar. O antigo centro já não é mais o centro de verdade, o lugar confortável das certezas, o templo das missas de domingo. Arrastaram o centro pra fora e a margem pro centro, quem diria?! É fato que os “homens descentralizados” sofrem de angústia pela incerteza contemporânea, essa sensação de vagar sem rumo, sem um condutor complacente, sem aquele velho mapa de algibeira. Desgraçados dos cientistas que conseguiram relativizar até o tempo. No fim, sumiram todos os centros conhecidos. Faliu o centro cultural, fechou o centro de comércio, acabou-se o centro de convívio. O centro espírita já não recebe mais nenhuma entidade importante. Nem a Terra é o centro do universo, nem nós somos o centro de nada. Eu mesmo nunca me senti bem no Centro-Oeste. Que eu saiba, nunca houve um Centro-Leste. Coitados daqueles que teimam em querer viver num centro, centrados, sentados, tudo medido nos mínimos detalhes: centésimos, centavos, centígrados! Centrifugados em si mesmos, apegam-se em certezas que não descolam após o enxague. Mamãe ensinava: não misture roupa lisa com listrada, vai manchar. Manchou! Não há alvejante na vida contemporânea. Misturou-se tudo, tudo pode ser o centro de atenção ou deixar de ser. Adeus, bússola! Adeus, compasso! Os núcleos passados eram densos demais, pesados demais, acabaram implodindo. Meu Deus, que papo aranha! Coisa de gente sem centro. É assim que se chamavam os doidos, cuja loucura passou a ser considerada uma convenção. E não é? Eu mesmo sempre fui um desconcentrado. Ah, o centro... Essa invenção arrogante.


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Caio Augusto Ribeiro É ator e diretor inscrito pelo DRT 0000651\MT. Começou os trabalhos como ator em 2009. Autor do livro “Porão da Alma” (clube de autores), Colecionador De Tempestades (Carlini&Caniato) e Manifesto da Manifesta (Carlini&Caniato), diretor do curta-metragem Réqueim Para Flores (2017). Fundador do coletivo de artes hibridas Coma A Fronteira. Atualmente desenvolve trabalhos levando poesias e processos criativos para as escolas e faculdades. Realiza oficinas voltadas para produção poética, arte urbana e teatro. Mas no fundo, prefere passar o dia no jardim olhando folhas e formigas.

A DISTÂNCIA E A REVOLTA

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ão existe mais distância. Pelo menos não a distância que havia há 10 anos. E a distância dos últimos dez minutos também se transformou. Houve um tempo, nem tão longe, em que a distância era a medida de separação entre dois pontos. O mínimo comprimento entre as possíveis trajetórias sobre a superfície partindo de um ponto e atingindo o outro. Era tão mais fácil, naquela época, saber se está longe ou se está perto. Se vai demorar ou se será rapidinho. A distância se transformou. A gente se transformou e acabamos transformando os nossos parâmetros de distanciamento. A modernidade tardia trouxe o advento da dupla-qualidade em estar perto e longe: Longeperto & pertolonge. LONGEPERTO Advérbio e/ou adjetivo. Sensação ou capacidade de estar geograficamente distante de alguma coisa ou ideia, mas ainda sentir-se próximo ou conectado de alguma forma (geralmente inexplicável ou genuinamente emocionada). Não confundir com saudade. Nem com melancolia, ainda que possam estar acompanhadas.


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PERTOLONGE Advérbio e/ou adjetivo. Sensação, capacidade ou ainda o sentimento (e porque não a emoção?) de estar geograficamente próxima de uma coisa ou ideia, mas sentir um distanciamento (pequeno, grande ou imenso) sobre aquilo que tenta (e aí, sem sucesso) se conectar. Há uma não-afinidade que impede que o fluxo contínuo se estabeleça, levando a uma sensação de distanciamento daquilo que se está próximo. Essas duas sensações são muito comuns. Acontece que a distância se desenvolveu e tomou caminhos muito complexos – assim como as nossas relações, pois essas duas instituições se interpenetram, onde uma faz a outra e a outra faz a primeira. A causa desta transformação não está aqui (esta perigosa tarefa fica para a posteridade), no entanto uma mínima reflexão sobre as distâncias é possível. Neste dilema de Longeperto & Pertolonge, ainda existe espaço para definir Centro e Margem? Com essa gigantesca capacidade de encurtar as distâncias ou estender abismos, é possível estar perto ou longe daquilo que se tem nas mãos ou daquilo que se quer tocar? A tecnologia transformando nossas relações e nós transformando a tecnologia. Conectar é realmente conectar? Escrever poesia em Mato Grosso é estar distante de São Paulo? O quão longeperto estamos do centro e o quão pertolonge estamos da margem? Em Cuiabá, Mato Grosso - o lugar onde este texto é escrito -, a nuvem de fumaça existe há muito tempo. Os céus já são escuros e o clima quente sempre carregou um certo desespero – e mais – um certo despreparo para tudo que, por exemplo, São Paulo enfrenta agora. Hoje, para além de ser um autor mato-grossense, sou um poeta e, portanto, tenho a revolta como um horizonte possível. Nas palavras de Helio Oticica: EU INCORPORO A REVOLTA E a vontade da revolta tem sido uma conexão forte entre os poetas de todo o Brasil. A revolta nos faz longeperto – nos permite sentir acolhidos, aproximam afinidades – e essa distância que dilata e comprime é um combustível para entender – e sentir – que estamos distantes da revolução – que é toda pautada no construir da história -, mas próximos, muito próximos da revolta, que é pautada, principalmente, no destruir do que está posto. Em Paulo Ferraz (meu conterrâneo que nunca vi ao vivo), encontro esta revolta que me é mãe e filha: “(...) Projeto o poema como um artefato explosivo; um composto de imagens que uma vez detonado despedace o edifício de ignorância que grassa (...) Sentir essa revolta é uma solidariedade consigo mesmo. Um ato de profunda rebeldia interior. Imaginar este mundo possível e, mais do que se indignar, é armar poemas feito bomba. É fazer do muro a página, e da cidade o livro. Imaginar um novo povo, o povo que falta. Um povo que creia no mundo que ele deverá criar com o que de mundo nós deixamos a ele, como diria Viveiros de Castro. As distâncias se destroem enquanto a revolta do poema nos une. É necessário reclamar para si a violenta intensidade do poema e subverter os parâmetros de distância - e esta tarefa exige profunda reflexão, afinal, existem diversas variáveis sociais que podem propor caminhos mais longos, mas ainda acredito na genuína capacidade de se revoltar e repensar, realinhar, reestruturar, reconhecer no outro o que tem de potente. “Existe uma diferença entre Fragilidade e Fraqueza. A Fragilidade é o quão rápido você chega ao âmago, e não o quanto ele aguenta”. (Michel Mellamed) É mais do que urgente a apropriação de nossas distâncias. Nós iremos dizer quais são elas e conheceremos profundamente cada uma das nossas fronteiras, não com o intuito de protege-las, mas de devorá-las. Iremos virar o cânone de cabeça para baixo e dançar sob os esqueletos miúdos daqueles que um dia ousaram dizer que existem fronteiras insuperáveis – e daremos a essa dança a irreverência e a nossa cara. A cara que propõe um mundo possível, um mundo que celebra a revolta como estágio necessário da vida, um mundo que valoriza a queda tanto quanto o salto e o voo. Um mundo que para e aceita sua derrota. Repensa o novo e propõe a magnífica e explosiva poesia.


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Concurso Literário Pixé é uma iniciativa privada construída a partir da parceria entre a Revista Literária Pixé (www.revistapixe.com.br) e a Editora Carlini e Caniato (www.editoracarliniecaniato.com.br), sem qualquer vínculo público. O objetivo inicial é a visibilidade de novos talentos na literatura mato-grossense, possibilitando a reunião, revisão e edição de textos reunidos em 1 livro a ser lançado nos sites oficiais da Revista Literária Pixé e da Editora Carlini e Caniato. O Prêmio Pixé de Literatura é uma iniciativa privada construída a partir da parceria entre a Revista Literária Pixé (www. revistapixe.com.br) e a Editora Carlini e Caniato (https://carliniecaniato.com.br), sem qualquer vínculo público. O objetivo é a visibilidade de novos talentos na literatura mato-grossense, possibilitando a reunião, revisão e edição de textos reunidos em 1 livro a ser lançado no site oficial da Revista Literária Pixé. 1 – As inscrições vão do dia 09 de julho ao dia 23 de outubro de 2019, valendo a data da postagem nos correios. Podem concorrer todos os(as) candidatos(as) que não tenham livros autorais publicados na categoria em que concorram, mato-grossenses de nascimento ou quem comprove residir em Mato Grosso no momento da inscrição. Para efeito de encerramento de inscrições, os organizadores esperarão até o dia 01 de novembro eventuais envelopes retardatários, atrasados e/ou eventualmente extraviados. 2 – O Concurso Pixé de Literatura está dividido em duas fases: a 1ª é a habilitação preliminar e a 2ª, o exame de mérito. Cada candidato(a) deverá enviar por correio à Rua Estevão de Mendonça, 1.650, Morada do Sol, Cuiabá-MT, CEP 78043-405, 1 (hum) envelope grande escrito por fora CONCURSO PIXÉ DE LITERATURA, contendo outros 2 (dois) envelopes menores. Eventuais retificações no presente edital, alterações de calendário por força maior, e todas as demais informações serão publicadas exclusivamente no site da Revista Literária Pixé e da Editora Carlini e Caniato. 3 – A fim de promover a habilitação preliminar, no 1º envelope o(a) candidato(a) deverá escrever por fora HABILITAÇÃO DO CANDIDATO, contendo somente: cópia de documento de identidade com foto caso mato-grossense de nascimento. Caso o(a) candidato(a) não tenha nascido em Mato Grosso, deverá mandar comprovante de residência ou carteira de motorista, a fim de comprovar suficientemente a residência atual. 4 – O(a) candidato(a) enviará também neste mesmo 1º envelope: uma folha A4, o nome completo, o CPF, o telefone, o e-mail, endereço completo e o codinome usado no texto literário. Indicará, ainda, na mesma folha: os dados bancários completos para o depósito do prêmio, seja pessoal, seja de terceiros. 5 – No 2º envelope, o(a) candidato(a) deverá escrever por fora TEXTO LITERÁRIO e remeter como conteúdo o texto literário em prosa ou poesia, indicando na autoria somente o codinome, a fim de evitar qualquer identificação à comissão julgadora. 6 – O texto em prosa (conto, crônica ou croniconto) deverá estar digitado em letra Times New Roman, fonte 12, espaço simples, tabulação padrão do Word Office, em até 5 (cinco) laudas. O texto em poesia deverá estar no mesmo formato citado anteriormente, com até 2 laudas.

7 – Serão selecionados 10 textos em prosa, sendo os 3 (três) primeiros lugares apontados como vencedores e 10 (dez) textos em poesia, sendo os 3 (três) primeiros lugares apontados como vencedores. Caso a organização descubra concomitante ou supervenientemente qualquer publicação de livro autoral impresso ou on-line por parte do candidato(a) até a data do encerramento das inscrições, será este(a) sumariamente eliminado(a), inclusive da classificação e da premiação. 8 – Os textos selecionados como vencedores estarão devidamente destacados pelo Editorial do livro produzido e os 6 (seis) autores(as) vitoriosos(as) serão remunerados(as) em R$ 1.000,00 (hum mil reais) cada, perfazendo a premiação total do PRÊMIO PIXÉ DE LITERATURA em R$ 6.000,00 (seis mil reais). 9 – Todo o projeto gráfico, diagramação e revisão ficará a cargo da Editora Carlini e Caniato, a partir da seleção realizada pela comissão julgadora. O resultado será divulgado no site oficial da Revista Literária Pixé e na respectiva fanpage www.facebook/revistapixe no dia 02 de dezembro de 2019 até às 18h e da mesma forma no site oficial da Editora Carlini e Caniato e na respectiva fanpage www.facebook.com/editoracarliniecaniato. 10 – O livro será lançado num prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias depois de divulgado o resultado e será integralmente disponibilizado, sem custos, em modelo PDF para download ao público visitante da publicação virtual. Os organizadores selecionarão artista plástico para ilustrar a publicação. 11 – O pagamento do prêmio dar-se-á no mesmo dia da divulgação do resultado por meio de depósito bancário direto. Os organizadores não se responsabilizam face ao erro de informação dos dados bancários fornecidos na inscrição. 12 – Todos os casos referentes à habilitação ou eventuais situações não previstas por este edital serão resolvidos unilateralmente e de forma irrecorrível pelo Editor-Geral da Revista Literária Pixé em conjunto com os Editores da Carlini e Caniato. O julgamento de mérito ficará sob responsabilidade de 3 (três) convidados com ampla experiência em literatura brasileira cujos nomes serão divulgados com o resultado. 13 – Os(as) autores(as) que aderirem ao presente chamamento declaram o expresso conhecimento e a concordância com a publicação do texto, doando todos os direitos autorais sobre o mesmo e não poderão reclamar quaisquer valores financeiros ou reservas legais na divulgação, editoração e publicação, mesmo que seja ela futuramente lançada em meio impresso tradicional e/ou usada de outras formas pelos proponentes do concurso. 14 – A Revista Literária Pixé reserva-se no direito de usar a fotografia de todos(as) os(as) candidatos(as) selecionados(as) na divulgação do resultado, assim como publicar em parceria com a Editora Carlini e Caniato os textos em prosa ou poesia no próprio corpo de uma de suas edições ou em uma edição especial, independentemente de cronologia ou de colocação, de acordo com a conveniência editorial do periódico e/ou da editora. Cuiabá-MT, 09 de julho de 2019. Pixé Revista Literária e Calini & Caniato


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REALIZAÇÃO

PATROCÍNIO

ESPAÇO RESERVADO PARA MARCA DO PATROCINADOR R E V I S TA

LITERÁRIA


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ano 1 DEZEMBRO/2019 EDIÇÃO ESPECIAL Mulherio das Letras


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Eduardo Mahon Editor Geral

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averá uma “literatura feminina”? Uma literatura que expresse essencialmente a identidade da mulher? Não creio. Os adjetivos reducionistas que pretendem o contraponto sexista não cabem na expressão artística que, como sabemos, é tão libertária que o escritor “finge que é dor a dor que deveras sente”, como eternizou Fernando Pessoa. A mensagem autopsicografada de Pessoa, ele mesmo pai e mãe de tantas outras personalidades, resumiu bem a questão: a arte é criação e, justamente por isso, não é possível enxergá-la com as mesmas lentes de outros saberes ou considerá-la um simples reflexo da realidade social, dos meios de produção, ou de qualquer outro contexto histórico. Tudo é passível de mensuração e reflexão, mas a arte nunca caberá em uma única moldura teórica. Proponho um jogo. Um desses testes às cegas que se fazem com vinhos. Risquemos a autoria dos livros que serão objeto da brincadeira. Tomemos Romeu e Julieta de Shakespeare e entreguemos a um grupo de leitores. Façamos o mesmo com Madame Bovary de Flaubert, Anna Karenina de Tolstói, Lolita de Nabokov e Trópico de Câncer de Henry Miller. Num outro grupo, coloquemos Orlando de Virgínia Wolf, Jane Eyre de Charlote Brontë, Orgulho e Preconceito de Jane Austen. Será que o primeiro grupo identificará uma “literatura masculina” e o segundo irá perceber uma “literatura feminina”. E se misturarmos os livros? Alguém verá a diferença no tipo de escrita? Algum leitor terá percebido, na primeira edição apócrifa de Frankenstein que foi uma mulher a autora? O que dizer dos sertões criados por Raquel de Queiroz? Cecília Meireles, Hilda Hilst, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon são reconhecidas pela “escrita feminina” ou pela inegável qualidade estética? O Quarto de Despejo de Carolina de Jesus não poderá ter

sido escrito por um homem? Ou o Pornopoéia de Marcelo Mirisola seria masculino em demasia? Talvez Bernardo Kucinski tenha roubado o “local de fala” da mulher em K: Relato de uma Busca, Gabriel Garcia Marques com O Amor no Tempo do Cólera. Terá sido machista Eça de Queiróz com a sua Amélia? E Machado de Assis com a eterna dúvida sobre a honra de Capitu? São perguntas sem nenhum sentido. Problematizar a arte nesses termos é empobrecê-la. O certo é constatar a realidade nua e crua – o milenar machismo castrou as mulheres literal e metaforicamente. É preciso oportunizar espaços com a mesma dignidade com a qual os homens são costumeiramente tratados. Para isso, nada melhor do que publicar mulheres, premiar mulheres, homenagear mulheres, torná-las visíveis ao público leitor. Essa é uma política afirmativa que visa uma obviedade: mostrar que somos iguais. Equalizar espaços de representação não significa promover preconceito às avessas, nem tampouco afirmar que é maior ou menor, melhor ou pior, mais ou menos consistente a literatura produzida por mulheres. Acredito, aliás, que ao qualificar de “feminina” a expressão artística, inevitavelmente o rótulo reduzirá a dimensão da obra. Wolf foi grande pelo que produziu e também por ser mulher, da mesma forma que Shelley, Austen, Atwood. Contudo, ainda que tenha sido admirável a coragem dessas escritoras, é pela qualidade estética que são e serão reconhecidas. Esse é o maior elogio que se pode fazer: reconhecê-las. Pontificamos hoje e sempre, mesmo em uma realidade profundamente machista que submete, subordina e extermina física e psicologicamente mulheres em todo o mundo, que elas conseguem ombrear-se de igual para igual. O que falta, em resumo, é oportunidade. Por isso, essa edição especial da Revista Literária Pixé é integralmente dedicada a elas.


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expediente Direção Geral e Edição: Eduardo Mahon Colaboradores desta edição: Manuel Bandeira, Lobivar de Matos, Gervásio Leite, Natalino Ferreira Mendes, Santiago Villela Marques, Aclyse Mattos, Caio Augusto Ribeiro, Cristina Campos, Danilo Fochesatto, Eduardo Mahon, Gilberto Nasser, Ivens Cuiabano Scaff, Vitória Basaia, José Pedro Rodrigues Gonçalves, João Bosquo Cartola, Juliano Moreno Kersul de


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SUMÁRIO 2 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 40 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 62 64 66 68 70 72 74 76 78

Editorial Marilza Ribeiro Lindevania Martins Lívia Bertges Maria Teresa Divanize Carbonieri Sabrina Dalbelo Mari Gema De La Cruz Lourença Lou Jade Rainho Jéssica Regina Udar Juli Veiga Leila Sampaio Marli Walker Rita Queiroz Eliza Pereira Janete Manacá

Neide Silva

Paloma Rodrigues Ângela Coradini Debora Pedroni Katunaric Adrianne Rocha Claudia Gomes Janete Manacá Sandra Modesto Juçara Naccioli Sergia A. Marithê Azevedo Maria Ferreira Andreza Pereira Regina Ruth Rincon Caires Tatiana Alves Paula Valeria Andrade Sueli Gutierrez Flavia Helena Janaina Riva Lindinalva Correia Rodrigues

Carvalho, Lívia Bertges, Lorenzo Falcão, Luciene Carvalho, Lucinda Nogueira Persona, Marília Beatriz de Figueiredo Leite, Marcos Blau, Marli Walker, Rubenio Marcelo, Marta Cocco, Janet Zimmermann, Anna Maria Ribeiro Costa. Fotógrafos da edição: Mário Vilela e Rai Reis. Projeto Gráfico/Diagramação: Roseli Mendes Carnaíba Artista Visual Convidado: Vitória Basaia


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PALAVRAS ERRANTES DAS MULHERES POETAS Nossas palavras andam... andam... Podem visitar terrenos férteis onde arrancam as raízes suculentas da memória e se fartam delas... Podem ir às suas instâncias sombrias para conversar com os fantasmas e demônios dos tempos... Podem repousar em olhares ou lábios ardentes dos desejos... Podem ir a lugar nenhum... Podem ficar numa rede armada à sombra de uma árvore para poder sonhar e confabular com a brisa que lhe traz segredos de lugares longiquos do mundo... Até então, ao caminharem por aí errantes, alguém as descubra como a poética - seiva dos mistérios e se alimenta delas... As palavras errantes das mulheres - poetas andam com o vento...


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Marilza Ribeiro Nasceu em Cuiabá, em 27 de março de 1934. Graduou-se em Psicologia, pela Faculdade de Ciências e Letras São Marcos, em São Paulo - SP. Foi presidente da Associação de Mulheres de Mato Grosso. É escritora e desenhista. Foi homenageada na Literamérica (2006), em Cuiabá-MT. Diversas vezes premiada, publicou seis livros de poesia e possui mais cinco inéditos.


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Lindevania Martins É graduada em Direito com Mestrado em Cultura e Sociedade (UFMA). Defensora pública atuando no Núcleo Especializado de Defesa da Mulher e População LGBT. Poeta e contista. Integrante do Mulherio das Letras. Autora dos livros de contos “Anônimos” (Prefeitura de São Luís, 2003), “Zona de Desconforto” (Editora Benfazeja, 2018) e “Longe de Mim” (Sangre Editorial, 2019). Vive e trabalha em São Luís do Maranhão.


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Inventário Nem megera nem vaca nem vira-lata sem classe nem bruxa na tapera nem víbora ou puta de saia curta nem sovaco peludo ou útero dócil nem fóssil de Lucy ou Luiza nem buraco fedido nem cheiro de peixe nem o olho da sogra num feixe de espinhos nem encarnação de Lilith nem feminazi em fase kamikase mas a origem do mundo.

X-Woman Quando olhos ignoram sua presença como se fosse transparente quando ouvidos não ouvem seu grito como se atriz de filme mudo ela invoca os mágicos poderes da capa da visibilidade e audição então ela se torna gigantesca monstruosa estridente e revela aos olhos míopes aos ouvidos surdos que nunca esteve por trás de grande homem algum.


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Torce I Torce, abre o coração como os lábios. O sorriso é crescente como a madrugada. O abraço é um caloroso dia de seca no Cerrado. De perdas e ganhos gustativos soamos, recomeços – regados a sons vibrantes e coágulos. Somos assim, nós, mulheres. Nós, com idade a cumprir, morada em ciclos, óvulos roxos craquelados, cicatrizes nascidas, curvas erráticas e pecado primeiro. Estamos frescas, nós, mulheres. Estamos frescas a engolir inteira a febre de quem cala. Estamos frescas a engolir o sangue das cavidades abertas. Estamos ávidas e frescas a engolir as maçãs, lustradas e oferecidas - e junto a elas, todas as frutas do farto mundo maduro.

Torce II Torce. Abra o coração. Alarga os lábios úmidos. Compõe-se crescente fonte luminosa. De instâncias posteriores e inferiores degustamos, nós mulheres. Soamos recomeços. Supomos assim, nós-mulheres. Seremos assim deidade a cumprir de permanência em intervalos de cicatrizes nascidas de desvios erráticos e pecado primeiro. Vibramos no engolir a febre de quem cala. Sugamos no engolir as cavidades extirpadas. Nós, mulheres, Estamos ávidas e frescas a engolir, Por inteiras, As maças lustradas e confiadas – E junto a elas, todas as frutas do farto mundo maduro.


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Lívia Bertges (1987, Juiz de Fora – MG) É doutoranda em Estudos Literários (UFMT) com estágio sanduíche na Sorbonne Université (Paris, França). É mestra em Estudos Literários (UFMT) e em Langues et Cultures Etrangères (Université Stendhal). Publicou artigos e poemas em revistas, antologias e sites. É editora da revista literária Ruído Manifesto.



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Extravasar Não quero ferir Tampouco purgar Mas preciso falar De modo a gerir E gerar Novo tempo Com menos dor. Palavra, dê-me as palavras!

Reconciliação! Houve um momento Agora Quando olhei para fora Bem fora Olhar era tão reconciliado Pacífico Alimentado Que de verdade vi Com meus olhos todos A Beleza perfeita O Amor vivo Que nos torna todos Irmãos. O mundo é tão mais Que nossas mesquinharias...!!!

Maria Teresa Moreira É pedagoga formada pela Unicamp, ganhou concursos na infância e publicou artigos na vida adulta em revistas religiosas. Publicou o livro “Como educar e ser feliz” em 1993 pela editora Raboni, o livro de poesia “50 Tons da Menopausa” em 2017 (parte da Biblioteca do Memorial da América Latina), e o “50 Faces da Menopausa “ em 2019. Tem poemas publicados em inúmeras mídias e em coletâneas. Autora selecionada para a obra “100 Melhores Poetas Lusófonos Contemporâneos - 2018” e para o prêmio “Destaque Poético 2018”. Faz parte da ALG (Academia de Letras de Goiás) e da AMCL (Academia Mundial de Cultura e Literatura - cadeira 2). Colabora com o Intercâmbio Cultural e integra o coletivo Mulherio das Letras.


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um náutilo

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uando ele surgiu do éter, eu já estava conformada com a minha situação. Tinha desistido de espernear e gritar por socorro. Ninguém iria me ajudar mesmo. Talvez fosse a palermice depois de tanta picada. O fato é que não me assustei com a sua carranca esverdeada boiando no ar. Afinal, não deixava de ser uma bela cor, igualzinha àquela do gramado em frente. Só achei insana a recomendação que me prescreveu. Mas quem era eu para julgar? É mister que Vossa Senhoria ingira quarenta copos de água a cada rada do dia. Primeira vez que se dirigem a mim com tal reverência, e o que vem a ser rada, meu Deus do céu? Isso nem falei em voz alta, mas ele já foi logo respondendo porque o danado ouvia pensamentos. Vinte e quatro são as horas de um intervalo diário, que, divididas por quatro, contabilizam seis. Cada um desses conjuntos constitui um rada. Hum, são dez copos por hora, não? Perfeitamente! Bastante coisa, e quando eu estiver dormindo? Adormecer Vossa Senhoria não deve nesse período de atribulações. Bom, antes de me enfiarem aqui, até era fácil não pregar o olho. Mas agora, com esse monte de amansa-louco que estão me dando, como fazer? O medicamento malsão não é para ser deglutido. Vossa Senhoria agirá bem se ocultá-lo na cavidade bucal e cuspi-lo assim que se encontrar desacompanhada. Em seguida, precisa proceder imediatamente ao consumo que estamos lhe indicando. E isso tudo para quê? Não sabia que água limpava loucura. Ora, mas é evidente que sim. Vossa Senhoria não se encontra versada nos atributos do solvente universal? Antídoto criado pelas forças da natureza para diluir todos os males que já existem e os que ainda serão forjados pelos seres humanos. Em breve, estará plenamente recuperada e poderá retornar à ativa, bem distante daqui. Então, assim transcorreram os eventos. Com a ajuda dele, passei a me esgueirar para fora do quarto e subtrair água do bebedouro em quantidades estratosféricas. Se não estava bebendo, estava urinando. Mas os enfermeiros viviam sobrecarregados e, como eu não fazia mais escarcéu, não viram nada preocupante. Deram-se por satisfeitos por não estarem tendo tanto trabalho. A felicidade que me invadia nem sei nomear. As cores do mundo foram clareando e clareando. Os sons também começaram a atingir frequências altíssimas, incapazes de ser detectadas por ouvidos normais. Tornava-me uma espécie de ciborgue, com os sentidos aguçados à enésima potência. Verdadeira super-heroína dos reinos aquáticos. Praticamente uma alga fosforescente a deslizar num oceano cintilando ao intenso sol do verão. Um náutilo de carapaça arredondada e raiada oscilando nas correntes que fluem pelo organismo da Grande Mãe. Até que ao longe ouvi vozes que pareciam conhecidas. Seriam sereias? Que roupa vamos colocar nela? Não, esse vestido é alegre demais para a ocasião. Não trouxe outra opção? O tailleur preto, mas será que não vai ficar com uma cara muito séria e envelhecida? Quero que as pessoas guardem uma boa imagem dela. Coitada, tão nova! Por que diabos foi inventar de engolir um mar?

Divanize Carbonieri É doutora em letras pela USP e professora de literaturas de língua inglesa na UFMT. É autora dos livros de poesia “Entraves” (2017), agraciado com o Prêmio Mato Grosso de Literatura, e “Grande depósito de bugigangas” (2018), selecionado pelo Edital de Fomento à Cultura de Cuiabá/2017, além da coletânea de contos “Passagem estreita” (no prelo), selecionada pelo Edital Fundo 2019/Cuiabá 300 anos. No Prêmio Off Flip, foi segunda colocada na categoria conto na edição de 2019 e finalista na categoria poesia nas edições de 2018 e 2019. É uma das editoras da revista literária digital Ruído Manifesto e integra o coletivo Maria Taquara, ligado ao Mulherio das Letras - MT.


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afro-dite afro-descendente acre-dite

estilhaços Soou como um vidro estilhaçando. Foi como uma nota mal arquitetada, sem ritmo. Aquilo não era música, era barulho. O homem se intimidou com a força e a segurança do ‘NÃO’ que veio da boca da mulher. O ‘não’ saiu sem dó. O ‘não’ ressoou por um tempo, como acorde arranhado de música fúnebre chegou rasgando os ouvidos mal acostumados dele. A mulher deu à própria voz toda a força da sua vontade. A palavra esbofeteou o desavisado. (Plaf!) O sorriso de canto de boca se desfez e a boca secou. Mas o homem não lamentou porque homem não lamenta, homem exige. Ouvidos doídos, ele partiu – pisada sólida sobre os estilhaços. A mulher ajeitou a franja nos olhos e assobiou a melodia preferida.

Sabrina Dalbelo É gaúcha e reside em Bento Gonçalves. Formada em Direito, é servidora pública, desde 2003. Escritora de contos e poemas, é colaboradora do blog “As Contistas” e integrante do Coletivo Mulherio das Letras Nacional e gaúcho. Já participou de projetos antológicos nacionais e internacionais, assim como tem poesias e contos publicados em páginas literárias eletrônicas. É autora dos livros de poesia “Baseado em Pessoas Reais” (Poesias Escolhidas, 2017) e “Lente de aumento para coisas grandes” (Penalux, 2018). Atualmente, é aluna da Oficina de criação literária Contantes, projeto fomentado pelo Fundo Municipal de Cultura de Bento Gonçalves (2018).


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Vidas Marias Vive em mim muitas Marias de Jesus, de Magdala, Maria João todas com suas virtudes ou mazelas em mutação. Vive também Maria Taquara, Maria vivida, atrevida, Maria sem medo, sem perfeição. Com garra e valentia seguiu sua sina com resignação. Não disfarçava o que era, na sua humildade dizia ao que viera: ser flor de Maria sem vergonha de ser mulher, homem, humanidade. Com vida lavada na transgressão, com vida levada à digressão. Todas vidas Marias renovadas pela esperança e fortidão.

Mari Gemma De La Cruz É artista visual-etc, desde 2013, quando, aos 50 anos, inicia como autodidata na fotografia autoral e na arte contemporânea, com diversas exposições e prêmios nacionais e internacionais. Alguns anos antes, começa sua escrita poética. Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1962, e vive em Cuiabá, Centro Geodésico da América do Sul, há cerca de 30 anos. Nessa cidade, desenvolveu um olhar que define ser ‘sócioambientalespiritual’. Antes disso, foi farmacêutica/servidora pública e professora/pesquisadora, sendo Mestre em Saúde e Ambiente, cuja pesquisa gerou o livro “Plantas Medicinais de Mato Grosso: a Farmacopéia Popular dos Raizeiros” (Carlini & Caniato, 2008). Ministrou aulas em cursos de graduação, pós- graduação, cursos de extensão e oficinas junto às comunidades.


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Lourença Lou Às vezes é prosa, outras poesia, sempre encantada com quem faz literatura. Formada em Letras pela UFMG, continua sendo aprendiz de viver. Faz parte de várias coletâneas de poesia, crônicas e contos, e várias vezes foi publicada no Livro da Tribo. Pela Editora Penalux, publicou “Equilibrista” (2016), “Pontiaguda” (2017), “Náufraga” (2018), todos de poesia. Ainda este ano publicará “A face oculta do amor e outros contos”.


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Quando a verdade é grande demais

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ma alegria tonta acompanhava o bambolear dos quadris. Seus pés, sempre pregados no chão, pareciam querer experimentar as nuvens. Dois anos de trabalho duro coroados por uma promoção inesperada. Desceu a rua como se ouvisse Roberto Carlos cantando para ela. A casa dormia tranquila, acostumada à sua ausência. Faria uma surpresa ao marido: nunca mais as noites se alongariam naquele vai-e-vem das máquinas de tecelagem, nunca mais ele reclamaria da cama vazia. Passou no quarto do filho, deu-lhe um beijo e saiu silenciosamente para o banheiro. Olhou os seios no espelho: ainda rijos e convidativos. Uma excitação nova lhe corria pelo corpo, deixando-a úmida. Quase não sabia mais o gosto de fazer amor olhando a lua pela janela. E mal e mal o gosto de fazer amor. O sexo entre eles era pura logística. Ele apressado para o trabalho. Ela cansada se esticando na ponta dos pés, a água do chuveiro se misturando ao silêncio de suas lágrimas. Saiu do banheiro, ajeitou os cabelos e abriu vagarosamente a porta do quarto. O raio de luz do corredor entrou antes dela e brilhou sobre uma cabeleira vermelha. Um corpo nu, bronzeado e largado em seu lado da cama. Coração disparado, ficou a olhar as pernas grossas e as minúsculas marcas de biquíni. Fechou novamente a porta. Não havia pensamento, apenas dor. Encostou-se na parede e deixou-se desmoronar. Inconscientes, as lágrimas desceram. Nenhum som, apenas o sal da tristeza. Do quarto, o ressonar tranquilo dos desejos saciados. Viu-se espectadora de sua própria imaginação. As mãos do marido deslizando por um corpo mais jovem e mais farto que o seu. Os lábios grossos brincando nos pelos – seriam também vermelhos? Sentiu a dor penetrar-lhe o sexo ao pensar nele sobre a outra, como há anos não fazia com ela. Pensou em entrar lá, puxá-la pelos cabelos e expulsá-la de casa. Depois, olhar nos olhos do marido e jogar os dados: perder ou ganhar. Imaginou-o arrependido pedindo-lhe perdão. Perdoaria, mas tinha certeza: ele perderia definitivamente o respeito por ela. Talvez até ficasse mais fácil ocupar seu lado na cama. Mas que outra opção teria? Imaginou-se com a mala em uma mão e o filho na outra, vivendo sabe Deus onde. A casa era alugada, os móveis não aguentavam mais mudanças. Lembrou da mãe dormindo no quartinho dos fundos e imaginou-a num asilo. A promoção perdeu todo o brilho na incapacidade de resolver seus problemas. Uma dor funda e a respiração ficou suspensa. Havia outra opção. A única que manteria sua aparente dignidade. Soltou o ar dos pulmões. Levantou-se lentamente e foi para o banheiro. Lavou o rosto, olhou o relógio: ainda faltavam cinco horas para sua chegada habitual. Vestiu-se e saiu. Subiu e desceu todas as ruas que encontrou. Às sete horas, abriu a porta fazendo barulho. Queria exorcizar o medo de encontrá-la ainda em sua cama. O marido estava no banho e o filho ainda dormia. Exatamente igual a todos os dias. Exatamente igual a todos os dias, ela foi para a cozinha colocar no fogo a água do café. Entreabriu a porta do banheiro e com um sorriso dolorido mandou-lhe um beijo e explicou por que não transariam: dor de cabeça. Fora uma noite de muito trabalho. Nenhuma reação dele. Seu coração falhou uma batida. Deveria exigir que ele lhe fizesse sexo oral e deixar-se morrer e reviver no gozo até limpar aquela mágoa que a dilacerava. Mas não tinha mais forças. Nem para odiá-lo. Tomou uma xícara de café e preparou-se para lavar as louças, limpar a casa e lavar as roupas dele. Era dia de levar a mãe ao médico e enfrentar a fila da farmácia popular. Aguentaria. Se Deus ajudasse, dormiria depois de levar o filho à escola. E aquela dor que lhe partia ao meio? Seria apenas mais um dos seus muitos segredos. Ninguém saberia dela. Nem ele, nem a mãe, nem o filho. E se fizesse um grande esforço, nem mesmo ela.


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e de nada vale nada que não se comparta entre tudo que no fundo te tocar abra o fôlego afago abraço enredo para dar e ser sem medo no efêmero que te acompanha respira inteiro ensejo para inundar o Amor que é chama Vida transformando maior que o teu desejo nascer e estar a lama da flor que queima o beijo que invade e se derrama e preenche sem endereço cortar do que se clama, sabor de recomeço a brisa leve inflama a dor de ter sem mesmo caber no fio que entorna a fome a febre o frevo

Cuyabá, outubro de 2015

AMAR O AMOR ALÉM DOS MEDOS ALÉM DA DOR AMAR O AMOR

Jade Rainho (Tucuruí, PA, 1985) é poeta, pesquisadora cultural, documentarista audiovisual, educadora e ativista pelos direitos humanos e da natureza. Coloca seus dons em movimento para servir à transformação amorosa da consciência humana e à preservação e defesa das culturas indígenas. Autora do livro “Canção da Liberdade” (2017), alguns de seus poemas concorreram a prêmios no Brasil e seu documentário de estreia, “Flor Brilhante e as cicatrizes da pedra”, foi exibido em 21 países e premiado no Brasil, Bolívia, Peru e México.


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Jéssica Regina 27 anos, é mãe e mulher preta. Poeta, estudante de Letras, apaixonada pela escrita desde a infância e pela poesia marginal. Escreve essencialmente sobre a condição da mulher que é mãe, da mulher preta e sobre o povo preto. Integrante do Sarau Preto, que realiza apresentações com artistas convidados, sempre combinadas com boa música. Sócia na marca MUTUÊ, camisetas com estampas que retratam a cultura afrobrasileira. Textos publicados nas redes: Facebook @poetaJessicaRegina e Instagram @poeta.jessicaregina.


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POR DENTRO DA PELE Na pele em que habito Eu entendo que existo E sou todos e todas antes de mim Na mata, na terra, na água salgada No canto, no banzo e na pele marcada Eu sou A história de quem defende um império De quem constrói um país Eu sou as mães que embalam a criança Sou a mão que cultiva a raiz Eu sou peito que alimenta e peita Eu sou corpo que dança e que brilha Eu sou mais do que você vê Eu sou minha mãe, minha irmã e minha filha

TCHAU QUERIDO Não leve a mal Te acho um cara legal Sei que me acha bonitinha e tal Mas na boa Não tô nessa vida à toa Enquanto você pensa meu tempo voa Já te fiz poesia e posso te fazer canção Querendo te pegar pela mão e te trazer pra minha Mas faz tempo que eu tô nessa história sozinha E pra nós dois Essa é a última linha


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Udar (Lilian Mattos) é cuiabana. Nasceu em 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, da Natureza e dos animais, datas que traduzem as inclinações naturais desta poeta, que declara ser de alma livre, eclética e universal. Passou parte da infância e adolescência na Rua de Baixo (atual 7 de Setembro), no centro histórico, entre o estreito das calçadas e o largo dos corações, e parte da maturidade no Porto, aprendendo com a fluidez das águas do rio Cuiabá. Conta que a veia artística herdou do pai e da família Mattos e a veia religiosa e espiritualista, da mãe e da família Monteiro da Silva. Seus poemas passeiam pelo romantismo e por uma abordagem zen, sempre em busca de profundidade. Sua página “Chamas”, no Facebook, tem mais de 6 mil seguidores.


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Naquela árvore não havia frutos adormecidos Nem flores guardadas Nem raízes escondidas. A seiva circulava livremente E sem pecado, por todo lado Penetrava espontaneamente todo seu corpo-semente. O tronco crescia feito poesia Total, forte, ereto e aberto Sustentando amorosamente a copa inteira Feita de galhos e folhas Vãos e silêncios Luzes e sombras. Naquela árvore a Vida se enamorava Ininterruptamente da Vida. Sem nenhum questionamento. Esquecida dos homens e do tempo. Naquela árvore eu encontrei Deus.

As mil vozes que ouço tagalerando sem parar dentro da minha cabeça, não são minhas. Mas essa voz que cala todas as outras E ouve atentamente os mistérios da vida e do amor Através do silêncio do meu coração, essa sim me pertence.


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Resistência em tom maior Carrego a semente [vingada] de toda a luta, desde minhas ancestrais e que me remove presente-passado-futuro. É essa natureza de resistir que me atravessa! Palavra-salgada, palavra-liberdade, no rasgo de meus anseios. Em tempos de sombras, desfaço-me dos tombos e enfrento os percalços- até em meu grito camuflado de silêncio. Meu sangue não estanca, vai na tinta que derramo entre os dedos enquanto escrevo. No canto de meu viver, muita dor extravasa da em notas de desconforto. Mas na letra em dó maior:”Não tenha dó de mim”. Eu que me sei de cor serei quem eu quiser Ser e não-Ser. Invadida pelo desejo de pertencer-me resisto, por mim e por todas as mulheres. Até por aquelas que ainda dormem e não lutam comigo.

Minha palavra é água que ninguém represa A força da palavra em mim É de antes Vem das mulheres que me precederam Atravessa tempos. Faz movimentos antigos Passeia pelo conhecido Também por leitos outros [novos]. Habita recônditos: Extravasa-se. Extravasa-me. Derrama-me. Derrama-se. Representação das águas de Osún: Sentimentos. Profundidade. Segredo. Fertilidade. Força. Vida. É água que ninguém represa. A água segue. A palavra segue. Escrevo. Asè.


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Jullie Veiga É poeta, antologista e escritora maranhense. É idealizadora dos projetos “Elas e As Letras” ano II, “Nem Uma A Menos” e “Movimento Palavras Pretas”, obras feitas unicamente por mulheres. Com participação em dezenas de obras coletivas (livros e revistas), nacionais e internacionais, e autora de “Confessional” - livro integrante da “Coleção 32”, pelo selo Sangre Editorial (Caravana Editorial). Livros solo no prelo.


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mais uma

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entada na escada da cozinha, fumava seu cigarro. Um atrás do outro. Não era possível que acontecia de novo. Já era a quinta vez. A raiva tomava conta. Pensamentos acelerados trombavam-se na mente. Mais uma. Ele dormia no quarto. Chegara bêbado. O cheiro de álcool já dominava o ambiente fechado. O cheiro dela na roupa. Podia ir até lá e matá-lo. Mais uma. Só pensava no que fazer. Sabia. E faria. Não era a primeira vez que era traída. O primeiro marido a traiu. 21 anos. Foi ao chão. Perdeu os sentidos. Queria entender. Mas as desculpas e mentiras não se encontravam. Fez o que devia ter feito. A primeira. Foi embora. Ninguém nunca a achou. 24 anos. Segundo marido queria filhos, mas ela não podia. Engravidou a vizinha mais nova. Mais uma. Não ia vê-lo ser pai daquela criança. Aquela não. Foi embora de novo. Sumiu para longe. Não tinha família. Não tinha ninguém. Só o corpo para oferecer em troca de comida e carona. Era bonita. Vaidosa. Batom na boca. Cabelos pretos. 27 anos. Não queria mais morar com ninguém. A terceira traição doeu também. Não imaginava. O velho tinha 62 anos. Ela não era suficiente? Doeu ser trocada por outra. Mais uma. Foi embora. Foi para longe. Cortou e pintou o cabelo. Foi pro Sul. Caronas, comida e trocas. Conheceu o quarto marido. Relutou. Ele insistiu. Não queria viver tudo de novo. Não acreditava que aquele não fosse trair. Não queria mais uma. Mas ele era bom. Tinha um bom trabalho. Era carinhoso. Foram anos felizes. 32 anos. Mas, de repente tudo mudou. Não desconfiou de nada. Confessou amor a outra. Todos os horrores do passado voltaram. Não tinha jeito. Mais uma. Dessa vez foi para mais longe, cruzou a fronteira do Paraguai. Dias difíceis. Tentou não se prostituir. Não achou outra saída. De troca em troca, chegou à cidade onde conheceu o quinto marido. Também brasileiro. Foi amor à primeira vista. O conheceu na igreja. Resolveu entrar pelo canto que ouvia. Ele a recebeu na porta. Sentiu-se acolhida. Iniciaram uma história. Ela vinha de longe. Corria de marido que batia muito. Ele procurava mudar de vida. Ajudaram-se. 34 anos. Ele era bonito. Andava de calça e camisa. Cabelos grisalhos. Chamava atenção. Sentia ciúmes dele, mas confiava. Um dia, o primo chegou. Eram quase irmãos. Tanta alegria que comprou bebida para o primo. Caiu na tentação. Voltou a beber. Ficou fraco. Não ia mais à igreja. Foram atrás resgatar. Em vão. O primo foi embora. Levou a paz com ele. Trabalhava. À noite, bebia. Saía cheiroso. Voltava tarde. Ofensas. Choros. Brigas. Já sentia não caber ali. Mas para onde iria? Ficou. Gostava dele. Voltava cada dia mais tarde. Não queria sexo. Sentia-se rejeitada. Um dia, foi atrás. O viu beber com amigos. Saiu apressado. Parou na casa de uma conhecida. Lá ficou. Demorou. Ela foi pra casa. Ele chegou sem falar nada. Deitou. Dormiu. Mais uma. Teria que ir embora de novo. Pensou na vida. Nas vezes traídas. Nas coisas que fez. Tudo que viveu. Vivia com medo. Fugida. Para onde iria dessa vez? Não queria matar mais uma. As traições continuariam em sua vida. Decidiu não matar. Mas morrer. Cortou os pulsos enquanto o marido dormia na cama ao lado. A polícia chegou a pedido do marido. Nada mais a ser feito. Mais uma.


