Barreiras: Os obstáculos enfrentados por cadeirantes na sociedade contemporânea.

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D É B O R A

F E R N A N D E S

Os obstáculos enfrentados por cadeirantes na sociedade contemporânea.


Universidade Federal de São João Del-Rei

Departamento de Arquitetura e Urbanismo e Artes Aplicadas

Curso Arquitetura e Urbanismo

Disciplina Seminários de TFG Professoras Alba Nascimento Liziane Mangilli Orientadora Márcia Hirata Aluno Débora Fernandes G. da Silva Matrícula 121850060

Título Barreiras: Os obstáculos enfrentados por cadeirantes na sociedade contemporânea São João Del- Rei, novembro de 2017


D É B O R A

F E R N A N D E S

Os obstáculos enfrentados por cadeirantes na sociedade contemporânea.


Homem Vitruviano Desenho de Leonardo da Vinci Período: Alta Renascença Data: 1490


O campo da Arquitetura e Urbanismo ao longo de sua história buscou encontrar soluções adequadas e melhores condições de uso do ser humano no espaço. Dessa forma, a busca pelas

proporções ideais do ser humano, principalmente na área da ergonomia, fez com que profissionais da área desenvolvessem medidas padronizadas para a construção de ambientes padrão e surgisse o modelo do homem-padrão. O Homem Vitruviano de Leonardo da Vinci, que descreve as proporções de um corpo humano masculino, ou o Modulor, de Le Corbusier, cujas medidas são baseadas nas proporções de um indivíduo masculino imaginário, são exemplos desse modelo, ainda muito utilizado como orientação para projetos. Entretanto é importante considerar que a simplificação do ser humano ao homem-padrão como referencial não engloba a maioria dos usuários reais que também utilizam, ou deveriam, por direito, utilizar, esses espaços. “Em que pese a inegável importância desses autores [...] se a arquitetura ou o urbanismo restringirem-se ao homem modularmente exemplar, deixarão de fora [...] crianças, adultos [que não correspondem a esse padrão], idosos, pessoas em cadeiras de rodas, usuários de muletas, pessoas com baixa visão, altos, baixos, obesos, grávidas [...].” (CAMBIAGHI. 2007, p. 10),

entre outras formas de diversidade funcional. A busca de um modelo padrão se estende para além do campo da Arquitetura e Urbanismo, além de não representar todas as pessoas, passa a reforçar as barreiras sociais enfrentada por cadeirantes e pessoas com diversidade funcional. Isso acontece por que esse modelo está diretamente relacionado com


com a ideia da 1) corponormatividade, “[...] que considera determinados corpos como inferiores, incompletos ou passíveis de reparação/reabilitação quando situados em relação aos padrões corporais/funcionais hegemônicos”. (MELO, 2016), e com a 2) lógica capacitista, ou Capacitismo, que pode ser definido como preconceito, inferiorização ou violências praticados contra as pessoas com diversidade funcional. Nessa lógica, quando se cria e estabelece culturalmente determinado tipo de

corpo como padrão ou ideal, todos aqueles que fogem desse padrão é considerado menos humano. A lógica capacitista parte de uma “concepção presente no social que tende a pensar as pessoas com deficiência como não iguais, menos humanas, menos aptas ou não capazes para gerir a próprias vidas, sem autonomia, dependentes, desamparadas.” (DIAS, 2012). O termo Capacitismo, corresponde à uma adequação e tradução para a língua portuguesa da palavra ableism, do inglês, que classifica as pessoas baseado em referenciais como capacidade. Dessa forma considera-se, portanto, corpos padrões como normais, e as pessoas com diversidade funcional como menos capazes, inferiores e dependentes.

É a atitude preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da adequação de seus corpos a um ideal de beleza e capacidade funcional. Com base no

capacitismo, discriminam-se pessoas com deficiência. Trata-se de uma categoria que define a forma como pessoas com deficiência são tratadas como incapazes (incapazes de trabalhar, de frequentar uma escola de ensino regular, de cursar uma universidade, de amar, de sentir desejo, de ter relações sexuais etc.), aproximando as demandas dos movimentos de pessoas com deficiência a outras discriminações sociais como o sexismo, o racismo e a homofobia. (MELO, 2016).


