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REPORTAGEM
Ângela Bastos FOTOS
Charles Guerra EDIÇÃO
Júlia Pitthan e Ivan Rodrigues ARTE
Fábio Nienow DESIGN
Samanta Olivo e Ronald Baptista
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sta é a história de Dirceu, Iracema e seus 14 filhos no interior de Timbó Grande, no Planalto Norte de Santa Catarina. A família se encaixa numa estatística nem sempre visível aos olhos da maioria dos catarinenses: em janeiro de 2013, os Canofre viviam com uma renda de R$ 54 mensais por pessoa, condição que os colocava em situação de miséria absoluta – na época o valor de R$ 70 era o estabelecido para separar a pobreza da miséria. Município com o sexto pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado, em Timbó Grande 10,5% das crianças com até 14 anos subsistem com uma quantia abaixo dos R$ 70 por pessoa, o que os leva a viver em extrema pobreza. Por que nem todos veem? Porque Santa Catarina é o Estado brasileiro mais próximo de erradicar a miséria, de acordo com projeções do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea). Em 2013, apenas 1,6% da população se enquadrava nessa fatia estatística, o menor percentual do país. No entanto, apesar de pequeno, esse contingente abrangia 102 mil catarinenses e levou a reportagem do DC a uma investigação com início há dois anos e sete meses, em novembro de 2012. A missão dos repórteres Ângela Bastos e Charles Guerra era identificar e acompanhar uma família em situação de miséria absoluta. E mais: verificar se o Estado conseguiria alcançar a meta projetada pelo Ipea de ser o primeiro a banir a pobreza extrema de seu território, até o final de 2014. Nas páginas a seguir, você entrará na casa e no cotidiano dos Canofre. Em quatro capítulos inspirados nas estações do ano, você irá além da estatística, ferramenta normalmente usada para explicar e entender a miséria, mas que não revela o drama de quem nela sobrevive. Acompanhará como se enfrenta com poucos recursos o frio congelante do inverno e o calor abrasivo do verão. Viajará por 33 mil quilômetros desde o interior de Timbó Grande à Alemanha, de onde veio o primeiro Canofre, no século 19, em busca de uma vida de riquezas que não vingou para todos os descendentes. No final das quatro estações, uma notícia alentadora: a vida dos Canofre está melhor. A renda aumentou – boa parte graças ao auxílio de programas sociais –, os filhos vão bem na escola e Iracema finalmente pôde sorrir sem esconder a boca desdentada. Enquanto isso, Santa Catarina continua desafiada a dar fim à miséria absoluta.
Timbó Grande
SC
em 2013
102 mil pessoas
viviam com menos de
1,6% da
população
R$ 70 mensais ( IDH2010 )
O índice mede a qualidade de vida nos municípios. Em Santa Catarina, Timbó Grande aparece como a sexta cidade com indicador mais baixo
Mais baixos de SC Calmon São josé do cerrito 3º Bela vista do toldo 4º matos costa
1º 2º
5º lebon régis 6º timbó grande
0,618 0,618 0,624 0,630 0,632 0,654
Sc é 0 Estado com menor percentual de miseráveis no país
Mais baixo do BRASIL
1º
Melgaço (PA)
0,418
Fonte: Secretaria de Estado de Assistência Social, IBGE e Atlas do Desenvolvimento Humano do Brasil
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Na estação da troca das folhas, a vida do agricultor Dirceu Canofre de Campos e da mulher, Iracema, revela-se. A história de um pai que fez o parto dos 14 filhos e enterrou os umbigos à sombra das árvores
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A trajetória do agricultor Dirceu Canofre de Campos, 51 anos, casado e pai de 14 filhos é um retrato da pobreza extrema que obriga 102 mil catarinenses a sobreviver com até R$ 70 mensais por pessoa
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TEXTOS: ÂNGELA BASTOS FOTOS: CHARLES GUERRA
o que diz Dirceu Canofre de Campos, 51 anos, quando reencontra algum velho conhecido. Resposta a quem achou que ele tivesse morrido. Não como referência à epilepsia, que no começo pensava ser um espírito do mal. Assombração das brabas, capaz de jogá-lo no chão, fazer morder a língua, espumar pela boca, perder as forças. Nem pelos faconaços que lhe golpearam braços e pernas no corte de pínus. Tampouco pelo vômito arquejante de um amarelo com gosto de agrotóxico inalado nas lavouras de tomates. Mas pelas vulnerabilidades que a vida impõe. A ele, à mulher, aos 14 filhos. A família do agricultor é uma das 30 mil que em janeiro de 2013, quando a reportagem fez a primeira visita aos Canofre, subsistiam com uma renda de até R$ 70 per capita mensais no Estado. Dirceu, a mulher e os filhos contavam somente com R$ 54 por pessoa por mês. Os Canofre vivem em Timbó Grande, no Planalto Norte de Santa Catarina. Mas a pobreza extrema da família não se configura apenas pela questão econômica. Dirceu sofre de uma espécie de desenraizamento coletivo, igual a outros brasileiros. Como ele, nem todos sabem o nome dos bisavós. Realidade também dos descendentes de imigrantes mais pobres que não conseguiram se classificar socialmente.
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No caso de Dirceu, desconhecem-se certidões, registros, fotografias, documentos dos parentes. A narrativa de sua vida se faz pela ausência. A história registrada o torna mais pobre. A contada, o enriquece. Dirceu frequentou periferias, embrenhou-se nos matos, atravessou divisas, pulou cercas, assentou-se como um pequeno produtor. Um homem no qual se alternam sentimentos de ternura e aspereza. Afetivo, mas também rigoroso na cobrança de trabalho e obediência dos filhos. Assim é Dirceu. Da terra, dos facões e das tesouras. Instrumentos com os quais cortou o umbigo dos filhos, todos vindos ao mundo por suas mãos e retirados das entranhas da mesma mulher. A cada parto, um olhar para si mesmo, a busca da própria identidade, a retomada de um começo, lá de trás, com a avó Rosa Pinheiro de Morais, parteira que era. É da terra funda, onde cavou a tradição a cada nascimento dos filhos enterrando os umbigos perto de uma árvore. De uma história que não está na superfície. Ele semeia que os processos pelos quais as pessoas se reinventam vão além dos registros civis e de formulários preenchidos. A inexistência de um papel passado não espelha o presente. A identidade ou sentimento de pertença é muito maior. Mais do que um nome, do que um registro, do que uma marca.
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ascido em 7 de janeiro de 1964, à beira das águas calmas do porto de Goio-en, na divisa oeste de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Dirceu dormia embalado no colo enquanto o Brasil madrugava em um pesadelo. Em 31 de março, os militares assumiram o poder por meio de um golpe ao destituir o presidente João Goulart. Governariam o país por 21 anos, instalando um regime ditatorial que enclausurou a democracia e reprimiu os movimentos de oposição. Na década de 1970, quando Dirceu menino se assombrava com a obra da Usina Hidrelétrica do Rio Passo Fundo, nos limites de São Valentim (RS), ocorria uma mudança na economia brasileira. Se a represa alterou o perfil da divisa entre Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o milagre econômico, com o forte crescimento do país, redesenhou o Brasil. O crescimento do uso da tecnologia mecânica, dos agrotóxicos e a presença da assistência técnica mudaram a realidade do campo. Mas também fizeram surgir o embrião de uma colheita ruim, o êxodo rural. No auge do processo, entre 1970 e 1980, 30 milhões de pequenos produtores foram expulsos e migraram para áreas urbanas. Consequência de uma política que priorizava os grandes produtores e extensas plantações. Os pequenos eram excedentes, deixados para trás como grãos caídos das colheitadeiras. Como sementes ao léu, florescia o contingente dos que caminhavam de um lado para o outro no maior celeiro agrícola do Brasil, na época o RS. Assim aconteceu com o pai de Dirceu, Rodolfo Canofre de Campos, que foi perdendo o posto à medida em que a tecnologia avançava. Assim seria com Dirceu. Fosse criança, acompanhando o pai. Fosse adulto, seguido dos filhos.