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Leila Sampaio Nasceu em 19 de Agosto de 1970, na cidade de Nova Esperança/PR. Reside em Colider, no estado de Mato Grosso, desde 1999. Professora de Língua Portuguesa e Inglesa. Graduada pela Universidade do Estado do Paraná (UEM). Mestra em Letras, na linha de pesquisa em Estudos Literários, pela Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT). Três romances escritos com duas publicações: “Perdoe por mim” e “Um espaço entre dois corações”.


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SAGA Noite alta na Amazônia Desperto do sono aflito Acuada pelos teus gritos Uma lâmina invade tuas carnes Outra alinha e destopa O que julgam ser tua sobra e defeito. Das montanhas secas perfiladas Sobre o pó e sobre a lama Transformam-te em produto De bitolas perfeitas e exatas.

Marli Walker É Doutora em Literatura (UnB). Leciona no IFMT e integra o Coletivo Maria Taquara - Mulherio das Letras/MT. Publicou os livros de poesia: “Pó de serra” (2006), “Águas de encantação” (2009) e “Apesar do amor” (2016), contemplado pelo edital do MEC para o PNLD (2018).

No suor dos corpos fortes Que te conduzem no corredor da morte Tatuas os teus últimos suspiros. Pó de serra nas minhas madrugadas. (Pó de serra, 2. ed., 2017)

SOBRE TONS Sobre silêncios Edifico sombras amarelas Como este pálido sol de setembro Como este pálido tom de palavras atrasadas Secas tonalidades que perderam a hora a florada a seiva o fruto Velhas paisagens que petrificam ventos vazios Fiapos de vozes que uivam em velhos labirintos ecos retorcidos amordaçados amaldiçoados em silêncio letal. (Águas de encantação, 2009)


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ROSAS RUBRAS Danço em torno de lobos Vestidos em pele de cordeiro, A dilacerarem minhas vestes de sol, Maculando meu ventre de mãe África. Sangro além das linhas do tempo Rosas rubras solitárias plantadas na lua, Escrita que transgride a profecia Do exercício de fêmea expulsa do paraíso. Contemplo as garras que devoram minhas vísceras, Que insistem em florescer amor Nas canções que embalam o crepúsculo. Me refaço no emaranhado dos dias, Deixando pela estrada as folhas mortas E as cinzas que adubam as margens vazias.

CONCERTO DE CÂMARA Transbordo em silêncios Notas de uma partitura Esperança que rasura a alma Dentes da fera a sair da jaula!

Rita Queiroz É natural de Salvador, Bahia. Professora universitária, filóloga (pesquisadora do manuscrito), poeta. Autora dos livros “Confissões de Afrodite”, “O Canto da borboleta”, “Canibalismos” (Penalux, 2019, 2018, 2017), “Ciranda, cirandinha: vamos brincar com poesia?” (Infantil) e “Colheitas” (Darda, 2019, 2018). Organizadora de coletâneas. Colunista na Revista Cultural Evidenciarte. Integrante de diversas antologias, no Brasil e no exterior, e dos coletivos “Confraria Poética Feminina”, “Mulherio das Letras” e “Coletivo de autoras de literatura infantil e infanto-juvenil da Bahia-CALIIB”.


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Asas abertas ao vento, no cume da montanha a paz descansa, no colo da esperança. Pássaros sobrevoam flores e passados, confundindo as cores vivas do amanhã. O ímpeto do canto livre de uma águia, desperta alegria. Disperso, um bando de andorinhas escurece o céu, anunciando o verão. Eis que é chegada a hora, o melhor tempo é agora, a vida te chama para fora. Voe.


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Hoje me sinto dividida, entre ser menina ou ser mulher. O espelho insiste em dizer que envelheci mas dentro em mim acabo de nascer. Uma vida repentina despertou meu ser, só sei que quero e quero querer viver. Sim tenho medo, mas agora ele me serve de arreio, para que eu possa ir mais longe. Se for para ser mulher, quero ser mulher de asas e traçar meus voos em direção ao desconhecido Se for para ser menina, quero ser menina doce e viver de amores. Decido ser hoje, o que nunca fui, menina livre, mulher por inteiro.

Elisa Pereira É poeta, escritora. Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais. Ganhadora do Prêmio Nacional de Literatura Poesias Carlos Drummond de Andrade/SESC-DF (2016), 2º. Lugar, Finalista no V Certame Literário – Poemas para La Mujer –Conocimiento e Innovación Intercultural A. C.”Armando Hart Dávalos” - México, com o poema: Niña o Mujer. Participa de várias Coletâneas e Revistas Literárias Nacionais e Internacionais. Publicou em 2018, seu primeiro livro de poesia, “Memórias da Pele” (Chiado Books), integrante da equipe de produção do Sarau Fuzuê Literário em Paraty/RJ. Face: Elisa Pereira Poesia, insta: @elisapereira1975.


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REVISTA PIXÉ Janete Manacá É atriz, escritora e poetisa, autora dos livros: “Deusas Aladas”, “A Última Valsa”, “Quando a Vida Renasce do Caos” e “Sinfonias do Entardecer”. Participou também da Coletânea “Sete Feminino de Luas e Marés” com 30 mulheres brasileiras. Autora da coluna mensal “Olhares sobre a cidade” da Revista Centro Oeste de 2016 a 2017. Autora dos Projetos: Sala Zen, Bate Papo Zen, Tempo de Amar e Parto poético, na Gerência-Executiva do INSS em Cuiabá/MT de 2005 a 2011. Atualmente é integrante do Coletivo Literário Maria Taquara – Mulherio das Letras/MT e do site Parágrafo Cerrado. É bacharel em Serviço Social, Comunicação Social e Filosofia, com especialização em semiótica da cultura pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

NEIDE SILVA PARA MUITO ALÉM DO VÃO DA PORTA

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s obras de arte de Neide Silva, psicóloga, artista plástica e escritora, nos incitam a sair do lugar comum e mergulhar na amplidão de outros universos. Por meio delas aguçamos os desejos e somos levados a apreciar infinitos lugares e nos inebriarmos com a grandeza de cada possibilidade. Na Pixé deste mês, você tem passagem livre para mergulhar nesse universo exequível. A menina inquieta que morava no coração do bairro Pedregal em Cuiabá cresceu em meio à efervescência cultural. O irmão mais velho é artista plástico e assim ela aprendeu desde muito cedo a apreciar o sentido das cores, o valor da estética, a importância dos traços, o transbordar dos sentimentos e, claro, a apreciar o belo. Atenta a tudo que estava relacionado às artes plásticas em seu próprio lar, estava sempre a espreitar pelo vão da porta. O seu imaginário era alimentado dia a dia e, no seu mágico quintal, exercia a alquimia, reciclando objetos em desuso para criar suas primeiras obras de arte. Sua paleta transita entre a suavidade do rosa, o vigor do vermelho rubro e o intenso azul que nos convida a conjugar o verbo esperançar. A naturalidade do entrelaçamento erótico de corpos desnudos. A dominação e a liberdade nas relações amorosas. E a bailarina que se equilibra na ponta dos pés e se entrega à sedução do voo numa catarse propícia ao encontro consigo mesma. Há ainda as mulheres que rompem com os arcaicos valores e se fazem luzes entre flores, amparadas pela Mãe Primordial. E, nessa via-crucis, Neide agrega outras técnicas. Num ensaio à superação das habilidades inerentes ao seu ser, vai além do acrílico sobre tela e insere também as esculturas de argila e as instalações de arame e papel canson, tão lindamente representados pelos contorcionistas. Das mangas e cajus sentimos o cheiro, o sabor e somos provocados a adentrar a obra de arte. Nesse momento, já não estamos mais sozinhos, evocamos a criança arteira que um dia fomos e seguimos. E, desprovidos da rigidez normativa, nos entregamos ao prazer e nos permitimos desfrutar desse idílico encontro longe das atribulações do cotidiano. Os abstratos coloridos das flores, da casa de campo, do Cerrado, e dos antúrios, nos despertam para a contemplação, num encontro possível que propicia a transcendência. As cinco rosas azuis que representam a força das cinco irmãs entrelaçadas num afeto imprescindível. As cadeiras que aprisionam memórias ancestrais e tantas outras memórias presentes nas suas obras. Neide conta histórias em códigos que decodificam as histórias de outras pessoas que se deparam com a sua arte. Como a tela colorida de balões que remete aos momentos festivos de datas comemorativas, entre amigos e familiares, que povoam o nosso imaginário na vida adulta. E as inebriantes pipas cor-de-rosa que se misturam às paisagens para entregar nossos mais secretos desejos ao infinito. A cruz que sustenta muitas de suas obras, ao contrário do peso simbólico cristão, tem nas pinceladas a ousadia de desabrochar asas e partir em busca de utopias. Como o entardecer das travessias expostos num vermelho instigante, propenso à reflexão. Cada tela, escultura e instalação de Neide Silva é um convite tentador para quem aspira encontrar-se com o novo, mas há que se ter coragem para desnudar-se diante desse mundo recriado na simbologia da beleza, suavidade, denúncia, criticidade... Desnudar o mundo e a nós mesmos é tarefa para toda a vida. Suas obras nos trazem o infinito almejado e possível, como a harmonia da primavera retratada com tão sutil sensibilidade. Como nos lembra José Ortega Y Gasset, amplamente considerado o maior filósofo espanhol do século XX: “A tarefa do artista é acrescentar mundos novos”. Neide Silva consegue com suas criações validar o pensamento de Ortega.


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Neide Silva É psicóloga e atua no campo artístico em duas frentes. Como artista plástica, empresta seu talento para pequenas esculturas e telas. Como escritora, publicou os livros infantis “Cigamiguinho”, “Sabina, a sapinha bailarina”, “Kaike” e “Iribi Sabiá”, este último selecionado recentemente em um edital da prefeitura de São Paulo para ser distribuído em bibliotecas públicas e escolas do município. Atua no coletivo Maria Taquara que promove discussões acerca da literatura escrita por mulheres.

TEMPO FORTE VENTO Ao estender as roupas no varal, ela percebeu que não havia nenhuma peça de roupa dele. Exceto uma camisa branca, que há tempo estava guardada no guarda-roupa; o colarinho amarelado. Colocou de molho e a lavou. Ficou a tristeza ao saber que era a única no varal. Não pela peça, mas por saber que ele andou sumido. Os alimentos da dis-

pensa estragaram. Quando comprou, achava pouco. Parece que se enganou. O quarto, que era sempre primavera, agora é tomado pelo inverno antecipado. As flores começaram a cair, os beija-flores, há tempo não os via, ficaram os pardais, com as sobras. E a lembrança daquela noite em que a chuva, o vento, o cheiro da terra molhada, a ausência dos barulhos das árvores e o corpo pedindo ele; os seios eriçados de vontade da boca doce. Em delírio. Sentia-se como uma lebre apanhada pelo pescoço.


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Ele na cama, a cabeça encostada na parede esperando por ela, com cara de moleque pidão. Despia-se para ele, escravizada pelo seu olhar. A mais oferecida das flores, embriagando o beija-flor com seu néctar. O encontro, na cama, a boca abrigando ele, preenchendo a fome. Entre a calcinha, ele, com a mão bruta embevecida por ela. Dizia sentir falta dele. Sentia as dores nos ombros que há tempo não sentia. Sentia a falta do moleque pidão de doce de Ambrosia no quarto que era sempre primavera. Chegaram os ventos, fortes, naquele almoço de domingo, ao som de hip-hop e vinho. Ele não conteve o impulso, olhou as mensagens do celular que estava ao descuido, enquanto ela, entusiasmada, preparava o bacalhau. Mensagens que em outros tempos lembravam os dois: “Olá, tudo bem! ” Foi como começou tudo entre eles. Mas agora era ela com outra pessoa. Sentia-se como vilã em filmes de seriados. A Pele queimava em devaneio pedindo: Ah! Moleque faminto! Não conseguia segurar os impulsos, invadia o anseio de adolescente quando lembrava dele. Infindáveis eram as mensagens direcionadas a ele. E há meses, desde aquele domingo do bacalhau regado ao azeite no forno e o tilintar das taças de cristais, ela não havia mais trocado mensagens com aquele homem. O amante da rede! De tanta insistência, numa tarde, quando o vento anunciava o outono, trouxe consigo uma poesia dele: deixe a manada destruir o comboio deixe que se separe o joio deixe tudo! que o peixe suba as ribanceiras do rio que o choro se confunda com o trigo e a vida por um fio caia na rede água matando a sede eu rio

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que amar não tá pra peixe deixe, sim, os peixes no aquário a era de sagitário na balança pegue o touro pelo chifre antes do próximo chiste o imperativo capricórnio o hiperativo com as patinhas de fora sorrisos gêmeos e fora do siso o juízo desfeito é fato não de direito! Pensava que não deveria estar lendo suas publicações. Alimentando a alma que pedia por ele. O projeto para a feira cultural estava prosperando, a viagem de trabalho para a América Latina remarcada e as reuniões para um novo projeto acontecendo. Em momentos de folga ainda pensava muito nele. Assistia aos programas de televisão sem saber se tinha alguém com ela. A cada dia buscava amparo em si mesma, mas um lado da cama denunciava a espera... As mensagens eram constantes, apesar do ritmo menor. Eram. Uma noite, quando a nudez das árvores denunciou o fim do outono, chega mensagem dele: – Olá! No inverno, as roupas já estavam lá, no varal. As camisas quase secas, a camisola de seda pronta pra guardar e a jaqueta que ele mais estima à espera do sol chegar...


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Paloma Rodrigues É porto-alegrense formada em Jornalismo, já trabalhou com tudo que é tipo de coisa possível, menos Jornalismo. Gosta de escrever, assistir Netflix e ter conversas filosóficas com seus gatos. Publicou dois livros, “Talvez, no fim” e “É Recém Segunda e Já Quero Morrer”, e tem diversos contos no site Wattpad. Além disso, ela também escreve sobre livros para o Instagram Guaxinim Literário. É casada, tem quatro filhos (dois caninos e dois felinos) e nas horas vagas joga videogame por dinheiro.


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Sessão da Meia-Noite

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uando o garoto da terceira fila começou a lhe olhar, ela não soube muito bem como reagir. Não estava acostumada com este tipo de atenção. Ele era bonito demais para ela, alto demais e, convenhamos, provavelmente inteligente demais também. Manteve o olhar pelo máximo de tempo que pode, entre um segundo e três meses, não sabia ao certo. Nunca fora boa com números. Ele olhava e sorria. Ela desviava o olhar e morria. Ele devia ter uns 30 anos e ela riu por associar ele a palavra “garoto”. Era mais velho que ela, é verdade, mas não era disso que ela gostava? Sentia-se nervosa, com medo do que estava por vir. Tivera alguns como ele no passado, esse não era o problema. O que lhe dava medo naquela situação era a beleza dele. Estavam os dois em um cinema, vendo algum filme antigo. Ela fazia isso todas as sextas-feiras e nunca o vira lá. Perguntou a uma conhecida se sabia quem ele era e descobriu que ele não era dali, estava apenas de passagem. Perfeito. A mulher, então, lhe perguntou por que ela não ia falar com ele, e a garota riu. Se falasse com ele, ele poderia ouvir. Não prestou atenção ao filme, só conseguia pensar nele e no que poderiam fazer. Então, decidiu fazer o que sempre fazia. Na saída, passou por ele e lhe deu um leve esbarrão no ombro. Entregou-lhe um bilhete e assim como veio, foi embora. Deixou o homem (sim, homem, ele não era um garoto como os outros) ali parado, olhando confuso e admirado para ela. O bilhete lhe pedia para esperar em frente ao cinema, quando todos já tivessem ido embora. Esperou até o horário combinado, nervosa, e quando chegou o momento, caminhou de volta para o local com as mãos nos bolsos, rezando baixinho para que ele estivesse lá. Estava na esquina quando viu a silhueta magra dele. Estava frio e ela conseguia ver o vapor saindo de sua boca. Chegou perto e, sem falar nenhuma palavra, aproximou os lábios dos dele, segurando-lhe a nuca com uma das mãos. Olhando nos olhos do homem, que se excitava cada vez mais com a situação, ela lhe disse “não sou muito boa com relacionamentos”. Tirou a mão que ainda estava no bolso do casaco e que segurava um canivete, cravando-o no pescoço do homem. O sangue lhe espirrou no rosto e por alguns segundos todo o seu mundo era vermelho. Sorriu. Perfeito. No bolso do casaco dele, encontrou o bilhete, que tomou para si. Iria guardar junto dos outros 17 que tinha embaixo da cama. Ou seriam 18? Ela não sabia ao certo. Era tão ruim com números quanto era com homens.


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Poema 34 “anoiteceu?” ou só uma nuvem atenuou o sol?” divago, enquanto a luz, tão tímida, vaza nos entremeios da janela quente o teu sono vai pesando em mim percebo ser tarde da tarde mas não me movo deixo a tua respiração, funda e lenta, rasgar a minha pele vez após vez e pelo embalo do teu hálito deslizo entre sono e vigília tu te moves encaixa, ainda mais, meu pequeno corpo no teu e na rouquidão do descuido, o murmúrio: – que horas são? e em te olhar eu me lamento “não queria ter de ir” mas até com as pernas, tu me moldas minha alma grudou na tua preciso encontrar ar para cochichar: – preciso ir… mas tu me afrontas: – e pra onde você vai? despenco sem me soltar de ti… “não sei”, quero dizer “nem sei porque eu disse isso”, quero acreditar entardece mais uma hora, e sob o teu calor ainda me deixo tu reclamas: – pés gelados. sente frio?

eu me entrego – meu coração deve bate devagar. mas tu me contradiz: – não, é porque ele bate mais depressa… (na pausa, entre uma palavra tua e outra, te olho querendo concordar “o meu coração é mesmo de-ses-pe-ra-do!”) até que concluis: – …. mas não funciona com força suficiente. escuta o meu. me derrubo no teu peito querendo dizer que já te escutava, há horas, dizer que escutava a tua calma batendo o teu peito tão preciso tão certo batendo tão seguro batendo nos meus ouvidos nas palmas das minhas mãos batendo até dentro de mim dando nó atrás de nó “por que diabos eu te ouvi por dentro?” batendo nó atrás de nó cada batida tua me bagunçando me acelerando me fazendo funcionar cada vez mais quente entregue e mais.


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Ângela Coradini É poeta, realizadora audiovisual e pesquisadora. Poeta com o livro “…Já não podem ser amanhã” (no prelo). Realizadora audiovisual com o curta-metragem O Conto da Perda (2019). Pesquisadora com Doutorado em Cultura Contemporânea e tese publicada no livro “Imagens-espectro de futuridades no Amplo Presente” (2019), pela Edufmt. É editora na revista eletrônica Ruído Manifesto e compõe o Coletivo Audiovisual Miraluz.


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Navegar é preciso

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ma vez, ela decidiu repensar a sua vida. Refletir sobre o que a completava, e o que já estava transbordando. Pegou uma lata de lixo e anotou em pequenos pedaços de papel tudo o que havia passado nos últimos 10 anos ao lado dele. E viu que uma lata de lixo não era suficiente pra tanto papel. Simplesmente não cabia. Um casamento sonhado e planejado com tanto zelo e cuidado, com a ajuda e orientação de diversos colegas das escolas em que trabalhava como professora de inglês, sua maior paixão. Desde que seus pais a colocaram num reconhecido curso de línguas no bairro onde morava, Cintia não tinha dúvidas sobre o que queria estudar na faculdade: Letras. Estava feliz pelo fato de se casar com seu namorado de adolescência, um rapaz que conheceu na igreja e era querido por todos. Bastante expansivo, comunicativo e irreverente, Caio fazia amizades por onde passava: no trabalho, na faculdade, na vizinhança... todos sabiam quem ele era, e isso o deixava orgulhoso demais. Eu diria até demais da conta. As últimas provas do vestido de noiva. O grande dia estava se aproximando e, nessa contagem regressiva, Cintia perdeu quase 4 kilos. Ela, que sempre foi alta e magra, se preocupava em parecer muito abatida por conta da magreza. Mas, mesmo assim, estava feliz e radiante, pois realizaria o sonho de se casar e ir morar na Europa. Esses eram os planos que ambos haviam feito antes de se casar, já que sonhavam em viajar o mundo e trabalhar no exterior. Estava tudo encaminhando pra um final feliz. Passada toda a euforia e felicidade pós-cerimônia de casamento, um choque de realidade. Caio, que desde o princípio compartilhou da ideia da mudança de país, resolveu arrumar um emprego e ficar no Rio de Janeiro. Cintia se viu perdida, pior do que cego em tiroteio, pois dias antes pediu as contas dos cursos de inglês em que trabalhava e se encontrava desempregada. Não tinha palavras pra expressar o que sentia: um misto de desapontamento com tristeza regado a frustração. Viu que seus planos foram por água abaixo. Foi aí que o fim teve início, e o início de uma nova época começava. Conseguiu emprego num curso de inglês a 2 horas de distância de casa, mas ia feliz, pois a equipe de professores era bem divertida e querida. O que não a deixava mais feliz era seu relacionamento com Caio. O fato de não terem viajado a fez repensar se valia a pena continuar vivendo numa espera constante por uma oportunidade de ir pro exterior, e, mesmo acreditando no casamento como instituição pra vida toda, se sentia cada vez mais anulada e acuada em seu próprio mundo. Queria se libertar, mas não sabia como. Foi então que Cintia tomou o maior golpe que alguém poderia tomar na vida. Um belo domingo de Páscoa, após 3 anos de união, Caio a chama e diz que conheceu uma outra pessoa. E que essa pessoa estava grávida de um filho seu, e que, por conta disso, ele queria se separar. Assim. Na lata. Sem pausas. Sem pensar duas ou três vezes. Em 10 segundos, ele resolveu terminar um relacionamento de 10 anos. Foram 10 segundos que ficaram ecoando na cabeça de Cintia, e mal saberia ela que esses 10 segundos seriam o divisor de águas da sua vida. No dia seguinte, resolveu que precisava desabafar com alguém. Saiu meio que sem rumo de casa, não tinha noção de onde estava indo, que direção tomar. De repente, se viu diante de uma igreja e entrou, e teve forças pra se ajoelhar e, aos prantos, perguntava a Deus o porquê de todo aquele sofrimento. Passado todo o trauma inicial, idas à terapia, igreja, conversas com amigos e apoio familiar, Cintia se viu pronta pra alçar voo, e buscou uma escola pra fazer um curso de comissária de bordo. Nada mais prático do que viajar e ganhar dinheiro viajando do que ser aeromoça, mesmo com todo o medo de voar e passar horas trancada dentro de um avião. Cintia só pensava em quando o avião pousasse e ela pisasse em uma cidade europeia, em conhecer cada canto do mundo onde pudesse chegar. Mas o destino não quis que fosse assim. Cintia, no entanto, ainda tinha aquela vontade de viajar, mas precisava de dinheiro pra isso, e com salário de professora em um curso não conseguiria alcançar seu objetivo. Naquele dia, foi pra academia malhar um pouco e distrair, e encontrou um amigo que lhe disse que estava embarcando na semana seguinte pra trabalhar em navios de cruzeiro, numa empresa americana. Cintia teve então a ideia que mudaria sua vida pra sempre: chegou em casa, pesquisou as empresas que estavam contratando pra trabalhar a bordo, e fez contatos. Na semana seguinte, já estava sendo entrevistada por telefone por um diretor de Miami, que a achou perfeita pro cargo de animadora e recreadora. Estava empolgadíssima com o fato de ser sido selecionada pra um navio que partiria de Barcelona e rodaria o Mediterrâneo, seu sonho de itinerário. E, a cada 5 meses, durante quase 5 anos, Cintia trabalhou e conheceu diversos lugares e pessoas, se divertiu como nunca antes, e toda vez que ia pra parte de trás do navio, refletia sobre o seu momento atual, e que todo o sofrimento causado por um relacionamento fracassado tinha ficado no passado. Um passado que serviu para Cintia ver que é possível chegar onde sonhamos, e que navegar era preciso.


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Débora Pedroni Katunaric É natural do Rio de Janeiro e apaixonada por línguas e viagens. Formada em Letras pela UERJ, possui pós-graduação na área de Línguistica Aplicada. Trabalhou por mais de 15 anos em diversos cursos de inglês, escolas públicas e privadas, e hoje mora na Croácia, onde ensina Português como Língua estrangeira e desenvolve conteúdo para web. Participa de coletâneas, antologias e tem artigos publicados em diversos sites, incluindo o Brasileiras pelo Mundo.


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Adrianne Rocha É de Tangará da Serra, arte-educadora, poeta, atriz e contadora de histórias. Autora do livro “Pátria Sem-terra” pela editora UNEMAT. Publicou na “Antologia Poética”, Prêmio Poetize 2019, série Novos Poetas da VIVARA Editora Nacional.


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A porta

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molho de chaves arremessado sobre a mesa. Ruído vindo do apartamento vizinho anunciando a chegada do seu morador. Deve ser mais de meia-noite, pensou tirando os olhos da tela do computador. Deu-se conta do tempo que estivera mergulhada escrevendo seu novo romance. – Chega por hoje. Disse em voz alta levantando-se da cadeira. Refletiu uns segundos. – Certo, considerando que o hoje iniciou há poucos minutos, então, chega por agora. Ela riu, chacoalhando a cabeça após ouvir a própria voz. Pegou a xícara de chá, levou-a para a cozinha, lavou a xícara, a colher e as deixou no escorredor, guardou o açucareiro e tampou o fogão, conforme costume da mãe. Ao voltar para o quarto, no corredor, sentiu um arrepio, um nó na garganta, nostalgia quem sabe. Parou, respirou três vezes profundamente como a terapeuta ensinara. Suspirou e disse terna e francamente: – É bom estar em casa, mesmo que a passeio. Ela realmente sentiu-se em casa depois de tanto tempo. Segura. Entrou no quarto, trancou a porta. Certificou-se de estar trancada. Tirou o seu hobby rose de seda o qual não gostava, mas, sendo presente da mãe, pelo menos quando a visitava precisava usar. Seu uso tornou-se mais frequente desde que o pai falecera. Largou o hobby na guarda da cadeira. Ele foi escorregando lentamente amontoando-se no chão. Ali amanheceu. Ajeitou-se na cama. – Droga! Lembrou-se da luz do corredor. Levantou-se para apagá-la, veio na memória as lembranças do tempo de infância. Quando nas férias as primas vinham passar alguns dias depois do natal. Podiam ficar até tarde assistindo TV, ao irem para o quarto, apagavam a luz e saíam correndo, se escondendo sob as cobertas. Sentiu-se feliz ao fazer o mesmo tanto tempo depois. A porta ficou entre aberta. Mil pensamentos, três agradecimentos para cada prece. – Cuide da mamãe, amém... Pensamentos, passado, futuro, olhos pesados, algumas coisas não mudam...Virou-se duas ou três vezes até o primeiro cochilo. Despertou de súbito com o ranger da porta, o ruído característico e temido desde a infância. Cobriu-se toda, coração disparou, respiração ofegante, suas carnes gélidas e trêmulas. Vontade de fazer xixi. O Grito não saía da boca seca. Encolheu-se no meio da cama tomada de pavor, medo e nojo. Percebeu o ceder do colchão nos pés da cama. Encolheu-se mais como se fosse possível, parecia um feto. O peso vinha em sua direção, sente ser tocada no tornozelo. – Tudo de novo. Pensou mordendo os lábios, apertando os olhos. Escuridão. Tornozelo, joelho, coxa, o peso parecia uma tonelada. Em meio ao tormento e aflição ouviu um miado. – Mastruz! Ela esqueceu o velho hábito do gato Mastruz de subir na cama, caso encontre alguma porta aberta. Mas, ela não esqueceu tudo o que sentiu na infância e adolescência, quando a porta rangia no meio da noite enquanto o seu tio-avô vivera na casa.


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Cláudia Gomes É natural de Salvador, BA, radicada em Feira de Santana. É professora, mãe e poetisa. Escolheu o curso de Letras, pois sempre gostou de devanear, criar amigos e situações inimagináveis os quais terminavam sempre em produções poéticas. Apaixonada pelas letras, acredita que a Literatura oportuniza o homem a se (re)conhecer. Publicou Catadora de Versos (2018), livro solo, e em diversas Antologias poéticas, dentre algumas, Cadernos Negros 39, Mulher Poesia II, III e IV, “O Silêncio das Palavras”, “Reflorescer”, “Além do Amor”, “O construtor de amigos”, “Pólen da Vida 1”, “Gotas Poéticas”, “Correspondência, dentre outras”.

Quero um Brasil Quero um Brasil Sem ódio Sem desarmonia Sem brigas Sem desunião Sem desigualdade a qualquer cidadão “Não te espante, ó leitor da novidade, Pois que tudo no Brasil é raridade!” Quero um Brasil Sem preconceitos, Sem atrocidades e crimes! Quero um Brasil por inteiro. Quero um Brasil, Feliz, harmonioso e saudável Livre das atrocidades que enfeiam a NAÇÃO. Tenho esperança que um dia hei de ver “Minha terra”, Meu país Sorrindo em festa Sem hipocrisia e sem demagogia. Quero um Brasil, Onde o verde das matas seja preservado, Onde as espécies de animais não fiquem em extinção, Os cachorros e gatos abandonados Sejam cuidados por todos os cidadãos. Onde poderemos todos juntos cantar A mesma CANÇÃO.


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Assim como Carolina Não casei e não sou descontente Carolina Maria de Jesus já dizia E eu degusto suas palavras. Não casei, nem descasei Insistentemente grito ao meu coração Descasei-me do aconchego do calor Do corpo, da dor Dor retratada em solidão A solidão que me acompanha Que bate em meu rosto E no meu corpo. Não casei e não sou descontente, Carolina Maria de Jesus reforça a mim E para mim, Volto a dizer Que a felicidade e a solidão São pedaços que se juntam Na minha vida De andante, de errante É que só quem é descontente Se realiza em si mesmo. Carolina Maria de Jesus não se casou Era contente. Quero ser assim Mulher forte, guerreira e companheira De mim mesma!


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Lamentos de Gaia Cortaram as minhas asas Quando fiz ninhos nas montanhas Enclausuraram os meus sonhos Quando clamei por liberdade Desafinaram a minha música Que inspirava gratidão Envenenaram meus rios Com a força da ambição Mutilaram o meu corpo Em busca da dourada ilusão Destruíram as minhas matas E sem piedade arrancaram meu coração

Invisíveis Quem ouve o grito Das crianças do lixão O choro das mães abandonadas Perambulando entre a multidão Quem oferece colo Às crianças abusadas E ouvidos atentos Aos lamentos das madrugadas Quem sacia a fome Dos miseráveis nos viadutos Que caminham sem direção Com olhos voltados ao chão Quem denuncia a exploração A mão de ferro que esmaga a canção O aborto dos sonhos de liberdade A prisão perpétua da felicidade Quem estende as mãos Aos moradores de rua Maltrapilhos, famintos Invisíveis na tenebrosa escuridão


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Janete Manacá É atriz, escritora e poetisa, autora dos livros: “Deusas Aladas”, “A Última Valsa”, “Quando a Vida Renasce do Caos” e “Sinfonias do Entardecer”. Participou também da Coletânea “Sete Feminino de Luas e Marés” com 30 mulheres brasileiras. Autora da coluna mensal “Olhares sobre a cidade” da Revista Centro Oeste de 2016 a 2017. Autora dos Projetos: Sala Zen, Bate Papo Zen, Tempo de Amar e Parto poético, na Gerência-Executiva do INSS em Cuiabá/MT de 2005 a 2011. Atualmente é integrante do Coletivo Literário Maria Taquara – Mulherio das Letras/MT e do site Parágrafo Cerrado. É bacharel em Serviço Social, Comunicação Social e Filosofia, com especialização em semiótica da cultura pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).


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Sandra Modesto É mineira de Ituiutaba. Graduada em Letras e Pós-graduada em Educação, ambos os cursos pela FEI (Fundação Educacional de Ituiutaba). É autora dos livros “Acenda a luz” (prosa poética, editora Kazuá, 2015) e “Tudo em mim é prosa e rima” (Autografia, 2019). Tem textos publicados na revista digital Literalivre e na revista Philos, sendo nessa última uma “Releitura da obra de Chico Buarque”. É membro do “Mulherio das letras” desde abril de 2019 e Cronista no site Crônica do dia.


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PRONOMES

E

la chegou sem calcinha, sozinha, disposta a conquistar desejos insanos, não revelados até então. Era nua a decisão, transparente a ocasião, dar de tudo. Chegou revelando explosão. Foi direto ao ponto, mostrando dedos molhados, lábios de cima a baixo, arrepios e calafrios, calor de quem queria dar só pra ele. Ele chegou meio sem jeito, com um nó peito. A despeito de encontrá-la tão diferente, pensou em desistir de tudo, mas, no fundo sabia… Isso jamais aconteceria. Tudo era quase nada do que ainda queria sentir ao lado de alguém, e o alguém era ela. Pensando em tudo que viveram no passado, ela se fez toda ela. Disse de tudo, do mais profano ao profundo, do mais quente ao insolente, parecia que nem era ela, e sim, alguém que não conhecia. Ele ficou assustado, mas, logo, logo, colocou-a no colo, beijou-a por todos os lados, queria lamber por inteiro o que sempre o deixou exausto de prazer. Inteiramente sem nexo, perdeu a timidez e com toda nitidez fez dela o seu sexo demente. Como uma corrente de murmúrios, gritos que deixam surdo quem tem vontade de gozar, eles “treparam” até que o dia gemesse. A vida germinou por gemidos sem fim. Desencantou até o romance mais meloso, um olhou para o outro e queriam mais. Fizeram mais. Suaram mais. Mais uma vez, o suor de amantes, perfeito para quem desejava há dias… Meses? Anos? Horas? Não sabiam mais. Apenas sentir o gosto da pele, do sexo, a libido que parecia não existir se fez sem modéstia, a pressa e as horas de tanto prazer, um querer a dois… Bobagens ao pé do ouvido, lambidas atrás da orelha, enfiadas, aberturas, cenas filmadas que dariam um filme pornô. E os dois, ela e ele, não precisavam de exibição além do lugar em que se encontravam. Um infinito particular, um lugar só para os dois voltarem a ser o que sempre foram. — Nós queríamos tanto, tanto, demoramos muito a fazer tudo isso. Eu sempre quis te comer assim, sem receio, passear pelos bicos dos seus seios, agitando a brasa que eu pensava não ter mais. — Eu sempre tive certeza dessas nossas travessuras em cima da mesa, da cama, do chão, são coisas do coração, da ação que se traduz, do sexo que se faz amante. Eu não aguentava mais segurar a vontade de dar a você meu sexo molhado sem me importar com desespero, quero assustar minha alma. — Calma, agora não tem mais desculpas, temos que assumir nossa culpa e navegar até quando o mar secar. Ele e ela formaram “nós”, elos, tão belos. Nada mais interessava. A vida descruzada com o tempo? O tempo perdido após tantos anos? Tantos fatos? O ato estava ali e tinha que ser real. Com o efeito de namoro no começo, sabores, sensações indecifráveis que só aos apaixonados interessam saber ou não saber. Ele abriu o espumante, ela deu uma olhadinha na taça, encarou-o com os olhos felinos. Naquele momento, ele se lembrou de uma certeza: ela apreciava ainda, e como! Um copo duplo de cerveja. Com espuma. Plumas dos travesseiros voaram em meio a tanto sabor. Calor de corpos, água salgada escorrendo matando saudades. Verdade! Depois de tantas despedidas, sempre às escondidas, sem nunca irem embora, ela e ele ainda eram os mesmos. Sentiam os mesmos absurdos, beijos que transitam entre o sexo e o querer, sem medo… Promessas eternas. Sem dor. Vontade que o sentimento nunca mais se acabasse. Os devorasse até o fim. Ela e ele não tinham nomes. Eram apenas fragmentos de eterno amor. Amor em mim.

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CENSURA LIVRE Saíram de casa Pelas ruas Como era de costume A terceira companhia Amor Recente Sabe como é Mãos dadas Corações acelerados Até doem Nos peitos Coragem (B)ilateral Os ditos normais comemoram O júbilo da paixão Em lábios e faces Selos mornos Sufocam íntimos desejos Ali não Entre mãos Asfixiaram-se em beijos E descontroles (L)acivos Beijos ardentes Aquelas bocas (Q)uentes Inspiraram Expiraram (T)ranspiraram Piraram (G)ozaram Santo Deus... Mal sabiam

Que em volta Pelas frestas estreitas Tolas portas Solitárias Se riam Sob o ranger Das próprias parvas existências Faiscavam fagulhas De indelicadezas Portas vazias e barulhentas Laminas de fino corte Assim permaneceram Emputecidas Estáticas Mortas Severa a obtusidade Das portinholas Mas quanto ao fecho Da história Enquanto se doem Os imbecis E vocês Cá estão Se esbaldando Na narrativa Dessa voyeur Despudorada Elxs Ainda estão lá No mesmo lugar Asfixiando-se Em chupadelas Entre dentes, línguas E glandes lábios


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FLORADA Minhas raízes são firmes Seguras e de cheiro bom Essência curadora, Auto curativa. Embrenham-se solo a dentro À procura de vida Suprema Guia Supremacia Meu tronco sinuoso tonificado Não mais enverga, não quebra, nem cai. Minha seiva hematoide, Nutre minhas galhadas Engrenhadas pela complexidade Daquele que é ‘modelaDor’ E se fez senhor Meus cachos cheirosos Cachos de flores bonitas Bagunçados e esvoaçados Pelas tempestades necessárias Das estações psíquicas Tornaram-se resistentes Depois uma vida pungente Minha sombra frondosa Em algum tempo ressequida Agora sinala a risada Propicia frescor Respeita minhas lágrimas Por ordem da vida Ampara e devolve Amor Hoje será para sempre primavera.

Juçara Naccioli É graduada em Letras – Literatura e Especialista em Teoria e Prática da Língua Portuguesa, ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso. Atua como professora de Linguagem há 23 anos. Poeta integrante do Coletivo Maria Taquara - Mulherio das Letras/ MT e Coletivo Parágrafo Cerrado, pelo qual faz leituras de cenas de peças teatrais. Atriz. Professora de Oratória e expressão pessoal. Foi finalista do Prêmio Off Flip 2019 (poesia).


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Sergia A. Reside em Teresina-PI, Brasil. É mestre em Letras/Literatura, Memória e Cultura. Autora do livro “Quatro Contos” (Quimera, 2018). Tem publicações acadêmicas e literárias em revistas culturais, tais como Letras em Revista (UESPI), Desenredos, LiberoAmérica e Revestrés. Participou de coletâneas acadêmicas e literárias diversas como “História/Literatura/Linguística” (Editora Caetés, 2019); “Antologia do Desejo” (Editora Patuá, 2018); “A mulher na literatura Latino-Americana” (EDUFPI/Avant Garde Edições, 2018); “Conexões Atlânticas II” (Infinita, 2018); “Outono Literário” (Fafalag, 2018) e “Eros das eras” (Avant Garde Edições, 2019). É responsável pela coluna “Do caminho” no site da Revista Revestrés.


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Harmonia

À

s vezes o dia nasce vermelho e pulsante feito coração. Foi o que ele disse naquela manhã ao encontrá-la na varanda tomando café. Chegava de surpresa, quando lhe dava na telha, e há muito que ela não reclamava da presença ou da ausência inconvenientes, cada uma a seu modo. Foi então que ela se deu conta do viço das flores do antúrio cumprimentando alegremente os primeiros raios da manhã, do rubor no seu rosto e da caneca que avermelhava suas mãos. Levantou-se desarmada. Já não havia o que questionar. Leu o cartão e agradeceu o rubi, intrigada com a misteriosa coincidência e o repentino desejo de recomeçar. Lá fora os acordes de um violão flamenco invadiam o ar.

Às vezes o dia finda azul e frio feito pedaço de lua. Foi o que ela disse naquele entardecer quando ele apareceu pontualmente para o jantar. O encontro vinha sendo adiado há tempos, sem atropelos. Que diferença faria um dia a mais ou a menos? Convidou-o a sentar-se à mesa finamente disposta. Não sem antes fechar a janela para controlar a temperatura do ambiente. Foi então que ele se deu conta das violetas que adornavam uma pasta de fundo azul. Azul também era a tinta da caneta enquanto a pouca luz que atravessava os vitrais dava um tom levemente azulado aos papéis que ele devia assinar. Ao longe ouviam-se notas de um velho blues.


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Meias finas com risco atrás

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la esticou as meias finas. O risco da linha precisava ficar bem retinho atrás. O vestido godê duplo, rosa seco, completado pelo colar de pérolas, enfeitava seu corpo magro e elegante. Os cabelos pretos cheio de ondas que ela fazia com sabonete lux, usado como fixador, davam um toque moderno ao look do baile de formatura. Tia Lúcia adorava dançar e eu, menina, ficava só admirando, encantada com o seu jeito de se arrumar e sua exuberância nos movimentos. Ao ensaiar para o baile, me puxou pela mão com uma alegria contagiante e requebrando o corpo até o chão, naquele piso de tábuas largas, me ensinou o roquenrol, novo jeito de dançar que ela aprendera não sei onde. Ela estava concluindo o curso de normalista no colégio das freiras do Sagrado Coração de Jesus, para ser professora. Gostava muito de declamar e desenhar. Algumas vezes me mostrava seu caderno de desenhos folheando bem devagar, folha por folha, passava o papel de seda com cuidado e na folha onde estava o desenho, parava e me olhava como que perguntando a minha opinião. O rosto de uma mulher na janela mirando o horizonte e um homem vestido com uma roupa de artista me chamaram a atenção. Eu via beleza em tudo o que ela fazia, inclusive as telas, que produzia no curso de pintura com a Dona Raquel, naquela casa antiga, azul desbotada, que ficava lá na praça, lembra? Perto do posto Texaco, do outro lado da igreja Matriz? Mas eu achava que o sonho dela mesmo era ser atriz de teatro, porque inventava umas roupas escalafobéticas, juntando várias peças de cores diferentes, colocava flores no cabelo e me arrumava também, com tules coloridos, pedaços de seda. Passava batom e um pó no rosto, daquele que vinha numa latinha redonda fininha, azul claro e beige, Pond’s, que ela me dava quando ficava no finalzinho. Ah! E o perfume cabochard, esse eu ganhei só o vidro com um restinho de perfume no fundo. E aí, então, ela recitava trechos de poemas. Eu era a sua plateia, mas eu gostava muito e sentia falta quando não estava com ela. Ó Alma doce e triste e palpitante! que cítaras soluçam solitárias pelas Regiões longínquas, visionárias do teu Sonho secreto e fascinante! falava com as mãos e com o corpo projetando a voz.


