ÍNDICE
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Perspectivas do novo governo Guilherme Afif Domingos
Riscos e oportunidades do segundo mandato Amaury de Souza
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Abê
Christian Knepper
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A evolução do sindicalismo Oliveiros S. Ferreira
34 38 18
Corbis
Folha Imagem
O que vem por aí Olavo de Carvalho
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Pequeno manual prático da decadência Paulo Roberto de Almeida
48 Antonio Scorza/AFP Photo
Na economia, ainda mais do mesmo Roberto Fendt
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Empreendedorismo, instituições e desenvolvimento Marcel Domingos Solimeo
Agliberto Lima/AE
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Custo da demissão e qualidade do emprego Hélio Zylberstajn
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O gás natural é o protagonista do momento Adriano Pires
Jonne Roriz/AE
Céllus
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ÍNDICE
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O futuro da tributação brasileira Gilberto Luiz do Amaral Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br
Luludi/LUZ
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Apectos econômicos do Brasil que saiu das urnas Michal Gartenkraut
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Presidente Guilherme Afif Domingos
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Um Brasil complicado Ives Gandra da Silva Martins
92 Roberto Alvarenga
Ensino para enfrentar as desigualdades Claudio de Moura Castro
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Diretor-Responsável João de Scantimburgo
Digesto Econômico: seis décadas de debate Domingos Zamagna
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ISSN 0101-4218
Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Domingos Zamagna e Carlos Ossamu
Celso Junior/AE
Reprodução
Editor de Fotografia Masao Goto Editor de Arte José Coelho
114
Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122
86
Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Laborgraf REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046
Alaor Filho/AE
www.dcomercio.com.br
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m sua nova fase caracterizada pelo tratamento abrangente dos temas, o Digesto Econômico dedica este número a debater as perspectivas do Brasil neste período de governo, abordando vários aspectos relevantes para o destinos do País. O jornalista Domingos Zamagna sintetiza a trajetória de mais de seis décadas do Digesto, situando-o no contexto político e econômico do período, destacando seu papel relevante no debate dos grandes temas nacionais e na defesa da livre iniciativa. Ao entrar em sua nova fase, iniciada com o número de setembro/outubro de 2006, baseado nos resultados do Seminário sobre Democracia, Liberdade e o Império da Lei, ao que se seguiu o número que apresentou alentados estudos e propostas sobre a política do agronegócio brasileiro, esta edição do Digesto trata das perspectivas do período governamental iniciado em janeiro deste ano, e a configuração de poder resultante da eleição de 2006, tanto no tocante ao Executivo, como no Legislativo, além dos aspectos partidários e regionais. As análises realizadas procuram vislumbrar as dificuldades que o País enfrentará nos próximos anos para promover as reformas e mudanças indispensáveis para colocar a economia brasileira em uma trajetória de desenvolvimento acelerado e sustentado. O professor Oliveiros Ferreira considera, em seu artigo, que as eleições de 2006 marcaram o fim de um período e o início de outro, caracterizado pela "crise final da classe política e das instituições, personificadas nos chefes dos três Poderes, independentes e harmônicos entre si". Após analisar a evolução histórica e as mudanças das fontes de poder, e do conjunto das relações entre governo e grupos sociais nas últimas décadas, Oliveiros conclui, de forma preocu-
Perspectivas do novo governo
Sergio Amaral/Agencia Pixel
Guilherme Afif Domingos Secretário do Emprego e Relações do Trabalho e Presidente da Associação Comercial de São Paulo
pante, que a desmoralização do Legislativo e o desgaste do Judiciário rompem o equilíbrio dos Poderes, o que poderá permitir que o chefe do Executivo possa mudar a Constituição para se manter no governo depois de 2010. Para Ives Gandra da Silva Martins, o Brasil é um País complicado que, segundo Roberto Campos, “com as mentalidades dominantes, não corre nenhum risco de melhorar”. O professor Ives analisa os problemas que o País enfrenta e não vê “com otimismo o segundo mandato do presidente Lula, que, politicamente, será pressionado pelos radicais e os medíocres. Será obrigado a partilhar o poder com outros políticos, com os quais não tem nenhuma sintonia”. Considera, ainda, que o presidente “não terá condições — até por filosofia própria — de mexer na máquina esclerosada, nem na Previdência “e terá pouca vontade de obstruir os violentadores da lei enquistados no MST”. O cientista político Amaury de Souza fez uma leitura dos números saídos das urnas nas eleições de 2006, com uma análise profunda sobre os riscos e oportunidades do governo Lula no segundo mandato. Na sua visão, a consolidação da coalizão PT-PMDB deverá assegurar ao presidente ampla base de apoio no Congresso. Se hoje é improvável uma mudança de regras que possibilite um terceiro mandato de Lula em 2010, Amaury de Souza acha "plausível a hipótese de que o presidente opte por consolidar um novo pólo de poder com base na aliança PT-PMDB, o qual poderá reconduzí-lo ao gabinete presidencial em 2014". Afinal, diz ele, "não lhe faltam elementos para tanto. O lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pode dar ao segundo mandato uma agenda positiva, baseada em promessas de retomada do crescimento com redução da pobre-
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za e desigualdades de renda, e a inexistência de um candidato natural no PT lhe dará larga margem de manobra para composições." Por outro lado, se as medidas do PAC se mostrarem ineficientes para destravar a economia e acelerar o seu medíocre crescimento, Amaury de Souza é da opinião de que "o segundo mandato correrá o risco de terminar mais cedo, transformando o presidente Lula em ‘pato manco’, isto é, um chefe do Executivo incapaz de manter as rédeas do governo e menos ainda de fazer o sucessor. A frustração de expectativas, que poderá traduzir-se em vertiginosa perda de popularidade, privará o presidente Lula da autoridade necessária para imprimir coerência e rumo à sua eclética base parlamentar". Frente a um Congreso desgastado por inúmeras denúncias de corrupção, Amaury lança luz a uma importante questão: o voto distrital, proposta defendida pela ACSP e por vários políticos e personalidades, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O voto majoritário em distritos permite relações mais próximas e densas entre os representantes e suas bases eleitorais. O "Pequeno Manual Prático da Decadência", de Paulo Roberto de Almeida, elenca os sinais que indicam o processo de decadência de um povo ou país. Menciona diversos exemplos históricos tidos como “ilustrativos ou emblemáticos” desse tipo de processo, destacando que “não há um elemento singular ou único que anuncie a decadência, mas um conjunto de comportamentos e de relações que indica forte deterioração da solidariedade social e uma crescente anomia em relação aos valores básicos da sociedade”. Embora Almeida não tire qualquer conclusão, parecem existir muitos dos sinais de decadência apontados por ele, na atual situação brasileira. Roberto Fendt considera que o Brasil que saiu das urnas nos reserva, na economia, “mais do mesmo”, significando que na gestão macroeconômica, ninguém, em sã consciência, imagina, que se possa mexer na “tríade virtuosa”: regime de taxa de câmbio flexível, manutenção de superávits primários que mantenham aproximadamente constante a relação dívida pública/PIB e o regime de metas de inflação. Em contrapartida, “se o mote do governo é do crescimento com inclusão”, a parte do crescimento foi pífia no primeiro governo e, salvo o imponderável, tem tudo para continuar pífia no segundo”. Fendt afirma ter resistência em aceitar “programas de assistência social como programas de inclusão social”, considerando que, pela sua natureza, podem, quando muito, ali-
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viar situações de pobreza extrema, em condições transitórias”. Para ele, “o que inclui essas parcelas da população na cidadania são: primeiro, o trabalho, que traz sustento e dignidade; segundo, o investimento em capital humano – saúde e educação – que aumenta a produtividade e o rendimento; terceiro, o sentimento de que são respeitados o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à capacidade de cada um escolher seu destino”. O economista conclui que, “se tudo correr bem, teremos mais quatro anos do mesmo no Brasil que saiu das urnas”. Essa previsão de Fendt ainda depende de que o cenário externo continue a ser favorável aos países emergentes, embora o Brasil não venha tirando todo proveito que poderia dessa situação. Com sua experiência de setor público e de analista da economia brasileira, Michal Gartenkraut aponta que o Brasil saiu divido das urnas em 2006, entre os que defendem a importância dos programas de transferência direta de renda e pregam sua continuidade, e os que, mesmo reconhecendo alguns méritos nessa política, discordam de seu caráter meramente assistencialista, considerando-o ineficiente para resolver o problema da pobreza. Ambos grupos, no entanto, expressam o mesmo anseio e perplexidade com a baixa taxa de crescimento do País, apesar de um cenário externo muito favorável. Gartenkraut aponta duas razões básicas para essa situação, destacando que elas decorrem da atuação de muitos governos: o baixo nível de investimentos, principalmente em infra-estrutura, e o crescimento monotônico do tamanho do setor público. Considerando não haver chance de que esse quadro mude no curto prazo, o economista acha mais provável que, se tudo der certo, o crescimento mais elevado somente será atingido ao final do atual período presidencial. Gilberto Luiz do Amaral detalha em seu artigo o sistema tributário brasileiro, considerado um dos mais complexos e vorazes do mundo, mas que traz poucos benefícios para o cidadão. No ano passado, os impostos somaram R$ 813 bilhões, o que significa que cada brasileiro trabalhou em média 145 somente para pagar impostos. Ele mostra a evolução do sistema desde o Império até os dias de hoje e faz algumas previsões. "A partir de 2011, os debates sobre uma reforma tributária ampla se ampliarão. Isto porque, até lá, o atual modelo tributário apresentará esgotamento quanto ao aumento da arrecadação de vários dos principais tributos. A implantação de um IVA – Imposto sobre Valor Agregado moderno será a espinha dorsal
do novo modelo tributário. Na fase antecedente, haverá aumento da CPMF, mas com a sua transformação em contribuição compensatória com outros tributos e redução da alíquota da COFINS. O IVA resultará da fusão do ICMS, COFINS, IPI e ISS, com partilha automática de sua arrecadação entre os entes federados". A possibilidade de falta de energia caso a economia cresça de forma mais acelerada, e as dificuldades no suprimento de gás natural são analisados por Adriano Pires, que aponta as distorções no tocante à política energética que, além dos problemas criados pelo contencioso com a Bolívia, ainda apresentam deficiências do marco regulatório e das agências reguladoras. Também a atuação da Petrobras no tocante ao gás é criticada por Pires, chamando a atenção que o virtual monopólio da empresa estatal no setor inibe o ingresso de novos investimentos. Adriano Pires defende a aprovação do projeto de lei do senador Rodolfo Tourinho para assegurar a atração de novas empresas nas várias etapas da produção e distribuição do gás, como forma de afastar definitivamente crises de oferta desse energético. Hélio Zylberstajn discute um das “questões mais controversas e complicadas do mundo do trabalho”, que é a da demissão de empregados, que, de um lado, afeta a segurança do trabalhador quanto a continuidade de sua renda, enquanto que para as empresas é importante a liberdade de demitir, mesmo com os custos decorrentes. Zylberstajn mostra que a rotatividade da mão-de-obra é grande no País, e que isso implica em elevados custos para tanto para os trabalhadores, como para as empresas. Para os trabalhadores, porque os custos das demissões poderiam ser incorporados à sua renda. As empresas, por sua vez, incorrem nos custos burocráticos das demissões, enquanto a rotatividade impede o treinamento do empregado e o conseqüente aumento da produtividade, o que prejudica também a economia do País. O economista propõe uma solução criativa que poderia beneficiar alguns setores, como um consórcio de empregadores de jovens, como uma forma de reduzir o custo das recisões. O papel das instituições para o desenvolvimento das nações é defendido por Marcel Solimeo, do Instituto de Economia Gastão Vidigal da ACSP, para quem a garantia do direito de propriedade e o respeito ao contrato são condições fundamentais para que o setor privado possa investir. Chama a atenção de que, além de regras claras e estáveis, é necessário que o cumprimento das normas seja assegurado pelo Judiciário, e
que haja consenso da sociedade em torno dos valores que fundamentam a economia de mercado. Para Solimeo, o “ambiente institucional” brasileiro não é favorável ao desenvolvimento, pois a propriedade é constantemente agredida, os contratos nem sempre são respeitados, são freqüentes as mudanças das regras, e a burocracia e a tributação sufocam a iniciativa empresarial. O economista aponta que os aspectos institucionais são negligenciados pelo atual governo, pelo que considera muito difícil que o Brasil possa crescer de forma mais acelerada nos próximos anos. A desigualdade no Brasil é analisada em suas raízes históricas e situação atual por Cláudio de Moura Castro, que coloca a educação, ao longo do tempo, como principal responsável pelas diferenças de oportunidades entre as diversas camadas da população. Aponta o "abismo da qualidade" da educação pública, que se contrapôs à expansão quantitativa do ensino, e o privilégio à universidade em detrimento dos cursos fundamentais como elementos que contribuíram para a manutenção das desigualdades que, segundo ele, é uma questão mais de pobreza do que racial. Analisa as políticas recentes na área da educação e defende práticas em favor dos “talentosos pobres”, relatando experiências bem-sucedidas nesse sentido. Para Moura Castro "combater a desigualdade significa melhorar as conquistas educacionais dos que estão na base" o que, além de ser uma questão de justiça social é, também, um “imperativo econômico”. Baseando-se em todas essas visões, pode-se concluir que dificilmente o Brasil irá caminhar para uma trajetória de crescimento acelerado nos próximos anos e, o que é pior, também é baixa a probabilidade de que sejam realizadas as reformas fundamentais de que o País necessita. Corre-se mais uma vez o risco de perder as oportunidades excepcionais que o cenário externo vem apresentando. Se houver, pelo menos, uma política efetiva e eficaz de melhora do ensino fundamental, que permita a camada mais pobre da população construir seu próprio destino, ao invés de continuar dependente de programas assistencialistas que perpetuam a miséria e a dependência, o Brasil poderá, no médio prazo, aspirar ser uma nação mais moderna e desenvolvida, com menor desigualdade social.
Guilherme Afif Domingos JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO
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Riscos e oportunidades José Patrício/AE
Valter Campanato/ABr
Fábio Pozzebom/ABr
Roosewelt Pinheiro/ABr
Marcelo Ximenez/Folha Imagem
Fábio Pozzebom/ABr
Terá fundamento a especulação de que o presidente Lula tem a intenção de se perpetuar no poder? Nas fotos, os governadores José Serra, Aécio Neves, Jacques Wagner e Sérgio Cabral, o deputado federal Ciro Gomes, a ex-prefeita Marta Suplicy e a ministra Dilma Rousseff.
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magine que hoje é 1º de janeiro de 2010 e pergunte-se quem estará tomando posse na Praça dos Três Poderes. Uma sugestão para organizar as idéias. De um lado, perfile os governadores José Serra, Aécio Neves, Jacques Wagner e Sérgio Cabral, o deputado federal Ciro Gomes, a ex-prefeita Marta Suplicy e a ministra Dilma Rousseff. E do outro? Ele mesmo: o presidente Luís Inácio Lula da Silva. Trata-se, é claro, de uma hipótese. E, com os dados hoje à mão, talvez seja a menos provável. A vitória de Arlindo Chinaglia (PT-SP) e de Renan Calheiros (PMDB-AL) para a presidência da Câmara e do Senado indica a probabilidade de consolidação da aliança PTPMDB, que deverá assegurar ao presidente Lula ampla base de apoio no Congresso e prover o núcleo de seu "governo de coalizão". Co-
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Wilson Dias/ABr
mo a tendência de polarização entre dois grandes blocos — PT-PMDB de um lado e PSDBPFL, de outro, cercados por constelações de partidos menores — não dá indícios de se dissolver, pode-se antecipar uma acirrada disputa pelo poder em 2010, que apenas com dificuldade acomodará pretensões continuístas. Conquanto remota, a hipótese do terceiro mandato, originalmente aventada por Leôncio Martins Rodrigues 1 , tem o mérito de lançar luz sobre os dilemas que o presidente Lula enfrentará no segundo governo e as surpresas que poderão daí advir. Perpetuar-se no poder poderá ser uma delas e o próprio presidente tem dado margem para que se alimente especulações sobre suas reais inclinações. O continuísmo, no entender do professor Rodrigues, alimentar-se-ia do sucesso do segundo mandato ("não é fácil
do segundo mandato
Quem estará recebendo a faixa presidencial na Praça dos Três Poderes em janeiro de 2010? Christian Knepper
Andrea Felizolla/LUZ
acreditar que, dispondo de uma aprovação, digamos, de 60% ou 65% no seu último ano, e tendo uma quantidade tão grande de subordinados na máquina petista e aliada, gente que não quer perder o conforto do poder, ele mande parar as campanhas em favor de sua permanência"). Mas o sucesso torna igualmente plausível a hipótese de que o presidente Lula opte por consolidar um novo pólo de poder com base na aliança PT-PMDB, o qual poderá reconduzí-lo ao gabinete presidencial em 2014. Não lhe faltam elementos para tanto. O lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) pode dar ao segundo mandato uma agenda positiva, baseada em promessas de retomada do crescimento com redução da pobreza e desigualdades de renda, e a inexistência de um candidato natural no PT lhe dará larga margem de manobra
para composições. Contabilize-se também, na coluna de haveres, a ambição de ser reconhecido como o maior estadista da história brasileira. Suponha-se, entretanto, que as medidas propostas se mostrem insuficientes para "destravar" a economia e acelerar o seu medíocre ritmo de crescimento. Neste caso, o segundo mandato correrá o risco de terminar mais cedo, transformando o presidente Lula em "pato manco", isto é, um chefe do Executivo incapaz de manter as rédeas do governo e menos ainda de fazer o sucessor. A frustração de expectativas, que poderá traduzir-se em vertiginosa perda de popularidade, privará o presidente Lula da autoridade necessária para imprimir coerência e rumo à sua eclética base parlamentar. Pode-se contra-argumentar que sua espetacular vitória nas urnas, a altíssima popularidade
Amaury de Souza Cientista político e sócio-diretor da MCM Consultores Associados
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que desfruta e o comando das duas casas do Congresso lhe assegurarão suficiente apoio parlamentar para superar qualquer óbice à governabilidade. Idêntica ilação poderia ter sido deduzida de sua também retumbante vitória em 2002. Deu-se o inverso. Um ano e meio antes das eleições de 2006, sua imensa coalizão parlamentar de dez partidos políticos ruiu quando veio à luz o "mensalão", um amplo esquema de pagamentos, com fundos de origem ilegal, para incentivar a troca de partidos visando arrebanhar maiorias no Congresso e assegurar que legendas fracas e indisciplinadas votassem a favor de projetos de interesse do governo. Para evitar o impeachment e assegurar sua sobrevivência política, o presidente Lula abandonou aliados e correligionários ao sol e ao sereno e passou a personificar o "povo", estabelecendo com a massa de eleitores vínculos baseados mais no conceito de identificação do que no de representação. Este terceiro cenário sugere que não apenas o êxito econômico, mas também o fracasso pode reativar o "lulismo" e as propensões plebiscitárias que existem em estado latente no sistema político. Longe de configurar um plácido interregno, pautado pela inação e mesmice, o panorama do segundo mandato promete ser pontuado por incertezas. São pelo menos três os dilemas cujo desfecho terá influência sobre o curso dos acontecimentos na próxima quadra. Sem refletir uma ordem de importância ou precedência, são eles (1) um processo de involução institucional e política, caracterizado pela crescente fragmentação das forças político-partidárias; (2) as perdas da classe média e os limites da política de reGráfico 1
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distribuição sem crescimento e (3) a necessidade de se colocar um limite aos abusos de poder do Executivo e ao descrédito do Congresso perante a opinião pública. INVOLUÇÃO INSTITUCIONAL E POLÍTICA A acepção corriqueira de governabilidade tem a desvantagem de fazer crer que o Brasil seria ingovernável, não fosse a formação de coalizões majoritárias no Congresso, complementada por adequada representação dos partidos aliados no ministério. O que essa acepção dissimula é a natureza intrinsicamente instável de um modelo político mais afeito a bloquear do que a tomar decisões. 2 O nosso peculiar arranjo constitucional sobrepõe um presidente eleito por maioria absoluta e dotado de vastos poderes legislativos a instituições políticas criadas, para dar poder de veto a minorias. No Congresso, a representação é fragmentada entre múltiplas legendas, impedindo a formação de maiorias estáveis, e o Judiciário não hesita em invocar o direito das minorias para barrar tentativas de simplificar e fortalecer o quadro partidário, a exemplo da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que derrubou a cláusula de barreira. O resultado é um complexo jogo estratégico, no qual o Executivo busca contornar o Legislativo e o Judiciário (pelo abuso das prerrogativas de editar medidas provisórias e de contingenciar o orçamento federal), ao passo que os outros dois poderes buscam refrear o Executivo, inflingindo-lhe derrotas pontuais
Antonio Cruz/ABr
ou, no limite, buscando deslegitimar o poder presidencial. Nem todos os presidentes desde 1988 optaram por formar grandes coalizões parlamentares. O presidente Fernando Collor alternou o uso indiscriminado de medidas provisórias com apelos ao "povo" para pressionar o Congresso de fora para dentro até que o fracasso da política econômica trouxe sua popularidade ao rés do chão. Outros presidentes, como Fernando Henrique, tiveram a seu favor maiorias parlamentares importantes, sustentadas por três a cinco partidos. O que distingue as coalizões de partidos que o presidente Lula articulou no Congresso, entretanto, é seu tamanho exagerado, difícil manejo político e alto custo fiscal. Entre 2002 e 2006, o número de partidos na base governista passou de dez para onze; o número de deputados aliados ao Planalto cresceu 26% (passando de 254 em 2003 para 321 agora) e o de senadores, 45% (de 31 para 45). Essas super-coalizões refletem uma tendência de crescente fragmentação partidária do Congresso (ver o gráfico 1). Computar o número de partidos é insuficiente para que se possa aferir o grau de fragmentação na Câmara, posto que a maior parte deles são legendas nanicas, sem expressão eleitoral ou parlamentar. O que conta é o que a literatura especializada chama de número efetivo de partidos, uma medida que pondera o número de legendas pelo número de cadeiras conquistadas. Quanto maior este número, maior a fragmentação partidária. É fácil entender porque o número de partidos efetivos passou de 2,8 para 8,7 entre 1986 e 1990. O número de cadeiras controladas pelos dois maiores partidos à época, o PMDB e o PFL, caiu de 77% para 37%. No governo Fernando Henrique, observou-se incipiente concentração do poder partidário (o número efetivo de partidos caiu de 8,1 para 7,1). Mas a proliferação de partidos após a eleição do presidente Lula reverteu a tendência (o índice voltou a subir, passando de 8,5 para 9, Sem um esforço deliberado para fortalecer o sistema de partidos, reduzindo o seu número e reforçando a disciplina, torna-se virtualmente impossível assegurar apoio parlamentar estável ao governo sob tais condições. Com 63% da Câmara e 55% do Senado, poder-se-ia concluir que o presidente Lula tem hoje suficiente apoio para aprovar sua agenda legislativa. Entretanto, embora majoritária, a coalizão governista nem sempre é coesa e seu comportamento tende a acompanhar as variações da popularidade presidencial. No primeiro mandato, a base lhe foi fiel enquanto o presidente manteve-se popular. Mas se desfez tão logo os escândalos de corrupção passaram a corroer-lhe o prestígio popular, paralisando o Congresso. Hoje, a popularidade do presidente Lula está em alta, mas há razões para se crer que a eventual frustração das expectativas de crescimento pode afetar o seu prestígio e mirrar sua coalizão parlamentar. OS GANHOS DOS POBRES E AS PERDAS DA CLASSE MÉDIA Quem se debruça sobre os resultados da eleição e reeleição de Lula depara-se com duas discrepâncias significativas. Em 2002, Lula venceu em todos os Estados, exceto Alagoas, e sua votação foi proporcionalmente mais alta nas áreas mais desenvolvidas. Em 2006, foi derrotado em onze Estados no primeiro
Após o mensalão, Lula abandonou aliados e correligionários ao sol e ao sereno e passou a personificar o povo.
turno e em sete no segundo (com destaque para as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste) e seu apoio foi proporcionalmente maior nos municípios mais pobres, majoritariamente concentrados no Norte e Nordeste e mais beneficiados pelo Bolsa Família. 3 Os gráficos 2 e 3 resumem os dados pertinentes. O que se constata é um maciço deslocamento da base eleitoral de Lula em direção aos grotões e à massa de eleitores mais pobres e menos escolarizados e, portanto, mais suscetíveis de serem influenciados por programas de transferência direta de renda, como o Bolsa Família e pelo aumento do salário mínimo e dos benefícios previdenciários e assistenciais. Encarnando a imagem de um patriarca que pune as "elites egoístas" e zela pelos interesses do "povo", o presidente Lula recompôs sua base de apoio, compensando as perdas da classe média do Sul e Sudeste pela adesão dos pobres do Norte e Nordeste. Ao arregimentar uma vasta clientela de excluídos, o "lulismo" gerou uma crise em todos os partidos, sobretudo no PT. 4 Embora eleito pela legenda, Lula mostra-se cada vez mais distante dela e das bases sociais que ela reivindica representar. Sua enorme popularidade obrigou também o PSDB e o PFL a reverem estratégias para, na pior das hipóteses, sustar a atual trajetória de declínio eleitoral. É menos claro, entretanto, porque a classe média se afastou de Lula em 2006 após ter cerrado fileira com os eleitores mais pobres para lhe dar uma avalanche de votos em 2002. 5 Em geral, a resposta tem a ver com o medíocre crescimento econômico do País. Para fins de comparação, o Brasil contabiliza desde 2000 uma média anual de crescimento de 2,7% do PIB contra 6,5% da Índia, 6,7% da Rússia e 9,4% da China. A falta de dinamismo da economia desvalorizou a educação como garantia de emprego e reduziu as chances de mobilidade social, gerando na classe média generalizada apreensão quanto ao futuro. De maneira mais específica, a classe média foi duramente afetada pelo processo de redistribuição sem crescimento que ocorreu entre 2001 e 2006. Como se o déficit público fosse a forma
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A popularidade de Lula frente aos eleitores está em alta, mas a frustração das expectativas de crescimento pode afetar o prestígio.
possível de fazer justiça social, o presidente Lula preferiu o caminho de intensificar uma política redistributiva baseada na forte expansão das transferências de renda e generosos reajustes do salário mínimo, com repercussão direta sobre os benefícios previdenciários e assistenciais. Acoplada à inflação baixa e crédito farto e acessível, essa política deu resultados surpreendentes. Apenas em 2004, observa Marcelo Neri, "a renda média do trabalho cresce 3,3% ao ano, mas a renda trabalhista dos pobres aumenta 16,2% somente neste ano, o que pode ser rotulado de crescimento chinês". 6 Transferir renda significa necessariamente tirar de um e dar a outro, via de regra pelo aumento da carga tributária. O ponto a salientar é que o sucesso do Bolsa Família, do aumento do salário mínimo e da maior oferta de empregos de baixa qualificação teve por contrapartida o empobrecimento da classe média. 7 De 2001 em diante, o poder aquisitivo da classe média desabou relativamente ao das classes mais pobres (ver o gráfico 4). Estas mudanças são fontes de insegurança e incerteza, com forte impacto sobre as percepções e o comportamento político da classe média. O crescimento insuficiente, o aumento do desemprego e a deterioração da qualidade de vida afastaram gradativamente a classe média do governo. Não é descabido imaginar que o ressentimento gerado pela perspectiva de descenso social tenha se somado à desilusão com os escândalos de corrupção e o despedaçamento da imagem ética do PT, sintetizada na admissão pelo presidente Lula de que "o PT apenas fez o que todos os partidos brasileiros sistematicamente têm feito".
Gráfico 4
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O tempo dirá se esse afastamento indica mudança mais profunda no ânimo político da classe média, evocando um distante parentesco com o "udenismo" dos anos 50 e 60, ou se não passa de fenômeno passageiro, que se desfará aos primeiros sinais de retomada mais vigorosa do crescimento. Em qualquer hipótese, o surgimento dessa clivagem forma o pano de fundo do segundo mandato, prenunciando um clima volátil de opinião pública, com potencial para fazer sentir sua influência sobre a popularidade presidencial. Sob este prisma, a questão consiste em saber se será possível mobilizar a expectativa de crescimento e transformá-la em capital político para a travessia do segundo mandato. Não são poucos nem triviais os indícios de que a meta de crescimento acelerado possa ser frustrada nos próximos anos. O que o governo se dispõe a fazer para "destravar" a economia e alcançar um crescimento de 5% ao ano é implementar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), um pacote de medidas positivas, porém tímidas. Estudo recente 8 sobre o México argumenta que suas taxas medíocres de crescimento derivam da combinação de "armadilhas de desigualdade" — estruturas que perpetuam a desigualdade econômica, social e política — com instituições demasiadamente fracas para impedir que grandes interesses empresariais e corporativistas continuem a usufruir rendas, mesmo que isso custe a perda de dinamismo da economia. Algo se fez para fortalecer as instituições brasileiras e o ambiente onde atuam políticos e partidos foi significativamente alterado pela Lei de Responsabilidade Fiscal, pela modernização administrativa e pela redução do tamanho do setor público via privatizações. A continuidade da política macroeconômica do governo anterior pelo governo Lula assegurou expressivo aumento do superávit primário, estabilizou a relação entre a dívida líquida do setor público e o PIB, trouxe a inflação para os níveis mais baixos da história recente e assegurou extraordinário aumento do comércio exterior. Mas a falta de investimentos anula a expectativa de crescimento sustentado nos próximos anos. O cerne do problema é o aumento dos gastos correntes do governo federal pari passu com a expansão da carga tributária, que já beira 38% do PIB. O crescimento desenfreado da despesa reduziu a quase nada o investimento público. Atualmente, ele representa apenas 0,9% do PIB, enquanto os gastos correntes atingem mais de 18% do PIB, consumindo 6% em despesas de custeio e transferindo a subsídios, subvenções e programas previdenciários e assistenciais outros 12,2%. Os gastos com aposentadorias e pensões são excessivamente elevados face às receitas e necessidades de investimento e vêm crescendo a taxas insustentáveis. Não obstante a isto, governo não se dispõe a empreender reformas previdenciária e trabalhista ou a estimular o investimento privado, fortalecendo as agências reguladoras e implementando um marco regulatório adequado. Já se vê, portanto, que as travas do crescimento têm origem política. A atual restrição financeira da União é fruto de um longo processo de conflito e acomodação entre interesses organizados e não será facilmente desfeita, sobretudo por um governo que considera não ter recebido mandato para fazê-lo. 9 Ao invés disso, o presidente Lula optou por perseguir a miragem do crescimento acelerado como a universal panacéia para reduzir desigualdades sociais sem subverter os arranjos que beneficiam interesses organizados.
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REFORMAS E ANTÍDOTOS Após quase uma centena de parlamentares terem sido objeto de denúncias de corrupção na última legislatura da Câmara, não surpreende o desgaste do Congresso perante a opinião pública. Um número ínfimo de eleitores acredita que os deputados e senadores representam e defendem os interesses da sociedade (3%). Preguiçosos (84%), desonestos (55%), insensíveis aos interesses da sociedade (52%) e mentirosos (49%) são alguns dos epítetos que ilustram a degradação da imagem do Congresso. 10 Não obstante a isto, o Congresso está longe de ser o único ou nem sequer o principal problema de governabilidade ou conduta ética. Disseminou-se no País o descrédito do Congresso, sobre quem recaiu o desgaste gerado pelos escândalos de corrupção. Preservou-se o Executivo, por outro lado, a despeito da participação decisiva de alguns de seus integrantes na montagem dos referidos esquemas. Bem mais danosa ao Congresso tem sido a assunção de competência legislativa pelo Executivo (e crescentemente pelo Judiciário) e a virtual perda do seu poder de decisão sobre os gastos públicos devido ao "contingenciamento" da execução orçamentária. Liberar o pagamento de emendas parlamentares tornou-se instrumento de barganha do Executivo para obter votos em decisões de seu interesse no Congresso. Adensar os vínculos de representação entre eleitores e parlamentares e revitalizar o Legislativo, mudando padrões institucionais de relacionamento com o Executivo e recompondo o equilíbrio entre os dois Poderes, devem ser as prioridades da reforma institucional neste quadriênio. 1. Reformar o sistema eleitoral Entre as limitações do modelo proporcional vigente merecem destaque (1) a ênfase exagerada na representação de minorias, relegando a um distante segundo plano a formação de maiorias necessárias para governar; (2) a proliferação de siglas que debilita a estrutura partidária e (3) a impossibilidade de formação de vínculos consistentes entre os eleitores e representantes eletivos quando a disputa eleitoral se dá entre centenas de candidatos, em circunscrições excessivamente amplas ou populosas. Quais são os resultados práticos da operação desse modelo? As eleições legislativas de 2006 fornecem farto material ilustrativo: 1. Apenas 32 deputados federais conseguiram superar individualmente o quociente eleitoral. Os demais foram eleitos pelas "sobras" do partido ou da coligação de partidos. 2. Partidos e coligações apresentam o maior número possível de candidatos, transformando correligionários em adversários. O número médio de candidatos a uma cadeira na Câmara Federal foi 9,8; nas Assembléias Estaduais, 11,6. 3. O sistema atual "esteriliza" um enorme volume de votos dados a candidatos que não são eleitos. Em 2006, mais de 30 milhões de votos terminaram nesta categoria. 4. As coligações dominam as eleições proporcionais. Em 2006, 81% dos deputados federais foram eleitos por coligações. Apenas 97 deputados foram eleitos por um único partido.
5. A distribuição de cadeiras não corresponde exatamente ao número de votos amealhado pelos partidos. O PT teve 14,9% dos votos válidos mas elegeu apenas 83 deputados (16,2% das cadeiras). O PMDB teve menos votos (14,5%) mas elegeu 89 deputados (17,3% das cadeiras). 6. Dois meses após as eleições legislativas, as pesquisas indicam que um terço dos eleitores não se lembra em quem votou para deputado federal ou estadual. Quatro anos mais tarde, a proporção sobe para 70%. O projeto da Comissão Especial de Reforma Política da Câmara de Deputados não é suficiente para superar as deficiências do nosso modelo proporcional. Em essência, propõe o financiamento público de campanhas, proíbe as coligações partidárias nas eleições legislativas e promove a eleição de parlamentares por lista fechada, isto é, os eleitores votam apenas na legenda e os votos são distribuídos conforme uma lista de candidatos previamente hierarquizada pela convenção partidária. Em 2006, apenas 9,6% dos votos válidos foram dados a legendas; os demais 90,4% foram dados a candidatos. Eliminar o voto personalizado pode distanciar ainda mais os eleitores do processo eleitoral.
O voto majoritário em distritos relativamente pequenos geograficamente delimitados (uma área contígua onde residam cerca de 250 mil eleitores), com a eleição de um único candidato por distrito, tem óbvias vantagens em comparação com o modelo proporcional. Eleições majoritárias em distritos uninominais aumentam a inteligibilidade da competição política; permitem relações mais próximas e densas entre os representantes e suas bases eleitorais e facultam aos eleitores cobrar dos representantes responsabilidade no encaminhamento de questões do interesse deles. 11 Deve-se também ressaltar que o voto distrital majoritário tende a exercer forte influência sobre a estrutura partidária, estimulando a concentração de forças políticas, as quais podem eventualmente evoluir para grandes coalizões de partidos ou até mesmo para o bipartidarismo. 2. Restaurar o equilíbrio de poder entre o Executivo e o Legislativo No Brasil, o presidente da República dispõe de vastos poderes legislativos, que lhe permitem controlar o que é votado e como votam os parlamentares em relação a projetos de seu in-
Com 63% da Câmara e 55% do Senado, Lula tem hoje suficiente apoio para aprovar sua agenda legislativa.
Rafael Neddermeyer/AE
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teresse. O veto total ou parcial, que só pode ser revogado pela maioria absoluta do Congresso, e o direito exclusivo da iniciar legislação relacionada ao orçamento são alguns desses poderes. Entretanto, o poder de editar medidas provisórias, com força de lei, é o principal instrumento de controle do presidente sobre a agenda do Congresso. Outro instrumento de controle sobre o Congresso é o contigenciamento de recursos e a discricionariedade na execução orçamentária. Desde 1988, prevalece a tese de que o orçamento é apenas autorizativo, desobrigando o Executivo de executar o total das despesas previstas sob o pretexto de que as estimativas de receitas tendem a ser sistematicamente infladas pelo Congresso. Assim, a inserção de emenda parlamentar ao orçamento não assegura o efetivo pagamento da despesa, facultando ao Executivo barganhar politicamente a liberação de recursos em troca de votos em matérias de seu interesse. Não surpreende que a maior parte da legislação de iniciativa do Executivo seja transformada em lei pelo Congresso. As medidas provisórias, instrumento aparentado aos decretos-lei do regime militar, constituem um dos dispositivos mais controversos da Constituição de 1988. O Plano Real, por exemplo, foi implementado por medida provisória, editada em 1994 e reeditada 65 vezes durante um período de seis anos até ser finalmente aprovada pelo Congresso em 2000. Os abusos se multiplicaram ao longo do tempo, com o Executivo editando medidas provisórias "comezinhas", sobre questões sem aderência aos requisitos constitucionais de relevância e urgência. Em 2001, o Congresso aprovou emenda constitucional proibindo a reedição de medidas provisórias e determinando que elas passariam a trancar a pauta da Câmara ou de Senado caso não fossem votadas dentro de 45 dias a contar da data de sua edição. Esperava-se que a mudança refreasse a sofreguidão do Executivo de legislar por decreto, pois o congelamento da pauta afetaria seus projetos de lei. Ao contrário, as medidas provisórias continuaram a ser editadas no mesmo ritmo. Segundo levantamento feito pela Mesa da Câmara a pedido do site Congresso em Foco, 56% das sessões deliberativas no biênio 2003/2004 tiveram início com a pauta trancada por medidas provisórias. Em 2005, esse percentual subiu para 77% até atingir em 2006 impressionantes 82%. Em conseqüência, mudou a estratégia parlamentar de aprovar legislação para restringir o poder do governo de editar medidas provisórias. Trata-se agora de inverter a lógica das medidas provisórias, estabelecendo os casos em que o Executivo pode editá-las. Em fevereiro de 2006, o Senado aprovou em dois turnos emenda constitucional proibindo o uso de medidas provisórias em matéria tributária. O projeto foi encaminhado à Câmara, onde tramita na Comissão de Constituição e Justiça. Projetos similares podem abrir caminho para a implementação gradual de mudanças que culminem com a revogação do poder do presidente de governar por decreto. Se existe hoje relativo consenso a respeito da necessidade de se limitar o poder do presidente da República de editar medidas provisórias, o debate sobre o orçamento impositivo e o contingenciamento de gastos é, na melhor das hipóteses, incipiente. Quando o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) propôs o orçamento impositivo (PEC 22/2003), a reação foi de des-
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crença e estranhamento. Como abrir mão de um instrumento que impediu o descalabro fiscal? Como passar o comando da execução orçamentária para as mãos de parlamentares que se notabilizaram pelo abuso de emendas paroquiais ou engajamento em práticas de corrupção? A realidade é mais complexa. Destinar recursos para redutos eleitorais é uma tendência universal, pois deles dependem as chances de sobrevivência eleitoral dos parlamentares. O que constitui anomalia é o contingenciamento de despesas pelo Executivo para barganhar o apoio dos parlamentares em votações de seu interesse. Em uma democracia, o poder de decidir sobre os gastos públicos deve ser prerrogativa exclusiva de representantes com mandato popular e a execução de despesas não pode estar subordinada ao arbítrio do Executivo. A afirmação de que o orçamento já é impositivo porque a quase totalidade das receitas é vinculada, isto é, direcionada por lei para determinado gasto (previdência e assistência social, educação, saúde etc.) e a maioria das despesas é obrigatória configura um sofisma. Na verdade, o uso indiscriminado do contingenciamento tende a estimular a criação de novas vinculações de receitas e novas despesas obrigatórias. 12 Assim, a busca de proteção das rubricas por interesses organizados engessa cada vez mais o orçamento. O Senado deu urgência à decisão de rever as regras de elaboração, tramitação e execução do orçamento federal ao aprovar no ano passado a emenda constitucional que torna o orçamento impositivo e obriga sua execução tal como aprovado pelo Congresso. O projeto não exclui, embora limite, a possibilidade de o Executivo contingenciar a execução orçamentária, matéria que de resto foi regulamentada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. O contigenciamento total ou parcial ou mesmo o cancelamento de dotações orçamentárias poderão ser feitos mediante solicitação do presidente da República ao Congresso até 120 dias antes do encerramento da sessão legislativa. A solicitação deve ser acompanhada de justificativas de natureza técnica, econômico-financeira, operacional ou jurídica e tramitará em regime de urgência. Se não for votada nesse período, a solicitação será considerada aprovada. É compreensível que o governo resista ao orçamento impositivo sem a mudança prévia das regras de tramitação da proposta orçamentária no Congresso, o que requer alterações que vão do Regimento Interno à Constituição. No mesmo espírito, a contrapartida do orçamento impositivo deveria ser a ampliação da liberdade do Executivo de alocar recursos sem as amarras de vinculações orçamentárias. A Desvinculação de Receitas da União (DRU) já demonstrou a exequibilidade dessa iniciativa. Uma estratégia possível seria definir as vinculações de receita no Plano Plurianual (PPA), onde teriam validade por quatro anos, ao invés de deixá-las na Constituição, onde permanecem irredutíveis às mudanças de prioridade que se processam na sociedade. 13 CONCLUSÃO A experiência histórica indica que quando um presidente imbuído da crença de que a eleição por maioria absoluta lhe confere legitimidade superior à dos demais poderes confronta um Congresso corroído e desmoralizado pela corrupção e au-
Fernando Barbosa/Ag. O Globo
O voto distrital majoritário permite uma relação mais próxima entre os representantes e as bases partidárias.
tocomplacência forma-se o caldo de cultura propício para a manifestação de pulsões plebiscitárias. Vêm se avolumado em anos recentes propostas de reforma tendentes a debilitar ainda mais os partidos e o Congresso. Não poucas vezes, o presidente Lula tem deixado transparecer o desejo de governar ao largo do Congresso. Em plena campanha eleitoral, aderiu com sofreguidão ao que qualificou de "genial idéia" de juristas da OAB: a convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva e composta por notáveis para aprovar a reforma política. Nem tem faltado em seu partido quem defenda o direito do presidente da República de convocar plebiscitos e referendos sem autorização do Congresso. A tentativa de depredação da Câmara dos Deputados em 2006 por uma malta de militantes do Movimento pela Libertação dos Sem-Terra (MLST) também evidenciou a virulenta hostilidade à atividade parlamentar que grassa nas bases da organização. Para preservar o equilíbrio institucional e coibir o surgimento de presidentes autocráticos é necessário fortalecer o Congresso, adensando os vínculos de representação entre os parlamentares e seus eleitores e devolvendo a representantes eletivos a prerrogativa de fixar prioridades para os gastos públicos. É precisamente quando o presidente aposta todas as fichas em um desenvolvimento mais vistoso, sem dar mostras de equivalente disposição para enfrentar a tríade formada por uma Previdência deficitária, uma legislação anacrônica do trabalho e uma administração pública ineficiente e perdulária, que torna-se imperativo fortalecer a democracia representativa.
