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XXI
elle repetia havia quarenta annos e a innocente hilaridade que ellas lhe davam, impacientavam Amaro. Sahia, enervado, pensando na sorte inimiga [531] era a felicidade por fim: porque não havia de elle ser tambem um bom padre caturra, com uma pequenina mania tyrannica, parasita regalado d’uma familia respeitavel, tendo um d’estes sangues tranquillos que giram sob camadas de gordura, sem perigo de transbordar e de causar desgraças, como um riacho que corre por debaixo d’uma montanha?...
Outras vezes ia ao collega Natario, cuja fractura, mal tratada ao principio, o retinha ainda na cama com o apparelho na perna. Mas ahi, enjoava-o o aspecto do quarto—impregnado d’um cheiro d’arnica e de suor, com uma profusão de trapos ensopados em malgas vidradas, e esquadrões de garrafas sobre a commoda entre fileiras de santos. Natario, mal o via apparecer, rompia em queixas: As cavalgaduras dos medicos! A sua má sorte habitual! As torturas a que o forçavam! O atrazo em que estava a medicina n’este maldito paiz!... E ia salpicando o soalho negro de expectorações e de pontas de cigarro. Desde que estava doente, a saude dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma offensa pessoal.
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—E vossê sempre rijo, hein? Pudera!—murmurava com rancor.
E pensar que aquella besta do Brito nunca lhe doera a cabeça! E que o alarve do abbade se gabava de nunca ter estado na cama depois das sete da manhã! Animaes!
Amaro então dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do conego, da Vieira, as melhoras da D. Josepha... [532]
Mas Natario não se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a convivencia e a amizade; interessavam-n’o só os seus inimigos, com quem tinha ligações d’odio. Queria saber do escrevente, se já tinha estourado de fome...
—Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cahir aqui n’esta maldita cama!...
As sobrinhas appareciam então—duas creaturinhas sardentas, d’olhos muito pisados. O seu grande desgosto era que o titi não mandasse vir a benzedeira pôr-lhe virtude na perna: era o que tinha curado o morgadinho da Barrosa, e o Pimentel d’Ourem...
Natario, na presença das duas rosas do seu canteiro, calmava-se.
—Coitaditas, não é por falta de cuidados d’ellas que eu ainda não arribei... Mas tenho soffrido, caramba!
E as duas rosas, com o mesmo movimento simultaneo, voltavam-se para o lado limpando os olhos aos lenços.
Amaro sahia d’alli, mais enfastiado.
Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela estrada de Lisboa. Mas apenas se afastava do movimento da cidade, a sua tristeza tornava-se mais intensa, concordando com aquella paizagem de collinas tristes e arvores enfezadas: e a sua vida apparecia-lhe como essa mesma estrada monotona e longa, sem um incidente que a alegrasse, estirando-se desoladamente até se perder nas brumas do crepusculo. [533] Ás vezes, ao voltar, entrava no cemiterio, ia passeando entre os renques de cyprestes, sentindo áquella hora do fim da tarde a emanação adocicada das moitas de goivos; lia os epitaphios; encostava-se á grade dourada do jazigo da familia Gouvêa, contemplando os emblemas em relevo, um chapéo armado e um espadim, seguindo as negras letras da famosa ode que lhe adorna a lapida:
Caminhante, detem-te a contemplar Estes restos mortaes; E, se sentires a mágoa a transbordar, Detem teus ais. Que Julio Cabral da Silva Maldonado Mendonça de Gouvêa, Moço fidalgo, bacharel formado, Filho da illustre Cêa, Ex-administrador d’este concelho, Commendador de Christo, Foi de virtudes singular espelho, Caminhante, crê n’isto.
Depois era o rico mausoléo do Moraes, onde sua esposa, que agora, rica e quarentona, vivia em concubinagem com o bello capitão Trigueiros, fizera gravar uma piedosa quadra:
Entre os anjos espera, ó esposo, A metade do teu coração Que no mundo ficou, tão sózinha, Toda entregue ao dever da oração!...