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Tia Lúcia morava na casa da cidade até terminar os estudos. A vovó, o vovô e dois tios solteiros viviam na fazenda e as outras irmãs casadas viviam na cidade. Mamãe me deixava ficar com ela quando o tio Dimas e o tio Renan não estavam. Eles vinham de vez em quando para passar uns dias. Eram dois homens fortes, tio Renan mais quieto e tio Dimas mais conversador, contador de causos. Quando vinham pra cidade, cortavam o cabelo, colocavam roupas novas e iam passear. Parece que o Tio Dimas, o mais velho, tinha uma namorada que morava aqui em Santa Rita e ultimamente eles estavam vindo com mais frequência. Quando eles chegavam eu quase não via a tia Lúcia. E quando a gente ia para a fazenda passar as férias, todos ficavam na varanda esperando para nos receber, numa fileira do mais velho para o mais novo. O vovô era o primeiro a ser saudado. A gente tomava a benção dele beijando a sua mão direita. Sempre achei engraçado isso de beijar só a mão dele. Ele também tinha uma cadeira na varanda que ninguém podia se sentar, porque era a cadeira dele. E quando ele falava, todos ficavam quietos. Tia Lúcia, nestas ocasiões, era a pessoa que nos levava para tomar banho de rio e para uns lugares “misteriosos” como ela dizia. E íamos também visitar a casa das pessoas que trabalhavam na roça. Aquelas casas pequenas de chão de terra batido, limpinhas, com cheiro gostoso, quintal varridinho, fogão de lenha e as panelas brilhando. Como eu gostava dessas visitas. Enquanto tia Lúcia conversava eu me sentava no banco envernizado pelo tempo e ficava quieta apreciando tudo em volta. Me chamava a atenção a vassoura com o cabo de galho fino de árvore e os maços de alecrim amarrados com cipó, que ficava no canto da porta. Tia Lúcia era a única que se preocupava em visitar, como amigos, as pessoas que trabalhavam na fazenda. Na preparação da formatura da Tia Lúcia, roupas novas para todos foram encomendadas para a costureira da mamãe. Eu já comecei a querer uns vestidos diferentes. Para escolher um modelo, olhei todas as revistas que a tia Lúcia me dera e fiquei contando os dias para experimentar o vestido novo. O clube estava todo enfeitado e famílias inteiras iam assistir a cerimônia de entrega dos diplomas das normalistas do colégio das irmãs. Tia Lúcia foi a oradora da turma. Falou bem empolgada como ela falava os poemas. Foi muito aplaudida. E no final todos foram cumprimentá-la e dar os parabéns, pela formatura e pelo discurso muito bem escrito e muito bem falado. Acho que ela deve ter ficado bem contente. Depois da formatura fiquei muito tempo sem ver a Tia Lúcia. Eu ia prestar exame de admissão no início do outro ano e precisava estudar nas férias, por isso, não fomos para a fazenda do vovô neste ano. Passei no exame de admissão e comecei a estudar no colégio das freiras, onde tia Lúcia se formara. O tempo passou e não soube mais notícias dela, depois que ela se formou. Um dia, escuto uns cochichos na sala de casa. Chego mais perto para ver quem estava lá. Era a tia Isabel conversando com a mamãe. Quando me aproximei de onde estavam, tia Isabel me cumprimentou, perguntou como eu estava indo nos estudos e ficou me olhando e esperando que eu saísse, para continuar as conversas ao pé do ouvido. Mamãe assentiu com a cabeça concordando com a Tia Isabel. Eu saí, mas fiquei à espreita tentando ouvir o que elas cochichavam. – Ela pegou uma tesoura e picotou todos os vestidos. Ficou aquele amontado de pano picado. Rasgou em pedacinhos, todos os cadernos de desenho dela – sussurrou a tia Isabel. – Teve a crise quando o papai disse que não podia namorar aquele forasteiro. Mamãe estava com a mão na boca estupefata, chorando e tia Isabel continuou: – Levaram em camisa de força. O Dimas e o Renan que ajudaram a levar. Já tomou umas dez sessões de eletrochoque, mas não amansa. Fiquei triste e meio angustiada por muito tempo, até porque ninguém falava direito o que tinha acontecido com a Tia Lúcia, pois era assunto proibido. Eu ia tentando juntar os pedaços para compreender o que ocorrera. Mas, quanto mais eu tentava entender, mais eu não entendia. Um dia chegou lá em casa uma caixa com uns vestidos que eram da tia Lúcia, pra eu diminuir e aproveitar. Fiquei olhando aqueles vestidos vivos e vendo a tia Lucia neles, declamando e dançando. O tempo passou, mas uma frase ecoa até hoje na minha cabeça. A resposta, quando eu perguntei. – Quando ela volta? – Ela se suicidou. Marithê Azevedo É o nome em arte de Maria Thereza de Oliveira Azevedo, doutora em Artes Cênicas e Mestre em Cinema pela ECA/USP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso (ECCO/UFMT), também atua como cineasta, roteirista e propositora de poéticas urbanas. Dirigiu e roteirizou mais de 30 produções audiovisuais para a educação, 04 curtas de ficção, 07 documentários, além de ter dirigido uma série em 07 episódios para o canal GNT (Canal de TV Fechado). Atuou como jurada no VIII TALLER DE GUION, XI BOLIVIA LAB. É ganhadora de diversas premiações, como o Melhor Documentário Brasileiro do FEMINA (Festival Internacional do Cinema Feminino) por “Memórias Clandestinas”. Atualmente está finalizando o documentário “As cores que habitamos” e teve o roteiro para o longa-metragem de ficção “Religare”, selecionado pelo MINC para desenvolvimento de roteiro que também foi premiado pelo Bolivia Lab e Lab Visões Periféricas. Seus contos foram publicados em Ruído Manifesto e na revista Diversos Afins.


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Maria Ferreira É uma baiana que mora em São Paulo, cursa graduação em Letras-Espanhol pela UNIFESP e desde 2013 administra o blog literário Impressões de Maria. Sua relação com a Literatura sempre se deu no âmbito da leitura, mas recentemente passou a enxergar na escrita uma possibilidade. Além de poemas e contos, está escrevendo seu primeiro romance.


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Confusão Tem que levantar Não quer levantar Da cama, do chão Do fundo do poço Quer entender Como os sentimentos Se tornaram tão confusos Como as pessoas Estão tão confusas Tão difíceis de entender Esse grito de socorro Continua ecoando Os ouvidos atentos O coração As mãos O corpo Tudo se dispõe A ajudar Basta que outro Queira ajuda.

Disfarce Odeio ver seu rosto em todas as caras E odeio essa seriedade na minha. Odeio a linha Que meus lábios fechados formam Porque não sinto vontade de sorrir E sinto um embrulho na garganta. Algo quer sair daqui de dentro Pelos olhos e pela boca. No entanto, Não sai. Retenho. Pintei de vermelho Meus lábios E uniformizei minha pele Como se com isso pudesse disfarçar a dor. Não posso.


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Andreza Pereira É jornalista, mestre em Estudos de Cultura Contemporânea e tem textos publicados em antologias nacionais.

Ma(r)trilinear

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ua cabeça se apoiava no colo da mãe do seu pai, seus pés no colo da mãe da sua mãe. Seguiam viagem no barco. Sua avó-dos-pés tirou dela os chinelos, sua avó-da-cabeça mexia em seus cabelos. Um dia seria dela aquele cheiro de alfazema das duas e o jeito de dizer palavras mais cravado que tabuada de cinco. A avó-dos-pés tinha trabalhado desde muito cedo antes de poder balançar-se com o mar. Criança, tinha passado roupa com ferro de brasa, enterrado semente com os pés e torcido pescoço de galinha quando gente chegasse. Queria casar e sair dali. Queria casar e ter o que é seu. Casou e era tudo branco e bordado, a avó disse. E repetiu, era tudo branco e bordado. A avó-da-cabeça, antes de conhecer água sem fim, morou em lugar em que louça em banheiro não se conhecia e panela era areada até reluzir. Dispostas nas prateleiras da sala rebocada, eram prenda de mulher que se prezasse. Ladeada às panelas, a imagem dela pintada em casal no ano das bodas. Onde morava, as mulheres eram conhecidas pelos nomes de seus maridos. Depois do nome dela, vinha curta preposição e o nome do pai do seu pai. A menina deitada na mulher chamada pelo nome do marido e na mulher cercada de mundo embranquecido não queria se casar. Barco ancorado, ergueu-se e seguiu, pés e cabeça, para fundar cidade. No mar, as mulheres a olharam caminhar enquanto o barqueiro dava meia-volta.


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Regina Ruth Rincon Caires Nascida em Auriflama/SP em 07 de setembro de 1953 (65 anos). Casada, funcionária pública federal aposentada, tem dois filhos e um punhado de netos. Formada em Letras e Direito. Não possui livros publicados. Classificada em alguns concursos literários: Concurso Literário de Jales/SP – 1991; Concurso de Contos Cidade de Araçatuba/SP – 1995, 2011, 2013; Concurso de Contos de Ponta Grossa/PR – 2014; Prêmio Literário Cataratas (Foz do Iguaçu/PR) – 2014; Prêmio Alípio Mendes (Angra dos Reis/RJ) – 2015; Prêmio Professor Mário Clímaco – ALEPON (Ponte Nova/MG) - 2015; Prêmio ALIVAT – Academia Literária Vale do Taquari (Lajeado/RS) – 2015; Concurso de Contos Cidade de Lins/SP – 2015; Prêmio SFX – 2016; Prêmio ESCRIBA – 2016; Prêmio FEMUP de Contos (Paranavaí) – 2017, Prêmio APLACC – Penedo/Ceará – 2017; Prêmio Acrísio de Camargo – Indaiatuba/SP – 2017, Prêmio da Academia Fluminense de Letras – 2018, Prêmio Literário da Cidade de Lins – 2018, Prêmio VIP de Literatura – 2019; FECINTER - 2019.


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DRIBLES DO PASSADO

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igreja era modesta, miúda, suficiente para abrigar os fiéis. Uma capelinha. O restante da praça, área imensa, servia a todos os moradores. Ali se juntavam, aproveitando o sol da manhã, colocavam a conversa em dia, faziam pequenos negócios, e, na parte da tarde, aquela terra batida, com pouca areia solta, pertencia aos moleques. As peladas aconteciam. Todas as crianças da vila frequentavam a escola de manhã. Depois da aula, bastava o tempo de tirar uniforme e engolir o almoço, os pequenos iam brotando feito pipoca nas ruas, nas esquinas, num converseiro danado. O bando, adensado, discutia os times, reclamava da pegada do dia anterior, traquinava novas jogadas. Levava um bom tempo até tudo se ajeitar. Todos descalços, as botinas só eram usadas na escola. Os times dividiam-se: de camisa, sem camisa. E eram camisas de botão. Não existiam camisetas para crianças, apenas os adultos as usavam sob as camisas. Cavadas. O espaço da trave, que geralmente era medido por cinco passos, motivo de muita briga, era delimitado por botinas regaçadas recolhidas do lixo. O gol já havia sido balizado por tijolos, paus, pedras. Depois de muitas cabeças de dedo esmigalhadas, optaram pelas velhas botinas. As passadas eram motivo de muita discórdia. O goleiro reclamava que a perna do contador era grande demais, o artilheiro queria que o mais alto da turma fizesse a marcação. Era um tal de puxar o sapatão para lá e para cá... A bola era de meia. Bola de capotão era artigo de luxo que só aparecia quando chegava algum primo distante. Assim mesmo, só podia ser usada se o primo escolhesse o time, o que não agradava a molecada. Os meninos da cidade grande eram sem ginga, sem malemolência, e sem contar que as chuteiras espantavam os pés dribladores dos moleques da vila. A cada semana a bola era revestida com velhas meias catadas nas casas. Material cada vez mais escasso. E, sob sol escaldante ou chuva mansa, as peladas eram sem fim. Interrompidas apenas quando os raios cortavam o céu e os trovões pareciam tremer a terra. Aí, a correria era tanta que nem os sapatões das traves eram recolhidos. E quantas camisas ficavam para trás! Ai! E quantos puxões de orelha... As crianças nem percebiam o tempo passar, os meses, os anos. Tudo tão simples e bastava. Satisfazia, era prazeroso. De repente, um novo pároco chegou. Por inúmeras vezes, as crianças o avistavam na porta da igreja, com as mãos em conchas protegendo a vista do sol, olhando de um lado, olhando de outro... Nem imaginavam as caraminholas que estavam sendo urdidas dentro daquela cabeça. Não demorou muito e a notícia se espalhou. O padre decidira fazer uma igreja do tamanho da praça. De ponta a ponta! Os meninos, de início, ficaram assustados, mas esqueceram. As peladas continuaram. Continuaram até que um dia, ao chegarem na praça, a escavação estava iniciada. Muitos pedreiros, munidos de pás, trenas, estacas, ocupavam a área do campinho. Dois caminhões carregados de tijolos estavam alinhados na beirada do terreno. Os meninos, desapontados, foram se esgueirando pela velha igreja, calados. Caminhavam e olhavam, com tristeza, a terra vermelha sendo retirada das valas. O padre, na porta da igreja, nem percebeu a decepção das crianças. Naquela tarde, tudo ficou estranho. Nem havia burburinho, silêncio cavernoso. Não houve escolha de time, não houve onde colocar os sapatões, não houve medição... Tudo quieto. Passados alguns dias, outro canto foi arranjado para as peladas. Ficava na baixada, um descampado de capim verde. Sem a menor graça. E a igreja?! Durante quatro anos, com muitas festas, quermesses, leilões, os fiéis buscavam recursos para erguer a igreja do pároco megalômano. E ainda bem que a capelinha foi mantida dentro do esqueleto suntuoso da construção. As paredes começaram a ser erguidas em toda a volta do quarteirão, descomunal, um colosso. Não havia material que bastasse para a construção, um despropósito. Talvez pela visão fantasiosa, pela ambição exacerbada e majestosa do pároco, o bispado entendeu certa patologia naquele empreendimento. Então, o padre foi substituído. Na vila, como herança, restou o esqueleto vermelho, inacabado, inconcebível, da catedral que nunca foi. Os meninos poderiam ter o campinho de volta. Não quiseram. O encanto, para eles, havia passado. Estavam crescidos.


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Tecelã do tempo

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inha avó foi daquelas meninas tiradas do colégio para aprender costura. No seu tempo, julgavam mais importante ser uma moça prendada e capaz de realizar os afazeres domésticos do que avançar no conhecimento acadêmico. E ela, ótima desenhista e apaixonada por Ciências, teve de adormecer suas paixões para se dedicar aos bordados, às receitas e à criação das filhas. Estas, beneficiadas pelas conquistas do movimento feminista, tiveram mais opções, como as de cursar uma faculdade e trabalhar fora. Aprenderam as artes e artifícios da mãe artesã, embora cada uma tivesse herdado apenas um de seus talentos e nem o tivesse desenvolvido tanto assim. Nós, as netas, na linhagem feminina que marcou a minha família, avançamos ainda mais no processo de independência a que a sociedade assistiu. Entretanto, nada me trazia mais magia do que, em criança, abrir a caixa de retalhos da minha avó e me deparar com aqueles pedaços de tecidos, sobras não utilizadas nas roupas por ela orgulhosamente costuradas ao longo dos anos. À medida que meus dedinhos avançavam de forma sensorial por aquela caixa, também eu ia, mentalmente, costurando as memórias da minha avó. A cada retalho, uma história contada: a dos vestidos dos bailes das filhas, a camisolinha do batizado de cada uma delas, o cueiro bordado nas laterais, o vestido de casamento, ou, mais recente, o do usado por ela nas Bodas de Ouro. Eu nunca quis aprender a costurar e, particularmente, achava todas as tarefas domésticas cansativas e entediantes. Aprendi somente a pregar botão, algo que o tempo e o descaso me fizeram esquecer. Hoje percebo que isso nada mais era do que uma tentativa inconsciente de negar as atribuições sempre relacionadas às mulheres e a vida imposta à minha avó. Mas o baú de costura, com os retalhos ali guardados, seguia me fascinando. Quando minha avó partiu, a única coisa que quis pra mim foi a caixa de costura, desejo que despertou espanto entre meus familiares, conhecedores de minha inaptidão manual. O que desconheciam, contudo, era que aquela caixa era quase uma máquina do tempo, capaz de me transportar ao momento em que minha avó a punha no colo, ocasião em que as histórias começavam a ser narradas. Outro objeto que me despertava fascínio era a velha máquina de costura – a máquina, não o ofício. Era quase um fetiche. Preta, de metal, pesada, mas com uma roda lateral cujo movimento me remetia à velha roca em cujo fuso a Princesa Aurora, vítima de uma maldição, se feriria, ficando adormecida por cem anos à espera do Príncipe que a despertaria. Acabei ficando com ela também. Hoje, ao olhar a máquina desativada após tantos anos e que disputa espaço com a estante dos livros de contos de fadas que despertaram um lado romântico e sonhador que nem minha essência feminista foi capaz de aplacar, percebo que minhas filhas, talvez movidas pela onda vintage da moda, sejam talvez capazes de resgatar essa habilidade e possam costurar, com fantasia e prazer, roupinhas para as bonecas de suas filhas, se elas as tiverem. Na velha máquina – que jamais aprendi a usar, mas que ainda enfeita, renitente, aquele canto do meu quarto –, meu imaginário segue cerzindo lembranças e pespontando memórias. De vez em quando, até bordo sonhos. Melancólica tecelã do tempo, só perco a linha quando a saudade aperta.

Tatiana Alves Transgride em poemas, comete delitos literários em contos, crônicas e ensaios e viaja em livros infantis. Rabisca na Revista Samizdat e no site Escritoras Suicidas, já tendo rascunhado nos sites Anjos de Prata, Cronópios e Germina Literatura. Possui trinta e dois livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET/RJ.


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À MARGEM DA CIDADE DE DEUS

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olhas secas no caminho eram indicativas de um lugar ermo, onde o cuidado com o quintal era ocasional. As cores da madeira envelhecida das paredes permeavam as folhas num reflexo castanho avermelhado do habitat, para um “habite-se” minúsculo, de ocupação de tantos. A imagem de um formigueiro seria pleonasmo de espelho. Pisar naquele caminho de entrada até a porta não trouxe o impacto ofegante de abri-la. Da maçaneta pra dentro, um mundo gigante se expandira. O minúsculo cubículo do casebre de madeira úmida, de um só cômodo. Tudo revelava. A imagem daquela família, o cheiro de café no coador de pano, o tilintar ranhoso da máquina de costura e seu pedal pesadamente barulhento; tudo era retrato. Como Polaroid instantânea de um dia a mais na esquina, do lado de cá, à margem da entrada da porta da Cidade de Deus. O ônibus descia no ponto final. Não foi difícil chegar ali. Sentei na primeira cadeira solitária, ao lado do motorista. Assim, era quase garantido ninguém mexer comigo no percurso. – Chegou bem, achou fácil? Sorridente, Maria da Cruz perguntava, e de sorriso aberto só acolhia a quem sorria. Suas costuras pagavam as contas. E mesmo sem alguns dentes, alguns atrás outros na frente, a todos seduzia com a doçura no olhar de acolhimento imenso. Suas costuras pagavam as contas. As de luz e água – porque a TV era gatilho – mas nada lhe dava a redenção de deixar de ser obrigada a pisar no pedal, mais um dia. E outro dia. E mais, um dia. A máquina, o café, o filho contorcido de paralisia cerebral do parto no SUS, os retalhos. A mesa e o pão. Desarrumadas camas. Chinelos espalhados dos outros cinco filhos.Tudo era sua vida. Girava naquele cubículo. O cheiro de bebida só chegava quando o sol ia embora e o pai dos meninos – dizia da Cruz – era bom demais e trazia o pão para casa todos os dias, debaixo do braço. Já que bebi tanta cachaça, pra aguentar tá nessa barra fodida, tanta pedra – comentava com Zé da venda, Pedro, o pedreiro – Vou levar um agrado pra mulher não ter que sair no escuro da manhã, no modo de ter que vir aqui na tua venda, de madrugada comprar pão. Zé concordava com a cabeça. Cansado, Odair, o filho mais velho, chegava tarde. Desconfiado resmungava. Não gosto do pai na cachaça, beira de bar, não leva a nenhum lugar. Só afunda – murmurava – preciso me formar e sair desse lugar. Sim, dar uma casa com sol para minha mãe. O quintal do Sr. Armando é bem úmido, a lagoa é à beira do mangue, e isso só caranguejo gosta! Odair não quer ser como Pedro seu pai, mas todo domingo acorda cedo e roça o terreno do velho português Armando, dono das terras ali da Barra. Maria da Cruz sorri e sentencia ao coar o café – Isso meu filho! Ajuda teu pai. Filho de pedreiro e caseiro, tem que ajudar a cuidar da casa, não é? Né... não! Enquanto os outros quatro não crescem. Um sempre vai precisar de tu mesmo. Mas a costura, as obras, e a roça fazem a panela ter feijão. Odair nunca escuta, mas sim estuda, estuda, estuda muito e faz sim com a cabeça, finge que escuta e sai. Mas não escuta de verdade. Às vezes grita. Espanta. Pedro sai junto sempre atrás, e toca a roçar o pedaço que dá milho. Sempre assim. Os outros quatro limpam, cozinham e ajudam no que sabem. Mas Rita sempre trabalha mais que os meninos. Não para. Todo dia. É tarefa, mais tarefa. Medi a cintura, o busto. Tudo igual ao ano passado. Fica pronto em cinco dias – ela disse. Terminou rápido – pensei. A margem da entrada da Cidade de Deus, estava escurecendo, era bom ir embora – ela disse. Na volta pra casa, me senti virada no ônibus, me senti do avesso. Aquele retrato de realidade me adentrava como Buda havia visto a tristeza, miséria e dor pela primeira vez. Pensei no filme. Até mais! – ela disse. O retrato pulsou latejante aos olhos. Além do filho contorcido e paraplégico da paralisia cerebral do parto no SUS, os outros quatro filhos, entre eles uma menina entre irmãos. E todos se contorciam pra dormir nas desarrumadas camas de colchonetes espalhadas no cubículo. Todo esse espaço, cabia cinco filhos – sendo uma menina – mais um casal, e ainda cabiam a mesa, o fogão e a geladeira, o tanque e a máquina de costura de pedal enferrujado – e ranhoso, mais a televisão e a poltrona, cabiam sim todos no mesmo tamanho e espaço do tal do meu quarto de dormir. Como? O fato é que pouco cabia no tal quarto de dormir. Que geometria é essa? Como assim? Pensava sem achar resposta. O apartamento da Gávea vinha à mente, e nele – naquela cena – tinha apenas uma cama de solteira de uma adolescente de 16 anos, e uma cômoda antiga com gavetas. E, se me lembro bem, ela ainda reclamava que faltava espaço. Que não cabia nada ali. Nada. Até esse dia. Até então o dia, da prova de roupa, na casa da costureira: a Maria da Cruz.


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Paula Valéria Andrade É poeta, escritora, artista visual, diretora de arte e professora universitária em cinema. Recebeu prêmios em Portugal, Itália, EUA, Alemanha e no Brasil: Jabuti e APCA. Em 2016, ganhou “Menção Honrosa” na FALARJ. Tem mais de 20 livros publicados entre: infantil, poesias, didáticos, antologias, contos e livros de arte. “Amores, Líquidos e Cenas” (editora Laranja Original) é seu livro de poesia de 2018; e A “Pandemia da Invisibilidade do Ser” (Editora Algaroba) é seu livro de poesia de 2019, lançado na Flip, em Paraty.


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Alter Ego

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assei pelo corredor e cheguei ao lavabo. Estava numa instituição cultural cujos lavatórios são comuns para homens e mulheres. O espelho pegava toda a parede de cerca de quatro metros, separando os dois banheiros. Do lado oposto, na parede, havia duas máquinas de secar as mãos. Postei-me diante do espelho, passando o fio dental entre os dentes, quando percebi a chegada de um rapaz alto, magro, de óculos redondos e vidro azul, que se posicionara às minhas costas secando as mãos no aparelho. Contrariamente a seu aspecto simples e modesto, seu alter ego tomava o elevador do Burj Khalifa, o maior edifício do mundo, em Dubay. Sentia-se tão autoconfiante que por um milésimo de segundo pensei tratar-se da reencarnação de John Lennon com aqueles óculos redondos e pequenos que viraram moda à época. Mas não. A atitude daquela presença era suspeita: não fora ao banheiro, não lavara as mãos, e mesmo assim estava com uma delas estirada no secador, de costas para a máquina secadora, olhando para o espelho em minha direção, de peito aberto como se estivesse se oferecendo. Estávamos apenas eu, ele e o espelho transmitindo códigos ou mensagens subliminares, que para mim tornaram-se incômodas. Baixei a cabeça para lavar os dentes e direcionei toda minha atenção para apenas um dos cinco sentidos: a audição, exclusivamente para aquele barulho do secador de mãos. Até então eu não tinha certeza se o que olhava era para seu ego inflado como um balão vislumbrando a imagem do que considerava ser poderoso e irresistível ou se sua fixação era eu. Lavei os dentes, levantei para ver-me no espelho, quando tive a certeza. O rapaz havia tirado os óculos e seu olhar eram duas minhoquinhas nos anzóis querendo atrapar um peixe, acreditando que a mulher de meia idade, bonita, atraente e solitária estava à procura de uma aventura. Sim, ele se achava a presença masculina que tiraria o sono de qualquer mulher, seja inocente ou experiente. Talvez pensava em ganhar uns trocos também para enrolar-se nos imaculados lençóis carentes da pobre mulher solitária. Assim permaneceu, olhando-me pelo espelho em tom provocativo e cheio de autoestima. Enquanto sentia-se a última bolacha do pacote, fez-me lembrar de um personagem de antigamente na televisão brasileira, o Zé Bonitinho, que era a caricatura de um homem usando gravata borboleta e uma roupa extravagante, um sedutor muito feio, porém cheio de autoestima. Tive vontade de rir, mas aquilo poderia ser interpretado como uma brecha para ele invadir ainda mais meu espaço. Virei-me, então, para ele com cara de descontentamento e perguntei: – O que é que você está olhando? Minha reação não havia sido prevista por ele. Ficou desconcertado, mas logo se recompôs e disse: – Estou olhando o espelho. O quê? Tá achando que olhava para uma velha como você? Deus me livre. Sentindo-se acuado, Zé Bonitinho fugiu para o banheiro.

Sueli Gutierrez Nasceu em São Caetano do Sul, São Paulo. É formada em jornalismo pela Umesp e iniciou doutorado na Universidade Complutense de Madrid, Espanha, sendo obrigada a abandonar o curso por falta de bolsa de estudos do CNPQ. Após conclusão do curso de jornalismo, mudou-se para a Europa, onde morou na Espanha e na França por cerca de dez anos, e depois em Salvador, Bahia, por 12. De retorno a São Paulo, trabalhou em editora jurídica. Em razão da crise, a editora fechou as portas. Dessa ruptura, renasceu seu objetivo de escrever seus inventos. Em 1984 lançou o primeiro livro, independente, de poesia, “Um Pouco de Mim”. Em agosto de 2018, lançou e participou da 25ª Bienal Internacional do livro de São Paulo, com a obra infantojuvenil “Era uma vez, Conto outra vez”, ganhando o Troféu Mulheres Jornalistas, 2° lugar na categoria “Iniciativas de igualdade e gênero no jornalismo”. É membro do grupo Mulherio das Letras, do Núcleo de Escritores do ABC, da Academia Popular de Letras de São Caetano do Sul e da Rede Mulheres que Decidem.


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De onde não brotam as flores

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aquele lugar, é costume os próprios familiares prepararem seus mortos. Por isso, quando o marido faleceu, a velha escolheu o terno de que ele mais gostava, a camisa, a gravata e colocou tudo em cima da cama. Com uma pequena bacia de água morna e um paninho branco, começou a limpar o defunto. Mais do que uma lavagem, aquilo era uma despedida, os antigos diziam. A oportunidade de materializar o adeus. Chorando, esticou cada dobra. Virilha, pescoço, atrás das orelhas. E viu que não queria deixá-lo ir embora assim. Achou por bem guardar com ela uma parte de quem a tinha feito tão feliz. Escolheu o sexo. Cortou o órgão com uma navalha e pôs em uma caixinha de madeira. Depois, rápido vestiu o homem para que ninguém notasse o que ela havia acabado de fazer. Quando os filhos chegaram, ele já estava com os cabelos arrumados e a barba aparada. Passado o funeral, e todas as formalidades tristes da morte, era hora de pensar no que faria com aquilo que guardara. Decidiu: plantaria em seu quarto. Dentro do guarda-roupa. Não queria que os filhos se escandalizassem. Ou a chamassem de esclerosada. Imagina os netos saberem de uma coisa dessas. Fez tudo sozinha. Um dia depois do enterro, tirou o fundo de madeira do móvel que ficava rente ao chão. Quebrou o piso e removeu um bom tanto de terra. Com todo o cuidado do mundo, colocou o falo no buraco que havia feito e enterrou bem. Regou e jogou um pouco de adubo por cima. Não demorou muito a brotar no lugar uma planta estranha que, miúda, perfumou a casa toda. Não dava flores, mas uma folhagem pontuda, sem cor definida. Todos os dias, agora, ela corta três ramos do pequeno arbusto e prepara em sua banheira uma infusão na qual mergulha antes de dormir.

Flávia Helena É professora de Literatura. Escreveu a peça TRAMA (ProAC 2013), a coletânea “Sem açúcar” (ProAC 2015) e o livro de crítica literária “O fabricante de textos”. Tem textos publicados em diversas antologias. Integra o Coletivo Literário Martelinho de Ouro.


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EQUIDADE DE GÊNERO: VOCÊ PRECISA FAZER PARTE DESSA LUTA!

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eza a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso I: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Mas, afinal, o que é equidade de gênero? Analisando sob o aspecto constitucional, vemos que significa que todas e todos devem ter os mesmos direitos, oportunidades, responsabilidades e obrigações. Ou seja, deveríamos ter as mesmas possibilidades de trabalho que os homens; ter o mesmo salário que eles quando executamos a mesma função; dividir as funções domésticas (responsabilidade primordial no núcleo familiar), dividindo, inclusive a educação de nossos filhos para um mundo sem iniquidades. Além de lutar pelos mesmos direito, combater a desigualdade significa, ainda, reconhecermos as especificidades de grupos sociais diferentes. Há dois mandatos sou a única mulher a fazer parte do Legislativo mato-grossense. Ainda que seja uma conquista pessoal, sinto que é uma vitória ‘pela metade’ – bom mesmo seria se, ao meu lado, houvesse ao menos mais 11 mulheres compondo o Parlamento: formaríamos uma forte corrente feminina, emponderada, consciente, buscando esse futuro de equidade, equilíbrio e respeito para todas. Pesquisas demonstram que a equidade de gênero, quando aplicada ao universo do trabalho, aumenta, de fato, o rendimento empresarial. Então, a igualdade de direitos melhora, em números, a nossa sociedade. Mas temos um dado interessante, que demonstra que nem todos tem acesso à essa informação: as 107 milhões de trabalhadoras brasileiras representam 42% da renda total de trabalhadores no país. Elas movimentam R$ 1,8 trilhões anualmente, mesmo ganhando 24% a menos do que os homens. A média salarial da mulher brasileira é de R$ 1.947,00 enquanto a do homem chega a R$ 2.517,00 – uma diferença de R$ 484 bilhões. Onde está a igualdade de gêneros aí? Saibam que apenas 56,3% das brasileiras ocupam o mercado de trabalho, contra 78,5% de ocupação masculina. São dados como estes que fazem do Brasil (segundo a ONU, em seu Relatório sobre Desenvolvimento Humano, 2017) um dos países cuja condição de vida seja desfavorável para o sexo feminino. Nesta pesquisa, pesou muito o fator da violência doméstica/feminicídio; a desigualdade salarial e participação na vida política. Com relação à violência contra as mulheres, em 2018, segundo pesquisa Datafolha, quase 30% das mulheres brasileiras sofreram algum tipo de violência – desde ofensa verbal a tentativa de estrangulamento. Piorando os índices, o Brasil é o 5º país do mundo com maior taxa de feminicídio. Os índices se elevam se considerarmos um recorte de raça – a taxa de homicídios, por exemplo, entre as mulheres negras chega a ser 71% maior do que entre as não-negras. E quando a lupa aponta para Mato Grosso a coisa fica pior, pois somos segundo estado Brasileiro com a maior taxa de homicídios de mulheres. A informação é do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Sinto que é hora de somarmos esforços. Que é hora de a sociedade reconhecer que, desde há muito tempo, deixamos de ser o sexo frágil, e partimos para lutar pelos nossos direitos. Que é hora de todos observarmos que, se alguma coisa é boa para o homem, também é boa para a mulher. Sigamos, portanto, os princípios constitucionais: se homens e mulheres tem os mesmos direitos e deveres, quero conclamar os homens a ingressarem nesta luta pela conquista da equidade de gênero em nosso País. Porque acredito na premissa universalizada da “igualdade, fraternidade e liberdade”. Eu acredito que #eusouporquenósomos.

Janaina Riva É formada em Direito. Única deputada estadual da atual legislatura em MT, recebeu o maior número de votos entre oXs parlamentares estaduais e, atualmente, é vice-presidente da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso.


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Lindinalva Correia Rodrigues É promotora de justiça em Mato Grosso. O texto reproduzido é um trecho extraído do “Discurso de Posse”, opúsculo lançado em 12 de novembro de 2019, por ocasião da posse da autora na Academia Mato-grossense de Letras.

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aço o registro de que a Academia Mato-grossense de Letras possui 40 patronos, todos homens e que em quase cem anos, ela já foi composta por 165 homens e 15 mulheres, eu sou a 15ª. Desde a Antiguidade Clássica, em Mato Grosso, no Brasil e no mundo, as mulheres sempre tiveram de quebrar paradigmas para assegurar não apenas seu espaço, mas suas vontades, direito ao corpo, a sexualidade e sobretudo a intelectualidade. Sabemos das dificuldades enfrentadas para o alcance simbólico dessa vitória que dedico a todas as mulheres, letradas ou não, vocês são guerreiras e estamos juntas tomando posse, sintam que eu sou vocês e vocês vestem comigo a pelerine. Todas as mulheres que como eu , o mundo não conseguiu enquadrar, mães de vários filhos com pais diferentes, mulheres de ação que não se conformaram com sua sina, aquelas que bailaram na noite escura da incerteza do dia seguinte, que lutaram por uma liberdade que não cabe nas palavras e trabalham diariamente para reafirmar uma competência absolutamente natural no âmbito masculino. Ocupar hoje este espaço de fala como uma mulher, celebrando todas as demais, com a experiência de quem foi a primeira jurista a aplicar a Lei Maria da Penha no Brasil, que há mais de treze anos permanece na função de combater as mazelas da violência doméstica é uma conquista histórica feminina. Segundo o Atlas da Violência 2016, em 2014, treze mulheres foram assassinadas por dia no país, “no ano em que o Brasil comemorava a Copa do Mundo e se exibia como uma nação cordial e receptiva, 4.757 mulheres foram vítimas de morte por agressão”. Ainda que a Lei Maria da Penha já contasse com 8 anos de vigência, a taxa de assassinato de mulheres cresceu 11,6% entre 2004 e 2014. Em 2015, 4.621 mulheres foram assassinadas no Brasil e o Atlas de 2017 registrou que enquanto o número de mulheres não negras teve uma redução de 7,4% entre os anos de 2005 a 2015, o assassinato de mulheres negras aumentou 22% no mesmo período. Já no Atlas de 2018, encontramos a informação de que em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas. O mesmo indicador de 2019, registrou o crescimento do assassinato de mulheres no Brasil em 2017, voltando-se ao patamar de 2014, com treze mulheres assassinadas por dia, com um total anual de 4.936 mulheres vitimadas. Ressaltando que a taxa de assassinato de mulheres não negras cresceu 4,5% entre 2007 e 2017, enquanto a taxa de mulheres negras assassinadas subiu 29,9% na mesma época. A maioria desses crimes aconteceu dentro das residências das vítimas e o estudo constatou o aumento em 17,1% dos assassinatos ocorridos em casa. Concluindo-se que nos últimos dez anos a taxa de morte no interior dos domicílios, vitimando mulheres com o uso de armas de fogo, cresceu 29,8%, escancarando a situação de extrema vulnerabilidade das mulheres em seus próprios lares, que deveria ser um local de especial acolhimento e aconchego. Com esses dados estatísticos que falam por si, marcamos nosso lugar como o 5º país que mais comete feminicídios no mundo, esses crimes de ódio, cuja violência é comprimida atrás dos padrões sociais. No Brasil das disparidades, quem são os considerados iguais? Os sujeitos morais e políticos? São os homens brancos e economicamente prósperos de uma sociedade que ainda opera a exclusão das mulheres da esfera pública e seu confinamento no âmbito privado, palco de suas agruras, visibilizadas pela violência doméstica, amparadas por normas de comportamento sexistas e etnocêntricas, que geram o silenciamento cultural e dificultam a entrada das mulheres na esfera pública e política. Estamos todas sujeitas aos estereótipos que nos limitam a determinados modelos com características incapacitantes para a vida pública, política e de ações decisórias relevantes, nos objetificando, retirando-nos a potência e muitas de nossas características humanas. Mulheres, gênero e raça são temas intersexuais proibidos em um Brasil socialmente racista e machista, marcado pela exclusão feminina, com políticas precárias que além de não abrangerem as mulheres, alcançam ainda menos as mulheres negras, comprimidas por múltiplas estruturas de dominação. A mulher bela, recatada e do lar é um símbolo da inaptidão para a vida pública, padrões internalizados e reproduzidos como forma de alienação e despotismo. Quando elas não se encaixam nos protótipos preordenados viram loucas, bruxas, histéricas, mal amadas e encalhadas, os estereótipos afetam mulheres diferentes de formas diversas, as mulheres negras nunca foram tratadas como frágeis, não são as rainhas do lar, nunca consistiram em rainhas de nada, a não ser no carnaval, de forma coisificada. Somos


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forçadas a conviver com a cegueira coletiva em relação aos nossos dramas, enquanto seguimos recebendo até 30% menos que os homens para executarmos as mesmas tarefas, todo esse desequilíbrio nos mostra a importância de falarmos de nós mesmas e não sermos faladas por outros, marcando a localização de nosso conhecimento, donde haveremos de gritar toda a desigualdade dessas relações dessemelhantes de domínio. Vivo há treze anos assistindo os homens empilharem os corpos sem vida das “suas” mulheres, tentando entender a causa de sujeição delas aos ditames masculinos, que desde sempre tentam calar sua voz através da intolerância e violência, enquanto elas lutam bravamente para corrigir essa rota de desigualdade, erigindo a paridade de gênero como um direito fundamental. Ainda habitamos em um tempo no qual as mulheres pelejam para viver em um mundo sem violência, e continuamos a ser vistas muitas vezes como um corpo, um corpo incompleto, convivendo com elementos misóginos contra nossa intelectualidade. As reivindicações das mulheres incomodam as estruturas criadas por uma visão patriarcal e machista. A pergunta: o que querem as mulheres? Marcou o século XX, tornando-se o nosso século, no qual conquistamos o direito a existência, enquanto o século XXI é caracterizado por nossas lutas por mais do que existir, onde buscamos o respeito ao nosso corpo, escolhas e desejos, contrariando a intolerância em relação ao feminino e ao feminismo, certas de que sermos livres é difícil, pois temos que acordar e pensar todos os dias o que queremos e permanecermos capazes de cunhar nossa própria história, perante esse novo horizonte descortinado. Nessa noite de verbalização de toda tirania e conquistas compartilhadas, venho representar as mulheres que não se adequaram às expectativas impostas pelos papéis sociais geradores de preconceito, violência e morte, que foram capazes de jogar tudo para o alto aos vinte, trinta, quarenta, cinquenta, sessenta anos, em qualquer tempo de suas vidas, para dançarem agarradas a si próprias, na certeza das incertezas. Não, eu nunca consegui ser invisível e silenciosa, tampouco pura, casta, comportada, previsível, boazinha, não aprendi a cozinhar, não me encaixei aos padrões de beleza, não me enxerguei como um ser incompleto em busca da cara metade, sempre com uma mania de pensar além da conta, vivi do amor exagerado que coloquei em minhas ações, no aprendizado dos tombos e no crescimento que a vida nos impõe para tentarmos melhorar não somente como profissionais, mas sobretudo enquanto seres humanos. Por isso as dores e alegrias de todas as mulheres estão vivas em meu coração e tomam posse agora comigo. É interessante, pois quando a mulher se mostra forte e decidida, as pessoas dizem que ela quer ser homem, como se as coisas importantes do universo não nos coubessem. Dedico essa conquista subversiva a todas as mulheres. Sim, a mulher pode! Conviver significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os seres que nele habitam, como a mesa se introduz perante os que assentam ao seu redor, como um espaço de ação onde eu apareço aos outros ao mesmo tempo em que eles aparecem a mim e no qual todos cabemos. Os seres são humanos não somente por reproduzirem suas condições de índole biológica, mas por multiplicarem cultura em última instância. O mundo está entre os homens e mulheres que se sentam ao redor dessa mesa enquanto seres falantes e participativos, que ao agirem para transformar a si mesmos, também modificam o mundo, impedindo-nos de cairmos uns sobre os outros. Ao redor dessa mesa onde mulheres e homens se enxergam, eles se tornam atores e expectadores de alegrias e agoniais mútuas, permitindo uma convivência equânime, um falar entre si, e principalmente um agir em condições de isonomia. É preciso reivindicar aos humanos a coragem de cuidar da liberdade do mundo, da cultura, da literatura, da história, da poesia, do teatro, das músicas, de toda essa arte deixada e que também deixaremos para os que nos sucederem. Eis-me aqui confrades e confreiras, me apresento para servir e lutar pelos interesses genuínos da cultura de nosso Estado e da aproximação dela com a comunidade, e consignando derradeiramente a minha precípua causa, encerro com a sabedoria perspicaz de Eduardo Galeano: “Na selva do Alto Paraná, as borboletas mais lindas se salvam se exibindo. Abrem suas asas negras, alegradas por pinceladas vermelhas ou amarelas, e de flor em flor borboleteiam sem a menor preocupação. Depois de milhares de anos de experiência, seus inimigos aprenderam que essas borboletas têm veneno. As aranhas, as vespas, as lagartixas, as moscas e os morcegos olham de longe, mantendo prudente distância. No dia 25 de Novembro de 1960, três militantes contra a ditadura do generalíssimo Trujillo foram espancadas e atiradas num abismo na República Dominicana. Eram as irmãs Mirabal (Minerva, Patria e María Teresa). Eram as mais lindas, por isso chamadas de borboletas. Em memória delas e de sua beleza indevorável, cria-se a data de 25 de novembro como o Dia Mundial da não Violência contra a Mulher. Ou seja: contra a violência dos Trujillinhos que exercem a ditadura dentro de cada casa”. Que nossa fala nunca se cale! Muito Obrigada. Lindinalva Correia Rodrigues Cadeira 37 – AML


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ano 2 janeiRO/2020 edição especial LUCINDA PERSONA: 25 ANOS DE POESIA


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editorial Eduardo Mahon Editor Geral

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iante da velocidade com que a arte contemporânea é demandada, observar a produção de uma poeta voltada para um conjunto temático nuclear não deixa de ser uma surpresa. Lucinda Persona, escritora mato-grossense, manteve-se distante do experimentalismo que fustigou seu tempo, o concretismo, o intensivismo, a limpeza da página e a performance não verbal. Preferiu, ao contrário, perfilar-se na resistência oposta por Sophia de Mello Breyner Andersen e Orides Fontela. O esforço literário de Persona não se concentrou nas experiências com a forma e sim noutro cariz: a reafirmação da autonomia da arte por meio da apropriação simbólica do corriqueiro e das ciências biológicas das quais é egressa. A fuga dos temas clássicos ocorreu em fins do século XIX. Talvez Baudelaire tenha dado origem ao big bang conceitual que desatrelou a arte dos antigos compromissos, seja estéticos, seja temáticos. Tudo serve à arte, mas a arte se mantem independente do utilitarismo. Essa foi a chave do modernismo e quem não o entende escreve, ainda hoje, para agradar os mortos. A partir de Baudelaire (e também de Mallarmé), não houve outro caminho a não ser inaugurar uma sucessão de transformações que, de vanguarda em vanguarda, criou uma ambivalente tradição de rupturas. Daí que os leitores têm a mesma surpresa com as guinadas de Oswald de Andrade e também com o texto imune à ansiedade vanguardista, opção estética da nossa homenageada. Mesmo gravitando em torno do núcleo com o qual pautou a poesia, Persona alinha-se ao novo. Como mencionado, ao subordinar o quotidiano para ressignificar a temática atemporal (morte, vida, amor, perda), a obra da escritora está imersa no caldo modernista. Quem melhor mapeou assuntos e significados da poesia de Lucinda foi a estudiosa Marta Cocco. O viés utilizado na tese de doutoramento foi o da mitocrítica a buscar o para-

lelo entre as imagens criadas por Lucinda Persona a partir de elementos prosaicos com antigas raízes simbólicas que se relacionam aos mitos fundacionais da civilização ocidental. A lupa da pesquisadora comprovou a obsessiva estratégia da escritora: antropomorfização de insetos, exploração de fatos quotidianos, projeção simbólica nos alimentos, marcação temporal na transformação do corpo. O mérito da obra de Lucinda Persona extravasa esse rol temático. É preciso enxergar o movimento artístico de forma ampla, contextualizando-o no diálogo que faz com a tradição literária atual e precedente. Ao escrever, Persona acredita que “tudo é matéria prima”, isto é, não vê limite na apropriação artística. Aí sim reside a filiação da escritora ao vigoroso tronco da modernidade. Besouros, formigas, fuligem na janela, um pé de couve e a sopa de legumes compõem o rompimento com o mero figurativo. Ao se apropriar do prosaico, a escritora sublinha a importância da poesia como ente autônomo. É arte pela arte, uma tendência tão consagrada quanto criticada no mundo contemporâneo. De um lado, os detratores apontam para o descompromisso político e, de outro, os admiradores ressaltam a valorização da arte independente. Os poemas de Lucinda não estão a serviço da evocação, nem de lugar, nem de pessoas ou acontecimentos, aposta estética que assegurou a prevalência qualitativa na geração literária da qual faz parte. Mais curioso é que, para chegar ao desiderato, a escritora não flerta intensamente nem com a metapoesia (tão natural em Leminski e Salomão), nem com a crônica do trivial (própria de Drummond e Bandeira). Persona seguiu os passos dos modernistas, mas criou um arcabouço simbólico próprio. Para alguém que não entenda a envergadura literária da nossa homenageada, basta dizer que Lucinda Persona é uma escritora que luta pela arte em si. Nessa batalha, distinguem-se os melhores.