Rodolfo e Dirceu serviram como boias-frias nos latifúndios sulinos. Sem qualificação profissional, passaram parte da vida como trabalhadores temporários no campo. Seguiam o ciclo das diversas culturas. Nas entressafras, buscavam nova frente de trabalho. Migravam de uma região para outra, submetendo-se a condições insalubres no corte da erva-mate e de pínus. Viveram acampados em barracas de lona no meio dos matos, onde o fogão era de chão e a comida em latas de sardinha. Pelas condições degradantes, certa vez Dirceu chegou a ser resgatado em uma operação da polícia por denúncia de trabalho escravo. Também esteve exposto aos riscos dos agrotóxicos em grandes plantações de tomates e pomares de maçãs. Dirceu tinha 20 anos quando ouviu no rádio de pilha: “Plante que o João garante”. Era o slogan do presidente João Figueiredo (1979-1984), um incentivo à agricultura brasileira. João garantia, Dirceu não podia. Faltava-lhe a terra. Além disso, interessada na exportação, a indústria não olhava para Dirceu e companheiros de roça. De 1970 a 1980, foi reduzida a participação de propriedades com até 10 hectares no país. O campo assistia à redução de área dos pequenos em relação aos grandes. Sem lavouras para o sustento, muitos se mudaram para a cidade. Dirceu era um deles. Foi atraído para a periferia de Caçador, no Meio-Oeste catarinense. De dia, colhia tomates para um grande produtor. À noite, o agricultor dormia em uma casa emprestada. Também se mudou para Videira, vizinha de Caçador. Como não conseguiu emprego, pegou o caminho para Timbó Grande. Carregava mulher, 10 filhos pequenos e tralhas. Morou em vilas, capinou terrenos, cuidou de propriedades particulares. Até pôr os pés no assentamento Perdiz Grande.
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Iracema Ferreira Silva Campos, 51 anos, é analfabeta, mãe, trabalha em casa e na roça. Distante de serviços básicos, como o de saúde, é uma das vítimas da miséria que a acompanha desde criança
s palavras fortes saem de um corpo miúdo. Iracema Ferreira Silva Campos, 51, é agricultora e casada com Dirceu Canofre de Campos há 35 anos. Mulher que vive no canteiro da sombra. Mostra-se enraizada a uma escravidão moderna. Sem nobre ou senhor de terra para contê-la, é prisioneira de uma tirania maior, a da pobreza extrema. Iracema é analfabeta. Nela incidem imprecisões, como número de filhos e o nome dos lugares onde eles nasceram. Até 2012, desdentada. Miserável no conceito técnico. Uma entre os 16,2 milhões de brasileiros que, de acordo com o Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, encontravam-se abaixo da linha da pobreza. Mas que não se ampara nas mazelas de uma criança que cresceu subnutrida, de uma adolescente relegada à sorte, de uma adulta maltratada pela vida. Convive, isso sim, com as consequências nascidas desses tempos. Nem sempre percebidas, tal qual erva daninha na lavoura. Riscos em uma jornada de trabalho que, sujeita às intempéries, inclui sol escaldante no verão e frio congelante no inverno. Distribuídos em uma rotina extenuante, que historicamente coloca nas mãos dela o cuidado da casa, o zelo dos filhos, o preparo da comida. Além de capinar a roça, alimentar os porcos, manejar as vacas. Iracema é contida, ao mesmo tempo surpreende ao avaliar a própria existência. E nas lacunas que
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a vida lhe impôs, buscou na fé a explicação para as inquietações da alma. Adotou a Igreja Deus É Amor como guarida. Frequenta o culto duas vezes na semana acompanhada de três filhos mais velhos. Para ela, é o momento mais feliz da semana. Desde menina é de falar pouco. Os pais, Aurora e João Maria Ferreira da Silva, separaram-se quando ela tinha cinco anos. Iracema e dois irmãos ficaram com João Maria. Pouco tempo depois, deixaram Chapecó, no Oeste de SC, e foram para o sudoeste do Paraná. Para sustentá-los, o pai cortava erva-mate. Um trabalho duro, feito em condições insalubres. Iracema e os irmãos cresceram em barracas iluminadas por lampiões a diesel, sem água tratada. O cardápio se repetia com batata-doce, polenta e milho cozido. Carne era coisa rara. Faltava higiene. Vestiam roupas surradas e calçados sovados. Cabelos desgrenhados e unhas aparadas com canivete. O melhor dia, ainda que incerto, era o do pagamento. O pai aparecia com chiclete e pacotinhos de suco em pó. O trabalho também se apresentava à menina mirrada, que, aos 12 anos, decepava os galhos dos ervais. Um dia ela percebeu que estava crescendo. O corpo ganhava forma e as responsabilidades aumentavam. Descobria por conta própria o significado dos ciclos de vida da mulher, como o da menstruação. E entendeu algo que hoje faz as filhas rirem: não é a cegonha que traz os bebês no bico. O tempo passava enquanto os pés de erva-mate cresciam. O boca a boca sobre a frente de trabalho
atravessou a divisa do Paraná com Santa Catarina. Na nova leva de trabalhadores que chegou à fazenda estavam moradores de Passo Bormann, atual distrito de Chapecó. Entre eles, Rodolfo Canofre de Campos e um dos filhos. Era Dirceu. Em meio às plantações, Iracema e Dirceu se enamoraram. Aos 16 anos dormiam no mesmo pedaço de chão. Quiseram se casar no papel. Mas tiveram que esperar um pouco, até Iracema completar 18 anos. Ela não tinha Registro Civil. Fisicamente, Iracema se parece com a mãe. Herdou feição magra, nariz afilado, cabelos lisos. Aurora, 65, acha que a filha tem parecença com a falecida avó Rosa Peres da Silva, que seria filha de uma “índia de casta pura”, filha de Bastiana, casada com um homem branco que suspeitam ser de origem alemã. Iracema e Aurora ficaram 40 anos sem se reencontrar. A separação dos pais e a mudança para outro Estado levaram ao afastamento. Há cinco anos se viram pela última vez. Hoje, vivem a 300 quilômetros de distância. E concordam que algo une avó e neta: Rosa teve 13 filhos, um a menos que Iracema. A memória das mulheres da família leva a Bastiana. Caçada no mato para casar com um homem branco, a bisavó cometeu um ato extremo ao não concordar com os castigos aplicados a um filho de pele mais escura: matou o marido a machadadas enquanto ele dormia. Iracema demonstra admiração quando lembra a história. Para ela, um ato de coragem na defesa da prole.