Algumas vezes, ao fundo do cemiterio, junto ao muro, via um homem ajoelhado ao pé d’uma cruz negra, que um chorão assombreava, ao lado da valla [534] dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua moleta no chão, rezando sobre a sepultura da Tótó. Ia fallar-lhe, e mesmo, n’uma igualdade que aquelle logar justificava, passeavam familiarmente, hombro a hombro, conversando. Amaro, com bondade, consolava o velho: de que servia á desgraçada rapariga a vida para a passar estirada n’uma cama?
—Sempre era viver, senhor parocho... E eu, veja agora isto, sósinho de dia e de noite!
—Todos têm as suas solidões, tio Esguelhas, dizia melancolicamente Amaro.
O sineiro então suspirava, perguntava pela snr.a D. Josepha, pela menina Amelia...
—Lá está na quinta.
—Coitadita, não está má estopada...
—Cruzes da vida, tio Esguelhas.
E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros cheios do negrejamento das cruzes e da brancura das lapidas novas. Amaro, ás vezes, reconhecia alguma sepultura que elle mesmo tinha aspergido e consagrado: onde estariam aquellas almas que elle recommendára a Deus em latim, distrahido, engorolando á pressa as orações para ir ter com Amelia? Eram jazigos de gente da cidade; elle conhecia de vista as pessoas da familia; vira-as então lavadas em lagrimas, e agora passeavam em rancho pela Alameda ou chalaceavam ao balcão das lojas...
Voltava para casa mais triste,—e a sua longa noite começava, infindavel. Tentava lêr; mas ao fim [535] das dez primeiras linhas bocejava de tedio e de
fadiga. Ás vezes escrevia ao conego. Ás nove horas tomava chá; e depois era um passear sem fim pelo quarto, fumando maços de cigarros, parando á janella a olhar a negrura da noite, lendo aqui e além uma noticia ou um annuncio do Popular e recomeçando a passear com bocejos tão cavos que a criada os ouvia na cozinha.
Para entreter estas noites melancolicas, e por um excesso de sensibilidade ociosa, tentára fazer versos, pondo o seu amor e a historia dos dias felizes nas formulas conhecidas da saudade lyrica:
Lembras-te d’esse tempo da delicias, Ó anjo feiticeiro, Amelia amada, Quando tudo eram risos e ventura E a vida nos corria socegada?
Lembras-te d’essa noite de poesia Em que a lua brilhava pelos céos, E nós unindo as almas, ó Amelia, Erguemos nossa prece para Deus?...
Mas a despeito de todos os esforços nunca passára d’estas duas quadras— apesar de as ter produzido com uma facilidade promettedora—como se o seu sêr contivesse apenas estas duas gottas isoladas de poesia, e, soltas ellas á primeira pressão, nada mais restasse senão a sêcca prosa do temperamento carnal.
E esta existencia varia relaxára-lhe tão subtilmente todo o machinismo da vontade e da acção, [536] que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa concavidade das horas infindaveis era-lhe odioso como o peso d’um fardo injusto. Preferia ainda os tedios da ociosidade aos tedios da occupação. A não serem os deveres estrictos que elle não podia desleixar sem escandalo e sem censura—desembaraçára-se, pouco a pouco, de todas as praticas do zelo interior: nem a oração mental, nem as visitas regulares ao Santissimo, nem as meditações espirituaes, nem o rosario á Virgem, nem a leitura á noite do Breviario, nem o exame de consciencia—todas estas obras da devoção, estes meios secretos de santificação progressiva substituia-os pelos infindaveis passeios pelo quarto, do lavatorio á janella, e por maços de cigarros fumados até ao negro dos dedos. A missa, pela manhã, era rapidamente engorolada; o serviço da parochia feito com surdas revoltas de impaciencia; tornára-se consummadamente o Indignus
sacerdos dos ritualistas; e tinha na sua ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete meios defeitos que os theologos attribuem ao mau padre.
