Digesto econômico nº 442

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Milton Mansilha/LUZ

Fotos: Agliberto Lima/DC

ÍNDICE

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Destaque o mapa com os possíveis distritos de São Paulo

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A necessidade de uma ampla reforma política Guilherme Afif Domingos

Não devemos temer o bom debate Bolívar Lamounier

Projeto do voto distrital tramita no Congresso Arnaldo Madeira

Voto distrital: um sistema para fortalecer a democracia Fernando Henrique Cardoso

Qual o tipo de reforma que o País precisa? Miro Teixeira

Uma árdua batalha a ser travada e vencida Antonio Octávio Cintra

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Lutar é nosso dever como cidadão Jorge Bornhausen

Uma mobilização como as Diretas Já Fernando Henrique Cardoso

Argumentos contrários são insustentáveis Bolívar Lamounier

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Avanço somente com mobilização social José Eduardo Cardozo

Vamos começar a mudança pelas capitais Guilherme Afif Domingos

É preciso a mão da mídia para ganhar o apoio da opinião pública Arnaldo Madeira

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Fotos: Agliberto Lima/DC

ÍNDICE

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Proposta necessita de ações práticas Amaury de Souza

Na prática, voto por distrito já é realidade Nelson Rojas de Carvalho

Os obstáculos no caminho da reforma Raul Jungmann

Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Alencar Burti

Atuação no Congresso e campanha popular Fernando Gabeira

Modelos internacionais mostram os desafios Jairo Nicolau ISSN 0101-4218

Plantar dúvidas para colher esperanças Alencar Burti

Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Domingos Zamagna e Carlos Ossamu Editor de Fotografia Alex Ribeiro Editor de Arte José Coelho

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Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Laborgraf

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Sistema eleitoral brasileiro: complexo e ineficiente.

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REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.

Principais fatos da história do voto no Brasil


Rafael Hupsel/LUZ

As mudanças que interessam ao País

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Brasil vive uma crise de credibilidade, que só não é pior uma vez que a economia tem caminhado relativamente bem, empurrada pelos bons ventos do mercado internacional. Se não fosse isso, muito provavelmente estaríamos afundados em um cenário desolador, com graves conseqüências para toda a população e para as instituições democráticas. Desde o final do primeiro governo Lula, temos ouvido, quase que diariamente, notícias de escândalos. Passadas as eleições e sem que ninguém fosse punido, novas denúncias surgem, desta vez da máfia das obras, que fraudava licitações públicas. Fatos como estes demonstram que o País necessita urgentemente de uma reforma política. Foi com este objetivo que no dia 12 de março, por iniciativa da Associação Comercial de São Paulo e do Instituto Fernando Henrique Cardoso, realizamos o seminário "Voto Distrital: A Reforma Política que Interessa ao Brasil". Contamos com a participação de uma platéia seleta e de debatedores de peso, com destaque para o presidente Fernando Henrique Cardoso, que deixou seus compromissos nos Estados Unidos, onde leciona, para dar a sua importante contribuição para o debate. Foi unânime a opinião de que o País precisa mudar, que a descrença que paira hoje sobre as instituições favorece a única organização que vem crescendo nos últimos tempos, que é o crime organizado. Como professor que é, o presidente Fernando Henrique nos deu uma aula de história e de lucidez política. Na sua opinião, o processo que vivemos nos últimos dois anos é muito grave, referindo-se à sucessão de denúncias de corrupção que abalaram o nosso sistema político. Mais grave que as denúncias é a não punição dos envolvidos, demonstrando que a lei no Brasil não vale para todos. Não há democracia sem o respei-

to ao processo legal. A impunidade desagrega valores e corrói a democracia. Não havendo respeito à lei e punição aos culpados, não é difícil imaginar que, num dado momento, possamos nos ver diante de situações fora de controle. Como pano de fundo da reforma política está a mudança do sistema eleitoral. Hoje, em se tratando de eleições legislativas, o eleitor não sabe em quem votou e o deputado ou vereador não se sente ligado a quem o elegeu. O voto distrital eliminaria esta distorção pois, ao ser eleito por um distrito, há uma natural aproximação entre eleitor e eleito - a população sabe em quem votou e o político sabe quem o elegeu. A proposta do presidente Fernando Henrique, apoiada por todos no encontro, é que se inicie um movimento pelo voto distrital já para as eleições municipais do próximo ano. O deputado Arnaldo Madeira apresentou projeto de emenda constitucional instituindo o voto distrital. O projeto está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mas hoje, segundo o próprio autor, não há chances sequer dele ser votado. Aliás, a tônica das palestras dos demais políticos presentes, entre eles o exsenador Jorge Bornhausen, os deputados Miro Teixeira, José Eduardo Cardozo, Fernando Gabeira e Raul Jungmann, foi justamente as dificuldades de se levar o tema para discussão no Congresso, pois aqueles que foram eleitos pelo atual sistema dificilmente irão aderir gratuitamente a uma reforma sem terem a certeza do que ganham e o que perdem. Para ilustrar as dificuldades no Congresso, o deputado Raul Jungmann observou que, após a CPI dos Sanguessugas, que mandou mais de 70 parlamentares para a Comissão de Ética, parecia claro que a reforma política era inevitável, pois o governo não tinha mais como formar maioria. Não foi o que ocorreu. Bastou uma nova eleição para o governo con-