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racema é vulnerável na definição etimológica de quem está suscetível a alguma coisa. Como quando lida com os animais. Atividade comum no meio rural, mas que para ela resultou em desgraça. Começou 2013 magra, enrugada, com a pele embranquecida por uma anemia que se avistava nos lábios sem cor. Um mês antes, às vésperas de completar os nove meses de gravidez, quase se esvaiu em sangue. Tinha sido atingida pelo chifre de uma vaca no ventre. Iracema não contou para ninguém sobre o incidente. Nem que depois dele se sentia mal. Omitiu dores na barriga e hemorragias. Em uma noite quente, depois de rejeitar um prato de comida e deixar visitas na sala, estendeu-se no colchão afundado pelo tempo de uso. Era impossível continuar em pé. Não tinha mais como esconder o líquido vermelho que descia pelo meio das pernas. Ao levantar-se para pegar um copo de água, um filho adolescente percebeu: – Mãe, a senhora vai morrer. O grito do rapaz assustou as visitas. Iracema foi colocada num carro que seguiu seis quilômetros por uma estrada de chão. Recebeu atendimento na unidade de saúde de Timbó Grande. Mas o sangue não estancava. Três horas depois partiu de ambulância para Santa Cecília, cidade com mais recursos, a quase duas horas de viagem. A mãe se salvou. Mas o bebê morreu. A contragosto ficou internada por uma semana. Tempos depois, em casa, ganhou coragem de falar à filha casada sobre o acidente que levou à morte o seu 15o filho. Contou que, diferentemente da fúria animal, a dor chegou de mansinho. No começo recorreu à herança dos índios e dos caboclos. Acalmava a cólica com chás de ervas. Acostumada a parir em casa e sem anestesia, a dor era suportável. Resistiu até quanto pôde. O silêncio de Iracema teve voz de preocupação. Na cabeça da mãe, a ausência dela representava o medo de deixar as crianças sem cuidados. Dos 14 filhos, os sete menores de 17 anos moram em casa e precisam de atenção. Como na hora de botar a lenha para arder no fogão. Os adolescentes poderiam assumir a criação dos pequenos. – Mas e quando estivessem na roça ajudando o pai?
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Inspirado na avó parteira, Dirceu trouxe ao mundo as crianças gestadas por Iracema. Uma árvore foi plantada para homenagear cada nascimento
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ob o olhar interessado dos filhos, Dirceu conversa sobre os tempos de menino. Compensa relatos de uma infância difícil com o inusitado de acender o lampião para que a avó, montada a cavalo, saísse à noite a fazer partos. Valeu-lhe de inspiração para trazer os filhos ao mundo. Como a vida no meio rural fez de Iracema uma mulher com vergonha de mostrar o corpo, inclusive para um médico, Dirceu é pai-parteiro. Manteve um costume também aprendido com os antigos. A placenta, a que chama de companheiro, é enterrada com o cordão umbilical junto a uma árvore. – Desejamos que os filhos cresçam fortes e deem frutos – revela o agricultor. Um limoeiro próximo à casa da família é símbolo desse costume. A planta é a protetora do caçula Isaque, seis anos. Embora o menino não assista a desenhos na TV, reelabora a história de Tom e Jerry. Impressiona-se com o gato da casa, que vive à caça de um rato que toda a noite sai do buraco e desce pelas paredes em busca de comida. Com as mãos vazias, desenha no ar os personagens dessa história viva. Formas gigantescas de animais saem dos pequenos braços, os mesmos que à noite se arrepiam com o barulho dos bichos caminhando por cima das panelas, pratos e xícaras. Mesmo dormindo com os pais e irmãos menores, Isaque tem medo que o rato lhe roa o nariz ou as pontas dos dedos. Para se proteger, sufoca-se agarrado ao pescoço da mãe. Chama de esperto esse rato que, como ele e os irmãos, gosta do pão feito por Iracema. E que foge de barriga cheia. Como ele sabe disso? – Porque o pão sempre amanhece roído. Isaque é tio. Sua infância mistura-se com a dos sobrinhos, filhos dos irmãos mais velhos, com os quais chega a uma diferença de 27 anos. Os filhos de Terezinha, 30 anos, a primeira de Iracema e Dirceu, nasceram antes que ele. Um pouco adiante da casa da família, um imponente eucalipto guarda por Dalva, sete anos, a penúltima filha. Nos partos mais recentes, Dirceu usou uma tesoura. Diferentemente dos primeiros nascimentos, tempos em que cortava o cordão umbilical com facão. Para evitar doenças como tétano, passava a lâmina no fogo da lenha. Até incandescer. Dalva é tímida no falar. Gosta de ficar na janela, espiando a rua. Solitária nas brincadeiras, junta flores no campo para enfeitar a casa imaginária que tem ao lado da real, onde mora, um espaço grande, cheio de quartos, onde cada um tem sua cama. Uma
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casa com muitas portas, cheia de janelas, todas sem cortinas e que só são fechadas à noite. Para que o ladrão não entre? – Não. Para todo mundo dormir sossegado. Aos oito anos, Vitória aparentemente é a mais indomável. Quando está na rua e chega visita, corre para dentro de casa. Se está na moradia, busca a porta como rota de fuga. Mas com seu jeito indomesticável traduz o sentimento de aflição e afeição da família. Certa vez, o pai precisou ficar um tempo longe de casa. Foi a que mais chorou de saudade. Então perdeu a vergonha? – Chorava debaixo das cobertas, para ninguém ver. Silvana, 12 anos, tem olhos arredondados como bolinhas de gude. Assim como Iracema, por causa da religião, usa cabelos e saia compridos. No templo, sente-se igual aos outros. Mas quando vai à cidade, é tomada por uma sensação de que as pessoas a olham diferente, como se fosse uma menina estranha. Por causa da religião? – Acho que aqui em casa a gente vive diferente de todo o mundo. Na divisão do trabalho, Mateus, 14 anos, ajuda a tratar dos animais. Quando um dos porcos se solta, ele devolve o bicho ao chiqueiro. Apesar da responsabilidade, gosta mais é de cuidar dos irmãos pequenos. José Dirceu, 15 anos, é de pouca conversa. Mas de muito trabalho. Ele ajuda o pai nas atividades mais pesadas da lavoura. Corta lenha e cava terra. Os desejos para o futuro são simples: um bom emprego, que ganhe para contribuir com a família e que quando casar tenha uma casa boa, com roupas e comida para os filhos. Se der, quer comprar um carro. – Se andar e levar as pessoas já está muito bom. Moisés, 17 anos, é o mais velho entre os irmãos que moram em casa. O adolescente tem responsabilidades sobre os menores. Na ausência dos pais ou a mando deles impede que os pequenos façam coisas erradas. Em novembro de 2013, Moisés e José realizaram um desejo que vinha sendo adiado por falta de dinheiro para pagar pelas fotografias: o de tirar a carteira de identidade. Isso muda o quê? – O documento faz a gente se sentir homem. O umbigo de Terezinha, a primeira a nascer, nutriu um pé de erva-mate, em uma troca com a planta que com seu cultivo garantia trabalho para os pais recém-casados. Assim sucedeu com Isaura, Sebastião, Catarina, Amélia, Maria de Lourdes e João Maria. Estão representados por pés de araucária, cedro, imbuia, canela, araçazeiro, peroba. Juntos com os irmãos mais novos, formam um pomar, que inclui pessegueiro, jambolão, coqueiro, bergamoteira, laranjeira.