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expediente Direção Geral e Edição: Eduardo Mahon Colaboradores desta edição: Lucinda Nogueira Persona, Ruth Albernaz, Cristina Campos, Eduardo Mahon, Marli Walker,


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SUMÁRIO 2 6 34 38 40 44 48 54 56 58 62

Editorial Lucinda Nogueira Persona

Ruth Albernaz Cristina Campos Eduardo Mahon Marli Walker Marília Beatriz de Figueiredo Leite Tereza Albues Carlito Azevedo Marta Cocco Matheus Guménin Barreto

Marília Beatriz de Figueiredo Leite, Tereza Albues, Carlito Azevedo, Marta Cocco, Matheus Guménin Barreto. Projeto Gráfico/Diagramação: Roseli Mendes Carnaíba Artista Visual Convidado: Ruth Albernaz


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Lucinda Nogueira Persona Nasceu em Arapongas, PR, e reside em Cuiabá, MT. É poeta, escritora e membro da Academia Mato-grossense de Letras. Graduada em Biologia (UFMT), Mestre em Histologia e Embriologia (UFRJ), com estágios profissionais na Universidade do Chile. Professora na Universidade Federal de Mato Grosso e Universidade de Cuiabá, até se aposentar. Livros de poesia publicados: Por imenso gosto, Massao Ohno Editor, 1995 e Carlini & Caniato, 2018 – Prêmio no Concurso Cecília Meireles (1997) da UBE. Ser cotidiano, 7Letras, 1998. Sopa Escaldante, 7Letras, 2001 – Prêmio Cecília Meireles (2002) da UBE. Leito de Acaso, 7Letras, 2004. Tempo comum, 7Letras, 2009. Entre uma noite e outra, Entrelinhas, 2014. O passo do instante, Entrelinhas, 2019. Na literatura infantil é autora de: Ele era de outro mundo, Tempo Presente, 1997 e A cidade sem sol Razão Cultural, 2000. Participou das antologias: Na margem esquerda do rio: contos de fim de século, Via Lettera, 2002; Fragmentos da alma mato-grossense, Entrelinhas, 2003. Roteiro da poesia brasileira: Anos 90/ [Seleção e prefácio Paulo Ferraz; direção Edla van Steen]. – Global, 2011. Integrou as Revistas: Poesia Sempre – Ano 9, n. 14 (ago. 2001). Fundação Biblioteca Nacional, Departamento Nacional do Livro, 2001. Lado 7 – n. 4 (out. 2012), 7Letras, 2012. Revista Brasileira – Ano V, n. 87 (abr. mai. jun. 2016). Academia Brasileira de Letras, 2016. Revista comemorativa dos 95 anos da Academia Matogrossense de Letras (1921-2016). Carlini & Caniato Editorial, 2016. Direção/organização de Elizabeth Madureira Siqueira; Marta Helena Cocco; Eduardo Mahon.


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Os poemas foram extraídos do livro Por imenso gosto, 1995/2018


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EXPOSTA À TARDE Exposta à tarde nos lugares públicos e ruas apinhadas uma esquina não tem mesmo nenhum significado A banda encardida da sua dobra o seu dobrar de tudo ou nada a desproporção das sombras atrás dos seus corpos apressados.

CLARÕES DE SOL OU DE LUA Clarões de sol ou de lua invadem minhas zonas de impedimentos derretem meus centros modelam meu plasma em túmidas expectativas Retiram um sumo adocicado dos meus sonhos.

VEIO UM VENTO Veio um vento de tendências contraditórias e revirou o que era deslocável e estava pelas ruas Foram para o espaço folhas secas e papéis Papéis e folhas secas voltaram para o chão Os cães perderam o rumo perseguidos pela fúria dos galhos impelidos mas eis que todos retornam e agora são os galhos pelos cães perseguidos E caíram frutas maduras e verdes frutas caíram Os raros transeuntes debandaram uns carros queriam chegar... a cem por hora Os pássaros não se governavam As janelas batiam palmas e as almas entravam por elas O mundo iria acabar?

POR AQUI Por aqui tudo quase se acaba é no auge da seca – em agosto quando pássaros de carvão piam por chuvas e o pó e a fumaça regulam claridades Quando o cheiro do mato que queimou lá no cerrado entra nas casas e deixa um traço de cinzas em cada rosto e nenhum lugar é horizonte.


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AI DAQUELE QUE FICAR SÓ Na vida a dois há uma ordem que não muda Um sempre irá menos longe do que o outro Quem fica (único habitante da casa) não raro acorda antes da alvorada pedindo contas do que se passa Não há criança dormindo Não há café a ferver no fogão Só há o que é maior do que ele

Ai daquele que ficar só.

O VÍCIO DA ESCURIDÃO POR EXISTIR Há noites que (à semelhança de frutos sem sementes) nascem assim: sem estrelas numa ordem diferente no timbre da incerteza o vício da escuridão por existir o mundo feito das secretas coisas sombrios refúgios do amor Dos mistérios (o quanto possível) o menor

DO MESMO PARTO O que é que se vê no topo do caos? Estrelas festivas buliçosas (nenhuma se cansa primeiro) Estrelas faiscantes tiritantes (como se pode dizer diferente?) Estrelas tão semelhantes entre si contornos alusivos ao tema dos espinhos Estrelas cada uma repetindo o que a outra tem (filhas que do mesmo parto nasceram) Estrelas Estrelas uma é amarela e a outra também.

PÊSSEGO EM CALDA Alguma coisa está errada? O que é que me assombra na hora do crepúsculo se o sol nadando em luz parece um pêssego maduro em dulcíssima calda?


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Os poemas foram extraídos do livro Entre uma noite e outra, 2014


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SILÊNCIO

13 “Não se sente senão o que se passa dentro de casa”. Fernando Pessoa

Inconformado com a nova realidade, Hans acordou muito cedo. O painel do relógio digital de cabeceira marcava exatamente quatro e meia. O tempo estava ali, na linguagem numérica, e resplandecia em verde luz na quieta paisagem do quarto de casal. Os olhos de Hans, viscosos, tentaram se acostumar às sendas da escuridão. Mais uma vez, sentiu-se um tanto perdido no calendário, embora o calendário nada significasse. Desinteressado da madrugada sem lua, reuniu forças para a jornada escolhida. Nunca se ligara muito na rotina cósmica, nesse tipo de ressurreição da luz, a cada novo dia. Assim, o passo seguinte, não sendo o mais difícil, foi examinar o que era visível. Convencer-se de que se reencontrara, de que poderia ir e vir e realizar seus desejos. Devagarinho, os músculos ainda meio adormecidos, afastou a coberta e sentou-se ao pé da cama. Não queria, de modo algum, desfazer a ordem e o silêncio. Aliás, começava aí sua fervorosa operação silêncio. Réplica de tantas outras. Ele sempre tivera esse cuidado, o de evitar ruídos, evitar que Maria, sua mulher, acordasse tão cedo. Principalmente num domingo. Hans observou-a longamente ali no leito. Tão dócil. A velhice ofertada. O esboço do corpo sob a coberta, parecendo um tépido saco de lembranças. O travesseiro esmagado por uma veemência desconhecida. Para ele, era imperioso velar essa mulher. Articular-se em torno dela. Estender a mão, suavemente, e atravessar o tempo para, afinal, não ter coragem de tocá-la. Ela dormia e ele, dentro de um ofício repetido, cuidava do silêncio. Tomava as mais diversas precauções para ser leve, poroso, ou melhor, para não ser corpo. Tateando, satisfeito porque os movimentos não lhe estalavam as articulações, Hans encontrou os chinelos. Ergueu-se imaginando que talvez fosse um ausente cuja reestruturação se tornara possível. Em algum lugar, um cachorro latia. Mas era tão longe, tão longe, que não se viu ameaçado em sua missão. Com extrema lentidão, dirigiu-se ao banheiro. Caminhou através da penumbra num curto trajeto sem obstáculos. Na verdade, ele seguia uma velha trilha, impressa no piso. Uma trilha de muitas idas e vindas. Sem acender jamais nenhuma lâmpada. Habituara-se ao escuro. Quando chegou ao pequeno aposento de banho, mal enxergou sua sombra no espelho. Quantas e quantas vezes ele já vivera essa cena, a sensação de se ver aprisionado, a sensação de ser orgânico e inorgânico ao mesmo tempo. O espelho proporcionava-lhe agora um retorno muito débil de velhos gestos mecânicos. Esfregou os olhos. Não queria fazer interpretações mais precisas de sua figura. O clima estava ameno. Era maio. Abafou uma tosse e voltou-se para o vaso sanitário, branco, brilhando na escuridão. Aproximou-se, urinou e suspirou num alívio sem limites. Demorou um pouco com seus órgãos pendentes na mão em concha. Acariciou a diferente matéria. Sentiu uma espécie de desorientação. Entendeu, nesse instante, o que a vida tinha por fora e por dentro. Embora devesse, não acionou a descarga. Era ruidosa demais. E ele estava a serviço do silêncio. Indeciso, soltou a água da pia num finíssimo fio. Desconfiou da quietude da água. Será que sonhava? O sabonete, verde e de alfazema, encheu-o de terno conforto. Se algum dia tivesse lido a Montanha Mágica, saberia que outro Hans, o Hans Castorp, em certa manhã, em outra circunstância, usara um sabonete assim. Através da pequena janela de vidro, pousou os olhos nas nuvens rosadas do Leste. Quase se deixou invadir pela harmonia do infinito. As folhas de um coqueiro estavam imóveis. Sobre o conjunto urbano ao qual pertencia, o sol iria desferir os primeiros raios. Um dia de grandes dimensões estava para apontar. Um dia igual a muitos que se passaram e, provavelmente, igual a outros que ainda viriam. Nesse momento, Hans cobriu de espuma o pálido rosto. Demorou no afeto de espalhar. Depois, enxaguou. Por mais estranho que se sentisse, achou que recriava um mundo todo seu. Escovou os dentes. Penteou-se. A realidade parecia aceitá-lo plenamente. A casa começou a mostrar consistência. Conseguiria fazer o que sempre fizera? Acreditou que sim. Dono era de uma forte vontade. Como num ritual interminável, viveria sua fantástica verdade, recolheria os jornais, prepararia o café, regaria as plantas do jardim. Bem mais tarde, quando Maria despertasse, tomariam o café da manhã ao som do próprio mutismo. E o domingo transcorreria. E viriam outros domingos. Todos desertos. E ele, insistente, repetiria os gestos pontuais e as obrigações da casa, andando para todos os lados, subindo e descendo, descendo e subindo. Sentiria menos horror da exclusão. Hans suspirou. Nada se ouvia. Suas estratégias e manobras surtiam efeito. Mas já era hora de sair dali. E foi lentamente, pé ante pé, que fez o caminho de volta. Passou pela cama, onde a mulher dormia profundamente. Avançou até a porta que se comunicava com uma sala que se comunicava com outras salas. Deu os dois giros costumeiros na chave, abriu e voltou a fechar com extrema cautela. Antes de sair para a extensão infinita da casa, antes de ser arrebatado pelo nada, Hans havia cuidado amorosamente para que a sempre cansada e amada Maria, sua viúva, não acordasse tão cedo. In: RDM, 28, 05 out. 2003. p 34.


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NA PALMA DA MÃO Olho de perto a profusão de sulcos na palma da mão. Três são maiores e profundos, uma infinidade de outros são menores e mais rasos. Que paisagem essa! Rosada como a luz da aurora. Trincada como um espelho apedrejado. É quase um deserto, as dunas se elevam serenas, porém, não raro, brota-lhe uma água subterrânea. Olho com paciência as ranhuras fininhas e completamente enlaçadas. (É preciso ter paciência com certos padrões de melancolia). Acompanho os grandes sulcos, aqueles nos quais a cigana lê o futuro. As curvas a perder de vista. Vou e venho como num passeio de mulher sem destino. Quem sabe o que se passa por esses caminhos?

VOU À PADARIA Por toda parte, no meio e nas fronteiras da cidade o enfraquecido sol ao fim da tarde do mais seco inverno e berinjelas no céu (lugar tão vago) enquanto paro o carro numa vaga rente ao meio-fio e simplesmente vou à padaria – aonde sempre fui. Um vento fresco, um pouco forte (e agindo em golpes como golpes do destino) se joga contra meu rosto tão deserto e livre e uma sombria boca onde as palavras só se afogam.

DO ORVALHO SAEM AS LESMAS De dentro do orvalho saem as lesmas extraviadas nuas e tímidas de um parentesco. Músculos sombrios e olhinhos vacilantes à vista do mundo junto ao chão. A parte mais sensorial delas sentindo orientando o rastejar mucoso. Usando os advérbios todos. As lesmas escorregam sem pressa belas e sinistras úmidas e lascivas como o arrastar da morte sobre vidas ou um passar da língua sobre a cria. Percorrem metros e metros segregando a baba fina em torto caminho. Depois estorricam no incêndio das paredes. No futuro de uma lesma está o sol de sua morte.

DE SER TARDE Todas as violetas e demais flores dessa mesma cor refletidas no poente. Labaredas roxas de nenhum fogo. A grande tática de ser diferente em certas tardes de ser tarde em certos momentos um estado e nunca permanência.


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Os poemas foram extraídos do livro Ser cotidiano, 1998


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O SEGREDO

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im de carro. O cemitério se deita no chão da colina. Há meses não venho. Tudo parece calmo nesta tarde próxima do Natal, embora não me acalme o perfil de pedra da cidade que vejo ao longe. Dos túmulos, perdidos no chão, só se avistam as lápides de granito ou mármore. Ou apenas de cimento. Fiscalizo justamente o retrato de mamãe e certa vivacidade que parece brotar de seu semblante. O semblante de quem sempre escondeu alguma coisa. Só isso. Ela continua séria com sua blusa de bolinhas. E o cabelo não cresceu. Ela continua guardiã e eterna advogada de sua própria experiência de vida. Do sol quase posto, resta uma luz estranha, flutuante, fremente. A brisa flui com seus efeitos benéficos. Sobre o verde gramado, velhas folhas se espalham. Dói um pouco fazer este inventário, explorar esta paisagem reveladora da dinâmica do universo, dos laços entre atmosfera e terra, das trocas entre os seres e o solo. Uma paisagem reveladora do destino da matéria. E da enorme distância entre o homem e o céu. Tudo poderia ser pensado sem nenhuma inquietação, sem nenhum movimento, mas a vida é justamente o contrário. Assim, retiro os sentidos para um outro tempo, para uma outra ordem natural de coisas. Lentamente, abro as portas do passado. Tudo está longe, mas ainda consigo ver e sentir. Eu estava no fim da infância. Uns dez anos de idade. Acentuada sensação de pânico. Pânico por tudo, pânico por nada. E urgência de futuro. Foi num dia de Natal, numa inesquecível tarde de Natal, depois do almoço, que a frase de mamãe, quase cochichada para alguém, caiu nos meus atentos ouvidos: “Tenho um segredo que vou morrer com ele”. Segredo? Foi um choque. Meu Deus, minha mãe tinha um segredo. E a palavra ficou existindo soberana. Intolerável. Segredo? Do resto, o mundo ficou vazio. O que seria? Com certeza algo muito sério, tal o tom de sua voz denunciara. Ela parecia ferida de alguma verdade. E feriu-me também. A partir daí, só um desejo me movia. Conhecer aquele segredo. A cada batida do meu coração excitado, a pergunta era a mesma. Minha imaginação rodopiava pelas ruas, cidades e mundo inteiro, em busca de alguma coisa surpreendente. Alguma coisa que pudesse merecer tanto sigilo. Usei os melhores recursos para soltar a língua de mamãe e fazê-la contar o que planejara guardar para sempre. Seria segredo de amor, morte ou loucura? De vez em quando, aproximava-me com minha bisbilhotice, conversas vagas, indagações sinuosas. Instigações. Pedia-lhe histórias de seu tempo menina, de seu tempo mocinha. Ela caía na trama. Confessou certa vez, cheia de amarga doçura, que sua irmãzinha morrera de fome. E tudo por orgulho do pai. Ele, numa fase difícil da vida, recusara-se a pedir leite ao fazendeiro vizinho. A mãe, seca de leite, dava papa de trigo e água ao bebê. O bebê se foi. Mas é triste, pensei, e tão forte que perguntei à queima-roupa: “Esse é o segredo que você ia levar ao túmulo”? Surpresa, ela respondeu: “Não, filha. Não é esse, é um muito maior, muito maior”. E ficou mais séria do que nunca. Caí num abismo. Fiquei maluca de impaciência. Mas deixei o tempo passar. Uma vez ou outra, uma artimanha para descobrir o que mamãe considerava irrevelável. “Você casou esperando criança”? Sussurrei assustada certa vez. “Deus me livre, menina”. “Você traiu papai”? “Credo! Filha. Nem pense uma coisa dessas”. E assim prossegui no meu inquérito pueril, ano a ano, até me adaptar aos limites do respeito à privacidade daquela mulher tão austera. Bem mais tarde, depois de muitos percalços, tanto na vida dela quanto na minha, quando ela se encontrava num delicado estado de nenhuma saúde, quando sua alma sufocava nos profundos silêncios que antecedem um grande transe e quando tão pouca coisa eu sabia dela, nesse instante, ainda fiz uma última tentativa, uma leve tentativa movida por delicada oratória. Hoje, nesta tarde próxima do Natal, acerto as lembranças com certa ansiedade. Uma borboleta, pequena e alaranjada, minúsculos pontos negros nas asas, gira frenética em torno de uma flor do gramado. Para, torna a girar, numa adoração necessária e substancial. Penso nos segredos intocáveis, penso no mundo feito de mulheres que economizam histórias, no mundo feito de mulheres misteriosas que se vão para sempre com seus mistérios. Extasiante, a brisa mantém orientação norte-sul campo afora. Já depositei na sepultura a braçada de gérberas. Olho o vazio. Olho as nuvens agora douradas. Que segredo em vão esperei e mamãe levou consigo? Que segredo foi esse que eu quis tanto roubar de sua sagrada e tenaz vontade de guardá-lo? O que ela nunca me disse, até hoje me persegue. In: RDM, 39, ano IV, 21 dez. 2003, p34.


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TATURANAS No coração do cerrado afetado pela seca o fogo surgiu de súbito de um desconhecido foco inicial tomando um rumo qualquer.

PEQUENO SER VIVO (deste vazio eu não morro) eu pequeno ser vivo as vértebras doendo olhando o firmamento começa neste instante a esboçar-se a noite é raro que eu não dê atenção ao fato é raro que eu não chore um pouco é raro que eu não tenha um desejo diante do crepúsculo num canto particular do mundo reconheço que muitos e muitos já publicaram o assunto e felizes foram e felizes foram que modo simples e maior existiria para eu ser feliz como aqueles? qual é ainda não sei.

No inferno que se fez o reino animal se pôs em fuga. Seriemas e lagartos (seguidos por labaredas) Pediam passagem à vida. Ao longo de uma estrada numa única direção, desesperadas, também taturanas fugiam centenas de taturanas enfileiradas fugiam com seus corpos sanfonados num insuportável esforço de sair de dentro delas mesmas.

SOPA Os ossos perderam cálcio e densidade. Sem resistência, meio inclinada, ela se entrega à sopa escaldante ao aroma errante aos vapores fatídicos que se espalham de uma fonte de verduras junto ao rosto de tal modo que embora brilhe o sol nos longes do horizonte escuras nuvens se formam nas latitudes mais próximas do coração.

Os poemas foram extraídos do livro Sopa Escaldante, 2001


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ESTRANHO SONHO “Algunas veces cazamos vampiros. No son repulsivos ni malvados como cuentan las leyendas”. Maria Rosa Lojo.

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a verdade, algumas vezes encontramos vampiros e então percebemos sem a menor dúvida que o mundo é absurdo. O mundo é cheio de pessoas absurdas, de coisas fantásticas e fatos imprevisíveis. Nesta história, os personagens são particularmente surpreendentes. Levam a crer que nasceram um para o outro, pois, sendo belos, seus únicos e incomodativos defeitos se justapõem e se complementam. Eram dez horas da manhã em Lisboa. O voo Lisboa-Roma iria durar o tempo suficiente para que ela se desfizesse de uma certa aflição. Era o que pensava, no momento em que percorreu a largos passos o túnel que a conduziu ao interior do avião. Seguiu decidida para o assento indicado no cartão de embarque. Acomodou o corpo, mas não o espírito. Fazia tudo com paixão. Estava em busca de algo totalmente novo. Indefinível, ainda. Talvez algum prazer que pareceria inusitado aos olhos do comum mortal. Talvez algo como a verdade atrás do sonho. Do estranho sonho que costumava lhe acontecer ao cruzar a espessa fronteira do sono. Endireitou-se na poltrona. Vestia-se com certo toque emotivo. Conjunto jeans de um azul profundo. A blusa ampla, toda aberta, deixava entrever uma camiseta florida colada ao corpo esbelto. Era jovem, extremamente bonita, cabelos longos, escuros e volumosos, contrastando com a pele muito alva. Os olhos, entre o verde e o dourado, eram carregados de um mistério inútil. Qualquer um que a olhasse, nem precisava ser com insistência, descobriria de imediato um outro


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detalhe do seu corpo. Uma parte anatômica com a qual ninguém se importa, mas que nela chamava a atenção. Era seu pescoço. Sim, o pescoço. Estranhamente longo. No entanto, fascinante em sua textura de seda, em sua transparência e pequena ondulação de pássaro. Na família, ganhara apelidos. Cisne, garça... O avião já estava lotado. Ao seu lado, sentou-se um menino. Os pais ocuparam duas poltronas próximas, na lateral direita. Ela sorriu levemente. O garoto correspondeu com um olhar tranquilo, logo desviado para a pequena cruz de rubi que ela trazia na corrente em torno do pescoço. Finalmente, a decolagem dentro do horário. Ela experimentou a sufocante sensação de que estava perto de se desintegrar. Depois, quando o aparelho se posicionou, sentiu-se flutuando e aí sim, acalmou-se. O olhar clorofilado perdeu-se nas orientações de voo. O pensamento foi ao passado mais próximo. Viu-se em sua clínica. Viu seu casamento desfeito após um ano apenas de convívio. Ela concordara quando ele dissera aos quatro ventos: não nascemos um para o outro. Na lembrança, a figura do marido. Amargou o instante. Respirou fundo. Mudou o rumo do pensamento. Lá fora, uma rota de flocos de algodão no fulgor do sol. De vez em quando, distraía-se com o garoto. Não fazia muito, ele derramara o refrigerante. Era maravilhoso viajar para o desconhecido. Estar num vôo assim, dentro de uma grande mariposa de alumínio, avançando em direção ao céu da Itália, desligando-se de sua terra tropical, de sua família, seu povo e sua língua. Suspeitava, sem saber exatamente a razão, que Roma era a velha cidade do seu sonho recorrente. Desde menina, sonhava as mesmas cenas. Via-se diáfana, voando na penumbra, ora sobre um rio, ora sobre ruínas. Depois, em chão firme, percorria ruas silenciosas, desertas. Encontrava uma fonte. Mais ruas estreitas. Finalmente, uma casa em destaque. Alta, plangente, com sala enorme, espelhada, escadaria de mármore. Na sala, esperando-a, um homem de beleza indescritível. Sorridente, ele se aproximava e a beijava. No pescoço. De início, levemente, mas a pressão do beijo crescia, crescia e tudo ficava nebuloso. O sonho terminava quando ela se olhava no espelho e percebia dois sinais rosados na garganta, bem junto da jugular. Sonho obsessivo, inapreensível. A voz calma do comandante anunciou a chegada. Roma, eterna e triste, descortinou-se aos seus pés. Desembarcou em Fiumicino. Recolheu as malas, chamou o táxi, chegou ao hotel. Seu quarto, o 762, tinha cores claras, lindos móveis e leves cortinas açoitadas pela brisa. Sua maior sensação era a de que iniciava vida nova. Nos primeiros dias, as peregrinações comuns das rotas turísticas. Até visitou outras cidades: Florença, Veneza, Gênova, Pisa. Em sua décima terceira noite, acordou assustada. Quarto às escuras. Voltara-lhe o sonho. Ligou as luzes. Tomou água. Procurou instintivamente o espelho. Alívio. Nada errado se passara. A vida seguiu. Mergulhou no tempo. E foi o tempo que lhe ofereceu um mistério particular. Chegou um momento em que Roma começou a chamá-la com brados silenciosos. Eram apelos que vinham de todas as partes, de todas as vias, de todos os lábios de mármore. No seu vigésimo nono dia, acordou bem-disposta. Il sole entrando no quarto e na alma. Ligou para os pais. Leu. Arrumou-se. Almoçou no restaurante do hotel. À tarde, resolveu caminhar, simplesmente caminhar, sem rumo, sem pressa. Numa loja da Via Sistina comprou um batom. Chegou até a Piazza Navona. Andou mais. Fontana di Trevi. Mais ainda. Che giornata memorabile. Deu-se conta que percorria as estreitas ruas de Trastevere. A noite começava a trazer seus véus. Mas ela não tinha medo da noite. Estava sim, faminta. Desejou o restaurante mais próximo. Avistou-o, momentos depois, no dobrar da esquina. Era um grande e morto edifício. Aproximou-se numa súbita excitação. Empurrou a solene porta. Viu-se diante de uma imensa sala vazia, escada de mármore ao fundo, tapetes vermelhos, como sangue. Espelhos. Contemplou-se. Estava lilás como uma orquídea. Parecia uma virgem desgarrada da Capela Sistina. Uma linha tênue, azulada, desenhava-se em seu pescoço. Embora não houvesse ninguém, dirigiu-se a uma das mesas. Não se sentou. Estava inquieta. Talvez fosse cedo para jantar. Quando já se decidira a sair, surgiu-lhe, como por encanto, o garçom. Sente-se, temos o melhor cardápio de Trastevere, disse ele, num tom ansioso. Ela não se moveu, de puro assombro. Ficou hipnotizada. Nunca vira um homem tão belo quanto aquele. Tinha olhos também verdes, que emitiam uma luz antiga como de estrela. Olhos fitos, não exatamente no rosto dela, mas na garganta. Ela sentiu desejos de perguntar àquele homem: há quanto tempo você me espera? Ele, aproximando-se, respondeu fascinado: há séculos. Gerou-se uma tensão. Ela só havia pensado, não falara nada. Não sabia o que estava acontecendo. Sentiu o coração accelerato. O sangue fluía irregular em suas artérias. Pescoço e púbis latejavam. Fez menção de sair. Ele impediu, aproximou-se mais e sorriu. Esse sorriso foi uma espécie de revelação. Ela vacilou, chegou a detestar o que viu, ou melhor, ficou atordoada, tão exagerado lhe pareceu. E aceitável. Dentro daquele sorriso, brilhavam dois caninos, levemente pontiagudos, branquíssimos, cheios de urgência. Isto, foi só o começo. Muito tempo se passou. Até que um dia, como figuras de sonho, ela e ele foram vistos num barco, no Mar Tirreno, a caminho de Capri, a ilha do amor. Mas essa, essa é outra história. In: A Gazeta, Cuiabá-Mt. 13 set. 2001. p 3E.


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SEGUNDO DOMINGO COMUM Segundo domingo comum: aberto na ausência de um sol parado na rosa em seu cálice inatingível como as mães que já se foram Segundo domingo comum: entrando pela porta da igreja saindo pela porta do cinema impensável fora da vida e das coisas Segundo domingo comum: seu material é sempre o mesmo vejo pássaros chegando aos frutos insetos à flor fiéis aos deveres litúrgicos Segundo domingo comum: meu dia de folga meu dia de Deus igual a outros domingos como iguais são os ovos.

TUIUIÚ De nossas necessidades faço histórias, ponderações, estudos explicação comum de tuiuiú eu tenho: ele passou da conta no crescer o tuiuiú, quando acorda e abre as asas, ultrapassa as bordas do amanhecer deste modo, o espaço aéreo só comporta um. O tuiuiú é tão grande, tão grande que ao levantar voo o céu sai de perto.

FIGOS O nada é uma grandeza indescritível dimensão que me fadiga e maravilha. É como se Deus me perguntasse: O que vês, filha? E eu não soubesse responder com absoluta clareza como o fez Jeremias diante de dois cestos de figos.

Por fim, Senhor meu, por fim quando um tuiuiú vai a óbito (porque nesta vida não falta adversidade) quando um tuiuiú vai a óbito, as borboletas requisitam guindaste (Pelo menos para as penas – do lado do coração).


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Os poemas foram extraídos do livro Leito de Acaso, 2004

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UM POUCO DE PÃO

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ntevéspera de Natal, seis da tarde, o dia se fechando docemente sobre a cidade. Apenas o céu tem a grandeza e as cores de um conto de fadas. Nas ruas, rente ao chão cinzento, o burburinho, o cheiro dos combustíveis, as tensões de um dia que termina. Com pressa, estaciono o carro no meio-fio da padaria. Desço, aciono o alarme e entro. De imediato, os panetones e bolos de nozes me comovem. Minha língua dança numa enchente. O pão francês acaba de sair do forno e o seu aroma começa uma viagem pelos ares. Meu destino se parte num antes e num depois, porque um pequeno episódio, inevitavelmente, toma corpo e continua fantasma. No meio da paisagem açucarada, um tanto indecisa, chego ao balcão. A moça que atende está visivelmente estafada, boca lacrada e olhos taciturnos, de modo que apenas escuta o meu pedido. Pão francês e panetone, falo em voz baixa, meus olhos mergulhando na massa de frutas cristalizadas. Um homem alto, segurando a sacola de pães quentes, pega seu troco no caixa e sai acompanhado por uma menina que é a cara dele. Pausa. Silêncio. A vendedora é um show de lentidão e descontentamento. Mas eu tenho paciência. Aguardo, submersa em nenhum pensamento. Aqui e ali, perambula meia dúzia de inevitáveis mosquitos. Embora as portas da padaria estejam parcialmente fora do meu campo de visão, noto quando ele entra. Denota meia idade. É negro, barbudo, está descalço e veste uma camisa suja e rasgada. Devagar, ombros ao peso das agruras, peito cheio de temores e costelas salientes, ele caminha até o caixa. O dono do boteco está lá. Escuta o pedido do maltrapilho: “O senhor pode me fornecer um pouco de pão? ” Esse “me fornecer” me intriga. É um pedido de compra a prazo ou um jeito diferente de pedir esmola? Não sei. O proprietário, empapado de suor, desagradável e contrariado, resmunga entre seus bolos e pães: “Não, não posso”. Logo a seguir, insensível, despacha o mendigo que sai bruscamente, com um jeito acostumado ao não. Tudo se passa rápido, mal tenho tempo de me acomodar ao imprevisto. O tempo é tão fugaz na indecisão. Quando, afinal, a centelha me ilumina, o homem já vai longe, longe, na porta da padaria. Pausa. Desconforto. Uma espécie de vazio instala-se ao redor. O proprietário, gordo, enorme, mas de esquelética caridade, não se abala. Pago minha compra, volto ao carro e parto para o mundo. Revejo o mendigo, um minuto depois, na primeira esquina do percurso. Por que não paro e lhe dou umas moedas? Por que não lhe ofereço o meu pacote de pães? Seria tão fácil. Pelo retrovisor, percebo quando ele, de olhar espantado, atravessa a faixa de pedestres. Acelero. Vou pelo fio do tempo, fugindo da desordem do espírito e presa àquilo que vou perguntar repetidas vezes, pelo resto dos natais: “Senhor, você pode me fornecer um pouco de perdão? ”. In: A Gazeta, Cbá-MT., 24/25 dez. 2000. p 1 E.


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À BEIRA DO LAGO Certa manhã (pois todas as coisas que amo, espalho) certa manhã sentei-me à beira do Lago de Zurique que continua lá na sua paisagem comum onde o vi como um espelho por patos retalhado Sempre volto a algum fato pego o começo de alguma coisa um nó para que o mistério seja possível Certas lembranças são como substâncias cristalinas posso dividi-las em planos paralelos e ganhar forças na recristalização (esta) Só quero mostrar a vida em seu estado natural de atos e gestos pequenos eventos, inquietações Mas tudo é tão vasto e qualquer poema é um mundo à parte.

NOTÍCIA MÍNIMA Coisa nenhuma se esconde à vida e nem se esconde ao poder da língua a notícia mínima Um ovo levemente frito está no prato a ponto de ser um sonho, elemento perfeito, mantimento ativo E tudo se reduz ao velho e justo termo: o que vive sem sonhos, vivendo, está morto. Os poemas foram extraídos do livro Leito de Acaso, 2004

A SEDUÇÃO DE CERTOS MOVIMENTOS Em pleno velório indócil à rigidez da morte estudo o seu inverso: a vida a voracidade a sedução de certos movimentos ansiosos das chamas que se agitam Quero tudo que não esteja parado nem tenha entrado em descanso Quero tudo que não se deite em posição tão paralela ao horizonte Depois de o tempo se fartar das velas (nos quatro cantos do funeral) dou graças a mais um pormenor que enfim me conforta: os lagos de parafina no fundo dos pires (sempre fui assim)

TEMPO COMUM EM PALAVRAS (A noite é passada e o dia é chegado) Eis o tempo comum em palavras Notícia bem-aventurada que recolho dos Romanos como se recolhem ovos nas fazendas Ponho em todas as palavras uma alegria serena porque me fazem grandes coisas porque delas e por elas e para elas também vivo e sem cessar me maravilho.


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VOVÔ MORRERÁ HOJE

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ois lhe conto. São quatro horas da tarde. É espantoso sim, mas vovô morrerá hoje. Mais espantoso ainda é que ele estará morto antes mesmo de morrer de fato. Com oitenta e dois anos, apesar de forte e saudável, vovô morrerá hoje. E será no início da noite. E atrapalhará o jantar. Este é meu jeito estranho de recordar o que ainda vai acontecer. Como não pode ser de outro modo, acompanho os antecedentes do atropelo.


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Neste momento, apressada e atônita, uma barata avança bem rente ao rodapé da parede de adobe. Ela avança por partes, de vinte em vinte centímetros. Percorre uma distância total de cerca de dois metros, para, gira rapidamente entreabrindo as grandes asas, volta pelo mesmo caminho, dá outra parada e se ajeita para atravessar a sala. Estou seguro de que vai atravessar a sala. E será em desabalada corrida, quase como um relâmpago, pois num campo aberto assim, o risco é enorme. Enquanto ela mantém as antenas duvidosas frente ao mundo, mudo o rumo do meu silêncio. Contente de voltar da escola, eu descubro que o dia é muito grande para mim. Também já sei que a noite é o núcleo em torno do qual gravita o meu destino, e o destino de vovô, e de todo mundo. É engraçado, o número de horas que gasto sem fazer nada está acima da cota de tempo que me foi dada. Difícil este cálculo. Meu ócio é mais duradouro do que minha própria vida. Por conta disso, engano o tempo. Talvez fique tão velho quanto vovô, que morrerá logo mais. Todas as tardes, entrincheirado em algum lugar, faço-me atento aos movimentos da casa, que bem pouco se mexe. Papai está sentado num jirau, lá perto do cajueiro. Aos pés dele, cautelosas e taciturnas, três galinhas ciscam. Seriam quatro não tivéssemos comido uma no domingo. Mamãe está fora do meu foco, mas vem da cozinha doce aroma de chá. Nas sombras da varanda, alheio aos bens terrenos, vovô está na rede – seu lugar cativo. Diante dos meus olhos, afasta-se o dia, assim: a pacífica luz do entardecer sai de mansinho de dentro de casa. Ergue-se do chão da varanda e deixa vovô na penumbra. Ela, a luz pacífica, sobe no velho telhado para entrar nos olhos do gato. Enquanto eu for pequeno, isso me acalma. Vovô se embala na rede, lentamente. O semblante vago, como se ignorasse o que está ao redor. Vejo que há muitas noites sobrando nas bordas de seus olhos. Vejo a eternidade que se aproxima. Vovô se balança na rede, suavemente. A rua dança e dançam as folhas da mangueira. As amarelas caem. Estão cansadas. Vovô está cansado. E este vento repentino, gerando certezas fúnebres? E a eternidade, com fome? A barata continua imóvel. Um leque marrom – aquelas asas semiabertas. Volto àquilo que se vai. Meu peito dói ao frio perfume. Uma sombra, maior do que a casa, está dentro da casa. Quero correr e não consigo. Vovô, chamando por vovó que já morreu, começa a roncar levemente. Um leve crepitar. Já não lhe vejo um dos pés imprimindo embalo à rede. — Pai, o que foi? Está sonhando? — Pergunta papai, que se ajeita para sair do quintal, o vento já lhe alcançando o sangue. — Nada não — gemeu vovô ao filho, desde muito longe, como se estivesse deitado na curva da meia-lua. — Nada não — voltou a dizer. Agora, vovô está roncando forte, numa sequência de sons cada vez mais secos e obscuros. Papai se aproxima, desassossegado. Vovô transpira em bicas. Papai se alarma. Vovô não está nada bem. É preciso chamar o médico. O médico é vizinho, que bom, e vem no ato, e examina vovô, e pega aqui, e pega ali. Depois recua, chama papai num canto. Fala claro. — Seu pai está morto — e papai, admirado, retruca. — Mas como?! Ele respira, pude perceber. E o ronco? É de vivo. O médico, amigo, entre sério e abalado, mas muito convicto, repete: — Estou dizendo, está morto. Vai lá, pega nele. Papai, num átimo, vai e toca em vovô, empapado de suor. A seguir, volta tartamudo. — Nossa! Ele está gelado, doutor. Tem uma água pegajosa no corpo. O que é isso? — E o médico, olhando o horizonte imediato, responde. — É a morte, pode crer. Conheço-a muito bem. É ela. Vovô, de modo surpreendente, morto antes de morrer, retumba como um trovão fora das nuvens. Papai não sabe o que fazer. Olha para todos os lados. Ninguém pode fazer nada. Vovô para de roncar. Seus ossos se quebram e a alma se vai. Está morto enfim. Mas parece mentira. Mamãe, já dentro do meu foco, com gestos suaves, acendeu uma vela. Uma névoa negra de pernilongos frenéticos, cantando fininho, vem chegando para o velório. Ninguém se lembrou ainda de me procurar. Puxa vida. Nesse tempo todo em que estive esperando vovô morrer, perdi de vista a barata. Da última vez que lhe pus os olhos, estava hirta, incapaz de atravessar a sala. Deveria percorrer poucos metros até alcançar a cozinha, talvez, ou algum lugar no meio da noite. Foi para criar coragem, com certeza, que ela se deteve. Coragem para armar os passos e se atirar sala afora, sem esbarrar na morte. Sem esbarrar na morte. In: Na margem esquerda do rio: contos de fim de século, organizada por Juliano Moreno e Mário Cezar Silva Leite. Contos. São Paulo: Via Lettera, 2002.


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ÁTOMOS

AMOR ÀS HORTALIÇAS

Como se há de resistir à ronda dos vazios? Átomos perambulam no ar átomos estão suspensos no ar pequeníssimos inquietos elétricos saltam para fora de seu lugar voltam a formar um bando mero ponto de partida

Pequenos detalhes não me escapam em certas necessidades

Não é fácil ganhar o céu.

Enquanto persevero fiel no amor às hortaliças que entre a língua e o céu da boca em glórias saboreio não me abstraio do curso indispensável e da característica comum dos seres de intestino aberto no fim (em ânus).

ARRANHA-CÉU

ANOITECE

Talvez o momento seja subitamente propício é maio no hemisfério sul o outono segue tenaz degolando as folhas e não tira os olhos do meu pescoço ao longe há nuvens ingênuas mascando a cimeira de um edifício insípido empedernido e altivo como todo arranha-céu.

Anoitece, não hoje Sombras já se elevam muito acima do chão Relações de trabalho se destecem Veículos e pedestres formigam nas ruas (a ponto de colisão) dão-se pressa para chegar Há tristezas de permeio Luzes se avivam Cada operário procura a sua.


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Os poemas foram extraídos do livro O passo do instante, 2019

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OUTRA GALINHA Em outro domingo outra galinha Isso não é muito mas é um começo Fugia Fugia Via-se forçada (por assim dizer) a emparelhar com o vento Corria Corria Mal podia dar um passo fora do horário de morrer.

“Em nossa nudez” Desabotoamos nossos trajes incontáveis vezes conforme a rapidez com que o tempo passou Acumulamos tempo em nossa nudez

TRAÇOS

Mil e uma noites de sono já nos prepararam para a noite mais longa Aquela na qual não iremos nos revolver na cama (até a alva)

Os poemas foram extraídos do livro Leito de Acaso, 2004

Nada sei das tardes consumidas por sua ávida memória E menos sei de outros cansaços demônios, amantes, rupturas Contudo o pouco tempo gasto nesses traços fortalece conjeturas de tumultos narcisos fluindo nas máscaras cotidianas A rigor este é o retrato de quando se elimina a vida e faço à base de virtual imagem quando o virtual é moda e fica bem (e burla as dores).


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Ruth Albernaz Artista Convidado

BIOGRAFIA

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uth Albernaz Silveira nasceu sob o signo de câncer em Chapada dos Guimarães – MT (1972). Começou formalmente suas experimentações em arte aos 12 anos, quando aprendeu o ofício do papel artesanal no I Festival de Inverno de Chapada dos Guimarães. Elaborava composições com elementos da biodiversidade do Cerrado sobre os papéis que confecciona. Em sua trajetória se transformou em uma artista visual interdisciplinar, utiliza-se de diversos suportes e propõe um transbordamento de linguagens para suas composições em papéis, instalações, desobjetos, pinturas, xilogravuras e poemas.


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FORMAÇÃO ACADÊMICA • Doutora em Biodiversidade Amazônica pela Rede Bionorte - MCTI, com pesquisa junto ao povo indígena Rikbaktsa pelo viés Arte/cultura/conservação da biodiversidade da floresta Amazônica (2016); • Mestre em Ciências Ambientais (2010); • Especialista em Gestão colaborativa de sistemas sócio-ecológicos da Amazonia brasileira, Universidade do Estado do Mato Grosso/ Universidade da Florida; • Graduada em Ciências Biológicas, Universidade Federal de Mato Grosso (1996). Prêmios e homenagens • I Prêmio Unimed Receita de Cidadania (2003); • Moção de Louvor concedida pela Assembleia Legislativa (2003); • Moção de Aplausos concedida pela Câmara Municipal de Cuiabá (2003); • Moção de Aplausos pela Câmara Municipal de Cuiabá (2019); Salões de Arte • XIX Salão Jovem Arte Mato-grossense (2000); • Salão de Arte de Mato Grosso (2013).