1 Entrevista a Gabriel Manzano Filho, "Estratégia é criar condições
destruição de emprego".
para um terceiro mandato", Estado de São Paulo, 23 de janeiro de 2007. 2 Amaury de Souza e Bolívar Lamounier, "O futuro da democracia: cenários político-institucionais até 2022", Estudos Avançados, 20 (56), 2006. 3 Jairo Nicolau e Vitor Peixoto, "As bases municipais da votação de Lula em 2006", Fórum Nacional Internet, 2007, www.forumnacional.org.br/forum/pforum62a.asp 4 Ver, a esse respeito, a entrevista de Leôncio Martins Rodrigues, "Cientista político diz que os pobres obrigam partidos a mudar de cara", Época, 24 de fevereiro de 2007. 5 Dados de pesquisas de opinião são resumidos por Carlos Marchi, "Programas sociais mudaram base de Lula", Estado de São Paulo, 7 de maio de 2006, e por Julia Duailibi, "Dividir para governar", Veja, 2 de setembro de 2006. 6 Marcelo Neri, "Destrinchando o crescimento e a estagnação trabalhistas", Valor Econômico, 30 de janeiro de 2007. 7 Ver José Roberto Mendonça de Barros e Sérgio Vale, "As perdas da classe média", Valor Econômico, 26 de dezembro de 2006. "O que se percebe é que a criação de emprego se dá nas faixas de renda até 3 salários mínimos", registram os autores. "Acima dessa faixa há
8 Isabel Guerrero, Luís Felipe López-Calva e Michael Walton, The
Inequality Trap and its Links to Low Growth in Mexico, manuscrito inédito, novembro de 2006. Ver também Francisco H.G. Ferreira e Michael Walton, "The Inequality Trap", Finance and Development, 42 (4), December 2005. 9 As raízes históricas do conflito entre gerar e capturar renda, este último com ativo apoio do Estado, são analisadas por Bolívar Lamounier e Edmar Bacha, "Democracy and economic reform in Brazil" in Joan Nelson (org.), Precarious Balance: Democracy and Economic Reforms in Eastern Europe and Latin America, Overseas Development Council, 1994. 10 "Pesquisa Veja/Ibope: Os políticos no fundo do poço", Veja, 31 de janeiro de 2007. 11 Bolívar Lamounier, "Brasil, país de vários futuros" in João Paulo dos Reis Velloso e Roberto Cavalcanti de Albuquerque (orgs.), Brasil, um país do futuro?, Editora José Olympio, 2006. 12 Edilberto Carlos Pontes Lima e Rogério Boueri Miranda, "O Processo Orçamentário Federal Brasileiro" in Marcos Mendes (org.), Gasto Público Eficiente, Topbooks-Instituto Fernand Braudel, 2006. 13 Ver Edilberto Carlos Pontes Lima e Rogério Boueri Miranda, op.cit..
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A evolução do sindicalismo E a mudança da relação capital-trabalho
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Assembléia no Estádio de Vila Euclides, em março de 1979. Em cima de mesas e sem microfone, Lula discursava para os que estavam à frente, que repetiam em coro para quem estava atrás. Foto reprodução do livro "Imagens da Luta".
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e for possível dizer que há momentos na história de um país que marcam o fim de um período e o início de um outro, melhor dizendo de um processo, as eleições de 2006 foram esse momento e esse marco. Elas indicam, a um tempo, o triunfo do Sistema e a crise final da classe política e das instituições personificadas, se assim podemos dizer, nos chefes dos três Poderes "independentes e harmônicos entre si" em que a Constituição de 1988, nisso seguindo todas as demais republicanas, divide a União. Comecemos pelo Sistema. O Sistema, hoje, deve ser visto de prisma diferente daquele através do qual o enfoquei nos anos 60. Pelo que então escrevi, ele se constituía de um conjunto de relações informais entre governo, empresário com ou sem representação sindical e lideranças sindicais de trabalhadores. Essas relações permitiam que os interesses de empresários e trabalhadores, que a rigor poderiam ser dados como contraditórios, se harmonizassem no Estado em detrimento da autonomia de ação da classe operária. O Sistema se apresentou pronto e acabado em 1943 (sendo construído durante o período 1930/37), quando o governo passou a controlar os sindicatos operários e patronais, fiscalizando a aplicação do Imposto Sindical. Louvando-me em Mannheim, dizia, então, que esse controle retirava das relações de trabalho (que o sociólogo alemão situava no que chamava de matriz irracional da vida social) sua condição de elemento inovador das relações sociais, além de impedir o livre desenvolvimento das forças produtivas. Mais que isso, o controle da aplicação do Imposto Sindical fazia das lideranças operárias e patronais quasereféns do Ministério do Trabalho. Essa subordinação era mais sentida no setor operário, cujas lideranças se viam levadas, em muitas circunstâncias, a buscar apoio político nos capitães de indústria e lideranças empresariais para defender-se de pressões, políticas ou não, legítimas ou não, dos agentes do Ministério. Esse apoio exigia uma contrapartida nem sempre pública: as lideranças sindicais dos trabalhadores muitas vezes se viam obrigadas a atender aos interesses das lideranças empresariais e às vezes de capitães (que então agiam como tal) de setores industriais, e as cúpulas das organizações sindicais a atender aos interesses imediatos do partido que ocupasse o governo. Essa organização sindical tinha sua contrapartida naquela da Previdência Social: os institutos de aposentadoria e pensões (IAPs) das
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Nelson Almeida/AE
Oliveiros S. Ferreira Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP, professor da PUC-SP, escritor e jornalista
diversas categorias profissionais eram controladas pelo mesmo Ministério do Trabalho (e Previdência Social), o que fazia dos sindicatos operários e dos IAPs verdadeiros "currais eleitorais do governo", parafraseando a observação de Engels sobre o governo de Bismarck. Da perspectiva teórica da necessidade de as relações de trabalho não serem controladas pelo governo, que era a que me inspirava naquela época, nada a acrescentar ou retirar, hoje. A realidade mudou, no entanto. No governo Sarney deu-se a grande transformação nesse Sistema em que elementos contraditórios por natureza (produtividade à parte, o operário quer melhores salários, enquanto o patrão exige maior produção ao mesmo custo) se conciliavam no plano do Estado. Foi naquela administração que o Ministério do Trabalho deixou de fiscalizar a aplicação do Imposto Sindical, transferindo-se esse controle para as assembléias sindicais que as direções, que se beneficiam do Imposto, manipulavam a sua vontade. A organização sindical saiu, assim, do controle governamental e passou na prática ao domínio das lideranças. Da mesma maneira, diminuindo a área de influência dos governos, a Previdência Social fora unificada no período político anterior e no lugar de "n" institutos de previdência, havia apenas o delegado ministerial para o Estado, tentando pôr ordem numa organização que já dava sinais de esclerose, provocada em grande parte pela mudança nos critérios de contribuição, o Estado deixando de dar sua parte na constituição dos fundos de pensão. Outra grande alteração que se verificou no governo Sarney foi que as centrais sindicais, não previstas na CLT de 1943 (e que podiam, por não terem existência legal, ser tratadas como ilegais segundo os interesses dos diferentes governos), passaram a ter existência paralegal: sua existência foi aceita por todos, governo, patrões e operários e elas passaram a competir em representatividade (e na prática superando-as) com as confederações por categorias previstas pela organização sindical de 1943: trabalhadores na industria (CNTI), empresários na Indústria (CNI) etc. O que não impediu, talvez pelo contrário tenha facilitado, que os adversários da CUT na luta pelo controle de mais sindicatos — portanto das verbas destinadas às centrais sindicais — se tenham valido de velhas ligações para afirmar-se e sobreviver enquanto organização. Esse novo quadro da organização sindical completou-se com a Constituição de 1988 que, afora consagrar o Imposto Sindical como "contribuição", estabeleceu que os sindicatos (pa-
tronais ou de operários) podem cobrar uma "contribuição confederativa" dos membros das categorias. Os sindicatos viram, assim, reforçado seu poder econômico-financeiro e puderam, sem sacrifício das atividades normais, destinar parte da arrecadação mensal às centrais sindicais. A conseqüência política dessa mudança estrutural foi que as lideranças das centrais operárias passaram a ter uma posição de poder no jogo político geral, a qual teria sido impossível alcançar mesmo no período João Goulart. A prova disso está na indicação — sem o menor protesto de parte dos empresários — de um ex-presidente da CUT para o Ministério do Trabalho no governo Lula, e na eleição de Paulinho, da Força Sindical, para deputado federal. Tomadas isoladamente, essas mudanças podem pouco significar para alguns; quando as colocamos lado a lado e examinamos suas repercussões na sociedade e na Política (isto é, na Grande Estratégia), seu significado é profundo, pois permitiram a alteração das relações que se dão no triedro Governo-Patronato-Sindicatos Operários. Essas relações eram e são políticas, portanto de dominação e subordinação, e vinham pelo menos de 1943, para não dizer 1930 com a subida de Vargas ao poder. E a alteração teve como resultado uma maior autonomia das partes que se relacionam com o governo — embora este continue tendo grande poder, na me-
dida em que controla as macropolíticas: econômico-financeira, fiscal e cambial e pode, sendo o caso e a oportunidade, mudar com o apoio de sua maioria no Congresso a legislação sindical para reforçar seu poder. As mudanças profundas na relação entre o governo e os sindicatos obrigam a que se reveja o Sistema; tanto mais que as alterações no campo sindical vieram acompanhadas de profundas transformações no terreno da economia em dois momentos distintos: um, o governo Collor com a abertura a machado das aduanas; outro, iniciado nesse mesmo governo, continuado no de Itamar Franco e consagrado no de Fernando Henrique Cardoso, com as privatizações. A alteração nas relações entre o governo e as forças sociais afetou o Sistema — obrigando à revisão da definição que dele dei e da descrição das forças sociais em presença e de como se relacionam. Introduzo, para isso, dois conceitos que em outra oportunidade considerei fundamentais para a compreensão dos processos políticos: Ordem e Revolução, formas mentais de ver o mundo e o processo social que se espelham em partidos na práxis social. O Partido da Ordem, na definição clássica, é aquele que tem como lema Propriedade, Família, Religião, Ordem. O Partido da Revolução não tem lema, mas é facilmente caracterizável pelas idéias que defende. Elas não se limitam a negar as estruturas estatais
O Estado Novo foi uma variante do castilhismoborgismo, que podemos chamar de castilhismovarguismo, que tudo fez para garantir a Ordem e a Propriedade contra assaltos já visíveis, especialmente depois da Intentona Comunista de 1935.
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Getúlio Vargas abriu as portas ao capital estrangeiro sem reduzir a influência do Estado no processo de desenvolvimento.
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de dominação e aquelas outras espelhadas na Família, na Religião, na Propriedade e na Ordem. A Revolução pressupõe uma transformação radical, de fond en comble, de tudo o que existe. Os que a defendem à outrance não têm idéia precisa de como as instituições sociais se organizarão no futuro. Para eles, o processo revolucionário definirá o caráter das instituições — e é sintomático que as revoluções inspiradas no marxismo clássico e mesmo no leninismo das primeiras horas tenham tido como princípio e fim não a destruição, mas sim o desaparecimento, o perecimento do Estado ao longo do processo que se iniciaria com a ditadura do proletariado. Essa era uma proposição teórica sem amparo na História; daí a idéia dela ter sido sempre referida às jornadas de 1848 na França, na Alemanha, na Áustria e na Boemia, e à Comuna de Paris de 1871. Podemos dizer, sem receio de errar, que a partir de 1960 (pouco mais, pouco menos) o Partido da Ordem, no Brasil, deixou de insistir em "Religião e Família": na primeira, porque a Teologia da Libertação cindiu a ligação entre Propriedade e Religião; na segunda, porque a revolução dos costumes, sobretudo sexual, erodiu as bases da família tradicional. O que ficou do antigo lema foi "Propriedade e Ordem", esta para garantir aquela diante da desorganização das estruturas sociais provocada pelas grandes migrações internas, o aumento extremamente rápido da população e, não nos esqueçamos, a inflação. A transformação seria melhor dizer sua descaracterização do Partido da Revolução ao longo desse processo, foi sutil. Ela não será compreendida se não tivermos presente que, a partir da posse de Vargas na chefia do governo em 1930, é nitidamente visível uma variante no Partido da Ordem que afeta a "Propriedade" para garantir a "Ordem". Segundo o Gen. Góes Monteiro o castilhismo-borgismo inspirou todo o período 1930/45. Góes Monteiro fazia referência a dois presidentes do Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros. Castilhos governou com uma Constituição por ele feita, inspirada, segundo dizia, nos princípios de Augusto Comte, pai do Positivismo francês, princípios esses que se traduziam na fórmula "ditadura republicana": centralização do Poder, serviços públicos estatais, atenção às reivindicações do proletariado para que pudesse se incorporar com dignidade ao Estado — cuja organização obedeceria aos princípios do "Estado Positivo", ordenado e agindo segun-
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do princípios científicos, segundo os ensinamentos de Comte. Hoje é possível dizer que o Estado Novo foi uma variante do castilhismo-borgismo, que podemos chamar de castilhismo-varguismo, que tudo fez para garantir a Ordem e a Propriedade contra assaltos já visíveis, especialmente depois da Intentona Comunista de 1935. Para tanto, era necessário que o Estado interviesse não apenas no processo social com a CLT, mas também na ordem econômica. Como "cérebro social" (cf. Comte), o Estado poderia (e deveria) organizar a vida social para que se mantivesse a Ordem. A maneira de atender aos preceitos do positivismo castilhista foi garantir aos trabalhadores alguns direitos — maneira segura, para os castilhistas que vinham do Sul e para a Igreja Católica da Rerum Novarum e da Quadragesimo Anno, de assegurar a Ordem. E a CLT rompia o antigo conceito de propriedade, que fazia do Dominus o senhor absoluto da Casa e dos que viviam nela, a propriedade não tendo função alguma a não ser satisfazer os desejos do Senhor, que tinha direito de vida e morte sobre os que nela viviam. A intervenção na ordem econômica teve o sentido de resguardar, no processo de desenvolvimento econômico, a predominância do Estado e, portanto, no jogo internacional, a soberania nacional. Não importa discutir, aqui e agora, as vantagens e desvantagens dessa intervenção e da estatização subseqüente. O que importa reter é que Getúlio Vargas foi o autor de uma forma de associação do Estado com os modernos Domini, a qual permitiu que o Brasil se inserisse de outro modo no cenário internacional, abrindo as portas ao capital estrangeiro sem reduzir a influência do Estado no processo de desenvolvimento econômico. Essa fórmula, a rigor enunciada e praticada tão só em poucos setores, foi expressa em discurso — creio que aquele em que Vargas anunciou pelo rádio o Estado Novo — e era simples: o capital estrangeiro é bem-vindo sempre que houver, no empreendimento, a associação do governo.
Mais do que o castilhismo-borgismo, o castilhismo-varguismo foi a versão brasileira da Ditadura Republicana de Comte, mesmo que tivesse de violentar os princípios federativos do autor do Curso de Filosofia Positiva. O Estado Novo caracterizou-se no plano externo pelo reconhecimento das servidões impostas pela geografia (vale dizer, não romper com os Esta-
dos Unidos, mas buscando manter a independência, o que conseguiu até janeiro de 1942, quando rompeu relações com a Itália e a Alemanha na esteira do ataque a Pearl Harbour), e no plano interno pelo predomínio do Executivo, pela imposição de um sistema de ensino inspirado no francês, mas voltado a preparar quadros para a sociedade moderna (a bifurcação entre Clássico e Científico no sistema Capanema), e pela preocupação com a industrialização e com a incorporação do proletariado e do patronato ao Estado ao fazer dos sindicatos órgãos de colaboração com o poder público, como estava na Carta de 1937: "Art. 138 A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito (de impor contribuições a todos os seus associados) e exercer em relação a eles funções delegadas de poder público". (Um fato curioso, que deve vir entre parênteses, mas cuja compreensão é fundamental para o bom entendimento do Estado Novo e do período que se lhe seguiu: confiante no poder aglutinador do Estado e em sua capacidade legal de mobilização, o castilhismo-varguismo descurou da realidade fundamental da Política: a organização. O "queremismo" de 1945 não era uma "organização" como a entendiam os ditadores europeus dos anos 30; era, no máximo, uma cópia canhestra da "Sociedade 2 de dezembro" com que Luis Napoleão, o sobrinho do Corso, mobilizou o lumpenproletariat de Paris para seu golpe de Estado em 1852.)
Em 1954, as cidades do Rio de Janeiro e a de São Paulo foram os teatros em que Carlos Lacerda encontrou sua audiência para fomentar a crise que levaria ao suicídio de Vargas.
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13 de março de 1964, quando Goulart fez o famoso comício da Central, protegido pelos tanques e pela Polícia do Exército, nele pregando a reforma agrária e ouvindo Brizola e outros pregarem a revolução.
No pensamento positivista original, a Ordem não se confundia com a preservação do status quo pré-revolucionário (1789). No castilhismo-varguismo a idéia de Ordem confundia-se com o próprio regime que soube construir ao longo dos anos que vão de 1930 a 1945. Esse regime tinha suas formações sociais de defesa; permitam-me a imagem militar, era um quadrado fortificado. Um dos lados era o Exército do qual, estranhamente, Getúlio Vargas confessava em seu diário ser prisioneiro. Outro, já depois de 1931, eram as novas lideranças sindicais que nasciam bafejadas por um regime que, ao defender a organização da classe operária e criar um arcabouço legal para proteger os trabalhadores, sustentava o direito de propriedade, mas num conceito não romano. O terceiro lado do quadrado fortificado em que Vargas sempre se defendeu era a associação com as lideranças empresariais de São Paulo seduzidas pelo seu nacionalismo, que
deixou claro no discurso com que anunciou à nação a implantação do Estado Novo. O último lado do quadrado era o mais frágil e praticamente sem reservas para defendê-lo quando e se necessário: a tentativa de construir uma nação com base na confraternização de todos os brasileiros num só povo (ainda que miscigenado). O Dia da Raça, instituído para ser comemorado a 19 de abril, foi o esforço maior que deu a esse lado, que sabia fraco, de seu quadrado fortificado de defesa. Não foi difícil ao Partido de Ordem Castilhista (esta, creio, a definição que melhor recobre o castilhismo-varguismo de 1930 a 1945) vencer o Partido da Revolução. O ano de 1935, com os movimentos insurrecionais sobretudo no Nordeste e no Rio de Janeiro, veio somar-se, reforçando-a, à visão diria tenebrosa que se tinha do bolchevismo triunfante na URSS, consolidada pela percepção do que o comunismo ateu poderia significar para países "inverte-
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brados" como a Espanha de 1936. Se o Partido da Ordem Castilhista pôde impor-se ao Partido da Revolução, não conseguiu igual tento ao ter de contrapor-se aos que sustentavam idéias democratizantes e liberais. No 29 de outubro de 1945 não teve como se opor aos liberal-democratas que, para depor a pessoa física de Vargas aliaram-se às Forças Armadas e a quantos, interventores do Estado Novo, viram na prevista Redemocratização pelas Armas a maneira de continuarem usufruindo as benesses decorrentes do apoio dado a Vargas nos últimos três anos ou últimos meses. Para que se compreenda o que veio depois, é preciso ver que, se o 29 de outubro permitiu a união dos liberais e daqueles falsos democratas com o Exército de Dutra e a FAB de Eduardo Gomes (Dutra e Eduardo souberam neutralizar Góes e o Exército castilhista na reunião decisiva daquele dia), o pleito de 2 de dezembro daquele ano permitiu o triunfo de um ersatz a um tempo de castilhismo-varguismo e de regime democrático com a eleição de Dutra e de quantos vieram das hostes getulistas para aquele período governamental que chamo de República Democrática Risonha e Franca de 1946 num e noutro momento, por adesão aos cargos e vantagens pessoais e sociais. Voltando ao que nos interessa, cabe lembrar que a estrutura sindical montada pelo Estado Novo persistiu até o governo Sarney, como assinalado atrás. A República Risonha e Franca de 1946, porém, já não tinha mais a inspirá-la o ideal castilhista — o próprio Getúlio (o presidente de 1951 a 1954) teve de haver-se com um sistema de governo em que o Executivo não tinha os poderes de decisão que a realidade reclamava que fossem seus (não foi Café Filho, ao suceder Vargas, quem disse que com a Constituição de 1946 não era possível governar?). Mais ainda, desde 1946, o ministro do Trabalho que controlava os sindicatos não era mais uma delegação da vontade do presidente, como em 1937/45, mas fruto de um acordo político-eleitoral. Por outro lado, a intervenção do Estado na economia era cuidadosamente acompanhada e ferozmente criticada por políticos e jornais, que podiam verbalizar as restrições de importantes parcelas da opinião pública a esse tipo de "atentado" contra o direito de propriedade. O Sistema que o castilhismo-varguismo montara teve de ceder às injunções dos partidos que compunham a maioria governamental e podiam reclamar, como butim, o controle do Ministério do Trabalho "e Previdência Social", é preciso não esquecer. O Estado, assim, desde
A intervenção do Estado na economia era cuidadosamente acompanhada e ferozmente criticada por políticos e jornais que podiam verbalizar as restrições de parcelas da opinião pública.
O próprio Partido da Revolução faz parte, hoje, do Sistema, de cujos benefícios se aproveita, como demonstrou o aparelhamento do governo pelos quadros do PT no primeiro mandato do sr. Luiz Inácio Lula da Silva.
1946 cedeu lugar ao governo (aos partidos, à administração) quando se tratou de construir ou reforçar a solidariedade dos interesses contrários de patrões e operários, cuja oposição se tornava cada dia mais evidente e dramática. A democracia de 1946 encerrou o ciclo castilhista-varguista do Sistema e a política partidária passou a ser o fator determinante da ocupação pro-tempore do Ministério do Trabalho. A autonomia dos sindicatos obtida no governo Sarney encerrou essa nova fase, em que a Previdência passou a ser cuidada como assunto meramente técnico-administrativo. Como se apresenta, então, hoje, o Sistema, tal qual o considero? Ainda que bancos e demais organizações do sistema financeiro tenham ocupado papel proeminente nos negócios públicos, graças à pouca atenção dada ao problema da dívida interna, a agricultura, a indústria, o comércio e os bancos e similares são solidários na defesa de interesses consubstanciados num lema mais restrito do que o inicial do Partido da Ordem. Agora, a solidariedade dá-se apenas em torno de "Propriedade e Ordem". O desenvolvimento econômico permitiu que a distribuição de benesses atraísse aqueles que deveriam (na formulação teórica) formar em campos adversos. O próprio Partido da Revolução faz parte, hoje, do Sistema, de cujos benefícios se aproveita, como demonstrou o aparelhamento do governo pelos quadros do PT no primeiro mandato do sr. Luís Inácio Lula da Silva. O importante a registrar é que o Partido da Revolução ingressou no Sistema (transformando-se no apêndice "à esquerda, populista" do Partido da Ordem) com pleno conhecimento dos "príncipes do Sistema" e todos os serviços de informação. Os "príncipes" são aquelas personalidades sociais que se beneficiam pessoal ou institucionalmente do Sistema e que influenciam as políticas governamentais para que não se afastem do "reto caminho". A rigor, esse ingresso e essa desnaturação deram-se a partir de 1945, quando o Partido Comunista elegeu representantes ao Congresso (Câmara e Senado), a Assembléias Legislativas estaduais e Câmaras de Vereadores. Supôs-se que depois de 1947, quando o PCB teve seu registro cassado e seus representantes foram afastados das Casas Legislativas, que não teria mais ação nem influenciaria ainda que indiretamente a política externa (o faux pas de Prestes, dizendo, ao ser provocado por um jornalista, que ficaria com a Rússia: "No caso de guerra do Brasil contra a URSS, V. Exa. ficará com quem?", foi a prova de que o partido es-
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tava ligado à URSS) ou interna. O manifesto de Prestes, convocando à luta armada logo depois da cassação do registro do partido pelo TSE, tranqüilizou a consciência dos que julgavam a cassação necessária, embora antidemocrática. A cassação não impediu que elementos menos notórios do partido se elegessem por várias das legendas legais ou que o PCB apoiasse candidaturas presidenciais ou a governos de Estados, com pleno conhecimento, de parte dos que recebiam seus votos, de que estavam lidando com um partido ilegal. O relatório Kruchev, de 1956, denunciando os crimes de Stalin e abrindo crise interna nos partidos comunistas no mundo, serviu para apressar a assimilação do Partido da Revolução pelo Partido da Ordem. Foi o momento em que muitos intelectuais ligados ao velho partido stalinista, decidem mostrar sua face democrática e buscam aproximar-se, desta ou daquela maneira, dos empresários "nacionalistas e esclarecidos". A "ilegalidade-legal" em que o Partido Comunista viveu pelo menos até 1964 (em 1972 "descobriu-se' um vereador comunista na cidade de São Paulo, velho militante conhecido por todos como sendo do "partidão") permitiu que ingressasse alegremente no Sistema. Tanto mais que, no governo JK, com pleno conhecimento do governo, passou a controlar sindicatos importantes e a aproveitar-se do Imposto Sindical. Em outras palavras, em 1964, quando se abre um novo período na história do País, o Partido da Revolução tinha sido absorvido pelo Partido da Ordem, como, aliás, sempre sucedera na história do Brasil. Perseguido até 1979, ele voltou triunfante em 1982 (diretas para governadores) e depois em 1986 (Constituinte). Mais não é preciso dizer: a Ordem absorveu a Revolução, primeiro o PCB, depois o PT — ambos necessitados de sustentar uma máquina pesada, grande demais para viver das contribuições dos seus membros. É preciso ver, na análise de situação que pretendemos fazer, que também o PT deixouse atrair pelos "ouropéis" (ou seriam as seduções burocráticas?) do Sistema. A história do Partido dos Trabalhadores só poderá ser feita (e, melhor ainda, compreendida) da perspectiva da Ordem e da Revolução. Quando surgiu nos estertores do regime dos presidentes militares, era visivelmente um membro do Partido da Revolução. Seus inspiradores eram o Lênin de antes de outubro de 1917 e o Gramsci dos Cadernos na leitura do Eurocomunismo italiano. Leninista, na medida em que não sabia qual socialismo construir, em-
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bora soubesse que deveria chegar ao poder para iniciar a grande transformação; seguidor do Gramsci prêt-à-porter na medida em que procurava apresentar-se à sociedade como um partido em busca de um novo pacto, que reuniria as forças consideradas democráticas com aquelas que pretendiam uma transformação mais ou menos profunda das relações sociais. O assalto armado ao poder foi descartado, mas o "centralismo democrático" não. As mais variadas correntes nele se abrigaram, todas se unindo na condenação da Ordem e do passado — tal como exige o pensamento revolucionário — e a promessa de um futuro que seria construído por todos ao longo da luta. A CUT, primeiro, e o MST, depois, foram suas vanguardas. Lembrando o Partido Nacional Socialista, a primitiva CUT foi a tropa de assalto do PT, sua SA. A ocupação violenta de fábricas, especialmente montadoras, os famosos "chiqueirinhos", em que os trabalhadores que não aderiam eram feitos cativos, e a queima de automóveis nas ocupações caracterizaram um tipo de movimento a rigor pouco leninista, mas violento o suficiente para assustar e colocar o PT como réu de crime de Lesa-Ordem. Sucede que os líderes da CUT fizeram uma análise de situação errada: as ações violentas não condiziam com o leninismo e muito menos com Gramsci e a idéia de muitos de que apenas uma tática social-democrata poderia levar o partido ao poder. Seria interessante verificar os passos que levaram a CUT a desistir de fazer a revolução ocupando fábricas e obrigando trabalhadores a fazer greve. Quaisquer que tenham sido os meios de que lançou mão o Partido da Ordem, o fato é que a CUT desistiu de suas ações sem que houvesse necessidade de um expurgo no estilo da "noite dos longos punhais", em que a liderança das SA foi eliminada fisicamente. Com isso, o PT pôde incorporar-se tranqüilamente ao Partido da Ordem e daí ao Sistema, tendo como líder o sindicalista dos anos 70/80, hábil negociador aceito por todos que queriam contrapor ao sindicalismo de Vargas — sempre a figura de Getúlio a governar as ações — um "sindicalismo moderno". Assim, como por obra e graças de Pedro Malasarte, a CUT voltou ao leito confortável das negociações, sabendo que os empresários tinham como arma nas negociações o "sindicalismo de resultados" da Força Sindical. As duas centrais integraram-se no Sistema e o PT com elas. O proletariado, nesse jogo de sutilezas e gentilezas, desapareceu enquanto refe-
rência da ação do que poderia ser o Partido da Revolução; hoje, os operários juntam-se em massa para festejar o 1º de maio na Praça Campo de Bagatele ou na Avenida Paulista, em São Paulo. Todos os anos, são milhões de trabalhadores que se reúnem para ouvir bandas que estão na moda e disputar prêmios valiosos. O triunfo da Partido da Ordem, não castilhistavarguista, deu-se com a eleição de Luis Inácio Lula da Silva para a presidência da República. Foi o triunfo do novo Sistema. Outro fator que contribuiu para a mudança da face do Sistema foi a chamada globalização. Convenhamos que mais do que em decorrência desse fenômeno ainda hoje mal compreendido e podendo ter nomes diferentes — tanto chamado de globalização, quanto de mundialização — as transformações na economia e, via de conseqüência, na sociedade brasileiras foram devidas à abertura dos portos Collor consule, a qual levou a que princípios de organização e método (O&M) já postos em prática nos Estados Unidos e Comunidade Econômica Européia passassem a ser adotados no Brasil com os resultados previsíveis no campo do emprego, inclusive dos bem qualificados — e, neste setor, talvez mais que em outros. Outro fator, que tem sido pouco analisado, é a internacionalização da economia brasileira: cem bilhões de dólares registrados no Banco Central como transferência de capitais brasileiros para aplicação direta no exterior. É este um processo que ao mesmo tempo em que torna as empresas menos vulneráveis a possíveis alterações de rumo na política governamental,
obrigará o governo, enquanto representante do Estado, a proteger essas empresas de expropriações por parte de governos estrangeiros. O fato deverá exigir redobrada atenção dos governos, especialmente quando o caso da Petrobras na Bolívia é recente e exemplar.
As mudanças registradas no mecanismo do Sistema (as relações nem sempre corretas entre lideranças sindicais e empresariais, essas e aquelas com o governo) corresponderam ao declínio do Estado castilhista-varguista e às tentativas de sua substituição pelo modelo liberal (erroneamente conhecido como neoliberalismo) enquanto padrão de desenvolvimento econômico, mais ainda de ação do Estado sobre a sociedade e seu destino. Mas não foi apenas o modelo castilhista-varguista que entrou em crise. A centralização de ações reivindicatórias de alguns setores da classe operária nas centrais tipo CUT ou Força Sindical, que passaram a integrar o Partido da Ordem e, portanto, o Sistema, foi elemento necessário para que o processo de acomodação aos princípios de O&M próprios da globalização — o famoso "achatamento das hierarquias de direção" — se desse sem atritos sociais de vulto, o que fez desaparecer do processo social seu elemento político, que Carl Schmitt tão bem resumiu na expressão "amigo-inimigo". O que pretendo dizer é que os "princípios O&M globais" passaram a viger no Brasil sem que os prejudicados por eles se organizassem para manter, no confronto direto ou indireto
O PT pôde incorporar-se ao Partido da Ordem e daí ao Sistema, tendo como líder um sindicalista, hábil negociador aceito por todos que queriam contrapor ao sindicalismo de Vargas.
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com os empregadores, o status quo anterior. Será estudo dos mais interessante verificar como a ideologia do denominado neoliberalismo (vamos ceder ao modismo) passou a conformar a consciência daqueles setores sociais nas empresas que podemos chamar de "quadros" médios e superiores. A permanência do castilhismo-varguismo enquanto idéia foi possível também porque havia, de parte desses "quadros" e também da própria classe operária, a consciência de que tinham direitos estabelecidos e assegurados por lei — e um deles, o mais banal, era o da obrigação do empregador de registrar o empregado para que esse pudesse gozar, mais tarde, dos benefícios da estabilidade ou do FGTS, mas sobretudo da aposentadoria. O fenômeno novo, fruto dos "princípios de "O&M global", é que a consciência desses direitos como acicate para a ação desapareceu, apesar de que eles ainda sejam legalmente vigentes: daí a informalidade das relações de trabalho dos "quadros" que, para assegurar o emprego (e também em alguns casos fugir aos rigores do Imposto sobre a Renda), passam a constituir sociedades por cotas limitadas em nome das quais vendem sua força de trabalho. Fato semelhante, se não idêntico, verifica-se também no proletariado (se podemos usar a palavra): os trabalhadores e os "quadros" inferiores se organizam em cooperativas que vendem, elas, a força de trabalho de seus membros — não os trabalhadores eles próprios. Nesse processo, em que a consciência da sobrevivência prevalece sobre a do direito legal, desaparece a figura do "inimigo" e os "quadros" e os próprios trabalhadores decidem aceitar as regras do jogo, obedecendo à primeira Lei da Natureza, que é a da sobrevivência. Mas desaparecendo o "inimigo", diria Schmitt, desaparece a "Política". Este é o fato que devemos ter em mente ao tentar vislumbrar o que será o Brasil daqui para a frente. Antes, porém, voltemos a março de 1964.
Para o melhor entendimento da crise que teve seu desfecho em março de 1964, creio ser necessário voltar ao esquema "amigo-inimigo" de Schmitt. Voltar, porém, também no tempo, porque março de 1964 não se compreenderá se não tivermos em mente que ele significou, para muitos dos que se envolveram na ação, o fim do "inimigo", o castilhismo-varguismo, representado, à época, por João Goulart, herdeiro de Vargas. Getulio Vargas foi, desde 1930, o inimigo apenas de uma fração do Partido da Ordem, "inimigo" tal qual o conceituou Schmitt. O mo-
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vimento liderado por Getúlio Vargas e Góes Monteiro não chegou a ser propriamente uma revolução, embora tivesse, ao longo do processo que culminou em 1937, lançado as bases para um ersatz de incorporação das massas trabalhadoras na Polis. Foi essa face do castilhismovarguismo, à qual se acrescentou o fato de que membros do Partido Democrático de São Paulo haviam dado sua colaboração aos adversários de Borges de Medeiros em 1923, que fez que se adensasse no horizonte paulista o fantasma da revolução, que os movimentos operários de início do século, mas especialmente depois de 1920 e a Intentona de 1935 já haviam feito surgir nas névoas de um futuro incerto (na Europa). A oposição ao castilhismo-borgismo — e o temor da incorporação dos trabalhadores como classe na Polis, afora, no que se refere aos Ilustrados de São Paulo (o grupo do Partido Democrático que formou com Armando de Salles de Oliveira), a sensação de que Vargas traíra os ideais de 1930 e impedira o "progresso ilustrado" que se anunciara em 1924, com a criação do Partido Democrático, além de lhes haver roubado o poder em 1937 com o golpe de Estado — explica a oposição desse grupo paulista a tudo o que lembrasse Vargas e o antagonismo que levará os Ilustrados à journée des dupes de 1964. A oposição (no melhor sentido de Schmitt) dos Ilustrados ao castilhismo-varguismo está expressa na fórmula "Nação contra Império" (em que Nação
A estrutura sindical do Estado Novo persistiu até o governo Sarney. A Constituição de 1988 permitiu a cobrança da contribuição confederativa, reforçando o poder financeiro dos sindicatos.
resume a bandeira da "Civilização" que Sarmiento desfraldara contra a "Barbárie" de Facundo Quiroga, que no Brasil se consubstanciaria no Império vindo dos Pampas). É preciso ter presente que a oposição a Vargas é de círculos restritos (civis e militares) que encontram, na aliança suposta entre ele e o Partido Comunista, motivos e razões para arrastar nas jornadas de 1954 uma parte da opinião pública. Cabe observar que, se em 1945 a política pôde traduzir-se na ação militar contra Vargas, os adversários do ditador que ia ser deposto não tinham programa substitutivo para apresentar, já que a nação que muitos então defendiam era apenas uma idéia que traduzia a Democracia Liberal que se acreditava haver triunfado nos campos da Europa — apesar da vitória militar da URSS e eleitoral do Partido Trabalhista na Inglaterra, derrotando Winston Churchill. Nem era necessário, naquele momento, um programa alternativo, pois o que motivou os generais em comando no Rio de Janeiro não foi o rumo político que Vargas estaria imprimindo a seu governo, mas o temor de que, com a nomeação de seu irmão, Benjamim, para a chefatura de Polícia do Rio de Janeiro, ele estivesse preparando um golpe em conluio com os comunistas de 1935. As eleições de dezembro daquele ano realizaram-se em nome da democracia e da união nacional contra o fascismo getulista. Se programa houve, foi para opor-se à vigência da Lei Malaia, que João Alberto havia elaborado para conter abusos do poder econômico. A prova de que grupo nenhum tinha um programa alternativo ao do Estado Novo está em que toda a herança getulista permaneceu como ele a deixara em outubro de 1945 — especialmente a Consolidação das Leis do Trabalho, em que assentava o primitivo Sistema. Vargas foi sempre, até 1964, o "inimigo"— de um grupo político que tinha uma determinada idéia, ainda que vaga, de como organizar o País a partir da educação; uma idéia de Nação. Cabe ver, contudo, que embora esse grupo fosse limitado eleitoralmente a São Paulo, a idéia de Nação enquanto oposição à Barbárie de Facundo Quiroga encontrava adeptos no Sul e mesmo no Nordeste, especialmente na Bahia, de onde vieram os Mangabeiras, que marcaram a República de 1946, e Juracy Magalhães, opositor do Estado Novo — mas primeiro presidente da Petrobras de Vargas... E é preciso também lembrar que, para os generais que o haviam deposto e para os políticos que haviam formado na oposição ao Estado Novo, Vargas era o gênio do mal que havia dado o golpe de 10 de novembro de 1937 e poderia ter repetido a façanha (ele e o ir-
mão, Prestes e os queremistas!) se em 1945 não tivesse sido deposto... De 1946 a 1951, governo Dutra, Vargas foi exorcismado pelo acordo interpartidário que reuniu PSD/UDN/PR para enfrentar a ameaça comunista, mas também, creio, a do PTB e a de Vargas, que havia sido eleito senador por dez Estados da Federação. De 1950 (data de sua eleição) a 1954 (data do suicídio), ele foi marcadamente o "inimigo" e contra ele se lançou o Cid do Partido da Ordem, Carlos Lacerda, e mobilizaram-se forças militares que trabalharam, mais tarde, para impedir a posse de Juscelino e que aparentemente triunfariam em 1964, quando o herdeiro de Vargas, por isso mesmo "inimigo", foi derrotado juntamente com o que aparecia como Partido da Revolução. Atente-se para o fato de que o Ato Institucional nº 2, extinguindo os partidos políticos que existiam desde 1945, simplesmente consagrou o fim da classe política que não vinha encontrando, como assinalei acima, quem representasse os interesses das classes sociais — se é que alguma vez souberam exprimi-los além das reivindicações vis a que se referira, antes de Marx, um filósofo alemão. Da vigência do AI-2 à edição do Ato Institucional nº 5, a política desapareceu, porque não havia "inimigos". A oposição, consentida e vivendo do consentimento militar, pretendia apenas a restauração da democracia liberal; nunca esteve em jogo, nesse período, um programa alternativo por mínimo que fosse. Entendendo-se por "programa alternativo" o enunciado claro de ações políticas por parte de um novo governo, numa nova formação estatal que viesse substituir as engrenagens políticas e jurídicas, sociais em primeiro lugar diria Lassalle, que o Partido da Ordem tinha estabelecido há muito. A redemocratização em 1979 (e não em 1985, como se costuma afirmar) em nada mudou essas engrenagens, da mesma maneira que a Constituição de 1988 apenas as reforçou, tendo o governo Sarney permitido, como assinalei atrás, que os sindicatos criados pelo castilhismo-varguismo conseguissem uma maior autonomia, embora, convém deixar claro, só sobrevivam porque o Estado lhes garantiu, na Constituição, o Imposto Sindical e a Contribuição Confederativa. No instante em que o PT deixou-se seduzir pelo poder e revestiu-se de todas as roupagens do Partido da Ordem, a política, mais uma vez, deixou de existir. Não há, no Brasil de hoje, "amigos" e "inimigos". Não os há organizados, quero dizer, e insistir nisso.
No instante em que o PT deixou-se seduzir pelo poder e revestiu-se de todas as roupagens do Partido da Ordem, a Política, mais uma vez, deixou de existir. Não há, no Brasil de hoje, "amigos" e "inimigos".