Essa concepção é fruto de um processo histórico de um comportamento social em relação às pessoas com diversidade funcional marcado pelo preconceito, que encarava a existência do corpo fora do padrão com despreparo, medo e intolerância. “Ao longo da história, a sociedade já tratou da deficiência por alguns vieses: o do extermínio, que é autoexplicativo; do isolamento, em que aqueles considerados fisicamente incapazes são separados do corpo social ‘funcional’, etc. [...]” (ANDRADE,

2016). Apesar de alguns autores abordarem o tema com cada vez mais frequência, a luta contra esse tipo de discriminação ainda não é visibilizada, ou quando ganha visibilidade é abordada com um olhar assistencialista. “O grande problema deste tipo de preconceito é ele ser extremamente sorrateiro, quase imperceptível a olho nu, vindo, inclusive, no mais das vezes, escondido sobre uma capa de boas intenções muito difícil de ser questionada”. (ANDRADE, 2016). DIAS (2012) relaciona esse preconceito a um ideal paternalista, que estabelece um novo sujeito: os dominadores, a quem cabe função do cuidado, entretanto acabam produzindo uma lógica de subordinação:

Há sempre uma boa dose de paternalismo, que tolera que os elementos dominantes de uma sociedade expressem profundo e sincera simpatia pelos membros com deficiência, enquanto, ao mesmo tempo, sustente-os num acondicionamento de subordinação social e econômica. Os dominantes serão os protetores, guias, líderes, modelos, e intermediários para pessoas com deficiência.

Estes últimos, os desamparados, dependentes, assexuadas,

economicamente improdutivos, fisicamente limitados, imaturos emocionalmente, e aceitáveis apenas quando eles são discretos. (DIAS, 2012).



O Capacitismo também está relacionado à uma forma de enxergar a diversidade simplesmente como problema de saúde, que geram estereótipos:

[...] ser ou tornar-se deficiente, de acordo com esta lógica, passa essencialmente pela dinâmica de ter uma doença, lesão ou síndrome que devem ser tratadas. Assim, lemos as pessoas com deficiência enquanto enfermos, fato este que acaba por despejar sobre os sujeitos a sensação de obrigatoriedade da busca pela cura

ou reversão do problema. O que, obviamente, nem sempre será possível. Diante da irreversibilidade da deficiência, então, surgem dois estereótipos bastante prejudiciais para quem tem que conviver com limitações diariamente se quiser conseguir transitar pela vida social: o coitado e o herói. (ANDRADE, 2016).

Esses estereótipos são muito comuns, porém pouco debatidos, pois muitas vezes não são vistos como negativos. O primeiro, o “coitado” subestima as capacidades da pessoa com diversidade ou especificamente do cadeirante, e é uma imagem infantilizada geralmente associada à inocência, ingenuidade e assexualidade, como se o indivíduo fosse privado ou incapacitado de realizar certas ações. É uma forma de higienização de seus comportamentos: “gente com deficiência não rouba, não transa, não trai, não mente, são anjos que precisam ter sua candura preservada.” (ANDRADE, 2016).

Esse tratamento reforça a exclusão social e a ideia de assistencialismo por parte do poder público e da sociedade que gera políticas baseadas à um atendimento especializado quando deveria elaborar medidas de inclusão. ANDRADE (2016) discorre:


O assistencialismo separa a população “problemática” da população “normal”, sob a justificativa de que aquela parcela precisa de atendimento especializado,

diferenciado e, portanto, incompatível com as dinâmicas comuns. Então, para remendar o capacitismo nosso de cada dia, separamos dois caixas no supermercado, para quem tem “necessidades especiais”, quando, a bem da verdade, a minha necessidade ali é a mesma de qualquer outro: pagar minhas compras. De modo que, por esse exemplo, em uma sociedade minimamente informada, empática e educada, qualquer um dos caixas do supermercado deveria servir, pois o que se precisa, nesta situação, é de PREFERÊNCIA, e não ESPECIALIZAÇÃO. Qualquer sujeito poderia ceder sua vez na fila comum para o próximo que, devido à sua condição física, não consegue esperar o mesmo tempo que a maioria das pessoas.