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EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS • Exposição Casa de Ninha, instalação site specific para Sesc Pantanal, outubro de 2019; • Exposição Bio, galeria Sesc Rondonópolis, Mato Grosso, junho a setembro de 2019; • Exposição e ocupação “Ninho de Palavras”, instalação site specific para o Sesc Arsenal, abril de 2019; • Exposição e ocupação “Casa Cuidar”, instalação site specific para o Sesc Arsenal, 2018; • Exposição e ocupação “Jardim Cura”, instalação site specific para o Sesc Arsenal, 2018; • Performance Tsanipê, com participação de Sophia Mehinako, Aldeia Guaná, Sesc Arsenal, 2018; • Exposição Patuá, sala expositiva do Sesc Casa do Artesão, Cuiabá – MT (2016); • Voos Xamânicos, Galeria do Sesc Arsenal, Cuiabá - MT (2014). EXPOSIÇÕES COLETIVAS • Exposição coletiva “+300” Homenagem à crítica de arte Aline Figueiredo, galeria Arto, Cuiabá – MT, 2019/2020; • Exposição coletiva “Opus Magna”, galeria Arto, Cuiabá – MT, 2019; • Exposição coletiva “A arte de amamentar”, Palácio da Instrução, Cuiabá – MT, 2019; • Exposição coletiva “Dentro do Brasil cabe o Mundo”, Sesc Quitandinha, Petrópolis – RJ, 2018; • Exposição coletiva de Arte Híbrida “Para encontrar o azul eu uso pássaros” – homenagem ao centenário de Manoel de Barros, Museu de Arte e de Cultura Popular – MACP/UFMT, de 05 de dezembro de 2017 a 28 de fevereiro de 2018; • Exposição Coletiva “Educação, Diversidades Culturais, Sujeitos e Saberes”, com curadoria de Marcelo Velasco, Museu de Arte e de Cultura Popular – MACP/UFMT, 2017; • Exposição Coletiva “Natureza Substantivo Feminino”, Museu de Arte de Mato Grosso, Cuiabá-MT (2016); • Exposição Coletiva “Intersecções da Arte em Território Interdisciplinar”, curadoria de José Serafim Bertoloto, Museu de Arte e de Cultura Popular MACP-UFMT, Cuiabá-MT (2016); • Exposição Coletiva “Transmitologismo João e Maria”, A Casa do Parque, Cuiabá –MT (2016); • Exposição Coletiva “Prova de Artista convidada da Exposição Poesia da Linha e do Corte de Lasar Segall”, Galeria do Sesc Arsenal, Cuiabá - MT (2015); • Exposição Coletiva “Fecundo Cerrado, Museu Morro da Caixa Dágua Velha”, Cuiabá – MT (2014); CURADORIAS • Exposição Individual “Da sonoridade à cor: o que conhecemos de João Pedro Arruda?”, Museu de Arte e de Cultura Popular da Universidade Federal de Mato Grosso, julho a outubro de 2019; • Exposição Individual “Metamorphosis” de Regina Pena, galeria do Sesc Arsenal, 2019; • Exposição coletiva de Arte Híbrida “Para encontrar o azul eu uso pássaros” – homenagem ao centenário de Manoel de Barros, Museu de Arte e de Cultura Popular – MACP/UFMT, de 05 de dezembro de 2017 a 28 de fevereiro de 2018; • Exposição Coletiva Natureza Substantivo Feminino, Museu de Arte de Mato Grosso (2016); • Exposição Individual Toda Forma de Amor Valerá, de Rosylene Pinto, galeria do Sesc Arsenal e Galeria do Sesc Rondonópolis – MT (2017); • Exposição Individual Mar calmo nunca fez bom marinheiro, de Rodolfo Carli, Museu Histórico de Mato Grosso (2016); • Exposição Individual Oníricas, de Sálvio Júnior, Museu Morro da Caixa Dágua Velha, Cuiabá – MT (2015); • Exposição Coletiva Fecundo Cerrado, dos artistas Benedito Nunes, Carlos Lopes, Guadá Senatore, Rosylene Pinto e Ruth Albernaaz, Museu Morro da Caixa Dágua Velha, Cuiabá – MT (2014). PUBLICAÇÕES • Ilustração do livro Bicho Grilo, poesias de Cristina Campos, editora Carlini e Caniato (2016); OUTRAS PRODUÇÕES E ATUAÇÕES • Montagem da Exposição itinerante Brinquedos do Brasil, Sesc Poconé, outubro de 2019; • Capa de cd da cantora Verá Capilé (2016); • Capa do Livro Avaliação da Resiliência Socio-ecológica como ferramenta para Gestão da Fronteira Amazônica: experiências e reflexões, Universidade da Florida – UF /Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT (2017); • De 2000 a 2005 coordenou o projeto social “Vivaarte por um mundo melhor” junto aos jovens do bairro Ribeirão do Lipa – Cuiabá.


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FORMAÇÃO COMPLEMENTAR • Curso de Poesia Experimental com André Vallias, Laboratório da Palavra, Sesc Arsenal, novembro de 2019; • Oficina de Ilustração com Anna Bela López, Laboratório da Palavra, Sesc Arsenal, novembro de 2019; • Curso de curadoria (módulo II) com Fernando Vilela, Sesc Arsenal, 2018; • Curso de curadoria (módulo I) com Fernando Vilela, Sesc Arsenal, 2018; • Oficina de Expografia com Marcela Tokiwa, Sesc Arsenal; • Curso de História da Arte com Aline Figueiredo, Sesc Arsenal; • Oficina de gravura em metal e processos alternativos de gravura com Roberto Tavares, Sesc Arsenal; • Oficina de Estamparia, Sesc Arsenal; • Oficina de Cianotipia, Sesc Arsenal; • Oficina de Expografia com Jeff Keese, Espaço Boca de Arte; • Oficina de Expografia e montagem com Jeff Keese, Sesc Arsenal; • Mini-curso de Fotografia, Cannon. PORTFÓLIO DISPONÍVEL EM: • http://ruthalbernaz.blogspot.com.br • https://www.facebook.com/RuthAlbernaaz • http://lattes.cnpq.br/7469545412351602

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Cristina Campos É doutora em Educação (USP, 2007); mestra em Educação (UFMT, 1999); especialista em Língua Portuguesa (UFMT, 1989), Semiótica (UFMT, 1995) e Semiótica da Cultura (UFMT, 1996). Professora aposentada de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, pelo IFMT – Campus Cuiabá. Ocupa a Cadeira 16 na Academia Mato-grossense de Letras. É autora das seguintes obras: Pantanal mato-grossense: o semantismo das águas profundas (Cuiabá: Entrelinhas, 2004), Conferência no Cerrado (Tanta Tinta, 2008), Manoel de Barros: o demiurgo das terras encharcadas (Carlini & Caniato, 2010), O falar cuiabano (Carlini & Caniato, 2014), Bicho-grilo (Carlini & Caniato, 2016) e Papo cabeça de criança travessa (Tanta Tinta, 2017).

UM VOO SOBRE PAISAGENS DE SONHO

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uth Albernaaz possui olhos castanhos de falcão marrom, com garras firmemente cravadas (não por acaso) sobre um galho de samaúma – ou ipê, jatobá, buriti (plantas sagradas ou medicinais) –, a contemplar, de modo sábio, penetrante e suave, as paisagens com pepalantus do Cerrado de Chapada dos Guimarães-MT, seu berço-raiz, de onde empreende altos voos xamânicos com este seu animal de poder sobre densas florestas amazônicas e outros locais mágicos. Pássaros encantados em profusão emplumada são então convocados para acompanhá-la nessas jornadas, das quais colhe informações, sementes, penas, flores, cascas, pedras e outros que tais. Carrega-os num txanipê (bolsa mágica) a fim de confeccionar patuás, onde combina coisinhas do coração com esses objetos mágicos para promover proteção e cura de pessoas e ambientes. Em termos bachelardianos, observa-se que o imaginário de quem se conecta fortemente ao elemento terra (Yin) clama por um equilíbrio. No caso de Ruth, o ar age como polo estabilizador (Yang), daí a profusão de pássaros imaginários em voos poéticos e cantos proféticos a sinalizar caminhos e devires. Ela afirma, de modo misterioso e categórico: “Tudo está no ar”. As possibilidades são inúmeras, o livre-arbítrio escolhe. A magia da palavra de seus poetas favoritos – serpenteando ou flauteando em fragmentos as imagens nas telas que pinta1 – funciona como elemento de composição gráfica e reforça o poder deste elemento, afinal, como dizia Manoel de Barros, “poesia é voar fora da asa”. Objetos ou obras de arte utilizados no corpo ou no ambiente não servem apenas como meros enfeites, não têm simplesmente uma função decorativa, mas ancoram energias específicas que se materializam a partir de sua forma, apresentação e posicionamento. O que uma obra representa abre portais para outras dimensões, que adentram os espaços onde se encontra e aí permanecem, interagindo com quem a contempla ou dela se aproxima. Ciente disso, Ruth busca produzir uma Arte que contribua para a reconexão das pessoas com seu Eu e com a Natureza: quanto mais conscientes de si, mais perceberão que tudo o que existe se interliga em dimensões a-paralelas, de modo vivo e belo. As exposições e instalações que a artista organiza também são imbuídas desta mesma intenção harmonizadora em nível energético – a Arte propicia uma ampliação do olhar. É admirável e necessária a ousadia de artistas mato-grossenses para nadar contra a corrente e assumir a importância das raízes indígenas na constituição das culturas no Estado, onde a prática (sobretudo das elites) tem sido negar sua presença e força ancestral. Diante dos agenciamentos do capitalismo em nível internacional, que tratora qual rolo compressor paisagens e costumes, os povos indígenas e muitas comunidades, por serem de tradição oral, hoje, enfrentam provavelmente seu maior desafio de sobrevivência, daí a importância de dar a conhecer sua visão de mundo. A Arte de Ruth Albernaaz segue o fluxo deste chamado sem ser ideológica, o que a engrandece por sua sutileza. Aho, Pachamama! Aho, seres da Terra! Que tal voar? 1

Para a edição deste especialíssimo número da revista Pixé, foram selecionadas obras compostas com técnicas mistas sobre tela, em tamanhos variados.


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Eduardo Mahon 42, é carioca da gema, advogado e escritor. Mora em Cuiabá com a esposa Clarisse Mahon, onde passa sufoco com seus trigêmeos: José Geraldo, João Gabriel e Eduardo Jorge. Autor de livros de poemas, contos e romances, publica pela Editora Carlini e Caniato.

A COLEÇÃO DE INSTANTES DE LUCINDA PERSONA


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lançamento de um novo livro é desafiador para qualquer escritor que tome a literatura como propósito. A vertigem ganha contornos dramáticos quando o autor já alcançou o reconhecimento público em vida. Admiradores e críticos sempre se pautarão pelas impressões sedimentadas diante do conforto intelectual em palmilhar um estilo conhecido, explorado, amplamente comentado. Por isso mesmo, não raras vezes, os autores fecham-se em preciosismos estéticos, patrulham-se por detalhes insignificantes, flagelam-se com duras autocríticas e, no mais das vezes, evitam novos desafios. Não é o caso de Lucinda Persona, felizmente. A autora desafia a confortável consagração que amealhou nos 25 anos de carreira literária, com prêmios nacionais e regionais, trabalhos acadêmicos sobre a obra poética e centenas de resenhas favoráveis. Lançou “O passo do instante” e mostrou que o invulgar fôlego literário está longe de acabar.


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Lucinda começa a carreira de forma inaudita. Ao contrário do que costuma divulgar em livros e palestras, “Por Imenso Gosto” (1995) não foi a primeira publicação da carreira como escritora. Em agosto de 1987, o programa Poetas Vivos lançou o libreto “Contratempo”, assinado pela autora. Articulado por João Bosquo Cartola, esse projeto foi patrocinado pela Casa de Cultura, estrutura antecedente à respectiva Secretaria Municipal. Na época, a entidade era coordenada por Terezinha de Jesus Arruda, uma das maiores agitadoras culturais do Estado. Lucinda integrou essa interessante coleção que se compunha de um pequeno encarte de oito páginas no formato de cartão-postal, podendo ser enviado por correio, estratégia de circulação de baixo custo para as circunstâncias editoriais da época. Bosquo lançou 11 números do encarte, publicando os seguintes autores: Antonio de Pádua e Silva, com “Cuiabá! Cuiabá! Cuiabá! ” em abril de 1987, Maria das Graças Campos, com “Os poemas de amor que não perdi” em conjunto com Wilson Garcia de Alencar com “Meninos das praças”, Lucinda Nogueira Persona com “Contratempo”, Cristóvão Miranda Uchôa com “Raio X”, Rômulo Carvalho Netto com “América”, Mário Cézar Leite com “Erótico”, Manoel Rodrigues da Costa com “O pássaro sertanejo”, Etevaldo de Almeida com “Ave Palavra”, Amauri Lobo com “Memória Fragmentária”, Maria de Lourdes com “Lado a lado” e, finalmente, João Bosquo o último publicado com “Da poesia”, na edição de abril de 1988. Desde então, Lucinda Persona integrou-se no cenário cultural, somando talento à nova geração que nascia da efervescência ligada à Universidade Federal de Mato Grosso. Ainda que não estivesse muito próxima da autointitulada Geração Coxipó – estudantes da UFMT que tentavam uma alternativa para a cultura centralizadora e elitista da capital – Persona foi, desde o início, reconhecida pelo heterogêneo grupo como uma espécie de “musa”, eleita no lugar de Tereza Albuês que passou a morar em Nova Iorque e faleceu prematuramente em 2005. Por isso mesmo, Wander Antunes a convocava a participar da Revista Vôte! e da Estação Leitura e, depois, Juliano Moreno também a quis na equipe de Fagulha e no projeto Palavra Viva. A presença de Lucinda Persona (e de Ricardo Guilherme Dicke) passou a dar lastro às publicações, uma espécie de selo de qualidade e de prestígio. Na década de 90, nossa musa apareceu na capa de uma importante publicação da Editora Entrelinhas “Fragmentos da Alma Mato-grossense”, no topo de uma nova geração que estava representada conjuntamente por Ivens Cuiabano Scaff e R.G. Dicke. No topo, a trinca pretérita “Manoel de Barros, Silva Freire e Wlademir Dias-Pino. Na virada dos anos 2000, integrou a equipe da obra “Na Margem Esquerda do Rio”, organizada por Juliano Moreno e Mário Cézar Silva Leite. Na orelha do livro, Icleia Rodrigues de Lima e Gomes usa-se dos conceitos antropológicos de Maffesoli para perceber o sentido “tribal” daquele novo grupo que gravitava em torno de uma pauta estética modernizadora e um conteúdo político defensivista da ótica regional. Consolidava-se, com “Na Margem Esquerda do Rio” um coletivo literário que estava rascunhado desde meados da década de 80. Lucinda Persona foi uma das muitas intelectuais forjadas no cadinho da UFMT que se constituiu o grande eixo formador da intelectualidade mato-grossense, a partir dos anos 70. Por isso mesmo, ao lançar o primeiro livro pela Massao Ohno – Por imenso gosto – já estava acolhida e reconhecida. A razão para resenhas encomiásticas era evidente: a poesia de Persona, apresentada pela multipremiada Olga Savary, era o que havia de mais contemporâneo. Se Manoel de Barros colocou o cenário sertanejo mato-grossense em relevo, se Ricardo Guilherme Dicke criou mitos próprios a partir deste mesmo cenário, Lucinda Nogueira Persona não seguiu a esperada reescritura de ordem geográfica. Muito ao contrário: o sertão da autora tem outro cariz. A aridez, a solidão, a bravura, o combate, a vitória e a derrota, todos valores inerentes à literatura sertaneja, não se encontram na paisagem do cerrado. Lucinda gira o eixo temático para o grotão insondável da intimidade doméstica, onde o comum é metaforizado. Manoel de Barros transforma a simplicidade, mas o faz com base em estratégias diferentes. O


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prosaico manoelino é tratado com foros de fantástico e/ou de lúdico, estranhamento típico da literatura contemporânea, que se vale de lunetas e de microscópios em hipérboles figurativas. O sertão-desumano de José Américo de Almeida, o sertão-solidão de Graciliano Ramos, sertão-universal de Guimarães Rosa, é transplantado para a poesia de Barros, grafado com deliberada ingenuidade e delicadeza, também abordado por Dicke nas inúmeras travessias de seus endurecidos personagens. Portanto, Manoel de Barros e Ricardo Guilherme Dicke persistiram na obsessão descritiva e definidora do que seja “o sertão”, retratando as periferias brasileiras ignoradas ou subordinadas, seja pelo viés lúdico, seja pela denúncia social. E Lucinda Persona, o que propõe? A escritora, mesmo tangenciando na obra a realidade geográfica, mas não faz da paisagem a tônica central da produção literária. Desvencilhada do compromisso recorrente de definir o próprio local, palmilha o enorme sertão interior. Era de se esperar o imediato reconhecimento não só por caminhar fora dos trilhos do cânone mato-grossense, como não se amoldar à forte influência da geração com a qual chegou a conviver de perto. Persona também não cedeu à negociação comum que escritoras faziam com a estética romântica, a fim de angariar aceitação nos círculos tradicionais da cultura mato-grossense. Portanto, a produção da escritora não se volta ao cíclico realismo brasileiro, não comunga do imaginário da terra, não se filia nem mesmo às pautas políticas da própria geração. As referências de Lucinda Persona provam que a escritora mira alto. A citação de Sophia de Mello Breyner Andresen na epígrafe evidencia a inclinação da poética de Persona, somando-se ao prosaico de Drummond e o decadentismo de Ferreira Gullar. Se Andresen usa o mar como estratégia para tratar da solidão, se Drummond faz da memória e do quotidiano a matéria-prima para cantar a realidade brasileira, se Gullar fixa obsessivamente as frutas apodrecidas como sinal de decadência corporal, política e social, Lucinda Persona vai buscar na biologia recursos para sua expressão singular. São conjuntos temáticos que envolvem (1) vegetais que se transformam em comida, (2) animais que emprestam suas qualidades aos humanos e (3) a intimidade e o quotidiano doméstico, este último viés muito ao sabor da poética de Manoel Bandeira e de Clarice Lispector. O universo imaginário de Lucinda Persona é, quase sempre, dedicado à ausência. O desproposital passar das horas, a interminável sucessão de poentes, a atomização existencial perdida na faina diária, a reiterada solidão-a-dois plasmada na casa vazia, no silêncio das refeições, no despertar preguiçoso e no adormecer emudecido, todo o conjunto da obra de Persona almeja capturar o tempo e encontrar nele uma motivação, propósito frustrado pelo abismo de ausência. Esse hiato provoca a transformação física expressada no corpo, nas mãos e, sobretudo, no jogo de espelhos que se faz recorrente nos livros da escritora. A ausência não significa necessariamente solidão. Evidencia-se, inclusive, na dedicação integral ao companheiro a entrega ao passar do tempo, ritual em que, juntos, vão contabilizando a sucessão de instantes inócuos entre goles de chá, colheradas de sopa, pedaços de pão. No máximo, o que se vê em Persona é um vazio diferente das convenções literárias, uma solidão amorosa com incondicional resignação. Devo encerrar essa breve resenha e, para tanto, retorno à obsessão mais notória de Lucinda – a abordagem biológica como veículo metafórico. Entre hortaliças e frutas, ovos mexidos e sopas, o deglutir é o paradigma simbólico da autora. O movimento muscular da deglutição é o mesmo usado para falar ou para soluçar de dor, porque é pela garganta que passam os alimentos, o sabor e o dissabor da vida. Esse “engolir” metaforizado rememora ao mítico Cronos que devorava os próprios filhos, a refletir a força deletéria e inexorável do tempo que a tudo traga, mastiga e consome. A nossa musa desafia e vence o tempo bravamente, em cada poema, em cada livro. Vencer o tempo é, no fundo, entregar-se a ele. Por isso mesmo, não é coincidência o fato da escritora ter iniciado a carreira com “Contratempo” e chegar agora com “O passo do instante”. A maturidade é o preço e o prêmio de Lucinda Persona.

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Marli Walker É poeta e professora (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Mato Grosso). Integra o Mulherio das Letras/MT - Coletivo Maria Taquara. Publicou os livros de poemas “Pó de serra” (2006), “Águas de encantação” (2009) e em 2016 lançou “Apesar do amor”, selecionado pelo MEC para o PNLD. Em 2020, Lucinda Nogueira Persona completa 25 anos de carreira literária, homenageada por esta edição especial da Revista Literária Pixé e pela peça “No domingo, ele vem nos visitar”, de autoria de Eduardo Mahon, com direção de Luiz Geraldo Marchetti.


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LUCINDA PERSONA, A FLOR SEMPRE-VIVA DO CERRADO

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passo do instante (2019) é o novo livro de poemas de Lucinda Persona, poeta brasileira e, para nós de cá, a grande Dama da poesia escrita em Mato Grosso. O volume com 60 poemas, divididos em duas partes, “Sobrevivências” (22 textos) e “Celebrações” (38 textos), chega encapado com imagem da belíssima obra “Pepalantus”, de Regina Pena. A delicada espécie do cerrado brasileiro, popularmente conhecida como Sempre-viva, apresenta um crescimento lento e a floração termina o ciclo da planta. É uma flor que mantém sua beleza, mesmo depois de colhida. Recortes das imagens da capa e contracapa são expostos em detalhes no interior do livro, como que aproximando o leitor da experiência fruitiva, puxando-o, capturando-o para dentro do universo poético.


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A obra vem dedicada à memória do “filho, que em sua vida curta foi a própria encarnação do instante”. As flores e a poesia, entre sobrevivências e celebrações, constituem o lastro que sustém a poeta e a movem em sucessivos e contínuos versos, poemas, livros (anteriores) inteiros na inesgotável exploração de um mesmo tema: o tempo, este passageiro irreversível contra o qual nada se pode que não seja escrever para sobreviver e celebrar. Sobre a apresentação de Raquel Naveira, destaco o subtítulo “a poesia outonal de Lucinda Persona”, sentença que antecipa ao leitor as sobrevivências e celebrações a serem reveladas no decorrer dos poemas. A resignação do outono é uma lição premente aos que desejam resistir e prolongar O Passo do instante. Seleciono, então, a teoria necessária para amparar os apontamentos desta resenha. Separo o bom e velho Bosi (O ser e o tempo da poesia), escolha óbvia ante o tema da obra; Bachelard (A poética do espaço), de onde penso extrair auxílio para iluminar a fenomenologia da casa e da janela, espaços caros à poeta, sempre presentes de uma forma ou outra e, por fim, Octavio Paz (O arco e a lira – a revelação poética) para acentuar a marca da temporalidade, o ritmo, a repetição criadora que parece ser o motivo constante em Persona. Qual será, afinal, o motivo da flor Sempre-viva neste O Passo do instante? Entre “Gênese”, primeiro poema, e “Dúvida genética”, poema que fecha a obra, está a Sempre-viva (Pepalantus). Ouso dizer que a flor e a poesia, desde o primeiro até o último verso, encerram em si o motivo de todos os passos e instantes da poeta. Lucinda celebra o outono em estado de genuína renovação e reiterada permanência na estação poética dos dias, das noites, de todas as horas da vida inteira. Este instante soa como o período de aceitação e resignação ante os mistérios inerentes às Sobrevivências e Celebrações. Considero os poemas “Gênese” e ‘Dúvida poética” os limites que demarcam o início e o fim de uma estação (o motivo da flor), na qual a poeta concebeu uma linha temporal particular neste conjunto de poemas. Nessa parcela de tempo, a questão que lança no último poema, mudando-se a posição/ de um grupo de palavras/ gera-se poesia? é retórica, é jogo lúdico que remete o leitor de volta ao primeiro poema, “Gênese”, princípio-luz que ilumina todo o conjunto de imagens da obra. Ciente do ofício, é no princípio que Lucinda revela o esforço da criação: raramente um poema corre/ conforme o planejado/ às vezes, morre ainda embrião /…/ desenrolo/ até não poder mais/ o princípio da poesia/ eu gostaria tanto de acertar/ de não ir para a cama tão tarde. A poeta acerta em cheio a disposição da linha do tempo dos poemas, a sequência que divide o livro em duas partes e, assim, aprisiona o passo de cada um dos instantes no ritmo de uma temporalidade possível que só se exprime e se perpetua na poesia. “Boneca de pano” é um poema para o qual chamo a atenção, quer seja pela beleza da imagem que nos coloca diante da criança brincando com sua boneca de pano, quer seja pela leveza dos versos era como jogar para o céu/ o que eu tinha de mais leve. No breve quadro elaborado por Lucinda, vemos a delicadeza com que a poeta seleciona, junto à memória, o tempo sagrado da infância para nos dizer, ao fim, que a boneca ficou no telhado/ A viver por conta própria. Diz-nos, com essa imagem excepcional, que somos capazes de soltar, libertar para o voo aquilo que temos de mais caro, mais querido e reconhecer que a vida segue, que nem os filhos, nem os amores, nem o instante mais sublime, nada é definitivamente nosso. Talvez por isso o poema “Folhas caem” encerre em si, de modo tão acentuado, a imagem da ciranda feminina. As mulheres, seres de tantos partos e perdas, de tanta entrega (suas crias vão viver por conta própria!), elas, as mulheres, quando amam/ caem/ desfalecidas/, sejam tão semelhantes às folhas que caem amarelo-tostadas/…/ numa perda programada/ situação normal de outono/ e todas se juntam no chão/ para tirar mais partido/ do seu sentido de grupo. Eis o mistério a se revelar ao passo que seguimos irmanadas por entre tantos mistérios. “Moldura de ocasião” impressiona pela imagem que se abre aos olhos do leitor, como quem vê, pela janela da poesia, a paisagem interior da poeta como um céu inteiro de possibilidades. Ela diz: a janela que eu tenho/ aberta para fora e para dentro/ não sai de onde está por nada/ e sempre me espera/ com o céu na cara. Se ela dissesse de outro modo, poderia dizer: a poesia está sempre aqui, aberta, à minha espera, e eu cumpro a sina com o céu na cara, porque esse é o meu motivo e o meu eterno instante. Por isso, “Com todas as letras”, ela sobrevive e encerra a primeira parte da obra assumindo o projeto em cada passada poética, percorrendo os mínimos instantes com lucidez e ponderação: /…/ seguir assim a pequenos passos ponderando veredas


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reviravoltas cambalhotas escrever sem parar, letra por letra as palavras que estão à espera (mas dentro de uma força) como se estivessem nos labirintos de uma ostra no fundo do mar e pelo que sejam muitas ou poucas – tais palavras arrancá-las à ponta de faca agrupá-las (uma ao lado da outra) para um bem-apanhado verso esperar que possam (no poema) pender como pérolas no fio de um colar. Na segunda parte do livro, as “Celebrações” trazem memórias recentes e a poeta seleciona a imagem de um outubro em “Florença”, na qual o passo do tempo ganha materialidade ao descer por colinas, e acaba por entravar o cortejo: quando chegamos a Florença/ outubro coordenava o mundo/ mas o outono foi o agente provocador/ aquelas folhas amarelas espalhadas pelas ruas/ pareciam o comboio de um invisível cadáver /…/ a sombra do tempo descia pelas colinas/ e entrava a passos lentos naquele cortejo. E as folhas amarelas foram levadas como comboio de um invisível cadáver, segundo o seu mistério. Na sequência, o poema “Tempo favorável” anuncia uma luminosa constatação: é tão bom saber que/ o tempo favorável é agora, sim, pois “Estrelas fervilham” e parece improvável que alguma noite se apaguem. No entanto, o verso seguinte apresenta a consciência de que (nosso destino também deveria ser assim), instaurando ou recobrando a sensatez frente ao instante que se esvai no destino de cada segundo. A partir daí, volta-se a poeta, poema a poema, passo a passo, ao universo interior. Do céu fervilhando de estrelas para dentro de um “Crustáceo”, como num passo sem volta, até atingir o estágio em que se arvora entre palavras, sílabas e intervalos possíveis ou impossíveis entre elas. O crustáceo vive num reino à parte/ desligado dela/ e de todos os outros seres /…/ Não, ela não poderia digeri-lo assim/ encouraçado feito um crustáceo e cru/ unhas compridas/ pedrinhas no rim/ não poderia digeri-lo assim/ com a alma dobrada/ (a blindagem atingindo o máximo) / Que trabalho/ sugar-lhe a polpa/ dos esconderijos. Não é fácil adentrar ao universo interior sem que uma certa aflição acompanhe o exercício. A angústia se instaura definitiva no poema “Quem está vivo”, quando a poeta sentencia: só quem está vivo/ vagueia pelas horas e pode atravessar/ sem dar um passo sequer/ a paisagem que vem de dentro. Eis que ela, a poesia, vem em seu socorro no poema “Tu me observas, ó poesia”, e num gesto de entrega, fragilidade e humanidade, Lucinda recebe, aceita e acolhe o desafio do instante sublime: que difícil equilíbrio/ da poesia em vigília/ a poesia – tal qual o amor/ vigia sempre. Ela o faz, porém, com certa “Queixa”, pois há infinitos poentes/ e este tempo/ impiedosamente curto/ para existir e escrever/ a cada instante/ sobressaltos vários. Então, como uma iluminação, surge o poema “Clarice e as palavras”, no qual a poeta confessa: encontro Clarice/ em certo momento/ quando anunciou o desejo/ de escrever/ com palavras tão agarradas entre si/ de modo que não existam/ intervalos entre elas. E, ao final, a “Dúvida genética”, já mencionada como um jogo lúdico a enlear o leitor nesse passo calculado, a poeta lança a grande questão e a responde no mesmo instante: mudando-se a posição/ de um grupo de palavras/ gera-se poesia? /…/ A resposta que me derem/ é também a minha. Sugiro ao leitor que leia o primeiro poema da obra e veja lá, detalhada, a resposta da poeta. Ela deseja prosseguir, feito animal em busca de alimento, tateando, ou como pássaros bicando cascas, porque a poesia é seu ritmo, sua temporalidade, sua essência, seu passo e seu instante. Lucinda Persona é a flor Sempre-viva do Cerrado, é o buquet de flores que já nasce pronto a ofertar-se em poesia, neste Passo do instante e sempre, para todos nós. Cuiabá, noite de outubro, à espera das chuvas. Marli Walker, professora e poeta (em pleno outono). P.S.: Os autores mencionados não foram usados no texto por total falta de necessidade de qualquer apoio teórico diante de tamanha poesia.


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Marília Beatriz de Figueiredo Leite É professora fundadora da UFMT, adjunta nível IV; mestre em Comunicação e Semiótica, pela PUC-SP. Ocupa a cadeira nº 2 da Academia Mato-grossense de Letras. Publicou O mágico e o olho que vê (Edufmt, 1982) e De(Sign)Ação: arquigrafia do prazer (Annablume, 1993) e Viver de Véspera (Carlini e Caniato, 2018).

NO ACASO DO GOSTO A MEMÓRIA DE LUCINDA

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eito de Acaso, da poeta Lucinda Nogueira Persona, não é só um excelente repertório poemático, é um texto que liberta a palavra “memória” e, cada vez mais, prepara uma conjugação com aquilo que se foi, mas continua sendo dentro dela.

Por outro veio, os poemas se constroem como representações teatralizantes. A palavra é ator/atriz que faz o leitor/ público se emocionar com o relato/atuação da autora. Os versos, os poemas são fatos representativos daquilo que o olhar/coração da autora captura. Lucinda quer reviver. É sempre mais a tentativa de compreender a angústia do ser humano e suas inquietações, reconstruindo-as. Muitos deixam perceber o seu cotidiano em reminiscências; outros, em ações que se marcam como amplamente inovadoras na busca de algo que possa ser recente e desconhecido e muitas vezes com uma forma de dizer que perquira o organismo literário da escritura. A poesia não é uma magia, é um fazer, uma tarefa que se enfrenta com estilo e elegância para alguns ou, com força e concentração para outros. No caso de Lucinda, o estilo é seu registro e a elegância, mesmo no momento de fel, apresenta-se por inteiro. Sua força e sua concentração fluem no momento mesmo do olhar desvelador da poeta. Ao dizer dos cotidianos, ela exaure pontualmente a criticidade que existe no instante, no fato, porque o seu olhar é matéria concentrada que busca a nudez da coisa em si, do acontecendo, do acontecido. Críticas são: a sua força no apreender e a concentração do oculto naquilo que ela canta: O caminho da vida é para baixo é para baixo o caminho da vida e já não me incomodo tanto Os poemas da memória de Lucinda instauram em nós saberes e sabores de coisas muitas vezes esquecidas. Um trabalho dessa natureza possibilita tempos de lembrar e artes de esquecer. Como? Quando as palavras formatam os versos é como se elas apontassem em nós quanto de esquecido se instalou no labiríntico de nossa humanidade. Os poemas afloram as possibilidades das lembranças. A passagem do sentido nocional para o sentido emocional perfaz o campo da conotação. Mas, em Lucinda algumas vezes, exatamente porque é instigante o esquecimento há um pouco do campo denotativo. Não é provável que uma mixagem dessa ordem não crie no público-espectador-leitor um lugar de constante aprendizagem, que é bem verdade nasce às vezes do espanto, da surpresa. Aprender no caso da poética de Lucinda é saber reverenciar o apreender da dicção poética: aquilo que no simples tem de mistério. Não troco o movimento das formigas por qualquer outro de maior liberdade A meta da procissão é bem clara vai atrás do que precisa a metros de distância (lugar que em mim é um pouco mais longe) E é nesse lugar que flui a fatura da criação poética e/ou a vida do dia-a-dia de Lucinda, é aí que frutifica a escritura criativa de Persona e é também nesse espaço que provavelmente correm as tramas versificadoras dos ramos da Nogueira. Os ramos que indicam rumos de O lugar do amor satisfazem à parceria esclarecedora Quero falar-te boca a boca (palavras são estrelas


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que se movem na abóbada palatina) da poetisa com o leitor/espectador, uma vez que o leitor vê a atuação da boca na busca sutil do outro. Eis aí a cena teatral de um olhar mais esmiuçante, mais devorador por um lado e, por outro, de uma busca profunda da transparência individual e diária. A luz que paira o tempo todo sobre o repertório de Leito de acaso parece originar-se de feixes de quem tem no conhecimento do mundo a tarefa não de dimensioná-lo, mas de compreendê-lo. Assim, voltamos ao ponto central de nossa reflexão pensando que talvez as recordações de Persona estejam na ordem da inscrição de uma série de desejos que vivem no corpo do poema/poeta, da organicidade do texto que muitas vezes é construído com a investidura de uma pele. Muito faço por mim quando me rendo a certas alegrias. Meus objetos não são outra coisa senão fontes de abundância. Especialmente exemplares são os versos: De proporções limitadas: a vida tão breve para tantas palavras e suas infatigáveis variações normais À memória (largo campo a perder-se) pertence cada minuto daquilo que posso dizer e me sai tão precário em gramática e mistério mas não é só Postula a autora o caráter dual de nossa humanidade de modo belamente conciso e especular ao mesmo tempo em que procura nas nervuras mesmo da palavra aquilo que ela funda de misterioso no campo lingüístico e metafórico. As recordações são de uma ordem especialmente pontual, pois quando relembra algo de Paris é dessa forma que o faz: Mais tarde é sempre uma página para síntese e repouso. Hoje, é mais tarde. Dia em que desobedeço à sagrada fala: “não olheis para fatos antigos”. Eu olho. Portanto, eis como a dicção da poeta flagra essa memória que é incansável, que é perfurada por uma cadeia incomensurável de vitalidade, de incontáveis olhares. Um olhar perpassado pela magia de desencadear encantos, outro que perfura a atenção do leitor/espectador que quer descobrir aquele algo sutilmente prometido, finalmente olhares perturbadores porque desenvolvem probabilidades corporais, como se as palavras fossem investiduras sensórias, porém solitárias. Não sei se é possível afirmações diante deste tipo de fazer literário, mas, creio que Lucinda domina o cotidiano do mesmo modo e com a mesma fortaleza que restaura a memória. Os sintomas da percepção aguçados no cotidiano e o despertar da memória são na poesia da autora uma espécie de britadeira que perfura, para aprofundar em certo sentido a imagem inconsciente do real, do corpo, dos fatos e atos. Instaura-se um olhar que fisga a cada instante, de nossas experiências, emocionais ou nocionais, experiências mais profundas, exaustivamente vividas através de sensações eletivas, arcaicas ou atuais do nosso corpo-templo, uma emoção evocadora atual assinala a escolha inconsciente das associações emocionais. Em Lucinda há algo subjacente que ela permite que aflore para compartilhar num sentido ritualístico com o leitor/espectador. Algumas vezes, são pequenas observações: Stazione. Todos vão e voltam, não há ninguém que não procure a si mesmo.


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que se transformam em confidências poéticas, mas que de um modo ou de outro, ainda são da esfera da lembrança. E ela lembra com a força do “punhal de prata” de Cecília Meirelles, cortando a carne, a emoção, a razão, para desnudar em sua escrita um texto de chamamento àquilo que o homem tem de mais sagrado: a capacidade de estender o seu horizonte de recordações. Lembrar-se de grandes feitos é fácil. Restaurar a memória das coisas pequenas, do mínimo, do ínfimo é que relaciona decerto o homem com a sua simplicidade humana. Viver é atordoante. A sombra eterna e trivial assusta. Encerra o texto poético uma cadeia significativa de questões, de pulsões e imagens desejantes que produzem traços de energias que vão desde o caos até uma vontade prospectiva de ordem. Lucinda desenreda o só, não como uma palavra isolada, mas como um nó que desenvolve uma relação de poder para “coisas” que por vezes têm vocação de menos. No texto de Persona a poesia não só é mutante como também fixa fatos e atos em grafias onde tudo é muito de fala, de desenho e onde existe e se sustenta à teoria, pontuando cada mensagem. Dita fatos tentando colocar bordas nos acontecimentos. Mas respostas, por onde havê-las? Boa escuta – pensa sempre – é boa resposta. Mas enquanto escreve, acontece que relata o vivido, o partilhado e aqueles momentos em que solitariamente a poeta aprisiona as suas coisas nas mãos, nos olhos e no coração. E ela parece perguntar se chegará a um termo. E ocorre, na textura toda produzida, a construção de um tempo e de um espaço do seu contar de vida, da sua estória de amor, como aparece em Agora vou cortar abóboras: Aquilo que a vida diária há de oferecer e sem que seja numa ordem fiel eu posso contar ao mundo (...) Palavras são meios de vida gestos também o são A prospecção da palavra apreendida em Lucinda é tão afiada que ela pode ao mesmo tempo em que descasca o fruto, o desencarna e o tempera na sua boca de filósofa, de memorialista e poeta. Descasca: Um pêssego fora da árvore ao ter a morte à flor da pele mantém intacta a potência luminosa. O desencarnar: Daí, a tragédia. Quero o fruto (fruto de observação) O tempero de filósofa, de memorialista e de poeta surge quando diz tudo sem envergonhar-se e sem críticas, apenas aceitando em certo sentido a forma sígnica e sensual de falar, aquele esforço desmedido e precioso que dá conta de um dizer amante/amado ao real da natureza: não apenas para dar um pouco de substância ao plasma antes o quero para o gozo de uma certa realidade desconstrução não muito diversa daquela de romper em qualquer ponto o equilíbrio provocar o estado diferente da matéria. Libertar-me do insuportável excesso de imagens é deste único modo.”


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A libertação de Lucinda é construída de duas maneiras: 1) o recordar com recorte e, 2) com a combinação das imagens teatrais em seu palco poético. E isto surge de forma esplendorosa em Delicada morte: (a vida aqui na terra) Não é a primeira vez que estou a falar de assunto que não entendo À sorte sou entregue a cada momento talvez por isto eu seja tão viciadamente descritiva O que tenho no horizonte está bem posto a tarde já caiu nesta terra ocupada por variáveis de abismo No espelho tenho a minha imagem a partir da contribuição dos meus olhos Ao repetir um modo (que há muito vem acontecendo) a tarde em queda livre é programa que levo a sério Esta delicada morte. Na formatação rebuscada em que o cotidiano é revisitado, ela arquiteta desculpas para um fazer de poemas: Meus poemas são, raríssimas vezes, se é que jamais, perfeitos em toda sua extensão. A dimensão do rigor poético está em que ela resvala e vai revelando, ao desnudar, a carnadura da feição do dia-a-dia, disso que em nós às vezes se oculta por um comedimento social ou por uma máscara moral. Saber que diz sobre coisas que afetam cria certos códigos que podem levar ao sentido dessas coisas. Daí, quando, por conseqüência, algum dizer das coisas pode produzir enorme bem-aventurança é porque consegue juntar pedacinhos. Memória, finalmente, é a escolha, a amostragem de certo devotamento às recordações. Fio sinuoso o da mesma lembrança a vida é isto Prepara o recorte de rememorar não mais como encaixe das coisas cotidianas, mas como suporte das raízes familiares e finca o seu existir na qualificação da escritura sensível e escolhida: A lembrança cresce no destino da família. O futuro agora é um poema: nele habitarão os famintos. Assim, Memória torna-se um lugar, este lugar de falar, privilegiado! Para falar das coisas é com Carlos Drummond de Andrade que ela se ritualiza: neste mundo cada vez mais banal e vasto também o’ Carlos com muito amor


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na falta de outras palavras para os fatos, digo: as coisas continuam do jeito que sempre foram maciçamente presas a um núcleo de ferro Um pouco (ou tudo) do que existe em mim está em toda parte em todos (esteve em ti). Quando fala sobre COISAS, ela percebe a pesada expressão escorregando ornamentos, pouca pedagogia substantiva lhe sustenta o corpo. E aí está o que para o leitor torna-se escritura que aos poucos vai deixando de ser contemplado como receptor pela palavra eró(s) = poé tica. Lucinda vira criatura de outra esquina, solta como uma persona abstrata e resvala nisto que é luz: Quem pode livrar-me de repetir que grande mesmo é o que parece pequeno? Em Néctar, a poeta parece arrebatar um toque personalíssimo e revelador e libertador da sua criação artística. Os possessivos apontam para uma dimensão mais profunda do gozo estético. Mostrar a minha palavra sempre tão pequena inexata rasteira? Dizer do meu jeito que é um jeito qualquer? Pode ser, pode ser Mas desejo mesmo é escrever por dentro como vai escrevendo a água enclausurada nos ramos ou no imo das folhas Translúcida tinta de sustentação que (um dia) em néctar aflora o ideal sabor da fala. E por fim, esta cena que jorra como uma forma de pontuação final, porém de uma verdade inacabada porque sempre: a vida em verso o verso em livro Jamais recusa Deus as palavras a quem delas precisa. Por que o enunciado repetitivo do verso? Por que o descritivismo teatral de certas relações? Tantas questões para críticas. Para mim, um resvalar em luzes, certo assombro diante da beleza, um desatino pelo revelado. Para mim, uma gratitude pela poesia de Lucinda Nogueira Persona! E mais não posso escrever por calar-me diante de um espaço tão belo! E que você continue cantando em todos os leitos, Por Imenso Gosto! Março, 2006.


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Tereza Albues Escritora (romancista e contista), graduada pela UFRJ em Direito, Letras e Jornalismo.

BREVE TRAVESSIA PELA IMENSIDÃO DO SILÊNCIO DE LUCINDA PERSONA

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onfesso que me envolvi com a ternura, o cuidado, a delicadeza de Hans, desde o primeiro segundo em que ele entra em cena. Não pensei em mais nada a não ser acompanhá-lo como uma sombra devota, onde quer que ele fosse. Nem em sonhos passou pela minha cabeça que Hans pudesse estar atuando em outra dimensão. Como ele, coloquei-me, fervorosa, “a serviço do silêncio”. Nada questionei, embora às vezes tenha topado com certas pistas que talvez servissem de alerta. Mas que nada. Ficamos por demais embevecidos pela leveza da trilha a qual somos levados pelas sutilezas de Hans, o esposo abnegado. Aplaudimos, quase invejosos, tanta dedicação. Deixamo-nos levar, contentes de compactuarmos, de certa forma, com o seu delicado fazer rotineiro. Sem pudor, tornamo-nos cúmplices de sua missão. Em parte, devido ao magnetismo do clima poético, quase melancólico, um misto de estações passadas e vindouras, que a autora habilmente vai semeando pelo contexto. Em parte, graças ao cativante ritual de Hans, sereno e simples, que nos convida a ir entrando gradativamente no cerne dum cotidiano, de cômoda coexistência. Tudo isso burilado numa linguagem atraente e acolhedora, a nos abrir a porta da mansidão. Não há como recusar. Entramos. E nos sentimos em casa. Relaxados e pródigos. Pronto! O ponto do ajuste. O contraponto do imprevisto. Acabamos de cair na armadilha, até enternecidos, sem desconfiar que no final da jornada seremos tirados aos solavancos de nossa comodidade com uma única palavra: viúva. Magistral! Lucinda Persona subverte a trama, assim, impunemente, como quem puxa, distraída, um fio solto duma tapeçaria inacabada. E o resultado imediato do gesto revela bruscamente a inconsistência de nossas certezas antecipadas. Bumba! A história é outra. Muito outra. Ficamos de queixo caído. Bem feito! Quem mandou se deixar enredar nas malhas desta habilidosa tapeceira dos signos, que se chama Lucinda Persona? New York, 13/02/2004


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Carlito Azevedo É editor, tradutor, crítico e poeta.