seguir a maioria que aí está e que, nas palavras do próprio deputado, "que seja infinita enquanto dure, ou enquanto durarem os cofres públicos". Por outro lado, os cientistas políticos que participaram do debate, entre eles Amaury de Souza, Bolívar Lamounier, Jairo Nicolau, Nelson Rojas de Carvalho e Antônio Octávio Cintra, fizeram um debate acalorado sobre qual modelo distrital seria melhor para o País, levando-se em conta experiências internacionais já testadas, como nos Estados Unidos, Canadá, França, Alemanha e outros países. No centro das discussões estavam os sistemas puro, proposto na emenda do deputado Arnaldo Madeira, em que os eleitores votam em um candidado por distrito, e o sistema misto, em que se vota no candidato e também na legenda. As discussões foram enriquecedoras, mesmo demonstrando que não será fácil levar a proposta adiante, mas nem por isso devemos desanimar. É nosso dever demonstrar que o atual sistema está exaurido e que se não nos unirmos em torno de uma solução, o País poderá, no futuro, sofrer graves conseqüências. O objetivo desta edição do Digesto Econômico é divulgar as idéias debatidas neste encontro, alimentando a tese de que o voto distrital é a reforma que interessa ao Brasil. Boa leitura.

Alencar Burti MAR/ABR 2007 DIGESTO ECONÔMICO

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A necessidade de uma Milton Mansilha/Luz

Guilherme Afif Domingos Secretário do Emprego e Relações do Trabalho do Estado de São Paulo

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eu caro e eminente presidente Fernando Henrique Cardoso; senador Jorge Bornhausen; Alencar Burti, presidente da Associação Comercial de São Paulo e presidente da Confederação das Associações Comerciais do Brasil; Bolívar Lamounier, Sérgio Fausto, coordenador de Estudos e Debates do iFHC e mediador desta mesa; deputados e secretários de Estado e do Município aqui presentes; é uma honra recebê-los nesta casa. Presidente Fernando Henrique, tivemos algumas conversas no final do ano passado a respeito do embate da reforma política, que me parece que, ao lado de outras reformas, está sendo, mais uma vez, postergada e adiada. E a idéia, que é iniciativa do Instituto Fernando Henrique Cardoso, com pleno apoio da ACSP, é exatamente iniciar este debate em todo Brasil; um profundo debate sobre a reforma política, começando pelo sistema eleitoral e pela introdução do voto distrital, que é uma bandeira que perseguimos há muito tempo.


ampla reforma política Falo em nome do sistema das associações comerciais, em função de sua capilaridade, do seu enraizamento nas comunidades, olhando muito de perto o que é a representação da base da sociedade perante o poder. E hoje assistimos a cada eleição o aprofundamento das distorções existentes. Por isso estamos aqui, para juntos darmos início a esta idéia. Nosso companheiro Alencar Burti, como presidente da Confederação e também da Associação Comercial de São Paulo, tem como responsabilidade levar este debate a toda a base da sociedade. Acho que nós, a partir das idéias aqui expostas, das propostas que serão feitas e principalmente do norte que será dado por sua palestra, estamos realmente iniciando o grande debate da reforma política no Brasil. Portanto, nos sentimos muito honrados com a sua presença e passamos imediatamente a palavra a Vossa Excelência. Após a sua exposição, teremos um debate entre os membros da mesa: Jorge Bornhausen, Bolívar Lamounier, os deputados, mediados pelo Sérgio. Seja bem-vindo, presidente Fernando Henrique, à Associação Comercial de São Paulo!

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Agliberto Lima/DC

Fernando Henrique Cardoso Ex-presidente da República, sociólogo, escritor e professor do Watson Institute for International Studies, da Universidade de Brown, nos Estados Unidos

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momento é extremamente oportuno para debatermos a fundo a questão do voto distrital, que diz respeito não apenas ao sistema eleitoral, mas ao sistema político brasileiro. Recentemente, escrevi com Eduardo Graeff um artigo para a Revista do Congresso, que começa com a seguinte consideração: "A discussão sobre a reforma eleitoral no Brasil é antiga e sempre vista com uma certa suspeição". Em conversa recente, meu amigo Leôncio Martins Rodrigues me disse que falar sobre reforma política é conversa fiada de quem não quer entrar em outros temas mais relevantes para o Brasil. Wanderley Guilherme, por outro lado, teme que, por trás da reforma política, o que se procura é retardar o acesso das massas ao poder. Os argumentos são os mais diversos sobre as razões pelas quais não se faz a reforma e

