Síndrome do incisivo central superior mediano: relato de caso Syndrome of the sin^ metiian vnaxiUary central incisor: case report
}anaina Cristina GOMES* Monica T/rré ARAÚJO** leda Maria ORIOLI***
Resumo
Abstract
A síndrome do incisivo central superior mediano inclui uma variedade de sinais clínicos decorrentes de defeitos de desenvolvimento das estruturas medianas da face e da parte anterior do cerebro. A agenesia de um dos incisivos centrais superiores é um dos sinais clínicos que caracteriza essa síndrome e, por se tratar de anomalia presente na
cavidade bucal, institui o cirurgiâo dentista como um dos primeiros profissionais a ter contato com esses pacientes. O presente trabalho tem por objetivo apresentar um paciente com tal síndrome, buscando promover o embasamento dos profissionais para que estejam qualificados a diagnosticar, orientar e tratar esses pacientes.
The syndrome of the single median maxillary central incisor presents a variety of clinical signs due to defects in the complex detielüptnent of the médium structures of the face and of the previous part of the brain. The agenesis of one superior central incisor is one clinical sign that characterize this syndrome and as this anomaly presents itself
Palavras-chave:
Keywords:
Anodontia. Maxila. Holoprosencefalia.
Anodontia. Maxilla. Holoprosencephdy.
in the buccal cavity it institutes the dentist as one of the first professionals to have contact with these patient. The present nudy has as objective to present the ca.se report of an patient with this syndrome aiming to promote these professionals' foundation so that they are qualified to diagnose, guide and treat these patients.
* Doutoranda em Ortodontia no Departamento de Ortodontia e Odontopediatria da UFRJ, ** Professora de Ortodontia do Departamento da Ortodontia e Odontopediatria da UFRJ. "** Professora de Genética do Departamento de Genética da UFRJ,
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INTROOUCÄO
RELATO 0 0 CASO
A síndrome do incisivo central superior mediano ou síndrome SMMCI {single median maxillary central incisot) é uma anomalia de desenvolvimento rara e pouco conhecida no ámbito odontológico, a qual frequentemente é tratada como uma simples agenesia de incisivo central superior, o que torna deficiente o diagnóstico das possíveis associaçôes presentes'".
Uma paciente de 9 anos de idade procurou atendimento odontológico com a queixa principal de falta de espaço na arcada dentaria inferior para alinhamento dos incisivos permanentes. Após anamnese, na qual nâo foi relatado nenhum problema de saúde relevante, foi observado que, na dentadura mista, havia a presença do incisivo central permanente superior único posicionado na linha mediana, que exibia uma forma peculiar da coroa, com as faces distal e mesial simétricas entre si. Diante deste sinal clínico, foram examinados outros sinais que pudessem ter relaçâo com a síndrome em questao, sendo a ausencia do freio labial superior e da papila incisiva, torus palatino e filtro do labio superior sem contorno definido (Fig. 1). A paciente trouxe consigo uma radiografia panorámica tirada aos 6 anos de idade, a qual mostrava a presença de incisivo central superior mediano único também na dentadura decidua, com a presença de todos os demais dentés deciduos e germes dos permanentes, exceto os germes dos terceiros molares (Fig. 2).
Uma variedade de defeitos de desenvolvimento da linha média está associada à SMMCI e a relevancia do sinal clínico que caracteriza essa síndrome torna extremamente importante seu conhecimento por parte da comunidade odontológica. Além da presença do incisivo central superior único localizado na linha média, outras anomaiias podem estar presentes na cavidade bucal, como ausencia do freio labial superior e da papila incisiva, atresla e/ou estenose da sutura palatina mediana, sutura intermaxilar ausente ou anormal na regiâo anterior ao forame incisivo, labio superior em forma de arco com filtro pouco definido ou curto e, em alguns casos, fenda labiopalatina^'. Outras complicaçôes, de ordem sistémica, que podem estar relacionadas à síndrome do SMMCI, sâo: disfunçâo hipofisária, baixa estatura — que pode estar associada á deficiencia do hormônio do crescimento —, microcefalia, hipotelorismo orbital, anomaiias cardíacas congénitas, incapacidade intelectual, base anterior do crânio curta, maxila retrognata, atresia das cóanas, estenose nasal média e estenose da abertura nasal piriforme congénita'"''l A SMMCl pode estar presente em pacientes com anomalías cromossômicas ou com outras síndromes'^ sendo, entretanto, fréquente nos casos com Holoprosencefalia (HPE)l A HPE se caracteriza por defeito de desenvolvimento das estruturas medianas da face e da parte anterior do cerebro, resultando na falta total ou parcial de separaçâo dos hemisferios cerebrais"*'. Suas causas genéticas e ambientáis e sua expressâo fenotípica sâo variáveis, o que reforça a necessidade de uma anamnese, exames clínico e laboratoriais detalhados, a fim de excluir todas as possíveis alteraçôes sistémicas associadas. Como familiares de pacientes com HPE, portadores das mesmas mutaçôes génicas que esses, podem apresentar apenas SMMCl como defeito, foi proposto que a SMMCl, mesmo quando esteja presente como único defeito em familias onde nâo ocorreu HPE, seja na maioria das vezes uma forma incompleta de HPE''. O incisivo central superior único posicionado na linha média compromete a estética do sorriso desses pacientes, que geralmente procuram tratamento odontológico e/ou ortodôntico buscando soluçâo satisfatória, que possa proporcionar-lhes bem estar e melhor aceitaçâo social. O sucesso de todo tratamento está diretamente relacionado a um bom diagnóstico e plano de tratamento.