SER COTIDIANO, 1998

A capacidade de retirar a poesia mais límpida das coisas simples, banais e cotidianas situa a poeta Lucinda Nogueira Persona na família poética de Manuel Bandeira (que se perguntava, num poema famoso, que importavam a Glória, a paisagem e a linha do horizonte, se o que ele via era o beco), e de Mário Quintana (que escreveu que descobrir continentes é tão fácil como esbarrar num elefante e que poeta é aquele que acha uma moedinha perdida). Mas neste Ser cotidiano, assim como na poesia daqueles dois mestres, a simplicidade é enganosa, e não só esconde uma relação sofisticada com o verso e com a palavra coloquial, mas também abre estranhos mundos por trás das coisas comuns. Como a sopa de ervilhas tomada à noite que perde seu caráter tranquilizador e ameno para tornar-se um pântano a nos sugar como um buraco de treva na noite do poema, ou ainda como as violetas do belíssimo poema “De ser tarde”, que são chamadas, em verso antológico, “labaredas roxas de nenhum fogo”. Isso porque Lucinda tem o poder da síntese e o da transfiguração. Poder que lhe vem ora da intensidade com que vive seus momentos, como lavar alimentos na cozinha (“Abro a torneira. A água me envolve/ e, dessa calma agitação eu me entretenho/ como se tivesse uma cachoeira nas mãos”), ora lhe vem de Eros (“Flutuando como gaivota/ rastejando como caracol/ e anulando perfumes/ as flores não valiam nada. / Os sexos eram flores”). Quem diria que poeta tão mestra no domínio do cotidiano seria tão certeira na transfiguração metafórica. Lucinda Nogueira Persona é uma das mais gratas surpresas da nova poesia brasileira”. [Orelha de Ser cotidiano, 1998]


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Marta Cocco É natural de Pinhal Grande-RS, formada em Letras, doutora em Letras e Linguística, professora de Literaturas da Língua Portuguesa na graduação e na pós-graduação da UNEMAT-MT. Faz parte do grupo de pesquisa LER: Leitura, literatura e ensino – UNEMAT/CNPq. Ganhadora de vários prêmios literários, já publicou cinco livros de poemas (Divisas, Partido, Meios, Sete Dias e Sábado ou Cantos para um dia só), dois de crítica literária (Regionalismo e identidades: o ensino da literatura produzida em Mato Grosso, Mitocrítica e poesia), um de contos (Não presta pra nada) e, com este, três infantis (Lé e o elefante de lata, Doce de formiga e SaBichões).

Um narrador sob o disfarce do tempo em Vovô morrerá hoje de Lucinda Persona

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uando o editor da Pixé me “intimou” a escrever uma resenha sobre a produção literária de Lucinda Persona, fiquei pensando se teria algo novo a dizer depois de artigos, capítulos de livros, uma tese e livro já publicados sobre a obra dessa autora. Pensei se teria algo novo a dizer, sem me repetir. Nesse momento, dei-me conta de que justamente a repetição (de mitemas, de mitologema e de dicção estilística) foi uma das questões que me impulsionaram à pesquisa. Assim, dentre as publicações feitas, quase todas sobre os poemas da autora, optei por repetir, com algumas alterações, uma análise sobre um dos contos: Vovô morrerá hoje, publicado em Cuiabá na coletânea A margem esquerda do rio – contos de fim de século (2002). A análise foi publicada como capítulo do livro Literatura e contexto (2011), organizado pela profa. Luzia Oliva dos Santos (Unemat/Sinop). O conto, desde a primeira leitura, surpreende pela constituição de, pelo menos, dois elementos: o tempo e o narrador (voz e perspectiva), sobre os quais recaiu esta investigação.


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Antes de me deter na análise propriamente dita, convém lembrar alguns conceitos caros a Genette. Para ele, a narrativa é a “representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos reais ou fictícios, por meio da linguagem e mais particularmente da linguagem escrita” (GENETTE, 1974, p. 255). Ao dizer isso, de forma aparentemente simples, Genette não deixa de advertir para o risco de se considerar evidente esse conceito e não levar em conta aquilo que constitui “problema e dificuldade” e que é o ser mesmo da narrativa. Pois é justamente desse ponto que parti para desvendar, no conto em questão, o que está além da falsa obviedade da morte de uma personagem relatada por outra. É importante mencionar que Gérard Genette retoma, em seu estudo sobre a narrativa, os primeiros tratados a respeito do assunto elaborados por Platão e Aristóteles e, partindo do que escapou aos filósofos, restitui ao gênero narrativo o seu lugar de importância na literatura. Platão distinguiu a imitação propriamente dita (mimesis) da simples narrativa (diegesis), considerando esta última de qualidade inferior em relação ao drama. Já Aristóteles postulou que a narrativa (diegesis) é um dos dois modos da imitação poética (mimesis). O outro modo seria a representação direta dos acontecimentos por meio de atores, ou seja, distingue poesia narrativa e poesia dramática. Para Genette, os dois filósofos concordavam com o essencial: a distinção entre o modo dramático e o narrativo, dando ao primeiro um status privilegiado. Nas palavras do teórico: Enquanto que constituída por falas, discursos emitidos por personagens (é evidente que em uma obra narrativa a parte de imitação reduz-se a isso), ela não é rigorosamente falando representativa, pois que se limita a reproduzir tal e qual um discurso real ou fictício (GENETTE, 1974, p. 259). Trazidos à cena alguns desses postulados, parto para a análise propriamente dita do conto com as devidas referências à teoria, quando a mesma se fizer oportuna. A história é contada por um menino que observa minuciosamente o ambiente em que o vovô se encontra (deitado numa rede no quintal da casa), além da mãe e do pai e suas respectivas ações no momento em que o vovô morre e um médico é chamado. O menino narra o fato antes de acontecer. Uma barata faz parte da história, à primeira vista, sem maiores relevâncias para a trama. O título já nos surpreende com o anúncio da narrativa sobre um fato futuro: ‘Vovô morrerá hoje’. A forma verbal no futuro do presente e a declaração inicial do narrador suscitam nossa curiosidade sobre ele: como pode ter tal poder/visão? Pois lhe conto. São quatro horas da tarde. É espantoso sim, mas vovô morrerá hoje. Mais espantoso ainda é que ele estará morto antes mesmo de morrer de fato. Com oitenta e dois anos, apesar de forte e saudável, vovô morrerá hoje. E será no início da noite. E atrapalhará o jantar. Este é meu jeito estranho de recordar o que ainda vai acontecer. Como não pode ser de outro modo, acompanho os antecedentes do atropelo (PERSONA, 2002, p.93) Observo imediatamente a incidência de índices temporais que me levam a elaborar a hipótese de uma deliberada intenção do narrador em chamar a atenção do leitor para aspecto temporal: “são quatro horas [...] morrerá [...] estará morto [...] oitenta e dois anos [...] morrerá hoje [...] será no início da noite [...] jantar [...] recordar [...] acontecer [...] antecedentes”. Para identificar esse narrador, busquei em Genette algumas de suas valiosas considerações sobre a narrativa. De acordo com o teórico, a voz (assunção das condições de enunciação pela instância narrativa) designa, ao mesmo tempo, as relações entre narração e narrativa e entre narração e história, com três possibilidades de narrador: autodiegético, homodiegético e heterodiegético. No conto em questão, o narrador em primeira pessoa, dá-nos a impressão de ser autodiegético pois, no limite, é quem seleciona os fatos e narra-os como convém, registrando suas impressões. Entretanto, comporta-se como homodiegético (e a esse comportamento caberá um comentário posterior), pois conta a história de outro personagem, o avô no dia de sua morte. Destaco o modo como ele se concentra na presença de uma barata na sala da casa: Neste momento, apressada e atônita, uma barata avança bem rente ao rodapé da parede de adobe. Ela avança por partes, de vinte em vinte centímetros. Percorre uma distância total de cerca de dois metros, pára, gira rapidamente entreabrindo as grandes asas, volta pelo mesmo caminho, dá outra parada e se ajeita para atravessar a sala. Estou seguro de que vai atravessar a sala (PERSONA, 2002, p.93). A barata é um elemento da ambientação que, aparentemente, não tem nenhuma função no enredo, mas, como sabemos que em uma narrativa nada pode ser desconsiderado, ao avançarmos na interpretação dos elementos constitutivos do conto, atribuiremos sentidos a sua presença. Prosseguindo na tarefa de decifrar o tão hábil narrador, dirijo-me às pistas do texto. Ao confessar que volta da escola, imagino um menino, com idade difícil de precisar. Ora, mas um menino teria essas qualidades/habilidades identificadas como as de um narrador? Teria, especialmente, tal sofisticação linguística para registrar suas impressões? A pergunta, que poderia sugerir um caso de inverossimilhança, reforça a tese genettiana de que todos os elementos precisam ser compreendidos na relação que estabelecem entre si na diegese. Assim, procedo à investigação sugerida inicialmente: a relação entre o narrador e o tempo. Dentro da instância narrativa, é fundamental situar a posição do tempo. Para Genette (1979), a narrativa é uma “sequência duas vezes temporal”: o tempo da coisa contada e o tempo em que a coisa é contada. Para ele, “cambiar um tempo num outro tempo é a função da narrativa”. Eis a chave para entender o conto em questão:


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Estudar a ordem temporal de uma narrativa é confirmar a ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história, na medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode ser inferida deste ou daquele indício indireto (GENETTE, 1979, p. 33). O próprio conto de Persona nos acena para a existência de anacronia na história e para o disfarce que o narrador preparou para intrigar o leitor: Este é o meu jeito estranho de recordar o que ainda vai acontecer. Como não pode ser de outro modo, acompanho os antecedentes do atropelo.(...) É engraçado, o número de horas que gasto sem fazer nada está acima da cota de tempo que me foi dada. Difícil este cálculo. Meu ócio é mais duradouro do que minha própria vida. Por conta disso, engano o tempo (PERSONA, 2002, p 94). Há, portanto, a confissão do narrador de que engana o tempo. Cabe-nos descobrir como. O tempo predominante em toda a narrativa, nas formais verbais, é o do presente do indicativo. Apenas no primeiro parágrafo existe a presença do futuro do presente, indicando justamente a intenção de contar o futuro. No último parágrafo, temos o pretérito perfeito a partir do momento em que a mãe “acendeu” a vela, tempo verbal utilizado para marcar ações que ocorrem num tempo definido. Nesse sentido, o uso desse tempo pode indicar a confirmação da morte do avô. Por essas observações, o ímpeto inicial foi o de afirmar que estávamos diante de um caso de prolepse, não muito comum, segundo Genette (1979, p. 65): “A antecipação, ou prolepse temporal, é manifestamente menos frequente que a figura inversa (analepse), pelo menos na tradição narrativa ocidental”. Para o teórico, diante de uma prolepse, a narrativa em primeira pessoa é a mais apropriada, pelo seu “caráter retrospectivo, que autoriza o narrador a alusões ao futuro e, particularmente, à situação presente” (GENETTE, 1979, p. 66). É exatamente isso o que observamos no conto de Persona: um narrador que anuncia o futuro, mas se refere aos antecedentes do evento principal (a morte do avô), fazendo, portanto, um movimento retrospectivo e, depois, apontando os fatos numa sequência linear, com formas verbais no presente, mudando para o pretérito perfeito apenas no final. Todas as tardes, entrincheirado em algum lugar, faço-me atento aos movimentos da casa que bem pouco se mexe. Papai está sentado num jirau. [...] Nas sombras da varanda, alheio aos bens terrenos, vovô está na rede – seu lugar cativo. Diante dos meus olhos, afasta-se o dia, assim: a pacífica luz do entardecer sai de mansinho de dentro de casa. Erguese do chão da varanda e deixa vovô na penumbra. Ela, a luz pacífica, sobe no velho telhado para entrar nos olhos do gato. Enquanto eu for pequeno, isso me acalma (PERSONA, 2002, p.94). Nesse último período está uma das pistas, justamente num advérbio de tempo e num adjetivo que também indica tempo: enquanto e pequeno. Vejamos outra dica: A barata continua imóvel. Um leque marrom aquelas asas semi-abertas. Volto àquilo que se vai. Meu peito dói ao frio perfume. Uma sombra, maior do que a casa está dentro dela. Quero correr e não consigo (PERSONA, 2002, p. 94). Querendo abarcar tudo o que está à volta do evento da morte do avô, o narrador se concentra na barata, mas em seguida “volta ao que se vai”, ao que está em andamento, a morte e o seu ato de contar. Estaria este episódio gravado em sua memória? Então é necessário registrá-lo, antes que se vá. Por que não consegue correr? Por que a imobilidade? E poderia ser diferente no mundo da lembrança? Portanto, se existe uma lembrança, há, enfim, um narrador que, tendo testemunhado um evento, decide contá-lo, anos mais tarde, com toda a sua experiência de vida e de linguagem que lhe permitem uma atenção minuciosa aos detalhes, com requintes de elaboração e de criatividade. Abro um parêntesis aqui para a hipótese de o uso das formas verbais no presente do indicativo ter dupla função: tanto a de organizar a sucessão dos fatos naquele passado, como a de sugerir comentários do narrador acerca da sua vida adulta, pois dizer, por exemplo que “o ócio é mais duradouro que a própria vida”, pode ser uma alusão ao seu estado presente e não pretérito. Pois bem, voltar no tempo e contar, passo a passo, como vovô morrerá é restituir a si mesmo uma certa dignidade que não lhe foi conferida no passado, cujos motivos não são possíveis de identificar. Nota-se como ocorre a participação dos outros personagens, a começar pelo pai e pelo médico: Agora, vovô está roncando forte, numa seqüência de sons cada vez mais secos e obscuros. Papai se aproxima, desassossegado. Vovô transpira em bicas. Papai se alarma. Vovô não está nada bem. É preciso chamar o médico. O médico é vizinho, que bom, e vem no ato, e examina vovô, e pega aqui, e pega ali. Depois recua, chama papai num canto. Fala claro. — Seu pai está morto — e papai, admirado, retruca. — Mas como?! Ele respira, pude perceber. E o ronco? É de vivo. O médico, amigo, entre sério e abalado, mas muito convicto, repete: — Estou dizendo, está morto. Vai lá, pega nele. Papai, num átimo, vai e toca em vovô, empapado de suor. A seguir, volta tartamudo.


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— Nossa! Ele está gelado, doutor. Tem uma água pegajosa no corpo. O que é isso? — e o médico, olhando o horizonte imediato, responde. — É a morte, pode crer. Conheço-a muito bem. É ela (PERSONA, 2002, p. 95). Em seguida, entra a participação da mãe: “Mamãe, já dentro do meu foco, com gestos suaves, acendeu uma vela” (PERSONA, 2002, p.95) e até dos pernilongos: “Uma névoa negra de pernilongos frenéticos, cantando fininho, vem chegando para o velório” (PERSONA, 2002, p.95). Entretanto, a presença do menino na família é assim descrita, com a ressalva de que é apresentada em primeira pessoa pelo próprio personagem, com todas as implicações que isso pode suscitar: “Ninguém se lembrou ainda de me procurar” (PERSONA, 2002, p.95). Pois bem, se na ocasião – no dia da morte do avô - não teve tanta importância, ele, o narrador, ironicamente, a conquista no momento em que conta a história, fazendo-a com uma clara consciência temporal que lhe permite o disfarce e que, provavelmente, à primeira vista, confundirá o leitor. Enfim, este é um caso de prolepse na narrativa primeira que, numa camada mais profunda, revela uma analepse, baseada na memória do narrador. Cumpre-se, então, o que Genette considera o papel primordial da narrativa, já mencionado anteriormente: cambiar o tempo noutro tempo. Sobre o narrador, voltando à sua caracterização (em relação à história) como homodiegético, podemos acrescentar que se trata de uma classificação cuja variação neste conto, é difícil precisar, se levarmos em conta que: Haverá, pois, pelo menos, que distinguir no interior do tipo homodiegético duas variedades: uma em que o narrador é o herói da sua narrativa e a outra em que não desempenha senão um papel secundário que acontece ser, por assim dizer sempre, um papel de observador e de testemunha.( GENETTE, 1979, p. 244). Ora, se sua intenção foi o resgate da própria dignidade e, fazê-la em primeira pessoa poderia soar suspeito, nada como colocarse propositalmente como personagem secundário. Ora, sendo um observador, e não um mero observador, reuniu as condições para tornar, pela sua escrita, a morte do avô memorável (herói nesse sentido). Do ponto de vista do nível da narrativa, podemos identificar a mesma dubiedade: por um lado, temos um narrador que, por ter vivenciado o episódio da morte do avô e dominar a completude do evento, com ampla visão, pode contá-lo extemporaneamente, manipulando o tempo; de outro, um narrador que se coloca dentro da história (nível intradiegético) sem importância aparente. Desses comportamentos dúbios, chega-se à síntese do seu movimento que foi o de regressar no tempo e, a partir daí, contar, no presente, o que estava por acontecer. A barata, uma das grandes metáforas do texto, pode significar a hesitação da própria memória ao retomar fatos do passado, e/ ou a fragilidade humana diante da morte, o temor diante de um risco que pode nos arrebatar a qualquer momento, como sugere o parágrafo final do conto: Nesse tempo todo em que estive esperando vovô morrer, perdi de vista a barata. Da última vez que lhe pus os olhos, estava hirta, incapaz de atravessar a sala. Deveria percorrer poucos metros até alcançar a cozinha, talvez, ou ali num lugar no meio da noite. Foi para criar coragem, com certeza, que ela se deteve. Coragem para armar os passos e se atirar sala afora, sem esbarrar na morte (PERSONA, 2002, p.95). Esse parágrafo foi tomado como emblemático, mas, em todo o conto, se nossa atenção tivesse se concentrado na descrição do espaço, especialmente dos seres nele inseridos, verificaremos que todos se movimentam ou apresentam índices de movimento no tempo. Assim, tudo é simbólico, tudo expressa o caminho das coisas e dos seres para a finitude. Uma finitude assustadora, que requer cautela e, em alguns momentos, é apresentada como o limiar para a eternidade - vejo a eternidade que se aproxima. (Persona, 2002, p. 94), parecendo opor a uma visão trágica do destino, a concepção cíclica de tempo. Esse aspecto certamente contribuiria muito para uma análise mais abrangente da narrativa estudada, entretanto, ficará para uma próxima investigação. Voltando à barata e ao ponto central deste artigo, se a reconhecemos como metáfora e como tal, portadora de múltiplos sentidos, é possível que ela também queira chamar a atenção do leitor para o que possa passar despercebido: a relação entre o narrador e o tempo. Perder isso de vista, neste conto, é perder a oportunidade de atravessar a sala fascinante da história e estar, diante dela, vivo. Referências GENETTE, G. Análise estrutural da narrativa – pesquisas semiológicas. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. ____________. Discurso da narrativa – ensaio de método. Lisboa-Portugal: Ed. Arcádia, 1979. PERSONA, L. Vovô morrerá hoje. In: LEITE, M. C. S.; MORENO, J. (Orgs.). Na margem esquerda do rio: contos de fim de século. São Paulo: Via Lettera, 2002, p. 93 a 96.


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Matheus Guménin Barreto (1992- ) é poeta e tradutor mato-grossense. É autor dos livros de poemas A máquina de carregar nadas (7Letras, 2017) e Poemas em torno do chão & Primeiros poemas (Carlini & Caniato, 2018). Doutorando da Universidade de São Paulo (USP) na área de Língua e Literatura Alemãs - subárea tradução -, estudou também na Universidade de Heidelberg e na Universidade de Leipzig. Encontram-se poemas seus no Brasil, na Espanha e em Portugal (Revista Cult, Escamandro, plaquete “Vozes, Versos”, Gueto, Palavra Comum e Diário de Cuiabá; entre outros), e integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne.

Lucinda Nogueira Persona: convidada discreta nos coquetéis do hoje

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ego-me tentando encontrar o fio contínuo da obra de Lucinda Nogueira Persona (1947- ), o fio de Ariadne que a autora talvez tenha segurado ao atravessar seus 25 anos de publicação de poesia. E como não é este texto uma resenha, um artigo ou coisa que o valha, permito-me expor – francamente e em primeira pessoa – meus esforços ao leitor. Leio e releio Por imenso gosto (Massao Ohno, 1995; Carlini & Caniato, 2018), Ser cotidiano (7Letras, 1998), Sopa escaldante (7Letras, 2001), Leito de Acaso (7Letras, 2004), Tempo comum (7Letras, 2009), Entre uma noite e outra (Entrelinhas Editora, 2014) e O passo do instante (Entrelinhas Editora, 2019) em busca desse fio de Ariadne. Que Persona talhou quase em silêncio e longe dos holofotes uma das obras mais discretamente originais da recente poesia brasileira, isso já sabemos. Há muitos que ainda não a conhecem, mas há poucos que, em a conhecendo, desconsiderem sua potência. Que Persona pareceu não aderir a nenhum dos muitos agrupamentos literários que a rodearam, antes pareceu beber de muitos deles e aproveitar o que em cada um lhe poderia fortalecer a poesia, isso também sabemos. A poesia de Persona é, como o é a autora, convidada discreta nos coquetéis do hoje: presente e retirada, atenta e distante. Cruza os grupos, troca palavras, mas volta cedo para casa. Que a poesia de Persona parece não coincidir com aquela poesia participante ou abertamente política (‘abertamente’, já que de um modo ou de outro toda obra de arte é política) que tem recepção mais favorável nas capitais da sesmaria – São Paulo e Rio de Janeiro –, também sabemos nós. Sua força política estaria talvez emaranhada nos versos, abaixo do solo, mas ainda assim presente. Se sabemos disso tudo, o que liga os pontos da obra personiana? Há algo que os ligue? A resposta sempre frágil, sempre incompleta para essa pergunta parece estar na palavra que vem rodeando e atravessando meu texto: o silêncio. Talvez no silêncio possamos conjugar os frutos lavados e cortados há 25 anos, os passeios à volta da mesa de jantar há 25 anos, a atenção curiosa aos pequenos insetos e aos pequenos acontecimentos há 25 anos. Talvez no silêncio possamos conjugar os ecos todos dessa poesia escrita e transcorrida entre as quatro paredes de uma casa – porque a poesia de Persona é acima de tudo doméstica, mesmo quando (ou principalmente) se passa em outras paisagens, em quartos de hotel, em torno da linguagem. Não haveria nisso um retrato ferozmente preciso de nossa sociedade brasileira, estruturalmente patriarcal? Um retrato que, ao mesmo tempo em que dá a ver, subverte a lógica dominante: as pequenas epifanias domésticas (claricianas) se tornam – na mão do Eu do poema – sua grande e silenciosa resistência, seu segredo de esfinge que se recusa a propor seu enigma. E que o saboreia, vitoriosa. Terminando este texto com as palavras de quem já disse mais e melhor, reproduzo abaixo o poema “Em nossa nudez” (do livro Entre uma noite e outra), um dos grandes poemas brasileiros da última década, um daqueles que – para lembrar aqui os versos de Drummond – nos expõem a “essa nudez, enfim, além dos corpos”. A essa mudez além dos corpos.


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REALIZAÇÃO

PATROCÍNIO

ESPAÇO RESERVADO PARA MARCA DO PATROCINADOR R E V I S TA

LITERÁRIA


ESPAÇO RESERVADO PARA marca DO PATROCINADOR

R E V I S TA

LITERÁRIA

ano 2 fevereiro/2020 edição especial BRASILEIROS PELO MUNDO


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Eduardo Mahon Editor Geral

editorial

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sse mês, a Revista Pixé circula novamente com dois números. Decidimos fazer um único editorial. Que os leitores não acreditem tratar-se de preguiça do Editor. A estratégia é deliberada. Selecionamos os artistas Waldomiro de Deus e Jéssica Traven. Ele, experiente artista popular baiano a ilustrar uma revista nascida no centro geodésico da América do Sul e ela, jovem cuiabana dedicada à aquarela, convidada para participar de uma edição especial de brasileiros que moram no exterior. O que isso significa? É o samba do crioulo doido? Como sabemos que nada surge sem propósito, temos muito o que dizer com a arte e com a literatura presente nesses números. Ao completarmos nosso primeiro ano, a Revista Pixé não tem um programa estético definido. Não lançamos manifestos. A ausência de manifesto pode ser tomada como uma forma de programa, plataforma, manifesto. Estranho, não? As vanguardas modernas nos ensinaram alguma coisa: em todas as posturas que proclamam o novo, há uma semente autoritária. Essa obsessão pela superação do passado tornou-se paranoica. Até o limiar do século XXI, importante era negar, romper, desafiar. Inevitavelmente, os vanguardistas estabeleceram a sua própria cartilha estética, prontos para o ulterior desafio, uma espécie de autofagia psicótica. O que os jovens revolucionários não desconfiavam é que o conservadorismo é um instintivo de sobrevivência. A Revista Pixé não tem pauta! O ecletismo é a força do contemporâneo e seremos significativos na medida em que nos solidarizamos com a diversidade. A eleição da obra de Waldomiro de Deus é uma das afirmações que buscamos. Por quê? A arte popular foi varrida pela erudição moderna, rejeitados nas galerias em grande parte do século passado. O naif foi acusado de não ter futuro, compromisso inovador, experimentação técnica, profissionaliza-

ção artística. O artesanal passou a ser uma arte de segunda categoria, preterido pelas outras tendências, cada qual encastelada na arrogância de varrer a tradição para debaixo do tapete. É passado! – acusavam os autoproclamados modernistas. Curiosamente, o que há de mais atual é o artesanal na xilogravura, na litogravura e na street art do grafite. Geração após geração, sucediam-se revoluções estéticas até se estabelecer uma tradição de vanguarda tão manjada quanto conservadora. Como deve se posicionar uma publicação contemporânea como a Pixé? Nossa única certeza é não ter ostentar nenhuma certeza. Essa postura não é dúbia, não é covarde, não é abstencionista. É apenas um modo de ver a realidade. O que nos importa mais é criar uma grande tribo do que pontificar um estilo único. Preservar a diversidade é assumir uma postura não-autoritária. Portanto, o experiente artista popular baiano tem o mesmo espaço da jovem artista cuiabana, uns escrevendo do centro e outros escrevendo de fora do país. Tampouco buscamos o que seja “a brasilidade” porque a imagem convergente, monolítica, idealizada de um só Brasil não nos ilude. Quando escritores dizem que são “pós-modernos” não deixam de seguir a cartilha da modernidade a fim de estabelecer essa classificação: uma lógica linear e progressista de superação do passado pelo presente, pressionando o futuro com as mesmas paranoias de sempre. Somos pós-nada. Estamos vivos e mergulhados na essência humana mas num tempo circunstancial, onde as fronteiras viraram convenções e a realidade é suprarreal. Queremos as idiossincrasias de uma comunidade tribal, com índios, pajés e caciques, unidos em cerimônias de afetividade. A Revista Literária Pixé coloca-se dessa forma por saber que a ética da tribo: o passado não é pior do que o presente e que o futuro não será necessariamente melhor. Talvez seja esse o nosso manifesto. Talvez...


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expediente

Direção Geral e Edição: Eduardo Mahon Curadoria: Sonia Palma Colaboradores desta edição: Alexandra Magalhães Zeiner, Angela Cardoso, Baron Camilo Agasim-Pereira of Fulwood, Carla Adriana Almeida Pigarro, Concha Rousia, Daísa Rizzoto Rossetto, Danielli Cavalcanti, Debora Pio, Detlef Günter Thiel, Eliana Bueno, Farah Serra, Fátima Nascimento, Fernanda Moura, Flávia Menegaz, Gabriela Ruivo, Ilana Eleá, Isabel Cintra Söderberg,


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SUMÁRIO 2 6 8 10 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36 38 42 44 46 48 50 52 54 56 58 60 62 64 66 68 70 72 74 76 78

Editorial Alexandra Magalhães Zeiner Carla Adriana Almeida Pigarro Concha Rousia Angela Cardoso Daísa Rizzoto Rossetto Danielli Cavalcanti Debora Pio Detlef Günter Thiel Eliana Bueno Farah Serra Fátima Nascimento Fernanda Moura Flávia Menegaz Gabriela Ruivo Ilana Eleá Baron Camilo Agasim-Pereira of Fulwood

Jéssica Traven

Sônia Palma Isabel Cintra Söderberg Ivna Chedier Maluly Manuella Bezerra de Melo Mariana Freitas Marta Cortezão Mazé Torquato Chotil Nara Vidal Patrícia Cacau Paula Botelho Sandra Maciel Barreto Terezinha Malaquias Valeska Alves Brinkmann Veronica Botelho Natan Barreto Vera Lucia de Oliveira Livia Mata Virna Teixeira Viviane Fuentes

Ivna Chedier Maluly, Livia Mata, Manuella Bezerra de Melo, Mariana Freitas, Marta Cortezão, Mazé Torquato Chotil, Nara Vidal, Natan Barreto, Patrícia Cacau, Paula Botelho, Sandra Maciel Barreto, Sonia Palma, Terezinha Malaquias, Valeska Alves Brinkmann, Vera Lucia de Oliveira, Veronica Botelho, Virna Teixeira, Viviane Fuentes. Projeto Gráfico/Diagramação: Roseli Mendes Carnaíba Artista Visual Convidado: Jéssica Traven


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Amazonas de Hoje Hoje criei tempo pra me amar Encontrar-me, sentir, acariciar Esta outra parte de mim, Que vive tão distante Em mundos paralelos De sonhos ideais Perdoei e integrei As mutantes que trago dentro em mim Deusas de muitas faces: Salomé, Madalena A Guerreira e Maria Desconhecia o poder A força e o medo Que a escuridão e a ilusão causavam Que me cegavam Que me separavam deste mundo Ao mergulhar nas profundezas Das fossas oceânicas Encontrei seres de luz própria Indicadores de outras vidas Outras dimensões E assim me entreguei Ao me guiarem para a superfície Processo novo foi iniciado De aceitação e compaixão total Que me integrava, eu e minhas irmãs As Amazonas, habitantes da Mãe Terra Filhas do Mundo e da Polaridade.

Alexandra Magalhães Zeiner Mestre em biologia marinha pela Memorial University of Newfoundland, Canadá, publiquei meu primeiro livro no exterior, O filho do boto cor-de-rosa (2011) infantojuvenil bilíngue. Autora de oito ebooks, quatro livros bilíngues infanto-juvenis pela editora Educa Brazil e dois poemários: Incondicionalmente Eu, Sangre Editora (2019) e Sobrevivente, Gira Brasil (2018), ilustrado pela mentora brasileira Clevane Pessoa. Desde 2012 resido em Augsburg, cidade da paz no sul da Alemanha, onde fundei a ONG Mulheres pela Paz - Frauen für Frieden.


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DE PIJAMA, NÃO!

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e disseram que minha vida mudaria, que tudo seria maravilhoso, mas teriam dias que ficaria de pijama o dia todo. Oi? Eu, como uma boa aquariana, tracei uma meta, rotina ou o que seja, mas sem pijama, com três meses de gestação. Só pode ser influência do meu signo. Após o nascimento da minha filha, coloquei em prática meus planos, recusando-me ficar mais que quarenta minutos sequer de pijama, cobrando-me arrumar a cama assim que levantasse, e entre uma mamada e outra, preparar o café e seguir com a rotina. Tudo andando conforme o planejado, como uma heroína da rotina “mãessacrante”, até que resolvi retornar ao trabalho. Opa! Mãe, mulher e trabalho. Novo plano em vista. Coloquei o signo em ação e tudo seguiria como os ingleses dizem, “smoothly”. No meio do caminho, percebi algumas estranhezas do cotidiano como a combinação de roupa social e pantufa. Esperando pelo ônibus, comecei a suspeitar que algo estaria fugindo do controle, mas como? Onde estava o erro da conta que não fechava? A explicação veio em uma sexta-feira chuvosa de outono. Acordei com aquele cheirinho maravilhoso no meu cangote resmungando por um mamá, e logo vi que meu cabelo acordou festejando a chuva, a fralda da filha vazada com ela em nossa cama, enquanto o marido dizia querer dormir quinze minutinhos a mais. Ótimo! Bom dia sexta-feira! A soma de não conseguir arrumar a cama mais lavar o cabelo me agoniava. Lembrando-me da sexta-feira, resolvi interagir, brincar com a filha, preparar o café e correr para o banheiro, e em cinco minutos cronometrados, passar um shampoo seco no cabelo, recomendado pelas mães de pijamas. Depois de terminar de usar o tal do shampoo seco, deparei-me com o frasco de desodorante na mão. Sim! Havia passado exageradamente desodorante em todo o cabelo. Era uma mistura de crise de riso com choro, muito choro. É! Realmente somos prisioneiras de nossas escolhas, escravas das consequências de nossas conquistas. Passamos anos lutando pela liberdade, pela igualdade, para podermos provar o melzinho da autossuficiência e nos orgulharmos da nossa independência, mas naquela sexta-feira, entre uma coçada e outra na cabeça, perguntei-me como seria passar o dia de pijama?

Carla Adriana Almeida Pigarro É Natural do Paraná, é graduada em Letras e Design de Interiores pela UNIGRAN. Reside fora do Brasil há doze anos, atua como assistente administrativa, tradutora e revisora de textos em Londres. Não foge de uma boa conversa acompanhada de um bom café, e se finalmente organizar seus pensamentos, pretende escrever um livro ainda neste século.


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ANIVERSÁRIO EM PARIS

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ntem foi o nosso aniversário. Poderia falar de um monte de pequenos detalhes que dizem tudo de nós. Poderia falar da arquitetura do casal que vamos construindo e desenhando depois. Sim, por essa ordem. Já logo vai lá saber o que foi antes, se o ovo ou se a galinha. Poderia falar de como nos quintais da nossa vida crescem frondossíssimas sequoias ao pé de delicados sorrisos. Há também aquelas ervinhas ruins que deixamos crescer de propósito para drenar os venenos que o tempo nos vai fazendo engolir. Poderia reparar em muitas coisas. Por exemplo, poderia reparar no nosso jeito de continuar a sonhar juntos, de continuar a sonhar por separado. Somos dois seres individuais que juntos somam mais de um infinito. Poderia lembrar aqui tanta coisa... mas decido não. Decido reparar apenas nos nossos primeiros pratos, trinta-e-um anos que essa baixela nos acompanha. São muitos anos, tantos que os riscos cor-de-rosa, azul e amarelo já não se percebem mais. Ficaram brancos como os nossos cabelos, e tão dignos, a conviver com os de Sargadelos. Lembro a loja onde compramos essa nossa primeira baixela. Na rua da Caldeiraria de Compostela. A última vez que lá passei ainda estava aberta. Agora tenho medo de voltar lá e descobrir que se converteu em mais uma loja do chinês. Como aconteceu com a fábrica de guarda-chuvas da Rua do Vilar na qual compramos o nosso primeiro guarda-chuvas. E agora que penso, sabes qual é uma das cousas que mais me agradam destes pratos? que nunca se partiram...

Concha Rousia (Santiago de Compostela, Galiza) é cultivadora da terra e da palavra: labrega, poeta e psicoterapeuta. Entre os seus livros publicados estão três romances, Nantia e a Cabrita d’Ouro (2012); e A língua de Joana C. (2006), e As sete fontes (2005). Um livro de poesia, Se Os Carvalhos Falassem (2016), e a participação em coletâneas, na Galiza, em Brasil e Portugal. Tem colaborado em jornais digitais com poesias, crônicas, artigos de opinião. É bibliotecária da Academia Galega da Língua Portuguesa e presidente pela parte galega do Instituto Cultural Brasil-Galiza.


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odos aqui, por favor! Agora! Onde? Na sala grande! Por que? Venham e vão saber! Obrigado por terem vindo. A hora é grave. Mas como assim? O que se passa? Algum vírus? Um furacão? Um terremoto? Amigos, silêncio. Chamei aqui com urgência para essa reunião porque sinto que estamos nas últimas. Só mesmo um milagre poderá nos salvar. Como já notaram, nas ruas a violência é a nova rainha. O Caos entrou no poder e nomeou como monarca esta senhora. Ela manda em todos os lados. E como o Caos tem muitos seguidores não estou conseguindo achar nenhuma ajuda para nos proteger. Por isso convoquei todos aqui. Juntos, acharemos alguma alternativa. (Um silêncio pesado se instalou) E aí o Orgulho falou: PRECISAMOS REAGIR E RÁPIDO! A Justiça, que já andava pele e osso, pediu a palavra e disse: amigos, eu já não tenho forças. Abusaram da minha cegueira para que, em meu nome, esta monarquia entrasse em campo. Não tenho mais como sair às ruas. Ninguém mais me ouve. Eu já estou condenada. Salvem-se como puderem. Liberdade, que estava com os olhos esbugalhados sem saber pra onde ir gritou ao organizador daquele encontro: MAS ENTÃO VOCÊ QUE SABE TUDO, POR QUE NÃO FAZ ALGUMA COISA? Bom Senso, que já tinha os olhos marejados de lágrimas disse: Ah, Liberdade, a senhora acha que eu não tentei? Gritei, chorei, ainda grito, mas ninguém me ouve. Do lado de fora, uma criancinha ouviu aquela discussão e entrou. Todos os presentes, Liberdade, Bom Senso, Justiça, Orgulho, Solidariedade, Alegria. Todos olharam para aquela criança. Ela respondeu: eu sou a Esperança, não abandonem não, vou crescer e vocês vão voltar. Assim, naquele dia, saíram da sala todos juntos e agora estão espalhados pelo país. Tomara que a menina Esperança cresça logo, concluiu a Bandeira que ficou no canto ouvindo e sonhando com o nosso Brasil.

Angela Cardoso Nascida no Rio de Janeiro, é bacharel em direito pela UERJ, diplomada em Análise de Estudos Europeus pela UCL, na Bélgica, e Contabilidade e Auditoria na Chambre Belge des Comptables. Colabora em projetos que falem da língua portuguesa, uma grande paixão.


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Quarto vazio

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paguei as últimas palavras desconhecidas no livro. Assoprei as migalhas de borracha. Escrevi poucas linhas e fechei o caderno vermelho. Deixei o copo na porta. Havia menos, ainda era menos de um gole o que esperava no fundo. Minha cabeça acostumada a girar não girava. Entrei e fechei a porta. Apaguei a luz. Tirei a roupa. Fechei os olhos. Abri os olhos. Fechei os olhos e todo corpo era frio. As mãos paradas no ar. As unhas sem arranhar as pernas, os riscos e cortes, hematomas que não doem mais. A pele seca, a água parada numa garrafa velha. Um gargalo de onde não tomo. …Os idiomas que não pronuncio na minha boca. Deitei com o breu noturno de um quarto escuro. Tudo era frio e uma música tocava no ouvido direito, o sol deitando atrás e todo o quarto ficando cheio de frio. Escuro… Cheio do pouco de mim… Na borda do copo um pedaço da minha palavra. Na minha boca qualquer coisa em falta… O rosto quente e invisível. As voltas já feitas desfeitas na cabeça. Era meu o rosto invisível, apagado nas palavras de um livro azul. Apagadas todas as palavras riscadas nas semanas anteriores. Tirei a roupa sem notar que a escuridão me tocava sem fazer barulho. A escuridão de um quarto vazio e as palavras apagadas… Eu quase percebi que era meu… Era meu o rosto que não existiu na escuridão sem voz que tocou a palavra escrita no meu corpo escuro em um quarto vazio… Setembro, 2019

Daísa Rizzotto Rossetto Tudo ou nada do que sou está no que escrevo. Nada além… ou, entre os rótulos: estudante de Literatura em Portugal, interessada em mulheres e animais (nãohumanos) na literatura; curiosa, vegana, feminista, viajante e viajona.


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Danielli Cavalcanti É paraibana, trabalhou quase 10 anos na ONG maiz, em Linz, na Áustria. Desde 2016, mora na Dinamarca, cursa docência para o ensino fundamental e escreve sobre o viver sob o manto e entre a cerca da migração no blog jardimmigrante.wordpress.com. Publicou Flor de Linz (2016), bilíngue português e alemão, o infantil Sopa de Sapo (2018/2019), em português, dinamarquês e alemão; e Quando eu outono, tu primaveras (2018), e É sempre outono na migração (2019), em português e alemão, ambos de poesia.

Há de se dar voltas ao sol Há de se dar voltas ao sol Para que os logradouros da cidade lhe saúdem As esquinas se arredondem, as ruas se aproximem de você Há de se dar voltas ao sol Para que as vozes não lhe causem cacofonia E você esteja preparada para as quatro estações em um dia Há de se dar voltas ao sol Para aprender o nome das flores e dos pássaros, antes de se despedir deles novamente Há de se dar voltas ao sol Para se acostumar ao clarão das dez horas da noite e à escuridão das quatro da tarde Há de se dar voltas ao sol Para que o vento friorento não lhe cause mais tormento E você consiga apreciar a sinfonia da neve Há de se dar voltas ao sol Para traçar seu caminho coronário na cartografia da cidade E quanto mais voltas, mais a resposta à pergunta: “de onde você vem?” permanecerá incompleta Há de se dar voltas ao sol Para chegar-se aos lugares aos quais se pertence


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Debora Pio É formada em Letras e Linguística pela USP – Universidade de São Paulo, com pós-graduação em Semiótica e Linguística Geral, também pela USP. Vive há dezenove anos em Atenas, Grécia, onde leciona Português Língua Estrangeira e Português Língua de Herança. Escreve contos e poemas desde a infância, tendo publicações na Itália, Suíca, Alemanha. Foi Membro da Academia Juvenil de Letras “Monteiro Lobato”, em São Paulo. Em 2018 recebeu Menção Honrosa no Prêmio Mundial de Poesia Nosside.

... e tu não voltarás Tuas fotos já não posso olhar, Pois que a vista se me turva e me trai Minhas mãos, ao invés de acariciar teu pelo macio Tocam o teclado tecnológico e frio para traçar essas linhas Insuficientes para que eu expresse a minha dor. Teu olhar de amor, teu gesto de carinho, mordiscando meus cabelos, Minhas mãos... jamais esquecerei o que eu sentia naqueles momentos Momentos só nossos que não mais se repetirão Porque foram únicos. Tua voz rouca, teu calor tão gostoso são agora memórias Doces e doloridas nesse momento. Agora, meu amor, encontras-te livre do peso da vida Livre de um corpo adoentado e enfraquecido, Poderás correr feliz novamente e pular onde quiseres, No infinito, Como anjo que te tornaste. Minha saudade eterna, E obrigada por teres existido em minha vida! Te amarei sempre, minha Mimi...


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Detlef Günter Thiel Nasceu na Alemanha e trabalhou como arquiteto 14 anos no Brasil, onde aprendeu a lingua portuguesa e amar a cultura do país, assim como, a vida do protagonista do romance, o lansquenete espingadeiro Hans Staden do condado alemão de Hessen, ambos com passagem no estado de São Paulo. Seguindo o percirdo de Hans Staden, o autor viajou pelas cidades históricas e sítios do Brasil, bem como no estado alemão de Hessen, colecionando informações e fotos alusivas a aspetos relevantes da sua vida.

E assim nasceu o Brasil!