Só lhe restava através da sua sentimentalidade um appetite tremendo. E como a cozinheira era excellente, e a snr.a D. Maria da Assumpção, antes da sua partida para a Vieira, lhe deixára um fornecimento de cento e cincoenta missas a cruzado—banqueteava-se, tratando-se a gallinha e a geleia, regando-se d’um vinho picante da Bairrada que o padre-mestre lhe escolhera. E alli ficava á mesa, horas esquecidas, [537] de perna esticada, fumando sobre o café, e lamentando não ter á mão a sua Ameliasita...
—Que fará ella por lá, a pobre Ameliasita! pensava, espreguiçando-se com tedio e com langor.
A pobre Ameliasita, na Ricoça, amaldiçoava a sua vida.
Logo durante a jornada no char-à-banc D. Josepha lhe fizera tacitamente sentir que d’ella não tinha a esperar nem a antiga amizade, nem o perdão do escandalo... E assim foi, quando se installaram. A velha tornou-se intratavel: era todo um modo cruel de abandonar o tu, de a tratar por menina; uma recusa rispida se Amelia lhe queria arranjar a almofada ou aconchegal-a no chale; um silencio reprehensivo quando ella lhe passava o serão no quarto, costurando; e a todo o momento allusões suspiradas ao triste encargo que Deus lhe mandava no fim dos seus dias...
Amelia, comsigo, accusava o parocho: elle promettera-lhe que a madrinha seria toda caridade, toda cumplicidade; entregava-a por fim a uma semelhante ferocidade de velha virgem devota!...
Quando se viu n’aquelle casarão da Ricoça, n’um quarto regelado, pintado a côr de canario, lugubremente mobilado com uma cama de docel e duas cadeiras de couro, chorou toda a noite com a cabeça, enterrada no travessseiro—torturada por um cão que debaixo das janellas, estranhando sem duvida [538] as luzes e o movimento na casa, uivou até de madrugada.
Ao outro dia desceu á quinta a vêr os caseiros. Era talvez boa gente com quem podia distrahir-se. Encontrou uma mulher, alta e lugubre como um cypreste, carregada de luto: um grande lenço negro tingido, muito puxado para a testa, dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza
de dobre a finados. O homem pareceu-lhe ainda peor, semelhante a um ourango-tango, com duas orelhas enormes muito despegadas do craneo, uma saliencia bestial de queixo, as gengivas deslavadas, um corpo desengonçado de tisico, de peito mettido para dentro. Abalou bem depressa, foi vêr o pomar: andava maltratado; as ruasitas estavam invadidas por um hervaçal humido; e a sombra das arvores muito juntas, n’um terreno baixo, cercado d’altos muros, dava uma sensação doentia.
Era ainda preferivel passar os seus dias mettida no casarão; dias infindaveis em que as horas se iam movendo com o vagar fastidioso d’um desfilar funerario.
O seu quarto era na frente; e pelas duas janellas recebia a impressão triste da paizagem que se estendia defronte, uma ondulação monotona de terras estereis com alguma magra arvore aqui e além, um ar abafado em que parecia errar constantemente a exhalação de paues proximos e de baixas humidas, e a que nem o sol de setembro dissipava o tom sezonatico. [539]
Logo pela manhã ia ajudar a levantar D. Josepha, accommodal-a no canapé; depois vinha costurar para ao pé d’ella—como outr’ora na rua da Misericordia para ao pé da mãi; mas agora em logar das boas «cavaqueiras» tinha só o silencio intratavel da velha e a sua ronqueira incessante. Pensára em fazer vir o seu piano da cidade; mas, apenas em tal fallou, a velha exclamou com azedume:
—A menina está doida... Não tenho saude para tocatas! Ora o desproposito!
A Gertrudes tambem não lhe fazia companhia; nas horas em que não estava ao pé da velha, ou na cozinha, desapparecia; era justamente d’aquella freguezia, e passava o seu tempo pelos casaes, palrando com as antigas visinhas.