Partindo de um ponto oposto o estereótipo de herói ou guerreiro surge como exemplo de superação e força por enfrentar diariamente essas barreiras, quando na verdade elas deveriam ser eliminadas. É um estereótipo que reforça a lógica capacitista a medida em que supervaloriza e desnaturaliza as conquistas das pessoas com diversidade funcional reforçando a ideia de incapacidade, como se essas não fossem autônomas e aptas o suficiente para realizar uma vida independente.

Criamos, com este mito, o estigma cruel que, subliminarmente, obriga toda e qualquer pessoa com deficiência a se conformar com a ideia de que o mundo não foi feito para ela, que ela precisará sempre se contorcer e fazer esforços sobrehumanos para conseguir, depois de tudo isso, o mesmo resultado que alguém sem deficiência conseguiria se esforçando apenas o suficiente. (ANDRADE, 2016)


humanos para conseguir, depois de tudo isso, o mesmo resultado que alguém sem deficiência conseguiria se esforçando apenas o suficiente. (ANDRADE, 2016)

No campo da Arquitetura e Urbanismo é importante observar que a falta do cumprimento das Leis de Acessibilidade está relacionada também ao Capacitismo, na medida em que. uma sociedade capacitista cria a ilusão de que cadeirantes e pessoas com diversidade não existem, por não ocuparem os espaços públicos, excluindo-os da participação da sociedade. Esse fator subverte a lógica da

oferta/demanda em favor de manter seu conformismo em não cumprir essas leis, quando “muitos dos problemas de acessibilidade cotidianos se resolveriam com a simples mudança de atitude das pessoas em seu convívio coletivo”. (ANDRADE, 2016). É uma questão de visibilidade, como aponta ANDRADE (2016), exemplificando a falta de acessibilidade aos cegos, mas que condiz também às questões dos cadeirantes em relação a falta de rampas e dimensões adequadas de circulação: Um dono de restaurante, por exemplo, argumenta que não investe em cardápios em Braille porque não recebe clientes cegos, quando, na verdade, ele precisaria dispor desse material de antemão, para que clientes cegos se sentissem impelidos a frequentar seu estabelecimento. Assim, acabamos por levar a culpa pela própria falta de acessibilidade que nos impede de transitar pela cidade. (ANDRADE, 2016).

Uma forma de gerar visibilidade às lutas e reivindicações de grupos que se reconhecem como minoria representativa na sociedade é por meio de manifestações e debates com objetivo de tornar suas pautas conhecidas pelo maior número possível de pessoas. A popularização de redes sociais, principalmente o Facebook, fez com que essas redes gerassem a possibilidade de serem usadas como ferramenta de expressão e exposição das lutas desses grupos, popularizando também suas demandas e reinvindicações.


ferramenta de expressão e exposição das lutas desses grupos, popularizando também suas demandas e reinvindicações. O dia 3 de dezembro é considerado o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, e para dar visibilidade às barreiras sociais pela enfrentadas por essas pessoas iniciou-se nessa data em 2016, um movimento na internet com o uso da hashtag #ÉCapacistismoQuando, onde pessoas pudessem registrar situações discriminatórias relacionadas à lógica capacitista vivenciadas por elas para explicar esse preconceito. Alguns relatos são transcritos abaixo:

1. #Écapacitismoquando você vai a uma loja acompanhada de uma amiga ver uma roupa para você, daí a vendedora pergunta para sua amiga que tipo de coisa “vocezinha” está procurando. (Kátia Ferraz) 2.

#Écapacitismoquando você achar que toda pessoa com deficiência deve ser um exemplo de vida. Cada indivíduo possui uma personalidade e uma experiência que devem ser respeitadas. Ninguém é obrigado a carregar um estereótipo. (Fatine Oliveira)

3.