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isto vem de longe. Na mesma revista a que me referi, vai ser publicado um trabalho sobre a questão eleitoral durante o período do Império. Sistema eleitoral foi um tema debatido ao longo de todo o século 19. Naquela época, o que se chama hoje de voto distrital era a Lei dos Círculos. Em 1855, o Marquês do Paraná, Honório Hermeto Carneiro Leão — presidente do Conselho do Império, artífice do Gabinete da Conciliação que deu estabilidade ao governo imperial — aprovou, com o apoio do imperador, a Lei dos Círculos, ou seja, o voto distrital. Vale notar que os defensores da Lei dos Círculos valorizavam seu efeito moralizador frente à pressão dos grupos econômicos, via nomeações. Havia a interferência do poder local e do poder imperial na designação dos candidatos. O principal argumento em favor da lei era seu impacto em termos de favorecer uma relação mais direta entre o eleitor e o eleito.


Voto distrital:

um sistema para fortalecer a democracia A mudança foi aprovada, realizou-se sob o novo regime a eleição de 1857 e, logo depois, em 1860, o imperador baixou outro ato, modificando a Lei dos Círculos: em vez de um candidato por distrito, passavam a ser três. No fim do período imperial, com a Lei Saraiva, voltamos a um sistema que não era mais o da Lei de Círculos. Qual a razão desta introdução, não digo pessimista, mas cautelosa? É porque, em se tratando de organização do sistema de voto, há muitas fórmulas possíveis e nenhuma delas satisfaz plenamente a todos. Tampouco se pode esperar que o sistema de votos resolva os problemas do País, pois não resolve. A persistência ou não da corrupção, por exemplo, depende de um conjunto de outras questões. Qual então meu principal argumento para defender neste momento a introdução do sistema distrital? Estamos diante de uma questão que é mais ampla do que o sistema eleito-

ral. Sem querer ser pessimista, não estou prevendo que vá acontecer, mas sim que existe o risco de um desmoronamento das instituições republicanas. Quem conhece a história da América Latina sabe que crises políticas podem ocorrer. Não de repente, como um raio em céu azul, que vem e muda tudo, mas aos poucos, na medida em que os sistemas políticos vão gradualmente perdendo credibilidade. Hoje está na moda discutir o que está acontecendo na Venezuela. É preciso de fato entender o que ocorreu nesse país para que as coisas chegassem ao ponto em que estão. Vou contar um fato a respeito da Venezuela: eu era ministro do Exterior e tinha uma relação pessoal com o então presidente Carlos Andrés Perez, que pertencia, como eu, aos círculos da Internacional Socialista. Homem inteligente, duas vezes presidente de um país com um sistema político aparentemente es-

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tável. Dois partidos, encarnando com outros nomes as correntes políticas — a Social Democracia e a Democracia Cristã — eram as forças que se revezavam no poder. Eu era ministro do Exterior quando chega a notícia de um levante na Venezuela. Falo pelo telefone com o presidente Carlos Andrés Perez, que me diz: "Não, não se preocupe, eu estou aqui cercado, quer ver?" — e me fazia ouvir o barulho dos tiros em volta. "Mas vou ganhar...". E ganhou. Era uma tentativa pré-Chávez de tomada do poder. Dez anos mais tarde, eu estava na presidência da República e me telefona o presidente Hugo Chávez: "Estou cercado, etc e tal". Eu lhe disse: "Não se preocupe, vou falar com o nosso chanceler para que o Brasil lidere uma tomada de posição conjunta em favor do respeito das instituições democráticas". Foi o que fizemos, apesar do apoio dos Estados Unidos ao movimento golpista. Esta defesa das instituições contribuiu para o colapso do golpe e a preservação do mandato do presidente Chávez. Relembro essa história para salientar que o sistema político venezuelano já vinha sendo erodido e este processo de corrosão já vinha de antes da eleição de Hugo Chávez. A situação já era grave quando a presidência era ocupada por Rafael Caldera, intelectual de respeito, porém já próximo dos 80 anos de idade e sem condições de estar ativamente no comando da Venezuela. Caldera tentou enfrentar a crise, mas não teve êxito. O resultado é o que vimos: o presidente Chávez foi eleito, jurou a Constituição, mas disse que não ia respeitá-la e muita gente aplaudiu e apoiou... No Peru, antes de Alberto Fujimori, não foi diferente. Por circunstâncias pessoais, acompanhei muitas vezes a vida dos peruanos. Nos anos 66/67 eu trabalhava na CEPAL com Francisco Weffort, que foi meu ministro da Cultura. Fomos ao Peru para preparar um plano de desenvolvimento econômico e social para o governo. Mais tarde, estive lá quando os militares estavam no poder e, em seguida, após o restabelecimento da democracia, voltei algumas vezes. Essas idas e vindas não bloquearam a marcha irresistível da insensatez. As instituições perderam legitimidade aos olhos da população, veio a eleição de Fujimori e, depois, seu auto-golpe. A Argentina passou por processos semelhantes. Também por circunstâncias da vida eu estava lá quando caiu o presidente Arturo Illia. A mesma história se repetiu em diferentes con-