A peor hora era ao anoitecer. Depois de rezar o seu rozario, ficava junto á janella olhando estupidamente as gradações da luz poente; todos os campos pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um silencio parecia descer, pousar sobre a terra; depois uma primeira estrellinha tremeluzia e brilhava; e diante d’ella era então só uma massa inerte de sombra muda até ao horisonte, aonde ainda ficava um momento uma delgada tira côr de laranja desbotada. O seu pensamento, sem nenhum tom de luz ou contorno de objecto em redor que o prendesse, ia muito saudoso para longe, para a Vieira; áquella hora a mãi e as amigas recolhiam do passeio na praia; já todas as redes estavam apanhadas; já pelos palheiros começam a apparecer as luzes; é a hora do chá, [540] dos quinos
alegres, quando os rapazes da cidade vão em rancho pelas casas amigas, com uma viola e uma flauta, improvisando soirées. E ella alli, só!...
Era então necessario deitar a velha, rezar com ella e com a Gertrudes o terço. Accendiam depois o candieiro de latão, pondo-lhe diante uma velha chapeleira para dar sombra ao rosto da doente; e todo o serão, no silencio lugubre, apenas se ouvia o rumor do fuso da Gertrudes que fiava agachada a um canto.
Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas, n’um medo constante de ladrões; e então começava para Amelia a hora dos terrores supersticiosos. Não podia adormecer, sentido ao pé a negrura d’aquellas antigas salas deshabitadas e em redor o tenebroso silencio dos campos. Ouvia ruidos inexplicaveis: era o soalho do corredor que estalava, sob passadas mulplicadas; era a luz da vela que de repente se dobrava como sob um halito invisivel; ou a distancia, para os lados da cozinha, o baque surdo d’um corpo. Accumulava então as orações, encolhida debaixo da roupa; mas, se adormecia, as visões do pesadêlo continuavam-lhe os terrores da vigilia. Uma vez acordára de repente, a uma voz que dizia, gemendo, por traz da alta barra da cama:—Amelia, prepara-te, o teu fim chegou! Espavorida, em camisa, atravessou correndo a casa, foi refugiar-se na cama da Gertrudes.
Mas na noite seguinte a voz sepulchral voltou quando ella ia adormecer: Amelia, lembra-te dos teus peccados! Prepara-te, Amelia! Deu um grito, desmaiou. [541] Felizmente a Gertrudes, que ainda se não deitára, correu áquelle ai agudo que cortára o silencio do casarão. Achou-a estirada ao través do leito, com os cabellos soltos da rede rojando no chão, as mãos geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher do caseiro, e até de madrugada foi uma azafama para a chamar á vida. Desde esse dia a Gertrudes dormia ao pé d’ella—e a voz não tornou a ameaçal-a por traz da barra.
Mas, de noite e de dia, não a deixou mais a idéa da morte e o pavor do inferno. Por esse tempo, um vendedor ambulante d’estampas passou pela Ricoça; e a snr.a D. Josepha comprou-lhe duas lithographias—a Morte do Justo e a Morte do Peccador.
—Que é bom que cada um tenha o exemplo vivo diante dos olhos, disse ella.
Amelia não duvidou ao principio que a velha, que contava morrer no mesmo apparato de gloria com que expirava o Justo da estampa, lhe quizera mostrar a ella, a peccadora, a scena pavorosa que a esperava. Odiou-a por aquella «pi-
cardia». Mas a sua imaginação aterrada não tardou a dar á compra da estampa outra explicação: era Nossa Senhora que alli mandára o vendedor de pinturas, para lhe mostrar ao vivo na lithographia da Morte do Peccador o espectaculo da sua agonia: e estava então certa que tudo seria assim, traço por traço—o seu anjo da guarda fugindo aos soluços; Deus-Padre desviando o rosto d’ella com repugnancia; o esqueleto da morte rindo ás gargalhadas; e demonios de côres rutilantes, [542] com todo um arsenal de torturas, apoderando-se d’ella, uns pelas pernas, outros pelos cabellos, arrastando-a com uivos de jubilo para a caverna chammejante toda abalada da tormenta de rugidos que solta a Eterna Dôr... E ella podia vêr ainda, no fundo dos céos, a grande balança—com um dos pratos muito alto onde as suas orações não pesavam mais que uma penna de canario, e o outro prato cahido, de cordas retesadas, sustentando a enxerga da cama do sineiro e as suas toneladas de peccado.