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Na República, após o episódio Florianista, a presidência foi o prêmio para os setores economicamente dominantes. Por isto ou por aquilo, quisessem ou não os presidentes que assim fosse, a presidência foi, na maior parte das vezes até 1930, reserva de caça dos políticos do "Ecúmeno Principal": São Paulo + Minas Gerais, o Estado do Rio podendo ver-se atribuído, às vezes, uma parte do butim. A chamada "política do café com leite" apenas consagrou, no imaginário político e popular, essa distribuição geopolítica. A revolução de 1930, obtendo pelas armas o que não obtivera nas eleições de 1929, isto é, que se rompesse o domínio de São Paulo e Minas na presidência, alterou a geopolítica eleitoral — mas apenas enquanto Vargas esteve no poder, isto é, de 1930 a 1945. Quando o Estado Novo deu sinais de haver chegado a seu nadir — Góes Monteiro regressando de Montevidéu e dizendo a Vargas que voltava para pôr fim ao regime —, não havia organização capaz de restabelecer a geopolítica eleitoral anterior a 1930 ou de oferecer uma alternativa eleitoral e geopolítica capaz de contrapor-se a São Paulo e Minas se porventura houvesse quem pretendesse reivindicar "direitos de primeiro ocupante". Se em fins de 1944 ou começos de 1945, São Paulo, centro da oposição democrático-liberal a Vargas, não conseguia apresentar-se na liça eleitoral com um candidato civil (como sempre fizera) menos ainda os interventores nomeados por Vargas tinham condições de superar suas diferenças regionais e econômico-sociais e escolher, dentre eles ou dos integrantes da confraria, quem pudesse suceder o ditador sem mudar substancialmente suas políticas. Na ausência de uma solução civil (politicamente natural, digamos assim), o partido antiVargas teve de recorrer ao militar que lhe pareceu ser o adversário (não o inimigo) mais credenciado para impedir que o ditador desse outro golpe de Estado. Os outros, os do clã varguista, igualmente recorreram a um militar, ministro de Vargas. Os candidatos apresentaram-se assim na liça, mas numa situação inusitada: ambos eram, por natureza de suas funções, a negação do princípio mesmo do poder civil demoliberal (se porventura ele existisse em boa e devida forma), isto é, o debate e a busca de soluções não impostas pela hierarquia. A solução eleitoral de 1950 apenas confirmou a debilidade organizatória (portanto político-doutrinária) do partido anti-Vargas. Incapaz de encontrar em São Paulo ou em Minas um candidato civil, ele teve de lançar outra vez mão de um militar (novamente Eduardo Gomes),
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O Exército surgiu, em 1950, como o fiel da balança entre um partido sem quadros, que em duas eleições presidenciais tinha ido buscar nas Forças Armadas os seus candidatos, e o "inimigo" civil que ele, Exército, tinha deposto em 1945.
enquanto o clã varguista escolheu Cristiano Machado, preferindo nas urnas, como era possível esperar, Getúlio Vargas na tentativa de uma volta ao passado. Convém lembrar que, na batalha pós-eleitoral, foi a posição do Exército o que impediu que o problema da maioria absoluta fosse levado à Justiça. O Exército surgiu, em 1950, como o fiel da balança entre um partido sem quadros, que em duas eleições presidenciais tinha ido buscar nas Forças Armadas os seus candidatos, e o "inimigo" civil que ele, Exército, tinha deposto em 1945. Em 1954, a Geografia Política impôs sua marca: as cidades do Rio de Janeiro e a de São Paulo foram os teatros em que Carlos Lacerda encontrou sua audiência para fomentar a crise que levaria ao suicídio de Vargas. O importante, nesta análise, não é tanto o suicídio em si, quanto o fato de o Congresso ter sido posto de lado, como se fosse uma casa abandonada e mal-afamada, esmagado pelo IPM da "República do Galeão" durante cujo desenrolar, pela força das coisas, buscando os mandantes do assassínio do major Rubem Vaz, a FAB levou os generais do Exército a solicitarem a renúncia do presidente. A inorganicidade, para não dizer a incapacidade organizatória e de mobilização de setores da opinião pública do partido anti-Vargas encobrindo a desarticulação dos grupos que se haviam oposto a Getúlio a partir do instante em que ele desapareceu do cenário político — manifestou-se claramente em 1955: o candidato que conseguiu reunir em torno de seu nome certezas de vitória e convicções de derrota foi, novamente, um general: Juarez Távora. O outro partido, ainda que temendo uma reação militar, encontrou em Minas Gerais, o seu candidato. Juscelino Kubitschek, que se aliou a Goulart, herdeiro de Vargas. Convém nos determos um minuto para olhar com olhos de ver e compreender o quadro que se desenhou de 1945 a 1955 — quadro político-eleitoral e geopolítico ao mesmo tempo. Nas eleições que se seguiram ao 29 de outubro de 1945, nenhum dos setores sociais e políticos em que o Partido da Ordem então se dividiu tinha condições organizatórias de apresentar candidatos. O temor de que Vargas no poder pudesse subverter o processo, impôs duas candidaturas militares. O que significou que o Partido da Ordem, em conjunto, não foi capaz de encontrar quem pudesse opor ao getulismo um programa que permitisse políticas alternativas às de Vargas, e que fizesse apelo à classe média no "Ecúmeno Principal" e fora dele que se estava alistando para as eleições de
dezembro de 1945 e que, com certeza, poderia decidi-las. Mas significou também que o Partido da Ordem transferiu para as Forças Armadas (o Exército, fundamentalmente), a tarefa política de representá-lo. Os processos que se desenvolvem em 1950 e 1955 marcam o declínio do partido anti-Vargas como aglutinador de interesses e vontades, incapaz de encontrar em suas fileiras quem o pudesse representar perante o eleitorado, que aumentara em números absolutos e no qual já se distinguia uma maioria do "Ecúmeno Principal", mais a do "Secundário Sul". Enquanto isso, o partido pró-Vargas resistiu às crises nesse período e conquistou o poder em 1955 com um candidato saído de suas fileiras, mas do "Ecúmeno Principal", convém notar. A candidatura JK foi, porém, o canto do cisne dessa facção do Partido da Ordem; já em 1960 também não tinha quadros bastantes para enfrentar o adversário eleitoral e teve de recorrer a um militar, o general Teixeira Lott. Quaisquer que tenham sido as razões que levaram o PSD a aceitar essa candidatura, juntamente com a de Goulart para a vice-presidência, o fato é que em 1960 se verifica uma inversão no quadro eleitoral histórico: o civil é candidato do grupo anti-Vargas, embora a ele nunca tivesse pertencido; o militar é do partido pró-Vargas. A mudança de posições no quadro eleitoral não significa que a crise terminal do Poder Civil (que sempre deveria ser o representante do Partido da Ordem, qualquer que fosse sua facção vitoriosa) tivesse sido superada; pelo contrário. A candidatura do general Teixeira Lott indica que também o grupo pró-Vargas tinha esgotado seus quadros e que confiava em que um militar, aclamado pela posição que assumira no 11 de novembro de 1955, quando chefiara dois golpes de Estado em nome de assegurar a posse de JK, fosse suficiente para mover as massas urbanas e rurais. Já o partido anti-Vargas, ao lançar a candidatura Jânio Quadros, preferindo-a à de seu quadro mais eminente, Juracy Magalhães (que não provinha do "Ecúmeno Principal"), permitiu que se concluísse o ciclo civil da República de 1946. Ciclo repleto de lições, a primeira das quais é que o Partido da Ordem só conseguiu afirmar-se diretamente enquanto poder civil quando seus candidatos (JK e Jânio 1955/1960) vieram do "Ecúmeno Principal". Nesse quadro, a renúncia de Jânio Quadros em 1961 é conjuntural; o fato estrutural é que São Paulo e Minas voltaram a ocupar a posição de que haviam desfrutado até 1930. Ainda que o problema jamais tivesse sido
aflorado desse prisma, é com as presidências militares que se rompe, da mesma forma que em 1930, o predomínio de Minas e São Paulo. O que permitiria dizer que a normalidade política dita democrática, melhor, a estabilidade do Sistema, só se mantém quando a presidência, prêmio maior na "Loteria Eleitoral", é ocupada por alguém que venha do "Ecúmeno Principal" — na visão antiga, antes de Brasília tornar-se capital federal.
O período das presidências militares foi também aquele em que as Forças Armadas ocuparam o poder e nele se desgastaram, fosse na luta contra o que se chamou de "linha dura" — resultando no Ato Institucional nº 17, dirigido especificamente contra os que nela formavam a juízo das chefias —, fosse no combate às facções armadas do Partido da Revolução. O problema da hegemonia (para o qual chamei atenção vezes sem conta naquela época) esse, nunca foi objeto de consideração. O resultado foi que a "abertura lenta e gradual" constituiu-se numa retirada que se supôs organizada e, sobretudo, acordada, mas que na realidade apenas permitiu que aqueles que tinham sido afastados da vida político-eleitoral a ela regressassem na condição de vencedores. A volta dos vencidos — simbolicamente, a volta ao 13 de março de 1964, quando Goulart fez o famoso comício da Central, protegido pelos tanques e pela Polícia do Exército, nele pregando a reforma agrária e ouvindo Brizola e outros pregarem a revolução — apenas confundiu os atores na cena política e, sobretudo, os analistas. De parte desses, a confusão deu-
O que poderia ser o Partido da Revolução, hoje os operários juntamse em massa para festejar o 1º de maio para ouvir bandas que estão na moda e disputar prêmios valiosos.
Eduardo Knapp/Folha Imagem
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se, de início, com a datação da chamada redemocratização, jogada para 1985, quando na realidade se havia dado, como final do processo da abertura "lenta e gradual", em janeiro de 1979. No que se refere aos que voltavam triunfantes, não se deram conta de que eram, fisicamente, os protagonistas do processo pós-anistia, mas no pensamento e na ação estavam sustentando posições políticas e ideológicas que eram, em boa medida, a daqueles que haviam formado no partido anti-Vargas. Quero com isso dizer que, quando voltaram à cena, depois da anistia e especialmente depois de votada a Constituição de 1988, os derrotados em 1964/68 sustentaram posições distintas daquelas que os havia caracterizado como adversários do Partido da Ordem em 1963 e 1964. O Fundo Monetário Internacional deixou de ser a bête noire que alimentara ilusões juvenis desde 1950; exceto por alguns poucos que continuaram sustentando a necessidade de o Estado continuar tendo um papel, digamos estratégico, no desenvolvimento econômico e social, os velhos-novos protagonistas aceitaram os ideais neoliberais de privatização que se alastraram pelos seto-
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res dominantes e pela classe política como fogo em canavial seco. O esforço político-diplomático, financeiro e tecnológico para dominar o ciclo completo do átomo, o Brasil se rec u s a n d o a a s s i n a r o Tr a t a d o d e N ã o proliferação Nuclear que fora, em 1968, um diktat americano-soviético que congelara o poder mundial, foi jogado às urtigas juntamente com tudo o que se havia feito (ainda que pouco fosse) no terreno de foguetes de duplo uso, civil-espacial e militar. Jogado às urtigas, como depois admitiu alto funcionário norte-americano, atendendo às ponderações de Washington. Não estranha que quando o partido anti-Vargas encontrou defensores de suas idéias nos que formavam ideologicamente no clã varguista, o pêndulo da Política tenha parado.
Sindicalistas no poder: Luiz Marinho, ex-presidente da CUT, é hoje o ministro do Trabalho. As centrais operárias ganharam poder político antes impossível.
No fim do governo Geisel e durante todo o governo Figueiredo, um novo personagem apareceu em cena: Luis Inácio Lula da Silva e seu novo sindicalismo. Estranha história desse senhor a quem o presidente Figueiredo capitula nos primeiros dias de seu governo, enviando seu ministro do Trabalho para negociar o fim de uma greve que a Justiça do Trabalho julgara ilegal. Esse incidente, em que a presidência passou por cima da Justiça, foi ignorado pelos que analisaram o personagem. Ele deveria ser, àquela época, importante demais para que se arriscasse uma crise institucional. De fato foi — e suas candidaturas à presidência da República pelo PT marcaram uma trajetória digna de nota. A primeira observação que pode ser feita é a que atenta para o fato de que o candidato deseja ser chamado não por seu nome de batismo, mas pela alcunha com que era conhecido nas lutas sindicais... O PT surgiu como o braço político do Partido da Revolução, contra todos e tudo, tendo como diretriz estratégica (seguramente para tranqüilizar os burgueses) não definir o que de fato pretendia. A palavra de ordem era que o socialismo que defendia seria construído ao longo do processo. Na Constituinte, Lula da Silva pouco fez — além de não assinar a Constituição e desmoralizar o Congresso, dizendo que 300 de seus membros não tinham condições morais de lá estarem. A candidatura de 1980 foi apresentada como sendo a da Revolução — e por isso foi derrotada. Vistas as coisas dos pontos de observação de hoje, não hesitaria em dizer que ele fez de suas candidaturas sucessivas "greves eleitorais". Tendo sempre presente o regime econômico em que as aduanas estavam praticamente fechadas e em
que as montadoras, contra as quais jogava os trabalhadores em busca de acordos vantajosos, pouco tinham a perder negociando com o sindicato que os liderava, o líder sindical sabia que podia fazer as greves, pois um acordo, qualquer que fosse, seria conseguido. Além do que sabia que a inflação cumpriria sua parte nesse jogo, diria sinistro, em que as montadoras nunca perdiam, mas os trabalhadores sim, ao longo dos meses. O socialismo se construiria ao longo do processo. Mas na primeira candidatura com ares de "greve geral", Lula da Silva não encontrou quem pretendesse negociar, porque Collor de Mello era o homem que pregava novas idéias e anunciava novas estruturas. Na segunda candidatura, Lula já não era a do homem do Partido da Revolução, ainda que ostentasse suas bandeiras — houve quem negociasse, tanto assim que se lançou novamente em 1988, mas não mais o revolucionário "sapo barbudo" a que se referira Brizola. Em 2002, a negociação sobre os resultados da "greve eleitoral" produziu efeito: Serra, defensor do desenvolvimento, favorável a uma maior intervenção do Estado para assegurar o predomínio do chamado capitalismo nacional, não encontrou os apoios necessários à sua eleição. Muitos (e praticamente todos os que decidem em muitos e importantes setores da vida econômica) preferiram Lula da Silva. As "greves" haviam produzido os efeitos desejados e o "sindicato", o PT, mudando de rumo, incorporou-se à Ordem — esquecendo-se de que apesar de tudo ainda havia certas regras de comportamento que deveriam ser obedecidas. Lula, ele, jamais delas se esqueceu, candidato ou presidente. Com isso chegamos a 2006. A crise da política que muitos de nós sentimos na carne, decorre do fato de que não há mais "amigos e inimigos". Estão todos, de qualquer legenda e com quaisquer propósitos, irmanados na manutenção da mesma ordem que veio se consolidando depois do triunfo do neoliberalismo esposado pela socialdemocracia brasileira. Ao contrário de 1979 ou 1985, porém, o Congresso agora está desmoralizado. Há um fato que merece atenção: o eleitorado que elegeu os novos (40%) e os velhos (60%) deputados ergueu-se em uníssono para criticar o aumento de vencimentos que as lideranças decidiram para a futura legislatura. Na crise do "apagão aéreo", um cidadão traduziu muito bem a situação, ao comentar o desejo de alguns deputados de terem aviões da FAB à sua disposição para passar as festas de fim de ano em casa: "Eles não têm vergonha, mas afinal nós os elegemos, não?". Não foi na nova legislatura que se deu a aprovação desse aumento sem classificação;
pouco importa. O que cabe registrar é que o cidadão dizia simplesmente que o eleitorado elegeu um Congresso que ninguém controla e sobre cujo comportamento não se têm dúvidas. Há uma distância facilmente observável, para não dizer contradição, entre a "consciência verbal" (somos obrigados a votar e votamos neste ou naquele) e a "consciência real" (eles não nos representam e são lobos vorazes, aves de rapina). É essa contradição que deve reter nossa atenção. O afastamento entre o que a lei obriga e a consciência moral exige pode criar novas situações, desde que haja quem se disponha a explorar o vazio de poder político criado desde que os "inimigos" desapareceram e que um membro da Assembléia Constituinte disse, sem admoestações, que o Congresso só tinha pessoas de baixo nível moral. O Judiciário não escapará da crise: afinal, não deseja aumento para seus membros, os atuais e não os futuros? Quem está a salvo desse desgaste, pois não tem poder constitucional para aumentar seus vencimentos, é o presidente da República. Num clima em que a política desapareceu e em que tudo se resume à solução de assuntos administrativos, um Napoleão III tupiniquim pode estar à vista. Diferentemente do sobrinho do grande Napoleão, se der um golpe de Estado não será para fechar o Congresso nem o Judiciário; simplesmente manobrará para que a Constituição seja reformada a fim de permitir que continue no poder. A fórmula é simples: "Projeto de emenda constitucional nº.... `O artigo... da Constituição passa a ter a seguinte redação: O mandato do presidente da República é de cinco anos´". Não se falará em reeleição nem para o sim nem para o não. Simplesmente se fixará um período. Foi assim que Porfírio Díaz conseguiu, no México, com o apoio de intelectuais "científicos", instalar o "porfiriato", que cuidou do desenvolvimento associado com o capital estrangeiro. A política acabou e a administração passou a ser o objeto e o objetivo da atividade de todos os partidos, todos os dias. Assim continuará, até que a contradição entre a "consciência verbal" e a "consciência real", ao invés de paralisar a ação, sirva de acicate para quem deseje romper uma situação em que o Estado lentamente vai desaparecendo sob os olhos lânguidos dos membros dos poderes da União, que para isso mesmo são independentes e harmônicos... Acicate para quem deseje romper a situação, a fim de restaurar o Estado na plenitude de seus poderes e funções e para fazer que a política volte a ser o alimento diário de quantos ainda pretendem ser cidadãos e não apenas súditos.
Serra, defensor do desenvolvimento, favorável a uma maior intervenção do Estado para assegurar o predomínio do chamado capitalismo nacional, não encontrou os apoios necessários à sua eleição.
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À esq., mulher segura a imagem do ex-líder soviético Josef Stálin durante um ato prócomunista, realizado no Dia Nacional de Defesa da Pátria, em fevereiro. Acima, manifestação no centro de Moscou.
Olavo de Carvalho Jornalista, escritor e professor de Filosofia, mora hoje nos EUA
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Brasil que emergiu das últimas eleições pode ser resumido num conjunto de dilemas insolúveis que o novo governo, aliás velho, terá de empurrar com a barriga por mais quatro anos a não ser na hipótese remota de que um surto de genialidade se aposse dele e lhe inspire soluções. O primeiro é o dilema geral do esquerdismo hoje em dia. Esvaziada de suas antigas propostas sócio-econômicas, que nem seus líderes mais inflamados ousam ainda defender na versão originária, a esquerda mundial sobreviveu à queda da URSS e até se fortaleceu na base do puro ódio cultural (anti-ocidental, antijudaico, anticristão) e do anti-americanismo nu e cru. Esses dois item mesclam-se confusamente no slogan da "guerra contra o Império". Mas, como reconheceu o próprio teórico esquerdista maior, Antonio Negri, o Império já não é americano. É supranacional. Os pilares em que se assenta são as megacorporações e os organismos internacionais de controle (ONU, OMC,
Unesco, OMS etc.) com sua rede de ONGs espalhadas pelo mundo, subsidiadas por aquelas mesmas corporações. Esse macrosistema de poder não somente não se identifica com a soberania nacional americana, mas luta abertamente para dissolvê-la e absorvê-la numa espécie de governo mundial. É a teoria GarrisonGorbachev do "império transitório" a ser imolado no altar do "império definitivo". Na medida em que, por tradição ou automatismo, o movimento esquerdista nacional se volta contra os EUA, ele serve ao governo mundial em formação: a luta contra o "império transitório" se torna serviço prestado à construção do "império definitivo". O fato aparentemente paradoxal de que praticamente toda a esquerda mundial seja subsidiada pelas grandes fundações bilionárias integradas no projeto do governo mundial encontra aí sua explicação. Os obstáculos mais sérios à consecução desse projeto são as soberanias nacionais dos EUA e de Israel. Um "antiimperialismo" voltado contra esses dois pólos é tudo o que o Império precisa para
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O segundo dilema insolúvel que define a posição do nosso governo na ordem da realidade é o drama da violência nacional crescente, que não pode de maneira alguma ser reprimida sem trazer danos a um dos mais queridos parceiros ideológicos do governo, a narcoguerrilha colombiana.
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consolidar-se às custas de milhões de idiotas úteis que imaginam combatê-lo. De outro lado, a luta cultural antiocidental, incentivada e subsidiada pelos próprios condutores do processo de globalização imperial, não tem resultado em fortalecer o Estado leigo (supostamente destinado a constituir o modelo do Estado mundial), mas em debilitá-lo em proveito da invasão islâmica. Quanto mais as sociedades ocidentais se afastam dos princípios da civilização judaico-cristã, mais se tornam incapazes de defender sua identidade contra o assédio da "alteridade" islâmica. Não só as nações se enfraquecem, mas o próprio Estado mundial, erguendo-se sobre os escombros das identidades nacionais e tradições religiosas, já nasce desprovido de princípios e valores capazes de resistir à maré montante do Islam globalizado. O dilema da esquerda mundial, que nem seus próceres mais destacados parecem ter enxergado claramente até o dia de hoje, consiste em que todos os seus esforços antiamericanos e anti-ocidentais refluem em benefício do projeto imperial global e, a mais longo prazo, da ascensão islâmica, que traz em seu bojo valores simetricamente opostos àqueles representados pela rebelião cultural esquerdista. Nosso governo, sendo nada mais que um pseudópodo do movimento esquerdista internacional, vivencia esse dilema, aparentemente sem ter dele a menor consciência. Isto significa que, faça ele o que fizer, sua única função histórica terá sido a de servir a forças cujo alcance lhe escapa por completo. Um papel especialmente cômico, nessa farsa inconsciente, parece estar reservada aos "nacionalistas" das Forças Armadas, que, ansiosos para integrar-se na "guerra do povo inteiro" contra o fantasma do imperialismo americano, se tornarão cada vez mais idiotas úteis a serviço do "império definitivo", a não ser na hipótese quase impensável de que parem de se autohipnotizar com slogans patrióticos deslocados da situação real, comecem a prestar atenção nas minhas análises e adquiram ao menos um vislumbre de qual é a guerra e qual é o inimigo. O segundo dilema insolúvel que define a posição do nosso governo na ordem da realidade é o drama da violência nacional crescente, que não pode de maneira alguma ser reprimida sem trazer danos a um dos mais
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queridos parceiros ideológicos do governo, a narcoguerrilha colombiana. Mas, se conseguimos sobreviver enquanto a taxa de homicídios no território nacional crescia para cinqüenta mil por ano, por que não poderemos, intoxicados de desconversas e evasivas, suportar mais cem mil ou duzentos mil? O brasileiro, afinal, parece ser mesmo o povo mais facilmente governável do universo. O terceiro dilema é o das relações com os EUA. Esticando ao máximo a relativa independência de política econômica e poder político, o governo tem conseguido, até agora, conciliar as exigências do capitalismo internacional com as do comunismo continental. O primeiro sinal de que essa coincidentia oppositorum começa a fazer água veio na recusa oficial, polida mas firme, de realizar a mais linda esperança da diplomacia Bush, a de que o Brasil consentisse em servir de freio às ambições continentais de Hugo Chávez. Da minha parte, sempre disse e escrevi que isso era esperança utópica, que os compromissos de Lula com o Foro de São Paulo (e portanto com Hugo Chávez) eram mais profundos e sólidos do que a CIA podia ter soprado aos ouvidos do presidente Bush. O fracasso da missão Gonzales no Brasil, por mais disfarçada que esteja por trás de sorrisos e desconversas, foi um teste de realidade das idéias de George W. Bush sobre a América Latina, e elas não passaram no teste. Mas, se isso cria um problema para os EUA, cria outro maior para o governo brasileiro, cuja carapaça de hipocrisia acaba de ser furada a olhos vistos, embora os assessores de Bush façam de conta que não perceberam nada. Nossa melhor esperança de manter boas relações com os EUA reside em fazer alguma macumba para que o presidente Bush consinta em ingerir novas doses de anestésico diplomático e, redobrando sua imunidade aos fatos, continue sonhando que o Brasil é seu grande aliado contra Chávez. A sorte do Brasil, nesse ponto, depende de saber até onde Lula poderá continuar realizando prodígios de elasticidade entre o compromisso socialista e o compromisso capitalista. Dilemas insolúveis são horríveis para quem os padece, mas, para o observador que deseja compreender a situação, são preciosos. Num jogo de xadrez, como é que você faz para saber qual o próximo lance de um jogador? Você começa por analisar onde é que as peças dele estão travadas pela posição das peças do
Antonio Scorza/AFP Photo
adversário, isto é, você exclui as jogadas impossíveis. Em política é a mesma coisa. Exclua as jogadas impossíveis e saberá quais as possibilidades que restam. Mas há uma diferença: o enxadrista nunca estraga de propósito o próprio jogo. Os políticos, quando se vêem travados por todos os lados, às vezes não hesitam em arriscar as jogadas impossíveis, ou porque não sabem que são impossíveis, ou porque o suicídio nacional lhes parece o caminho da salvação. Se o presidente Lula ainda for sensato o bastante para evitar essa hipótese, tudo o que lhe restará serão quatro anos de desconversa, recheados de "programas sociais", leis inócuas e muita propaganda. Ele terá falhado àquilo que considera sua "missão histórica", mas, afinal, ele já não parece ligar muito para isso. A outra hipótese, a de uma iluminação súbita que lhe inspire soluções geniais e imprevistas para os quatro dilemas apontados, me parece bastante remota.
Se os liberais e conservadores não tivessem cuidado apenas de emascular-se ideologicamente e de reduzir-se ao estatuto de auxiliares da esquerda light, este seria o seu grande momento. Na luta contra um adversário preso numa rede de impossibilidades, eles teriam todas as chances. Mas para aproveitá-las precisariam antes tratar de existir como força ideológica definida, e isto eles parecem não querer de maneira alguma. Quando olho para trás e vejo que desde 1993 tenho acertado em todas as minhas previsões políticas, quando nenhum outro analista nacional pode se gabar de feito idêntico, e por outro lado observo a relutância suspeitosa que tantos líderes da nossa "direita" opõem em seguir os meus conselhos, a única conclusão que posso tirar disso é que o seu futuro, como coletividade, não me parece muito brilhante. Resta apostar nas exceções individuais.
Nossa melhor esperança de manter boas relações com os EUA é que Bush continue sonhando que o Brasil é o seu grande aliado contra o presidente Hugo Chávez.
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Pequeno manual prático da decadência (recomendável (recomendável em em caráter caráter preventivo...) preventivo...)
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Divulgação
Paulo Roberto de Almeida Doutor em Ciências Sociais,professor e escritor (pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)
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conceito de decadência está histórica e usualmente associado às imagens — e também às realidades — de declínio econômico, de disfuncionalidade política, de regressão social, de queda relativa nos padrões de vida, de desordem institucional, de involução moral, quando não ao caos gerador de conflitos exacerbados e possível elemento-motor ("gatilho") do colapso de toda uma sociedade. No plano histórico, é costume citar os precedentes dos impérios romano, bizantino, chinês, otomano ou britânico como exemplos ilustrativos de decadência — processos que, por vezes, se arrastaram durante décadas, quando não séculos —, levando essas sociedades a fases de crise sistêmica ou de estagnação total, precipitando-as em "colapsos" mais ou menos prolongados e ao seu desaparecimento ou, até, à dominação por povos mais dinâmicos e empreendedores, alguns deles, aliás, suplantando os exemplos citados que tinham brilhado em épocas anteriores. Numa perspectiva recente, costuma-se citar a Grã-Bretanha contemporânea, isto é, pós-imperial e pós-Segunda Guerra, e até mesmo a Argentina pós-1930 como exemplos reais e acabados de processos lentos e agônicos de decadência econômica, pelo menos durante algumas décadas. Exemplos eloqüentes de decadência certamente não faltam nos livros de história. No entanto, não é essa a percepção que possam ter tido as sociedades referidas em relação ao seu próprio itinerário histórico, isto é, os povos e protagonistas contemporâneos dos processos gerais descritos sumariamente acima. Muitas vezes, o declínio econômico e a decadência política se dão em meio a extraordinários surtos de vigor artístico e de fervor intelectual, com intensos debates e mobilização social perpassando todas as categorias e classes da sociedade em questão. O estado de "regressão" nem é percebido como tal, uma vez que: a economia consegue ainda produzir em condições quase "normais"; as trocas materiais e os intercâmbios intelectuais se fazem ainda pelos canais habituais; os indicadores objetivos de padrões de vida continuam a apresentar traços de "progresso" — ainda que de recuo relativo na perspectiva internacional ou regional — e que a sociedade ainda não soçobrou na "anomia" e na "desorganização", a que são normalmente associados essas noções de decadência ou de declínio. O fato é que a decadência pode ter elementos difusos de todos esses processos citados acima, mas pode não ser percebida como tal pelos pró-
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prios integrantes da sociedade em questão. O sentimento geral dos cidadãos pode ser, simplesmente, de um certo malaise, de um mal-estar vago e indefinido, partilhado por diferentes estratos sociais e percebido como tal por intelectuais, mas raramente expresso de forma direta e cabal nos discursos das autoridades ou traduzidos nas propostas de ação por candidatos alternativos ao poder político. "Entrase" em decadência muitas vezes sem o saber, como aquele personagem de Molière, que fazia prosa involuntariamente. Proponho-me, neste curto ensaio analítico, traçar os elementos principais de uma pequena radiografia da decadência, de maneira a subsidiar, talvez, diagnósticos mais precisos de situações concretas que possam preocupar os leitores eventuais deste "manual" de identificação dos sinais precursores de uma decadência anunciada (não necessariamente percebida). Assim, pode-se saber que um país, ou uma sociedade, está em decadência quando: 1. O sentimento de mal-estar se torna generalizado na sociedade, ainda que possa ser difuso. 2. Os avanços econômicos são lentos, ou menores, em relação a outros povos e sociedades. 3. Os progressos sociais são igualmente lentos ou repartidos de maneira desigual. 4. A lei passa a não ser mais respeitada pelos cidadãos ou pelos próprios agentes públicos. 5. As elites se tornam autocentradas, focadas exclusivamente no seu benefício próprio. 6. A corrupção é disseminada nos diversos canais de intermediação dos intercâmbios sociais. 7. Há uma desafeição pelas causas nacionais, com ascensão de corporatismos e particularismos. 8. A cultura da integração na corrente nacional é substituída por reivindicações exclusivistas. 9. A geração corrente não se preocupa com a seguinte, nos planos fiscal, ambiental ou outros. 10. Ocorre a degradação moral ou ética nos costumes, a despeito mesmo de "avanços" materiais. Algumas considerações rápidas sobre cada um dos elementos listados, sumariamente, acima são necessárias, se quisermos que este "minitratado" da decadência possa ser efetivamente utilizado como uma espécie de manual para sua prevenção ou para a eventual corre-
ção de curso. Serei, tanto quanto possível, conciso, sem ater-me a exemplos conhecidos em processos concretos, mais ou menos identificados pelo leitor ocasional. 1. Malaise generalizado e difuso na sociedade. Na verdade, o mal-estar que costuma atingir sociedades e povos em decadência efetiva é mais um resultado dos próprios processos de "involução" já em curso, do que um sinal precursor desse itinerário "regressista". De fato, o sentimento de incerteza quanto ao futuro costuma perpassar de maneira difusa os diferentes estratos sociais mobilizados nas atividades correntes da sociedade em questão. A literatura consegue captar, antes mesmo de diagnósticos "sociológicos", essa sensação de desconforto em relação aos padrões vigentes, que é também vista e interpretada nas artes em geral, por meio de peças e demonstrações de "ruptura" em relação às
A polícia de Calcutá dispersa manifestantes antibritânicos em 1940, crescia o desejo de independência da Índia. Exemplos de decadência não faltam nos livros de história.
Reprodução
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A decadência não significa, necessariamente, retrocesso econômico absoluto ou mesmo uma deterioração das condições prevalecentes no plano da organização social da produção. Podem ocorrer avanços tecnológicos, científicos e melhoras nos padrões vigentes de produção.
normas sociais comumente aceitas e "consumidas" pelos estratos sociais incluídos nas transações correntes. O sentimento de fi n d'une époque, ou de esgotamento de um "ciclo", é geralmente percebido pelos espíritos mais argutos, mas o desconforto com o "estado reinante" das coisas se dissemina de modo generalizado em camadas mais amplas da sociedade. Ocorre uma desafeição em relação à cultura predominante, mas não se consegue propor ou viabilizar padrões ou modelos alternativos que sejam eficientes ou implementáveis. Os custos da transição para "algo mais racional" são considerados por todos como muito elevados, em vista dos pactos vigentes, e a sociedade se acomoda na resignação e no déjà vu. 2. Avanços econômicos lentos, em perspectiva comparada. A decadência não significa, necessariamente, retrocesso econômico absoluto ou mesmo uma deterioração das condições prevalecentes no plano da organização social da produção. Ao contrário, podem até ocorrer avanços tecnológicos, progressos científicos e melhoras nos padrões vigentes de produção, tendo em vista capacidades técnicas e habilidades gerenciais já acumuladas pela sociedade. Uma sociedade pode avançar, em suas próprias realizações, e mesmo assim ser ultrapassada relativamente por outras, mais dinâmicas, empreendedoras e inovadoras. O declínio relativo é geralmente o resultado de uma queda nos índices de produtividade, a perda progressiva de competitividade, um recuo nos espaços anteriormente ocupados no âmbito internacional e um lento movimento para escalões inferiores em rankings setoriais de classificação de países. Os processos de divergência entre os povos e sociedades resultam, geralmente, de longas fases de crescimento (ou falta de), mais do que de altas taxas ocasionais de expansão do produto. O desenvolvimento pode ocorrer pari-passu a baixas taxas (mas sustentadas) de crescimento econômico, sendo que expansões rápidas podem ser contrarrestadas por surtos inflacionários ou crises sistêmicas que produzem perdas do produto social e erosão do poder de compra da moeda nacional. O elemento propulsor do processo de desenvolvimento são os ganhos de produtividade, que produzem, no registro histórico, os fenômenos de convergência ou de divergência entre os povos e economias nacionais. As sociedades humanas progrediram muito lentamente durante os milhares de anos
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de revolução agrícola neolítica e civilizacionalurbana, para conhecer, dois séculos e meio de rápidos progressos nos indicadores de bem-estar a partir da primeira e da segunda revolução industrial. A partir desta, os progressos se tornaram contínuos, autogerados e induzidos pelo próprio avanço científico-tecnológico anterior, configurando aquilo que, em termos marxistas, poderia ser chamado de "modo inventivo de produção". Este foi, antes de qualquer outra, uma peculiaridade das sociedades ditas "ocidentais", mas tende a se disseminar ao conjunto do planeta, com o término dos obstáculos políticos ao processo de globalização. Nem todas as sociedades conseguem replicar ou reproduzir, mesmo por mimetismo, o padrão de progresso tecnológico do Ocidente desenvolvido. Mas todas elas se encontram, hoje, medianamente dotadas de condições mínimas para fazê-lo, a partir dos progressos dos meios de comunicação e de difusão dos conhecimentos científicos (amplamente disponíveis nos veículos existentes, à diferença do know-how e da tecnologia proprietária, estes bem mais restritos). O fato de uma sociedade recuar economicamente, ainda que de modo relativo, pode ser explicado, tão simplesmente, por sua incapacidade em dotar os seus cidadãos dos requisitos mínimos de ensino formal e de educação elementar, suscetíveis de os converterem em "absorvedores" do saber técnico já disponível universalmente nos canais abertos de difusão de conhecimento. Não se trata aqui, necessariamente, de padrões de ensino pós-graduado ou especializado, mas basicamente da existência de ensino fundamental de boa qualidade para o conjunto dos cidadãos. 3. Distribuição desigual dos lentos progressos sociais alcançados. Comportamentos "rentistas", isto é, apropriação de bens públicos por grupos organizados que têm acesso aos canais oficiais de distribuição de recursos, geram um desestímulo à inovação e à produção pelos agentes econômicos privados. Isso pode ocorrer, e geralmente ocorre, no caso da disponibilidade de abundantes recursos naturais — terras, minérios, commodities primárias — que passam a ser explorados por via de algum tipo de organização estatal, mesmo indireta. Fala-se da "maldição do petróleo", por exemplo, como um caso típico de ganhos fáceis apropriados de maneira desigual por elites que se organizam para "redistribuir" esses recursos abundantes, o que desvia a atenção dos agentes privados de investimentos em atividades alternativas: toda a atenção passa a ser focada na "captura" da renda disponível na economia nacional.
Mesmo na ausência de uma fonte abundante de recursos naturais, comportamentos rentistas podem disseminar entre os estratos dominantes (ou dirigentes) na sociedade, se a regulação institucional é feita mais por via estatal do que por meio da própria sociedade. O Estado sempre constituiu um poderoso meio de redistribuição da riqueza social para os grupos que o controlam e manipulam em seu favor. Não há aqui nenhuma prevenção a priori contra o Estado, uma vez que ele e necessário mesmo para criar o laissezfaire, ou seja, lutar contra os trusts e cartéis, assegurar a competição, garantir o cumprimento dos contratos e, de forma geral, defender os direitos de propriedade. Ocorre, porém, que o Estado é também um forte indutor de redistributivismo regressivo, isto é, o recolhimento compulsório de recursos de todos os cidadãos, produtores e consumidores, e o seu "redirecionamento" segundo critérios políticos determinados. Em todos os casos de declínio conhecidos, o Estado serviu precisamente para esse tipo de redistribuição perversa dos recursos públicos, gerando o fenômeno conhecido pelos economistas como crowding-out, isto é, a captura da poupança privada pelo próprio Estado e pelos rentistas profissionais e sua apropriação pelo próprio Estado (e seus amigos), o que provoca deseconomias de escala e erosão do investimento produtivo. Os grupos politicamente mais bem articulados conseguem acesso aos planejadores e legisladores do orçamento público, deixando ao relento os setores menos organizados. Isso geralmente implica em concentração de renda e ausência de um mercado interno dinâmico. Os exemplos de declínio e de estagnação coinci-
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dem, justamente, com o que Veblen chamaria de "consumo conspícuo" das elites, em total indiferença em relação ao conjunto dos cidadãos. Não se pense, por fim, que tudo se faz em benefício do "grande capital monopolista" e em detrimento da "classe trabalhadora". Sindicatos são máquinas organizadas para criar escassez de mão-de-obra e para produzir desemprego, atuando em perfeita sincronia (nem sempre funcional, é verdade) com os sindicatos de patrões, com vistas a extorquir recursos do resto da sociedade desorganizada. Viceja, nos casos típicos de declínio econômico prolongado, uma espécie de "pacto perverso", pelo qual ambos sindicatos entram em conluio — algumas vezes de forma involuntária ou até inconsciente — em favor de seus ganhos respectivos, repassando os custos para o resto da sociedade. A desigualdade distributiva nem sempre é "aristocrática"...
O declínio relativo é geralmente o resultado de uma queda nos índices de produtividade e a perda progressiva da competitividade.
4. Não acatamento da lei pelos cidadãos e pelos próprios agentes públicos. A decadência, como já afirmado, nem sempre se traduz em pobreza material, ao contrário, pois sociedades decadentes são, igualmente, sistemas de relativa abundância, pelo menos para os privilegiados. Mas, a decadência verdadeira sempre implica em miséria moral, a começar por um sistemático, no começo sutil, depois disseminado, desrespeito à lei e às boas normas de convivência. Uma sociedade não começa a decair com o aumento da delinqüência comum e com a expansão da criminalidade de baixa extração, mas justamente com o desprezo pela lei por parte dos poderosos e dos próprios encarregados de manter a ordem. Sociedades patrimonialistas são naturalmente mais propensas a esse tipo de corrupção moral, como evidenciado na trajetória do império Otomano, mas nem mesmo sistemas "tecnocráticos" estão imunes a esse tipo de evolução involutiva, se é possível este tipo de trajetória. O império chinês, com seu imenso corpo de mandarins bem treinados, talvez tenha conhecido itinerário semelhante, antes mesmo de o país ser invadido e humilhado pelos imperialistas ocidentais (e depois japoneses). O desrespeito à lei, ou mesmo a contravenção pura e simples por parte dos poderosos, constitui o traço mais visível do declínio moral de uma sociedade. Quando as suas elites, em especial o seu corpo dirigente, recorrem a expedientes escusos, quando não a práticas claramente criminosas, para extrair benefícios para si, pode-se constatar que a
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sociedade caminha célere para a sua decadência. Não se deve, porém, confundir, artifícios ilegais, ou no limite da legalidade, empregados por algumas elites econômicas — como caixa dois, elisão ou evasão fiscal ou ainda pagamentos por fora — como representando necessariamente sinônimo de decadência. O setor produtivo pode ser especialmente competitivo e gerencialmente capaz, apenas que penalizado por um Estado voraz, por dirigentes políticos de comportamento predatório, sendo levado a utilizar-se do recurso a esse tipo de expediente como uma forma de "defesa patrimonial". É, aliás, o que fazem a maioria dos cidadãos que buscam evadir o fisco, uma vez que adquiram a consciência de que os impostos pagos diretamente e os tributos recolhidos indiretamente não retornam proporcionalmente sob a forma de serviços públicos. A ilegalidade se dissemina paulatinamente na sociedade e se converte em uma "segunda natureza" do cidadão comum e do empresário: ninguém se "arrisca" a ser totalmente honesto, uma vez que isto representaria a inviabilidade do seu negócio ou a "extração compulsória" seria demais onerosa no plano das rendas individuais. Pouco a pouco, a corrupção e a contravenção se instalam em todos os poros da sociedade e ela, sem perceber, caminha rapidamente para o que chamamos de decadência. 5. Elites distantes da sociedade e focadas no seu benefício próprio. Esta é uma outra manifestação do mesmo comportamento descrito acima, apenas que os meios são absolutamente legais, ainda que ilegítimos, e redundam quase sempre nos mesmos efeitos já referenciados no rentismo perverso e no redistributivismo desigual. Responsáveis políticos se ocupam não tanto de legislar para a sociedade, mas em causa própria. Os meios passam a absorver uma proporção crescente dos recursos voltados para determinados fins. Isto geralmente se dá no setor legislativo, mas pode perfeitamente ocorrer nos meios judiciários e, igualmente, em corporações de ofício que se organizam burocraticamente no âmbito do poder executivo. A representação política deixa de constituir um mandato conferido pela sociedade para o desempenho das funções que lhe são próprias para converter-se em um fim em si mesmo. Esses traços de comportamento não são exclusivos da representação política, embora eles sempre se reproduzam no estamento político. Elites rentistas, de modo geral, desenvolvem
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essa indiferença em relação à sociedade, cuja simbologia mais famosa (ainda que provavelmente equivocada) é historicamente representada pela frase de Maria Antonieta sobre os brioches que o povo deveria comer, no lugar do pão comum. Elites aristocráticas do ancien Régime, na França e na Rússia czarista, foram em grande medida responsáveis pela desafeição do povo em relação às suas elites, contribuindo para a derrocada dos respectivos regimes políticos ao se operar um claro divórcio entre suas concepções do mundo. O apartheid social, mais até no plano mental do que no âmbito material, costuma ser construído por minorias ativas, nem todas elas privilegiadas, mas sempre elitistas em relação à massa da sociedade. Por vezes, uma elite "subversiva" se apossa do poder e passa a exibir os mesmos traços de comportamento que o das elites antes privilegiadas, numa típica reprodução da fábula contida em Animal Farm, segundo a qual "todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros".
A ilegalidade se dissemina paulatinamente na sociedade e se converte em uma 'segunda natureza' do cidadão comum e do empresário: ninguém se 'arrisca' a ser totalmente honesto, uma vez que representaria a inviabilidade do seu negócio.