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A casa de madeira, onde não há cama para todos, tem apenas quatro cômodos e abriga dois adultos e sete filhos família de Iracema e Dirceu Canofre mora na área rural. Chega-se lá por uma estrada de chão a cerca de quatro quilômetros do centro de Timbó Grande. O terreno tem 11 hectares e ocupa o lote 25 do Assentamento Perdiz Grande – regularizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Mais 37 famílias de pequenos agricultores vivem na localidade. A casa é feita de madeira, coberta com telhas de amianto, pintada de azul desmaiado. A entrada principal é pela sala. O assoalho esburacado fica a meio metro do chão. No forro de tábuas soltas, a fiação elétrica está exposta. São apenas duas peças grandes subdivididas em mais duas: sala e cozinha, quarto e outro quarto. Cortinas de pano separam o dormitório. Pais e filhos menores dormem em um lado. Os maiores em outro. Dois, três, quatro na mesma cama. Até os adolescentes dividem o colchão, um para cada lado. Em uma área ao lado da casa de madeira, Dirceu trabalha para erguer uma nova morada, em tijolos. Os móveis estão desgastados, com prateleiras soltas e portas emperradas. Constantemente são trocados de lugar. Amanhecem e dormem em cantos diferentes. Na cozinha, o fogão principal é a lenha. O que funciona a gás foi presente de uma filha casada, ganhado de outra pessoa, e chegou com as bocas estragadas. Só o forno funcionava. Geladeira não existe. Um freezer horizontal serve para guardar a carne de porco criado e abatido em casa. Telefone não tem, assim como sinal de celular. A TV em cores de 20 polegadas pega por parabólica. Mas só é ligada à noite. Pelo rádio, brada a voz do pastor evangélico. No canto da cozinha da casa há uma mesa de madeira. Por entre os pés retorcidos andam pintos. Mas não serve para as refeições. Adultos e crianças comem com o prato na mão. Pais e filhos se espalham pelas peças. Ocupam banco de madeira, cadeiras sem encosto, sofás rasgados. Crianças menores se acocam no assoalho. Repartem vasilhas, talheres, copos. Filhos são ensinados a não deixar comida no prato. Em situação de extrema pobreza, ouvem dos pais que um pedaço de carne é luxo. A saúde da família segue a maioria que vive em situação de miséria. Iracema não conseguiu romper os medos da infância e admite que foge do médico. Dirceu parece mais atento. Toma medicação para a epilepsia e pressão alta. As crianças, diz a enfermeira Joseane Ruth Matos Dias, da equipe de Estratégia de Saúde da Família (ESF) que acompanha os Canofre, sofrem com verminoses. Sentem o reflexo da moradia precária. O banheiro funciona por um sistema rudimentar. Um buraco na terra recebe os dejetos que saem de um apertado sanitário. De tão pequeno, o vaso lembra o de um jardim de infância. Há um único chuveiro elétrico e os banhos são divididos por idades. Os meninos maiores entram juntos. As meninas formam outro grupo. Tudo rápido: molham o corpo, ensaboam-se e se secam. Enquanto a água molha a cabeça de um, outro passa sabonete no corpo e o terceiro vai se enrolando na toalha. Juntos somam o tempo médio que um só brasileiro leva para tomar banho: 15 minutos.
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´ O atraso no pagamento do benefício social leva Iracema a enfrentar uma saga burocrática na cidade
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racema se diz uma mulher do mato. Gosta de ficar em casa, cuidando dos filhos. Só vai à cidade em situação de extrema necessidade. Como na véspera do feriado de 1o de maio de 2013. Iniciava-se o quinto mês do ano sem que os benefícios do Programa Bolsa Família de cinco filhos fossem depositados. Na casa viviam 13 pessoas, três adultos e 10 crianças e adolescentes. A renda da família era incerta. Dependia da lavoura, com a produção de mandioca e verduras. A última venda tinha rendido R$ 700. Dinheiro para três meses. Entre 2011 e 2012 uma estiagem maltratou a agricultura em Santa Catarina. Sem alimento para as três vacas, a produção de leite caiu e a subsistência ficou comprometida. A falta de chuva secou açudes e os peixes desapareceram. Dirceu não conseguia trocar mercadorias no comércio local. Matou um porco, mas as crianças pediam arroz e feijão. Em um cenário de aflição, o Bolsa Família era necessário para alimentar as crianças. Titular do cartão, Iracema convenceu-se de que somente ela poderia minimizar a situação. Junto com o marido e o caçula, foi para a cidade. No prédio do Bolsa Família, outras mães e filhos esperavam. Meia hora depois, Iracema deixava o lugar desapontada. O sistema estava fora do ar e não poderia fazer a leitura do cartão. Foi orientada a ir na lotérica. Mais fila. Aparentava nervosismo. Prestava atenção aos movimentos das
pessoas sendo atendidas. Não saberia o que fazer quando chegasse sua vez. Em uma das mãos, o cartão. Em outra, um pedaço de papel dobrado. Chegou a hora. Iracema teria que digitar a senha, mas informou à atendente que não sabia como fazer. Pelo buraco do vidro entregou-lhe um papel com os números. A funcionária explicou que não poderia fazer isso por ela: – Mas eu não sei escrever os números – respondeu Iracema. Atrás, uma mulher se dispôs a ajudá-la. Devolveu o papel assim que finalizou a operação. O sistema informou que o cartão era inválido. Iracema recebeu nova orientação: ir à agência da Caixa, mais um pouco adiante. No caminho, encontrou-se com o marido, que a esperava. Entraram na agência, mas a leitura confirmou o erro. Uma funcionária disse que deviam voltar ao prédio do Bolsa Família para reclamar: lá foram orientados a esperar mais 10 dias. Iracema parecia se sentir culpada pelas idas e vindas. – Gente xucra como eu se sente mal nesse vaivém. Faço pelas crianças. Iracema experimentava que a pobreza não se faz apenas com privação de dinheiro e recursos materiais, mas também de capacidades. A vivência de carências rudes impede os pobres de desenvolverem suas funções humanas, observa o professor de filosofia da UFSC Alessandro Pinzani. Foi o que Iracema vivenciou ao voltar para a casa com a bolsa vazia. Dois meses depois, o benefício foi pago.
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O frio mostra a face mais dura da misÊria. As baixas temperaturas machucam as crianças no caminho da escola e dificultam o trabalho no campo. O fogão a lenha ameniza os efeitos do clima
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´ Em meio ao desafio de enfrentar as baixas temperaturas, os Canofre lidam com um episódio causado pela cultura de dominação masculina LUIZ RICARDO MAGUERROSKI GREIN, ARQUIVO PESSOAL
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inverno de 2013 chega rigoroso e expõe as agruras de um frio inclemente em que os termômetros descem a zero grau. Cênico, revela as belezas da neve em mais de cem cidades de Santa Catarina. Como em Timbó Grande. Para gente extremamente pobre como os Canofre, o frio selvagem despe um lado dolorido da miséria. Com mais de 50 invernos nas costas, Iracema e Dirceu afirmam ser os ossos os que mais doem, e que isso vem de tempo. Não tem como esquentar. Ela enfrenta o inverno com chinelos de dedo. Em qualquer estação do ano, é o calçado disponível. A agricultora cresceu com os dedos encardidos de terra, machucados por pedras e desprotegidos dos bichos-de-pé. Dirceu dispensa o chuveiro e toma banho com a água da mangueira. Diz que sente frio só no começo. Talvez seja isso que instigue os filhos a experimentar os fenômenos do clima, como a neve que também embranqueceu o lugar onde moram. Foi assim na tarde de domingo, 21 de julho, a primeira vez que isso acontecia aos olhos deles, acostumados com a geada. Entre os extremamente pobres, o inverno mostra a cara mais feia. Tanto quanto à miséria, resistir ao ambiente gélido é uma façanha. Para os Canofre,
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revelaram-se outras dualidades. Às vezes, a aparente harmonia mostra sinais de fragilidade quando as rotinas saem do controle. É o que ocorre quando um porco foge do curral, come parte da plantação de mandioca e o filho adolescente responsável por cuidar dos bichos acaba como culpado. Cai a noite e a ausência de soluções para os problemas – animal e menino desaparecidos – agravam a discussão. Começa ali uma desavença entre os pais: a mãe quer proteger o menino, o pai quer castigá-lo. O desentendimento termina em agressão que demanda interferência policial em um caso de violência doméstica. Dirceu é levado para a delegacia e fica afastado de casa por alguns dias. Retorna depois de Iracema ter retirado a queixa, convencida pelos filhos mais velhos. No Estado não há números sobre famílias em área rural envolvidas em situação de violência, informa a responsável pela coordenação de mulheres na Federação dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santa Catarina (Fetaesc), Agnes Weiwanko. A referência é uma pesquisa da Confederação Nacional da Agricultura em parceria com o Instituto de Pesquisas Aplicadas (Ipea). Nas entrevistas realizadas na Marcha das Margaridas, manifestação das agricultoras em 2011, 55% das ouvidas con-
firmaram algum tipo de violência. A análise apontou como causa uma cultura de dominação masculina. O universo do campo sempre foi visto como um espaço onde o homem é quem decidia o que plantar e qual a atividade mais rentável para a família. – Muitos homens do campo têm dificuldade de entender que não pode mais ser só do jeito deles e que suas companheiras têm direito de se manifestar sobre os assuntos da família e da propriedade – afirma Agnes. Psicóloga e doutora em Antropologia Social pela UFSC, Mirella Alves de Brito observa que num primeiro momento pode parecer contraditório e inadequado que a mãe retire a queixa de uma violência doméstica, mas é preciso compreender o fato à luz dos estudos de gênero e das práticas sociais cotidianas: – A denúncia e seu desdobramento, uma possível prisão, não parecem corresponder às demandas mais imediatas de vítimas e agressores, o que também coloca as relações em uma dinâmica ambivalente. Para a antropóloga, a situação denuncia descompasso entre a lei, o vivido e as políticas de proteção e garantia de direitos. Não que o Estado não responde às necessidades dos cidadãos, mas na ponta estão pessoas com suas vivências, sugere Mirella.