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Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês de Paraná: presidente do Conselho do Império, aprovou em 1855, com o apoio do imperador, a Lei dos Círculos, ou seja, o voto distrital, que foi instituído para fortalecer a relação entre eleitor e eleito.

textos: de repente os sistemas políticos entram em processo irreversível de desagregação. No Brasil, com a retomada da democracia a partir do governo Sarney, conseguimos, apesar de muitos abalos, preservar as instituições. Tivemos o período do presidente Collor, com seus sobressaltos. Nos últimos dois anos, passamos por problemas extremamente graves e as instituições estão intactas. Intactas, sim, mas com perda de seiva, com perda de confiança por parte da população. Frente a esse processo de perda de legitimidade, ou bem conseguimos gerar mudanças que revitalizem a democracia como valor aos olhos da população, ou não nos iludamos, com o tempo o sistema político continuará a se esgarçar.

Reprodução


Não chegamos ainda a um ponto crítico, nem estou prevendo que vamos chegar. Por isso mesmo este é o momento oportuno para discutirmos a questão. A experiência histórica mostra que situações de crescente distanciamento entre políticos e população não são indefinidamente sustentáveis. Cedo ou tarde, o sistema entra em crise e, nesse momento, abre-se o caminho para o autoritarismo, a demagogia ou mesmo para situações de anomia. A consolidação democrática precisa estar enraizada e garantida por instituições respeitadas pelo povo. Por isso, digo que o núcleo da discussão não é sobre o sistema de voto. É sobre a própria democraciam que não é só voto. Eleições livres e alternância no poder são condições indispensáveis, mas não suficientes. Tiranos já foram eleitos pelo povo. A democracia requer um conjunto de instituições capazes de assegurar que o eleito respeite a lei, que as minorias sejam respeitadas, a Constituição seja cumprida e a independência dos poderes preservada. Estamos vivendo um momento no Brasil em que se tem a sensação de que estes princípios e valores fundamentais não estão sendo fortalecidos. Falta não somente às instituições, mas à nossa cultura cívica e política, a crença na igualdade de todos frente à lei. Este é o ponto fundamental. Um país no qual não existe o devido respeito ao processo legal, no qual a lei não vale, não pode ser democrático. No Brasil em particular e na

Reprodução Paulo Liebert/AE

Eça de Queiroz: escritor português foi autor de um artigo sobre o progresso da decadência. Havia a idéia de que Portugal não tinha entrado na "modernidade" por haver corrupção e empreguismo.

América Latina em geral, o arcabouço da democracia está bem estruturado. A liberdade é um fato, as eleições se realizam, existem os instrumentos fundamentais para o funcionamento efetivo de um sistema democrático. Mas não existe ainda a crença que a lei é para ser respeitada. O que existe é a evidência diária do seu desrespeito. O processo que vivemos ao longo dos últimos dois anos é muito grave. Refiro-me à sucessão de denúncias de corrupção que abalaram o nosso sistema político. Não tanto pelos fatos em si, mas sobretudo pela impunidade. Esse é o ponto crítico. Quando o desrespeito à lei é comprovado e nada acontece, configura-se a evidência que a lei não está valendo. Não existindo o valor da igualdade de todos perante a lei, tudo o que acontece é concessão. É o que dizia o velho ditado do Império: "Aos inimigos a lei, aos amigos o perdão". Quando a lei só vale para o inimigo, é o arbítrio que prevalece. Quando o presidente da República diz, "olha, isso não é crime porque todos praticam, mesmo se a lei não permita", o que simbolicamente se está dizendo é que "vale tudo". A sensação de cada um é que, na verdade, vale tudo mesmo. Quando não se tem confiança na força da lei, ela não é mais respeitada. Duvido que haja parlamento com mais propostas de novas leis que o parlamento brasileiro. Esta pletora de propostas legais não garante o respeito à lei. Determinadas leis são invocadas para justificar o descumprimento de outras. Os intermináveis recursos e apelos aos tribunais não são uma tradição especificamente brasileira. É algo que vem da história ibérica. Li recentemente um livro, "Portugal como Problema" (organizado por Pedro Calafate), sobre a decadência de Portugal. Esse declínio teria começado no século 16 e se tornou agônico no século 19. Nesse momento, a literatura portuguesa estava florescente, com Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Antero de Quental e outros. Os grandes escritores e intelectuais da época passaram a discutir a questão política de Portu-

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gal. Como no tempo do nosso Império, diziase que Portugal não progredia porque tinha corrupção, empreguismo — todos queriam ser funcionários públicos. Portugal não ia para frente porque existia o arbítrio. Eça de Queiroz escreveu um artigo sobre o progresso da decadência. Havia a sensação que, em comparação com a Inglaterra e mesmo com a Espanha vizinha, Portugal não havia dado entrada na assim chamada "modernidade", que implicava aceitar o espírito da reforma protestante e do capitalismo. Persistia a tradição beletrista e juridicista de que tudo se resolve através da lei. Essa sensação é parecida com o que experimentamos hoje. Como o Brasil, Portugal não estava parado, assim como nós não estamos. Mas em comparação com outros