6. Corrupção disseminada nas transações sociais de maneira geral. O cimento mais poderoso em todas as sociedades organizadas é a confiança: não só na palavra dada, no plano individual, mas também na moeda, na observância da lei em caráter impessoal, no cumprimento dos contratos e, sobretudo, na certeza da punição em caso de ações "desviantes". O que mantém o poder de compra de uma moeda, por exemplo, não é tanto a força absoluta de uma economia, mas a confiança de que seu valor de face não será abalado por atos arbitrários das autoridades emissoras, medidas intervencionistas que afetem sua liquidez ou alguma ameaça de confisco, mesmo indireto. A incerteza jurídica — por vezes trazida pelos próprios juízes, que não se contentam em interpretar a lei, preferindo criá-la, ou colocála a serviço de alguma causa "social" — está na origem do desrespeito aos contratos e, portanto, no aumento dos custos de transação. Setores da sociedade passam a desenvolver formas próprias, geralmente informais, de intercâmbio, que podem englobar um volume crescente de atividades. Sociedades decadentes são, geralmente, sociedades nas quais a informalidade recobre grande parte da população economicamente ativa e uma fração significativa do produto social. Um Estado "extrator" pode também ser o responsável direto pela "expulsão" do mercado formal de agentes econômicos privados que não encontram nenhuma vantagem em se colocar à margem da legalidade, mas que não conseguem se enqua-
Captura de imagem
Vídeo mostrou Maurício Marinho, chefe do Departamento de Contratação e Administração de Materiais dos Correios, recebendo propina de R$ 3 mil. O desrespeito à lei, ou mesmo a contravenção pura e simples por parte dos poderosos, constitui o traço mais visível do declínio moral de uma sociedade. Nas fotos, à esq. abaixo, o publicitário Duda Mendonça; no centro, o publicitário Marco Valério, suspeito de ser o operador do Mensalão; à direta, de cima para baixo, Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT; Silvio Pereira, ex-secretáriogeral do PT; e o ex-deputado Roberto Jefferson, do PTB-RJ.
Dida Sampaio/AE
Joedson Alves/AE
Captura de imagem Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo
Vidal Cavalcante/A
Dida Sampaio/AE
Celso Junior/AE
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drar nas regras existentes. Na verdade um cipoal de regulamentos estabelecido justamente para vigiar o cumprimento de uma legislação barroca no plano regulatório. A sociedade como um todo passa a se acostumar com a modalidade informal de se completarem as transações e, ao fim e ao cabo, os intercâmbios legais passam a cobrir uma fração cada vez menor do conjunto das trocas sociais. A sociedade de "desconfiança" afeta a todos os participantes do mercado, gerando graus crescentes de anomia e de deterioração dos costumes básicos. A sociedade em questão está "pronta" para aprofundar seu processo de decadência. 7. Avanço dos corporatismos e particularismos, em detrimento das "causas nacionais". A fragmentação da representação política e social nos diversos corpos constitutivos da sociedade cria uma colcha de retalhos de difícil administração institucional. Para que grandes reformas estruturais se façam — e toda sociedade requer, periodicamente, adaptação às novas condições ambientais externas e às suas próprias transformações internas, demográficas e outras —, as diferentes partes da sociedade precisam estabelecer um pacto de convivência, no qual todos cedem um pouco para que as mudanças possam ser implementadas. A perseguição de objetivos particularistas por grupos sociais organizados, geralmente com vistas a se alcançar metas setoriais e exclusivas, inviabiliza qualquer "projeto nacional" digno desse nome (ainda que essa figura seja antes um mito do que uma realidade, pois "projetos" bem executados geralmente resultam da ação decisiva de uma pequena elite de "iluminados", quando não de um líder carismático atuando como estadista). O fato é que os processos de decadência também são caracterizados pela existência de "projetos fragmentários", condizentes com o perfil já fortemente sindicalizado dessa sociedade. Não é incomum a representação política passar da dominância de próceres cosmopolitas, da elite, mas dotados de uma visão do mundo não provinciana, para "delegados de categoria", eleitos por um grupo de interesse restrito (de caráter sindical, setorial ou religioso). O processo legislativo se divide então em uma miríade de demandas particularistas, que esquartejam o orçamento nacional e transformam o planejamento público em uma assemblagem de partes heteróclitas. Congela-se a possibilidade de atuar nas grandes causas, pois o mercado político converte-se num bazar de compra e venda de projetos setoriais e fragmentários. Um indi-
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cador fiável dessa tendência é dada por meio de consulta a um calendário-agenda: a sociedade estará tão mais próxima da decadência quanto mais dias do ano são dedicados a homenagear categorias profissionais...
O processo legislativo se divide então em uma miríade de demandas particularistas, que esquartejam o orçamento nacional e transformam o planejamento público em uma assemblagem de partes heteróclitas. Congela-se a possibilidade de atuar nas grandes causas.
8. Grupos sociais particulares pretendem distinguir-se do conjunto da sociedade. A chamada "identidade nacional", um conceito difuso e freqüentemente mal interpretado, constitui um dos traços mais conspícuos da psicologia de massas. Uma sociedade dinâmica ostenta um forte sentimento de inclusividade e de identificação com os símbolos nacionais, sejam eles realidades históricas tangíveis, sejam eles simples mitos criados para fortalecer o processo de Nation building. Em qualquer hipótese, o sentimento de pertencimento ( status de appartenance ou membership ) a um corpo social ou humano relativamente homogêneo é um poderoso cimento da identidade nacional, o que não impede, obviamente, particularidades regionais, traços étnicos ou especificidades culturais próprias a sociedades complexas, racialmente diversas e dotadas de origens "multinacionais". O ideal de toda sociedade integrada e orgulhosa de sê-lo é, justamente, conseguir passar do estágio simplesmente "multinacional" para o de "sociedade multirracial", o que deveria ser o objetivo de toda comunidade inclusiva, uma vez que tal característica destrói as próprias bases de qualquer manifestação de racismo ou apartheid. A desafeição em relação à fusão dos particularismos raciais ou culturais no mainstream social e humano nacional enfraquece a noção de identidade nacional e reforça a noção artificial de aparteísmo. Este tipo de divisor precisa ser construído politicamente, uma vez que se adota como suposto básico a unidade fundamental do gênero humano. A divisão é, geralmente, obra de ativistas e militantes de uma causa que se julga legítima, cujas raízes encontram fundamentação histórica em opressões seculares, que se pretende transplantar para o presente, como forma de preservar antigas particularidades raciais, lingüísticas ou religiosas, que já estavam prontas a se fundir no poderoso molde nacional. A conformação política de uma cultura distinta da nacional reforça manifestações de racismo ao contrário, pois que as propostas são geralmente feitas para eliminar supostos focos de "racismo". O apartheid também pode ser construído por minorias...
9. Irresponsabilidade intergeracional, nos terrenos fiscal ou ambiental, entre outros. O desejo de preservar o status quo, ou a inconsciência quanto à constante necessidade de ajustes e adaptações às condições "ambientais", nacionais ou internacionais, sempre cambiantes, fazem com que gerações do presente eventualmente atuem de maneira irresponsável em relação àquelas que as sucederão. Historicamente, o problema sempre esteve associado à depredação do meio ambiente e à extinção de espécies animais, alterando o equilíbrio natural e ameaçando a sustentabilidade de sistemas econômicos inteiros. Contemporaneamente, a questão tende a se revestir de características econômicas bem marcadas, tendo a ver com a trajetória avassaladora do Estado moderno e sua voracidade fiscal, não em benefício próprio, obviamente, uma vez que o Estado é uma entidade impessoal, mas em favor de grupos ou categorias dispondo de condições de acesso e de manipulação dos mecanismos de intervenção pública. Nos casos mais graves, o conjunto da sociedade pode atuar de maneira irresponsável, ao sustentar escolhas que representam uma clara preferência pelo bem-estar presente, em detrimento do amanhã. Seja nos esquemas de previdência social, seja nas instituições educacionais, ou ainda em matéria de déficits orçamentários e dívida pública, opções erradas e a visão imediatista dos responsáveis políticos, sustentados pela inconsciência da maioria, criam pesadas hipotecas de médio e longo prazo que deverão, em algum momento, ser resgatadas pelos sucessores, aqui entendidos como o conjunto da sociedade de uma ou duas gerações mais à frente. O declínio pode até não ser visível no próprio momento das decisões, mas o que se está fazendo, na verdade, é "contratar" a decadência futura. 10. Degradação ética e moral, independentemente de "progressos" técnicos. Edward Gibbon, em seu justamente celebrado História do Declínio e Queda do Império Romano, tende a ver a decadência de Roma como o resultado da perda de "valores cívicos" por parte dos cidadãos do império, a começar pelos patrícios, que delegaram aos bárbaros tarefas que eles deveriam ter assumido diretamente. Ele também atacou a influência do cristianismo, como possível fator de afastamento do antigo espírito marcial e guerreiro, que tinha feito, no início, o sucesso da república e do império. Seja como for, a perda de objetivos claros quanto ao futuro, certa resignação em face das dificuldades do presente e
a busca de prazeres imediatos em lugar da frugalidade produtiva e empreendedora podem ser sinais precursores da decadência. Curiosamente, nenhum dos exemplos históricos tidos como ilustrativos ou emblemáticos desse tipo de processo pode ser considerado um insucesso absoluto na cultura ou nas artes. O vigor da produção cultural continua a todo vapor no momento mesmo em que essas sociedades passam a enfrentar problemas na economia e na inovação. Não há um elemento singular ou único que "anuncie" a decadência, mas um conjunto de comportamentos sociais e de reações que indica forte deterioração da solidariedade social e uma crescente anomia em relação aos valores básicos da sociedade. A falta de confiança nas instituições políticas e a forte desconfiança das motivações de outros grupos sociais fazem com que líderes e liderados não mais se sintam comprometidos com o mesmo conjunto de valores, passando a ocorrer manifestações de introversão e de egoísmo que logo superam a identificação com a pátria e a nação. Em síntese, existe um "espírito" de decadência quando os setores produtivos, em especial os empresários mais politicamente ativos, se mostram resignados ante a presença avassaladora do Estado, que lhes tolhe os movimentos, impõe regras e lhes retira a substância da atividade econômica, que é o lucro e os excedentes para investir. Existe decadência quando os intelectuais e os universitários, de uma forma geral, se conformam ante o culto à ignorância exibido por certos grupos sociais ou líderes supostamente carismáticos ou "salvacionistas". Existe decadência quando autoridades nacionais, a começar pelos encarregados da preservação da ordem jurídica e institucional, deixam de lado suas obrigações profissionais para cuidar de prosaicos interesses pessoais, pecuniários antes de tudo. Existe decadência quando o cidadão comum não vê qualquer motivo para preservar o patrimônio coletivo, demonstrando total inconsciência quanto ao dever de respeitar a herança das gerações precedentes e a necessidade de repassar às que seguirão a sua própria um ambiente melhor do que aquele recebido dos ancestrais. Em suma, os sinais materiais, ou externos, da decadência nem sempre são os que contam na avaliação dos "progressos" dessa inacreditável marcha para trás na jornada das sociedades. A insensatez quanto aos rumos da história também se manifesta, antes de tudo, por uma pura e simples inconsciência. Manuais práticos de decadência podem ser um preventivo útil na inversão da trajetória. Basta saber consultá-los...
Historicamente, o problema sempre esteve associado à depredação do meio ambiente e extinção de espécies animais, alterando o equilíbrio e ameaçando a sustentabilidade do sistema econômico.
Não há um elemento singular que 'anuncie' a decadência, mas um conjunto de comportamentos sociais e de reações que indica forte deterioração da solidariedade social e uma crescente anomia em relação aos valores básicos da sociedade.
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Na economia, ainda mais do mesmo Divulgação
Roberto Fendt Economista, vicepresidente do Instituto Liberal, sócio-diretor da Adef Associados e colaborador do Diário do Comércio
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uaisquer que sejam os resultados das votações dos diplomas legais que conformam o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o ano de 2007 não apresentará grandes mudanças em relação à velocidade de cruzeiro da economia observada no primeiro mandato do presidente Lula. Uma das razões, a mais óbvia, é que chegamos a março e nada ocorreu até agora; restam três trimestres até o final do ano. A segunda é o sentimento de que o PAC, embora positivo no sentido de sinalizar uma intenção de retomada do crescimento, em si é insuficiente. Teria sido necessário, se o objetivo é realmente "desamarrar a economia", no dizer do senhor presidente, que grandes mudanças institucionais também tivessem sido int ro d u z i d a s . E s s a s mudanças, contudo, não são palatáveis nem para os atuais
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detentores do poder, nem para o sistema político como um todo. Para que a economia deslanchasse em 2007 seria necessário, primeiro, remover os gargalos de infra-estrutura que limitam o crescimento. Isso não ocorrerá em 2007. De fato, as duas principais restrições ao crescimento sustentado de longo prazo não foram aliviadas no primeiro mandato: a primeira é dada pela oferta de energia, que limita na prática o crescimento a, no máximo e esporadicamente, 5% em um dado ano. A segunda é a asfixiante carga tributária que, a despeito dos vaticínios de que não pode aumentar mais, encontra meios e formas de todo ano aumentar mais um pouquinho. A taxa de crescimento média dos quatro anos do primeiro mandato de FHC, de 2,6%, já em si pífia, repetiu-se no primeiro mandato do presidente Lula, a despeito da promessa
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o governo do PT começou em 2003 com o PIB crescendo 0,54% - havia aquela história da herança maldita - e fechou 2006 com um crescimento pífio de 2,9%.
O grande desafio de 2007, como de resto já vem sendo desde a Constituição de 1988, é restabelecer as condições mínimas de governabilidade das contas públicas.
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desse último de proporcionar um "espetáculo do crescimento" em seu primeiro mandato, que terminou tão melancolicamente como iniciou: o governo do PT começou em 2003 com o PIB crescendo 0,54% — havia aquela história da herança maldita — e fechou 2006 com um crescimento pífio de 2,9%. Ao longo dos quatro anos crescemos à taxa média de 2,6% ao ano. Descontado o já hoje pequeno crescimento da população, de 1,43% ao ano, a taxa de crescimento per capita anual resultante (0,98%) requereria mais de 70 anos para dobrarmos o PIB per capita. Discute-se muito o PAC e menos o arcabouço macroeconômico em que terá que ser inserido. Mas, na gestão macroeconômica ninguém, em sã consciência, imagina que a "tríade virtuosa" da macroeconomia — o regime de taxa de câmbio flexível, a manutenção de superávits primários que mantenham aproximadamente constante a relação dívida/PIB e o regime de metas de inflação — possa ser substituída por alguma fórmula alternativa de política macroeconômica. O câmbio flexível mostrou que veio para ficar. Não que o regime não apresente problemas nesse período de transição. A taxa de câmbio de equilíbrio aparentemente tornou-se mais baixa e afetou a estrutura das exportações, privilegiando as exportações com maior conteúdo de matérias primas, em detrimento de produtos com maior teor tecnológico. A despeito das contínuas intervenções do Banco Central, comprando divisas para aumentar suas reservas — que já superam 100 bilhões de dólares — e procurar sustentar o câmbio, este volta sempre para o seu valor mais apreciado. Não parece haver solução a curto prazo, já que toma tempo para que os aumentos de produtividade no setor industrial de bens com maior conteúdo tecnológico voltem a ser competitivos. O regime de metas de inflação pode ter surpreendido a muitos pelo seu sucesso em quebrar a espinha da inflação e mantê-la em patamares europeus e mostrou-se de qualidade. Os efeitos colaterais são conhecidos (a permanência de altas taxas reais de juros, freando o investimento e o crescimento), mas decorrem não propriamente da política monetária, mas dos excessos expansionistas da política fiscal. A despeito (ou por força) das críticas contra os juros altos, esses foram reduzidos até agora em seis pontos percentuais e a expectativa é que caiam ainda um pouco, dependendo dos rumos da política monetária dos Estados Unidos. Como se sabe, o Federal Reserve aumentou a taxa de juros básica dos EUA de 1% para
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Apesar da boa intenção do PAC, a oferta de energia limita, na prática, o crescimento a no máximo 5%. Na foto, a hidrelétrica de Xingó, na divisa entre Alagoas e Sergipe.
Evelson de Freitas/AE
5,25% ao ano, ao mesmo tempo em que reduzíamos a Selic. Em conseqüência, o diferencial entre as duas taxas de juros reduziu-se acentuadamente, aproximando-se do valor que mantém aqui os fluxos financeiros internados exatamente para beneficiar-se do diferencial de juros. Ainda há espaço para alguma redução da Selic em 2007, mas esse espaço é menor agora que no passado. O grande desafio de 2007, como de resto já vem sendo desde a Constituição de 1988, é restabelecer as condições mínimas de governabilidade das contas públicas, perdidas com as disposições da Carta Magna. O nó da questão é o crescimento desordenado das despesas de custeio e a incapacidade de continuar financiando essas despesas com o aumento da carga tributária. Esse nó já reduziu a capacidade de investir do Estado em infra-estrutura a pouco mais de 1% do PIB. Se o PAC for bem-sucedido, será possível dobrar os investimentos do setor público. Mas convenhamos, não é passar de 1% para 2% do PIB
que fará o País retomar o rumo de crescimento a taxas da ordem de 5% ao ano. É fundamental aumentar de forma significativa o investimento privado, como, aliás, pretende o PAC. Mas, para isso é unânime o sentimento que nos falta um marco regulatório que assegure ao investidor condições similares às disponíveis em outros mercados. Foi isso que impediu investimentos privados suficientes em energia ao longo de toda a gestão anterior. Disso resulta que facilmente se alcança o limite de geração de energia necessário para sustentar qualquer taxa de crescimento um pouco maior que as atualmente observadas. Nada indica que até o momento a definição de um marco regulatório apropriado seja prioritária. Se não tivemos ainda uma mudança significativa no marco institucional interno, aumentaram as possibilidades de turbulência no cenário externo. Há uma crescente percepção de que finalmente as autoridades chinesas possam vir a tomar medidas para ajustar o crescimento do país às disponibilidades de sua infra-estrutura interna. A turbulência nas bolsas de valores é indicativo dessa possibilidade e sinaliza a necessidade de maiores cuidados com o que pode vir de fora. Entre os potenciais prejudicados estarão os exportadores de produtos primários, nós aí incluídos. Nos quatro anos do governo anterior tivemos a maior oportunidade de ajustar nossa economia, fazer as indispensáveis reformas, dar um choque de capitalismo na economia, e aproveitar um ambiente externo que talvez não esteja disponível nos próximos quatro. Esse ambiente foi tão benéfico, que não somente impulsionou a economia americana e evitou que a economia mundial caísse em nova Grande Depressão, como a dos anos 30, mas sustentou também a retomada da economia européia e o crescimento quase milagroso dos países emergentes. Se não aproveitamos a boa maré, é porque não introduzimos as necessárias reformas para acompanhar o que ocorre no resto do mundo. A Índia tornou-se um motor do crescimento; a China, até agora, ainda não conseguiu reduzir sua espetacular taxa de crescimento, que tantos problemas já lhe causam, entre eles a concentração da renda, a incapacidade da infra-estrutura de acompanhar o crescimento e a deterioração do meio ambiente. Todo esse quadro pode mudar, ou por um aprofundamento da política econômica americana, de privilegiar o ajuste monetário e estancar as pressões inflacionárias que se seguiram ao aborto da segunda Grande Depressão, última grande obra do "maestro"
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Rodolfo Buhrer/Gazeta do Povo
Jonne Roriz/AE
Para desamarrar a economia, como quer o presidente, seria preciso grandes mudanças institucionais. Nas fotos, fila de caminhões no Porto de Paranaguá e acima o Porto de Santos.
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Alan Greenspan; ou por uma abrupta desaceleração do crescimento da China. Torcendo para que esse cenário não se materialize, manda o bom senso prever para prover. Quem substituirá o "motor de crescimento" das exportações no PIB brasileiro? Ainda em 2006, o volume físico das exportações cresceu a uma taxa média superior à do comércio mundial, de 15% ao ano. Crescemos onde temos vantagens comparativas, notadamente nas atividades ligadas ao agronegócio e intensivas no uso de recursos naturais. Pelas suas características, essa atividade é menos sensível às variações na taxa real de câmbio e mais robusta diante de episódios de valorização cambial, como o que atravessamos presentemente. Não somente as exportações contribuíram para a manutenção do crescimento da produção e do emprego. O enorme ingresso de divi-
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sas decorrente do aumento das exportações permitiu um crescimento também expressivo das importações, mais acelerado em 2006 que o próprio crescimento das exportações. O aumento significativo das importações contribuiu para a modernização industrial ocorrida nesses últimos três anos e barateou os produtos destinados ao mercado interno — permitindo ao consumidor o acesso a produtos melhores e mais baratos, o que se reflete em ganhos de bem-estar para os consumidores. A expectativa para 2007 é de sustentação do patamar que já atingimos nas exportações e de aumento das importações, reduzindo o saldo comercial (recorde em 2006). A persistir a política de redução da liquidez americana, é possível uma retração nas exportações, com um saldo comercial menor. O resultado final da balança comercial, por certo, depende em larga medida de diversos fatores, a maior parte deles fora de nosso controle. Qualquer que seja a explicação para a expressiva valorização do real a partir de 2003, não há dúvida que os fluxos de capital são parte dessa explicação. Esses fluxos, ao longo do governo anterior, se deram pelo menos em parte em resposta ao enorme diferencial entre as taxas de juros interna e externa, mesmo levando em conta o prêmio de risco dos investimentos em real. Estamos agora em meio a um processo de redução desse diferencial, tanto pela elevação da taxa de juros norte-americana, como pela redução, lenta e segura, da Selic. Um forte aperto monetário nos EUA, ainda que também lento e seguro, desviaria parte dos fluxos de capitais do Brasil para o mercado dos países desenvolvidos. É de se imaginar que esse redirecionamento dos fluxos de capitais, ainda que parcial, teria algum impacto sobre a taxa nominal de câmbio, no sentido da desvalorização do real. Se isso vier a ocorrer, o efeito sobre a balança comercial será ambíguo, já que a redução da liquidez internacional reduzirá o crescimento mundial (afetando negativamente a demanda nos mercados de destino de nossas exportações) e tornará mais caras as importações, provavelmente reduzindo sua taxa de crescimento. Será também interessante avaliar os efeitos de um possível estreitamento da liquidez internacional sobre a inflação brasileira. A partir do Plano Real, começamos a nos habituar a conviver com preços mais estáveis; vivemos hoje como em um país europeu, com a inflação fechando o ano abaixo de 3%. Taxa digna dos melhores anos do século 19, em pleno regime de padrão-ouro.
Eduardo Knapp/Folha Imagem
"Tenho enorme resistência em considerar programas de assistência social como programas de inclusão social. Pela sua natureza, podem quando muito aliviar situações de pobreza extrema, em condições transitórias".
Uma redução da liquidez internacional, por seu efeito sobre a desvalorização do real, poderá acelerar um pouco a inflação. Não acelerará muito, contudo; a lei do Plano Real foi sábia em impedir reajustes de contratos com duração inferior a um ano. Com isso, aluguéis, salários e uma infinidade de contratos permanecerão amarrados aos seus valores nominais correntes, independentemente do que possa vir a ocorrer com o câmbio — e causando, como tudo na vida, perdas e danos para um dos lados de cada um desses contratos. Mudarão, na eventualidade de uma maior desvalorização do real, os preços dos bens transacionados internacionalmente: a maior parte dos grãos, minérios e muitos produtos industrializados, afetados pela elevação dos preços em reais desses produtos. E os efeitos se farão sentir eventualmente ao longo da cadeia produtiva, com o passar do tempo. Nada, contudo, que indique uma mudança significativa do patamar de inflação que o mercado já está prevendo, em torno de 4,5% até o final do ano. O mote do governo é o do crescimento com inclusão. A parte do crescimento, como se viu, foi pífia no primeiro governo e não haverá tempo hábil para acelerar de forma significativa o crescimento em 2007. Terá se salvado pelo menos a inclusão? Tenho enorme resistência em considerar programas de assistência social como programas de inclusão social. Pela sua natureza, podem quando muito aliviar situações de pobreza extrema, em condições transitórias. O que
inclui essas parcelas da população na cidadania são, primeiro, o trabalho, que traz sustento e dignidade; segundo, o investimento em capital humano (saúde e educação), que aumenta a produtividade do trabalho e o rendimento do trabalhador; terceiro, o sentimento de que são respeitados o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à capacidade de cada um escolher o próprio destino. Trabalho formal não há, porque a economia não cresce. O direito à vida é negado de forma sistemática, com a crescente captura do monopólio do uso da força, que pertence ao Estado, por gangues rivais, contra as quais o Estado mostra-se impotente. A liberdade persiste pela resistência da cidadania diante de todos os esforços de sufocá-la na gestão passada, especialmente no direito de livre expressão. O direito à propriedade é diariamente questionado no campo e nas grandes cidades. Sem esses direitos, sem trabalho e sem emprego, como os marginalizados podem ir além da mera sobrevivência e aspirar escolher, para si e seus filhos, seus próprios destinos? Esse é o país que o novo governo encontra. O senhor presidente poderia, se tivesse condições políticas para tanto, dar um choque de capitalismo no País nos próximos quatro anos, entrando para a história como o maior presidente da nação. Não o fará, pelos compromissos que tem com os que o elegeram. Se tudo correr bem, poderemos ter mais quatro anos do mesmo, no Brasil que saiu das urnas.
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Corbis
Empreendedorismo, instituições e desenvolvimento INTRODUÇÃO
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Brasil vem apresentando taxas medíocres de crescimento, tanto em relação às suas necessidades e possibilidades, como em comparação com o desempenho das demais nações consideradas emergentes, que tem se aproveitado do cenário externo extremamente favorável que tem predominado na última década. Em conseqüência, o país não gera recursos que permitam melhorar de forma significativa o padrão de vida de sua população vem perdendo posições no rankingdas nações e, o que é pior, sendo, cada vez mais, relegado pelas grandes empresas multinacionais nas decisões para a realização de novos empreendimentos. O debate dobre as razões pelas quais o Brasil tem tido esse baixo desempenho econômico nos últimos anos tem se centrado, regra geral, nos problemas conjunturais, que são realmente sérios, das altas taxas de juros e da elevada tributação, negligenciando os aspectos estruturais que influenciam os resultados pouco satisfatórios da economia brasileira. Dentre eles, sem nenhuma dúvida, a baixa prioridade dada à educação, mas também, a falta de atenção com o papel das instituições e de reconhecimento da importância do empreendedor como agente do desenvolvimento.
Andrea Felizolla/LUZ
CAUSAS DO DESENVOLVIMENTO Os historiadores e economistas pesquisam há muito tempo quais são fatores favoráveis ao desenvolvimento das nações, buscando entender porque alguns países são pobres, enquanto outros, muitas vezes com condições semelhantes, são prósperos, e quais as causas
Marcel Domingos Solimeo Economista e superintendente do Instituto de Economia Gastão Vidigal da ACSP
que parecem condenar alguns povos ao subdesenvolvimento. Atribuía-se, inicialmente, o desenvolvimento a aspectos geográficos, como localização, clima e recursos naturais, mas, posteriormente, o progresso de países pouco dotados pela natureza fez com que se buscassem outras explicações que, se não negavam a importância desses fatores, incluíam outros, como a educação e a tecnologia, como contribuições importantes para o crescimento das economias. Adam Smith, em sua obra A Riqueza das Nações, que se tornou a base da economia capitalista, mostrava que a especialização e a divisão racional do trabalho permitia a inovação tecnológica e promovia a industrialização e o desenvolvimento dos países. Durante décadas, os economistas discutiram crescimento e desenvolvimento como sendo conceitos semelhantes e, dependendo de sua orientação, defendiam mais Estado ou mais mercado como solução. Posteriormente os debates evoluíram para mostrar as diferenças entre crescimento, mais facilmente induzido pela intervenção estatal, e desenvolvimento que, mais do que a expansão do PIB durante um período, significa a modernização e maior complexidade da economia, criando condições estáveis e sustentáveis, para a elevação do padrão de vida da população. Economistas como Douglas North e Ronald Coase, estabeleceram a relação entre Estado e mercado, ao demonstrar a importância das instituições (que dependem em grande parte do Estado) para o funcionamento do mercado e, portanto, para o desenvolvimento das nações. Entende-se por instituições a Constituição, as leis, as normas e regulamentos, o funcionamento dos órgãos públicos e do judiciário, e a própria conduta da sociedade, isto é, seus valores. Para eles, as macro instituições, como os siste-
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Bel Perosa/Folha Imagem
Reprodução
Milton Mansilha/Luz
Adam Smith, autor de A Riqueza das Nações. Acima, o economista inglês John Williamson: os governos devem garantir o direito de propriedade.
Diversas pesquisas sobre as motivações que levam as pessoas a constituírem uma empresa mostram, embora com diferentes graus de abrangência, que, 'ser seu próprio patrão', 'prover uma ocupação para si e para familiares' e 'buscar reconhecimento e autorealização', figuram como as principais razões. O 'desejo de ficar rico' não aparece nas primeiras colocações.
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mas legal e financeiro, fornecem a estrutura nas quais as transações ocorrem, podendo oferecer incentivos ou desincentivos para as mesmas. Assim, os "custos de transação" são afetados por obstáculos decorrentes das instituições, como, por exemplo, o de fazer cumprir um contrato ou, obter uma licença. John Williamson, que se tornou célebre (para o bem e para o mal) como autor do Consenso de Washington, afirmou que é necessário reconhecer a importância de desenvolver a capacidade dos governos de "monitorar e supervisionar o sistema financeiro, estabelecer seguro direito de propriedade e construir as instituições necessárias para o desenvolvimento econômico, incluindo um Banco Central independente, um sistema de controle do orçamento e agências que possam promover o aumento da produtividade industrial". David Landes, professor de história e economia política na Universidade de Harvad em seu livro A Riqueza e a Pobreza das Nações, analisa as razões porque algumas nações, ou regiões, que foram prósperas no passado, não evoluíram, enquanto outras que, no mesmo período (alguns séculos atrás), eram pobres, se desenvolveram e atualmente ostentam um elevado padrão de vida. Landes destaca como fatores fundamentais, além das instituições, como o direito de propriedade e o respeito aos contratos, outros, como a educação e certos valores, como a abertura para as inovações, que conduz ao progresso tecnológico. É evidente que a abertura às inovações pressupõe liberdade para empreender e a garantia da propriedade intelectual.
Rafael Hupsel/Luz
Paulo Pampolin/Hype
Milton Mansilha/Luz
O PAPEL DO EMPREENDEDOR Nas últimas décadas, em muitos países, especialmente nos mais ricos, se reconhece o papel fundamental do empreendedor para o desenvolvimento e se busca meios para estimular o surgimento, ou fortalecimento, do "espírito empreendedor". Estudos e pesquisas procuram conhecer as características dos empresários, suas motivações, valores e opiniões, com vistas à adoção de políticas públicas que possam contribuir para o "empreendedorismo". Diversas pesquisas sobre as motivações que levam as pessoas a constituírem uma empresa mostram, embora com diferentes graus de abrangência, que: "ser seu próprio patrão", " prover uma ocupação para si e para familiares" e "buscar reconhecimento e auto-realização" figuram como principais razões. No primeiro caso, o desejo de "ser seu próprio patrão", reflete tanto um espírito independente, como desejo de liberdade, rejeição a se submeter a qualquer autoridade ou hierarquia, ou uma experiência negativa como empregado. A segunda razão, "criar seu próprio emprego" pode ser resultante do desemprego ou da formatura em alguma profissão, e deve va-
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Patrícia Cruz/Luz
Luiz Prado/Luz
Pablo de Sousa/Luz
Rafael Hupsel/Luz
riar muito em função da situação do mercado de trabalho. O último grupo de respostas, " buscar reconhecimento e auto-realização" contempla duas linhas de motivações: uma que considera "ser empresário" fator de projeção social, outra se refere ao objetivo de transformar em realidade uma invenção, inovação ou projeto. O desejo de "ficar rico" não figura entre as principais razões apontadas pelos entrevistados, embora a necessidade de obtenção de recursos para a sobrevivência tenha sido destacada. Essas pesquisas mostram que são pequenas as diferença entre as motivações do empreendedor nos diversos países, e apontam para a necessidade de se estimular o "espírito animal" do empresário de que falava Keynes, mas rejeitam a tese do "homus economicus", isto é, que o único, ou principal, motivo do empreendedorismo seja apenas o da busca da riqueza. Se assim fosse, no Brasil não haveria empresários, porque a racionalidade econômica levaria a todos que possuem recursos, a aplicá-los no mercado financeiro. O papel das instituições A história econômica dos países desenvolvidos confirma o importante papel representado pelas instituições para o surgimento e desenvolvimento de uma classe empresarial ativa, a criação de empresas, e para o desenvolvimento. Assim, mais do que planos e planejamento centralizado, é necessário a existência de um ambiente institucional favorável ao florescimento do espírito empreendedor e ao funcionamento da atividade empresarial. O sistema de economia de mercado, para funcionar, necessita de um marco institucional adequado que possa propiciar o uso mais eficiente dos recursos disponíveis e promova o desenvolvimento. Os custos de transação Toda atividade econômica pode ser traduzida por intercâmbio estando sujeita aos chamados "custos de transação", os quais são parte das negociações, mas não se destinam a qualquer finalidade produtiva. Quanto menores os "custos de transação", mais as atividades produtivas podem se desenvolver. Tais custos envolvem a obtenção de informações necessárias à realização dos negócios, negociação de acordos e contratos, acompanhamento do cumprimento dos contratos, as sanções em caso de descumprimento, o atendimento das exigências burocráticas e fiscais, etc. As instituições Os "custos de transação" são influenciados, positiva ou negativamente, pelas instituições, que podem ser definidas como as "regras do jogo" sob as quais o mercado deve funcionar, bem como a forma e o grau em que tais "regras" são cumpridas, e a segurança que oferecem para os negócios.
Como resultado da tributação elevada, da complexidade e instabilidade da legislação e a burocracia excessiva, verifica-se que uma parcela extremamente grande da economia opera na informalidade. Igualmente contundentes são os dados da informalidade no mercado de trabalho, onde 60% dos trabalhadores não gozam de qualquer proteção legal.
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Assim, não é apenas a Constituição e o conjunto de leis e regulamentos que determinam o melhor ou pior "ambiente institucional" para a atividade empresarial, mas, também, a forma como o governo e o sistema político atuam na preservação do arcabouço jurídico, e como o poder judiciário funciona para garantir os direitos. Inclui-se, ainda, como parte das "instituições" o conjunto de atitudes e valores aceitos pela sociedade , e o seu grau de adesão às "regras" do convívio social. Sem a aceitação consensual das regras fundamentais por parte da sociedade, gera-se um "ambiente institucional" marcado pelo conflito, que produz insegurança e incerteza. As nações que apresentam o maior grau de liberdade econômica, são as que ostentam os mais elevados níveis de "renda per capta", demonstrando que instituições que favorecem a livre iniciativa constituem condição necessária para o desenvolvimento econômico, embora não se possa ignorar outros fatores, especialmente o grau de educação da população.
mesmo, do Judiciário, alterando suas condições de forma unilateral (planos de saúde, tarifas públicas, contratos com cláusula de correção cambial etc.). O novo Código Civil introduziu a "função social dos contratos", o que vem enfraquecer sua força como instrumento de negociação.
As instituições brasileiras O Brasil tem um longo caminho a percorrer para que suas instituições possam ser equiparadas às das nações mais desenvolvidas, seja em termos de liberdade econômica, estabilidade das regras, respeito à propriedade e aos contratos, fatores que, ao lado da educação, são fundamentais para o desenvolvimento econômico. As "instituições" brasileiras não favorecem o espírito empresarial e o desenvolvimento econômico e social, a começar pela Constituição que, apesar das reformas já efetuadas, ainda representa sério obstáculo ao crescimento, pelo excesso de regulação, casuísmo, consagração de privilégios, manutenção de regras oriundas de uma economia fechada e intervencionista e estabelecimento de uma estrutura federativa cara e desequilibrada. Soma-se a isso uma infinidade de leis e regulamentos que oneram fortemente os "custos de transação", com exigências burocráticas descabidas herdadas de um Estado dirigista e centralizador, e o enfraquecimento observado com relação às agências reguladoras, às quais cabe normatizar, fiscalizar e garantir o cumprimento dos contratos, para diversas atividades fundamentais, cujos investimentos de longo prazo, necessitam de previsibilidade e estabilidade das regras.
Incerteza e instabilidade Somente com a estabilidade das regras ou, pelo menos de seus princípios básicos, e a certeza de que os direitos serão garantidos, o setor privado poderá ter segurança para investir com uma perspectiva de longo prazo, condição indispensável para que o país possa se desenvolver. As freqüentes intervenções do
Direito de propriedade e respeito aos contratos A garantia do direito de propriedade e do respeito aos contratos se constitui em um dos pilares fundamentais da economia de mercado, juntamente com a liberdade de empreender, sem o que não se garante a credibilidade das regras do jogo e a confiança dos agentes econômicos. Parece claro que o direito de propriedade vem sendo relativisado no Brasil na área rural, ao se definir a função social da propriedade e estabelecer critérios abstratos e absurdos para sua caracterização. Mais do que isso, ele é constantemente desrespeitado pelas invasões de propriedades agrícolas, em flagrante agressão a esse direito e, o que é pior, sem que haja a punição dos culpados por tais atos. Quanto aos contratos, também não se pode considerar que os mesmo sejam sempre respeitados, pois são freqüentes as intervenções do Executivo, (ou das agências reguladoras), e,
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Omissão do Estado Quando o Estado deixa de cumprir sua obrigação de defender o direito de propriedade, coloca em risco a convivência democrática. As invasões de áreas privadas, enfraquecem o direito de propriedade no campo e geram incerteza, desestimulando investimentos, especialmente externos, na atividade agrícola. A omissão das autoridades, e a indiferença da sociedade com relação à invasão de propriedades agrícolas, acaba estimulando outros grupos a adotarem igual atitude em relação à imóveis urbanos, transferindo para a cidade a insegurança em relação ao patrimônio, sem contar a violência associada a essas ações.
Leonardo Rodrigues/Hype
governo no mercado, a falta de definições claras e as constantes mudanças de regras prejudicam a previsibilidade necessária à realização de investimentos e negócios de longo prazo. O papel do Judiciário Se o Judiciário tem sido o garantidor do direito de propriedade, ao determinar a reintegração de posse de áreas invadidas, o mesmo não ocorre com relação à proteção dos contratos, não somente devido à morosidade da Justiça, mas, muitas vezes, decidindo contra os termos dos mesmos, a pretexto de uma hipotética "justiça social", o que traz grandes prejuízos ao setor privado, inibindo o desenvolvimento econômico. Muitas atividades não encontram a segurança necessária para a realização de negócios, pois a incerteza quanto ao cumprimento dos contratos aumenta os "custos de transação", ou a morosidade na execução das garantias impede o surgimento de um mercado de hipotecas que permitiria o financiamento habitacional e a expansão da construção civil, grande geradora de emprego e renda. Tributação No tocante à tributação, o Brasil apresentou a mais violenta elevação da carga tributária de que se tem notícia em qualquer país em tempo de paz, passando a arrecadação fiscal da casa dos 26% no início dos anos 90 para mais de 38 % do PIB em 2006, sem que tivesse havido contrapartida em bens e serviços que pudesse justificar essa escalada tributária. Agrava a situação a forma como o governo vem promovendo o aumento da carga tributária, com a utilização de impostos de péssima qualidade, como as contribuições, que distorcem o funcionamento da economia e retiram a competitividade das empresas tanto no mercado interno como no internacional. Burocracia e informalidade Ao aumento da carga tributária, deve-se adicionar a crescente burocracia resultante da legislação tributária, criando um emaranhado de leis, decretos, regulamentos, portarias, normas e atos a que estão sujeitas empresas e cidadãos. Como resultado da tributação elevada, da complexidade e instabilidade da legislação e da burocracia excessiva, verifica-se que uma parcela extremamente grande da economia opera na in-
O Brasil teve a mais violenta elevação da carga tributária de que se tem notícia, passando de 26% do PIB nos anos 90 para 38% em 2006, sem contrapartida em bens e serviços. Nas fotos, tenda do Feirão do Imposto, da ACSP no ano passado.
formalidade. Igualmente contundentes são os dados da informalidade no mercado de trabalho, onde 60% dos trabalhadores não gozam de qualquer proteção legal. Observa-se uma total inadequação das exigências legais e dos encargos sobre a mão-de-obra, que faz com que mais da metade da classe trabalhadora esteja na informalidade, além de se verificar um alto índice de desemprego e subemprego. Embora a informalidade seja, no geral, uma resposta criativa aos obstáculos criados por excesso de tributos e de burocracia, ela implica em custos para as empresas e os trabalhadores, reduz a eficiência na alocação de recursos e afeta a arrecadação fiscal. PERSPECTIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO BRASILEIRO Apesar do empenho do presidente Lula para que a economia acelere seu crescimento já em 2007, parece pouco provável que isso venha a ocorrer, porque isso depende dos investimentos feitos anteriormente, cujo nível é insuficiente para a expansão desejada das atividades econômicas. O pior é que, ao que tudo indica, nem nos próximos anos deveremos ter uma taxa de crescimento do PIB elevada, apesar das condições externas extremamente favoráveis, porque o governo não mostra qualquer preocupação com os aspectos institucionais, que são determinantes para a decisão dos investimentos privados. A perplexidade do governo, e a demora em definir a estratégia para o crescimento acelerado do país, decorrem da visão equivocada que tem predominado no âmbito governamental, de que cabe ao Estado promover o desenvolvimento, ao invés de ser um facilitador e estimulador das atividades do setor privado. Em conseqüência, o governo negligencia suas funções precípuas e os aspectos institucionais relevantes para o empreendedor. Ao ignorar o papel das instituições, e sua contribuição para as decisões do setor privado, o governo corre o risco de que suas projeções de investimentos não se concretizem e que, em conseqüência, a taxa de crescimento do PIB não atinja as metas desejadas, o que, além de aumentar a defasagem em relação ao desempenho das nações emergentes, pode comprometer a situação fiscal. Enquanto o governo não procurar melhorar o ambiente institucional para o investidor, reduzir sua participação no PIB, cortar gastos e diminuir os tributos, eliminar a burocracia desnecessária, realizar as reformas pendentes, fazer respeitar o direito de propriedade, estabelecer regras claras para os projetos de infra-estrutura e fortalecer as agências reguladoras, será difícil aumentar os investimentos capazes de produzir a expansão e a modernização da economia, apesar do cenário externo extremamente favorável que se observa há alguns anos, mas cuja duração é imprevisível. Leonardo Rodrigues/Hype
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Custo
da demissão e qualidade
do emprego Renata Jubran/AE
Hélio Zylberstajn Economista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP
A
1. Introdução
demissão é uma das questões mais controversas e complicadas do mundo do trabalho. Empregados e empresas têm interesses conflitantes nessa área. A grande maioria dos empregados aprecia muito a segurança e a previsibilidade na relação de emprego. Para eles, é muito importante saber se sua fonte de renda está assegurada por um horizonte de tempo tão largo quanto suas necessidades futuras. Mas, para a empresa é importante ter liberdade para demitir. Nenhum empresário pode honestamente se comprometer com seus empregados a ponto de assegurar seus empregos no futuro. Afinal, o mundo dos negócios é imprevisível. Este texto trata da questão da demissão, inicialmente descrevendo a legislação brasileira. Isso é feito na próxima seção. A seção 3 analisa a relação entre o custo da demissão e o tempo de serviço e extrai algumas implicações para a empresa. A seção 4 cuida de uma atividade em que o vínculo de emprego característico tem curta duração: a agricultura. Essa seção propõe uma solução
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No Brasil, a rotatividade da mão-de-obra é grande, principalmente nas pequenas e médias empresas.