Cahiu então n’uma melancolia hysterica que a envelhecia; passava os dias suja e desarranjada, não querendo dar cuidado ao seu corpo peccador; todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas orações lhe custavam, como se as julgasse inuteis; e tinha atirado para o fundo d’uma arca o enxoval que andava a costurar para o filho—porque o odiava, aquelle sêr que ella sentia mexer-se-lhe já nas entranhas e que era a causa da sua perdição. Odiava-o—mas menos que o outro, o parocho que lh’o fizera, o padre malvado que a tentára, a estragára, a atirára ás chammas do inferno! Que desespero quando pensava n’elle! Estava em Leiria socegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez—e ella alli sósinha, com o ventre condemnado e enfartado do peccado que elle lá depuzera, ia-se afundindo na perdição sempiterna!
Decerto esta excitação a teria matado—se não fosse o abbade Ferrão que começára então a vir vêr muito regularmente a irmã do amigo conego. [543]
Amelia ouvira fallar muitas vezes n’elle na rua da Misericordia; dizia-se lá que o Ferrão tinha «idéas exquisitas»: mas não era possivel recusar-lhe nem a virtude da vida nem a sciencia de sacerdote. Havia muitos annos que era alli abbade; os bispos tinham-se succedido na diocese, e elle alli ficára esquecido n’aquella freguezia pobre, de congrua atrazada, n’uma residencia onde chovia pelos telhados. O ultimo vigario geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavriado:
—Vossê é um dos bons theologos do reino. Vossê está predestinado por Deus para um bispado. Vossê ainda apanha a mitra. Vossê ha de ficar na historia da Igreja portugueza como um grande bispo Ferrão!
—Bispo, senhor vigario geral! Isso era bom! Mas era necessario que eu tivesse o arrojo d’um Affonso d’Albuquerque ou d’um D. João de Castro, para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!
E alli ficára, entre gente pobre, n’uma aldeia de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma chavena de leite, com uma batina limpa onde os remendos faziam um mappa, precipitando-se a uma meia legua por um temporal desfeito se um parochiano tinha uma dôr de dentes, passando uma hora a consolar uma velha a quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com um cruzado no fundo do bolso dos calções para uma necessidade do seu visinho, grande amigo de todos os rapazitos a quem fazia botes de cortiça, e não duvidando [544] parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que era raro na freguezia, e exclamar: «Linda moça, Deus a abençôe!»
E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era tão celebre, que lhe chamavam «a donzella».
De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas d’estação aos pés do Santissimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as menores praticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia com uma profunda oração mental, uma meditação de fé, d’onde a sua alma sahia mais agil, como d’um banho fortificante; preparando-se para o somno com um d’estes longos e piedosos exames de consciencia, tão uteis, que Santo Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarcho e Seneca, e que são a correcção laboriosa e subtil dos pequenos defeitos, o aperfeiçoamento meticuloso da virtude activa, emprehendido com um fervor de poeta que revê um poema querido... E todo o tempo que tinha vago, abysmava-se n’um cahos de livros.
Tinha só um defeito o abbade Ferrão: gostava de caçar! Cohibia-se, porque a caça tira muito tempo, e é sanguinario matar uma pobre ave que anda azafamada pelos campos nos seus negocios domesticos. Mas nas claras manhãs d’inverno, quando ainda ha orvalho nas giestas, se via passar um homem d’espingarda ao hombro, o passo vivo, seguido do seu perdigueiro—iam-se-lhe os olhos n’elle... Ás vezes [545] porém, a tentação vencia: agarrava furtivamente a espingarda, assobiava á Janota, e com as abas do casacão ao vento, lá ia o theologo illustre, o espelho de piedade, através de campos e valles... E d’ahi a pouco—pum... pum! Uma codorniz, uma perdiz em terra! E lá voltava o santo homem com a espingarda debaixo do braço, os dois passaros na algibeira,
cosendo-se com os muros, rezando o seu rosario á Virgem, e respondendo aos bons dias da gente pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito criminoso.