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Homem retira retrato do ditador Oliveira Salazar da parede. Em 25 de abril de 1974, Portugal saía de quase meio século de regime fascista imposto por Salazar, movimento conhecido por Revolução dos Cravos.

países, não estamos avançando. Portugal, por outro lado, é um exemplo eloqüente que a mudança é possível. Participei em vários momentos de reuniões com líderes da Revolução dos Cravos, em Portugal, em que o debate girava em torno à seguinte questão: "Vamos nos modernizar e entrar na Europa ou vamos continuar e ser a vanguarda do atraso?" A resposta não era evidente. Muitos pensavam que a integração na Europa não era o melhor caminho para Portugal. Talvez fosse mais vantajoso permanecer como uma ponte entre a África e a América do Sul, ao invés de participar das instituições européias. Evidentemente, esse ponto de vista não prevaleceu. Eu estava na Espanha quando do plebiscito sobre a adesão do país à OTAN. Entrar numa aliança militar de contenção da União Soviética era uma opção perturbadora para um presidente socialista. Feito o plebiscito, prevaleceu a posição favorável à adesão, apoiada por Felipe González. Decisões como esta mudaram o destino da Espanha e de Portugal. Por que menciono estes fatos históricos? Porque estamos diante de um desafio similar. A questão da reforma política levanta interrogações de fundo sobre o que queremos para o Brasil, qual nosso destino como nação. Vamos aceitar a mediocridade como rumo, resignando-nos a tudo que está aí como algo natural, ou vamos efetivamente construir uma sociedade aberta e dinâmica, onde a democracia não se reduza ao voto, mas seja exercício pleno da cidadania, com respeito à lei, perante à qual todos são iguais e quem erra, paga? Quando a noção de igualdade perante a lei não existe, a igualdade social passa a ser concessão. É o que está acontecendo com o Programa Bolsa-Família que, ao invés de exprimir — como no desenho original do Bolsa-Escola — um direito a ser exercido pela cidadania, transformou-se em uma concessão feita pelo "pai da pátria". Esse retrocesso, essa volta atrás no tempo, é uma questão de mentalidade, de cultura política. Creio que é chegada hora de recorrermos à capilaridade das organizações da sociedade para abrirmos um grande debate, uma discussão sobre nossa cultura cívica e política, capaz de gerar idéias e propostas sobre o rumo que queremos dar ao Brasil. Vamos superar tradições que são equivocadas e avançar na direção de um efetivo respeito à lei, à democracia, ou vamos continuar como estamos, assistindo ao progresso dos outros? Nesse mundo em processo acelerado de transforma-


ção, a opção pela mesmice nos condena a ficar cada vez mais para trás. Há que enfrentar o risco da mesmice, questionando e rompendo com os velhos modelos e práticas. Neste sentido, a reforma política deve partir de uma visão que seja radical. Radical no sentido de ir à raiz da questão. Temos que nos apoiar no que ainda resta de crença no valor das instituições e nos perguntarmos o que é possível fazer para fortalecer sua credibilidade. É deste ângulo que abordo e valorizo a proposta de voto distrital. Há várias maneiras de se chegar a um desenho, a uma nova institucionalidade, no que diz respeito ao sistema de voto. Nenhuma fórmula é perfeita, mas tenho a convicção que o voto distrital tem a capacidade de alterar as relações de poder na sociedade. Nosso sistema eleitoral, hoje, é proporcional e uninominal. O Estado é o distrito eleitoral, cada partido apresenta uma relação de candidatos. A p r i m e i r a c o n s eqüência do sistema vigente é a fragmentação do partido político. O principal adversário do candidato é o colega de partido. Esta competição introduz um forte elemento de disputa interna, que mina a solidariedade da bancada eleita. Por outro lado, o eleitor é confrontado a uma pletora de nomes. A lei eleitoral faculta a apresentação por cada partido de uma lista de candidatos equivalente a uma vez e meia o número de cadeiras do Estado no Congresso. Em São Paulo, onde há 70 vagas em disputa, cada partido pode apresentar 105 candidatos. Multiplique-se este total pelo número de partidos e temos milhares de candidatos numa disputa para pescar, literalmente, eleitores num aquário de 25 milhões de votos. O eleitor não sabe em quem votou e o deputado não se sente ligado a quem o elegeu. Em um país com 100 milhões de eleitores, a base real do sistema eleitoral são máquinas eleitorais, não pessoas. Preocupado com sua reeleição, o deputado recém-eleito não tem como se relacionar com uma massa de eleito-

Não por acaso, nas pesquisas de opinião pública, o Congresso e os partidos recebem sempre uma apreciação altamente negativa.