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´ Ao encerrar o dia de trabalho na lavoura, a família se reúne em torno do fogão a lenha para esquentar o corpo e ouvir relatos da infância dos pais. O hábito torna o ambiente pouco aconchegante mais acolhedor
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frio que atinge também envolve. No caso dos Canofre, o fogão a lenha é o símbolo. Com o calor das chamas, eles enfrentam as massas polares. Como a ocorrida em julho de 2013, quando a meteorologia apontou o centro da América do Sul como o lugar com a menor temperatura do planeta Terra, excluindo-se os polos. É como um ritual. Antes do cair da noite, eles recolhem troncos de eucalipto e de bracatinga. Usando um carrinho de mão, amontoam os pedaços de pau no canto da cozinha. A pilha fica embaixo do varal onde penduram couro, rabo e pé de porco para serem defumados. Pais e filhos ocupam banco de madeira e cadeiras. Apertam-se ao redor do fogão. A chapa aquecida esquenta mais do que a chaleira e o bule: sobre o ferro, os dedos enrijecidos voltam a ganhar movimento. Em tempos de safra, as crianças comem pinhão chamuscado. Dirceu e Iracema revezam o chimarrão. No jantar, um alimento é bastante presente: mandioca cozida.
As conversas são sobre o dia a dia, o trabalho na roça e planos, como o de construir uma estufa para proteger as verduras. Esse convívio é percebido pela assistente social Karen Michelle dos Santos. Há 15 anos no município, ela acompanha as carências dos moradores, especialmente dos beneficiados por programas sociais. Dos cerca de 7,5 mil habitantes de Timbó Grande, 37% da população dependem desses recursos. A renda familiar média no município gira de meio a um salário mínimo. Quando conheceu a família de Iracema e Dirceu, ela se surpreendeu com o grande número de filhos e de idades tão distantes: – A gente observa que os filhos foram se criando em um ambiente com dificuldade e de muito trabalho, porém acolhedor. Ao modo deles, os pais conseguiram passar uma proximidade familiar não tão comum nos dias de hoje. Iracema e Dirceu representam uma geração de casais em que era mais comum ter um grande número de filhos. Realidade encontrada em todas as pesquisas sobre o comportamento reprodutivo no Brasil. Essa fecundidade mais elevada está associada à população mais pobre, menos escolarizada,
com menor nível de consumo e piores condições habitacionais, observam os pesquisadores José Eustáquio Diniz Alves e Suzana Cavenaghi, no artigo O Programa Bolsa Família e as taxas de fecundidade no Brasil publicado no livro Programa Bolsa Família – Uma década de inclusão e cidadania, de 2013. Em grande parte, essa maior fecundidade se deve à falta de acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva. Mas também acontece pela ausência de perspectivas profissionais e educacionais. No caso de Iracema e Dirceu, houve também um componente de ordem religiosa. Preocupado com as dificuldades do casal de manter os filhos, um patrão se ofereceu para pagar uma vasectomia ou laqueadura para eles. Dirceu estava disposto: mas um pastor da igreja que o casal frequentava os convenceu de que seria contra a vontade de Deus. A taxa da fecundidade começou a ser revertida a partir da urbanização do país, momento em que as pessoas tiveram maior acesso às políticas públicas de educação e de saúde. Os filhos mais velhos de Iracema e Dirceu são retrato dessa mudança: cada um tem no máximo dois filhos.
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inverno
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Os filhos de Iracema e Dirceu se dividem entre a escola e a lavoura, exemplo do Estado que é o 4o do país com mais trabalho infantil
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frio racha os lábios das crianças de Iracema e Dirceu. Em vez de manteiga de cacau, banha de porco. É nisso que se lambuzam para aliviar a dor provocada pelo ressecamento da pele. Os que vão de manhã cedo para a escola, como os adolescentes, são os mais castigados. Não apenas pelo sangue que sai pelos rasgos da boca. Mas pela vergonha de se expor aos olhos dos colegas. Essa não é a única ferida que os deixa acanhados. Constrangimentos chegam por outros motivos. Roupas surradas, calçados gastos, mochilas descosturadas. Também pelas unhas sujas de terra, consequência do trabalho na lavoura. São os próprios adolescentes que sentem-se incomodados com a situação de extrema pobreza. Mas os meninos dão o jeito deles. Nos dias de chuva, um deles envolve em sacolas de plástico a bolsa de pano onde carrega o material. Um outro, mais velho, havia ameaçado abandonar os estudos. Não queria mais ouvir a professora reclamar dos seus cadernos e livros molhados. Mas se convenceu com a explicação dos pais e
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bancou para os amigos: a culpa não era deles. Mas da falta de um abrigo onde pudessem esperar o ônibus escolar nos dias de chuva. Com as atividades na lavoura, com o pai, e os afazeres domésticos, com a mãe, os filhos revelam um retrato da realidade no meio rural. A professora Melânia Matos Vieira responde pela Secretaria de Educação de Timbó Grande. Para ela, a visão sobre o trabalho infantil na agricultura é um dos principais desafios no município. A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente o tema se tornou um dos maiores conflitos no campo. Santa Catarina ocupa a quarta posição entre os Estados do país com mais trabalho infantil. É difícil convencer adultos nascidos e criados ajudando os pais de que se trata de uma atividade proibida. Além do esforço físico, o trabalho na lavoura rouba tempo para estudos. A situação se agrava porque os pais não conseguem acompanhar o que é trazido da escola. Iracema e Dirceu ressaltam a necessidade de que os filhos estudem para ter uma vida melhor. Mas enxergam no trabalho uma forma de aprendizado, assim como sucedeu com eles.