O abbade Ferrão, apesar do seu aspecto «gêbo» e do seu grande nariz, agradou a Amelia, logo desde a primeira visita á Ricoça; e a sua sympathia cresceu, quando viu que D. Josepha o recebia com pouco alvoroço, apesar do respeito que o mano conego tinha pela sciencia do abbade.
A velha, com effeito depois de ter estado só com elle n’uma pratica d’horas, condemnára-o com uma unica palavra, na sua auctoridade de velha devota experiente:
—É relaxado!
Não se tinham realmente comprehendido. O bom Ferrão, tendo vivido tantos annos n’aquella parochia de quinhentas almas, as quaes cahiam todas, de mães a filhas, no mesmo molde de devoção simples a Nosso Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente, patrono da freguezia, tendo pouca experiencia de confissão, encontrava-se subitamente diante d’uma alma complicada de devota de cidade, d’um beaterio caturra [546] e atormentado; e ao ouvir aquella extraordinaria lista de peccados mortaes, murmurava espantado:
—É estranho, é estranho...
Percebera bem ao principio que tinha diante de si uma d’essas degenerações morbidas do sentimento religioso, que a theologia chama Doença dos escrupulos—e de que na sua generalidade estão affectadas hoje todas as almas catholicas; mas depois, a certas revelações da velha, receou estar realmente em presença d’uma maniaca perigosa; e instinctivamente, com o singular horror que os sacerdotes têm pelos doidos, recuou a cadeira.
Pobre D. Josepha! Logo na primeira noite em que chegára á Ricoça (contava ella), ao começar o rosario a Nossa Senhora, lembrára-lhe de repente que lhe esquecera o saiote de flanella escarlate, que era tão efficaz nas dôres das pernas... Trinta e oito vezes de seguida recomeçára o rosario, e sempre o saiote escarlate se interpunha entre ella e Nossa Senhora!... Então desistira, d’exhausta, d’esfalfada. E immediatamente sentira dôres vivas nas pernas, e tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe alfinetes nas pernas...
O abbade pulou:
—Oh, minha senhora!...
—Ai, não é tudo, senhor abbade!
Havia outro peccado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir a expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na bôca, tinha [547] de escarrar; ultimamente engulia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia d’embrulhada para o estomago e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?
O abbade, d’olhar esgazeado, limpava o suor da testa.
Mas isto não era o peor: o grave era, que na noite antecedente estava toda socegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier—e de repente, nem ella soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco Xavier nú em pêllo!
O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Emfim, vendo-a a olhar anciosa para elle, á espera das suas palavras e dos seus conselhos, disse:
—E ha muito que sente esses terrores, essas duvidas...?
—Sempre, senhor abbade, sempre!
—E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a essas inquietações?
—Todas as pessoas que conheço, duzias d’amigas, todo o mundo... O Inimigo não me escolheu só a mim... A todos se atira...
—E que remedio dava a essas anciedades d’alma...?
—Ai, senhor abbade, aquelles santos da cidade, o senhor parocho, o snr. Silverio, o snr. Guedes, todos, todos nos tiravam sempre d’embaraços... E com uma habilidade, com uma virtude...
O abbade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se [548] triste, pensando que por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o rebanho n’aquellas trevas d’alma, mantendo o mundo dos fieis n’um
terror abjecto do céo, representando Deus e os seus santos como uma côrte que não é menos corrompida nem melhor que a de Caligula e dos seus libertos.
Quiz então levar áquelle nocturno cerebro de devota, povoado de phantasmagorias, uma luz mais alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror d’offender a Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que é por amor que é necessario servil-o, não por medo... Que todos esses escrupulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes, o nome de Deus a cahir no estomago, eram perturbações da razão doente. Aconselhou-lhe confiança em Deus, bom regimen para ganhar forças. Que não se cansasse em orações exageradas...
—E quando eu voltar, disse emfim erguendo-se e despedindo-se, continuaremos a conversar sobre isto, e havemos de serenar essa alma.
—Obrigada, senhor abbade, respondeu a velha sêccamente.