res espalhados por todo o Estado. A tendência é se voltar para quem o apoiou. Essa máquina eleitoral pode ser uma estrutura partidária, um sindicato, uma empresa, uma igreja, um clube de futebol. No sistema atual, a base efetiva do parlamentar não é o povo, não é o eleitor. É uma fatia organizada da sociedade que o apoiou e que ele, eleito, tem que servir. Há, é claro, os que respondem a essas expectativas propondo leis e iniciativas. Mas há também os que respondem de uma maneira, digamos, mais imediata e concreta, negociando contratos em favor da prefeitura ou benefícios em favor da empresa que contribuiu para sua campanha. Isso não ocorre só no Brasil. É inerente à lógica do sistema proporcional vigente. Esse sistema leva a uma distância muito grande entre o eleitor e o eleito. A mediação não passa por uma relação direta com o eleitor, passa por esses instrumentos de coleta de voto que não são os cidadãos. O eleitor se sente excluído desse processo. Não por acaso, nas pesquisas de opinião pública, o Congresso e os partidos recebem sempre uma apreciação altamente negativa. A ausência de vínculo gera uma distância insuperável entre o cidadão e o político. Essa distorção afeta o funcionamento da base partidária no Congresso e, no limite, a própria governabilidade. O governo precisa de apoio no Congresso. Onde e como ele vai buscar este apoio em um Congresso fragmentado, em que a posição da grande maioria não tem qualquer relação com o programa partidário e o percentual dos que se elegeram pelo voto de opinião, generosamente, não passa dos 15% do conjunto de parlamentares. Estamos vendo os problemas enfrentados pelo presidente Lula para organizar sua base de apoio. A despeito do número de partidos que o apóia, para aprovar qualquer coisa é preciso negociar com cada um. Não estou fazendo uma crítica partidária ou pessoal. Este não é um problema do presi-

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Tentei articular um conselho de presidentes dos partidos que compunham a base de apoio do governo. Não funcionou, porque um dos presidentes queria ser ministro.

Há, porém, uma objeção séria ao sistema de voto distrital: a eventual eliminação das minorias. Esse argumento era mais pertinente antes do acelerado processo de urbanização e democratização do País.

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dente Lula, é um problema do sistema. Frente aos temas em debate, o Congresso funciona em função de solidariedades e de interesses, agrupados em frentes integradas por pessoas de todos os partidos: frente da saúde, da educação, dos ruralistas, dos evangélicos etc. Quando o governo negocia com o Congresso, não está negociando com os partidos e sim com interesses específicos e organizados. Na minha presidência tentei articular um conselho de presidentes dos partidos que compunham a base de apoio do governo. Não funcionou porque, logo, um dos presidentes quis ser ministro de Estado... Ou seja, era mais atraente ser ministro do que presidente de partido. O Congresso certamente tem seus líderes. Porém, o presidente da República rapidamente se dá conta que não adianta conversar só com os líderes, pois estes são cadeias de distribuição das demandas individualizadas dos parlamentares, condutores dos interesses dos deputados frente ao governo e não orientadores da opinião e voto de suas bancadas. O governo tem que falar com o presidente do partido, com os líderes, com vários deputados e com as frentes. Este processo complexo e tortuoso corrói a legitimidade de todo o sistema e o déficit de legitimidade termina por afetar a governabilidade. É imperativo mudar essa situação. Se o Congresso fosse um conjunto orientado por partidos, o cenário seria radicalmente outro. Os partidos não têm capacidade aglutinadora. Nosso sistema eleitoral transforma o Congresso numa espécie de simulacro de uma trading house, uma casa em que se negocia em função do poder de diferentes lobbies. Partido político e lobby são coisas diversas. O partido tem programa, idéias, filosofia, propostas. O lobby tem interesses. A vida política é feita de interesses e idéias. Isto é legítimo. O que não é legítimo é substituir o partido pelo lobby. De que maneira o voto distrital poderia contribuir para mudar essa situação e que outras alternativas existem? Uma delas — o voto em lista fechada — é uma opção que favorece radicalmente o partido. Ao invés de o povo escolher seu preferido dentre os candidatos apresentados pelo partido, como acontece hoje, o eleitor votaria na legenda do partido. Apurado o número de candidatos eleitos por cada legenda, os eleitos seguiriam a ordem em que seus nomes constavam na lista organizada pelo partido. Qual o inconveniente? O voto em lista fechada fortalece o partido, mas aumenta a dis-