Agliberto Lima/AE
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Sebastião Moreira/AE
Patrícia Cruz
Trabalhadores que trocam muito de emprego não são treinados e não conseguem aumentar sua produtividade.
para compatibilizar a natureza efêmera das tarefas agrícolas com a necessidade de reduzir custos de demissão, o consórcio de empregadores rurais. As seções seguintes estendem a proposta para duas outras situações, a construção civil e o emprego de jovens. A seção 6 apresenta uma síntese e algumas considerações finais. 2. O custo da demissão no Brasil Em todos os países, de alguma forma a legislação e/ou a negociação tentam conciliar os interesses do trabalho e do capital na questão da demissão. Os mecanismos são os mais diversos e vão desde o aviso prévio, passam, pela indenização na demissão e, em muitos casos, chegam a restrições mais rígidas ou mais flexíveis sobre a própria liberdade de demitir. Em muitos países os empresários precisam negociar e justificar demissões, seja com o sindicato, seja com o governo. No Brasil, os empresários têm liberdade para demitir. Nossa
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legislação recepciona o conceito da "demissão sem justa causa", que simplesmente não existe em muitos países. Nossos legisladores preferiram enfatizar o lado da indenização ao demitido, preservando a liberdade de demitir do empresário. O empresário brasileiro pode demitir, mas tem de pagar por essa liberdade. Para demitir é preciso cumprir ou indenizar o aviso prévio de 30 dias e é preciso também recolher a multa de 50% sobre o valor depositado na conta do FGTS do empregado. O Aviso Prévio de 30 dias na verdade não seria um custo na demissão, se o empresário preferisse que o demitido o cumprisse. Mas, dada a desconfiança recíproca que caracteriza as relações trabalhistas no nosso País, os empresários preferem pagar os 30 dias. Dessa forma, o aviso prévio acaba se constituindo em uma parcela da indenização ao demitido. A outra parcela é a multa do FGTS, equivalente a 50% dos depósitos do FGTS feitos ao longo do período em que prevaleceu a relação de emprego. São assim, duas parcelas: uma fixa, equivalente a um salário, independente da duração do vínculo. Outra, variável, proporcional ao tempo em que o empregado manteve o vínculo com a empresa. Muitos empresários incluem no custo da demissão mais duas parcelas, o 13º proporcional e as férias proporcionais. Embora tenham de ser pagas na ocasião da rescisão do contrato de trabalho, estas duas parcelas não são causadas pela demissão. A cada mês de trabalho na empresa, o empregado acumula 1/12 do 13º e das férias. Se não fosse demitido, estas parcelas teriam de ser pagas no devido tempo. O fato de pagar na rescisão faz a percepção da "conta" ficar mais alta para o empresário, mas estas duas parcelas não são indenizatórias. Portanto, devem ser separadas do custo verdadeiro da demissão. É também um engano considerar os depósitos mensais na conta do FGTS como verba indenizatória da demissão. O depósito mensal do FGTS é simplesmente uma parte do salário, que fica retida na CEF. O trabalhador pode sacar seus depósitos acumulados em algumas situações, sendo a demissão uma delas, mas não é obrigado a fazê-lo quando é demitido. Claro que todos preferem sacar, pois os rendimentos do FGTS são pouco competitivos. Mas, na essência, o FGTS é apenas uma parte do salário que se constitui em poupança compulsória. Não é verba indenizatória. Nas considerações que se seguem, incluiremos no custo da rescisão apenas as parcelas que realmente têm natureza indenizatória para o empregador: o Aviso Prévio de 30 dias e a multa sobre os depósitos do FGTS.
3. Custo da demissão e duração do vínculo 1 Quanto custa demitir no Brasil? Como vimos na seção anterior, o custo da demissão é composto de duas parcelas: o Aviso Prévio e a multa do FGTS. A primeira parcela é fixa, independentemente da duração do vínculo, e seu valor é sempre igual a um salário mensal. Vamos tomar um exemplo hipotético: um trabalhador é demitido depois de permanecer seis meses no emprego. A rescisão do contrato implica então no pagamento do Aviso Prévio e da multa do FGTS. O Aviso Prévio equivale ao valor de um salário. 2 A multa do FGTS é igual à metade dos depósitos mensais na conta vinculada do FGTS, que equivalem a 26% de um salário. Portanto a empresa terá de indenizar seu ex-empregado no valor de 1,3 salários. Se o vínculo empregatício durar um ano, utilizando a mesma maneira de cálculo, a multa rescisória subirá para 1,5 salários. Após cinco anos, valerá 3,6 salários, e após quinze anos de vínculo empregatício terá chegado a 8,6 salários. Todos estes valores constam estão na coluna (A) da Tabela 1. Esta coluna indica o valor do desembolso para firma, quando demite um empregado. E é este valor que os empresários consideram relevante. E, como esperado, os valores da coluna crescem linearmente com a duração do vínculo. A conclusão aparentemente óbvia é que o custo da rescisão é tanto maior quanto maior o tempo de casa dos empregados. Mas há uma outra maneira de abordar essa questão. Ao invés de considerar o valor total desembolsado na rescisão do contrato, poderíamos dividir este valor pelo número de meses trabalhados. O resultado dessa divisão forneceria o custo mensal da rescisão. Ou seja, quanto teria custado a rescisão em cada mês trabalhado. O custo mensal da rescisão aparece na coluna (B) da mesma Tabela 1. Ao contrário da coluna (A), agora os resultados são decrescentes com o tempo de serviço. Para demitir um empregado após seis meses, a empresa precisa pagar 21% do seu salário, em cada mês trabalhado. O custo mensal da rescisão cai para 13% do salário para vínculos que duram um ano, vai para 6% quando o vínculo de emprego tem cinco anos e finalmente para 5% do salário quando chega aos dez anos. Os resultados da coluna (B) indicam que empresas com menor rotatividade de mão-deobra têm menores custos de rescisão, embora os valores desembolsados a cada rescisão sejam maiores. A coluna (A) apresenta os custos da demissão sob o regime de caixa, enquanto a coluna (B) nos mostra as despesas de rescisões
contratuais sob o regime de competência. O contraste entre as duas abordagens fica mais evidente com o auxílio dos Gráficos 1 e 2, que representam respectivamente as colunas (A) e (B) da Tabela 1. O Gráfico 1 passa a percepção de que o custo de demissão aumenta com o tempo de serviço, enquanto a mensagem do Gráfico 2 é de que o custo da rescisão Tabela 1
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Grรกfico 1
Grรกfico 2
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é continuamente decrescente, e fica praticamente estável em torno dos 5% do salário a partir do nono ano de contrato de trabalho. A conclusão dessa simulação é simples e direta: a percepção do empresário que administra seu negócio sob o regime de caixa sobre os custos da demissão no Brasil é exatamente oposta à do empresário que opera no regime de competência. O senso comum nos sugere que a abordagem do regime de competência e a visão de longo prazo que este regime induz seria mais adequado para avaliar os custos da demissão. Sendo assim, podemos nos perguntar quais são as possíveis implicações para a gestão da empresa que poderíamos extrair dessa conclusão. O que ocorre quando uma empresa pratica rotatividade excessiva no seu quadro de colaboradores? Se a empresa agisse assim, que é um caso isolado, provavelmente não permaneceria no mercado por muito tempo, pois teria uma desvantagem competitiva em relação às demais. Seu custo de mão-de-obra seria maior que o das concorrentes. Mas sabemos que no Brasil, a rotatividade da mão-de-obra é grande. De acordo com os dados da RAIS 2 , nas empresas pequenas e mé-
dias (as que têm até 249 empregados), praticamente metade dos empregados não permanece mais que um ano no emprego. Nas empresas grandes (com 250 ou mais empregados), 1/3 dos trabalhadores saem durante seu primeiro ano no emprego. No conjunto de todas as empresas, a proporção de empregados que ficam um ano ou menos é de 41%. É, portanto, um quadro de rotatividade crônica. De acordo com nossa simulação, as empresas brasileiras pagam um preço alto por demitirem precocemente seus empregados. A cada mês, para cerca de 40% de seus empregados, sua despesa salarial é acrescida de algo entre 13% e 26% (duas primeiras células da coluna (B) da Tabela 1)! São números impressionantes, que devem ter um impacto no mercado. Provavelmente, esse grande volume de gastos com demissões deve provocar um processo de ajuste. Como uma grande parte dos trabalhadores espera ser demitida no primeiro ano de serviço na empresa, as verbas rescisórias fazem parte da sua "renda esperada". Afinal, é "natural" trabalhar alguns meses, ser demitido e receber o aviso prévio e a multa do FGTS. Para estes trabalhadores, a renda é formada pelo sa-
Gráfico 3
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Joel Silva/Folha Imagem
No campo, começam a surgir consórcios de empregadores rurais para contratação de mão-de-obra. O emprego temporário se transforma em emprego permanente compartilhado.
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lário mensal e pelos valores recebidos a título de indenização pela demissão. Portanto, é provável que estes trabalhadores aceitem salários menores, já que recebem indenizações freqüentes. Portanto, as demissões não "encarecem" o custo do trabalho, porque fazem parte da renda dos trabalhadores. Se a rotatividade fosse menor, provavelmente, os salários praticados seriam maiores. Mas a rotatividade implica em outro tipo de custo, que onera a economia como um todo: trabalhadores que "rodam" muito não têm tempo de serem treinados em seus empregos e assim não conseguem aumentar sua produtividade. Esse é o lado custoso e invisível da rotatividade excessiva. Gráfico 3 Do que foi exposto até aqui, podemos extrair mais uma conclusão: o mercado de trabalho brasileiro opera incorrendo em custos adicionais, que são de dois tipos. O primeiro é o que podemos chamar de custos de transação. Nesta categoria estão os custos burocráticos, as despesas com recrutamento e seleção dos substitutos e principalmente os custos das reclamações trabalhistas induzidos pelas demissões freqüentes. O segundo grupo de custos é constituído por todas as perdas decorrentes da restrição ao crescimento da produtividade. Trabalhadores que ficam pouco tempo deixam de ser treinados para melhorar o desempenho. A "troca" de salário por indenização acima descrita deve provocar uma insatisfação salarial. Com menor rotatividade, a empresa poderia pagar salários maiores, sem in-
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correr em custos maiores. Os trabalhadores "perceberiam" que seus salários são maiores e provavelmente responderiam com maior produtividade. Se nossa descrição do funcionamento do mercado de trabalho estiver correta, estamos identificando uma oportunidade para empresários dispostos a mudar o estilo de gestão de recursos humanos. Empresas que conseguissem reter seus trabalhadores poderiam se aproveitar dos ganhos decorrentes, enquanto seus concorrentes continuariam a incorrer nos custos acima mencionados. Os valores aqui identificados indicariam que empresas que aproveitassem esta oportunidade, poderiam adquirir vantagens competitivas apreciáveis. Naturalmente, essas oportunidades existiriam naquelas atividades nas quais empregos de longa duração fossem compatíveis com o tipo de negócio e o tipo de mercado onde a empresa opera. Sabemos, porém, que há atividades em que o vínculo de emprego é, necessariamente, de curta duração, como por exemplo, a agricultura e a construção civil. Nestes casos também seria possível reduzir os custos das demissões. Mas, para tanto, a empresa teria de agir coletivamente, junto com outras empresas que operam no seu mercado, organizando consórcios de empregadores, que descreveremos na próxima seção. 4. Dividir custos e riscos da demissão: os consórcios de empregadores rurais O emprego na agricultura é sazonal. Os fazendeiros mantêm um pequeno número de empregados permanentes e contratam grandes grupos de trabalhadores para a colheita, na época da safra. Os trabalhadores são contratados por um período curto, em geral de cinco a sete meses. Ao final da safra, são demitidos, recebendo os dois tipos de indenização descritos na seção 2, o Aviso Prévio equivalente a um salário mensal e a multa do FGTS, proporcional ao número de meses trabalhados. No ano seguinte, o fazendeiro contratará novamente um grande grupo de trabalhadores. A cada final de safra, os trabalhadores
temporários são demitidos. A cada início de safra, são novamente contratados. E a rotina se repete, ano após ano. Os custos de demissão são assumidos, ano após ano. Cada R$ 1,00 que os fazendeiros pagam a seus trabalhadores temporários custa mais R$ 0,21, quando os trabalhadores são demitidos ao final da safra. Como os vínculos de trabalho são temporários, não se criam compromissos mútuos de longo prazo entre a empresa e seus empregados e vice-versa. Sem um horizonte de longo prazo, a empresa não investe em seus empregados: não oferece treinamentos, não faz prevenção de acidentes de trabalho. O trabalhador por seu lado, não se interessa em investir no emprego, que vai terminar muito em breve. Enfim, a empresa não investe no trabalhador porque não terá tempo de recuperar seu investimento. O trabalhador não investe no seu emprego porque não sabe onde estará trabalhando daqui a pouco. A atitude recíproca de descompromisso inibe o crescimento da produtividade e de sua contra parte, o salário. Ambos perdem, mas nenhum dos dois lados consegue romper o círculo vicioso. Recentemente, alguns fazendeiros brasileiros perceberam que é possível reformular este jogo e construir um círculo virtuoso. Há diversos casos de grupos de fazendeiros que formaram "consórcios de empregadores rurais" com seus vizinhos nas redondezas do mesmo município ou de municípios próximos. O consórcio é apenas um pacto entre pessoas estabelecido com a finalidade de contratar mão-de-obra solidariamente. É uma espécie de cooperativa de emJonne Roriz/AE pregadores. Os trabalhadores são contratados para trabalhar não para um dos fazendeiros, mas para o conjunto de todos os fazendeiros que compõem o consórcio. Os fazendeiros fazem um planejamento comum e escalonam a cronologia do plantio. Quando chega a época da colheita, esta será executada na mesma seqüência que fora determinada no plantio. Os trabalhadores começam a colher em uma propriedade, depois vão para a seguinte assim por diante. A colheita é "esticada" pelo planejamento e dura algumas semanas a mais. Quando os trabalhadores
terminam o serviço em uma propriedade, não precisam ser demitidos. Passam para a próxima propriedade, ainda sob o mesmo vínculo de emprego. Terminada a colheita, os trabalhadores começam o trabalho de manutenção do solo em cada uma das propriedades, sucessivamente. Com o tempo que sobra até a próxima safra, o consórcio de empregadores pode oferecer programas de treinamento, reciclagem e de educação geral. O investimento é compartilhado por todos e todos vão se beneficiar na safra seguinte. Ninguém precisa ser demitido, nenhum fazendeiro precisa pagar indenizações trabalhistas por rescisão do contrato de trabalho. O emprego temporário se transforma em emprego permanente compartilhado. Quando alguém tem que ser demitido, as despesas serão rateadas por todos os empregadores, solidariamente e proporcionalmente à intensidade de utilização do empregado demitido. Os riscos e os custos de demissão não são mais bancados por um empregador, são compartilhados por todos os fazendeiros do consórcio. Os benefícios também: não beneficiam apenas um, mas todos. O consórcio de empregadores rurais é uma espécie de "ovo de Colombo". Muitos empresários rurais já o utilizam no Brasil. O mais interessante é que qualquer grupo de empresários pode formar um consórcio de empregadores, simplesmente registrando o pacto de solidariedade no cartório da cidade. É um arranjo simples, viável e perfeitamente compatível com a nossa legislação trabalhista.
Na construção civil, a criação de consórcios de empregadores, como existente no campo, poderia ser uma plataforma de trabalho interessante para entidades de classe e para administradores públicos regionais e locais.
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5. O consórcio de empregadores rurais é replicável em outras atividades? Há pelo menos mais dois casos nos quais o conceito de consórcio de empregadores poderia ser cogitado: a construção civil e o emprego de jovens. A seguir, passamos a considerar estas duas possibilidades. Construção civil Nesta atividade o vínculo de emprego é bastante curto, e os trabalhadores são substituídos à medida que a obra avança pelas suas diferentes fases. A cada final de etapa, a construtora demite os trabalhadores e incorre nos custos de indenização já mencionados. É uma rotina muito parecida com a da agricultura, que descrevemos anteriormente. Os custos são também parecidos, igualmente causados pelo descompromisso recíproco que caracteriza vínculos efêmeros. Empresas não investem em treinamento porque não recuperariam o investimento. Trabalhadores não investem na empresa porque sabem que serão desligados muito em breve. As condições são muito semelhantes às da agricultura. Mas, devemos reconhecer, há uma diferença institucional importante. No caso da agricultura, os consórcios são formados por pessoas que se conhecem, que pertencem a uma mesma vizinhança, muitas vezes com laços de amizade e mesmo de parentesco. Os agricultores não se vêem como concorrentes, muitas vezes são membros de uma mesma cooperativa de produtores e trabalham coletivamente. Em um grupo que se conhece ou que está muito próximo, existem condições para embarcar em uma empreitada baseada na confiança e na solidariedade. Já na construção civil, o relacionamento entre os potenciais participantes do consórcio seria bem diferente. Não há vínculos parecidos com os que unem os agricultores, pelo contrário, os empresários são, de fato, concorrentes em um mesmo mercado. Mas, isso não significa que não possam firmar um pacto de utilização da mão-de-obra. Talvez seja mais difícil construir o clima de confiança e de solidariedade, mas não seria impossível. Formar estes consórcios poderia ser uma plataforma de trabalho interessante para entidades de classe e para administradores públicos regionais e locais. O emprego de jovens O fracasso do Programa Primeiro Emprego talvez tenha servido para mostrar que incentivos tributários são um recurso de efeito limitado, quando se trata de proporcionar oportunidades aos jovens. Como se sabe, este programa partiu
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do diagnóstico de que o custo de contratação formal seria elevado e inibiria a empresa de abrir vagas para jovens. O governo Lula ofereceu então um "desconto" nos encargos sociais para empresas dispostas a admitir pessoas em seu primeiro emprego. Depois de quatro anos, houve apenas 4 mil contratações no País todo. É muito provável que o diagnóstico estivesse equivocado. Talvez a questão do trabalho de jovens seja semelhante aos dois casos acima apontados: duração efêmera de vínculos de emprego. O jovem não se conhece e nem conhece o mercado de trabalho. É natural que precise passar por vários empregos até encontrar uma vaga adequada para o seu perfil, sua personalidade e seu projeto de vida. Por essa razão, quando uma pessoa inicia sua vida profissional, troca freqüentemente de emprego, até encontrar uma vaga mais duradoura. Se for assim, devemos supor que as empresas não sejam muito inclinadas a contratar jovens, pois sabem que em pouco tempo terão de demitilos e arcar com os custos de rescisão.
Joedson Alves/AE
O fracasso do Programa Primeiro Emprego talvez tenha servido para mostrar que incentivos tributários são um recurso de efeito limitado, quando se trata de proporcionar oportunidades aos jovens.
Caso este diagnóstico esteja correto, estamos diante de uma situação parecida com a da agricultura e da construção civil. Podemos então pensar no mesmo tipo de solução: um consórcio de empregadores de jovens. Em um município, ou em um bairro, empresas formariam um pacto para empregar jovens. O consórcio contrataria um jovem e este começaria na empresa A. Se não se adaptasse ao emprego, poderia mudar para a empresa B, e depois para a C, até encontrar uma vaga que lhe fosse mais apropriada. Em nenhuma dessas transições de emprego haveria custos de demissão, pois o vínculo de emprego do jovem seria com o consórcio. Neste caso de consórcio de jovens, seria interessante que as empresas que o formassem pertencessem a atividades distintas, exatamente para proporcionar oportunidades mais diversificadas aos jovens. Empresas preocupadas com os temas da responsabilidade social e com a cidadania empresarial poderiam cogitar de integrar consórcios de empregadores de jovens. Entidades de classe e associações poderiam se engajar em programas
desse tipo, para promover oportunidades de inserção aos jovens trabalhadores. Até mesmo a administração pública poderia funcionar como facilitadora e catalisadora de tais programas. 6. Síntese e considerações finais Neste texto, apresentamos a questão da demissão sob duas óticas. Primeiro, analisamos o custo de demitir e mostramos que a legislação brasileira "premia" as empresas que mantém seus empregados mais tempo no emprego. Vimos que as empresas com altas taxas de rotatividade têm também altos custos de demissão. Em seguida, mostramos que o Brasil tem alta rotatividade de mão-de-obra e discutimos brevemente as conseqüências negativas da rotatividade excessiva. Concluímos apontando que a redução da rotatividade seria uma oportunidade para aprimorar a competitividade da empresa que se dispuser a mudar o padrão de relacionamento com seus empregados. A partir desse ponto, analisamos as situações em que a relação de emprego é curta, pela própria característica da atividade. Nestes casos, as empresas se vêem diante de custos altos de demissão e não conseguem alterar o padrão, a não ser que se juntem a outras empresas. Examinamos inicialmente o caso da agricultura, na qual o consórcio de empregadores rurais é uma experiência bem-sucedida em alguns municípios e sugerimos a extensão dessa estratégia para mais duas situações: a construção civil e o emprego de jovens. Nestes dois casos, argumentamos que agindo coletivamente, empresários poderiam diminuir o custo da rescisão e criar externalidades positivas e interessantes para todos. Finalmente, concluímos recomendando que entidades de classe e a própria administração pública poderiam dar suporte a essa iniciativa, transformando-se em facilitadores para as iniciativas dos empresários. 1 Por simplicidade, vamos supor que o salário do
trabalhador é constante durante todo o tempo que permanece como empregado da empresa. Essa simplificação apenas facilita o cálculo do custo da rescisão e o entendimento do argumento aqui apresentado. 2 No final deste texto, o leitor poderá verificar no Anexo, a fórmula de cálculo que utilizamos para o cálculo da multa do FGTS. 3 A RAIS é a Relação Anual de Informações Sociais, que as empresas entregam anualmente ao Ministério do Trabalho e Emprego, é uma importante fonte de informações sobre o mercado de trabalho formal no Brasil.
CÁLCULO CÁLCULO DA DA MULTA MULTA DO DO FGTS FGTS O valor da multa do FGTS depende da duração do vínculo: quanto maior o tempo de serviço, maior a multa do FGTS. A cada mês trabalhado, a empresa deposita 8% do salário na conta vinculada do FGTS. Metade de 8% é 4,25%. Portanto, cada mês trabalhado acrescenta 4 , 2 5 % n o va l o r d a multa do FGTS. Temos agora que acrescentar o valor do depósito no FGTS referente ao 13º salário. A empresa paga o 13º no final do ano, e recolhe sobre ele os 8% para o FGTS. Mas, para simplificar o que vem pela frente, vamos supor que a empresa paga o 13º salário em 12 parcelas mensais equivalentes a 1/12 do salário. Assim sendo, a empresa "deposita" 8% de 1/12 do salário a cada mês. A multa do FGTS seria então acrescida de metade dessa pequena parcela adicional. No exemplo do vínculo que durou seis meses, o valor da multa do FGTS é: Multa do FGTS referente aos seis salários: (seis meses) x (8%) x ½ = 24% do salário Multa do FGTS referente ao 13º proporcional: (6/12) x (8%) x ½ = 2% do salário To t a l d a M u l t a d o FGTS: 26% do salário
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O gás natural é o protagonista do momento
Divulgação
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Wilton Junior/AE
Adriano Pires Diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura e professor da UFRJ
Campo de prospecção de gás natural da Petrobras, localizado em San Alberto, na província de Gran Chaco, na Bolívia.
O
gás natural é o protagonista do momento. Da mesma forma que em 2001 a discussão sobre o apagão elétrico se popularizou, apesar de todo o tecnicismo que envolvia a questão, agora é a vez do gás natural. Desde os menos informados sobre o assunto até os grandes conhecedores, todos possuem uma opinião sobre a crise do gás natural. Este mercado se expande rapidamente no Brasil. A participação do gás natural na matriz energética brasileira era inexpressiva em 1974 (1%), cresceu para 3% em 1994 e atingiu 9,3% em 2005. Esse crescimento foi possível devido a quatro fatores. O primeiro foi a ampliação da oferta que se seguiu à inauguração, em 1999, do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol). O segundo foram os investimentos em redes de distribuição efetuados pelas concessionárias de gás canalizado, principalmente nos Estados do Sudeste a partir da década de 90, com a privatização da Comgás em São Paulo e da Ceg no Rio de Janeiro. Essa expansão do mercado também foi acelerada pela suspensão dos reajustes de preços para o gás de produção nacional e importado da Bolívia, vendidos às companhias distribuidoras entre 2003 e setembro de 2005, o que elevou significativamente a competitividade do gás natural. Por último, as próprias distribuidoras efetuaram uma política de descontos de preços para o setor industrial, o que também contribui para o aumento da participação do gás natural na matriz energética brasileira. Em 2005, o consumo do gás atingiu perto de 47 milhões de m³/d, crescendo 14% a.a. desde 2001. O gás natural já é o terceiro energético mais utilizado na indústria brasileira, sendo superado apenas pela eletricidade e bagaço de cana. Temos, também, a segunda maior frota mundial de veículos automotores convertidos ao gás natural veicular (GNV), com mais de um milhão de veículos, atrás somente da Argentina. Além disso, o País possui um parque de usinas de geração térmica a gás que, segundo dados da ANEEL, chega a 9,9 GW ou 10% da capacidade de geração instalada no Brasil. Infelizmente, essa fase de crescimento do mercado brasileiro de gás dá sinais de esgotamento. Em 2006 a perspectiva é de um crescimento de apenas 5%. A produção doméstica não cresceu o bastante de modo a evitarmos uma rápida escalada da dependência de importações bolivianas, que já ultrapassa 50% da oferta no País. No período 2001-2005 a produção doméstica de gás cresceu apenas 11% a.a., enquanto as importações da Bolívia aumenta-
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Jonne Roriz/AE
ram 22% a.a. Na ânsia de tornar o País auto-suficiente em petróleo, os projetos de produção doméstica de gás foram todos atrasados — Manati na Bahia, Peroá , Cangoá e outros da bacia do Espírito Santo e os da bacia de Santos — e esperou-se muito tempo para decidir sobre a construção de plantas de regaseificação. Ainda dentro da lógica de atingir a auto-suficiência, foram queimados 3,6 milhões de m³/dia na bacia de Campos em 2006, o que significa 70% do consumo de GNV no Brasil. O baixo crescimento da produção doméstica, a pequena rede de gasodutos de transporte existente (o último grande investimento da Petrobras em gasoduto de transporte foi o Gasbol), o congelamento do preço do gás por tempo exagerado e a crise da Bolívia, conduziram a uma situação de escassez de gás natural em todas as regiões do País, sendo atualmente mais preocupante na região Nordeste. No setor elétrico, essa escassez de gás natural levará a uma elevação nos preços e um aumento do risco de déficit. Recentemente, a falta de gás impossibilitou o despacho pleno de usinas térmicas chamadas a operar pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Isso levou a ANEEL a publicar uma resolução mostrando a indisponibilidade de gás para atender as térmicas. Como a resolução daria um enorme impacto nos preços e elevaria drasticamente o risco do déficit, a ANEEL voltou atrás e preferiu efetuar testes entre 11 e 23 de dezembro para verificar, segunda a agência, o estado verdadeiro da oferta de gás natural. Os resultados mostraram que, devido a falta de combustível, as usinas conseguiram produzir apenas 2.146 MW médios de um total de 4.846 MW. O resultado final dos testes apontou uma diferença de 2.700 MW médios entre a capacidade programada e a real de geração. Se a ANEEL ratificar a sua decisão de retirar os 2.700 MW médios da contabilidade de energia disponível no País, a percepção de risco de um apagão aumenta e os preços da energia elétrica se elevarão nos próximos anos. Para que o País tenha um crescimento médio de 4% a.a. nos próximos quatro anos, será necessário um aumento médio anual da capacidade de no mínimo 3.500 MW. Segundo Dados da ANEEL, se considerarmos apenas as usinas sem qualquer tipo de restrição, o aumento da capacidade média anual será de apenas 1.175 MW no período 2007-2010. No período 1990-1999, que antecedeu o racionamento de 2001, a capacidade anual média era de 1.591 MW. Os números são parecidos e os problemas poderão ser os mesmos.
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O Brasil tem 1 milhão de veículos automotores convertidos ao gás natural, a segunda maior frota do mundo, atrás somente da Argentina.
Diante deste quadro, é preciso que tomemos providências urgentes no sentido de evitar um apagão do gás natural e da eletricidade. Infelizmente, o governo tem mostrado um total despreparo na gestão do setor de energia e caminhamos para uma situação semelhante a que estamos passando no setor aéreo. Provavelmente, daqui a pouco tempo estaremos vendo as autoridades do setor elétrico fazendo o mesmo discurso religioso das autoridades do setor aéreo. Ou seja, precisamos ter fé em Deus, vamos rezar para tudo dar certo. Qual deveriam ser as medidas adotadas pelo governo para ultrapassarmos esses próximos quatro anos, onde teremos que conviver com a escassez de gás natural? Primeiramente, o governo deveria convocar todos os agentes envolvidos no setor de gás natural e elaborar um plano para administrar a escassez de gás. Neste plano, deveriam ser criadas condições para a existência do mercado interruptível de gás, garantindo margens equilibradas para as distribuidoras; o preço do gás aumentaria de forma gradativa, de modo a não se cometer o erro de provocar elevações abruptas que darão um sinal incorreto para troca entre fontes de energia. A Petrobras deveria passar a utilizar óleo combustível nas suas refinarias, incentivar as indústrias a implantarem sistemas bicombustíveis através de financiamentos do BNDES; dar mais transparência a real situação do Plangás da Petrobras, estabelecendo salas de situação; e elaborar, com a participação de todos os agentes, um plano de contingência e divulgar de forma clara para a sociedade a verdadeira situação, para que assim, como aconteceu durante o racionamento de 2001, todos possam ajudar a superar esse período de crise.
A área exploratória hoje sob concessão no Brasil abrange 300 mil km², ou seja, apenas 4,7% do total da área das 29 bacias sedimentares de petróleo e gás natural existentes. Há, sem dúvida, grande potencial para novas descobertas de jazidas de gás para elevarmos a produção no Brasil. O que não pode acontecer são episódios como o cancelamento da oitava rodada de licitação de blocos da ANP. Pela primeira vez, a ANP cancela um leilão, provocando descrédito e mostrando um desconhecimento por parte da agência sobre procedimentos a serem adotados na esfera da regulação da indústria do petróleo e do gás natural. As conseqüências principais desse apagão serão a desconfiança dos investidores para os próximos leilões e a perda de investimentos, que ajudariam a aumentar as reservas e produção de petróleo e gás natural no Brasil. Para atendermos a crescente demanda pelo gás natural, não basta produzir. Nesse sentido, é flagrante a lacuna institucional da atual legislação brasileira pertinente ao setor de energia, a qual não trata com o detalhamento devido a indústria de gás natural. Incluído subsidiariamente na Lei n° 9.478/97, o gás recebe tratamento similar ao dado a indústria do petróleo e seus derivados, o que se evidencia inadequado, dado às especificidades técnicas e econômicas dessa indústria, que em muito se diferem das do setor de petróleo. A ausência de norma jurídica específica prejudica a atração dos investimentos necessários para o desenvolvimento da indústria de gás natural e a promoção da concorrência entre as empresas que nele atuam. A utilização do gás natural é vantajosa sob vários aspectos operacionais, econômicos e ambientais. Sua expansão significa modernização industrial, maior segurança da oferta de energia elétrica, comodidade para os consumidores, melhoria do meio ambiente e da qualidade de vida. Desta forma, a aprovação de uma regulamentação federal para o gás natural é condição crucial para que o Brasil usufrua plenamente destes benefícios inerentes a crescente demanda de gás natural. Beto Barata/AE
O presidente boliviano Evo Morales e o presidente Lula dão as mãos, enquanto o País vive as incertezas de uma crise energética, tendo o gás como protagonista.
Apesar de a Lei nº 9.748, de 1997, ter obtido um relativo sucesso na abertura do mercado de petróleo, ela mostrou-se ineficaz na promoção da concorrência na comercialização de gás natural e na atração de novos investimentos privados para a infra-estrutura de transporte. A Petrobras mantém sua posição dominante no mercado, respondendo por 96% da produção doméstica e 90% da importação de gás, controlando praticamente toda a malha nacional de gasodutos de transporte e participando em 20 das 26 distribuidoras estaduais de gás canalizado. Como se isso não bastasse, a estatal é monopolista na produção e importação de derivados de petróleo. Com isso, a sociedade fica à mercê das prioridades corporativas da Petrobras para o aproveitamento das reservas de gás da empresa. Se for vantajoso, a estatal prefere vender os derivados de petróleo a substituí-los por gás natural. Essa foi uma prática utilizada pela empresa no passado e nada garante que não voltará a ocorrer. Para se contestar o poder de monopólio da Petrobras e implantar a concorrência no mercado de gás natural, é necessário atrair empresas para investirem nos diversos segmentos da indústria, particularmente nas atividades de exploração, produção e transporte. Para que estes investimentos se tornem realidade, é necessário, em primeiro lugar, a existência de um marco legal que proteja os investidores contra o poder da Petrobras. Já que o atual não leva em conta as características tecnológicas e econômicas específicas ao gás natural. Uma iniciativa para corrigir as distorções da atual legislação é o Projeto de Lei do Senado nº 226 (PLS nº 226), de autoria do Senador Rodolpho Tourinho, que tramita no Congresso desde junho de 2005 e que foi aprovado no âmbito do Senado em 2006. O projeto foi amplamente discutido em diversos foros e divulgado pela mídia, e a partir de 2007 começa a tramitar na Câmara Federal. Vamos torcer que a Câmara entenda a sua importância para o setor de gás natural e trabalhe no sentido de aprimorá-lo, com o intuito de trazer mais investimentos para o setor e afastar definitivamente crises de oferta desse energético.
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O futuro da tributação brasileira
1. O NOSSO PRESENTE TRIBUTÁRIO: CARO E COMPLEXO
O
Brasil possui o sistema tributário mais complexo e mais caro do mundo. Isto traz um custo financeiro enorme ao contribuinte e ainda causa a constante insegurança de se estar ou não cumprindo com todas as obrigações exigidas pelo fisco. Cerca de 62 tributos são cobrados no Brasil, entre impostos, taxas e contribuições. Desde os mais conhecidos, como Imposto de Renda, IPTU, IPVA, CPMF e INSS; passando por aqueles que estão ligados às atividades empresariais, como ICMS, IPI, PIS, COFINS, CSLL e ISS; até aqueles que pouco são conheci-
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dos pela população, como CIDE, Imposto de Importação, Taxas, Salário-Educação etc. Para disciplinar todos estes tributos, a legislação tributária é modificada constantemente: mais de 3.200 normas estão em vigor — leis complementares, leis ordinárias, medidas provisórias, decretos, portarias, instruções etc. — ou 55.767 artigos, 33.374 parágrafos, 23.497 incisos e 9.956 alíneas. Por dia útil são editadas 56 normas tributárias, ou 2,3 normas tributárias por hora. Não bastasse a enorme quantidade de normas, também é exigido o cumprimento de inúmeras obrigações acessórias (ou burocracias) por parte dos contribuintes. As empresas devem cumprir cerca de 97 obrigações acessórias para tentar estar em dia com o fisco: declarações, formulários, livros, guias etc. O custo que as empresas têm para cumprir com as obrigações
Patrícia Cruz/LUZ
Gilberto Luiz do Amaral Advogado tributarista, contador, professor de pós-graduação em Direito, Planejamento e Gestão Tributária, presidente do IBPT Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário
acessórias é de cerca de 1,5% do seu faturamento. Assim, em 2006 as empresas brasileiras tiveram aumento de custo de mais de R$ 30 bilhões somente para o cumprimento da burocracia exigida pelo Poder Público. E, por último, por causa da cumulatividade dos tributos: multiincidência sobre uma mesma base de cálculo e várias vezes na cadeia produtiva, chamado efeito cascata: CPMF que incide sobre o PIS/COFINS, que incide sobre o ICMS, que incide sobre o INSS, e assim por diante. Pode-se denominar de Efeito Cascata Horizontal a incidência repetidas vezes de um mesmo tributo nas várias etapas da produção ou circulação: a CPMF (alíquota de 0,38%) representa em média 1,7% do preço final dos produtos e serviços consumidos no País; o PIS e COFINS (cumulativos — alíquota de 3,65%) têm um custo no preço final de 8,02% (não-cumulativos = 9,65%); enquanto que o INSS encarece o custo final em 4,05%.
Denomina-se de Efeito Cascata Vertical a incidência de um determinado tributo sobre o valor de outros tributos. A CPMF incide sobre o montante do ICMS, do IPI, do PIS e COFINS, do INSS, do Imposto de Renda, da Contribuição Social etc. O PIS e a COFINS incidem sobre o valor do ICMS, do INSS, do IRPJ e da Contribuição Social. Conforme estudos do IBPT a carga tributária brasileira atingiu em 2005 o índice 37,82% em relação ao PIB. A arrecadação tributária ultrapassou R$ 553 bilhões em 2003, atingiu R$ 650,15 bilhões em 2004 e chegou a R$ 733 bilhões em 2005. Em 2006, a arrecadação ultrapassou a R$ 813 bilhões. Verifique-se a evolução da carga tributária brasileira a partir de 1986, separada por governos na Tabela 1. A arrecadação tributária está assim dividida entre a União, Estados e Municípios, também separada por governos (veja a Tabela 2). Quanto às empresas brasileiras, a sua carga tributária global é a seguinte: a) Carga tributária sobre o Faturamento: 33,25% b) Carga tributária sobre o Total de Custos/Despesas: 47,14%
c) Carga tributária sobre o Lucro: 52,23% d) Carga tributária sobre o Valor Agregado: 45% O cidadão paga tributos sobre a sua renda (Imposto de Renda, Contribuição Previdenciária, Contribuição Sindical), sobre o seu patrimônio (IPTU, IPVA, ITR, ITCMD, ITBI) e sobre o seu consumo (embutidos no preço final de mercadorias e serviços estão ICMS, IPI, PIS, COFINS, CPMF). Desta forma, em média, 39,72% do rendimento total de cada brasileiro é destinado ao pagamento de tributos, equivalentes a 145 dias de trabalho por ano. 2. O NOSSO PASSADO TRIBUTÁRIO: CARGA EM EXPANSÃO Durante o Império, a economia brasileira era eminentemente agrícola e extremamente aberta, sendo que a principal fonte de receitas públicas era o comércio exterior. Neste período, o imposto de importação se constituía no principal tributo, alcançando em alguns exercícios a 2/3 de toda a receita pública (às vésperas da proclamação da República este imposto era responsável por aproximadamente metade da receita total do governo). Com a proclamação da República e a promulgação da Constituição de 1891 permaneceu o sistema tributário existente ao final do Império, com algumas adequações em face do regime federativo, dotando os Estados e Municípios de receitas que lhes permitissem a autonomia financeira. Foi adotado o regime de separação de fontes tributárias, sendo discriminados os impostos de competência exclusiva da União e dos Estados. Quanto aos Municípios, ficaram os Estados encarregados de fixar os impostos municipais de forma a assegurar-lhes a autonomia. Além disto, tanto a União como os Estados tinham poder para criar outras receitas tributárias. Competia à União a cobrança dos seguintes tributos: impostos sobre a importação de procedência estrangeira; direitos de entrada, saída e estadia de navios; taxas de selo; taxas dos correios e telégrafos federais. Já aos Estados competia a cobrança dos seguintes tributos: imposto sobre a exportação de mercadorias de sua própria produção; imposto sobre Imóveis rurais e urbanos; imposto sobre transmissão de propriedade; imposto sobre indústrias e profissões; taxas de selos quanto aos atos emanados de seus respectivos Governos e negócios de sua economia; contribuições concernentes aos seus telégrafos e correios. O Imposto de Renda foi instituído no Brasil através da Lei nº 4.625/1922, sendo que a primeira declaração exigida foi referente ao exercício de 1924. No exercício de 1922 foi criado o imposto sobre vendas mercantis, mais tarde denominado imposto de vendas e consignações e transferido para órbita estadual. Durante todo o período anterior à Constituição de 1934, o imposto de importação manteve-se como a principal fonte
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Tabela 1
de receita da União. Até o início da Primeira Guerra Mundial, ele foi responsável por cerca de metade da receita total da União, enquanto o imposto de consumo correspondia a aproximadamente 10% da mesma. A redução dos fluxos de comércio exterior devido ao conflito obrigou o governo a buscar receita através da tributação de bases domésticas. Cresceu então a importância relativa do imposto de consumo e dos diversos impostos sobre rendimentos, tanto devido ao crescimento da receita destes impostos — definitivo no primeiro caso e temporário no segundo — como à redução da arrecadação do imposto de importação. Terminada a guerra, a receita do imposto de importação tornou a crescer, mas a sua importância relativa continuou menor que no período anterior (em torno de 35% da receita total da União na década de 20 e inicio dos anos 30).