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pergunta vem de Dirceu Canofre de Campos e se refere à presidente da República. Parece consenso que todo brasileiro adulto saiba o lugar onde mora a chefe da nação. A dúvida do agricultor mostra outra realidade. O quanto os extremamente pobres ficam alheios a informações acessíveis para a imensa maioria da população. Limita, inclusive, a compreensão da lei que restringe o trabalho de crianças e adolescentes, mesmo que na roça como uma ajuda à família. Iracema e Dirceu também não desenvolveram o hábito de acompanhar noticiários. Com tantas carências ao longo da vida, aparelhos de rádio e de TV sempre foram vistos como artigos de luxo. A rotina de trabalho no meio rural funciona diferente do urbano. Cansado das atividades, o agricultor prefere se deitar cedo a ver televisão. – A gente dorme com as galinhas – brinca ele. Isso empurra os Canofre para uma espécie de mundo à parte. Como ocorreu em 2014. No ano em que as atenções dos brasileiros se voltaram para a Copa do Mundo e as eleições, os Canofre não se envolveram com os eventos. A família não se reuniu para ver os jogos. Nem se sentou à frente da TV para acompanhar a campanha política. Sequer ligou o rádio. Com pouco acesso à televisão, não assistiram à campanha eleitoral. O máximo que chegou na casa foram santinhos de candidatos levados da cidade por Dirceu. Apesar disso, não deixam de votar. Analfabeta, Iracema aprendeu a pressionar as teclas da urna eletrônica. Como ela, outros 86,2 mil eleitores não sabem ler e escrever em Santa Catarina, de acordo com o Tribunal Regional Eleitoral no Estado. A questão da baixa escolaridade dele e do analfabetismo dela também pesam. Como eles, 66% dos chefes das famílias em situação de pobreza crônica no país não têm ensino fundamental completo. Na população geral, esse índice é de 47,3%. Um indicador preparado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), com base em metodologia do Banco Mundial, usado para medir a pobreza multidimensional, mostra a dificuldade de acesso real dos mais pobres a algumas melhorias nas condições de vida. Inclusive de informação. Isso faz com que desconheçam até a estrutura geopolítica que caracteriza a capital federal.
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A reportagem deixa o outono do Sul do Brasil e desembarca na estação das flores em Esselborn, na Alemanha, em busca das raízes da família Canofre
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o fazer o questionamento, Dirceu Canofre de Campos ignora a proximidade com as correntes do oceano Atlântico. Um desconhecimento improvável para quem vive em um país com 7,4 mil quilômetros de litoral. Se deixasse Timbó Grande e seguisse em linha reta para o litoral, chegaria 207 quilômetros depois à Baía da Babitonga, em São Francisco do Sul, o mais antigo município de Santa Catarina. Mas são profundas outras dúvidas do agricultor. Uma delas sobre os antepassados. O máximo que alcança é o nome de um avô, Fabiano Canofre de Campos. A filiação está escrita na carteira de identidade do pai falecido, que contava ser de origem alemã. Desconfia-se que descendente das levas que, a partir de 1824, vieram para o Brasil. Como fez Valentim Knopf, do qual pode ter origem esse Canofre de Timbó Grande. É o que sugere Telmo José Tomio, membro do Instituto de Genealogia de Santa Catarina. Com o tempo, a grafia do Knopf (que significa botão) deve ter sido aportuguesada para Canofre. A alteração, explica o genealogista, é um fato comum por causa da dificuldade de os escrivães entenderem as pronúncias. O pesquisador, que mora em Balneário Piçarras, encontrou o nome do lenhador Valentim Knopf, nascido por volta de 1798, em Wahllhein, Alzey-Worms, na Alemanha. A jornalista Fernanda Canofre dos Santos faz observação semelhante sobre o aportuguesamento do sobrenome. O avô dela teve oito irmãos na região de Victor Graeff (RS). O sobrenome original de Belarmino era Knopf, mas o avô e alguns dos irmãos foram registrados como Canofre. Dirceu se ressente da uma fotografia do avô. Até para o pai dele, a lembrança foi uma moldura vazia. Ouviram que Fabiano teria vivido na costa do rio Passo Fundo (RS). Lá teria abandonado a mulher, Rosa Pinheiro de Morais, com os filhos pequenos, e desaparecido. Fato é que Fabiano não deixou rastro. A algumas dúvidas até que Dirceu responde com suas próprias explicações: – Gente pobre, sem estudo e que vive jogada, deixa as coisas pelo caminho.
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A referência de um avô alemão é a única pista que Dirceu tem dos antepassados vindos da Europa
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Como e
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pergunta vem do alemão Rüdiger Reßler, 49 anos. Parente distante de Dirceu, ele aceitou o convite para escavar a história da família. No distrito de Esselborn, povoado de AlzeyWorms, na Alemanha, onde vive, recebeu a reportagem em maio de 2014. A moradia de Reßler fica a cerca de 500 metros das ruas centrais do lugarejo. A família é proprietária de 60 hectares de terra, onde cultiva uvas e faz 10,5 mil litros de vinho por hectare. O terreno é fértil e no inverno faz muito frio. É onde se encontra parte das raízes dos parentes de Dirceu na Alemanha. Rüdiger e os familiares foram em busca do próprio passado. Dois pedaços de granito preto dão as pistas. As inscrições Hier ruht in Gott! (Aqui descansa em Deus!) e Ruhe Sanft! (Descanse em paz) são de lápides retiradas de um cemitério. – Quando soube da existência de Valentim Knopf, remexi documentos, olhei nos livros da igreja e entendi que Bárbara, sua irmã, viria a ser minha parente – conta Rüdiger. Ao lado da mulher, Heide Katja, e acompanhado dos filhos adolescentes Jan-Peter e Jeanne Christin, ele explica que as pedras haviam sido retiradas da sepultura dos antepassados Friedriche e Katharina Zimmermann. São do filho e da nora de Bárbara Paul, filha de Bárbara Knopf, irmã de Valentim Knopf. Investigar as origens da família era um antigo desejo deles. Mas a falta de tempo adiava a intenção. Até que chegou a informação de que havia no Brasil pessoas que podiam ser do mesmo tronco. – Até então, a gente não esteve muito interessado em guardar a memória da família. As primeiras buscas não foram promissoras. Nos cemitérios mais antigos da cidade nenhuma referência aos Knopf. Em cartórios também não havia registros. Porém, o sobrenome aparece em lugares mais distantes. Mudanças constantes mostram que não se fixavam. Isso, acredita Rüdiger, deve-se ao fato de que desde a origem os Knopf não tinham posses. – Tinham terras, mas não o suficiente para todos os filhos. Deve ter sido isso que levou Valentim a migrar.
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ÂNGELA BASTOS
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Na Alemanha, Rüdiger Reßler ajuda a reconstruir a viagem de Valentim Knopf para o Brasil, imigrante do qual descenderia a família Canofre
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ANGELA BASTOS
vinda de Valentim Knopf para o Brasil foi consequência da política de imigração do governo. Ele, a mulher, Eva Claus, e filhos estavam entre os passageiros do navio Kranich. A embarcação partiu do porto de Hamburgo. Com eles vieram 40 famílias a bordo e destinadas à Colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. Uma viagem que mesclou alegria e dor. É o que descreveu na carta enviada à família e que por cem anos ficou guardada entre as coisas da irmã, Bárbara Knopf Zimmermann. A correspondência, escrita em 1 o de dezembro de 1827 aos seus pais e irmãos que ficaram em Wahllhein, chegou ao destino em 23 de fevereiro de 1829. O imigrante relata como foi a travessia que levou 78 dias. A carta original foi entregue para uma instituição que resgata a emigração na região da Renânia, na Alemanha. Além do valor histórico, o documento tem trechos carregados de emoção, como a narrativa da morte de dois filhos pequenos de Valentim. Os corpos foram jogados ao mar. Ao todo, na viagem de 300 pessoas, morreram cinco crianças e três adultos. Perto da casa onde mora Rüdiger, fica o lugar em que viveu Bárbara. Em um imóvel, a quase 300 metros, permanecem os caibros da antiga construção. Servem para sustentar os dois andares. Bárbara viveu entre 1801 e 1879 e foi casada com Johann Georg Adam Zimmermann (1780-1862).