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tância e desconfiança entre o povo e o eleito. Não há nenhuma relação direta e pessoal entre um e outro. Quem controla a legenda — ou seja, a oligarquia partidária — é quem vai realmente mandar. A experiência mostra que um momento difícil da vida partidária é o da composição das listas eleitorais nas convenções. Este é o momento em que as disputas internas e os conflitos entre os próprios candidatos atingem seu ponto crítico. Sem dúvida, esse processo faz parte da luta política mas, no atual sistema eleitoral, as brigas e os arranjos ocorrem sem que a opinião pública se dê conta do que está acontecendo. As convenções partidárias são uma espécie de caixa-preta, em que ninguém sabe exatamente como são feitas as escolhas das listas de candidatos. Em um sistema de lista fechada, essa situação vai se acirrar na medida em que aqueles que controlam o partido é que vão dizer quais os que virão nos primeiros lugares da lista, portanto com chances reais de eleição. O voto na legenda ampliará em muito a luta surda, porém não menos desagregadora da que se dá no processo de formação da chapa. Há uma proposta de voto em lista fechada em tramitação no Congresso e, pelas razões expostas, estou convencido de que tem inconvenientes insuperáveis. A alternativa é o voto distrital. Vejamos como esta proposta, de autoria do deputado Arnaldo Madeira, funcionaria no Estado de São Paulo. A bancada paulista é de 70 deputados. O Estado seria dividido em 70 distritos e, em cada um deles, cada partido apresentaria um único candidato. Sem dúvida haverá uma disputa no partido naquela região para saber quem será o candidato, mas até mesmo essa decisão já será influenciada mais diretamente pelos próprios eleitores. Escolhidos os candidatos — se houver dez partidos concorrendo, o que já é muito — o eleitorado vai escolher um entre dez e não um entre mais de mil, como é hoje. Na eleição seguinte, quatro anos depois, alguns candidatos voltarão a se apresentar, o que vai criando maior proximidade e familiaridade do eleitor com o candidato. Será também muito mais fácil para o eleitor avaliar o desempenho do candidato eleito que busca a reeleição. Encurta-se significativamente a distância entre o cidadão e o político. Há, porém, uma objeção séria ao sistema de voto distrital: a eventual eliminação das minorias. Esse argumento era mais pertinente antes do acelerado processo de urbanização e demo-


Kevin Sanders/Reuters

cratização do País. As discussões no tempo do Império giravam em torno da questão do aumento da influência do poder local sobre a escolha do candidato. Dizia-se que, ao invés de um deputado, o sistema conduzia à eleição de um vereador nacional. Hoje é diferente. A sociedade está muito mais aberta e diferenciada. Os partidos, para serem competitivos, precisam abrir espaço para representantes de causas valorizadas pela sociedade. Por exemplo, com certeza algum ambientalista se candidatará com chances de vitória em um dos distritos de São Paulo. Passei a maior parte do mês de março último nos Estados Unidos, lecionando na Universidade de Brown. É fascinante perceber a força crescente das minorias e dos grupos discriminados na política interna americana. Hoje, no Partido Democrata, dos dois principais candidatos, um é uma mulher, Hillary Clinton, o outro é negro, Barack Obama. As mulheres não constituem minoria, mas são tão discriminadas quanto algumas delas. A disputa restrita a setores não componentes

Darren McCollester/AFP

do establishment era impensável há dez anos. As minorias e os setores discriminados ganham força na medida em que as sociedades aprofundam seu processo de democratização. O problema não está num déficit de democracia na sociedade, mas sim nas instituições. Não está na questão da liberdade, mas sim na cultura cívica, na questão do respeito à lei e às instituições. Acho, portanto, que o voto distrital tem condições de lidar com o problema da representação das minorias, sobretudo se for adotado o mecanismo do voto distrital misto, como ocorre na Alemanha. Eu mesmo propus há muito tempo no Senado — e a Comissão de Justiça aprovou — a introdução do voto distrital misto que, ao contrário do voto distrital puro, mantém a proporcionalidade, o que dispensaria a necessidade de mudar a Constituição que estabelece o princípio da proporcionalidade. Como funcionaria o sistema de voto distrital misto? Voltemos ao exemplo de São Paulo. Das 70 cadeiras em disputa no Estado, 35 seriam preenchidas pelos votos dos distritos e

A força das minorias e dos grupos discriminados: nos EUA, os principais candidatos dos Democratas são um negro, Barack Obama, e uma mulher, Hillary Clinton.