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Na órbita estadual, o imposto de exportação (inclusive das vendas realizadas para outros Estados) era a principal fonte de receita, gerando mais que 40% dos recursos destes governos. Outros tributos relativamente importantes eram o imposto de transmissão de propriedade e o imposto sobre indústrias e profissões. O último era também a principal fonte de receita tributária municipal, secundado pelo imposto predial. A Constituição de 1937 pouco modificou o sistema tributário estabelecido na Constituição anterior. Em relação a esta, os Estados perderam a competência privativa para tributar o consumo de combustíveis de motor de explosão e aos Municípios foi retirada a competência para tributar a renda das propriedades rurais. Em 1946, o imposto de vendas e consignações já era responsável por cerca de 60% da receita tributária estadual. Nos Muni-
Tabela 2
cípios, os impostos sobre indústrias e profissões e predial permaneceram como os mais importantes, correspondendo a pouco menos que 40% e 30% da receita tributária, respectivamente. Em 1946, o imposto de consumo era responsável por aproximadamente 40% da receita tributária da União e o IR (Imposto de Renda), cuja arrecadação chegou a superar a do imposto de consumo em 1944, representava cerca de 27% da mesma. A Constituição de 1946 trouxe poucas modificações no que concerne ao elenco de tributos utilizados no País. Ela mostra, entretanto, a intenção de aumentar a dotação de recursos dos Municípios. Dois novos impostos são adicionados à sua área de competência: o imposto sobre atos de sua economia ou assuntos de sua competência (imposto do selo municipal) e o imposto de indústrias e profissões, o último pertencente an-
teriormente aos Estados, mas já arrecadado em parte pelos Municípios. Embora não tenha promovido uma reforma da estrutura tributária, a Constituição de 1946 modificou profundamente a discriminação de rendas entre as esferas do governo, institucionalizando um sistema de transferências de impostos. A partir da década de 50, com as políticas de desenvolvimento regional, houve uma crise econômica, tornando-se necessária a reforma do aparelho arrecadador, para fazer frente ao crescimento sistemático dos gastos públicos. Em 1963 foi ampliada a tributação dos rendimentos de capital, já que havia excesso de carga sobre o setor produtivo, devido à cumulatividade e ao progressivo aumento do imposto de renda das pessoas jurídicas. Durante o período 1946/1966, cresce a importância relativa dos impostos internos sobre produtos. Às vésperas da reforma tributária, o imposto de consumo é responsável por mais de 45% da receita tributária da União, o imposto de vendas e consignações corresponde a quase 90% da receita tributária estadual e o imposto de indústrias e profissões, que se tornara, na prática, uma versão municipal do imposto de vendas e consignações, gera quase 45% da receita tributária dos municípios. Em conjunto, eles perfazem 65% da receita tributária total do País. Entretanto, não são suficientes para cobrir as necessidades de dispêndio dos três níveis de governo. Desde 1947 (um ano após a CF de 46) se clamava por uma reforma tributária, a qual foi preparada e posta em prática entre 1963 e 1966. A verdadeira razão para ela ter ocorrido é a perda de arrecadação e a impossibilidade de fazer face ao aumento das despesas, que atingiu no início da década de 60 o índice de 13% do PIB (era 8% no final da década de 40). Em 1945 havia 1.669 municípios, chegando a 3.924 em 1966. Com a Revolução de março de 1964, a reforma tributária adquiriu impulso, com um novo sistema tributário criado a partir desta data, ocorrendo: a) Revisão do IR, com vigoroso crescimento da arrecadação; b) O imposto sobre o consumo foi reformulado, dando origem ao IPI; c) O IVC se transformou no ICM. Até 1978, a carga tributária ficou ao redor de 25% do PIB, com a União arrecadando 3/4 do total e após as transferências para Estados e Municípios ficava com 2/3. Em 1970, houve criação do PIS para fazer face à concessão de incentivos e benefícios fiscais.
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Leonardo Rodrigues
Desde 1975 o sistema mostrava sinais de exaustão, em face destes incentivos e benefícios fiscais. Durante a década de 80 houve impressionante quantidade de alterações processadas na legislação para manter o nível de arrecadação. Em 1982, foi criado o FINSOCIAL, o qual seria provisório, mas tornou-se permanente, sendo substituído posteriormente pela COFINS. 3. O NOSSO FUTURO TRIBUTÁRIO: SISTEMA MODERNO, MAS INJUSTO "A civilização tem isto de terrível: o poder indiscriminado do homem, abafando os valores da Natureza. Se antes recorríamos a esta para dar uma base estável ao Direito (e, no fundo, essa é a razão do Direito Natural), assistimos, hoje, a uma trágica inversão, sendo o homem obrigado a recorrer ao Direito para salvar a natureza que morre". (Miguel Reale, Memórias, São Paulo: Saraiva, 1.987, v. 1, p. 297). A arrecadação tributária brasileira está fortemente concentrada nos tributos sobre a produção de bens e serviços (que se traduz na tributação sobre o consumo) e na tributação direta sobre os salários. A tributação sobre a produção — consumo (ICMS, PIS, COFINS, IPI, parte da CPMF, parte do IOF) — resulta em 49% de toda a arrecadação tributária nos três níveis, enquanto que a tributação sobre salários (Imposto de Renda, Contribuição Previdenciária e Sindical) arrecada 27% do total. Na seqüência, temos a arrecadação sobre capital e outras rendas (Imposto de Renda das empresas, parte do IOF, parte da CPMF), com 16% do total; comércio exterior (Imposto de Importação, Imposto de Exportação, taxas alfandegárias) com 3% do total; patrimônio (IPTU, IPVA, ITCMD, ITBI) com 2% da arrecadação total; e 3% para os demais tributos. Ao longo da história, o sistema tributário brasileiro caminhou a reboque das experiências de outros países, baseado na facilidade de arrecadação e sem uma preocupação maior em se cumprir com uma justiça tributária. É certo que os países pobres ou em desenvolvimento concentram suas arrecadações nos tributos embutidos no preço final de mercadorias e serviços (denominados tributos sobre o consumo), já que a renda média da população é pequena, o que dificulta a cobrança de tributos sobre a renda e sobre o patrimônio. Mas, tal proceder torna o sistema tributário injusto, pois onera de maneira elevada as populações mais pobres, sem que os mais ricos contribuam na sua exata capacidade econômica. Assim, a tributação sobre o consumo é regressiva, ao contrário da tributação sobre renda e patrimônio, que são progressivas. O cenário político-econômico de 2007/2010 está moldado em gastos públicos elevados, juros em queda, dívida externa controlada, dívida interna em elevação, baixa inflação, falta de investimentos substanciais em infra-estrutura, apreciação do real em relação ao dólar, dificultando as exportações de manufaturados e incentivando as importações. A criação e majoração de tributos ocorrida a partir de 2002,
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Marcos Fernandes/ LUZ
No Brasil, são editadas 2,3 normais tributárias por hora. Em 2006, as empresas tiveram aumento de custo de mais de R$ 30 bilhões para o cumprimento da burocracia. Nas fotos, a mobilização da sociedade em 2005 contra a MP 232, que aumentaria a carga tributária para prestadores de serviços.
Alexandro Auler/AE
Luludi/LUZ
O Impostômetro, instalado no prédio da ACSP, mostra quanto de impostos a sociedade vem pagando. Em 2006, foram mais de R$ 813 bilhões. Cada brasileiro trabalha o equivalente a 145 dias para pagar seus impostos.
dão ao governo federal algum fôlego de caixa para ir tocando sua política de ampliação de gastos sociais, mas o impede de fazer grandes investimentos em obras de infra-estrutura. Já os Estados vêem sua principal fonte de arrecadação (o ICMS) dar sinais de esgotamento. Em 2006, praticamente não houve crescimento da arrecadação deste imposto em relação ao PIB, após sucessivos anos de expansão. Em virtude de o governo federal estar privilegiando o aumento das contribuições em detrimento dos impostos partilhados, muitos governos estaduais enfrentarão dificuldade de caixa neste período. Os municípios também enfrentarão dificuldades com suas contas, pois a sua participação nas receitas federais vem diminuindo, e a sua possibilidade de aumento de arrecadação dos tributos municipais é muito pequena. Nestes quatro anos, deve haver a prorrogação da CPMF e da DRU (desvinculação das receitas da União), sendo que os Estados pressionarão para também serem agraciados com um sistema de desvinculação das suas receitas. Provavelmente, haverá a aprovação da PEC 285/2004, que federaliza a legislação do ICMS, diminuindo a guerra fiscal dos Estados. Provavelmente, face ao aquecimento global e os reflexos econômicos das mudanças climáticas, haverá a criação de um tributo ambiental, que pode ser a CIDE Ambiental, nos moldes propostos pelo Ministério do Meio-Ambiente. Haverá a mudança gradual da incidência do INSS sobre a folha de pagamento para o faturamento, como já está previsto no texto constitucional. Com a implementação da Super-Receita (Receita Federal do Brasil), haverá forte combate fiscal às terceirizações e ao pagamento de benefícios extra-folha de pagamento. O governo federal continuará a reduzir a incidência do IPI sobre produtos industrializados. A partir de 2011, os debates sobre uma reforma tributária ampla se ampliarão. Isto porque, até lá, o atual modelo tributário apresentará esgotamento quanto ao aumento da arreca-
dação de vários dos principais tributos. A implantação de um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) moderno será a espinha dorsal do novo modelo tributário. Na fase antecedente, haverá aumento da CPMF, mas com a sua transformação em contribuição compensatória com outros tributos e redução da alíquota da COFINS. O IVA resultará da fusão do ICMS, COFINS, IPI e ISS, com partilha automática de sua arrecadação entre os entes federados. O aspecto inovador do IVA brasileiro é que ele considerará como crédito o montante da folha de pagamento. Isto será uma verdadeira revolução no conceito mundial de imposto sobre valor agregado. A tributação ambiental será intensificada, com a utilização de alíquotas maiores para as atividades que tragam impacto ambiental, com a conseqüente diminuição sobre as atividades de proteção e recuperação do meio-ambiente. Os tributos sobre o patrimônio terão elevação de alíquotas, pois os entes federados dependerão mais da sua arrecadação. Apesar de previsto constitucionalmente, atualmente o imposto de exportação tem baixa incidência sobre o comércio exterior, sendo a sua arrecadação praticamente inexistente. Com a reforma tributária, vários produtos e serviços voltarão a ser taxados por ele. Haverá uma menor quantidade de tributos, com a simplificação na arrecadação de muitos deles. A carga tributária irá diminuir paulatinamente, até chegar a 30% do PIB em 2020. Mas, um sistema tributário mais simples e menos burocrático não quer dizer que será mais justo do que o existente hoje. Ele continuará fortemente concentrado na tributação sobre o consumo e salários. Passados alguns anos da implantação do IVA, haverá a criação de um imposto específico sobre o consumo de determinados bens e serviços, como fumo, bebidas, perfumes e sobre o comércio eletrônico. Também, haverá nova ampliação da CPMF, já como contribuição permanente.
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Aspectos Econômicos
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o campo econômico, o Brasil que emergiu das urnas de outubro pode ser caracterizado, ao mesmo tempo, unido e dividido. Este aparente paradoxo prende-se a dois aspectos marcantes de análise bem delineados. Em primeiro lugar, um Brasil nitidamente dividido no que diz respeito à prioridade e à metodologia do combate à pobreza e da redistribuição da renda. De um lado, o Brasil que defende a importância conferida pelo governo Lula aos programas de transferência direta de renda, em especial o Bolsa Família, apóia seus métodos e prega a continuidade da estratégia. Do outro lado, os que, mesmo reconhecendo alguns méritos nesses programas, discordam da estratégia adotada e do seu modus operandi, a consideram insuficiente e, por seu caráter meramente assistencialista, ineficiente para resolver de forma definitiva o problema da pobreza. Segundo a visão do primeiro grupo, o problema da pobreza não pode esperar por uma solução definitiva — demorada pela própria natureza —, requerendo assim ações emergenciais, ainda que parciais e transitórias. Afinal, afirmam, trata-se de gente literalmente morrendo de fome. Já os integrantes do segundo grupo defendem a tese de que somente o processo de crescimento econômico será capaz de retirar definitivamente da pobreza o enorme contingente de pessoas que ainda sobrevive no nosso país com renda abaixo do mínimo minimorum. E, quanto mais acentuado o crescimento, mais rápido o progresso na erradicação da pobreza. O conflito entre as duas visões estabelece-se na medida em que, por perda de eficiência geral do sistema econômico, a alocação de recursos segundo as prioridades da primeira visão sacrificam o ritmo de crescimento da economia, postergando assim a solução eficaz e definitiva do problema da eliminação da pobreza e da promoção da justiça social. Do ponto de vista exclusivamente técnico, é impossível não reconhecer doses de razão em cada uma das duas visões, sugerindo que provavelmente a solução dos graves problemas da pobreza e da péssima distribuição de renda passa por um compromisso entre as duas es-
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Divulgação
Michal Gartenkraut Economista, professor e consultor econômico
tratégias, em um mix a ser definido em negociações no campo da Política, não da Economia. O que a análise técnica isenta pode garantir é que o Brasil reúne as condições necessárias para promover, de forma simultânea, um ritmo razoável de crescimento econômico e a busca de uma distribuição mais justa de renda, em especial a eliminação da exclusão social. No primeiro grupo encontra-se a grande maioria dos beneficiários, diretos e indiretos, dos programas sociais do governo federal, contingente da população concentrado geograficamente principalmente nas regiões Norte e Nordeste e que certamente votou maciçamente em Lula. O segundo agrupo, alinhado à oposição, é majoritário no Sul e Sudeste. Como se viu, o primeiro gupo prevaleceu numericamente nas urnas, conferindo vitória à reeleição do presidente. A segunda característica no contexto econômico identifica um Brasil unânime na aspiração por um crescimento econômico mais vigoroso, um clamor claramente demonstrado ao longo da campanha.
do Brasil que Saiu das Urnas Neste aspecto, ninguém discorda de que o primeiro mandato de Lula gerou um crescimento econômico medíocre: efetivamente, o crescimento real do PIB brasileiro nos quatro anos do período 2003-2006 acumulou apenas 10,8%, resultando em uma média anual de 2,6%. Este desempenho é frustrante sob qualquer ponto de vista: seja na comparação com a nossa capacidade de crescer, demonstrada na história anterior a década de 80 (no pós-guerra o País cresceu a uma taxa anual de 7%, a mais alta do mundo); seja no requisito de geração de empregos — o número de empregos cresce à aproximadamente metade da taxa de crescimento do PIB; ou, ainda, na comparação ao crescimento da economia mundial, que cresceu, no mesmo período a 4,9% ao ano (o contraste é ainda mais desfavorável quando se considera o grupo de países chamados de emergentes, cujo crescimento médio no período foi de nada menos que 7,3% ao ano). Há unanimidade, portanto, de que urge adotar providências para acelerar o processo de crescimento da economia brasileira, sinalização que parece ter sensibilizado o presidente reeleito, com sua capacidade intuitiva de perceber os ventos da opinião pública. Mas a unanimidade vem acompanhada de uma certa perplexidade e logo desaparece quando se passa dos anseios ao diagnóstico das causas desse desempenho insuficiente. Tem-se, novamente, um Brasil dividido. De um lado, os que atribuem a responsabilidade a uma suposta "herança maldita" dos governos anteriores, especialmente do período FHC, cujos erros estratégicos teriam comprometido a capacidade do País de se desenvolver de forma saudável; para este grupo, composto provavelmente somente de apoiadores da reeleição, Lula assumiu o primeiro mandato com a economia brasileira em condições precárias e teve que promover um es-
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forço extraordinário de ajuste, cujo reconhecido sucesso comprometeu boa parte do nosso potencial de crescimento, mesmo em um período caracterizado por um raro cenário favorável da economia mundial. Do outro lado estão os que responsabilizam diretamente o próprio governo Lula. Para eles, o grosso do ajuste necessário já havia sido feito (estabilização, ajustes do balanço de pagamentos e do fiscal) pelos governos anteriores, devendo o agravamento da situação econômica em 2002 ser debitada ao riscoLula, percepção de medo criada pelo discurso radicalizante de décadas do PT e do próprio Lula. Nesta segunda visão, o mérito de Lula é de ter praticamente mantido as linhas mestras da política econômica, esvaziando assim, já ao longo de 2003, os efeitos deletérios da elevação da percepção de risco no ambiente econômico. Restaria assim, nesta visão, a total incapacidade estratégica do governo de se aproveitar do melhor cenário internacional dos últimos 50 anos e alavancar um salto de qualidade que poderia não só completar o ajuste já implementado, mas compensar inclusive a virtual estagnação das últimas décadas. Some-se a isso a incompetência, ou falta de vontade, em montar uma máquina governamental enxuta e eficiente, para não falar das trapalhadas e escândalos na seara política, e tem-se uma avaliação bastante negativa do primeiro mandato de Lula. Alguém que esposa esse diagnóstico dificilmente votou nas últimas eleições para reeleger o presidente. Não importa com que grupo nos identificamos, nosso anseio unânime por mais crescimento vem associado a uma perplexidade sobre as razões que nestes últimos anos vêm obstaculizando no Brasil um ritmo mais alentado de expansão das atividades econômicas. Por que, todos se perguntam, o país que já cresceu a taxas mais altas do mundo, que se livrou do flagelo inflacionário, que acertou as suas contas externas, que resolveu o problema da dependência energética na área do petróleo, não consegue fa-
Henrique Meirelles, presidente do Banco Central e o prédio do BC em Fortaleza: efeitos devastadores da overdose de política monetária.
zer com que sua economia apresente desempenho similar aos demais países emergentes, que, afinal, também apresentam muitos dos demais problemas que ainda nos afligem e mesmo assim estão crescendo a um ritmo mais do dobro do nosso? A resposta a essas indagações pede uma reflexão bem mais abrangente do que sugerem as duas visões polares a respeito das contribuições de cada governo recente para o atual cenário. De uma coisa podemos ter certeza: na medida em que a situação presente é o resultado da somatória de todas as ações do passado, o muro que vem obstaculizando o nosso crescimento econômico agrega parcelas de contribuções de todos os governos. Entre as mais importantes, duas dessas contribuições 1 podem ser observadas ao longo de um período bastante prolongado, sendo, pois, comuns a todos os governos desde a crise de 1982: um patamar insuficiente de investimento, principalmente em infra-estrutura; e o crescimento quase monotônico do tamanho do setor público 2. No período mais recente, embora se trate de um fator de curto prazo, não se pode deixar de mencionar também os efeitos devastadores da overdose de política monetária. O investimento é o motor do crescimento econômico. Em especial, são extremamente importantes os investimentos na capacidade de produção dos principais insumos da economia, como a energia elétrica, o petróleo e seus derivados, comunicações, a infra-estrutura de transporte e assim por diante. O investimento é, talvez, o fator mais crítico para a sustentação de um processo de crescimento econômico, pois é o responsável pela adição de capacidade de produção de bens e serviços da economia. Em um dado momento, a economia poderá até crescer aceleradamente sem investimento, se houver capacidade ociosa, não utilizada; mas é certo que essa expansão terá vida curta, somente até atingir o limite da capacidade. A partir desse instante, daJarbas Oliveira/AE
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Grรกfico 1
Grรกfico 2
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das as restrições de capacidade, toda tentativa de crescer se traduzirá em pressões inflacionárias e/ou sobre o balanço de pagamentos, em função do aumento de importações, sendo apenas uma questão de (pouco) tempo até que o processo de crescimento seja abortado, por bem ou por mal. A principal condição necessária para que um processo de expansão econômica seja sustentável, isto é continuado ao longo do tempo, é que ele seja acompanhado de um patamar consistente de expansão da capaciGráfico 3
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dade da economia, em outras palavras, de investimento. Uma aritmética simples mostra que, sob hipóteses razoáveis, uma taxa de crescimento do PIB da ordem de 4% a 5% ao ano requer uma taxa de investimento da ordem de 25% do PIB. Ora, como se observa no gráfico abaixo, nos últimos muitos anos o Brasil vem investindo abaixo de 20% do PIB, patamar que somente foi atingido no último ano. (Gráfico 1) Mais grave ainda: caiu muito a sua parcela mais importante, o investimento em infra-estrutura, que até agora não recuperou nem os níveis mínimos requeridos para sustentar o medíocre ritmo de crescimento atual 3 . Seguida por anos a fio, essa trajetória produziu um enorme estrago: uma redução permanente na nossa capacidade de expandir a produção. A respeito, existem estudos recentes mostrando evidências de que a redução prolongada do investimento em infra-estrutura na América Latina afetou de modo estrutural a sustentabilidade do crescimento econômico; no caso do Brasil, esse processo retirou nada menos que 3 pontos porcentuais do potencial de longo prazo de crescimento do PIB 4 . O crescimento do setor público brasileiro ao longo dos últimos anos pode ser ilustrado pela elevação da carga tributária, que acabou financiando o aumento de gastos, uma vez esgotadas as outras fontes (endividamento e inflação). Como se observa no gráfico abaixo, a carga tributária sofreu elevação de mais de 10 pontos porcentuais, atingindo patamares incompatíveis com o nível de renda do país. (Gráfico 2 e Gráfico 3) Esta enorme concentração de recursos nas mãos do setor público retirou capacidade de investir do setor privado. Uma justificativa plausível para este movimento seria se os novos recursos em poder do Estado fossem canalizados para um esforço de investimento (público). Como se viu, não foi isso o que ocorreu, pois o investimento público decresceu de forma expressiva no período. Os recursos extras extraídos do setor produtivo acabaram financiando uma substancial elevação do consumo do governo, isto é de gastos correntes, como pode ser observado no gráfico a seguir. Note que, neste quesito, inclusive, o Brasil destacou-se dos demais paises semelhantes, muitos dos quais experimentaram problemas análogos nestas últimas décadas. (Gráfico 4) Fica claro, assim, que a agenda econômica mínima para o País voltar a exibir, de forma sustentável, taxas razoáveis de crescimento
econômico, consiste em elevar, e manter, o patamar anual de investimento em 5 pontos porcentuais do PIB (aos preços atuais, cerca de R$ 100 bilhões a mais, todo ano), com boa parte desse aumento dedicado a investimentos em infra-estrutura. O conjunto de tarefas necessárias para o atendimento desse objetivo requer dois movimentos básicos: de um lado, ajustar todos os instrumentos de política pública no sentido de promover uma redução do nível geral de incerteza na economia, com atenção especial para a consistência da política econômica e a qualidade do ambiente regulatório, elementos fundamentais para a redução do nível de risco dos empreendimentos privados e a melhoria da atratividade do setor privado para os investimentos em infra-estrutura; de ou-
tro, promover uma expressiva redução dos gastos correntes do governo, nos três níveis, visando abrir espaço para uma recuperação do investimento público. É um objetivo ambicioso, sem dúvida, e as tarefas são gigantescas e complexas, compostas de ações de reformas estruturais, de ajustes de consistência nos principais instrumentos de política econômica, de planejamento, de mobilização de recursos, de formação de parcerias e de implementação, todas envolvendo múltiplos agentes, requerendo, sobretudo, um bom tempo para sua execução. Sem chance de vermos esse novo quadro materializar-se de uma hora para outra, ou mesmo no decorrer de apenas um ano. Mais provável é que, se tudo der certo, isto somente será atingido ao final do segundo mandato presidencial.
Gráfico 4
1 Apenas as mais importantes no campo exclusivamente econômico.
3 Ver Afonso, Araújo & Biasotto - "Fiscal Space and Public Sector
Naturalmente, existem outras igualmente importantes em outras áreas, como por exemplo o preocupante déficit educacional. 2 Não por coincidência, na tradicional classificação dos paises segundo o nível de competitividade do World Economic Forum, são justamente estes os principais fatores responsáveis pela desfavorável classificação do Brasil. Ver em www.weforum.org.
Investment in Infrastructure: A Brazilian Case Study". IPEA, Texto de Discussão # 1141, dezembro 2005, disponível em www.ipea.gov.br. 4 Ver, por exemplo, Calderón, Easterly & Servén - "Infrastructure Compression and Public Sector Solvency in Latin America" in "The Limits of Stabilization", World Bank, Washington, 2003.
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UM BRASIL COMPLICADO.
A
vitória do presidente Lula e a derrota de seu partido — que fez apenas 83 deputados e 11 senadores entre 513 parlamentares da Câmara e 82 do Senado — faz com que o futuro governo tenha que buscar o perfil de uma frente ampla. Indiscutivelmente, o PT, ainda com profundos resquícios de radicalismos passados e ultrapassados, embora abrigue também uma ala moderada e consciente de que o País vive no século 21, e não mais no século 19, perdeu completamente sua estatura de partido ético e de representante do pensamento de moderna esquerda social. Aqueles que, no passado, pretenderam impor sua ideologia através da luta armada fizeram do tempo da guerrilha um excelente negócio. À custa dos contribuintes brasileiros, que nada tiveram a ver com os governos impostos durante o período de exceção, obtiveram fantásticas indenizações, que fariam inveja aos efeitos especiais dos filmes de Spielberg, tal seu nível de pirotecnia financeira. Todos ficaram milionários, em decorrência de processos que não acabam nunca e proliferam como cogumelos. Certamente, se esses guerrilheiros tivessem trabalhado, como os comuns mortais, jamais conseguiriam amealhar o que estão recebendo dos contribuintes brasileiros. Transitam, de outro lado, pelas fileiras do partido, muita gente que procura caracterizar os delitos descobertos no seio da agremiação, como inocentes erros de conduta, não tendo nenhuma preocupação em apurar a origem do oceano de recursos desviados dos setores público e privado, que percorre os cofres do partido, de seus dirigentes e dos amigos beneficiários do maior escândalo de corrupção da história política do Brasil, em todos os tempos. O que espanta é que a maioria dos companheiros tem orgulho de se
autoproclamar admiradora e aliada do genocida Fidel Castro, que, com Pinochet, forma a dupla de maiores assassinos políticos da América Latina, no século 20. Os "paredons", para os quais muitas pessoas foram levadas, sem direito a defesa, por Fidel Castro, para serem fuziladas, no início da revolução cubana — e até recentemente — ficarão para sempre registrados na história dos crimes contra a humanidade. É, também, aliada de Chávez e de Morales, cujo esporte predileto tem sido desmoralizar o presidente Lula e o Brasil, além de dedicar-se, ainda, a incentivar movimentos de estupro à lei, nos moldes daqueles que o MST promove, em número crescente e estupendamente alto, no governo Lula. O presidente Lula tem de conviver com esses correligionários. Sempre que declara ser um homem de centro, vê este ramo minoritário, preconceituoso e sem respeito à ordem jurídica, açulado, porque não admite que o Brasil avance, como ocorre com os demais países emergentes. Deseja que o País volte à economia primitiva dos neandertalenses, mas permaneça refém de
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, Jurista, professor Emérito das Universidade Mackenzie e da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, Presidente da Academia Paulista de Letras e do Centro de Extensão Universitária - CEU.
O Congresso, que perdoa os imorais, só por serem parlamentares, se auto-outorga fantásticos aumentos de subsídios.
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Politicamente, o presidente Lula será pressionado por radicais e pelos medíocres (...) Terá pouca vontade de obstruir violentadores da lei enquistados no MST.
suas ambições pessoais. Essas pessoas representam o avanço da pré-história e, a meu ver, apesar de estarem ao lado de Lula, só terão forças no governo, se a economia começar a despencar, pelo peso incomensurável da burocracia esclerosada do Brasil, da indecente carga tributária e dos excessivos encargos sociais e trabalhistas. Nesta hipótese, procurarão bodes expiatórios de seus monumentais erros, que serão, certamente, os empresários, profissionais liberais, além do terceiro setor, hoje objeto preferencial da sanha tributária. Por outro lado, o PMDB — ao contrário do PT, cujo perfil no primeiro mandato, pelos escândalos avassaladores que povoaram os jornais do Brasil e do exterior, ficou irremediavelmente maculado —, é um partido de firme ideologia. O único, aliás, com ideologia inquestionável. "Há poder, somos poder". Foi governo com Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e será com qualquer governo que suceder a Lula. O seu apoio, todavia, é marcado por uma fantástica ação fisiológica e absoluta falta de metas. Sua única meta é ser governo.
À evidência, para governar, Lula precisará do PMDB, e fará as concessões necessárias, a bem do poder, e não, necessariamente, a bem do País. Terá, ainda, de negociar com os pequenos partidos, para manter a maioria no Congresso, que poderá ser flutuante, conforme haja ou não interesses conflitantes. Estará, portanto, limitado, em suas metas de desenvolvimento, de crescimento, de tornar o País uma nação próspera. Já a oposição, demonstra fantástica inabilidade em ser oposição. PSDB e PFL saíram atordoados das eleições e seu papel ainda precisa ser reescrito. Talvez a fragilidade da oposição é que impeça uma clara visualização da enorme debilidade e dificuldade convivencial das alianças que Lula fez e fará, à luz dos interesses dos partidos aliados, e não do País. O congresso, prevalecendo a falta de liderança — com o cinismo próprio de um falso companheirismo, que perdoa os imorais, só por serem parlamentares —, escandalosamente se auto-outorga fantásticos aumentos de subsídios que, em
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qualquer outro país sério, levaria à convocação imediata de uma nova Assembléia, para repor um mínimo de ética a um parlamento extraordinariamente aético. Felizmente, a Suprema Corte atalhou os indecentes benefícios concedidos pro domo sua. E, como o mau exemplo é contagiante, o Legislativo de parte dos 26 estados e dos 5.500 municípios aproveitou para aumentar seus vencimentos, na proporção constitucional (25% do que ganham os deputados federais, para os estaduais, e 25% do que ganham os deputados estaduais, para os vereadores, respeitando-se, apenas, o percentual constitucional dos orçamentos municipais, de acordo com sua população), com o que os contribuintes brasileiros, já sufocados por uma carga tributária que é a maior do planeta, se relacionada com os serviços públicos prestados, teriam que pagar ainda mais, para sustentar a falta de ética, a inoperância e escassez de patriotismo de seus representantes, que tudo representam, menos o povo, salvo claríssimas exceções. A reação popular
contra tal indecência não se fez esperar, e o Pretório Excelso derrubou o escandaloso auto-aumento. Neste quadro, o presidente da República não terá como baixar a carga tributária, até por que não pretende mexer em dois gargalos da economia, ou seja, a máquina administrativa — inchada e quase inútil, geradora de múltiplas e desnecessárias obrigações suportadas pelo cidadão — e a previdenciária, lembrando-se que, o problema previdenciário é causado, principalmente, pelo custo das aposentadorias da burocracia oficial e dos políticos, que geram seu fantástico deficit. Sem mexer nesses dois gargalos, não há como a economia crescer, principalmente, levando-se em consideração que o Brasil é o país com os mais elevados encargos sociais do mundo. Para cada empregado que é contratado, há que se pagar por dois, segundo José Pastore, visto que os encargos correspondem a outro salário. Em outras palavras, o Brasil começa a deixar de ser um país atrativo para investimentos, perdendo para muitos
Apesar da carga tributária elevada, não há recursos para investimentos estruturais, correndo o Brasil o risco de um apagão de energia, semelhante ao apagão aéreo, gerando prejuízos.
Fábio Motta/AE
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outros paises emergentes, principalmente seus mais diretos concorrentes (Índia, China, Russia e México). Amargamos uma medíocre elevação do PIB, em período de "céu de brigadeiro", na economia mundial, e em todos os índices econômicos, estamos atrás (crescimento do PIB, índices sociais, combate a corrupção, qualidade de vida, educação, cultura etc.). A própria Bolsa Família — programa meramente assistencialista — é modelo esgotado, criticado pela CNBB por desestimular o trabalho, não incentivar o estudo e retirar recursos que poderiam ser investidos em infra-estrutura, embora tenha sido o maior cabo eleitoral para a reeleição do presidente. Assim, apesar da carga tributária elevada, não há recursos para investimentos estruturais, correndo o Brasil o risco, se progredir um pouco mais do que a mediocridade atual indica, de ter, novamente, um apagão em energia elétrica, semelhante ao apagão aéreo, que acaba de demonstrar como a falta de investimentos na infra-estrutura aérea pode gerar fantásticos prejuízos para o País. O próprio PAC, na sua timidez, poderá trazer alguma sensação de melhora, mas padece do vício de manter intocável o cancro da esclerosada máquina administrativa. Acresce-se que o Poder Judiciário, nada obstante a qualidade de seus membros, não é composto de humanistas, mas de juristas. Nem sempre seus componentes têm a visão da problemática nacional, principalmente nos Tribunais Superiores, cuja função maior não é administrar justiça (isto se faz nas instâncias inferiores), mas manter a estabilidade das instituições. A carência de conhecimentos de economia, nos brilhantes ministros que compõem os Tribunais Superiores, termina, muitas vezes, levandoos a interpretar a lei de forma a gerar mais insegurança jurídica que estabilidade, nada obstante, repito, estejam as cortes compostas por pessoas de inatacável moral, o que nem sempre se encontra nos demais poderes. É, de longe, o melhor dos poderes da República, apesar de ainda não adaptado aos desafios do século 21, por sua visão do direito ainda demasiadamente formalista e o desconhecimento em profundidade de outras áreas das ciências sociais. Neste particular, há excelentes faculdades de Direito, que não ultrapassaram o limite da forma jurídica, repudiando o estudo mais
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aprofundado de realidades objeto de outras ciências, que o direito regula. E muitos de nossos magistrados saem destas excelentes faculdades, que ainda vivem o Direito do início do século 20, e continuam a decidir à luz do formalismo kelseniano, hoje mera referência bibliográfica na Europa, nada obstante seu excepcional papel, na evolução da dicção jurídica. Acrescente-se o papel do Ministério Público, cuja preocupação de fiscal da lei leva, muitas vezes, seus cultos integrantes a uma exegese tão apegada à letra da norma, que acaba por redundar em atuações dissociadas da realidade. Sem falar que, não poucas vezes, pressionados pelos holofotes da mídia e pela opinião pública, dão início a processos que, depois, se revelam insubsistentes, com sérias violências a direitos fundamentais do cidadão, principalmente os da privacidade. Quantas vezes cidadãos são presos preventivamente, sem nenhuma culpa formada, mas em virtude de supostos crimes tributários, não havendo sequer a lavratura de um auto de infração. Neste particular, nada obstante seja incontestavelmente integrada por elementos de grande preparo e reputação ilibada, tal como ocorre com o Ministério Público, a Polícia Federal violenta o direito à privacidade, desventrando suspeitas como se fossem realidades, pelos canais espetaculares da imprensa, com lesão irrecuperável à imagem das pessoas, que têm tal direito assegurado pela Constituição. Infelizmente, a preocupação e o empenho do Ministério Público e da Polícia Federal em atingir figuras da sociedade, suspeitas da prática de supostos delitos, não são os mesmos no que diz respeito ao combate ao crime organizado, este ainda o maior problema a solucionar. Aí sim, nada obstante, repito, o valor das duas instituições (MP Federal e Estadual e Polícias Federal e Estaduais), o fracasso é fantástico, vivendo, a população, em permanente sobressalto, por falta de segurança mínima para sobreviver nas grandes cidades. Imagem arranhada No plano externo, o País vai muito mal. De líder dos países emergentes , em 2003, Lula passou a ser mero co-adjuvante de um histriônico líder de um país de 16 milhões de habitantes, do tamanho da Bahia, sobre ser constantemente humilhado
A carência de conhecimentos de economia nos brilhantes ministros que compõem os Tribunais Superiores termina, muitas vezes, levando-os a interpretar a lei de forma a gerar insegurança jurídica.
pelo iletrado presidente do tempo das cavernas, que governa a Bolívia e que pretende determinar, inclusive, o que o Brasil pode ou não explorar dentro de suas próprias fronteiras! Perdemos em todas as frentes internacionais, principalmente por não percebermos que os nossos principais concorrentes fizeram a opção mais inteligente de se aproximar e negociar abertamente com os países ricos, levando fantástica vantagem sobre a nossa preferência por países menos desenvolvidos que o nosso, especializados em desmoralizar o presidente Lula, no plano internacional (Argentina, Venezuela e Bolívia). O Brasil ainda tem sido salvo pela coerência dos Ministros Furlam e Meirelles, o primeiro, mantendo razoável performance de exportações, embora muito inferior à do México, que é duas vezes superior a do Brasil. Ao que parece, entretanto, não poderá manter por muito tempo tal performance. O segundo, administra uma política monetária coerente, que poderá ser abalada agora, que os ínclitos ministros do STF transferiram para 12 mil magistrados
Bruno Stuckert/Folha Imagem
espalhados pelo Brasil a possibilidade de definir a taxa de juros de cada contrato, sem qualquer balizamento, numa inacreditável contribuição para a perturbação de qualquer política de estabilização monetária no País. O velho Octavio Bulhões dizia que moeda é matéria tão séria, e que poucos são os economistas que sabem como tratá-la. Imagine-se o que ocorrerá com esse item da macro-economia sendo tratado por magistrados que, apesar de excelentes juristas, certamente não são economistas. Nossa política monetária passará a ser mais difícil e exótica do que em qualquer outro país. A não ser que ocorra, no Brasil, o que já ocorreu na França, em que o correntista que contesta taxa de juros em juízo, dificilmente consegue novo contrato de empréstimo bancário. Não vejo, portanto, com otimismo o segundo mandato do presidente Lula. Politicamente, será pressionado pelos radicais e pelos medíocres. Será obrigado a partilhar o poder com outros políticos com os quais tem pouca ou nenhuma sintonia. Não terá condições (até por filosofia própria) de mexer na máquina esclerosada, nem na Previdência, principalmente nas aposentadorias oficiais. Terá pouca vontade de obstruir os violentadores da lei enquistados no MST. Começo já a perceber fuga de investimentos e de empresas, que se transferem do Brasil para fora. A admissão de dois novos sócios atrabiliários no Mercosul, poderá transformar uma união aduaneira em central política de radicalização antiamericana. Estou convencido de que, sem redução da máquina administrativa, nenhum plano dará certo no Brasil, porque o que mata o País é a carga burocrática geradora de todas as demais, inclusive a tributária. E a tentativa do Ministério da Previdência de descompassar o terceiro setor, criando inexistentes dívidas tributárias, quando a Constituição o quis a salvo de tributação, pode prejudicar o País no único segmento que faz o que o Governo deveria fazer com os nossos impostos e não faz. Esta é a razão pela qual, no momento em que escrevo este artigo vejo com pessimismo o segundo mandato, quaisquer que sejam os ministros que o presidente escolha ou mantenha. Como dizia Roberto Campos: "Com as mentalidades dominantes, o Brasil não corre nenhum risco de melhorar".
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Claudio de Moura Castro * Educador, economista, escritor e presidente do Conselho Consultivo da Faculdade Pitágoras
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Brasil tem uma longa história de desigualdade e a educação tem muito a ver com esse assunto. A herança de injustiça se origina do status colonial e dos estilos ibéricos de colonização. Este ensaio tenta traçar as raízes da desigualdade, apresentar alguns números relevantes para mesurá-la e mostrar o que está sendo feito para melhorar a situação por via do ensino. Para que fique claro, só falamos daquelas desigualdades que estão associadas à injustiça. Escolas católicas, judias e protestantes preparam de forma diferente seus alunos. E o futuro deles será diferente. Mas como não há nenhuma injustiça nisso, não é assunto do presente ensaio. Quando olhamos para a nossa história, vemos que as relações sociais e raciais foram temperadas por um alto grau de miscigenação e pela falta de nitidez das linhas étnicas. Além disso, o País escapou de guerras sangrentas, tanto internas quanto contra inimigos externos. Soluções pacíficas para os problemas sociais têm sido encontradas, a maioria por meio de negociações e não por conflitos violentos. Não se podem deixar de lado essas caracterís-
ticas da sociedade brasileiras, que tendem a ser positivas, embora possam ter também seus aspectos negativos. Ao longo dos tempos, o desempenho educacional tem sido o ponto mais fraco no desenvolvimento brasileiro. Esse ensaio afirma que esta é a principal raiz da atual desigualdade brasileira. O País herdou de Portugal o seu sistema de educação, que sempre foi muito atrasado. Ao longo do séculos, o progresso foi muito lento. Só nos últimos 50 anos houve mudanças mais profundas e a educação começou a crescer rapidamente. Mas apesar do notável progresso recente, a situação atual não é, de modo algum, satisfatória. I. RAÍZES E A PERMANÊNCIA DA DESIGUALDADE A. Raízes históricas Portugal não colonizou o Brasil estabelecendo entrepostos comerciais e os protegendo com fortificações, como o fez na África e na Índia. Tal como fizeram a Grã-Bretanha e a Holanda na África do Sul, os portugueses também migraram em números consideráveis. Esses dois casos contrastam com o sis-
* O autor agradece as sugestões de Simon Schwartzman. Texto original em inglês. Tradução: Rodrigo Garcia
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tema de entrepostos comerciais portugueses e britânicos em muitos países africanos, onde pequenos enclaves de expatriados administravam as colônias. Isso significa que Brasil e África do Sul são países fortemente europeus em sua cultura e maneira de ser, em contraste com a Índia, onde o legado inglês é muito mais superficial. Durante três séculos, o Brasil foi uma colônia de Portugal. No início do século 19, como conseqüência das Guerras Napoleônicas, ele se tornou a sede do Império Português. Assim, em um nível muito profundo, a herança portuguesa está por todas as partes, com seus resultados positivos e negativos. Se Portugal deu ao Brasil uma herança positiva, em termos de tolerância e coabitação entre culturas bastante diferentes, o mesmo não pode ser dito sobre o legado educacional. Países colonizadores são freqüentemente criticados por prejudicarem a educação de suas colônias. Esse é também o caso de Portugal no ensino superior. Porém, a principal razão pela qual os portugueses deram pouca importância à educação no Brasil foi porque eles próprios não a tinham em quantidade ou qualidade. Assim, o País herdou de Portugal um sistema escolar muito fraco e esse tem sido um dos problemas mais graves do Brasil. Por aproximadamente quatro séculos e meio, a educação brasileira se manteve mais ou menos em linha com a pobreza geral do País. Durante o rápido crescimento econômico que ocorreu no século 20, a educação melhorou, mas não foi capaz de acompanhar a economia. Como resultado, o País permaneceu
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bem mais atrasado na educação do que poderia corresponder à sua renda per capita. O ritmo da expansão educacional se acelerou na segunda metade do século 20. Aliás, ele se tornou extremamente rápido na última década. Mas havia muito a ser alcançado em tão pouco tempo, pois a economia brasileira cresceu mais rápido do que a de qualquer outro país durante o século 20. A urbanização também foi extremamente rápida, talvez uma das mais rápidas do mundo. Como conseqüência, a vida nas grandes cidades trouxe todas as tensões e crises resultante da sua incapacidade para acomodar corretamente os novos moradores. Tampouco a educação foi capaz de socializar esses grupos deslocados e problemáticos Os ricos se tornaram mais ricos e numerosos, não há dúvidas sobre esse aspecto. Mas é preciso também entender que a situação dos pobres melhorou continuamente, ao longo do século 20. Todos os indicadores clássicos de bemestar social avançaram muito. Por outro lado, a distância entre os dois grupos não diminuiu significativamente. De uma sociedade atrasada e reprimida, o Brasil se tornou uma nação dinâmica, turbulenta e com um grave abismo social. É essa a chamada "dívida social". Escolas melhores poderão atenuar a desorganização e a anomie provocada por essa urbanização tão rápida? Poderão ajudar a criar o crescimento econômico indispensável para melhorar o bem-estar de todos? B. Burocracia educacional ineficiente É ingenuidade culpar a burocracia por todos os males da educação. Ela tem de existir e, nas sociedades modernas, a necessidade de uma burocracia substancial não pode ser subestimada. A questão é se o País está sendo bem servido pela que tem. A burocracia brasileira é descendente direta do formalismo ibérico. Ela ainda mistura a prestação de serviços com as práticas clientelísticas e patrimonialistas de muitos servidores públicos. Porém, não se trata de um sistema homogêneo. No caso da educação, alguns segmentos da burocracia são modernos e eficientes, como é o caso dos setores que lidam com a pós-graduação e as ciências. Em contrapartida, os sistemas de ensino básico, particularmente nos municípios, podem ser muito tradicionais, ineficientes e vítimas da politicagem. Quando falamos de superar desigualdades e reformar o ensino, a questão principal é a associação estreita que existe entre a quali-
dade da burocracia pública e as conquistas educacionais do nível correspondente. A pós-graduação tem sempre tido a melhor e mais eficiente administração, tanto no Ministério da Educação quanto nas agências independentes que financiam as pesquisas (FINEP, CNPq, FAPESP etc.). A graduação sofre com uma burocracia frondosa e pesada. Mas alguns setores dentro dela funcionam relativamente bem. Em contraste, as máquinas administrativas que lidam com a educação fundamental e média têm sido, desde sempre, cronicamente fracas, tanto nos níveis federal, estadual ou municipal. São ideologicamente mais ingênuas, menos conectadas ao que se passa no mundo e a execução dos seus programas se arrasta a passo de lesma. Previsivelmente, sua capacidade de inovação é ínfima. Um país que precisa desesperadamente melhorar a qualidade da educação fundamental não é bem servido pela burocracia federal correspondente. Pior, no nível municipal, a máquina pública tende a ser ainda mais ineficiente e infestada por politicagem eleitoreira e patrimonialista. As melhores intenções em reduzir a desigualdade se chocam contra uma máquina administrativa travada e incompetente. C. O avanço da educação é ruim para os que ficam atrás Sempre pensamos na educação como uma coisa boa e este artigo segue esta linha. Porém, há alguns aspectos perversos no avanço educacional. Em uma sociedade tradicional, pessoas inteligentes e trabalhadoras podem aprender um ofício, abrir um negócio e crescer, mesmo com níveis de escolaridade muito modestos. Entretanto, a modernidade progressivamente fecha as portas a quem não tem níveis satisfatórios de escolaridade, mesmo se o que almejem é desempenhar profissões muito simples. A economia brasileira avançou muito. Sua sofisticação aumentou consideravelmente e, até certo ponto, os níveis de escolaridade responderam. Amplos setores da economia são modernos e altamente competitivos, tanto na indústria, nos serviços quanto no agronegócio. Porém uma conseqüência pouco auspiciosa da modernidade é que o acesso a quase todos os empregos tem agora um filtro de escolaridade. As posições mais procuradas exigem mais educação. Porém, até os trabalhos que dificilmente precisariam de um conhecimento escolar, como o de gari, têm processos seletivos nos quais se exigem níveis consideráveis de escolaridade. Quando pensamos na natu-
reza do trabalho, tais exigências são bobas e absurdas. Mas o fato é que elas existem e se generalizam cada vez mais. O resultado é que o progresso individual sem educação formal ficou bem mais difícil. Portanto, quem não consegue sucesso na escola está automaticamente derrotado fora dela, quando chega ao mercado de trabalho. De fato, sabemos que a relação entre nível de escolaridade e renda é muito estreita. Por essas razões, o determinante mais sério do sucesso ou do fracasso na vida profissional é o desempenho escolar. Reconhecer os filtros que existem dentro das escolas e que impedem os avanços pessoais no mercado de trabalho é fundamental para entender a desigualdade e desenvolver as políticas necessárias para combatê-la.