Curiosos sobre os familiares brasileiros, alemães veem semelhança na vida no campo, mas não demonstram interesse em aproximação
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o computador sobre a mesa da sala da casa confortável em Esselborn, na Alemanha, Rüdiger recorre ao Google Maps para localizar Timbó Grande em Santa Catarina. Em seguida, a família se junta para conhecer a cidade brasileira onde moram os parentes distantes. Antes disso, apresentam papéis com nomes dos ascendentes e descendentes de Valentim Knopf. Mas além da carta recebida pela irmã do imigrante, Bárbara Zimmermann, carecem de informações para calcular o grau de parentesco que possuem com Dirceu. Imaginam que sejam primos em 10o grau. Diferente das distâncias que Rüdiger consegue precisar: – São 13,5 mil quilômetros separando nós e eles. Fotos de Timbó Grande se abrem na tela. O ambiente desfavorecido da casa em da família que vive em terras catarinenses constrange. Uma das que mais chamam a atenção é a que
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mostra Iracema e Dirceu com os filhos ao redor do fogão a lenha. E outra, onde o avô põe o pé de uma neta para esquentar na portinha ao lado do forno. Também a dos filhos adolescentes fazendo a lição. Por serem agricultores, eles observam com atenção a lavoura dos Canofre. Perguntam sobre o que plantam e como é a produção da família catarinense. Querem saber se vendem o que é colhido e quanto fica para alimento da família. Professora, a mulher de Rüdiger, Heide Katja, interroga se os filhos de Iracema e Dirceu estão indo bem na escola. Ela entende que completar os estudos é o meio que possuem para ter uma vida melhor. Também parece tocada pela imagem de Iracema. A figura da brasileira com chinelos de dedo em pleno inverno, com roupas velhas e cercada de filhos choca a alemã. Acostumados com frio e neve, surpreendem-se com as carências da família Canofre para enfrentar o inverno. Apesar disso, não demonstram desejo de aproximação.
O que o senhor sabe sobre Valentin Knopf? Rüdiger Reßler – Valentim Knopf foi um parente distante meu que emigrou para a América do Sul há cerca de 200 anos, em torno de 1824, e que ainda tem descendentes no Brasil. Como são esses laços com o passado? Reßler – Passa por Bárbara Zimmermann, a irmã de Valentim Knopf. Foi ela quem recebeu a carta dele e foi uma parente um pouco distante de minha mãe. Valentim Knopf morava aqui perto, a um quilômetro, em outra propriedade vizinha. Tinha irmãos e uma irmã, essa que casou com um homem da minha família. Como é a vida de vocês como agricultores na Alemanha? Reßler – Em nossa propriedade vivem meus pais, eu, minha mulher e nossos dois filhos. Meus pais têm quase 80 anos de idade e ainda ajudam na propriedade. Trabalhamos na agricultura e na vinicultura.
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O calor chega com boas-novas para a família Canofre. A renda aumentou, a casa ganhou eletrodomésticos e os filhos vão bem na escola. A esperança desenha o futuro
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S Dia de festa e reunião da família, o Natal chega mesmo sem Papai Noel ou presentes entre os Canofre uem vive na extrema pobreza não pode subornar o destino. Talvez isso tenha feito 25 de dezembro de 2013 um dia como qualquer outro na casa de Iracema e Dirceu. Era Natal na cultura do mundo ocidental. Mas na moradia de madeira frestada pelo tempo não havia símbolos da mais antiga festa cristã, atualmente transformada no maior evento de consumo da humanidade. Nada de Papai Noel, árvore enfeitada, bolinhas coloridas. No terreiro, sobreviventes à véspera, perus se alimentavam de grãos. A tradicional ceia de Natal não se faz um hábito. Pelo chão nenhum pedaço de papel para enrolar presentes. Mas era, sim, um dia de desembrulhar lembranças. – Como a gente ia ensinar sobre Papai Noel se ele nunca apareceu para nós – perguntava Iracema, sentada em uma cadeira com pé torto no meio da sala. Naquela manhã que se fazia quente, a diferença estava no número de pessoas que passaram a noite juntas. Oito a mais do que os nove que viviam na casa. Três filhas casadas, o marido de uma delas e quatro
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crianças dormiram em cima de pedaços de esponja. No improviso de colchões sem capas, cabeças de adultos e pés de crianças se emparelharam. Enquanto, no escuro, mãos tapeavam os mosquitos. Ainda era cedo quando o sol começou a esquentar o telhado de amianto. As crianças foram as primeiras a levantar. Diferentemente do que ocorre na imensa maioria das famílias, nenhuma procurou vestígios daquele velhinho de barbas brancas, que com seu trenó sai em volta do mundo a entregar brinquedos. A figura de Papai Noel não é cultuada por elas. Na véspera, cada um dos filhos mais velhos havia chegado com um pedaço de carne. No meio da manhã do dia 25 apareceram dois convidados. Um casal amigo, que dividiu o custo da sobremesa: um bolo. Sobre a mesa da casa nova, em construção, a cobertura branca adoçava o olhar das crianças. Talvez por isso, pouca atenção deram para o churrasco de costela de boi magro assado por Dirceu. Quem sabe essa também seria a causa do aipim cozido e arroz branco terem sobrado na panela de alça quebrada. Entre as garrafas de refrigerantes, uma com sabor de uva destampou a memória do agricultor:
– Quando eu era pequeno, lá de vez em quando meu pai comprava um refrigerante para nós. A gente se sentia querido, bem tratado, estimado. A infância pobre fez com que Iracema e Dirceu não se acostumassem a comemorar. Para eles, desde pequenos, o Natal era como a escola: coisa de rico. Ninguém ganhou presente. Entre os Canofre, não é exatamente a data que faz a família se reunir – mas a folga do trabalho dos filhos adultos. Por isso estavam lá quatro casados e oito netos. Desta vez, três dos mais velhos não puderam ir a Timbó Grande. Izaura, que mora em Fraiburgo, aproveitou as férias coletivas do marido para visitar os sogros no Paraná. Em Videira ficaram Maria de Lourdes e João Maria. Ela estava com bebê pequeno. João não conseguiu dispensa no trabalho. O Natal da família revelou mais do que a suposta incapacidade dos pobres em subornar o destino. Os Canofre estabelecem um outro ritual para o dia. Para eles, o feriado possibilita um encontro para conversas sobre trabalho na lavoura, filhos que crescem, dificuldades financeiras. Apesar de tudo, um dia de descanso e sorrisos, brindado com bolo e refrigerante.
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Iracema não esquece um só dia o filho que morreu. Com a perda, o casal acumula luto e dívidas
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irceu e Iracema viram nascer e crescer 14 filhos. Mas não esquecem o que perderam. Do menino que por quase nove meses fez espichar a barriga da mãe, até que o ventre fosse golpeado pelo chifre de uma vaca. Dirceu usa uma expressão bíblica com o significado de bem-aventurado: – Abençoadinho. Com voz pausada e olhar oco, discorre sobre aquele dia quente do fim de 2012 quando precisou pedir emprestados R$ 400 para o carro da funerária de Santa Cecília, a 70 quilômetros de casa, trasladar o caixão branco comparado a uma "caixa de sapatos". Seria tão levinho, diz, que nem precisaria pagar: até no banco do carro de um amigo caberia. Mas lei é lei e teve que cumprir. O pai e poucos outros estavam na hora em que o túmulo foi coberto por cimento. Os irmãos ficaram em casa. A mãe no hospital sendo alimentada por bolsas de sangue. Ainda hoje Iracema permanece inconsolável. – Não esqueço um dia do filho que perdi. Além de não abrandar a dor, o tempo parece ter-lhe trazido mais dúvidas sobre o que realmente poderia ser a causa da morte. Ela recorda: – Eu trabalhei muito no sol. Quase cozinhei o corpo. Assim como nas outras 14 gestações, não fez acompanhamento pré-natal. E contava com o risco de uma gravidez aos 48 anos. Outra possibilidade lhe vem à cabeça: – Eu levantei um saco de cimento pesado e pode ter sido isso. Em seguida, comecei a sangrar. A inconformidade de Iracema é visível. Ela fala em falta de zelo pela vida e do excesso de trabalho. A racionalidade de Dirceu também. Ele acredita que não houve culpados. Depois do choro, Iracema fica silenciosa. O que não deixa de ser um grito. Dirceu talvez quisesse gritar. Mas também emudece. O cimento cobriu o túmulo do filho, mas a sepultura ainda está aberta para eles. A causa da morte do menino não é a única divergência. Há uma discordância religiosa também. Dirceu mantém razoável conhecimento bíblico, dos tempos em que com a mulher frequentava cultos evangélicos. Mas não quer voltar. Hoje, acredita que cada pessoa deva seguir a própria fé. O impasse coloca o casal em conflito. Iracema quer que ele se converta. Entende ser de trevas o mundo para quem não obedece a Deus. Por isso, os castigos e as desgraças.