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rata-se do conto da “Hora Zero” do Brasil, quando o aventureiro Hans Staden viveu e testemunhou em seu livro de 1557 “Verdadeira História.....Duas Viagens ao Brasil....” como se formou a nação brasileira – uma obra prima para o público de romances históricos, porque tem um herói de forte personalidade, suficientemente exótico e aventureiro, para atrair as atenções do leitor com a meticulosa investigação do autor, que coloca árduo conhecimento e ímpeto no escreve. E uma linguagem solta que leva a entrar na atmosfera do séc. XVI, no seu contexto sociológico e político. A obra baseia-se em fatos históricos reais e fatos novos, o autor Detlef Günter Thiel realizou uma pesquisa completa sobre Hans Staden, um soldado lansquenete alemão, em todo lugar onde esteve: no Norte de Hessen/Alemanha, em Portugal e no Brasil. Ele conhece a época das descobertas e utiliza os eventos históricos relevantes como fundo para uma descrição meticulosamente detalhada de todas as ocorrências. Deste romance histórico e seu tempo, poderão entender os hábitos das pessoas e também as suas alegrias e o seus sofrimentos naquela época, no renascimento. “Hans Staden, Sua Alma - Minha Alma?” é um projeto tricultural teuto-luso-brasileiro de dois continentes que abre uma janela na história para disfrutar da vivência do mundo quinhentista, uma página da história pouco conhecida e estudada.


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Continho tirado de uma notícia de jornal (à moda de Bandeira)

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les se conheciam há oito meses, oito semanas ou oito dias? Pelo Tinder ou pelo Facebook ? Conversas intermináveis, quantas horas? De dia não, a gente tem de trabalhar madrugada adentro. Sem câmera, com câmera? «Strangers in the night», ele cantou baixinho logo no primeiro dia em que se falaram por voz. E ela se surpreendeu continuando uma canção que pensava esquecida: «Something in my heart told me I must have you». Mas ele pode ser seu filho! lembrou a amiga invejosa. – Mas não é! ela cortou curto. -Mas enfim, tome cuidado! -Mas se vou estar em casa, ok ? Mil porteiros e vizinhos! E ele é uma gracinha! Tão lindo! Ai, meu deus, que roupa eu visto? Alguma coisa bem simples, estou em casa. Nada de maquiagem, só rímel e um brilho. E o brinco de brilhante, épuré e racé. Queijos e vinhos numa mesa caprichada, de comer com os olhos. O porteiro interfona e pergunta se ela está esperando Felipe. – Como assim, Felipe? Mas os porteiros são todos iguais, trocam mesmo todos os nomes, claro que ela está esperando por ele, pode subir ! Ele trouxe doces - Pra ser melhor, você vai ver, experimenta, vai ! Mas pára com isso, mude alguma coisa em sua vida! Ela não quer, não está habituada e acha que não precisa, ele é tão lindo! Não quer bancar a tia chata, mas para ela basta o vinho. Ele é lindo, eles se divertem e se cansam, ele se cansa. E quer que ela deite a cabeça em seu ombro para dormirem abraçadinhos. Afinal, ele não tem o direito de dormir? Ele está cansado, ela não está vendo? Ela está vendo e começa a rir. Ela bebeu um copo a mais e não percebe que ele não está achando graça nenhuma. E não vê se preparar o primeiro golpe. E continua a rir e recebe o segundo e o terceiro, que a joga, ainda surpresa, no chão. E quando começam os insultos ela ri mais alto ainda até começar a gritar por socorro, se lembrando dos doces. Se lembrando de que é insuportável o riso das mulheres. Foi assim, eu estava lá, nós todas estávamos lá.

Eliana Bueno-Ribeiro É professora de literatura brasileira e literatura comparada, tradutora e ensaísta. Publicou uma tradução dos Contos de Perrault (São Paulo, Paulinas, 2016) e tem no prelo um ensaio sobre Lygia Fagundes Telles (São Paulo, Patuá). Pesquisadora-associada ao Centro de Estudos Afranio Coutinho da Faculdade de Letras da UFRJ e editora de Passages de Paris (www.apebfr.org/ passagesdeparis/), prepara um livro sobre Nélida Piñon.

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Farah Serra Vivia uma vida normal até o dia em que resolveu pegar aquele avião que a levou até onde estão as histórias. Autora do livro “Fator Humano da Qualidade em Empresas Hoteleiras” (Qualitymark, 2002. Idealizadora e organizadora da “Coletânea Reedificações – Histórias de mulheres brasileiras que se reinventaram pelo mundo” (Fafalag, 2019). Integrante de diversas antologias. Para acessar os seus trabalhos siga-a no Instagram @farahserra

carola

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arola era uma mulher feliz. Vivia em Khrónos e levava uma vida tranquila. Bem, não tão tranquila. Ela não tinha tempo para pensar na morte da bezerra. As pessoas a achavam importante, havia mil coisas para fazer: trabalhos, projetos, atividades incessantes. Correria mesmo. Mas não perdia o ritmo, seguia com força e retidão, até que… Até que, se encantou por um homem estrangeiro. Uma paixão avassaladora preencheu aquele espaço vazio que ainda existia. Não foi uma decisão fácil deixar emprego, casa, família e amigos. Contudo, lhe parecia digno viver ao lado do seu amor. Apaixonada, Carola se casou e se mudou. Uau, tudo lindo! Um começo inebriante. Esperta que era, logo aprendeu o idioma e cheia de energia deu de cara na porta: STOP! Destituída! De repente ela se tornou a estrangeira casada com o Francesco De Luca. Este amado homem, possuidor de nome, sobrenome, curriculum e uma profissão, sem querer, a desacomodou do seu próprio eixo. O fato é que Carola, mesmo tendo mudando de país, continuava vivendo no familiar ritmo das horas, ansiando em continuar “a todo vapor”. Ninguém a havia dito que as coisas mudariam também em seu ser – só lhe falaram do conto de fadas. Diante de tal choque, surtou. Presa ao velho paradigma viu o inverno chegar. Neste tempo, quem se apresentou foi a agonia com o seu abraço apertado. E Carola só conseguia dormir na esperança de que os dias melhorassem, até que... Até que, chegou a primavera. Naquela manhã, em vez de suspirar, respirou. Carola se levantou da cama de cabeça erguida e, finalmente, se mudou para Kairós – no tempo certo e oportuno. Desde então, seguiu encarando todas as pessoas que não tinham tempo e nem disposição de entender as dificuldades do que lhe cabia. Ao renascer com as flores, seguiu levando a vida com os seus sonhos, ajustando suas expectativas e acreditando que muitas outras coisas boas ainda hão de vir.


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Fátima Nascimento Vive em Munique há 25 anos. É escritora, ilustradora e educadora infantil. Fundou em 2013 a editora FAFALAG editora, na Alemanha. É autora de Die Seerose Alba (2013).

o sonho

H

oje , quando acordei, lembrei que tinha sonhando que estava comendo jaca. Sim jaca dura, acordei com a boca cheia d’água. Dai bateu uma saudade de casa, de Salvador Bahia, do Brasil! Foi lá que nasci e lá vivi com minha família. Bateu saudade e aí vieram as lembranças das brincadeiras com as crianças da vizinhança, sempre à noite. De brincar com as galinhas, gatos e até com as formigas no quintal lá de casa, que minha irmã jurava que tinham casa como nós, com fogão e geladeira. Saudade dos sábados, dia de feira. De mainha indo fazer as compras e trazendo os centos de mangas, laranjas e imbuns pra casa, onde a gente comia até não poder mais. Saudade de passar os domingo de verão na praia, levando uma cesta com o almoço, geralmente galinha assada e farofa e só voltar pra casa no fim da tarde, feliz e cansada. Saudade de lembrar que na época eu nem sabia que tudo aquilo era felicidade! Ah, comer jaca com as mãos. Jaca mole, jaca dura. Eu amava comer jacas, pois os lábios ficavam grudando um no outro, eu ficava querendo dar um beijo no menino mais bonito da rua e ficar com os lábios colados no dele pra sempre. Então vinha Mainha e dizia: “vai menina pegar alí a lata do óleo, abre e passa o óleo na boca, vai limpar esses beiços!” E lá ia eu pegar a lata do óleo e o sonho de ficar de boca colada no menino mais bonito da rua ia embora junto com o óleo. Êta infância gostosa!! Cheia de coisas boas pra se recordar. De vez em quando, quando chego do supermercado aqui em Munique, Alemanha, tenho uns dias assim de saudade do Brasil. Quando olho as frutas que comprei, manga e banana meio verde, frutas duras e sem cheiro e sem gosto. Daí dói um pouco lá dentro do peito. Então penso: “Êta saudade danada!!!

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Fernanda Moura É formada em Filosofia pela Trent University no Canadá e especialista em Filosofia Clínica pelo Instituto Packter, Fernanda Moura é poeta e escritora. Tem poesias publicadas em inglês e em português em algumas coletâneas, entre elas: The best poems and poets of 2004 pela International Library of Poetry, Antologia de poemas Mosaico organizado por Beth Cury e Outono Literário pela editora Fafalag. Em 2020, com a editora Helvetia, terá seu primeiro conto publicado na coletânea bilíngue Faz de conto IV e seu livro de poesias Beijo de Línguas em edição trilíngue. Escreve na revista online Obvious e no blog Brasileiras pelo Mundo.

Vozes Passivas

À

s 6 da manhã o despertador é tocado, o olho aberto, o banho tomado, a cama arrumada. Às 8 da manhã a roupa é posta, o espelho admirado, o café bebido, o carro dirigido, o trabalho começado. Às 11 da manhã a mente é quadrada, a fome apertada, a saudade é sentida, a maquiagem escorrida. Ao meio-dia o pão é comido, o e-mail lido, o amigo adicionado, a selfie tirada, o sorriso enquadrado. Às 13 da tarde o sol é ardido, o suor escorrido, o pão amassado, o mendigo ignorado, a mão estendida. Às 3 da tarde os músculos são trabalhados, a roupa da moda comprada, a fofoca repetida, a política discutida, a dieta mantida. Às 6 da tarde o trânsito é parado, a camisa amassada, a música ouvida, a buzina apertada, a cabeça espremida. Às 8 da noite a novela é gravada, a bebida servida, o cabelo arrumado, o scarpin colocado, a boca beijada, o corpo roçado. Às 10 da noite o sapato é tirado, a novela vista, o remédio tomado, o dinheiro contado, o computador ligado, o status atualizado. À meia-noite a luz é apagada, a cama desfeita, o corpo estirado, o olho fechado, a vida é ativa, a voz passiva.


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não tenho intimidade com palavras só com divagações fui interceptada na concepção e uma anomalia de linguagem se alastrou em mim agora minha pele explode em prosopopeias verbais o relógio me derrete em absurdos tique-taques e eu não sou poeta

Flavia Menegaz Nasceu em Belo Horizonte, MG, em 1964.Formada em Letras, pós-graduada em Língua Portuguesa. Em 2005, seu livro Poetando foi selecionado para o Programa Nacional de Biblioteca Escolar-PNBE. Mudouse para a Inglaterra em 2006 é autora também de atualmente de Davi, maior de idade, não diagnosticado, um romance autobiográfico onde relata o trágico percurso de vida de seu filho e Reversos, e-book de poemas ilustrados, disponíveis em https//flaviamenegaz.wixsite.com/meuslivros


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LENÇOL BRANCO Não sei onde anda Essa outra metade de mim Os jornais deixaram de dar notícias E todos esqueceram o assunto Não sei onde andam os meus pés Nem os meus pensamentos Noutro dia, acho que os encontrei, aos meus pés Estavam na televisão No corpo de outra pessoa Um cadáver na morgue Um homem da minha idade Encontrado morto em casa Não há suspeitas de homicídio O coração estava do tamanho De uma bola de futebol Também não sei onde anda o meu coração Mas acho que o vi ontem No meio do relvado Pontapeado contra a baliza Goooolo, grita, furiosa, a dor no meu peito Talvez seja bom não saber dos meus pensamentos Ter a cabeça vazia. Oca. Um lençol branco dentro dos olhos Outubro de 2019

Gabriela Ruivo Trindade (Lisboa, 1970) formou-se em Psicologia. Vive em Londres desde 2004. Venceu o prémio LeYa em 2013 com o seu primeiro romance, Uma Outra Voz (LeYa, 2014), distinguido com o PEN Clube Português Primeira Obra (ex-aequo) em 2015 e publicado no Brasil em 2018 (LeYa – Casa da Palavra). Publicou o conto infantil A Vaca Leitora (D. Quixote, 2016). Entre 2016 e 2019 participou em várias antologias de poesia e conto. O seu primeiro livro de poesia, Aves Migratórias, foi publicado em Maio de 2019 pela editora On y va. Dirige a Miúda Children’s Books in Portuguese, uma livraria online sediada no Reino Unido, especializada em literatura infanto-juvenil escrita em português. (www.miudabooks.co.uk) - https://gabrielaruivo.blogspot.com/


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MÚSICA Era da flauta transversa aquela voz aflita para segurar o tempo. Era do tamborim a intenção de ir afinando devagar as distâncias que o espaço pregaria.

Ilana Eleá É doutora em Pedagogia pela PUC-Rio e vive em Estocolmo desde 2011. Autora do livro “Encontros de neve e sol”, publicado em 2018 como e-book pela editora e-galáxia e em 2019 na versão impressa pela Capire Edizione (Itália). Pela biblioteca infantil “Bibliotek Barnstugan” aberta ao público no jardim da sua casa, recebeu o prêmio Bättre Stadsdel como promotora de cultura. Ilana Eleá publica poemas em antologias e no seu canal no Youtube. Em 2019 foi finalista do Prêmio Literatura e Fechadura, com o seu inédito “Poemas acesos”.


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Baron Camilo of Fulwood É pai, amigo, pensador, inventor, escritor, tradutor, diplomata, homem de negócios, poeta, criador, criador de controvérsias, solucionador de problemas, lutador, empático, irrequieto, insatisfeito, militar, xereta, mas acima de tudo um amante da vida.

Abrace-me

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brace-me para que quando eu perder a força do meu coração, você me ofereça o seu, para que quando minhas raízes penetrarem profundamente, elas alcancem seu abismo; para que, se eu perder minha vida, eu encontre em você uma riqueza de vidas e idiomas. Abrace-me para que eu me torne uma erva que nega o sono, uma pedra para que você se torne uma pedra macia sob a sombra de uma erva, de modo que entre nós um rio arda e outros transbordem, para que eu suba das alturas para encontrar você. Eu descubro que você é a escalada para que você descubra que eu sou o afogamento, de modo que se eu caminhar em sua direção, eu levantarei uma ponte entre perecer e luz. Abrace-me para que você deseje me escolher como uma maçã, para que eu derrame você como uma maçã colhida, para que eu te inunde com o que você não pode alcançar, de modo que eu conjure para você uma noite e uma nuvem pairando sobre um ninho. Você esquece que eu sou a árvore dos seus membros, para que você esqueça que você é o membro de uma árvore, de modo que se a vida me derrotar, eu possa recupera minha vida em você. Abrace-me e solte minhas mãos para que, a cada vez que somos quase um, permaneçamos dois destinos desafiadores.


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POEMA PARA UM SER EM ÁRVORE (Poema dedicado a Manoel de Barros, em ocasião de seu “nascimento para árvore”, em 13.11.2014) Ao se fazer anjo o ser passarinho Antes que tudo se perdesse E que a falta ao chão lhe doesse Seu corpo saltou do ninho Se definiu em terra fincada Envaidecendo então ser árvore Tronco sala para quem namore Noite Pantaneira mole e encharcada Lagartixas nele enciúmam ser Caramujos gosmam brilhando sombra Formigas contam ao amanhecer Terem cú mais importantes que bomba Sonhando agora eterno armistício Poeta no quintal do mundo imerso Seu alimento seus desperdícios No azul das coisas um universo Acorda e desfila versos ao vento Folhas caídas chão de poesia Garças fixam esquecimento Em seus galhos até o fim do dia. Escutando a cor dos passarinhos Sofre abundância em felicidade Alucina verbo ao descomeço Seu delírio para a eternidade

Sonia Palma Vive na Inglaterra. Professora/Pesquisadora, estudou Letras, Filosofia e Mestrado em Educação Ambiental. Atualmente se dedica mais à escrita “na tentativa de preencher a mente e não morrer de saudades dos filhos”. Além de publicações acadêmicas, a escrita para alguns blogs e revistas online, escreve poesias e publicou os livros: Uma Cartografia do Imaginário nas Sendas de Manoel de Barros e Gaston Bachelard. (2015); Diesel Went To Live In The Garden. (2014, bilingue,Por/Ingl); As Descobertas de Amana nas Matas de Utiariti (2017, bilingue,Port/Ingl). Acesso para currículo lattes : http://lattes.cnpq.br/2526126160138395.


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Jéssica Traven Artista Convidado

BIOGRAFIA


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éssica Traven, carioca, nascida em 03/08/1988, advogada por formação e atuante, desde sempre encantada pela arte. Diante desse encantamento, buscou aprender diferentes técnicas de Pintura e Desenho, o que a levou a passar por cursos de Restauração de Quadros, Pintura a Óleo, Desenho no IP Studio, Pintura em Aquarela e Desenho Artístico, frequentando o Chiarouscuro Ateliê de Pintura, bucólico e tradicional local de estudo das artes no Rio de Janeiro. Seu trabalho hoje mistura a cor das aquarelas com o preto do nanquim. Ilustra o que vê e sente, paisagens, flores e figuras humanas, colocando sempre traços pessoais. E da mistura de pinceladas livres, manchas e do desenho tradicional, busca sempre encontrar seu estilo próprio, movida sempre pela curiosidade. Já participou de exposições como em Paraty - RJ, no 10º Encontro Internacional de Aquarelistas, e no Rio de Janeiro já expôs no 63º Salão de Artes Plásticas do Clube Militar - 2018, e no 64º Salão de Artes Plásticas do Clube Militar - 2019, além de trabalhos feitos sob encomenda, enviados para EUA, Angola e Irlanda.


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Isabel Cintra Paulista de São Joaquim da Barra - SP - Brasil, Isabel Cintra acredita no poder dos livros em mudar pessoas bem como a importância da representatividade estar presente em sua escrita. É autora de Bem-vindo à cidade, Lisboa 2016, participou da I Antologia Internacional do Mulherio das Letras – Contos e Poesias , IV Sarau da Paz - Ausburg 2018 e com o conto Corvo-Correio, esteve entre os premiados do Prêmio Off Flip de Literatura 2017 (Paraty - RJ). Atualmente vive em Estocolmo-Suécia.

RETRATO

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h... se eu pudesse voltar os anos. Pra muita coisa não teria atentado, teria feito o certo logo de uma vez. Pois o certo era te ter pedido em casamento ali mesmo, naquela barraquinha de cachorro quente, onde costumávamos comer no horário de almoço da Fábrica. Você sempre tão linda e, ainda hoje, igual em beleza. Me atrevo a dizer que com o passar dos anos ganhaste um tom de pele ainda mais viçoso, um quê de mulher autêntica, sensual, atenta. Quando me perco no amontoado de fotos da tua rede social, meu Deus! Vejo que continuas irresistível, mulher! Engraçado pensar nisso tudo agora, depois de mais de trinta anos. Estás casada, com filhos... já passei pelo divórcio e vivo um relacionamento que parece déjà vu do primeiro. Naquela vez, no cinema, foi quando percebi que te amava mais que tudo. Senti o calor das suas mãos sob as minhas mãos trêmulas, respirei o ar do teu sorriso. Meu olhar mergulhou no teu. E nos beijamos, e nos beijamos, e nos beijamos...foi naquele momento que te eternizaste em mim e, mais tarde, à saída da matinê, na lente de um inesperado fotógrafo. Eu te queria, mulher! Com toda a tua cor, com toda a tua beleza incomum, com toda a tua sensualidade invulgar, eu te queria inteira. Queria nossos corpos num só, queria filhos mestiços. Queria uma vida completa contigo. Como pude subestimar um amor tão grande?! Como me submeti aos preconceitos dos meus pais de pele branca? Como dei importância à vizinhança bisbilhoteira que veio às janelas espiar o nosso primeiro passeio de mãos dadas? Qual a importância dos “amigos” que me rechaçaram? E como – tonto, um medroso de merda – pude te deixar partir para longe de mim? Hoje, eu sei que abri mão do encontro raro. Do único amor verdadeiro que ainda trago guardado no peito, e num retrato antigo. Em preto e branco.

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Meu querido aspirador

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lias adora uma festa. Barulho é com ele mesmo! Dia de faxina é dia de aspirador! Mas, quando o aspirador é ligado, faz tanto barulho que Elias tampa as orelhas com as mãozinhas. - Aiiiiiiiiiiiiiiii, grita. Mas, curiosamente, insiste em querer tentar tocar no aparelho. – Meu filho, não chega perto, pode ser perigoso, alerta a mãe. Mas Elias persiste. E dá soquinhos e tapinhas no aspirador na tentativa de desligá-lo. Não consegue. Insatisfeito, põe-se a chorar de cabecinha baixa. A mãe desliga o aspirador, pega Elias no colo e explica que aquilo não é brinquedo de criança, e que serve somente para limpar a casa. Elias ouve com atenção e depois faz um gesto com o corpinho como quem quer descer do colo. E lá vai ele em direção ao aspirador. Ele tenta ligá-lo de qualquer maneira. E, desta vez, consegue! - Ehhhh, ehhhhhhhh, exclama. Deu um tapa tão forte que apertou o botão certo. Porém o de carga máxima. O barulho era ainda maior, ensurdecedor mesmo! Elias, assustado, começa a chorar e corre para perto da mãe! A mãe, cansada, desiste de limpar a casa. Pega o bebê e lê para ele um livro com figuras coloridas. Elias gosta e logo está mais calmo! Mas será mesmo que Elias vai desistir do aspirador?

Ivna Chedier Maluly É jornalista e escritora infantil. Mora na Europa desde 2003 e é autora dos livros Cadê seu peito, mamãe? Gabriel e a fraldinha, Maria Luiza e a Banheirinha e O samba faz 100 anos.


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49 Recife onde toda verdade é mentira que corre como pára cidade em pânico como no viaduto em cima do viaduto em baixo do viaduto Recife paralelo, uma espécie de delírio um mau hábito, um vício louco num sabor, nos sabores, tantos sabores Recife de quem conhece maior maior que sua Aurora que o desmantelo azul do mar que seu carnaval que é tão seu quanto do seus vizinhos Recife dos paraibanos e alagoanos dos pernambucanos migrantes dos que carregam nas costelas a nostalgia que deixa à saliva um solto da manga rosa um ruído de ambulância de olhos fechados numa ladeira cidade onde nenhum artista é suficientemente bom porque todos os artistas são excessivamente os melhores Recife uma puta sorridente de cu pro alto, puta liberal das babás fardadas do cães cagantes nas calçadas do medo, medo colorido como um flamboyan vermelho e seus jâmbricos tapetes violetas Recife tão distante, à nado te afogas a pé não se chega, de asas não se paga Mata a quem te ama essa abstinência do teu fedor à merda

Manuella Bezerra de Melo É jornalista nascida em Pernambuco, Manuella Bezerra de Melo trabalhou como repórter, especializouse em Literatura Brasileira e Interculturalidade e é mestre em Teoria da Literatura. Atua como poeta, cronista, autora e contadora de histórias infanto-juvenis. Quando viveu nas Serras de Córdoba, na Argentina, publicou sua primeira obra, Desanônima (Autografia, 2017). Já em Portugal, publicou Existem Sonhos na Rua Amarela (Multifoco, 2018) e Pés pequenos pra tanto corpo (Urutau, 2019) e participou da antologia Pedaladas Poéticas (Aquarela Brasileira, 2017). Mora em Guimarães, Portugal.


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a tecelã

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ritmo das mãos da tecelã tramando o fio de algodão é quase sincronizado com o barulho da chuva que molha a terra do seu campo mágico. Aquelas mãos que abrigam loucura e lucidez. E que tecem estórias e encontros. E que cultivam plantas, amores, gatos, paz, dor e poesia. Que alimentam almas, agregam e empoderam mulheres, atraem passarinhos livres que rapidamente decidem voar. As mãos habilidosas de mulher aranha, emaranhando, costurando e construindo seu destino. As mesmas mãos que plantam o algodão, o fruto e sua própria lua no chão, também vermelho, do cerrado. Lá onde corre o sangue Kalunga, lá onde casulos se rompem, onde a água fria abre os poros da pele e onde o céu é sempre estrelado e o poente alaranjado. Ah, mulher das estrelas, guardiã da sabedoria ancestral. Cíclica, intensa, intuitiva e inconstante. Doce e amarga, louca e serena. Ela é contradição e evolução, por isso, não cabe em rótulos ou convenções. Por isso ela intimida. Cuidado, moço, porque a aranha é também loba e sacerdotisa. É dona dos fios que tecem sua própria vida. Seu manto tem poder e sua existência já é um ato de resistência aos que não suportam liberdade. Porque ela é selvagem. Porque o que não falta na tecelã é coragem para assumir suas verdades, mesmo quando ela tem medo. E ela tem medo. Mas segue seu caminho assim mesmo, escutando o vento, tocando no algodão, sentindo aroma de planta e chá, gozando. Ela goza. É pele, cheiro, instinto, é conexão, troca, olhar, alma. E apenas os habilitados a enxergarem sua essência são convidados a entrar na sua trama.

Mariana Freitas É doutora em Comunicação Intercultural pela Universidade Fudan, em Xangai. Natural de Brasília, morou do Norte ao Sul do Brasil e também nos Estados Unidos, China e, atualmente, França. Aliando curiosidade, interesse social e paixão por culturas diferentes, trabalhou como jornalista, professora e pesquisadora acadêmica. Em 2010 mudou-se para a China e, graças a esta experiência e ao seu olhar apurado sobre cultura milenar chinesa, Mariana trouxe na bagagem o romance “Que o Oriente me oriente”, publicado em 2018, pela Editora Letramento.


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Marta Cortezão É amazonense, nascida em Tefé. Participou de várias antologias nacionais e internacionais, de 2015 a 2016. Em 2017, lançou seu primeiro livro de poesias e poemas, cujo título é “Banzeiro Manso”. É membro da Associação Brasileira de Escritores e Poetas Pan-amazônicos – ABEPPA e da Academia de Letras do Brasil – Amazonas – ALB/AM

FOTOGRAFIA Hoje, recebi súbita visita, cujo olhar invadiu minhas entranhas, acendeu-me volúpia esquisita e pintou-me a libido de façanhas. Pretérito querer me revisita, e aqui estou eu... refém das artimanhas, porque o sanhudo fado não hesita em abrasar-me loucas e vis manhas... Teu olhar decifrou-me os pensamentos; o silencio gritou feros desejos; meu corpo te implorou atrevimentos, paixão, insanos beijos e gracejos... Vem, despe-me das vestes, dos tormentos... Na foto, só teu riso... vãos lampejos.


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Na virada do tempo

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s fios brancos, curtos, são maioria naquela cabeça pequena de olhos vivos. Na nossa conversa, ela passa do francês para o português com um leve sotaque caloroso. Esteve no Brasil e na América latina inúmeras vezes. Quanta solidariedade não prestou aos diferentes povos do nosso planeta? Sorriso largo, maroto, tem um jeito particular de resmungar, protestar contra estupidezes. Saímos juntas da sua residência, ela para um lado, eu para o outro. Saiu com seu embornal, esses sacos de algodão natural, que os jovens de hoje utilizam para fazer pequenas compras, carregar coisas, evitando os sacos plásticos que levam três centenas de anos para se desintegrar. Meus pais, cearenses, os usavam para transportar, à tiracolo, coisas e outras. Ela o carrega no seu lado direito. Vai fazer compras para seu jantar. Pelos 10 metros de distância, viro para trás e a vejo no alto dos seus... quantos anos? Anda devagar, mas os passos são firmes. Ainda tem muitos amigos, mesmo se muitos já desapareceram com o virar dos anos. Não teve filhos, sua família, pai, mãe e irmão único, já há muito a perdeu. Nela, nenhuma riqueza aparente, sua simplicidade é poderosa num bairro dos mais caros de Paris, a Ilha Saint-Louis, onde vive no seu apartamento. Há muito não visita mais o castelo familiar. Frequentou responsáveis políticos, famílias reais; aliás, o rei belga Baudouin era seu primo. Volto a olhar para trás, momento em que ela vira à esquina e se vai no tempo...

Mazé Torquato Chotil É jornalista, pesquisadora e autora. Doutora em ciências da informação e da comunicação (Paris VIII) é pós-doutora pela EHESS. Sul-mato-grossensa, vive em Paris desde 1985. Publicou, entre outros, José Ibrahim: O líder da grande greve que afrontou a ditadura, Trabalhadores Exilados: a saga de brasileiros forçados a partir (1964-1985), Lembranças do sitio, Lembranças da Vila, Minha aventura na colonização do Oeste, Minha Paris Brasileira, L’Exil ouvrier.


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POR POUCO

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(do livro “Lugar Comum” Editora Pasavento, 2015)

quele amor tinha começado pelo fim. Quando aos doze anos virava moça visível aos olhos dos outros e temia que a blusa de tecido ralo do uniforme mostrasse o coração aos pulos, prestes a encontrar na escola o que se tornaria o amor da vida. Evitava cruzar olhares com quem pudesse tirá-la do eixo, fazer do seu rosto fogo vivo, e do coração carne crua. Era tanto amor que dificultaram tudo o que puderam. Tinham tanto receio de espatifarem em cacos tamanho amor que pouparam tudo, cada gota dele. A vida precisa de juízo. Amor daquele jeito só podia ser exagero, excesso. A vida precisa ser comedida, vivida em parcimônia, senão estraga, faz mal. Aquela batida pulando de amor dentro do uniforme passou pela vida e viu outras roupas. A concomitância do quente e do frio que fazia os olhos salgar de amor, com suspiro e tantos outros doces, ela só sentia com o amor de sempre. Aquele. A moça vinda de fora, o menino que falava inglês, um giz, uma partida de vôlei, uma carta, um bilhete. Tantos bilhetes, explicaram que não era possível. Explicaram que aquele amor desajeitado crescia para não acabar mais. No degrau da rua onde passava vida de todo o jeito, ficou esfarelado o amor dos dois. A prefeitura já limpou a rua, o degrau há tempos. Mas os dois sabem que ficou ali quebrado o que tem para consertar. Preferiram não viver o maior amor do mundo inteiro e que, por isso, continua sendo de uma forma impressionante, infinito. E se você olhar lá estão, inteirinhos, feitos aos pedaços. Paisagem inacabada. Assim concluída.

Nara Vidal É mineira de Guarani. Desde 2001 mora na Europa de onde escreve para jornais e revistas diversas. É autora de infantis e adultos. Ganhou o Maximiano Campos na categoria contos e o Brazilian Press Awards três vezes na categoria literatura. Seu primeiro romance Sorte é o vencedor do terceiro lugar do Prêmio Oceanos 2019. Nara mantem a livraria online Capitolina Books especializada em literatura contemporânea em língua portuguesa.


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Patrícia Cacau nasceu Sânzia Patrícia Cacau, em Natal-RN, em 1/9/65, com residência em Linz-Áustria e vivência em Fortaleza, Ceará. Empreendedora social, escreve desde a adolescência, mas oficialmente sua escrita nasceu no coletivo Mulherio das Letras Europa. Articuladora do Mulherio das Letras Ceará, tem participação em algumas coletâneas e antologias no Brasil e Europa. Sua escrita brota das inquietações da alma humana e das vivências do cotidiano. “Escrever é como respirar pelo papel”

CARTAS PARA SAUDADE Não me tire Deus o gosto de partir, muito menos o desejo de ficar. Que eu nunca parta sem vontade de voltar, nunca volte sem querer ficar. Não olhe para trás querendo regressar. Porque o ontem não volta, O hoje se renova no amanhã quando acordar. Cada minuto é uma partida do momento que passou. Voltando para o mesmo lugar onde tudo começou, posso refazer o caminho mas nunca viver da mesma forma que terminou. Saudade mata a gente e a gente mata a saudade, se existir a vontade de continuar dentro da gente, toda gente que a gente encontrou. em todos os caminhos que a gente caminhou. Saudade é companheira que passa a vida inteira na mente e no coração de quem se lembrou. Se sentir que se está sozinho sabe que em algum lugar existe alguém que lembra que você passou. Deixando também saudade, lembrando os momentos que compartilhou. A partida nos faz ausente e a chegada nos faz contente. A saudade bate, mas não mata a gente.


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Lia, a mulher e a alegre revelação

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ítulo esquisito, pensou Lia de início, ao colocar no papel uma história que nunca tinha saído de dentro dela. Adiou muitas vezes, porque escrever significava recordar e sentir que perdera tempo. Mas agora parecia diferente. Escrever era uma oportunidade de libertação. - Que linda sua cachorrinha, posso passar a mão? Perguntou a mulher, em inglês. - Claro! disse Lia, alegre com a aproximação. Desejava muito conhecer mais gente naquele país onde já vivera quase uma década e há alguns anos retornara. Lia teve a nítida sensação de que a mulher era brasileira. E arriscou perguntar, coração batendo forte com a perspectiva de ser uma compatriota. - Sim, eu sou brasileira, falou ela. Com sotaque de gringa. Algo pulsou diferente dentro de Lia. Ela já tinha encontrado gente que tinha um português afetado por tantos anos vivendo em países estrangeiros. Mas aquele sotaque fez eco. Ela teve a ligeira intuição de que a mulher achava aquilo chique. Mas não pensou muito. Era pura alegria pensar que podia ser o começo de amizade com uma brasileira. Lia foi buscando conhecer a mulher, em encontros fortuitos. Andava com sua cachorrinha no parque próximo, e trombavam quando a mulher caminhava por ali, durante os treinos de futebol dos filhos. Lá estava aquele português americanizado. Mas a vontade de ter amiga colocava todo o incômodo e o pasmo de lado. Em alguns encontros, falaram sobre tomar um café. A mulher trabalhava em um escritório imobiliário e queria que fosse durante o dia, se Lia fosse ao encontro dela. Lia teve dó da pobre quando viu que ela achava lindo ser ocupadíssima. Era miséria mental achar que era chique e de primeiro mundo ter sotaque de americana e não ter tempo para nada. E a coisa teve fim quando um dia Lia a convidou para jantar. A mulher disse à Lia que não saía com amigas à noite, para evitar que o marido quisesse fazer o mesmo com os amigos. E agora era Lia quem não queria. E era hora de celebrar. Aprender a não ter demora quando algo tem cheiro de fumaça, mas a gente insiste que é de jasmim.

Paula Botelho Ensino, formação docente, programas de imigração e de português como língua de herança, oficinas de literatura para crianças brasileiro-americanas e tradução estão na bagagem. Como autora, seus livros, artigos e outros textos incluem a surdez, a cultura brasileira na imprensa americana, imigração e retorno, bilinguismo e biculturalismo, e os desafios de viver fora do Brasil (“Brasileiros em Solo Estrangeiro”- Facebook). Doutora em Linguagem, Letramento e Cultura (UMBC - EUA) e Mestre em Educação (UFMG), reside há 14 anos nos Estados Unidos.

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O QUE TU SEMEIAS

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natureza sábia perfuma a noite... E o cheiro, o cheiro toca a alma... E eu sinto um amor que é amor... Um amor que não tem nacionalidade, mas que é amor... E, assim como as aves migratórias, esse amor também percorre o mundo para acasalar-se... Numa dança ou num espetacular balé em contemplação a toda a criação... E para que esse ritual aconteça, todo o universo se une: os ventos ficam favoráveis, os mares fornecem alimentos em abundância, o amor se estabelece e a vida permanece... O amor rege o mundo, eu sinto isso... Eu sinto esse amor agora... É tão bonito e forte que eu me entrego inteiramente para senti-lo... Esse amor é maduro, ele sabe que só nos cabe viver! Por isso, antes de escrever, eu lavei as mãos; antes de voar, eu tirei todas as roupas; e antes de te amar, eu arranquei cada mato de rancor e cada tronco de dor, porque o que tu semeias em meu coração, a natureza sábia perfuma a noite!

Sandra Maciel Barreto Ama escrever romances, poesias, letras musicais e roteiros para cinema. Licenciada em Letras, com habilitação em Literatura Brasileira e Portuguesa, tem especialização tanto em Informática pela Universidade Federal do Ceará UFC quanto em Educação Continuada e a Distância pela Universidade de Brasília UnB/UAB, onde lecionou para os Cursos de Graduação em Artes e Letras. Atualmente, organiza uma série de livros, com mais de 600 poesias. Para saber mais: http://lattes. cnpq.br/5591846740221907 - Contato pelo whatsapp +55 (85) 9 9738 0209


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MEUS VIZINHOS

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uase sempre enquanto preparo o jantar, olho da janela da cozinha um casal de vizinhos do sétimo andar (eu moro no quarto). É um casal muito simpático que, às vezes, sai para caminhar de mãos dadas. E toda vez que os vejo, lembro dos meus pais que só caminhavam de mãos dadas (companheirismo e carinho que durou por quase 53 anos). Teve um dia desses, de manhã bem cedinho, os encontrei no supermercado que fica cerca de um quilômetro do prédio que moramos. Detalhe: ela, alemã com seus 85 anos, e ele, polonês com 92 anos, vão e voltam a pé. Empurravam um carrinho de compras e, quando me viram na entrada, cumprimentaram-me sorridentes e festivos. Voltamos a nos ver no setor onde ficam as verduras, os legumes e as frutas. Aqueles vizinhos eram pura vivacidade. Voltei para casa feliz. Na Alemanha não tem porteiro nos prédios, o que torna o convívio mais afável. E num fim de semana, à tarde, soou a campainha. Era a minha vizinha do apartamento ao lado, com uma sacolinha de frutas que trouxera do pomar da amiga dela que mora em outra localidade de Freiburg. Visivelmente emocionada, depois de ficar dois meses internada no hospital, tinha nos ido agradecer pelo cartão de boas-vindas que eu fiz e pintei e o Gerhard, (meu marido) escreveu. “Meu coração é belo, mas a minha letra é bem feia. É o que dizem”. Durante a conversa, contei que a minha mãe dizia que vizinho deve ser um pelo outro. Ela sorriu e confidenciou que a mãe dela falava a mesma coisa. Essa vizinha é uma senhora muito especial. Ela é russa e mora há anos aqui, mas costuma viajar para visitar os filhos e os netos que moram em outras cidades. E quando volta das viagens, para sinalizar que chegou, deixa os seus sapatos no tapete da entrada, do lado de fora. Terminada a visita nos abraçamos. Fechei a porta sem caber dentro de mim, de tanta alegria. Fui direto para a cozinha, já estava na hora de fazer o jantar. Em poucos minutos, o cheiro da polenta e dos cogumelos com pimentões no leite de coco exalavam os seus perfumes. Naquela noite, jantamos à luz de velas para saudar o presente que é a vida, e de como é bom aprender e compartilhar histórias, abraços, sorrisos e votos de felicidades que vêm do coração.

Terezinha Malaquias Estudou escultura na Edith Maryon Kunstschule Freiburg (Alemanha), aonde mora há 12 anos. E foi aos 11 anos, só que de idade, quando se apaixonou pela poesia, e essa paixão virou amor. Artista múltipla,é escritora, poeta, atriz, modelo vivo e performer. Autora dos livros Modelo Vivo I, Menina Coco, Teodoro, entre outros. Participou de antologias no Brasil, nos Estados Unidos, na Alemanha e em Portugal. Fora isso, tem um canal no YouTube com o seu nome para publicação de videopoesias e videoperformances.


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Passagem secreta entrei por uma passagem secreta na parede de pedras descendo degraus na escuridão cheiro úmido de mofo dali poderia fugir para a floresta como as crianças de Chambon-sur-Lignon tenho onze anos e também sinto pavor também sinto amor estou numa caverna com John no meio da floresta com outras crianças e John ele cabelos despenteados depois que entramos pelo atalho da passagem eu lhe escrevo um verso ele faz um rabisco que fica bonito, sabe desenhar me envolve com os braços pálidos Hoje ele é homem e poeta o fogo está nos seus cabelos e orelhas o ar está na boca e nariz nos olhos de mar, a água: John é a maré mansa de uma praia do Atlântico adulto sou criança e John agora não está mais por aqui E eu, que não quero morrer tantas vezes procuro sempre sempre a passagem secreta.

Valeska Brinkmann Nasceu em Santos, 1972. Estudou Radio e TV na FAAP (SP). Publicou em 2016 O livro infantil bilíngue “Pedrina- a perua que queria ser pavão” pela editora Bübül Verlag Berlin. Participou em Antologias na Alemanha, Brasil, e Portugal e em sites literários como Stadtsprache Magazin, Literaturabr, escamandro (traduçoes). É integrante do coletivo GLENSE (guerrilha literária espontânea na sala de estar). Trabalha na emissora de Rádio e TV pública de Berlim, onde vive há quase vinte anos.


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O tempo com todas as suas existências Lento o suficiente para sentir Rápido o suficiente para não decidir o que sentir Voa para não ser condicionado Para, quando quer ser compreendido Corre quando quer ser perseguido e até encurralado Congela-se quando tem que ser aceito

O tempo Ondas contínuas Transbordam o sereno azul do mar Enaltecem a beleza de cada momento Misturam-se ondas de outros tempos Presente, passado e futuro Oxalá parasse, oxalá continuasse, oxalá… Livro Meias Verdades – parte do texto “O tempo com todas as suas existências” pág. 13 e 17.

Veronica B. Chaves (Veronica Botelho) é uma escritora afrobrasileira, formada em psicologia pela Universidade de Florença, e especializada em Psicologia Cultural. Morou em 8 países e atualmente mora na toscana. Fala 5 línguas, e escrever sobre o tempo é uma das suas paixões. Acredita que a sua relatividade esta diretamente condicionada pelos lugares, pessoas, realidades… que encontramos e vivemos. Para ela viver um presente, multiplicado por tantas existências, é dar a possibilidade de multiplicar o próprio futuro. Autora do livro “Meias Verdades” pelo selo Off-Flip.


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Daqui do quarto Daqui do quarto adentro o tempo já desfolhado do que foi feito e se desfez. Chuva nas folhas, vento no vasto, janela (o entrevisto), luar desnudando os galhos. Silêncio denso, bichos beirando o sono aceso: sonhos de presas, de gritos, fugas. Aqui na carne deito camadas de tantos nadas que o agora (meu) engole como se água fossem. Sumir não nos sustenta, mas há pegadas que lumem na solidão de quem nasce (museus se miram, e se entrelaça o tempo). Aqui no quarto a noite não é parede negra: pairam tempos.

Natan Barreto Nasceu em 1966, em Salvador. Viveu em Paris e Roma, e está radicado em Londres desde 1992. É tradutor e intérprete formado pelo Institute of Linguists, e pedagogo pela London South Bank University. Escreveu seis livros de poesia, dentre os quais, Sob os telhados da noite (1999); Movimento imóvel (2016), que recebeu uma Menção Honrosa da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro; Um quintal e outros cantos (2018), vencedor do Prêmio Sosígenes Costa de Poesia, concedido pela Academia de Letras de Ilhéus; e O ritmo da roda: poemas fotográficos (2019).


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magará em “ A Tromba do Elefante” Massao Ohno Editor (1997) à Myrian Muniz e Flávio Império (in memorian) Degusto o nome na pronuncia da saliva: Mangará. Percorro a história que repousará docemente No berço do teatro. Descubro que, da fruta fálica que fora gerada, nascera o coração possuído da vastidão de significados e cheiros. Acolho-te no seio no nome no ventre na flor. Quem foi o poeta que ousara pronunciar-te, Mangará? É bom estar aqui e olhar para cima.

Viviane Fuentes É esscritora, roteirista no Brasil. Agitadora cultural e artista plástica na França. Um encontro em 1996 com o editor Massao Ohno – que lançou livros de Hilda Hist e dos irmãos Haroldo et Augusto Campos – foi o ponto de partida para que Viviane concretizasse sua « trilogia poética visual»: “O Pescoço da Girafa”, “A Tromba do Elefante” e a “Língua do Tamanduá”, entre 1996 e 1999. Site: www.vvfuentes.wordpress.com


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a aterrizagem da ficha brasil

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u tinha acabado de chegar no Brasil. Deitei na cama exausta depois de quase 20 horas de viagem, dois aviões, esperas, dá um peito, dá outro peito e umas 10 fraldas sujas. O cheiro de feijão temperando no alho entrando pelas narinas. Mamãe mandando brasa no fogão e a dor nas costas confundindo minhas emoções. Mal conseguia me mover. Minha cunhada e muito amiga desde a infância chegou e deitou suas mãos abençoadas, de massagista profissional, nas minhas costas. Pra cima, pra baixo. Forte, fraco. Repuxado, esticado, encolhido. Ritmado, leve, fundo, denso… gostooooso. Acabada a sessão, virei o corpo agradecida: – Minha linda, que delícia. Muito obrigada. Quanto eu te devo? – E já fui catando a carteira. Num primeiro momento ela ficou meio atordoada mas depois falou claro e firme: – Vai tomar no cu! Choquei. – O quê? – Vai tomar no cu, mulher, que pagar o quê! – Fiquei meio sem graça e depois relaxei: Ah, chegueil! Welcome home, Lina. Aterrizei na minha terra, onde pessoas amigas te mandam tomar no cu por cortesia e amor.