Multidão faz fila para se inscrever no concurso para gari no Sambódromo do Rio de Janeiro. Até os trabalhos que dificilmente precisariam de conhecimento escolar, exigem escolaridade.
Chris von Ameln/Folha Imagem
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II. FACE DA DESIGUALDADE A. Trajetória histórica Por qualquer padrão que se tome, o Brasil está atrasado em matéria de educação, em que pesem os progressos espetaculares dos últimos anos. No começo do século 20, apenas cerca de 10% da faixa etária correspondente à educação primária ia à escola. No meio do século, aproximadamente 50% recebiam educação. Na entrada do século 21, 97% da faixa dos 7-14 anos freqüentavam a escola. Ainda mais notável, a matrícula na educação média triplicou nos últimos 10 anos. Embora atrasada, a virtual universalização da matrícula na faixa dos 7-14 anos foi uma proeza importantíssima. Ela é, de longe, o instrumento mais importante para reduzir a desigualdade. Entretanto, o trabalho está longe de terminar. Apenas 84% dos estudantes concluem a quarta série e só 57% concluem os oito anos de educação básica. No final da educação média, apenas 37% dos que entraram obtêm o diploma. O aspecto mais perverso dessa evasão escolar é sua natureza seletiva. Entre os 20% mais pobres, a presença na escola cai de 95% na faixa de 7-14 anos para 73% no grupo de 15-17 e para 28% na faixa 18-24 anos. Já a freqüência no grupo dos 20% mais ricos se mantém constante em todas as idades. Em outras palavras, o rico sobe a escada educacional e dificilmente encontra tropeços ou problemas, enquanto que quase três quartos dos pobres enfrentam dificuldades e abandonam a escola. O Brasil praticamente não tinha escolas públicas de nenhum nível no século 19, exceto por umas poucas instituições de ensino superior. De fato, um pequeno número de faculdades de Medicina, Engenharia e Direito foi criado no começo do século 19, mas a expansão subseqüente foi muito lenta. Nesse mesmo período, muitas centenas de cursos superiores estavam sendo criados nos Estados Unidos. Foi somente no começo do século 20 que a rede de escolas públicas foi ampliada. Mas a expansão foi muito rápida, daí para frente. Partindo praticamente do zero, as matrículas agora se aproximam da totalidade da faixa etária correspondente ao nível fundamental. As matrículas no ensino médio hoje correspondem a quase dois terços da faixa etária. Em contrapartida à rápida expansão da educação pública no ensino básico, nas últimas décadas, o crescimento da universidade pública se desacelerou e, na última década, praticamente parou. O hiato no ensino superior foi preenchido pelo setor privado, que se expandiu bem
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mais rápido do que o público, atingindo hoje 70% das matrículas. Observe-se que é um setor realmente privado, sem subsídios públicos de monta. Os alunos pagam os custos integrais de sua formação e um número crescente de instituições declara seus fins lucrativos. Para resumir, o atraso brasileiro na educação vem do passado. Comparações históricas com a Europa mostram um enorme abismo. Porém, mesmo em comparação com países como Argentina e Uruguai, as diferenças eram enormes, já que esses países começaram a se mover para a universalização da escola em meados do século 19. Comparado com eles, o Brasil teve um atraso de quase um século. Pouco aconteceu até a Segunda Guerra Mundial. Porém, o que veio depois foi deveras impressionante — embora haja pouca consciência disso, mesmo nos meios educacionais. Em menos de um século, o Brasil está se encaminhando muito rapidamente para alcançar os melhores desempenhos na região (Uruguai, Argentina e Chile), tanto em quantidade quanto em qualidade. O Brasil pode e deve festejar esse desempenho espetacular. Contudo pairam questões desagradáveis que não podem ser ignoradas. Uma expansão rápida significa muitos erros, desperdícios e mal-entendidos. Será que poderiam haver sido evitados? Seria possível crescer tão rápido e, ao mesmo tempo, evitar os escorregões e quedas ocasionais? B. Abismo da qualidade Enquanto o sistema de educação pública era pequeno, a qualidade tendia a ser ao menos razoável. Havia relativamente poucos alunos e estes eram predominantemente de classe média. A
No final do quarto ano do ensino básico, menos da metade dos alunos está alfabetizada. Em teoria, quase todos deveriam estar alfabetizados no final da primeira série.
Alaor Filho/AE
maioria das escolas se localizava nos bons bairros de cidades relativamente prósperas e tinha professores decentes. De fato, uma das razões para isso era ser o magistério a única profissão socialmente aceita para jovens de boa origem. A explosão do crescimento da matrícula, na segunda metade do século 20, dinamitou esse sistema pequeno e tradicional. Como se não bastasse a velocidade estonteante da expansão, houve pouca atenção para a qualidade do ensino básico. Todos os olhos estavam postos na construção de uma rede de universidades espantosamente ricas e bem instaladas. Ao que parece, a qualidade da educação básica caiu bastante, ainda que dados quantitativos não estejam disponíveis. Ao mesmo tempo em que a educação se tornava menos elitista e recrutava alunos com menos capital intelectual, o que se oferecia aos novos usuários era cada vez mais inadequado. Contrastando com a queda de qualidade a partir da década de 70, a extraordinária expansão de matrículas, em todos os níveis, ocorrida nos anos 90 resultou em pouca ou nenhuma degradação na qualidade. Isso pode ser considerado como uma das mais excepcionais conquistas do período. Aliás, este autor previu uma séria deterioração na qualidade — felizmente, suas previsões estavam erradas. A partir do começo dos anos 90, uma quantificação confiável do desempenho escolar se tornou possível com o SAEB, uma pesquisa por amostragem que cobre a quarta e a oitava séries do ensino fundamental e mais o último ano do ensino médio. De acordo com os dados, coletados de dois em dois anos, a qualidade permanece essencialmente a mesma. Ao mesmo tempo em que isso foi uma façanha, é preciso entender que esses níveis de qualidade que não sofreram mudanças são inaceitavelmente baixos. No final do quarto ano do ensino básico, menos da metade dos alunos está completamente alfabetizada. Em teoria, quase todos os estudantes deveriam estar alfabetizados no final da primeira série. Segundo os resultados do PISA, o desempenho de um brasileiro típico corresponde ao de um europeu com quatro anos de escolaridade a menos. O Brasil, aliás, obteve o pior resultado no teste do Pisa em 2001. C. Estrutura educacional brasileira Sendo uma federação, o Brasil tem um poder central, 27 Estados relativamente independentes e cerca de 5.500 municípios, também bastante independentes. Na educação, a divisão de responsabilidades é bastante com-
plexa e pouco consistente. O Ministério da Educação opera uma rede de universidades públicas e tem pouca jurisdição sobre os sistemas locais. Não obstante, repassa fundos para reforçar os gastos municipais. O ministério tem também um mandato oficial de estabelecer políticas educacionais, avaliar alunos e escolas, bem como coletar e analisar estatísticas educacionais. Cada Estado tem a sua Secretaria da Educação, com seus próprios professores, administração e recolhimento de impostos. Progressivamente, os Estados estão focalizando sua ação nas de ensino médio, mas muitos ainda têm escolas fundamentais sob sua responsabilidade. Os municípios também possuem Secretarias de Educação e coletam os impostos correspondentes. Predominantemente, cuidam apenas do ensino fundamental. Os currículos são nacionais, bem como a legislação sobre o número de hora/aula por ano. Mas a administração é local, como também é a questão de salários e carreira do magistério. Para complicar ainda mais a questão, alguns municípios têm escolas de ensino médio e uns poucos Estados possuem instituições de ensino superior. Por exemplo, a melhor universidade do Brasil, a Universidade de São Paulo, é uma instituição estadual. Cerca de 15% dos alunos dos níveis fundamental e médio freqüentam escolas particulares. Em contraste, perto de 70% dos alunos de cursos superiores estão em cursos privados. Como já foi mencionado, não há subsídios públicos para a educação privada. Os estudantes têm de pagar pelo custo total de sua educação. As escolas particulares de ensino fundamental e médio são consideravelmente melhores do que públicas — além de muitas outras razões, recebem alunos com maior capital intelectual. No nível superior, há uma situação oposta. As universidades públicas têm um custo muito mais alto e recebem os melhores alunos. Em compensação, as particulares são bem mais baratas, cerca de um terço do que custam as públicas. Como demonstrado pelo Provão, um teste aplicado a universitários perto de se graduarem, os cursos de qualidade excepcional estão predominantemente em universidades públicas. Entretanto, na maioria dos cursos (dois terços do total), as diferenças entre as públicas e as privadas são mínimas, se é que existem. De uma perspectiva de eqüidade, o sistema é muito injusto. Os mais ricos freqüentam escolas privadas, nos níveis fundamental e mé-
Contrastando com a queda de qualidade a partir da década de 70, a extraordinária expansão de matrículas ocorrida nos anos 90 resultou em pouca ou nenhuma degradação na qualidade, que todavia continua baixa.
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dio. Os restantes 85% vão para as públicas. Quando chega a hora de entrar no ensino superior, os que puderam pagar as escolas privadas estão mais bem preparados para os exames e obtêm mais da metade das vagas nas universidades públicas, ainda que sejam só 15% dos que completam o nível médio. Em outras palavras, os que puderam pagar por uma educação básica privada estão mais de três vezes e meia sobre-representados nas universidades públicas que são gratuitas. Vendo a questão do ponto de vista dos subsídios públicos envolvidos, os universitários, de classe média, têm uma educação gratuita que custa mais de dez vezes o que custa um ano de educação básica ou média no setor público. D. Ênfase prematura na educação superior Como já foi dito, a educação no Brasil levou quatro séculos e meio para despertar. Antes disso, ela vegetava, ficando atrasada em todos os aspectos, até comparada a dos nossos vizinhos mais pobres. A educação básica, finalmente, começou a crescer nos anos 50. Entretanto, o Brasil decidiu que tinha de desenvolver uma rede de universidades públicas, com pesquisas e cursos de pós-graduação, a fim de preparar mais professores e líderes para um futuro crescimento. Nessa época, o papel de lideranças bem preparadas foi enfatizado, justificando os grandes investimentos para criar, pelo menos, uma universidade federal em cada capital estadual. Ainda que a implementação de planos educacionais tenha uma longa tradição de permanecer no papel, no caso do ensino superior, o desempenho do Ministério da Educação foi exemplar. Campus maravilhosos foram construídos e milhares dos mais talentosos alunos foram enviados ao exterior, para fazerem mestrados e doutorados. Com o retorno deles, iniciado nos anos 70, mais de mil cursos de graduação foram criados. O plano de expansão obteve tanto sucesso que o crescimento e maturação do ensino superior criou um grave desequilíbrio entre os níveis de ensino. O Brasil estabeleceu uma séria rede de universidades públicas, incluindo alguma de excelente qualidade, bem antes de que metade das crianças estivessem na escola inicial. Um resultado imediato foi que não havia estudantes suficientes para permitir que as matrículas no ensino superior continuassem crescendo. Por aproximadamente duas décadas, o número de matrículas em universidades públicas praticamente se estagnou. Observe-se que nos anos 80, mais de 60% dos que se formaram
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em cursos médios foram para o superior. Essa é uma taxa de transição mais alta do que a de praticamente qualquer outro país do mundo. No passado, teria havido uma oportunidade de construir um sistema educacional de baixo para cima. Mas em vez de criar uma sólida rede de escolas primárias e a partir daí movimentar-se para os níveis mais altos, o Brasil dedicou praticamente todos os seus esforços no ensino superior e na pósgraduação. Não há consenso acerca das conseqüências para o futuro do Brasil dessa opção por uma forte ênfase na criação de universidades, pós-graduação e pesquisa, às expensas de um básico universal e sólido. Estão em moda as comparações com a Coréia e outros países bem-sucedidos do Sudeste Asiático, já que estes optaram por começar universalizando uma educação básica de qualidade. Parece razoável supor que o Brasil tenha cometido um erro estratégico e que hoje paga por ele. Ainda assim, não se podem negar os benefícios muito tangíveis do impacto de lideranças bem formadas e do aumento vertiginoso da capacidade de pesquisa científica do País. Mas no que diz respeito ao tema do presente ensaio, essa política criou pelo menos duas questões de eqüidade. A primeira foi a decisão de gastar com um nível de educação ao qual apenas os alunos mais ricos têm acesso, porque são eles os que terminam o ensino médio. O outro problema foi não investir nos níveis iniciais de educação, onde se constroem os fundamentos de um sistema mais eqüitativo. Só nos anos 90, o desequilíbrio quantitativo entre um ensino superior gigantesco e uma pequena educação básica desapareceu. Curioso notar que a maioria dos educadores nem se deu conta da hipertrofia do superior e nem de sua subseqüente correção. Mas o desequilíbrio sumiu apenas no quesito quantitativo. Ainda está faltando muito na qualidade. E. Gênero é um problema — para os meninos Nos paises de Primeiro Mundo, a igualdade dos sexos foi um das grandes questões sociais do século 20. Depois de uma longa história de dife-
Como ocorreu nas Índias Ocidentais, pode haver espaço para uma ação afirmativa a favor dos meninos, particularmente no ensino secundário.
Monalisa Lins/AE
Só depois, elas conseguiram alcançá-los. O Brasil ficou atrasado durante um longo tempo. Nesse período, obviamente, as meninas também estavam atrás dos meninos na educação. Mas, sobretudo, os dois sexos estavam atrasados. Quando finalmente a educação chegou, a expectativa de igualdade de gênero já haviam aflorado na sociedade e o crescimento favoreceu tanto meninos quanto meninas. Graças ao acelerado crescimento das matrículas, a diferença de sexos foi rapidamente eliminada. É instrutivo observar que não houve nenhum esforço consciente para equiparar as matrículas por gênero e, ainda menos, alguma política específica para tal. O movimento feminista não foi particularmente beligerante. A equiparação simplesmente ocorreu, espontaneamente. Mas esse movimento espontâneo para a educação feminina não parou na igualdade. As mulheres agora são mais escolarizadas do que os homens, em todos os níveis (menos no doutorado). A diferença de 10 pontos porcentuais no final do ensino médio é preocupante, pois esse desequilíbrio pode causar efeitos desestabilizantes na sociedade. Como ocorreu nas Índias Ocidentais, pode haver espaço para uma ação afirmativa a favor dos meninos, particularmente no ensino secundário. Mas ninguém ainda se preocupou seriamente com esse assunto.
renciação, os países ricos modificaram suas regras, dando às mulheres mais direitos políticos e mais educação. Progressivamente, as diferenças entre os gêneros na educação diminuíram e desapareceram. Foi muito depois de terem sistemas educacionais maduros e de boa qualidade que as questões de gênero foram encaminhadas e resolvidas. O Brasil tomou um caminho diferente, pois isso aconteceu bem antes de haver alcançado os níveis de educação e desenvolvimento econômico dos países industrializados. Tradicionalmente, as diferenças entre os gêneros eram enormes, como se esperaria. Mas tudo se passava dentro de um sistema minúsculo. A grande revolução educacional ocorreu no Brasil muito tarde, na segunda metade do século 20, um período de crescimento econômico muito rápido, com a urbanização e modernização também chegando a ritmo rápido. Como o País estava atrasado demais, ele não acompanhou o modelo antigo da Europa. Ou seja, primeiro os europeus desenvolveram sistemas educacionais para os meninos, enquanto as meninas foram deixadas para trás.
F. Problema é ser negro ou ser pobre? Após o descobrimento, o próspero negócio da cana-de-açúcar precisava de mão-de-obra para os canaviais e os engenhos. Sucessivas tentativas de escravizar os índios com esse propósito não tiveram sucesso certo. Os índios eram nômades e seu temperamento arredio tornou a missão praticamente impossível. Isso levou os portugueses a trazerem escravos africanos para trabalhar nos canaviais. Mais adiante, foram para as minas de ouro nas Minas Gerais. Na segunda metade do século 19, os escravos se tornaram indispensáveis nas plantações de café. Eles somavam um terço da população brasileira em 1850. Porém, o tráfico de escravos foi sendo progressivamente coibido, ao longo do século 19. Por motivos que provavelmente envolvem muito mais do que direitos humanos, a GrãBretanha promoveu ações militares contra o tráfico de escravos no Oceano Atlântico. As conseqüências disso no Brasil foram, de início, criar uma escassez de escravos recém-importados. Mas a oposição à escravidão progressivamente fincou raízes no País e os movimen-
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Quase nada foi feito para apoiar os escravos recém-libertos. E menos ainda foi oferecido em termos de educação.
tos de liberação foram tomando corpo. Tais movimentos levaram à aprovação de uma legislação cada vez mais restritiva às práticas escravagistas. Leis restringiram o uso de escravos, libertaram todos os seus filhos e facilitaram esquemas para torná-los livres. Finalmente, em 1888, a escravidão foi totalmente abolida. O fato não provocou maiores terremotos na sociedade ou na economia. Em contraste, poucas décadas antes, o mesmo assunto mergulhou os Estados Unidos em uma das guerras civis mais fratricidas da história da humanidade, com 620 mil soldados mortos. Contudo, quase nada foi feito para apoiar os escravos recém-libertos. E menos ainda foi oferecido em termos de educação. Afinal, a educação também não era oferecida aos brancos pobres. Assim, há pouco mais de um século, milhões de escravos foram libertos, mas sem qualquer educação. Ou seja, não receberam os instrumentos para superar seu atraso nos anos futuros. Obviamente, constituíam-se no segmento mais pobre da sociedade. Por isso, não é surpresa ver que os negros, que eram os antigos escravos, permaneceram, em sua grande maioria, dentre os grupos mais
pobres da sociedade. Não poderia ser diferente. Inevitavelmente, o seu nível educacional, na média, continuou muito baixo. Isso ocorreu em outros lugares, até mesmo nos Estados Unidos, onde a diferenças de educação e renda entre grupos étnicos é ainda enorme. Do ponto de vista do debate atual, o que importa é quantas gerações serão necessárias para levar esse grupo ao mesmo nível social e econômico do restante da sociedade. De fato, está demorando muito. Comparações simples entre negros e não-negros mostram, em média, diferenças muito significativas. Não obstante, as estatísticas melhoram. As taxas de analfabetismo — que refletem bastante o passado — eram 2,5 maiores dentre os negros em 1992. Atualmente, essa diferença é o dobro. Essas diferenças devem ter sido causadas por muitos motivos. Nos Estados Unidos, as leis Jim Crow endossaram muitas formas de discriminação. Elas tornaram muito mais difícil para os negros superarem as diferenças. O Brasil nunca teve leis que discriminassem contra os negros. Aliás, a ideologia oficial é de promover a integração e muitas leis tornaram a discriminação uma ofensa grave. Em con-
Debret/Reprodução
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traste, a educação brasileira tem sido, através da história, muito fraca, se é que existia. E, claramente, pouco beneficiou os pobres e os que moram longe das capitais. Já que os negros nasciam muito pobres, eles tinham pouco acesso à educação. A falta de escolas e, pior, a falta de boas escolas dão espaço a uma pergunta muito séria, do ponto de vista das políticas de superação das desigualdades raciais: As chances de sucesso escolar para um negro pobre são piores dos que as de um branco pobre? Muitos pesquisadores têm tratado essa questão no passado recente. Há tentativas honestas de clarear o assunto, no meio de tiroteios emocionais de alguns grupos militantes. Nos melhores estudos, os pesquisadores introduziram controles estatísticos, isolando os efeitos da educação dos pais, das condições econômicas e da geografia. Os resultados são bem sugestivos. Do ponto de vista da fração da variância explicada pelas equações de regressão, ser pobre é bem mais prejudicial do que ser negro. Em outras palavras, os filhos de brancos pobres estão em situação quase tão ruim quanto a dos filhos de um negro pobre. Ou seja, o grande problema é ser pobre, pouco piora a situação ser também negro. Esses resultados não merecem bastante confiança. A questão em aberto é o tamanho desse "quase". As pesquisas mostram que ainda há uma diferença. Até que ponto isso é resultado de outras variáveis sócio-econômicas que não foram incluídas na análise? Até onde é resultado da discriminação? Até onde é "autodiscriminação" ou baixa auto-estima? Essas questões continuam controversas em sem boas respostas. Ocorreu uma mudança significativa nos números. O aumento das matrículas nas últimas décadas trouxe uma melhoria significativa na situação dos negros. Desde que o ensino fundamental se universalizou, a distância educacional entre negros e brancos praticamente desapareceu nesse nível. De fato, há pouca diferença na taxa de matrículas de negros e brancos no segmento dos 7-14 anos, 93% e 96%, respectivamente. Esse é um avanço significativo, considerando que a diferença era de 13 pontos porcentuais, ainda em 1992. Mas o processo de reduzir a desigualdade está só no começo, já que a diferença racial nos níveis superiores continua alta. G. Onde estão os índios? Há duas formas diferentes de identificar os índios brasileiros. Existem índios morando em tribos, a maioria em áreas remotas. E há os
brasileiros com sangue indígena. A diferença nos números é enorme. A quantidade de índios ainda em vida tribal ou com contatos próximos à sua nação de origem tem sido estimada entre 200 mil e 400 mil. Comparados com a população brasileira de 180 milhões, os índios assim definidos correspondem a uma proporção muito pequena. Para comparação, registre-se que no Chile quase 10% da população é indígena. Mas há os outros "índios". No século 17, o território atualmente correspondente ao Estado de Pernambuco foi entregue a um homem chamado Cavalcanti de Albuquerque que, logo em seguida, se casou com a filha do cacique local. Assim, os seus descendentes são parte portugueses e parte índios. Essa mistura de índios e portugueses já tinha começado antes, com Caramuru e continuou pelos séculos afora. Uma afirmativa segura é que quase todos os nordestinos têm uma proporção significativa de sangue indígena. O biótipo facilmente confirma essa hipótese. Assim sendo, qualquer ação afirmativa para beneficiar os índios, definidos como pessoas com algum sangue indígena, pode deixar de fora bem poucos dos 50 milhões de habitantes do Nordeste brasileiro. Pelo critério de sangue, quase toda a elite da região seria beneficiada por qualquer ajuda que se oferecesse aos 'índios'. Para aumentar o qüiproquo racial, muitos índios vivendo em reservas protegidos pela lei têm olhos azuis. Portanto, qualquer política para os 'índios' se torna absurda e caricata, a não ser que se aplicasse apenas aos grupos que mantêm a identidade cultural e a vida tribal. A questão é complicada e desafia respostas simples. Algumas tribos não conseguiram manter suas línguas originais e costumes. Outras se mantêm violentas e além do alcance da civilização. Entre elas, há todas as possibilidades. Um número significante de tribos está na fronteira de regiões que apenas com muito boa vontade podemos chamar de "civilizadas". Está em regiões conturbadas e, de certa forma, além do alcance efetivo da lei. Há muitas disputas por terra e os brancos são uma mistura de bandidos, aventureiros e colonos. Com certeza, os índios não estão ganhando essas disputas. Durante muito tempo, o tamanho das tribos estava diminuindo. Prostituição e alcoolismo eram talvez os piores problemas. Nos últimos anos, a população tribal se estabilizou e agora está crescendo novamente. Isso é considerado uma grande conquista das políticas indianistas. Apesar de ser sempre bastante criticada, a
Qualquer política para os 'índios' se torna absurda e caricata, a não ser que se aplicasse apenas aos grupos que mantêm a identidade cultural e vida tribal. A questão é complicada e desafia respostas simples.
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Reprodução
Quase todos os nordestinos têm uma proporção significativa de sangue indígena. Na imagem, os padres José de Anchieta e Manoel da Nóbrega catequisando os índios tamoios.
FUNAI, dedica todos os seus esforços para ajudar as tribos remanescentes. Pelo que podemos juntar de testemunhos dispersos, a FUNAI oferece aos índios uma educação decente. Em anos mais recentes, as escolas começam com a língua nativa e, progressivamente, passam para o português. É razoável supor que as escolas indígenas assistidas pela FUNAI têm melhor ensino do que recebem as crianças não-índias que vão as escolas públicas adjacentes. Para resumir, do ponto de vista quantitativo, os índios constituem uma fração muito pequena da população brasileira. Parece seguro dizer que, em muitas reservas, estão sendo suficientemente bem cuidados e suas escolas são bastante razoáveis. É claro, isso não quer dizer que a questão indígena esteja resolvida. Os que estão perto da civilização continuam muito pobres e, até certo ponto, discriminados pelos pobres brancos ou nem tão brancos. Pior, pela sua localização remota, tanto os índios pobres quanto os não-índios estão fora do alcance dos programas sociais que hoje beneficiam quase todos os brasileiros.
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III. ATUAIS POLÍTICAS DE COMBATE À DESIGUALDADE A. Educação básica para todos Sem dúvidas, a arma mais potente contra a desigualdade é um sistema de educação básica eficiente e universal. Isso, como todos nós sabemos, é o que está levando demasiado tempo para o País conseguir. Aliás, no passado recente, o Brasil ficou para trás até dos países mais pobres da região, como o Paraguai e a Bolívia. Quando tomamos hoje aquelas estatísticas que incluem a população total, como a escolaridade média, as taxas de analfabetismo e o percentual da população com esse ou aquele nível de educação, estaremos medindo a educação do passado. Consequentemente, ainda mostram o Brasil em uma posição atrás desses dois países. Isto porque, elas refletem a escolaridade que não tiveram todas as coortes em que ainda há sobreviventes. Octogenárias analfabetas de origem rural estão puxando para baixo as médias nacionais — que hoje incluem novas coortes, onde praticamente não há mais analfabetos.
É mérito da atual geração que essa situação tenha se revertido nas últimas duas décadas. Em todas as estatísticas (de fluxos, isto é, do que está acontecendo com a faixa etária em idade escolar), o Brasil está se aproximando da Argentina, Chile e Uruguai, os países mais avançados em questões educacionais da região. Como já foi dito, na virada do milênio, cerca de 97% da faixa de 7-15 anos estava na escola. Foi uma grande conquista. Significa que, em termos quantitativos, pobres e ricos, negros e brancos ainda estão na escola quando completam 15 anos. Não há caminho melhor para reduzir a desigualdade. Foram precisos muitos séculos para se conseguir isso e não se pode menosprezar essa grande conquista. Naturalmente, ainda há muito para se fazer. A qualidade do ensino é péssima e as escolas que recebem os pobres e as que estão em áreas remotas são muito piores do que as outras. Há um longo caminho a percorrer, a fim de reduzir as diferenças no desempenho escolar entre os diferentes grupos da sociedade. Não é só isso. Nos níveis médio e superior, persistem as diferenças de participação entre as classes sociais. Atualmente, somente 57% da faixa etária correspondente concluem os oito anos do ensino básico. Inevitavelmente, a evasão ocorre principalmente nas famílias mais pobres. Como pode ser facilmente previsto, uma fatia significativamente menor dos mais pobres termina o nível médio. No ensino superior, as desistências continuam a reduzir o tamanho da matrícula. Nos anos iniciais a matrícula bruta chega a 20% e, nos finais, a 10%. Ademais, o sistema é tão ruim que quando os alunos chegam às faculdades eles já são adultos, bem além da idade prevista. Mas o reverso da medalha é que o sistema agora permite à geração anterior ter uma segunda chance para entrar no ensino superior. Dependendo da ideologia, uma ou outra explicação será escolhida. Ainda que nada espetaculares, esses números são imensamente melhores do que os de uma década atrás. O caminho para reduzir as desigualdades no ensino superior é o mesmo observado na educação primária: escolaridade para todos. Como mencionado, o próximo passo é melhorar a qualidade, de resto, um tarefa muito difícil. Para resumir, nenhuma outra política educacional alternativa pode substituir esse esforço global de melhorar a abrangência e a qualidade da escola acadêmica.
O FUNDEF está restrito ao ensino básico. O atual governo pretende substitui-lo pelo FUNDEB, um projeto equivalente, mas englobando também a pré-escola e o nível médio.
B. FUNDEF, um fundo para reduzir a desigualdade nos gastos em educação O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF) foi um dos mais poderosos instrumentos para reduzir as desigualdades geográficas dos gastos educacionais. De fato, realmente beneficiou os Estados e municípios mais pobres. Em termos simples, o FUNDEF criou duas regras. (1) As cidades que investem em educação o porcentual do orçamento definido na Constituição, mas que não alcançam um determinado nível de gastos per capita, ganham o direito de receber do fundo o necessário para cobrir a diferença. (2) Os municípios que não investem a fatia legal devem pagar ao fundo a diferença entre o que foi gasto e o que deveria haver sido gasto. Cerca de 2 mil localidades, responsáveis por 66% das matrículas municipais, são beneficiadas com as transferências. No Nordeste pobre, os gastos cresceram 89% e os salários dos professores, 49%. No total, o FUNDEF criou 153 mil novos empregos, a maioria para professores. Num país com uma forte tradição de gastos públicos fracassados, o FUNDEF é uma exceção brilhante. O FUNDEF está restrito ao ensino básico. O atual governo pretende substitui-lo pelo FUNDEB, um projeto equivalente, mas englobando também a pré-escola e o nível médio. Após a aprovação final do projeto, estão pendentes as regras para dividir as verbas entre os níveis. Trata-se de uma partilha politicamente delicada e conflitante. Erros nas regras de distribuição podem ter conseqüências funestas para um ou outro nível de ensino. C. Bolsa Escola — bolsas para permanecer na escola O Brasil é um dos primeiros países, se não for o primeiro, a experimentar o repasse de verbas para famílias, condicionado a que elas mantenham as crianças na escola. O Bolsa Família consiste em entregar dinheiro a famílias pobres enquanto elas mantiverem as suas crianças matriculadas na escola, com freqüência regular e notas aceitáveis. Em alguns casos, o programa inclui a criação de uma caderneta de poupança para a família, que só poderá ser resgatada se a criança completar o ciclo escolar correspondente. Esse programa começou em Brasília e se espalhou pelo País. Nos anos 90, uma versão federal foi lançada. Na virada do milênio, cerca de 8 milhões de estudantes estavam inscritos nele. O laJAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO 103
do negativo dessa expansão é que a fiscalização dos condicionantes para receber as bolsas se torna muito mais problemática. Além disso, muitos países latino-americanos, incluindo a Argentina, adotaram projetos parecidos. O Banco Mundial e o BID têm mostrado grande interesse em replicar o programa em outros países. Há duas formas de ver esses programas. Mas, antes de tudo, precisamos considerar que são caros. O custo por estudante pode ser tão alto quanto o custo por aluno na escola pública. Nesse sentido, eles dobram o custo de se manter um estudante na escola. Esse foi o caso das primeiras versões em Brasília, as únicas que chegaram a ser avaliadas com um mínimo de rigor. Bolsas mais baratas foram adotadas em outras situações. Se uma secretaria de educação tem verbas e pode gastá-las como quiser, é muito provável que o Bolsa Escola não seja a melhor forma de usar esses recursos. As escolas públicas operam com níveis ínfimos de gastos. Freqüentemente, faltam materiais e equipamentos indispensáveis — até giz falta. A enorme verba necessária para criar programas de algum impacto por via do Bolsa Escola, se usada para reforçar o que se gasta na escola, traria uma revolução no aspecto físico, no conforto e no aparelhamento das salas de aula. Para que pudesse ser justificado, quando comparado a outras formas de alocação de recursos, seria necessário demonstrar que o programa causa uma enorme redução na evasão escolar. Infelizmente, a demonstração estatística dessa queda está longe de ser convincente. Para começar, não sabemos quantos dos alunos que recebem a bolsa sairiam da escola se a ajuda não existisse. O melhor que poderíamos dizer é que, em alguns casos, deve haver alguma associação entre estar na escola e receber o auxílio. Mas os números não permitem tal otimismo. Consideremos apenas que, na faixa dos 8-13 anos, perto de 100% das crianças vão à escola, independentemente de haver ou não Bolsa Escola. Ou seja, não há o que reduzir na evasão, já que é muito pequena. No nível médio poderia haver um impacto maior. Mas está para ser demonstrado. Entretanto, há outras formas de ver o programa que o tornam bem mais atraente. Num país pobre e desigual como o Brasil, o governo está sempre procurando os melhores meios de ajudar diretamente as famílias. Um programa de transferência de renda para alunos de escolas públicas é uma forma muito eficiente para definir e controlar quem se beneficia dele. Em outras palavras, o governo poderia simplesmente
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Uma segunda chance para os estudantes pobres A
combinação da degradação das escolas públicas com o preconceito contra os testes seletivos e o dogma da integração das salas de aula criou uma situação injusta para os pobres mais brilhantes. As escolas públicas não lhes oferecem uma chance para crescer — por serem muito fracas. Há resistência para permitir o uso dos testes que os identifiquem — para que lhes seja oferecido algo mais. E há uma crença de que, não importa o quanto eles sejam talentosos ou as escolas medíocres, esses estudantes têm de permanecer onde estão. Mas algumas instituições do Terceiro Setor estão reagindo. Nas últimas décadas, muitas iniciativas foram registradas e, nos últimos anos, bem mais tem sido feito. Veja alguns exemplos: 1. Fundação José Carvalho: educação de elite para pobres do sertão baiano O engenheiro e empresário José Carvalho criou uma próspera fundição de não-ferrosos na Bahia, a Ferbasa. Começou do nada e depois de ficar muito rico, concluiu que tudo o que tinha era graças à excelente educação que recebeu ao longo de sua vida. Sendo assim, ele quis pagar sua dívida moral. Como costuma dizer, "morrer rico é falta de imaginação". Em 1975, montou uma fundação com 94% das ações que tinha da Ferbasa. Com essa doação, foi erguido um campus rural. Dentro dele foi criada uma escola técnica extraordinária, com foco em mineração e línguas. Seus caça-talentos cruzavam o interior da Bahia, visitando escolas públicas e buscando os alunos pobres mais talentosos. Com esse método, conseguiu reunir um grupo de estudantes que eram, ao mesmo tempo, muito pobres e muito brilhantes. Sendo um pioneiro, nem tudo funcionou como se previa. Mas por tudo que se sabe, ele provou que muito pode ser feito em benefício de crianças talentosas que foram resgatadas da mediocridade de suas casas e de seu ambiente escolar. A Fundação ainda existe, mas mudou consideravelmente suas linhas de atividade. Ela hoje administra 12 escolas, atendendo a cerca de 12 mil estudantes na Bahia, Pernambuco e Sergipe. José Carvalho continua um marco nos esforços para dar uma chance melhor aos estudantes pobres com talentos superiores. 2. Bom Aluno: de pneus recauchutados à ajuda para pobres talentosos Francisco Simeão é o proprietário de uma grande rede de reforma de pneus no Brasil, a BS Colway. Junto com Luis Bonacin, criou em 1993 um programa muito interessante e bem sucedido para selecionar estudantes das escolas públicas e lhes dar bolsas de estudo para freqüentarem boas instituições privadas. Aproximadamente mil estudantes participam do programa, espalhados por sete cidades brasileiras. O programa Bom Aluno seleciona estudantes da quinta série, apenas dentre os alunos pobres. Eles são escolhidos segundo a sua aptidão escolar, o apoio familiar e a sua forte disposição para o sucesso.