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Em um período de dois anos e meio, os Canofre saem da miséria e comemoram a chegada do primeiro filho ao ensino médio
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verão de 2015 chega com boas-noquilos, coberta por um lençol na sala da casa nova vas para a família Canofre. É tempara não pegar pó. po de colheita. A ideia de proteger Sem nunca ter ido ao colégio, ela tem bom senso as verduras em estufa, de plástico de administração: e pínus, deu certo. As plantas es– Vou pagar em 10 prestações com o salário das tão viçosas mesmo com o calor crianças. abrasivo da estação. Existem ouO salário a que se refere é o benefício do Bolsa Fatros motivos para contentamentos. mília, que ajuda a pagar outro eletrodoméstico: As crianças passaram de ano. Os pais estão orgu– Eu faço pão em casa para comer, mas volta e lhosos pela conquista do filho Moisés, 17 anos, que meia o forno estragava. Agora tenho esse forninho chegou ao ensino médio. Algo inédito na família elétrico para fornada ainda maior. em que a mãe nunca foi à escola e o pai só estudou Iracema explica que pensou bem antes de assumir até o segundo ano primário. os compromissos no comércio loNas férias escolares, o racal. As crianças crescem rápido e Rendimentos mensais paz conseguiu emprego em precisarão de roupas e sapatos noda Familia Canofre uma fábrica para ajudar a vos, mas precaveu todos para ajufamília. Animou-se com os dar a manter o carnê em dia: resultados e, mesmo a contra– Avisei a eles que vão ter que por pessoa gosto dos pais, fez a primeira ter cuidado com as coisas, pois o DOIS ADULTOS E 7 CRIANÇAS compra para si: um Corcel II tênis de um vai passar para o pé ano 1980. Agora se prepara outro. média do Salário média da venda doDirceu para tirar a carteira de habiestá satisfeito com o de Moisés da produção litação. Mais convencida de andamento da obra da casa de de Dirceu que o carro poderá ser útil tijolos, iniciada em 2012. Apesar R$ 700 em uma urgência, Iracema de inacabada, os meninos adoR$ 500 só não quer que as 10 prestalescentes mudaram as camas ções de R$ 500 atrasem. Para para o novo espaço e já dormem Total isso, houve um consenso: Moidentro dela. Iracema, que se sés paga a parcela, fica com Programa constrangia pela falta de denR$ 100 para si e entrega os outes, agora pode sorrir sem coBolsa tros R$ 100 para os pais juntabrir a boca com as mãos. Foram Família rem no bolo da família. três modelos de dentaduras até PROGRAMA R$ 217 A melhoria da renda dos achar um que não a machucasse. SANTA Renda que Canofre se dá também pela Embora tenha doído no bolso: RENDA Iracema recebe para inclusão no Programa Nacioo que a protética inicialmente nal de Alimentação Escolar calculou em R$ 300 acabou em R$ 90 cuidar dos netos (Pnae), que prevê a compra R$ 450. Uma das filhas pagou a R$ 200 de produtos da agricultura faprimeira prestação, de R$ 150. miliar para a merenda escolar Os R$ 300 restantes foram pardo município. Apesar de o pacelados com dinheiro que recebe gamento não ser todos os meses, ajuda. Em abril de para cuidar de dois netos enquanto os pais, o filho 2014, Dirceu vendeu R$ 1.282. A nota deste último Sebastião e a nora Luciana trabalham fora. abril registra R$ 930,70. José Dirceu, 15 anos, o filho imediato depois de – Rico ninguém fica, mas dá para chegar a uma Moisés, também adquiriu um bem de consumo: média de R$ 500 por mês, melhor do que antes – um celular. Porém, com uma moeda diferente: diz o agricultor. um cachorro vira-lata. A troca do animal foi feiOs benefícios do Programa Bolsa Família contita com um cunhado. nuam tendo relevância. Em abril, Iracema recebeu Como Perdiz Grande não recebe sinal da telefonia R$ 217 pelos cinco filhos, além de mais R$ 90 do promóvel, o adolescente usa o aparelho como rádio pagrama do governo estadual Santa Renda. ra escutar músicas. Na escola, a novidade gerou con– Olha o que comprei para a gente – diz Iraceflito. O aparelho foi recolhido pela direção e só seria ma apontando para a máquina de lavar roupas, 12 devolvido para os pais.
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renda dos Canofre cresceu nos últimos tempos. Um avanço de 143% comparando-se janeiro de 2013, quando a reportagem visitou a família pela primeira vez, e maio de 2015. Agora, os programas como o Bolsa Família, do governo federal, e o Santa Renda, do Estado, somam-se aos esforços do trabalho. A renda per capita passou de R$ 54 para R$ 189,66. Uma conquista individual a ser destacada em uma realidade que ainda aprisiona outros 126 mil catarinenses. De 2013 a 2015, o percentual da população nessa faixa cresceu de 1,6% para 1,8% em Santa Catarina. Conforme a Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho e Habitação, isso ocorre devido à busca ativa – um procedimento de localização de pessoas que se encontravam fora de qualquer estatística oficial de renda. A expectativa de erradicar a pobreza
extrema do Estado até 2014 não foi cumprida. Apesar de a família Canofre ter deixado financeiramente a miséria, o aumento de renda isolado será insuficiente para provocar transformações mais definitivas. A vida deles está enraizada sobre abismos históricos. Iracema envelhece sob o isolamento de um analfabetismo absoluto. Em Dirceu, prevalece o desafio de compreender o cotidiano de uma família que vive em uma lógica diferente da que lhe foi ensinada. Apesar de todas as ausências, o casal permitiu que os filhos estudassem. Isso se tornou algo definitivo para uma mudança na vida deles. Os 14 filhos já estão fora da condição de extrema pobreza. Ainda com grau de escolaridade baixo, os mais velhos têm emprego e renda regular. Os mais jovens, na escola, trilham um caminho de afastamento da condição de Iracema e Dirceu. – Com o nível educacional muito baixo dos pais,
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qualquer escola já dá uma vantagem aos filhos. Mas isso não garante a mobilidade social – diz Sonia Rocha, economista do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), uma das principais estudiosas do tema. Para a economista, é a educação de excelência que será a ponte desse processo. Ainda persistem diferenças de qualidade do ensino que reduzem o potencial de mobilidade social e queda da desigualdade de renda. Enquanto isso, sentado no banco de madeira, o casal acompanha as mudanças vividas pelos filhos. Uma estação vai (re)inventando a outra. Com Valentins, com Fabianos, com Rodolfos e Dirceus. Com Auroras, com Iracemas, com Amélias e Vitórias. Nascendo e morrendo. Morrendo e nascendo. Como responde Dirceu, sempre que reencontra algum velho conhecido para quem ele teria morrido: – Morri e nasci dez vezes.
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