Foi solicitado que a mâe fizesse um histórico criterioso da saúde geral da paciente e de seus familiares, onde ela deveria mencionar toda e qualquer alteraçâo. As informaçôes trazidas pela mâe relatavam que a paciente nasceu sem canal lacrimal e com atresia da abertura nasal piriforme. Foi operada aos 2 anos de idade para desobstruçâo do canal lacrimal e das narinas, quando foi realizada também a remoçâo das amígdalas e da adenoide. Ainda, apresentava apneia durante o sonó e rinite, era portadora de respiraçâo bucal predominante, além de dificuldade de aprendizado e dislexia, e baixa estatura em relaçâo aos colegas da mesma idade. No histórico de saúde familiar, havia relatos de dificuldade de aprendizado, dislexia e problemas endocrinos, como constam no heredograma elaborado pelo Laboratorio de Malformaçôes Congénitas, do Departamento de Genética do Centro de Ciencias da Saúde da UFRJ, a partir de informaçôes referentes á familia materna (Quadro 1). A familia paterna preferiu nâo se expressar durante a realizaçâo dos estudos. Foram realizadas medidas antropométricas que revelaram estatura de 1,30m, peso de 27,8Kg, perímetro cefálico de 51 cm, distancia intercantal interna de 3cm, distancia intercantal externa de 9cm e distancia interpupilar de 6cm. A análise de modelos pelo método de Moyers, com probabilidade de 75%, resuitou em uma discrepancia de -3,3mm na arcada dentaria superior, e de -3,9mm na arcada dentaria inferior, após simulaçâo de alinhamento dos incisivos.
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Figura 1 Fotografias intrabucais e extrabucais da paciente com SMMCI. Obsen/a-se a presença do incisivo central superior único na linha média, o tórus palatino, ausencia da papila incisiva e ausencia do freio labial superior. Na fotografia extrabucal, nota-se a ausencia de contorno definido do filtro do labio superior. Tabela 1 Valores angulares e lineares das análises cefalométricas de Steiner e Tweed.
Ill
IV
^ 1 SMMCI e atresia da aberttjra piriforme nasal ^ B Dislexia e dificuldade de aprendizado I
I Problemas endocrinológicos
^ 1 Ausencia de úvula e surdez I
I Albino
I
I Sindactilia na mao direita (2 dedos grudados)
^ 1 Ausencia de um dos mamilos I
I Problemas de dicçào (fanho)
^ 1 Fenda palatina
Quadro 1 Histórico familiar.
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Figura 2 Radiografias panorámicas: em A, foi realizada a tomada radiográfica quando a paciente tinha 6 anos de idade; e em B, aos 9 anos de idade.
Figura 3 Telerradiografia lateral.
Os valores das análises cefabmétricas de Steiner e Tweed estâo representados na tabela 1. Esses valores nos permitem dizer que a maxila encontrava-se protruida e a mandibula estava bem posicionada em relaçâo á base do cránio. Os incisivos superiores estavam bem posicionados e com inclinaçâo axial para vestibular, enquanto os incisivos inferiores estavam retruidos e inclinados para vestibular. O padrâo de crescimento mandibular mostrou tendencia de crescimento vertical e o perfil mole mostrou-se convexo (Fig. 3). Com a finalidade de serem realizados estudos clinicos e moleculares detalhados, foram encaminhados para o Laboratorio de Malformaçôes Congênitas, do Departamento de Genética do Centro de Ciencias da Saúde da UFRJ: a punçâo venosa para remoçâo de 5ml de sangue utilizando seringa comum lavada com EDTA, sem adiçâo de heparina, da paciente e de seus pais; endoscopia das vias aéreas superiores pré e pós-cirurgia de desobstruçâo do canal lacrimal e da abertura nasal piriforme; tomografia computadorizada do cerebro; histórico médico e familiar; medidas antropométricas e fotografias.