Durante três anos, participam de um programa fora da escola para reforçar suas habilidades acadêmicas, o domínio do currículo oficial, a leitura e escrita, além das competências pessoais. Os que não conseguem manter os padrões academicamente altos exigidos são convidados a deixar o programa. Aos estudantes que completam o programa são oferecidas bolsas de estudo integrais em escolas privadas, para que continuem a sua educação. O programa, Instituto Bom Aluno do Brasil, mostra um respeitável histórico. De fato, ele exibe um desempenho impressionante: 100% dos que concluem o programa têm sido aceitos em universidades públicas e privadas. 4. ISMART: da cervejaria ao patrocínio da excelência Marcel Telles é um empresário de sucesso no ramo bancário e cervejeiro. Após a fusão com um grupo belga, a nova empresa, a InBev, tornou-se a maior fabricante de cervejas do mundo. Há cerca de cinco anos, ele criou a ISMART, uma instituição do Terceiro Setor com um objetivo muito claro: identificar os alunos mais brilhantes das escolas públicas e matriculá-los em um programa próprio de reforço escolar. A idéia era aumentar as chances de eles passarem no vestibular das melhores universidades brasileiras. Depois de funcionar por uns poucos anos no Rio de Janeiro, um programa alternativo foi criado em São Paulo. Em vez de administrar seu próprio centro, o que se revelou uma operação muito cara, o ISMART assinou convênios com as melhores escolas privadas da cidade, pagando as mensalidades dos alunos selecionados. Mas antes de os alunos terem condições de participarem das aulas regulares dessas escolas, recebem aulas especiais durante um ano, para que possam dominar os conteúdos dos currículos. Isso é feito como uma joint-venture entre escolas privadas e o ISMART, que paga a conta. No total, perto de mil estudantes participam de alguma das muitas modalidades do programa. As operações iniciais selecionavam os estudantes quando estavam na quarta série. Mas se descobriu que mantêlos por sete anos é caro demais e havia muitas perdas. A preferência atual é selecioná-los um ano antes de entrarem no nível médio. Ainda é muito cedo para avaliar os resultados, já que poucos participantes terminaram o ensino médio. Porém, segundo impressões iniciais, os resultados são promissores. Recentemente, o ISMART assinou um acordo para ter seus alunos avaliados por um teste respeitado, permitindo uma análise comparativa. Os escores obtidos pelos participantes do ISMART são extraordinários e permitem antecipar um bom desempenho no vestibular. Há um acordo informal com o Educar, uma instituição irmã, pelo qual os alunos capazes de entrar em cursos universitários de primeira linha, se necessário, irão receber bolsas de estudo. Mas a implementação desse esquema só virá mais adiante, quando os alunos do programa terminarem o seu curso médio. É muito instrutivo observar que, tanto no Rio quanto em São Paulo, nas principais bases de operação dos programas do ISMART têm havido muitas dificuldades no processo de seleção dos alunos. Em ambas as cidades, as Secretarias de Educação não querem desagradar os seus quadros administrativos, que são contra testes e contra programas desse tipo. Daí as inúmeras dificuldades para permitir que o ISMART aplicasse testes nos estudantes das redes públicas. As permissões foram conseguidas depois de muita pressão. Houve um momento no qual parecia que toda a operação estava ameaçada, pela recusa de permitir a aplicação dos testes que selecionaria os melhores alunos.
usar a escola para criar mecanismos de transferência de renda para os pais de crianças pobres. Tal forma de montar programas de transferência tem certas vantagens, quando comparada a outras opções. E se, além de ter uma base confiável para as transferências, o programa puder criar incentivos para que as crianças permaneçam na escola, essa é uma grande vantagem. Em outras palavras, como programa cujo objetivo principal é melhorar as escolas e a sua freqüência, os argumentos a favor da Bolsa Escola são muito frágeis. Porém, torna-se um programa atraente se for concebido como um mecanismo de transferência de renda que, além dos seus benefícios intrínsecos, ajuda a reduzir a evasão escolar. Tal argumento se sustenta desde que os recursos não sejam tirados dos orçamentos da educação. D. Pescando os talentosos pobres Quando o ensino público atendia apenas a uma pequena fatia da população, havia muitas escolas excelentes. Afinal de contas, como eram poucas, o País podia facilmente arcar com seus altos custos. Além disso, seus alunos eram, em sua grande maioria, das classes média e alta. Contudo, também iam a essas escolas um pequeno número de crianças talentosas, vindas de famílias mais pobres. A grande expansão na educação pública foi alcançada ao custo da erosão da qualidade e do prestígio dessas escolas públicas de primeira linha. Educação para todos passou a significar educação pública medíocre para todos. O lado bom é que as chances de uma criança pobre freqüentar uma escola se multiplicaram. O lado ruim é que as opções dessas mesmas crianças de freqüentar uma escola de boa qualidade diminuíram espantosamente, pois praticamente não há mais públicas de qualidade. A educação de qualidade passou a ficar muito concentrada nas escolas privadas. Como não têm praticamente nenhum subsídio público (a não ser modestas isenções fiscais) as escolas privadas são forçadas a cobrar de todos os alunos. Pouquíssimas bolsas de estudo são oferecidas para os pobres no setor privado. Programas para remediar essa situação ficaram em um limbo durante décadas. Curiosamente, a esquerda parece ser parcialmente responsável por essa situação. Os sindicatos de professores e os gurus educacionais, a partir da década de 80, foram contra os testes de desempenho educativo. Acontece que eles são um instrumento quase indispensável para selecionar os alunos mais talentosos das escolas públicas. Solidamente instalada nas administrações JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO 105
educacionais, a esquerda tem se manifestado veementemente contra a idéia de selecionar os pobres talentosos e transferi-los para escolas melhores. A ideologia predominante é a de "integração", ou seja, talentosos e medíocres devem ficar na mesma sala de aula. Na prática, isso significa manter os alunos talentosos em ambientes escolares medíocres, sem quaisquer estímulos para que se desabroche o seu potencial. Nos últimos anos, a situação começou a mudar, graças mais à filantropia privada do que por ações governamentais. O Terceiro Setor empresarial criou programas para selecionar os alunos mais talentosos e levá-los para instituições privadas de primeira grandeza. (Mais informações no boxe) Ainda é cedo para se ter um julgamento definitivo sobre esses programas, mas os resultados iniciais parecem encorajadores. Talvez, no longo prazo, a melhor conseqüência indireta sejam as reflexões e os debates que surgem com essas iniciativas. No caso, a idéia de selecionar os mais talentosos e transferi-los para instituições de excelência está se tornando
5. Rede Pitágoras se associa ao ISMART O Sistema Pitágoras é a terceira ou quarta maior instituição de educação privada no Brasil. Depois de abrir quase 20 escolas de nível básico, criou a Rede Pitágoras, hoje com quase 600 escolas associadas. Como nas outras redes desse tipo, o Pitágoras prepara todos os textos usados no programa, prepara os professores nos conteúdos e nas melhores formas de usar os livros, oferece cursos e workshops e, recentemente, passou a avaliar o desempenho acadêmico dos estudantes. Como seus concorrentes, trata-se de um sistema que se aproxima a uma franquia. Há menos de dois anos, o Pitágoras se uniu ao ISMART para criar um programa de apoio a estudantes talentosos de escolas públicas. O ISMART fornece o método e os instrumentos para pesquisar escolas públicas em busca dos alunos mais brilhantes. O Pitágoras ajuda na coordenação do programa e oferece os livros gratuitamente. As escolas da rede são convidadas a doar bolsas de estudos aos estudantes escolhidos. O esquema já tem quase 200 alunos. Em um país com pouquíssimas chances para alunos talentosos de escolas públicas, esse é um bom começo. 6. Escola Embraer-Pitágoras A Embraer é um das maiores fabricantes de aviões de passageiros do mundo. Instada pelos seus financiadores para criar programas sérios de responsabilidade social, seus dirigentes decidiram criar uma escola de
Divulgação
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Alunos do Colégio Eng. Juarez Wanderley: os dirigentes da Embraer decidiram criar uma escola de ensino médio que fosse modelo para o País. O exame de admissão é difícil e os alunos devem vir de escolas públicas e morar em São José dos Campos ou cidades vizinhas.
ensino médio que fosse um modelo para o país. Mas também, que atendesse exclusivamente aos alunos que completam o ensino básico em escolas públicas. Para realizar o projeto, terceirizou a operação da escola à rede Pitágoras, que já tinha experiência em administrar escolas em nome de grandes empresas brasileiras. A Embraer queria ver suas tradições gerenciais plasmadas no DNA da escola, acreditando que uma boa administração é vital tanto nas empresas de alta tecnologia quanto nas escolas. Foi assim criado o Colégio Engenheiro Juarez Wanderley, oferecendo tudo que uma escola deve ter, de computadores a laboratórios e excelentes professores. Está abrigado em um prédio construído na área industrial da Embraer. O turno na escola é longo, 9 horas por dia. Os estudantes têm de
ler muito e os registros da biblioteca mostram uma média mensal de cinco livros tomados emprestados por aluno. Além do currículo oficial, os estudantes se engajam em muitas outras atividades. O trabalho voluntário passou a mobilizar a veia criativa de muitos alunos. Cinco alunas da escola Embraer apresentaram, em inglês, o seu projeto de trabalho voluntário no banquete final da convenção do Tech Prep, em Orlando. Essa é uma escola criada para promover a justiça social. Assim sendo, logo se concluiu que seus alunos deveriam vir da rede pública. Sem essa condição, o colégio ficaria lotado de estudantes das classes mais altas, vindo das melhores escolas privadas do país. Os alunos também têm de ser de São José dos Campos, onde a fábrica está localizada, ou dos municípios vizinhos. Não era intenção da Embraer criar uma escola apenas para os alunos mais talentosos. Porém, sendo uma das melhores escolas do ensino médio a que uma criança de escola pública possa aspirar, ela termina com os melhores estudantes. O exame de admissão é muito difícil e seleciona os mais aptos (27 candidatos competem por cada vaga). Assim sendo, apesar da intenção de apenas oferecer um bom ensino para os alunos da rede pública, terminou sendo um centro de excelência, com alunos particularmente talentosos. Não é fácil quantificar os resultados globais desse esforço. Entretanto, se observarmos alguns números ou conversarmos com os alunos, há boas razões para acreditar que a Embraer está tendo sucesso em transpor sua filosofia empresarial para a escola. Em particular, a escola está dentre as 15 melhores do Brasil no teste do ENEM e 94% dos graduados da segunda turma conseguiram entrar em cursos superiores de difícil acesso. Serão todas essas iniciativas apenas minúsculas ilhas de excelência, indo contra as tradições educacionais brasileiras? Ou estão forjando novos rumos, quebrando tabus, abrindo as portas para iniciativas parecidas? As políticas públicas serão afetadas por essas idéias heréticas? Parece ser cedo demais para dar respostas definitivas. Mas há alguns sinais sutis de que se quebrou o tabu de não ser aceitável oferecer chances melhores aos mais talentosos. Alguns Estados estão tentando recuperar suas celebradas escolas médias do passado. E alguns municípios começaram a se preocupar com os seus alunos mais talentosos. JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO 107
mais aceitável para a sociedade. Não apenas isso, mas também alguns Estados estão desenterrando a velha idéia de ter pelo menos uma escola pública de alta qualidade, com o inevitável 'vestibulinho' para selecionar os melhores candidatos. Pelo menos, Sergipe e Pernambuco vão nessa direção. Toda essa discussão se refere ao destino de uns poucos milhares de estudantes, em uma população estudantil de mais de 40 milhões. Portanto tal questão não é a mais central quando discutimos o problema da equidade. Ainda assim, não podemos descartá-la. Para começar, os jovens realmente talentosos são poucos. Tendo em vista a falta de boa educação pré-escolar e básica, na época em que a seleção ocorre, muitas mentes talentosas já terão saído do sistema. Considerando o número de alunos talentosos de origem pobre, as vagas em tais programas não precisam ser muitas. Há outro aspecto da questão. O fato de esses programas existirem tem um valor simbólico considerável. Significa que se um aluno mostra excepcional desempenho em uma escola pública, terá uma grande chance de freqüentar as melhores escolas do País. Isso é um incentivo considerável. E. Programas para facilitar o acesso à educação superior Tanto quanto sabemos, o porcentual de jovens pobres que chegam à educação superior parece haver crescido pouco, nas últimas décadas. Infelizmente, os dados existentes são pouco adequados para tais comparações. Graças ao rápido aumento na escolaridade da população, em 20 anos, a escolaridade média dos pais dos estudantes universitários cresceu em muitos anos. Portanto, não há como comparar. Se hoje todos os pais têm mais escolaridade, não se pode concluir que a educação superior está ficando ainda mais elitista. O status da ocupação exercida é um indicador mais estável e que poderia esclarecer bastante a composição social das matrículas. Porém, raramente ele é definido da mesma forma nas estatísticas, tornando impossível comparar. Como indicador de pobreza, a renda familiar é um grande pesadelo, por causa de subestimações desconhecidas nas respostas às pesquisas, além das dificuldades estatísticas para eliminar o efeito da inflação através dos anos. Apesar das limitações dos dados disponíveis, os números parecem indicar que a presença dos pobres no ensino superior se estagnou. Isso ocorreu, em que pese o grande crescimento do ensino superior, que matriculou
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Estão tendo cada vez mais acesso à educação superior os mais pobres da classe média. Contudo, a presença da classe operária é ainda muito limitada.
107 mil pessoas em 1962 e atingiu aproximadamente 4,5 milhões de alunos em 2005. A impressão que se tem é que não houve muitas mudanças na composição dos alunos. O aumento das matrículas veio, inicialmente, da presença maior das mulheres (que hoje são consideravelmente mais numerosas que os homens). Progressivamente, houve a entrada de alunos vindo de famílias apenas um pouco mais pobres do que aquelas que antes já mandavam seus filhos para as universidades. Usando termos pouco rigorosos, parece que o grande crescimento vem do segmento mais pobre da classe média. De fato, dado o crescimento acelerado no ensino médio, a matrícula no ensino superior se aproxima da metade da faixa etária que termina o ensino médio. Isso é uma fatia da população bem maior do que o terço ou quarto dos brasileiros considerados de "classe média". Assim sendo, estão tendo cada vez mais acesso à educação superior os mais pobres da classe média. Contudo, a presença da classe operária é ainda muito limitada. A razão pela qual esse porcentual de filhos de operários não parece crescer mais rápido é bastante clara. As universidades públicas não cobram mensalidade, ainda que tenham custos mais ou menos equivalentes aos dos países da OCDE (ou seja, muito elevados para um país de renda média como o Brasil). Como os jovens bem preparados das classes mais altas da sociedade lutam ferozmente para garantir uma vaga nelas, sobram poucas para os mais pobres. Já a educação privada está totalmente ocupada por estudantes que pagam para freqüentá-la. Portanto, nelas os pobres têm poucas opções. Portanto, sobram-lhes duas alternativas. Podem competir pelo número relativamente pequeno de vagas em carreiras menos procuradas nas universidades públicas. Ou, podem fazer um grande esforço para pagar as mensalidades das instituições privadas menos caras. Carreiras de prestígio em universidades públicas são duplamente mais difíceis para os pobres, mesmo que não tenham de pagar mensalidade. Primeiro, como freqüentaram escolas públicas de qualidade duvidosa, não têm condições de se sair bem nos vestibulares das públicas, que podem ter até 30 candidatos por vaga. Segundo, eles têm de trabalhar, o que é incompatível com os cursos que exigem a dedicação em tempo integral (como Medicina). Instituições privadas de ensino superior são a alternativa para a grande maioria dos que atingem o nível de renda familiar permitindo pagar as mensalidades. Tais cursos são
Wilton Junior/AE
predominantemente noturnos, já que para pagar as mensalidades esses alunos precisam trabalhar em tempo integral. Apesar do grande crescimento nas matrículas, parece razoável dizer que um número muito significativo de candidatos potenciais ao ensino superior são barrados, por não terem condições de pagar uma mensalidade de 300 a 800 reais. Essa discussão mostra o enorme espaço que teriam programas que facilitassem o acesso de estudantes mais pobres ao ensino superior. Essa é uma questão que se tornou mais visível nos últimos cinco anos. 1. Programas de crédito educativo Faz algumas décadas que o MEC opera um programa de crédito educativo para estudantes (FIES). Esse programa vinha acumulando inadimplências nos pagamentos e operava sob uma burocracia espessa. Mas parece haver melhorado bastante nos últimos anos. O maior problema é que o seu porte permaneceu estagnado por muito tempo, alcançando não mais do que 15% das matrículas no superior. Muitas instituições privadas têm seus pró-
prios programas de créditos educativo. E bancos estão entrando também no setor. Mas as taxas de juros são muito altas e a sua cobertura é ainda bem modesta. Também existem, há muito tempo, instituições sem fins lucrativos que oferecem crédito educativo para nível superior. Um caso que chama atenção é a APLUB, do Rio Grande do Sul, criada para conceder créditos educativos a custos razoáveis. Mas seu porte é ainda bastante limitado.
O teste do ENEM é um importante instrumento do Ministério da Educação para garantir a qualidade dos alunos do PROUNI, pois trata-se de um exame tecnicamente muito competente.
2. PROUNI — bolsas de estudo em troca de isenção fiscal O PROUNI é um programa que concede isenção fiscal para faculdades privadas, em troca de bolsas de estudos para alunos pobres. Foi uma decisão inesperada, por parte de um governo que se diz de esquerda, criar um programa para financiar a educação privada. Muitos segmentos da esquerda não gostaram, mas optaram por não protestar com veemência. Os donos das faculdades privadas gostaram, mas negociaram por muito tempo os detalhes de implementação. Finalmente, o programa está a todo vapor e o primeiro grupo de JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO 109
Do puro ponto de vista da equidade, há méritos em qualquer mecanismo que aumente as chances dos estudantes mais pobres (ou de escolas públicas) de entrar nas universidades públicas.
estudantes chega a quase 150 mil. Os críticos do programa (de direita e de esquerda) reclamam que ele irá baixar a qualidade dos alunos. Evidência totalmente satisfatória ainda não está disponível. Porém, os números recolhidos por algumas faculdades sugerem que os alunos beneficiados pelo PROUNI são tão bem preparados quantos os demais e, ao longo do curso, vêm mostrando um desempenho semelhante. Mas faltam dados para uma análise mais confiável. O teste do ENEM é um importante instrumento do Ministério da Educação para garantir a qualidade dos alunos do PROUNI, pois trata-se de um exame tecnicamente muito competente, aplicado ao final do ensino médio. O que talvez possa preocupar é uma deserção maior, ao longo do curso, resultante da incapacidade dos alunos de arcar com os custos adicionais de cursar uma faculdade. No geral, o programa é um grande sucesso. Até os críticos mais ácidos do atual governo acreditam que essa é a iniciativa mais bem-sucedida de aumentar o acesso dos mais pobres. 3. Cotas para alunos de escolas públicas Enquanto o PROUNI está mostrando resultados sólidos, a idéia de cotas para minorias e alunos de escolas públicas permanece envolvida em controvérsias e ambigüidades. Comecemos discutindo as cotas para estudantes do ensino público, mais simples e muito mais fáceis de implementar. Do puro ponto de vista de equidade, há méritos em qualquer mecanismo que aumente as chances dos estudantes mais pobres (ou de escolas públicas) de entrar nas universidades públicas. Porém, há mais assunto nessa questão do que o simples fato de que a equidade melhora. Primeiro e acima de tudo, existe uma dimensão política na escolha do programa de cotas para o ensino superior. Esse nível causa muito barulho, é visível e atuante, chamando muita atenção para as políticas governamentais. Ou seja, foi uma escolha política e não uma decisão de beneficiar a maioria dos pobres. A crítica pertinente é ser tarde demais para uma política de ação afirmativa oferecer cotas para o ensino superior. De fato, quatro dentre cinco dos estudantes mais pobres já terão sido expulsos do sistema educacional, nos níveis precedentes. Assim, é uma ação afirmativa que beneficia uma pequena fatia da população que se pretenderia atingir. Muitos observadores, incluindo este autor, têm argumentado que a forma mais drástica e profunda de uma ação afirmativa para ajudar os
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pobres seria melhorar a qualidade da educação básica. Seja o que for que o País ofereça como facilidade de acesso ao ensino superior, não será mais do que um paliativo, incapaz de reduzir significativamente a injustiça do sistema. A próxima questão pendente tem a ver com o princípio que privilegia a excelência e a meritocracia. Todo sistema de ensino superior sério tem esses dois princípios entre seus pilares. Um sistema de cotas que milita contra eles é uma derrota para os objetivos clássicos de uma universidade. Assim sendo, há uma pergunta essencial em qualquer mecanismo desse tipo. Os beneficiários das cotas serão escolhidos de uma forma que preserve a meritocracia e evite uma queda da qualidade? Aqui, o que importa não são os princípios, mas os mecanismos de implementação. Ou seja, as fórmulas para selecionar os estudantes que entrarão nas cotas vão garantir que haja, ao mesmo tempo, justiça, meritocracia e excelência? O Ministério da Educação propôs um mecanismo simples: reservar 50% das vagas para alunos das escolas públicas. Diante da comoção que as cotas provocaram no meio universitário, foi feita uma estimativa de uma provável deterioração nos padrões acadêmicos. Definindo alguns cenários plausíveis, a Universidade de São Paulo estimou que a qualidade de seus cursos de Medicina e de Direito poderia cair bastante. Há argumentos na direção oposta, o problema é que não são acompanhados de estimativas confiáveis. A confusão piorou, graças à falta de clareza quanto à aplicação das cotas. Serão alocadas para cada curso da universidade ou para as matrículas como um todo? As respostas permanecem obscuras. Em paralelo a essa discussão acalorada, a Universidade de Campinas e, depois, a Universidade de São Paulo, adotaram uma abordagem mais atraente. Por esse esquema, os alunos da rede pública recebem um bônus de 30 pontos no vestibular. Esse prêmio pode ajudar justamente àqueles estudantes que ficaram ligeiramente abaixo do ponto de corte, que determina quem entra ou não no curso considerado. Uma pesquisa anterior revelou que os estudantes mais pobres, que no vestibular tenham tido uma pontuação semelhante às dos outros, têm um desempenho tão bom quanto ao de alunos de classe mais alta. Afinal, tais alunos são excepcionais, no sentido de que superaram seu baixo status sócio-econômico. Assim sendo, há boas razões para crer que as cotas da Unicamp não causam queda na qualidade do alunado. Ainda mais interessante é o programa ado-
tado pela Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Em vez de reduzir a barreira de entrada, ela criou um grande programa para apoiar escolas públicas de ensino médio na região. O programa melhora a educação dada nessas escolas e prepara melhor seus alunos para o vestibular. Como resultado, dois terços dos estudantes da Universidade de Santa Maria vêm de escolas públicas, um porcentual bem maior do que qualquer outra universidade pública brasileira. Um sinal encorajador é a mudança na nova versão da proposta da Reforma Universitária, enviada ao Congresso pelo Ministério da Educação. Ao contrário das versões anteriores, ela deixar de mencionar mecanismos e números, onde havia referências a cotas, e deixa livre para as universidades públicas decidirem as formas a serem usadas para aumentar a participação de alunos da rede pública. 4. Cotas para negros e índios Junto com as cotas para alunos das escolas públicas, o Ministério da Educação também propôs cotas para negros e índios. Em outras palavras, o componente étnico foi adicionado à já espinhosa questão das cotas. Há duas questões em discussão. A primeira é de procedimento: Como determinar quem é negro ou índio? De acordo com as estatísticas oficiais, cerca de 5% dos brasileiros teriam sangue negro puro, acompanhado de todas as características visuais de sua ancestralidade africana. Cerca de metade da população brasileira é visualmente branca ou caucasiana. Os restantes 40% teriam origens étnicas miscigenadas, geralmente, europeu, negro e índio. Uma pesquisa recente com DNA desarrumou essa divisão. Dificilmente um brasileiro tem "sangue puro", seja lá o que isso signifique. Além disso, a correspondência entre os resultados do DNA e os aspectos visuais não é necessariamente óbvia. Pessoas com aparência caucasiana podem ter sangue negro e viceversa. Embora seja a única alternativa com base científica, se o país optar por usar o DNA para implementar cotas raciais, poderá criar uma imensa confusão. Portanto, uma cota racial teria de considerar ou os aspectos visuais ou a ancestralidade. A definição de raças pelo aspecto visual segue a tradição brasileira. Quem parece branco é branco. E vice-versa. Essa tem sido a forma de os brasileiros lidarem com a raça, há séculos. Mas quem vai olhar e decidir? Onde está o limite, nos casos intermediários? A Universidade de Brasília exige uma fotografia do candidato para checar se a ra-
ça declarada combina com a que aparece na foto. A exigência causou uma forte reação de muitos setores, mas a UnB se mantém inflexível. A política oficial é aceitar a auto-identificação. Quem se classifica como negro é negro. Nenhuma pergunta é feita. A implementação inicial dessa política mostrou alguns abusos, denunciados pela imprensa. O pesadelo jurídico criado por candidatos contestando a identificação racial poderá vir a sufocar o sistema. Inevitavelmente, as cotas raciais estão criando muita apreensão na sociedade brasileira. Não que o debate seja ruim em si mesmo. Pelo contrário. Mas como está sendo conduzido, não sabemos se o resultado será positivo. Um aspecto muito difícil da questão é que pode criar a tendência de polarizar as raças, algo que a sociedade brasileira sabiamente evitou, até o momento. Alguns observadores qualificados parecem acreditar que o Brasil poderá conquistar melhores níveis de igualdade racial sem destruir a coabitação pacífica e a autêntica tradição de minimizar os conflitos de origem étnica no País. Muito preocupante é a tendência de tomar emprestado dos americanos a definição de negro, como alguém que tenha qualquer quantidade de sangue negro. Politicamente, tem a conseqüência de aumentar a proporção de negros de 5% para metade da população. Mas como considerar metade dos habitantes uma minoria? E a qualquer um pode ocorrer a pergunta lógica: se ¼ de sangue negro define um negro, por que ¾ de sangue branco não é branco? Mais ainda, por analogia, a presença de sangue índio deveria definir a pessoa como índia. Por que não? Mas se isso for feito, quase todos os 50 milhões de nordestinos e mais os que migraram para o Sul não deveriam também ser índios? O principal temor de muitos observadores qualificados é que controvérsias e disputas sobre quem é de que cor, às portas do ensino superior, podem ter um impacto muito prejudicial nas relações raciais. É muito cedo para se saber, mas há razões suficientes para se preocupar.
Junto com as cotas para alunos das escolas públicas, o Ministério da Educação também propôs cotas para negros e índios. Em outras palavras, o componente étnico foi adicionado à já espinhosa questão das cotas.
F. Vencendo a desigualdade espacial O Brasil tem mais de 7 milhões de quilômetros quadrados. Enquanto esse enorme espaço oferece um potencial ilimitado de crescimento econômico e demográfico, cria um desafio muito grande para o desenvolvimento da educação superior fora das grandes cidades. Nos anos 60, a rede de universidades públicas federais cresceu muito. Em cada Estado, pelo menos uma universidade federal foi criada. JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO 111
Isso foi um excelente salto para frente, tendo em vista o que estava então disponível. Porém, deixou o Brasil com uma rede de universidades apenas nas capitais, em país onde isso pode significar que a faculdade mais próxima pode estar a milhares de quilômetros. Em outras palavras, são 27 capitais com universidades federais e 5.500 municípios sem ensino superior. O sistema federal funciona com custos muito altos por estudante e não teve capacidade de se expandir mais, para se estabelecer também fora das capitais. Diante disso, o setor privado aproveitou e se distanciou das capitais, para ocupar um mercado virgem. Esse movimento começou há duas décadas. Atualmente, há cerca de 2 mil instituições de ensino superior. Uma enorme fatia delas está longe das capitais. Muitas cidades com poucas dezenas de milhares de habitantes já têm suas faculdades. Como dito, a diminuição da desigualdade geográfica começou com a iniciativa do governo federal de pôr uma universidade em cada capital. Mas ficou para o setor privado se mo-
Manter-se competitivo é uma questão de vida ou morte para a economia brasileira. Para conseguir isso, é importante que a força de trabalho esteja mais bem preparada.
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ver para cidades menores e mais distantes. Nos últimos anos, outro passo importante está sendo dado para reduzir ainda mais a injustiça espacial: a educação a distância. Desde o começo dos anos 80, o Brasil tentou reproduzir o modelo da Universidade Aberta, criando uma rede de universidades a distância. Porém houve forte resistência de muitos setores, levando ao fracasso todas as tentativas de vencer a barreira legal. Vinte anos depois, a pressão pela educação a distância está voltando, com ímpeto. Nos últimos cinco anos, o setor privado tem se movimentado muito rápido para oferecer uma grande variedade de programas de educação a distância. Há alguns anos, o Ministério da Educação tinha feito uma tentativa, que não foi muito longe. Sua única oferta importante estava centrada no treinamento de professores. No passado mais recente, um grande programa federal foi lançado com metas ambiciosas. Para resumir, após sofrer oposição por duas décadas, a educação a distância está crescendo
Regina Agrella/Folha Imagem
IV. CENÁRIOS FUTUROS Vejamos algumas considerações sobre o mundo da economia. Há uma tendência generalizada de que a competição internacional fique ainda mais dura. Qualquer país que queira se dar bem e sobreviver em um ambiente econômico cada vez mais competitivo tem de se preocupar muito com o nível de capacitação de sua força de trabalho. Aliás, os concorrentes do Sudeste Asiático estão erodindo a competitividade brasileira em áreas como eletrônicos, têxteis e calçados. Brinquedos já são quase um caso perdido. A nossa próspera indústria automotiva já está sofrendo com a concorrência do Leste Europeu e da China. Manter-se competitivo é uma questão de vida ou morte para a economia brasileira. Para conseguir isso, é quase desnecessário salientar a importância de que a força de trabalho esteja mais bem preparada. Cada vez mais se torna difícil competir com a China e, ainda mais, com países como o Vietnã, em produtos que dependem de mão-de-obra barata. Os custos sociais no Brasil são altos e as indústrias modernas têm aumentado os seus salários. Além disso, os custos indiretos, o chamado "Custo Brasil", aumentam ainda mais o preço dos produtos brasileiros. Uma taxa de câmbio sobrevalorizada pode ser uma condição passageira, mas ela já dura alguns anos. Assim sendo, o Brasil precisa de uma força de trabalho muito bem preparada, para manter seus nichos de mercado e conquistar outros, com produtos mais sofisticados. Para produtos de mais alto valor adicionado, precisam-se de trabalhadores melhor qualificados. Poucos vão discordar de tais afirmativas.
Roberto Alvarenga
muito rápido, agora liderada pelo setor privado. Estimativas das matrículas atuais mostram números próximos de 300 mil estudantes. É interessante observar que a modalidade de e-learning permanece muito limitada. A solução preferida são as aulas pela TV, transmitidas por satélite. Isso parece ser resultado da intimidade dos brasileiros com a televisão e da experiência bem-sucedida em oferecer educação básica e de jovens e adultos pela TV. Do lado negativo, o e-learning é prejudicado pelas limitações nas competências de leitura dos alunos, chaga que se origina nos primeiros anos de escolaridade.
Sob tanta pressão para competir, que prioridade deve ser dada para a meta de combater a desigualdade? A resposta aponta para um círculo virtuoso. Não há mais uma situação "ou isso ou aquilo". Quase não existe mais no Brasil a situação onde as empresas são administradas por executivos e técnicos altamente gabaritados e, ao mesmo tempo, a base da produção é formada por semi-analfabetos. Na economia atual, muitas das empresas usando tecnologia avançada são pequenas. Além disso, nas grandes empresas, as hierarquias são mais horizontais. Os operários do chão-de-fábrica têm de tomar decisões que podem ser relativamente complexas. Isso tudo leva a uma força de trabalho que precisa ter consideravelmente mais competências, mesmo no chão-defábrica. C om bat e r a d e s igualdade significa melhorar as conq u i s t a s e d u c acionais dos que estão na base. Esse é um objetivo meritório em si mesmo. Ele deve ser realizado por motivos de justiça social, antes de mais nada. Porém, sob as atuais condições, é também um imperativo econômico. Melhorar a eficiência e a competitividade da economia exigem consideráveis, senão drásticas, melhorias nos níveis educacionais dos que estão na base. Assim, a clássica disputa — eficiência versus justiça — parece haver desaparecido. O Brasil precisa das duas. Mas o lado bom é que as políticas que levam à eficiência não são muito diferentes daquelas que promovem a justiça. O verdadeiro desafio agora não é o impasse de escolher uma ou outra prioridade, mas sim as difíceis questões de implementação. A questão real é saber se, depois de uma longa história de desenvolvimento educacional lento, em todos os níveis, o país será capaz de se mover mais rápido. Muito foi conquistado na última década. O processo vai continuar? Os últimos quatro anos não foram encorajadores, já que o crescimento das matrículas se desacelerou e pouco ocorreu com a qualidade. JAN/FEV 2007 DIGESTO ECONÔMICO 113
Digesto Econômico: seis décadas de debate. Domingos Zamagna Jornalista e professor de Filosofia
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A
revista bimestral Digesto Econômico, da Associação Comercial de São Paulo, há mais de sessenta anos discute os principais problemas do Brasil e do mundo, trazendo para os empreendedores econômicos e sociais da ACSP e para um público mais amplo, mesmo de leigos, em linguagem acessível, os complexos fenômenos da atualidade, suas tendências e rumos. Esse compromisso foi assumido pela ACSP, através de seu presidente em 1944, Brasílio Machado Neto, e renovado pelo atual presidente, Guilherme Afif Domingos, por ocasião da inauguração da nova fase da revista (nº 439, set/out/2006). Numa visão retrospectiva, quais as circunstâncias que levaram uma entidade de caráter francamente econômico a fundar e manter por tão longa trajetória, num País onde nem sempre se dá muito apreço à memória e às iniciativas longevas, um instrumento de informações pertinentes para a defesa da livre iniciativa e o esclarecimento ideológico?
O BRASIL A grave crise que afetou os Estados Unidos em 1929, com repercussões em todo o continente americano, só chegou totalmente ao fim na segunda guerra mundial. Pois a guerra proporcionou um novo surto de prosperidade, não só aos norte-americanos, mas também a diversas partes da América Latina na década de 40. Caíam as importações, mas desenvolviam-se as exportações, provocando o crescimento industrial e urbano. Camadas da elite agrária deram um passo na constituição de uma incipiente burguesia industrial, ao mesmo tempo em que surgiam massas urbanas que acabaram por influir na vida política de muitos países. O desejo de incorporar as massas urbanas ao processo político contribuiu bastante para o aparecimento de governos populistas. O populismo foi um fenômeno típico das décadas de 30 e 40, tendo sua maior expressividade na Argentina de Juan Domingo Perón e no Brasil de Getúlio Vargas. Três fatores conduziram Perón à presidência argentina em 1946: sua atividade de ministro do Trabalho em 44/45, arregimentando e favorecendo o proletariado; a sustentação dos jovens oficiais de tendências fascistas; e o apoio dos católicos de tendências franquistas.
Pode assim aperfeiçoar o Justicialismo, que procurava neutralizar os conflitos de classes e incrementar uma legislação trabalhista de caráter assistencialista. O Brasil tinha conhecido desde novembro de 1937, data do golpe que instaurou o Estado Novo, o significado de uma ditadura: fechamento do Congresso Nacional, imposição de uma constituição (a "Polaca"), amedrontamento da classe média com propaganda anti-comunista, centralização política, censura aos meios de comunicação, repressão da atividade política, perseguição e prisão de adversários, atrelamento dos sindicatos, medidas econômicas nacionalizantes, nomeação de interventores em todos os níveis da administração etc. Do ponto de vista das relações trabalhistas, o Estado Novo se caracterizou pela implantação de um sindicalismo corporativista. Proibidas as greves como arma de pressão nos antagonismos entre capital e trabalho, os trabalhadores deviam se sujeitar à justiça trabalhista. O 1º de maio tornou-se data magna, com pomposos anúncios de leis trabalhistas, geralmente no estádio de futebol do Vasco da Gama no Rio de Janeiro (em 1940, Vagas anunciou a Lei do Salário Mínimo; em 1942, o Imposto Sindical; em
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O cotejo entre alguns artigos de primeira necessidade e salários vigorantes entre 1920 e 1944. Abaixo, a cidade sentia a necessidade de um metropolitano.
1943, a CLT), exceto o de 1944, que foi celebrado em São Paulo. O chefe do governo, através de ampla propaganda, foi mitificado a tal ponto que até hoje há quem dê prosseguimento a um discurso sobre Getúlio "pai dos pobres", "doador da legislação trabalhista" etc. Surge assim a ideologia do Trabalhismo, destinada a cooptar as massas trabalhistas para os desígnios do Estado. Identificavam-se as figuras do chefe com a do Estado. Numa palavra: a tendência do Estado Novo era absorver o indivíduo pelo Estado. Em 27/12/1937, pelo decreto-lei nº 1915, foi criado o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), subordinado diretamente à autori-
Fotos: reprodução
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dade do presidente. Atuando em todos os campos de manifestação cultural, tornou-se os olhos e os ouvidos da ditadura varguista, importantíssimo instrumento do processo de legitimação do regime, para o que contribuiu a criação da "Hora do Brasil", de grande audiência, pois os discursos do presidente eram transmitidos ao lado de programas musicais (Chico Alves, Heitor dos Prazeres, Carmem Miranda etc). Rádio e imprensa eram os veículos modernos de que o Estado soube fazer uso para a sua legitimação pela cooptação das massas. Obviamente a ditadura não poderia comportar uma imprensa livre e independente. Basta relembrar que o papel de imprensa era monopólio do Estado e quem coordenava a sua distribuição era o DIP. A ocupação do prédio de O Estado de S. Paulo, que exercia constante crítica ao regime de Vargas, é o emblema de como procedia o DIP em casos de resistência. Só em 1945 acabou a censura ao jornal, quando então Júlio de Mesquita pôde voltar do exílio e reassumir sua direção. Desde 1943, porém, o regime varguista começou a dar sinais de enfraquecimento. A entrada do Brasil na guerra acirra as contradições acumuladas em vários setores do governo. O Estado sente que começa a perder a hegemonia; de admirador do "Eixo" Roma-Berlim-Tóquio, o governo foi forçado pelos Estados Unidos a tomar posição em favor dos "Aliados" (o "estado de guerra" com a Alemanha e a Itália foi decretado por Vargas em 1942). Ora, lutar contra a ditadura na Europa não podia combinar com a permissão de uma ditadura dentro do Brasil. Tanto que o Manifesto dos Mineiros (1943) — embora bastante comedido, como tudo o que vem de Minas — já denota de um lado a falta de apoio social do Estado Novo, e de outro lado o afastamento de Vargas das classes produtoras. Nem mesmo o "Queremismo", que chegou a pleitear uma "Constituinte com Getúlio", foi capaz de deter a onda liberalizante, que culminou impondo a Vargas a renúncia e a entrega do governo ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Linhares, que convocou eleições para 02/12/1945. Foi eleito o marechal Eurico Gaspar Dutra com 55% dos votos, a maioria deles em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. O segundo colocado, brigadeiro Eduardo Gomes, não teve mais que 35% dos votos. O ano de 1946 começa, portanto, com a posse de Dutra em 31 de janeiro, mas ainda na vigência da Constituição de 1937, um diploma de inspiração fascista.
O ESTADO E A CIDADE DE SÃO PAULO No início da década de 30, a capital do Estado conheceu uma crise política e administrativa, que se caracterizou por um processo de demolição de instituições. Um sintoma significativo da instabilidade: entre 1930 e 1934, a cidade teve 12 prefeitos, uma média de 87 dias de exercício de mandato para cada um. Por quase duas décadas a cidade perdeu parcial ou totalmente sua autonomia, pois aos 12 prefeitos nomeados seguiram-se mais 9, completando 21 prefeitos nomeados antes que o primeiro prefeito eleito tomasse posse, mas somente em 1953! O novo regime federal tinha tendências inequivocamente centralizadoras, que incidiram na organização dos Estados e municípios, através de mecanismos de controle e planejamento, sendo os organismos legislativos substituídos pelas imposições do executivo. Somente em São Paulo esse autoritarismo federal foi confrontado, pois a elite paulista do café ainda mantinha o controle político local. O ápice da reação paulista, como se sabe, deu-se com a Revolução Constitucionalista de 32. Não obstante a derrota do Estado, a prefeitura da capital logrou realizar
várias mudanças administrativas e foi com estruturas mais simples e enxutas que se tornaram possíveis as profundas intervenções urbanísticas realizadas em São Paulo durante o Estado Novo, inicialmente por Fábio da Silva Prado (19341938) e sobretudo por Francisco Prestes Maia (1938-1945), sob interventoria de Adhemar de Barros. Esses prefeitos souberam assumir um modelo de planejamento técnico, encarado como política e socialmente neutro. O Estado e a capital apresentaram desde então, em face da nação, um intenso padrão de crescimento que seria doravante o seu sinal distintivo. Um crescimento tão explosivo, que alguns quiseram orientá-lo, criando a Sociedade Amigos da Cidade (SAC), certamente a antecessora das Sociedades de Amigos do Bairro, de importante papel político e reivindicatório nas décadas de 40 e 50. O fato é que Prestes Maia, uma das glórias da Escola Politécnica de São Paulo, passou para a história como o primeiro prefeito paulista a merecer a imagem de "mestre de obras" competente, austero e íntegro, que mais tarde
ACSP, um prédio de 12 andares localizado na Rua Boa Vista, 51, para comemorar o seu cinqüentenário. Pedra fundamental: 1939. Conclusão da obra: 1944.
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lhe valeu a maior votação até então recebida por um homem público, para o mandato de 19611965. Certamente a cidade deve a ele o bom ambiente para os novos empreendimentos encetados, malgrado a situação complexa que a segunda guerra mundial trouxe para a economia.
A ACSP foi pioneira na defesa dos interesses do comércio e indústria. Abaixo (dir.) emissões elevavam custo de vida.
O DIGESTO ECONÔMICO A Associação Comercial de São Paulo, fundada em 1893, dispunha de um jornal, o Diário do Comércio, por sua vez fundado em 1924. Os historiadores não deixam de assinalar que o DC é o único jornal diário de uma entidade de classe no Brasil. Desde o começo deu mostras de vanguardismo, pois a preocupação inicial, quando ainda se chamava "Boletim Confidencial", era a constituição de uma rede de proteção, através de informações, que tornasse seguros os empreendimentos dos associados. O DC tem, portanto, nos seus mais de oitenta anos, um lugar de destaque na trajetória da imprensa brasileira, sendo um baluarte do e m pre e n d ed o r i sm o , da livre iniciativa, do jornalismo cívico. O Digesto Econômico, editado a partir de 1944, na concepção dos seus fundadores, correspondia a uma necessidade dos novos tempos no fim da guerra. Isso se confirma lendo os primeiros artigos do Digesto, com grande destaque para os estudos sobre "economia de tempos de guerra", já que ainda pairava sobre as redações o fantasma da censura varguista. O gênero jornalístico "digesto" sempre teve algumas vantagens. Pois ele consiste fundamentalmente num resumo ou condensação, numa compilação selecionada e ordenada de temas relevantes para um determinado público. O "digesto" colocava, portanto, ao alcance dos associados da ACSP, o material necessário para um aprofundamento temático, mas em sintonia com o flu-
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xo contínuo de informações geradas pelo "diário". Uma ars combinatoria muito propícia para os tempos confusos do fim de uma ditadura, num mundo realmente conturbado. De fato, o Brasil e o mundo estavam em desordem econômica, política e ideologicamente. As principais instituições da nação, cada vez mais compromissadas com a democracia ainda sufocada pelo governo federal, sentiam a necessidade de criticar medidas arcaicas, aliviar tensões, repensar modelos, propor alternativas, alicerçar valores, olhar para o futuro com clarividência, aplainar os caminhos esburacados pelo Estado Novo. A ACSP, naquela época já mais que cinqüentenária, tinha experiências a transmitir, convicções para externar. A revista surge exatamente para se inserir num recomeço, num mutirão que o Brasil precisava realizar para a construção de um novo tempo de paz. E os empreendedores econômicos não poderiam se furtar de suas responsabilidades. Acredita alguém que é possível a paz sem um sólido estofo econômico que propicie a independência? Alguém acredita que um país economicamente frágil e à mercê das oscilações ideológicas possa usufruir dos benefícios da liberdade? A linha editorial que a ACSP quis imprimir ao Digesto, porém, foi a de uma economia que seja capaz de trazer ao ser humano o lastro que lhe assegure a liberdade. Liberdade para empreender, e até mesmo ousar, sem entraves de qualquer natureza, já que o feitio da entidade é trabalhar pela livre iniciativa dentro dos parâmetros éticos que em seus 113 anos de história nunca se mostraram anacrônicos. Assim, o Di ges to nasceu num momento de comprovada maturidade da ACSP, coirmão do Di á-
rio do Comércio, destinado a ser um veículo de diálogo e esclarecimento, com a profundidade que a estrutura e urgência industriais do jornal nem sempre podem propiciar. Não será difícil ao historiador das idéias, sobretudo das idéias econômicas, acompanhar a evolução e os percalços verificados na história recente do Brasil através das páginas do Digesto. Mais do que isso: pode-se acompanhar desde a evolução dos costumes, dos padrões de jornalismo, do nosso idioma, da linguagem publicitária... até os índices de produtividade, novos equipamentos, a bibliografia, os prognósticos econômicos, os cenários políticos, as incidências e a superação das crises e impasses da nação, a transferência da capital do País, as consultas populares sobre presidencialismo e parlamentarismo, as campanhas cívicas ..., fazendo o elenco dos principais autores e teses que expressaram a liderança paulista e nacional. O leitor bem pode avaliar o acervo de milhares de artigos, ensaios, conferências, resenhas, relatórios etc. sobre o pensamento econômicofinanceiro e político do Brasil e do mundo. O acadêmico Alberto Venâncio Filho assim sintetizou o trabalho realizado pelo Digesto: "O Digesto Econômico é o maior repositório de estudos sobre a realidade brasileira" (nº 369, p. 23). E acrescentou: "Se examinarmos o panorama desde o Império, poucas revistas atingiram a duração do Digesto Econômico".
Seus diretores de primeira hora foram os jornalistas Ruy Bloem e Ruy Nogueira Martins. A partir de 1947, por 26 anos, o Digesto foi dirigido pelo publicista e historiador Antônio Gontijo de Carvalho. A partir de 1973, a publicação passou à direção dos jornalistas João de Scantimbugo, Paulo Edmur de Souza Queiroz e Wilfrides Alves de Lima. Com a morte dos dois últimos, ficou a direção do periódico sob a responsabilidade do escritor João de Scantimburgo, o qual, desde 1992, foi também alçado à condição de membro da Academia Brasileira de Letras, o que sem dúvida trouxe ainda maior prestígio para a publicação. Obviamente, em sessenta anos o Brasil mudou bastante. E o Digesto p ro c u ro u acompanhar todas as transformações pelas quais passou a nossa sociedade: economia, legislação, tributação, política, educação, cultura, saúde, agricultura, religião, urbanismo, sindicalismo, administração etc. As mudanças, contudo, não impediram a sobrevida de muitas das características de país subdesenvolvido e periférico. Surprendentemente, constatamos que o País é rico, porém, injusto. Exatamente por ser uma nação que abriga tantas contradições, precisamos proporcionar aos que têm as mesmas preocupações com a livre iniciativa e as instituições democráticas, um espaço em que se exprimam livremente, sem a camisa de força do ranço socialista que caracteriza a maior parte dos ambientes de educação e cultura do País e do continente. Essa foi a trajetória, esse tem sido o compromisso e esforço do Digesto Econômico: um ininterrupto fórum de debates de seis décadas, a serviço da economia e do humanismo.
A coleção do Digesto mostra a evolução da linguagem publicitária. Abaixo, ilustração do auxílio dos EUA aos Aliados: o objetivo moral da vitória sobre o Eixo falava mais alto que o lucro pecuniário.
Núcleo de Promoção - ACSP