E apenas a Gertrudes d’ahi a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os pés, D. Josepha exclamou, toda indignada, quasi choramingando:
—Ai, não presta p’ra nada, não presta p’ra nada!... [549] Não me percebeu... É um tapado... É um pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha n’um sacerdote do Senhor...
Desde esse dia não tornou a revelar ao abbade os peccados medonhos que continuava a commetter; e quando elle, por dever, quiz recomeçar a educação da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se confessava com o senhor padre Gusmão, não sabia se seria delicado receber d’outro a direcção moral...
O abbade fez-se vermelho, respondeu:
—Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se ter muita delicadeza n’essas coisas...
Sahiu. E d’ahi por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe da saude, de ter fallado do tempo, da estação, das doenças que iam, d’alguma festa na igreja,—apressava-se em se despedir e ir para o terraço conversar com Amelia.
Vendo-a sempre tão tristonha, interessára-se por ella; para Amelia, as visitas do abbade eram uma distracção, n’aquella solidão da Ricoça; e assim se iam familiarisando, a ponto que nos dias em que elle regularmente vinha, Amelia punha um mantelete e ia pelo caminho dos Poyaes esperal-o até junto á casa do ferrador. As conversas do abbade, fallador incansavel, entretinham-na, tão differentes dos mexericos da rua da Misericordia,—como o espectaculo d’um largo valle com arvores, plantações, aguas, pomares e rumor de lavouras, recreia os olhos habituados ás quatro paredes caiadas d’uma trapeira [550] da cidade. Tinha com effeito uma d’estas conversações semelhantes aos jornaes semanaes de recreio, o Thesouro das familias ou as Leituras para serões, em que de ha tudo—doutrina moral, historias de viagens, anecdotas dos grandes homens, dissertações sobre a lavoura, citação d’uma boa chalaça, traços sublimes da vida d’um santo, um verso aqui e além, e até receitas, como uma muito util que deu a Amelia para lavar as flanellas sem encolherem. Só era monotono quando fallava da sua familia parochiana, dos casamentos, baptisados, doenças, questões, ou quando começava as suas historias de caça.
—Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Corrego das Tristes, quando uma revoada de perdizes...
Amelia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam façanhas da Janota, pontarias fabulosas contadas em mimica, com imitações de vozes de passaros, e pum, pum de fusilaria. Ou então eram descripções das caçadas selvagens que elle lêra com gula—a caça ao tigre do Nepal, ao leão d’Argelia e ao elephante, historias ferozes que arrastavam a imaginação da rapariga para longe, para os paizes exoticos onde a herva é alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em braza, e entre cada ramagem reluzem os olhos d’uma fera... E depois, a proposito de tigres e de malaios, lembrava-lhe uma historia curiosa de S. Francisco Xavier, e eil-o lançado, o terrivel palrador, na descripção dos feitos da Asia, das armadas da India e das estocadas famosas do cerco de Diu! [551]
Foi mesmo um d’esses dias, no pomar, em que o abbade, tendo começado por enumerar as vantagens que o conego tiraria de transformar o pomar em terra de lavoura, acabára por contar perigos e valores dos missionarios da India e do Japão—que Amelia, então em toda a intensidade dos seus terrores nocturnos, fallou dos ruidos que ouvia na casa e dos sobresaltos que lhe davam.
—Oh, que vergonha! disse o abbade rindo; uma senhora da sua idade ter medo de papões...
Ella então, attrahida por aquella bondade do senhor abbade, contou-lhe as vozes que ouvia de noite por detraz da barra da cama.
O abbade pôz-se sério:
—Minha senhora, isso são imaginações que deve a todo o custo dominar... Decerto tem havido prodigios no mundo, mas Deus não se põe assim a fallar a qualquer, por detraz das barras das camas, nem permitte ao demonio que o faça... Essas vozes, se as ouve, e se os seus peccados são grandes, não vêm de detraz da cama, vêm-lhe de si mesmas, da sua consciencia... E póde então fazer dormir ao pé de si a Gertrudes, e cem Gertrudes, e todo o batalhão de infanteria, que as ha de continuar a ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que é necessario é calmar a consciencia que reclama penitencia e purificação...