OISCUSSÀO
Os pacientes com síndrome do SMMCI devem ser estudados do ponto de vista da genética clínica e molecular, para verificar se alguma mutaçâo capaz de causar HPE está presente no paciente ou se há outros casos afetados por essa condiçâo na familia. Em caso positivo de mutaçâo em algum dos genes associados á HPE (SHH, SIX3, TGIF), ou caso haja outra pessoa na familia afetada por HPE, o paciente deve receber esclarecimentos sobre a possivel manifestaçâo de HPE
em suas futuras geraçôes. A forma mais grave é chamada HPE alobar, na qual ocorre falha total de divisâo do cerebro, onde o recém-nascido nâo apresenta chances de sobrevivencia ou nasce morto. Formas menos graves, como a HPE semilobar ou lobar, podem apresentar hipotelorismo orbital, fenda palatina, ausencia de freio labial e SMMCP, Existe uma correlaçâo tâo grande da SMMCI com a HPE que há relatos de individuos com SMMCI e intelecto normal, alguns com hipotelorismo orbital suave, que tiveram filhos com HPE, alguns na sua expressâo mais severa^'^'. Além disso, pacientes que apresentam o incisivo central superior mediano único podem apresentar outras anomalias sistêmicas e outros sinais clínicos envolvidos, nâo devendo ser tratados apenas com relaçâo â causa local. Do ponto de vista cefalométrico, a paciente analisada apresentava a maxila bem posicionada em relaçâo á base do cránio, porém seu aspecto clínico nos levou a pensar em deficiencia da maxila, devido ao aprofundamento do terco medio da face, esclerótica aparente e sulco geniano evidente (Fig. 4). O valor de SNA pode ter sido alterado pela base anterior do cránio curta, que é uma característica comum nesses pacientes. Na arcada dentaria inferior, é possivel atuar com supervisâo de espaço, procurando aproveitar o espaço livre de Nance para viabilizar a erupçâo dos dentés permanentes. Na arcada dentaria superior, foi analisada a possibilidade da expansâo rápida da maxila durante a dentadura mista com o expansor de Haas, para melhorar a forma dessa arcada dentaria e ganhar perímetro. No entanto, os pacientes que apresentam a SMMCI nâo possuem sutura palatina mediana na pré-maxila, o que nos deixou inseguros em relaçâo a esse tipo de procedimento.
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Figura 4 Fotografia do perfil facial.
Na dentadura permanente, podemos pensar no alinhamento e niveiamento da arcada dentaria superior, fechamento de espaços posicionando o elemento 22 no local do incisivo central esquerdo e o 23 no lugar do incisivo lateral esquerdo — com isso o 24 tomaria o lugar do canino esquerdo. A boa aparéncia seria assegurada com a transformaçâo estética dos elementos 22 e 23 com resina fotopolimerizável. Essa forma de soluçâo se baseia em relatos da literatura que alcançaram resultados positivos com os recursos da cosmetologia, como nos casos de agenesia de incisivos laterais. Entretanto, os incisivos laterais apresentam uma coroa clínica menor do que a dos incisivos centrais, e nos preocupa a regiâo cervical, que pode ficar antiestética — pela dificuldade de aumentar seu contorno sem trazer transtornos ao periodonto de proteçâo. Uma segunda opçâo seria a colocaçâo de implante dentario na regiâo do 21 mas, para isso, teríamos que conseguir espaço com a provável exodontia do dente 24. Sugerir ao paciente que ele tem uma forma incompleta de HPE e que pode ter filhos afetados nao é conveniente, a menos que se tenha encontrado alguma mutaçâo que possa causar HPE ou se houver parente afetado por HPE.
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CONCLUSÔES
Ao nos depararmos com pacientes que apresentam incisivo central superior único, devemos fazer uma anamnese e exame clínico detalhados a fim de eliminar a hipótese da SMMCI. Quando estivermos diante de um provável portador da SMMCI, devemos solicitar exames iaboratoriais que possam confirmar nossa suspeita, como: sangue do paciente e de seus pais, para extraçâo de DNA, ou DNA já extraído; fotos clinicas; imagem do cerebro; exame clinico ou imagem das vias aéreas superiores; histórico familiar (heredrograma); antropometria; e resumo da historia clínica do paciente. Devemos evitar o erro de tratá-los como uma simples agenesia de incisivo central, pois esses pacientes podem apresentar problemas sistémicos graves e que merecem atençâo. É preciso ter como finalidade do tratamento favorecer o bem estar psíquico do paciente, proporcionando um tratamento ortodôntico eficiente.
Gomes JC. Araújo MT, Orloli IM
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