#ÉCapacitismoQuando chamamos uma pessoa de “retardada”, “idiota” ou “aleijada” levando usar qualquer doença ou deficiência como algo pejorativo. (Blogueiras Feministas)

4.

#ÉCapacitismoQuando falam: te admiro por trabalhar, estudar e se divertir. (Fernanda Härter)

5.

#Écapacitismoquando você se espanta porque uma pessoa com deficiência está namorando. (Andreza Brito)

6.

#Écapacitismoquando as pessoas dizem que sou um exemplo de superação só porque tenho

deficiência e estou fazendo coisas comuns. (Karla Garcia Luiz)


7. #Écapacitismoquando a pessoa tenta minimizar o fato de eu ter deficiência dizendo: “mas todo mundo tem uma deficiência, né?”. Não. Deficiência é uma condição específica para além da lesão do corpo, que se dá no enfrentamento das barreiras social e historicamente construídas. (Karla Garcia Luiz).

Homem Vitruviano Desenho de Leonardo da Vinci Período: Alta Renascença Data: 1490


O cartunista Ricardo Ferraz também aborda o tema Capacitismo em suas charges, representando de forma crítica e clara as situações de preconceito.


Portanto, para compreender as barreiras sociais relacionado às barreiras físicas – da acessibilidade - e dar soluções arquitetônicas e urbanísticas condizentes com a realidade desse grupo é necessário reconhecer a insuficiência do homem-padrão e explorar essa diversidade de usuários, assim

como entender que o corpo humano passa por variáveis com o decorrer do tempo, rompendo com ideais da corponormatividade, que agem como controle social, determinando os lugares em que as pessoas com diversidade funcional podem ocupar. É necessário ultrapassar estereótipos, buscar a igualdade no respeito e conhecimento da diversidade e reconhecer, dando visibilidade, às demandas e reivindicações dessas pessoas.


Homem Vitruviano Desenho de Leonardo da Vinci Período: Alta Renascença Data: 1490


As manifestações expondo as dificuldades e barreiras enfrentadas pelas pessoas com

diversidade funcional na luta pelo direito à garantia das leis de acessibilidade, apesar de não obter a visibilidade necessária, vão além das redes sociais. As discussões para a elaboração e cumprimento de normas de acessibilidade vem acontecendo nas últimas décadas, e um protesto exigindo a garantia dessas leis, o Capitol Crwal, marcou essas lutas.

O Capitol Crawl (ou, na tradução livre para a língua portuguesa, “Rastejamento no Capitólio”), aconteceu em 1990 na cidade de Washington, nos Estados Unidos da América, e reuniu mais de mil manifestantes pelos direitos das pessoas com diversidade funcional. O objetivo era a aprovação da Lei dos Americanos com Deficiência (ADA), que estava estagnada a meses. (FEMA, 2015). “A lei teve como objetivo acabar com a segregação de pessoas física e mentalmente deficientes, e prometeu-lhes igualdade de oportunidades de participar na sociedade, viver de forma independente e alcançar a autossuficiência econômica.” (FEMA, 2015). O protesto ganhou esse nome, pois como forma de simbolizar as barreiras enfrentadas pelas pessoas com diversidade funcional cerca de 60 ativistas “[...] abandonaram suas muletas, cadeiras de rodas simples e motorizadas, entre outros dispositivos de assistência de mobilidade, e começaram a se arrastar pelos 83 degraus de pedra que levam até o Capitólio” (FEMA, 2015) - local de reunião do Congresso estadunidense, formado pelo Senado e

pela Câmara dos Representantes. O resultado da atenção recebida pela imprensa e a pressão política que o movimento gerou foi a aprovação da ADA, que foi sancionada em 1990. “A lei proibiu a discriminação com base na deficiência física ou mental no emprego e garantiu o acesso a edifícios e a transportes públicos e privados”. (FEMA, 2015)


Homem Vitruviano Desenho de Leonardo da Vinci Período: Alta Renascença Data: 1490


Homem Vitruviano Desenho de Leonardo da Vinci Período: Alta Renascença Data: 1490


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