Lívia Mata Nasceu em Niterói e mudou para a Europa no início dos anos 90. Estudou Comunicação na Universidade de Viena. É diretora de arte especializada em design de revistas (liviamata.com). Escreve sobre o Brasil, em alemão, para a mídia austríaca e, sob o pseudônimo de Lina Mares, escreve em seu blog crônicas e contos em português (strudeldebanana.com). Em janeiro de 2019 abriu em Viena o Botequim “Carioca” (@cariocawien), ponto de encontro de Ex-pats e amantes de boas cachaças e Feijoada.


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Virna Teixeira Nasceu em Fortaleza em 1971, graduou-se em Medicina, viveu em São Paulo por vários anos, e hoje mora em Londres, onde atua na área de saúde mental. Tem vários livros de poesia publicados, é tradutora, e escreve contos. Publica poesia brasileira em tradução pela editora Carnaval Press, e edita a revista eletrônica Theodora (www.theodorazine.com). Os poemas selecionados para esta edição da Revista Pixé fazem parte de uma coleção bilíngue de poemas sobre gênero, My Doll and I, que será publicada em 2020 pela Pamenar Press.

o teu sonho de ir ao baile, num vestido rodado e negro de poá vermelho com uma peruca longa e loira de raiz escura e como tudo coordena tua homenagem aos anos 50 a anágua burgundy com os sapatos e a carteira eu irei de biker com um top preto e uma pencil skirt de vinyl meu rosto escondido por um véu preso no chapéu com detalhes vermelhos como o teu vestido


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POEMAS DE VERA LÚCIA DE OLIVEIRA (do livro Minha língua roça o mundo (Editora Patuá, São Paulo, 2018)

nasci de uma aranha que me fisgou por dentro com seu fio de visgo que defende a greta aberta na madeira o brilho felpudo enlaçou meu pulso e aprendi ali que toda beleza tem custo

pertenço às ruas frias de vento e geada em que algo de mim se incorporou aos portões e a esses cães famintos que rosnam para os passantes a esses tetos que pungem o céu com suas antenas parabólicas mandando mensagens à Deus

memória é medo que se entreva entre as teias do corpo memória é osso sem carne que cobrimos da melhor forma possível para que não sangre

esperar na porta que o vento passe e traga nele sua voz já que os trilhos do trem foram arrancados as ruas não me levam o ar parado se perde como água que adoece e o telefone mudo

Vera Lúcia de Oliveira Maccherani Reside na Itália desde 1985. É poeta, ensaísta e professora de Literatura Brasileira na Universidade de Perugia. Formouse em Letras no Brasil e doutorou-se Itália. Escreve em português e em italiano e tem poemas publicados em vários países. Recebeu diversos prêmios, entre os quais: Prêmio Sandro Penna (Perugia, 1988), Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2005), Prêmio Literatura para Todos (Brasília, 2006), Prêmio Internacional de Poesia Pasolini (Roma, 2006). Entre os livros publicados: Geografia d’ombra, 1989 (poesia); La guarigione, 2000 (poesia); Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro, 2015 (ensaio); A chuva nos ruídos, 2004 (poesia); Verrà l’anno, 2005 (poesia); A poesia é um estado de transe, 2010 (poesia); La carne quando è sola, 2011 (poesia), Vida de boneca (infantil), 2013; O músculo amargo do mundo, 2014 (poesia); Ditelo a mia madre, 2017 (poesia); Minha língua roça o mundo, 2018 (poesia).


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REALIZAÇÃO

PATROCÍNIO

ESPAÇO RESERVADO PARA MARCA DO PATROCINADOR R E V I S TA

LITERÁRIA


ESPAÇO RESERVADO PARA marca DO PATROCINADOR

R E V I S TA

LITERÁRIA

ano 2 setembro/2020 edição especial pedro casaldáliga


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editorial

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literatura tem algum dever ético? A pergunta pode ser generalizada para a arte em geral. O artista é jungido a se posicionar eticamente no interior da obra que produz? Ou essa pauta prévia constrange a tão festejada autonomia da arte? É claro que o escritor faz o que bem entende, mas será menos considerado pela crítica ao mandar a ética às favas? Essa discussão já aconteceu com Nabokov, por exemplo. O autor de Lolita foi proibido em dezenas de países. A obra não tece qualquer censura à paixão do velho escritor por uma ninfeta com a qual mantem uma relação de recíprocos assédios. A linda de responsabilidade dos personagens é tão tênue que revolta os mais pudicos patrulheiros do politicamente correto. Ao não se posicionar contra o tabu, Nabokov constrange o leitor que ficará perdido. Podemos atualizar a discussão e ampliá-la para questões contemporâneas: raça, religião e gênero. O escritor precisa ter lado? Esse preâmbulo nos pareceu apropriado ao refletir sobre a obra de Pedro Casaldáliga. Terá sido ele um escritor que virou padre ou um padre que virou escritor? Antes de prosseguirmos, é de se esperar citar o poeta D. Aquino Correa, um autor pouco conhecido do cenário nacional que pertenceu à Academia Brasileira de Letras, mas consagrado no berço em que nasceu e atuou. Versejando no estilo parnasiano, Aquino combatia os vícios caprichosos do romantismo, identificando sempre o “bom” com o “bem”. Para o autor de Terra Natal, o ofício de escrever bem está umbilicalmente condicionado a ser bom. Daí que muitos poemas são prédicas. A arte foi usada para catequisar, além de consolidar antigas imagens de um sertão idealizado. Se os escritores malditos dos séculos XIX e XX mandam pudores morais às favas, Aquino subjuga a autonomia da arte em nome da religião. O bispo-escritor vale-se da literatura enquanto instrumento, uma ferramenta para propagar valores cristãos e o imaginário regionalista que prometia prosperidade. Era talentoso, sem dúvida alguma. Mas não deixava de fazer proselitismo poético, se é que podemos classificar assim. Mas e Casaldáliga? Qual o viés era prevalente, o humano ou o divino? A arte ou a missa? O nosso homenageado submeteu a poesia ao missal romano? Definitivamente a resposta é negativa. É bem verdade que Casaldáliga lamenta a humanidade cruel, opressora e contraditoriamente desumana, distante do Deus que acreditava. Mas não faz prescrição na literatura que compunha. Sim, comunga com o sistema literário regionalista ao projetar um cenário desolado de um sertão ilhado, abandonado, precário. No entanto, não se trata da terra pródiga e convidativa de Aquino ou do charco mágico de Manoel de Barros. É justamente o contrário. Casaldáliga opõe-se ao resultado do sonho de Aquino: denuncia a devastação ambiental, a concentração de renda e de terra, a intolerância com os povos indígenas, a exploração da infância, enfim, faz a poesia combater os novos mitos do agronegócio. De certa forma, também faz um contraponto à evasão abstencionista de Barros, afirmando-se como um homem que não quer fugir, não quer partir à cata das insignificâncias do subjetivismo extremado. A questão é saber se, ao organizar uma cartilha politicamente correta para os dias atuais, Casaldáliga não faz o lirismo ceder à retórica política. Porque, na oposição frontal de dois modelos, é muito comum que as antíteses aproximem-se involuntariamente. Quem melhor pode destrinchar essa tensão é Edson Flávio que faz a curadoria dessa edição especial. Sua tese doutoral dedica-se a refletir sobre a obra de Casaldáliga. Temos aqui uma seleção de poemas que gravitam em torno da obsessão temática do poeta, reação combativa e inconformada, felizmente sem a pretensão prescritiva. Ainda que o aspecto telúrico seja o alvo do nosso homenageado, a miúde alinhado com sua terra e sua gente, o nome de Casaldáliga transcende ao regionalismo. Não só pelo engajamento contra a ditadura militar e suas políticas de ocupação arbitrária do sertão brasileiro, mas pela força estética da qual brotam “margaridas da utopia impossível”. Essas flores do lirismo de Casaldáliga formarão um latifúndio autoral para o qual o bispo incentivaria a invasão e a desapropriação. Assim o fazemos.


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Eduardo Mahon Editor Geral


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expediente Direção Geral e Edição: Eduardo Mahon Colaboradores desta edição: Olga Maria Castrillon-Mendes, Pedro Casaldáliga, Edson Flávio.

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SUMÁRIO

Projeto Gráfico/Diagramação: Roseli Mendes Carnaíba Artista Visual Convidado: Aruã Calil

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Editorial

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Olga Maria Castrillon-Mendes

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Pedro Casaldáliga

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Aruã Callil

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Edson Flávio dos Santos


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NUM PESCAR DE OLHOS Olga Maria Castrillon-Mendes É professora do Curso de Letras da Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT, dos Programas de Mestrado Profissional em Linguagem/PROFLETRAS e Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários/PPGEL/UNEMAT. É Sócia Efetiva do Instituto Histórico e Geográfico de Cáceres e da Academia Mato-Grossense de Letras; Líder do Grupo de Pesquisa “Questões históricas e compreensão da literatura brasileira” (CNPq/UNEMAT/2002). Integra os Grupos: RG Dicke de Estudos em Cultura e Literatura de Mato Grosso (CNPq/UFMT). É autora de Taunay viajante: construção imagética de Mato Grosso (Cuiabá: EdUFMT, 2013) e Discurso de constituição da fronteira (www.unemat.br/publicações/e-book, 2017), além de artigos em periódicos e coletâneas nacionais e internacionais.


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ENTRE RUÍNAS, REVELAÇÃO E EXPERIÊNCIA POÉTICA

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o contemporâneo das urgências e da fluidez, pensar o objeto artístico-literário implica refletir sobre o ser humano em suas tensas relações na sociedade. Perante as assimetrias que privilegiam a produção do eixo hegemônico, em detrimento da produção das “margens”, as urgências se pautam nas diferenças e no reconhecimento dos sujeitos, frutos das identidades híbridas, mestiças, fronteiriças. Os loci diferenciais de enunciação tendem hoje a deslocar o foco da análise convencional, buscando a estética questionadora da tradição. A contemporaneidade caleidoscópica, com predomínio das mídias, das redes sociais e dos debates sobre o futuro do escritor, do leitor e da própria literatura, impõe a sobrelevação dos apagamentos históricos. Até que ponto o projeto literário (ou profético), de um escritor, toma a palavra como instrumento de luta, de denúncia e de transformação social? Tematizar os problemas sociais inscreve o político na poesia, marcando o espaço da libertação pela palavra? Se o poeta-profeta é aquele que “grita com os olhos”, está atravessado por um projeto de natureza ética que comporta certa visão do homem e do mundo. Então, a literatura se anuncia e se autodefine pelos fins que persegue no mundo, em movimento, muitas vezes, circular? Ao projetar sonhos, aspirações, imagens de um mundo possível, a poesia convoca e une forças em prol de uma luta comum. Está entre as ruínas e a revelação, entre a política e a subjetividade, a tensão e a intenção. Nesse sentido, palavras são estilhaços. Esbarram nos silenciamentos coletivos. Muitas causas valem por uma vida; outras, são mais que a própria vida. Pelas causas se constroem imagens que se cristalizam e se transformam em lugares de memória. É, como escreve Pedro Casaldáliga (Cantigas menores, p. 60), “fazer do povo submisso/ um povo impaciente. Fundir os muitos córregos/numa torrente”. Pura força telúrica em que o direito à literatura se amplia para o direito de dizer. É o papel ressignificador de homens e mulheres, mas também de uma geografia. Estaria a obra de Casaldáliga entre a dimensão profética e temporal? Na busca pela liberdade do povo, a força telúrica está em curso, é água corrente, metaforizada no e pelo sentimento, mas é também enunciação. Tanto a linguagem quanto a dialética humana acercam-se das condições de produção capazes de dar sentido às manifestações (e revelações). Vai o poeta, fica a obra para desordenar a realidade e/ou reinventar as experiências pessoais no horizonte do que se concebe como mundo.


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Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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01. [...] No campo, na mata, no cerrado e na caatinga, Nos lagos e nos rios, Violados pelo arame farpado do latifúndio, Pelos agrotóxicos assassinos, Pelo maquinário das madeireiras e mineradoras E pelos projetos faraônicos Das monoculturas, das barragens, Das hidrovias, das hidrelétricas, Sejamos “o novo”: O antigo jeito novo de zelar da Terra Como de uma esposa-mãe. Salvemos dos transgênicos E de toda manipulação suicida a biodiversidade. Agasalhemos a vida e o cosmo Como se agasalham, nos ninhos, as asas do futuro [...] (Cantemos ao Deus da novidade, de Orações da caminhada, Verus Editora,2005)

Foram mantidas as grafias originais conforme as publicações.


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02. Quero escrever a alma desta hora, como quem prega na lapela de festa a borboleta última – creme, limão, canário – que acaba de pulsar entre meus olhos bêbados de formosura… A beleza perfeita destas águas amigas; a vida exuberante da floresta múltipla: o sarã rasteiro chapinhando, o alto louro moço, a imbaúba – figueira de lapela virada, o vermelhão estendido e a taboca fiandeira de filamentos amarelos e de lancetas verdes-claras. Revoa um papagaio, travesso de alegria. Cruzamos ilhas, lagos, enseadas. As nuvens lassas dão ao rio quieto um tom de transida madrepérola. E o sol do Mato Grosso faz-se tíbio para não calcinar tanta beleza. O barco pára. Falam os meninos do tão falado amor. E riem duas mocinhas morenas, na margem, descalças, despenteadas, pura beleza índia em bruto. Outra vez se adiou o casamento! Ronca o motor de novo. A menina de mil sangues cruzados – Ásia, África, Europa: Ó América! me sorri, com dentes espaçados e umas tranças minúsculas, emoldurada na luz pela janela aberta à flor do rio. Depois entre as páginas do livro – a palavra e a margem paralelas – uma inhuma no peitilho branco alça o vôo, inefável, desta areia eriçada de um verde calafrio. (Beleza perfeita, de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)


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03. Chegávamos a um mundo sem retorno. (Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

04. Cortando a floresta, na baixada escura, e cúmplice o vaivém dos palmeirais, a terra arroteada pelo trator paulista: vermelha, roxa, amarela, cinza, creme, branca. Com um ferraz olor de menina núbil, de carne ferida e limpa, de virgem parturiente. Terra amor e cobiça. Terra de lavradio. Terra de latifúndio. Terra de estrada. Terra de sepultura. (Terra aberta, de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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05. Embiruçu Calado e nu. Sertão bravio, terra queimada: o desafio da retirada. A Lei esquece e o Lucro manda. Mas quem merece teimando cresce nesta demanda. Embiruçu teimando nu. (Embiruçu, de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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06. Eu morrerei de pé como as árvores. Me matarão de pé. O sol, como testemunha maior, porá seu lacre sobre meu corpo duplamente ungido. E os rios e o mar serão caminho de todos meus desejos, enquanto a selva amada sacudirá, de júbilo, suas cúpulas. Eu direi a minhas palavras: -Não mentia ao gritar-vos. Deus dirá a meus amigos: -Certifico que viveu com vocês esperando este dia. De golpe, com a morte, minha vida se fará verdade. Por fim terei amado! (Profecia extrema, de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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07. “Perder a terra, perder a língua, perder os costumes, é perder o chão da vida, deixar de ser. Deixar de ser aquele Povo e, geralmente, deixar de ser mesmo. Quem não respeita uma Cultura, quem age etnocentricamente, ‘escraviza’, sim.” (Excerto de, de Missa da Terra sem Males, Tempo e presença, 1980)

08. Réplica vegetal da teimosia do Povo sertanejo, os paus deste cerrado a sol batido, duros sobreviventes. (Cerrado, de Cantigas Menores, Projornal, 1979/ Reeditado em 2003 pela UCG)

09. A Mata ficou torrão, o Campo virou Empresa e a Cerca cerca o país. Natureza e lavrador foram-se embora daqui. (Desolação, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)


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10. Nascer e morrer é fácil. O difícil é viver. (Hai-kai do sertão, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

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“É proibido jogar lixo”... Pode-se jogar gente. (Placa de subúrbio, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

12. “Enfrentam a doença própria e alheia com grande sangue frio e a suportam como um mal contra o qual não vale a pena lutar. O mesmo se diga em relação à morte que eles “acolhem” como a chuva depois da seca. Nem mesmo o choro é comum. É um povo sofrido de verdade. Só mesmo quem testemunha pode falar e o faz com grande angústia, percebendo a vida infra-humana desta gente, que não tem consciência dos seus próprios direitos de pessoa humana.” (Excerto de, Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, s/n, 1971)


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Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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13. [...] E nós te violamos ao fio das espadas, no fogo do arcabuz queimamos teu sossego. E nós te escravizamos. E nós te sepultamos nas fendas dos garimpos. E dobramos o teu corpo sob os canaviais. E te jogamos contra as árvores amadas, para cortar madeira, cortando o teu espírito, o cerne do teu Povo. [...] E nós te depredamos, desnudando as florestas, calcinando teus campos, semeando veneno nos rios e no ar, a Terra generosa separando por cercas, os homens contra os homens: para engordar o gado da fome nacional, para plantar a soja da exportação escrava. (A terra dos males sem fim, de Ameríndia Morte e Vida, Vozes, 2000)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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14. Chegam, por fim, as chuvas. Chora o deus das chuvas aqui também, talvez.

Entre o cruzeiro seco e a verde mangueira exuberante, levanta uma árvore em flor, toda só flor, a bandeja carmim de sua alegria.

Leitosidade total, escurecida luz, sem hora alguma, sem horizonte; rio, terra e céu fundidos em um halo.

Piam os pardais no ninho de casa que alugaram sem recibo e sem licença.

Com gaivotas ainda, desparafusando-se sobre as praias de água, que o rio abre em seus seios para acolher o vento cúmplice. A chuva bate, chia e chapinha na água, na terra, nos telhados, nas árvores apenas suspeitadas. Chove chuva na chuva, Torna a chover, um dia e outro dia. Hoje é a orchata cósmica. Passa um homem molhado, como um mito. Lavam roupa na chuva, as mulheres, com as roupas vestidas, lavando-se no rio e na chuva. Um cavalo, assustado, sem destino __cinzas empanadas __ olha não sabe onde, nem sabe bem o que espera, É carne do sertão: está molhando-se, Impotente e anônimo...

Chove. Torna a chover. Continua chovendo. Será dia ainda? Chove tão manso agora que se empapam as coisas, com a alma, de uma graça de Deus, feita batismo agreste. Três barcos, na água e na areia, como sapatos velhos, se molham tão submissos. E o céu, como um mármore. Chove, Chove... Esta chuva, que chega, de súbito, como um trem desconhecido, invadindo tudo loucamente!

(As Chuvas, de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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“Nos primeiros meses, Manuel e eu viramos enfermeiros, guiando-nos, um pouco às cegas, pelas bulas dos remédios. Pudemos comprovar de perto a presença múltipla, avassaladora, da doença e da morte na região. [...] Na primeira semana da nossa estada em São Félix, morreram quatro crianças e passaram por nossa casa em caixas de papelão, como sapatos, em direção daquele cemitério sobre o rio, onde posteriormente haveríamos de enterrar tantas crianças [...] e tantos adultos – mortos ou matados – talvez sem caixão e até sem nome” (Excerto de, Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

16. “começamos a sentir o problema da terra. Ninguém tinha terra própria. Ninguém tinha um futuro garantido. Todo mundo era retirante, emigrante de outras áreas do país já castigadas pelo latifúndio” (Excerto de, Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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“Mato Grosso era e ainda é uma terra sem lei. Alguém o tinha classificado como o Estado-curral do Brasil. Não encontramos nenhuma infra-estrutura administrativa, nenhuma organização trabalhista, nenhuma fiscalização. O Direito era do mais forte ou do mais bruto. O dinheiro e o 38 se impunham. Nascer, morrer, matar, esses sim, eram os direitos básicos, os verbos, conjugados com uma assombrosa naturalidade. [...] Eram os peões, carne de carregação, trabalhadores braçais, comprados fraudulentamente no Norte e no Centro do País e descarregados para os trabalhos de derrubadas e plantação de pastos, nessas infinitas fazendas de centenas de milhares de hectares, verdadeiros campos de concentração. [...] peões enganados, controlados a revólver, espancados, feridos ou mortos, cercados na floresta, em total desamparo de qualquer lei, sem nenhum direito, sem saída humana.” (Excerto de, Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

18. “E à medida que íamos chegando, invadia-me o dever, a amargura, a foça solidária do problema da terra. Essa palavra crescia em mim como um crime.” ( Excerto de, Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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19. “Nada dessa terra ou desses homens nos é indiferente. Denunciamos fatos vividos e documentados. Quem achar infantil, distorcida, imprudente, agressiva, dramatizante, publicitária, a nossa atitude, entre na sua consciência e leia com simplicidade o Evangelho; e venha morar aqui, neste sertão, três anos, com um mínimo de sensibilidade humana e de responsabilidade pastoral.” (Excerto de, Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, s/n, 1971)

20. “Duas mulheres, sobretudo, dona Margarida e dona Santana, estavam sofrendo na delegacia, impotentes, e sob torturas – um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, sob as unhas – essa repressão desumana. Eram mais de seis horas da tarde, e seus gritos se ouviam da rua: ‘Não me bata! [...] A escuridão que chegava, a areia da rua, o terror perceptível no ar, no silencio, nos acompanharam. [...] Quando o padre João Bosco disse aos policiais que denunciaria aos superiores dos mesmos as arbitrariedades que vinham praticando, o soldado Ezy Ramalho Feitosa pulou até ele – três metros apenas – dando-lhe uma bofetada fortíssima no rosto. Inultimente tentei cortar aí o impossível diálogo: ‘João Bosco vamos...’ O soldado, seguidamente, descarregou também no rosto do padre um golpe de revólver e, num segundo gesto fulminante, o tiro fatal, no crânio [...] O ar congelou-se, e a noite.” (Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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21. Para descansar eu quero só esta cruz de pau como chuva e sol, estes sete palmos e a Ressurreição! Mas para viver eu já quero ter a parte que me cabe no latifúndio seu: que a terra não é sua, seu doutor Ninguém! A terra é de todos porque é de Deus! Para descansar... Mas para viver, terra eu quero ter. Com Incra ou sem Incra, com lei ou sem lei. Que outra Lei mais alta já a Terra nos deu a todos os pobres sem voz e sem vez; que os filhos da gente são gente também!

Para descansar... Mas para viver, terra exijo ter. Dinheiro e arame não nos vão deter, Mil facões zangados cortam pra valer. Dois mil braços juntos cercam terra e céu. Para descansar... Mas para viver, terra e liberdade eu preciso ter. E não peço esmola nem compro o que é meu. A Sudam e o diabo podem se vender: gente não vende, nem se compra Deus!

(Cemitério de sertão, de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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22. “aliciados fora, são transportados em avião, barco ou pau-de-arara para o local da derrubada. Ao chegar, a maioria recebe a comunicação de que terão que pagar os gastos de viagem, inclusive transporte. E já de início têm que fazer suprimento de alimentos e ferramentas nos armazéns da fazenda, a preços muito elevados. [...] Para os peões não há moradia. Logo que chegam, são levados para a mata, para a zona da derrubada onde tem que construir, como puderem, um barracão para se agasalhar, tendo que providenciar sua própria alimentação. As condições de trabalho são as mais precárias possíveis. [...] O peão depois de suportar este tipo de tratamento, perde sua personalidade. Vive, sem sentir que está em condições infra-humana. Peão já ganhou conotação depreciativa por parte do povo das vilas, como sendo pessoa sem direito e sem responsabilidade. Os fazendeiros mesmo consideram o peão como raça inferior, como o único dever de servir a eles, os “desbravadores”. Nada fazem pela promoção humana dessa gente. O peão não tem direito à terra, à cultura, à assistência, à família, a nada. É incrível a resignação, a apatia e paciência destes homens, que só se explica pelo fatalismo sedimentado através de gerações de brasileiros sem pátria, dessas massas de deserdados de semi-escravos que se sucederam desde as Capitanias-Hereditárias” (Excerto de, Uma igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, s/n, 1971)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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23. “Ontem, a uma da tarde, morreu o peão Antônio Barbosa de S. Miguel do Araguaia, aquele rapaz de 21 anos que a Irmãzinha e do Didi levaram a Sta Isabel. Morreu de malária, com tifo parece. E tivemos de enterrá-lo urgentemente, enquanto caía a tarde... Eu tinha enrolado o cadáver com panos que sobraram dos uniformes do Ginásio e que tinham servido de cortina e de tela. Levamos Antônio de jipe ao cemitério. Acompanharam-nos um boiadeiro, “o Cearense” e dois peões. Pedi, a eles e aos coveiros, que nos sentíssemos pais, irmãos, amigos, daquele pobre moço abandonado que ia ser enterrado até mesmo sem caixão. Enquanto eu rezava a oração da sepultura, a passarada do piquizeiro começou a cantar. Todo um acúmulo de sentimentos – ira, compaixão, esperança, pobreza – me subiu à garganta e a voz se me quebrou em pranto. Ficava no ar da tarde, ameaçante de nuvens e relâmpagos, uma poderosa verdade: Eu sou a Ressurreição e a Vida... Joguei terra sobre o cadáver. Eu queria solidarizar-me com Antônio, com todos os peões, com todos os injustiçados do mundo. Contra o supersticioso costume desta região de sepultar com o rosto virado para o rio, Antônio foi enterrado de cara para as fazendas. Como uma acusação. De cara para o morro e para o céu também...” (Excerto de, Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

24. “Daqueles dias, trago a imagem de uma árvore que queimamos involuntariamente, como quem carrega o remorso de um homicídio. Digo isto para explicar como me doíam, à minha chegada em Mato Grosso, os infinitos tocos das queimadas do latifúndio.” (Excerto de, Creio na Justiça e na Esperança, Civilização brasileira, 1979).

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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25. [...] Tijolo trás tijolo, cresce o Povo. Cada golpe de enxada Abre um seio de vida. Brotam as margaridas da Utopia invencível. A panela crivada, Alvo do latifúndio, Vira um cálice cheio de Promessa [...] (Eucaristia, dom de Deus, fruto do trabalho, de Murais da Libertação, Edições Loyola, 2005)

26. [...] As ferramentas gritam a força do trabalho organizado, o fraterno poder das mãos unidas. Bem por trás da cadeia, derrubada a golpes de teimosa rebeldia, vinga a aurora do Reino. E as cercas da cobiça se retorcem, cortada pela marcha justiceira. Ainda há torturados nas masmorras da noite. Há desaparecidos, nos cúmplices silêncios. Inutilmente, império, inutilmente! Nossos caídos tombam com a flor da esperança nas mãos ressuscitadas. nossos mortos caminham, arrastando consigo a História Nova. contra os berros da morte, as palavras da vida: Terra! Libertação! (O maior amor, de Murais da libertação, Edições Loyola, 2005).


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27. Esta é a Terra nossa: a Liberdade, humanos! Esta é a Terra nossa: a de todos, irmãos! A Terra dos Homens que caminham por ela, pé descalço e pobre. Que nela nascem, dela, para crescer com ela, como troncos de Espírito e de Carne. Que se enterram nela como semeadura de Cinzas e de Espírito, para fazê-la fecunda como uma esposa mãe. Que se entregam a ela, cada dia, e a entregam a Deus e ao Universo, em pensamento e suor, em sua alegria, e em sua dor, com o olhar e com a enxada e com o verso... Prostitutos cridos da mãe comum, seus malnascidos!

Malditas sejam as cercas vossas, as que vos cercam por dentro, gordos, sós, como porcos cevados; fechando, com seu arame e seus títulos, fora de vosso amor, aos irmãos! (Fora de seus direitos, seus filhos e seus prantos e seus mortos, seus braços e seu arroz!) Fechando-os fora dos irmãos e de Deus! Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos para ampararem cercas e bois e fazer a Terra, escrava e escravos os humanos! Outra é a Terra nossa, homens, todos! A humana Terra livre, irmãos! (Terra nossa, Liberdade, de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)

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Cidade corrompe o ar do desejo. O Campo redime na livre pobreza do Vento. (Cidade e Campo, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

29.

As janelas dos prédios no espaço invadido se olham sem se ver. As ruas se entrecruzam sem nunca se encontrar, transbordando de homens. E sob um sol ausente de si mesmo, o ar se está afogando e está morrendo o Homem. (Megalópole, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

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30. Peão, pião, não está, não é, madeira de sorte, na roda da Morte, girando à mercê da mão empreiteira, da farra matreira, da louca peixeira... Pião à mercê, que não está, que não é ... e quase já era! (Peão do Trecho, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

31. - Quando acabar esta mata verde, eu vou entregar às chamas o meu vestido amarelo... (Hai-kai da borboleta nacionalista, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

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32. De longe, toda montanha é azul. De perto, toda pessoa é humana. (Perspectiva, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

33. Toda noite é a primeira, diamante pontual à minha alma garimpeira. (Vênus, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

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34. Por onde passei, plantei a cerca farpada, plantei a queimada, Por onde passei, plantei a morte matada. Por onde passei, matei a tribo calada, a roça suada, a terra esperada... Por onde passei, tendo tudo em lei, eu plantei o nada. (Confissão do Latifúndio, de Cantigas Menores, Projornal, 1979 / Reeditado em 2003 pela UCG)

35. A Utopia é possível se nós optamos por ela, vencendo o passado escravo, forjando o duro presente, forçando o novo amanhã. (A utopia é possível, de Cuia de Gedeão , Vozes, 1982)


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37. Enterrem-me no chão como tanto peão que tombou nesta guerra: sem nome e sem caixão. Só reivindico o póstumo direito de sentir liberada toda a terra sobre o cartório comunal do peito. (Enterrem-me no chão, de Águas do tempo, Fundação Cultural de Mato Grosso, 1989).

38. Roubaram as terras índias e batizam as fazendas com nomes índios ausentes. Aritana, onde estás? Debaixo da terra os mortos pedem os cantos da tribo... e só respondem os bois calçando a paz invadida. Aqui, onde a mata um dia erguera seus arcos verdes, se alastra o capim exangue. O sol, que foi testemunha, se vinga no chão despido. E pela estrada invasora a siriema costura um telegrama impotente (Roubaram as terras índias, de Águas do tempo, Fundação Cultural de Mato Grosso, 1989).


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39. Eu e tu, Araguaia, somos um tempo só. Abraamicamente numerosas nos garantem os sonhos as estrelas, lá fora proibidas. O ipê batiza ainda com outros gratuitos o silêncio que nós, ô Araguaia, conseguimos salvar dos invasores... Sempre ainda encontramos, eu e tu, a pergunta inquietante de uma garça, na beira, provocando respostas, acordando o mistério... De acordo com a lua, sacerdotisa virgem, tu estavas, no princípio, alfombrando as cadências do Aruaná sagrado. Os potes karajá recolhiam teus olhos desleídos e os peixes costuravam de prata teu banzeiro. Ainda o Padim Ciço não mostrava aos pobres nordestinos essa Bandeira Verde inconquistável... Não havia Funai, Sudam, nem Incra.

Eram Deus e as aldeias. (Eu e tu, Araguaia, de Versos adversos, Perseu Abramo 2006)


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Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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40. Nossas vidas são os rios. Minha vida é este Araguaia! Indescritível, indecifrável. Que se ama e se agradece, e se teme e deseja; ao qual se volta sempre, como a um lar, fatídico e feliz. Exuberante e cruel, maravilhosa, a multiforme fauna, presente ainda, condenada ao extermínio? Os jacarés espichados, que atenazam o sol, As placas insidiosas das arraias. As piranhas que serram carne viva. E os peixes elétricos, estalando a morte. E os peixes de todos os tamanhos e luzes, vorazes ou pacíficos. miúdos, brincalhões, voadores. Os peixes que dão vida, holocausto à brasa e à pimenta. Os pássaros, vestidos a rigor, senhores, diplomatas. Essa fileira de patos colegiais, que espera por um ônibus ali na margem... E, de súbito, o pulsar frágil de uma canoa. E as nuvens, acima, cansadas e fecundas. As famílias que chegam, retirantes; os enfermos que vão à deriva; as cargas, e as cartas trêmulas; as mulheres batendo a trouxa indiscreta; os homens na popa, os homens no remo; e os meninos banhando-se, somando-se às águas, como peixes. E eu, pela manhã, lavando-me do sono com o espelho incandescente ao sol da outra margem; eu, pela tarde, entrando, reverente, estrangeiro, vestido pela luz poente e pura na liturgia destas grandes águas... (Nossas vidas são os rios..., de Antologia Retirante, Civilização Brasileira, 1978)


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41. [...] Nas trevas da mentira a máquina do lucro, a fome do poder, os ídolos da Morte. Diante deles caem Os joelhos incautos. Eles vêm massacrando teus anônimos filhos sem defesa. [...] (O Reino e o Anti-Reino, de Murais da Libertação, Edições Loyola, 2005)

42. Entre o seu olhar frio e o meu misto quente o menino enfiou-me em desafio sua fome impotente. (Versos Adversos, Perseu Abramo, 2006)

Pedro Casaldáliga Dom Pedro Casaldáliga (1928 /Balsareny – 2020/Brasil) foi enviado ao Brasil em 1968 como padre da Missão Claretiana. Em 1971 foi nomeado primeiro bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, região nordeste do Mato Grosso. No ano de 2005, acometido do mal de Parkinson, apresenta sua renúncia a Santa Sé, permanecendo como bispo emérito até sua morte por complicações de saúde na cidade de Batatais-SP. Pedro, como gostava de ser chamado, deixa uma vasta produção literária e documental. Seu legado intelectual e solidário pode ser contemplado pelas lutas que empreendeu e através de instituições que tornarem-se referência na luta pelos direitos humanos.


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Aruã Callil Artista Convidado

BIOGRAFIA

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s primeiros cliques de Aruã Callil foram feitos ainda menino, quando estudava no Colégio São Gonçalo, com câmeras amadoras dependentes de filmes de rolo para os registros de luz. Ainda, claro, sem a mínima noção da influência e proporção que a fotografia iria tomar em sua vida. Acabou por ir morar nos Estados Unidos e lá resolveu dedicar-se com mais afinco ao estudo da arte. Em companhia da mãe e do irmão, partiu em uma road trip de costa a costa e, durante esse período, terminou por capturar as imagens que comporiam sua primeira série exposta. Nessa viagem norte-americana, havia de tudo um pouco: praias e museus na Califórnia, a ponte Golden Gate, o Grand Canyon e diversas outras paisagens, todas filtradas pela inquietude e desejo artístico do jovem. Sobre as influências, cita Sebastião Salgado, mas se mostra atento ao trabalho de fotógrafos locais. Para o futuro, a ideia é voltar as percepções para uma série urbana, deixar de lado um pouco a harmonia (ainda que violenta por vezes) da natureza para focar na desordem e caos urbanos. “Comecei a me aventurar por cenas de Cuiabá. Quero adentrar em percepções mais geométricas, deixar essa realidade que dá pra se ver, um morro, uma cachoeira, pois quero algo mais abstrato. Algo que Cuiabá proporciona muito no ambiente urbano”.


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Edson Flávio dos Santos Edson Flávio é cacerense, doutor em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/UNEMAT) e pesquisador na área de Literatura. É autor de Aldrava (2020) e escreve desde quando descobriu seu amor pela poesia.

VERSOS ADVERSOS: A POESIA EM EBULIÇÃO DE PEDRO CASALDÁLIGA

P

ere Casaldálgia i Pla, Pedro Casaldáliga ou simplesmente Pedro é espanhol e vive em Mato Grosso, desde a década de 70, contabilizando umas dezenas de obras escritas entre poemas, cartas, diários e outros. Apesar das décadas em que sua presença pode ser percebida nas letras, no entanto não foi por esse aspecto que ficou conhecido na história desta porção do Brasil. Suas opiniões divergentes sobre a atuação dos “poderes”, especificamente na região do Araguaia, não agradou a muitos. E isso lhe rendeu ameaças de morte e cerceamentos. Ordenado padre pouco mais de uma década antes de sua chegada, Pedro Casaldáliga vem para o Brasil enviado de forma missionária pela Congregação dos Claretianos. Ao adentrar o interior do país, experimenta um cenário de destruição ecológica, empobrecimento e negação de direitos imposto pela ditadura e pelo modelo econômico da época. Mato Grosso era um grande latifúndio. Terra de ninguém que mais parecia saído de uma cena de filmes de “far west”, como proferiu Casaldáliga algumas vezes. Os diários escritos por ele dão conta de registrar seus primeiros dias, meses e anos nesse rincão. As distâncias explicavam todas as ausências, parafraseando o catalão. Em sua atuação apostólica de padre e depois como bispo, às vezes, não conseguia expurgar o mal que via, que vivia, que ouvia. A poesia de Pedro Casaldáliga surge, então, como aliada, como bálsamo, como grito, como bandeira e arma de luta. A poesia enquanto liberdade e revolução.


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PEDRO E A POESIA EM MATO GROSSO Na obra História da Literatura de Mato Grosso – Século XX (2001), Hilda Magalhães afirma que a literatura produzida por Pedro Casaldáliga é “uma poética que luta contra o silêncio e a dominação” (p. 280). A autora pontua ainda que a escrita de Casaldáliga é “testemunho de luta e de resistência” (p. 280) caracterizando-o, pela divisão da obra em questão, como um autor contemporâneo que, diante dos problemas que afligem a Região do Araguaia, encontra na poesia uma condição de dar voz aos posseiros, indígenas, negros e todos àqueles que são explorados pela máquina do lucro e do poder. A partir dessa concepção é possível perceber que a literatura produzida pelo autor se firma não só como obra de arte literária, mas como “um verdadeiro arquivo da história do Estado de Mato Grosso”( SOUZA & REIS, 2014, p. 17) a duras penas conhecida pelos próprios mato-grossenses, principalmente estudantes dos cursos de letras. Salvo alguns raros cursos e professores que incluem sua poesia nos curriculuns universitários. Pedro Casaldáliga teve apenas uma única obra poética publicada em Mato Grosso: Águas do tempo (1989). Embora seus poemas apareçam em obras esparsas e com outros autores, comparada às outras publicadas apenas com poemas de Casaldáliga, esta é a primeira antologia de textos do autor, publicada em Cuiabá, bem como em todo o estado. Tal obra foi organizada pela, então, Fundação Cultural de Mato Grosso e pela Editora Amazônida, nomeações que, juntas, podem dar a dimensão de um projeto cultural que se pretendia desenvolver a partir de incentivos institucionais, aliados à possibilidade de parceria com as universidades públicas. Merece destaque a entrevista com o autor, publicada na primeira parte da obra intitulado Depoimento. Nesta interlocução o autor deixa registrado quando começou a escrever, suas influências literárias e o qual o papel da poesia em sua vida. Quando perguntado “o que pode a literatura?” a resposta que se encontra é sua declaração: “tudo o que pode a palavra humana.” Essa palavra engajada fez com que Pedro Casaldáliga ganhasse notoriedade fora do país e em outros estados. Seu engajamento, além poesia, também foi decisivo para que sua voz fosse ouvida em outras instâncias que não as literárias. Essa atuação política pode ter sido um dos motivos que fizeram com que sua poesia fosse eclipsada durante tanto tempo e só recentemente, no final da década de 90 é que se iniciaram os estudos críticos sobre a obra do autor em Mato Grosso, primeiramente pela UFMT e em seguida pela UNEMAT, especificamente através das pesquisas do Programa de Pós Graduação em Estudos Literários/PPGEL.

PEDRO CASALDÁLIGA E A INTELECTUALIDADE BRASILEIRA A percepção do potencial literário da obra de Casaldáliga já havia sido reconhecida pela intelectualidade do anos de 1970, principalmente quando Alfredo Bosi, então professor da USP escreve a primeira resenha de uma obra poética de Pedro Casaldáliga publicada no país. Nela, o crítico literário afirma que a poesia do autor é “um modo de trabalhar a realidade” (1978) por meio da “palavra e imagem, de ritmo e canto”. Bosi ainda viria prefaciar uma outra antologia do autor: Versos Adversos (2005). A resenha é publicada em 1978 na Revista Encontros com a Civilização Brasileira, da qual Bosi fazia parte do Conselho Consultivo. O periódico completava parte do holl de publicações da editora Civilização Brasileira, uma editora que reunia diversos intelectuais da época e cumpria um papel importante na recuperação do país no pós-64. No ano anterior lançou o livro-depoimento de Pedro Casaldáliga intitulado Creio na justiça e na esperança (1977), uma espécie de autobiografia do autor, onde este narra, em forma de diário, partes de sua vida, do nascimento, vida na Espanha, chegada ao Brasil e início das atividades no Araguaia.


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A resenha trata de Antologia Retirante (1978), nome da edição brasileira de Tierra nuestra, libertad, publicada pela Editorial Guadalupe, em Buenos Aires, no ano de 1974. No Brasil recebeu tratamento bilíngue, espanhol/português, com a tradução colaborada por Antônio Houaiss e prefaciada por Alceu Amoroso Lima, o “Tristão de Ataíde”, membro da Academia Brasileira de Letras. A antologia reúne grande parte da obra poética do autor escrita até então. São poemas provenientes de diferentes publicações em espanhol: Memoria de Uriel (até 1964), Llena de Dios y de los hombres (1964-1966) e Clamor Elemental (1971), além de conter alguns poemas inéditos escritos apenas em português.

PEDRO E SUA POESIA HOJE A poesia de Pedro Casaldáliga pode ser vista como marca indelével de um poeta que soube sentir as dores do povo e as dores da terra, mas não se furtou de exprimir de uma forma artística aquilo que lhe entrava pelos olhos e ouvidos. Sua atuação na defesa dos valores e direitos dos seres humanos, operada muitas vezes na denúncia do desmatamento ilegal, expropriações de terra, bem como das situações de privação de uma parcela da população, funcionou de certo modo como um leitmotiv de sua poesia. Conceito que de modo algum fere o valor literário de suas obras, que são frutos, antes de tudo, da experiência revolucionária e também artística do autor, criando uma espécie de “situação-gênese” da obra, utilizando termo cunhado pelo crítico Emil Staiger (1997), na obra Conceitos e Fundamentos da Poética. Para Staiger (1997), não é apenas o componente estético que imprime beleza à poesia, mas, principalmente, na força que a provocou e que ela carrega dentro de si. A poesia existe porque houve um desejo, ela não é obra do acaso ou da mera elaboração estética. Na obra Pedro Casaldáliga e a poética da emancipação encontra-se a seguinte afirmação: “o poeta se recusa à produção de versos que nucleiam os próprios procedimentos, aqueles cujo fazer consiste na exploração de aspectos formais” (SOUZA & REIS, 2014, p. 47). Tem-se também a declaração deque o autor possui “devida preocupação formal” e que não abre mão da inventividade e uso criativo dos recursos estéticos, a fim de “valorizar a função poética da linguagem, sem, no entanto, abrir mão de seus valores humanos e transcendentes” (SOUZA & REIS, 2014, p. 48). Isto faz de Casaldáliga poeta comprometido, antes de tudo, com os seus semelhantes, em uma crítica real do presente. Essa crítica “real” é a base de sua obra que funciona, no dizer de Antonio Candido (1982, p. 256), como “um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual”. Pedro Casaldáliga não mascara a realidade, mas denuncia e anuncia um novo tempo cheio de esperança e libertação. Nesta edição especial da Revista Pixé, veremos parte da produção poética desse autor que, passadas cinco décadas, ainda se percebe a atualidade de sua obra. Embora Pedro Casaldáliga esteja debilitado fisicamente e impossibilitado de desempenhar suas funções proféticas e literárias, seu legado poético ecoa como uma denúncia atual contra vilipêndios, sem precedentes, que sofreram e ainda sofrem parte da população, não só do Brasil, mas do mundo todo. Edson Flávio Santos Doutor em estudos literários Pesquisador da obra de Pedro Casaldáliga


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FOTO: ARUÃ CALLIL


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