Tinham subido ao terraço, fallando assim: e Amelia sentára-se fatigada n’um dos bancos de pedra que alli havia, e ficára a olhar a quinta ao longe, [552] os tectos dos curraes, a longa rua de loureiros, a eira, e a distancia os campos que se succediam planos e avivados do tom humido que lhes dera a chuva ligeira da manhã: agora a tarde estava d’uma placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que o sol do poente tocava de vivos côr de rosa tenro... Pensava n’aquellas palavras tão sensatas do abbade, no descanso que gozaria se cada peccado que lhe pesava na alma como um penedo se tornasse ligeiro e se dissipasse sob a acção da penitencia. E vinham-lhe desejos de paz, d’um repouso igual á quietação dos campos que se estendiam diante d’ella.
Um passaro cantou, depois calou-se; e recomeçou d’ahi a um momento com um trinado tão vibrante, tão alegre, que Amelia sorria, escutando-o.
—É um rouxinol...
—Os rouxinoes não cantam a esta hora, disse o abbade. É um melro... Ahi está um que não tem medo de phantasmas, nem ouve vozes... Olha que enthusiasmo, o maganão!
Era com effeito um gorgear triumphante, um delírio de melro feliz, que dera de repente a todo o pomar uma sonoridade festiva.
E Amelia, diante d’aquelle chilrear glorioso d’um passaro contente, subitamente, sem razão, n’um d’estes abalos nervosos que vem às mulheres hystericas, rompeu a chorar.
—Então, que é isso, que é isso? fez o abbade muito surprehendido. [553]
Tomou-lhe a mão, com uma familiaridade de velho e d’amigo, calmando-a.
—Que infeliz que sou!... murmurou ella aos soluços.
Elle então muito paternal:
—Não tem razão para o ser... Sejam quaes forem as afflicções, as inquietações, uma alma christã tem sempre a consolação á mão... Não ha peccado que Deus não perdôe, nem dôr que não calme, lembre-se d’isso... O que não deve é guardar em si o seu desgosto... É isso que a suffoca, que a faz chorar... Se eu lhe posso valer, socegal-a, é procurar-me...
—Quando? disse ella toda desejosa já de se refugiar na protecção d’aquelle santo homem.
—Quando quizer, disse elle rindo. Eu não tenho horas para consolar... A igreja está sempre aberta, Deus está sempre presente...
Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amelia foi á residencia; e durante duas horas esteve prostrada diante do pequeno confessionario de pinho—que o bom abbade por suas mãos pintára d’azul escuro, com extraordinarias cabecinhas d’anjos que em logar d’orelhas tinham azas, uma obra d’alta arte de que elle fallava com uma secreta vaidade.
409
XXII
Opadre Amaro acabára de jantar, e fumava, com os olhos no tecto, para não vêr o carão chupado do coadjutor que havia meia hora alli estava, immovel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que cahia no silencio da sala como os quartos melancolicos que dá de noite um relogio de cathedral.
—O senhor parocho já não é assignante da Nação?
—Não senhor, leio o Popular.
O coadjutor recahiu no silencio, começando logo a colligir laboriosamente as palavras para uma nova pergunta. Soltou-a emfim, com lentidão:
—Não se tornou a saber d’aquelle infame que escreveu o Communicado? [556]
—Não senhor, foi para o Brazil.
A criada entrou, n’este momento, dizendo que «estava alli uma pessoa que queria fallar ao senhor parocho». Era a sua maneira d’annunciar a presença de Dionysia na cozinha.
Havia semanas que ella não apparecia—e Amaro, curioso, sahiu logo da sala fechando a porta sobre si, e chamou a matrona ao patamar.
—Grande novidade, senhor parocho! E vim a correr, que é sério. Está cá o João Eduardo!
—Ora essa! exclamou o parocho. E eu justamente a fallar d’elle! É extraordinario! Olha que coincidencia...
—É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já estou informada de tudo. O homem está mestre dos filhos do Morgadinho.