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35 pela proporção do voto recebido pelo partido em todo o Estado. Esta fórmula resolve satisfatoriamente a questão das minorias. Por outro lado, tem a desvantagem de ser um sistema de entendimento mais difícil pela população, além de manter uma certa ambigüidade quanto à questão fundamental do vínculo de legitimidade: "eu votei em determinado candidato porque acredito nele, vou, portanto, acompanhar e cobrar seu desempenho ao longo do mandato". Infelizmente, a proposta que apresentei não foi adiante no Senado. E é bom lembrar que é mais fácil a reforma do sistema eleitoral ser aprovada no Senado, onde não afeta os senadores eleitos pelo voto direto, do que na Câmara, onde afetaria o modo de eleição dos deputados. Fazendo um parênteses: a OAB está trabalhando numa proposta de recall, ou seja abrindo a possibilidade do eleitorado pedir de volta o mandato. Na vigência do sistema proporcional, este sistema poderia ser aplicado ao detentor de um mandato executivo ou de um senador, mas não de um deputado, visto que é impossível saber quem, efetivamente, o elegeu. Voltando ao argumento central: o voto distrital misto é uma fórmula possível, porém complicada. Creio que deveríamos caminhar para o voto distrital simples ou puro e enfrentar, na prática, suas dificuldades, verificando, por exemplo, qual seu impacto sobre a representação das minorias. A experiência mostra que não há fórmula mágica que resolva tudo de uma vez. O sistema político não é fruto de vontades desligadas da concretude da vida. É a expressão dos interesses de pessoas reais. Por isso, as mudanças têm de ser feitas de forma incremental e não a partir da idéia de mudar tudo para que o Brasil, de uma hora para outra, fique melhor. O Congresso se deu conta dos limites impostos pela realidade, quando o Supremo Tribunal Federal derrubou a Lei de Barreira, que criava uma cláusula de desempenho pela qual os partidos que não obtivessem um apoio mínimo na sociedade continuariam a existir, mas deixariam de ter acesso a recursos do Tesouro. Abrir um partido político, hoje, representa um bom negócio. A Lei de Desempenho limitaria o acesso irrestrito a fundos públicos e à televisão por parte de partidos fictícios ou legendas de aluguel. Não discuto a decisão do Supremo, tomada com base em argumentos constitucionais. O Congresso está examinando outros mecanismos capazes de, incrementalmente, corrigir estas distorções. Está em pauta, por exemplo, a

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A OAB está trabalhando numa proposta de recall, abrindo a possibilidade do eleitorado pedir de volta o mandato. Na vigência do sistema proporcional, isso poderia ser aplicado ao detentor de um mandato executivo ou senador, mas não de um deputado.

questão da fidelidade partidária. O senador Marco Maciel tem uma proposta relativa ao prazo de filiação no partido: quem se desfiliasse do partido pelo qual se elegeu teria que aguardar um determinado período antes de poder se candidatar por uma outra legenda. Isto evitaria as mudanças de partido apenas para ser candidato. O problema de fundo é que, para haver fidelidade partidária, é preciso haver partidos. Para haver partidos, é preciso cultura cívica e uma relação mais estreita da população com o candidato. Outras medidas complementares estão em discussão no Congresso. Por exemplo, a proibição de coligação na votação proporcional. A possibilidade de coligação facilita a existência de partidos frágeis na medida em que, coligados com partidos fortes, descarregam seus votos num só candidato, que termina por se eleger no vácuo do voto recebido pelos candidatos de outros partidos. Problemas como este podem ir sendo corrigidos incrementalmente. Porém, se quisermos realmente mudar o sistema para valer, temos que falar para a população, abrir um amplo debate sobre as razões pelas quais o sistema vigente tende a nos levar a uma crise, não hoje, mas em algum momento futuro. Isto porque, com o desgaste do sistema político continuando como está, se viermos a precisar em algum momento do apoio da população para a preservação do sistema democrático-representativo, esse apoio poderá nos faltar. Ninguém prevê a irrupção de uma crise. Mas elas acontecem. Está na moda na América Latina convocar plebiscitos para mudar tudo, do dia para noite. Ora, não há nada mais antidemocrático do que o governo plebiscitário. Não vale o argumento de que o presidente foi eleito pelo povo. Hitler e Mussolini também foram eleitos. Dar a um presidente o direito de governar por meio de plebiscitos configura uma situação de altíssimo risco para a democracia. Para enfrentar e prevenir tais situações é fundamental fortalecer as instituições representativas. Creio que um caminho viável e de menor resistência seria iniciar o processo de introdução do voto distrital pelos vereadores. Poderíamos começar pela adoção do voto distrital nos municípios mais populosos, aqueles nos quais a eleição para prefeitos se faz em dois turnos. Mais do que os deputados, o vereador tem naturalmente a vocação de discutir temas locais. Esta mudança poderia vigorar já para as eleições municipais de 2008. A distritalização da


eleição de vereadores daria tempo para que as forças políticas se acomodem ao novo sistema, além de deixar claro que a reforma não está sendo feita para favorecer tal ou qual partido. Mudanças casuísticas, como vimos no tempo do regime militar, não se sustentam. Precisamos de uma campanha pública, cívica, que não seja de um partido, mas sim orientada por uma visão de fortalecimento da democracia em um país com a complexidade do Brasil. Uma reforma que não seja um "truque" ou um expediente conjuntural, mas sim uma ação consistente de aperfeiçoamento do sistema político e, por extensão, da própria democracia. Em sociedades complexas não dá para mudar tudo de uma só vez. A melhor estratégia é buscar o que os americanos chamam de tipping point, ou seja, o ponto de inflexão suscitado por uma mudança no tempo e lugar certos que, por sua vez, gera uma cadeia de novas mudanças em outros pontos do sistema. Sem dúvida, questões técnicas, como por exemplo definição dos distritos, terão que ser enfrentadas. Nos Estados Unidos, quem decide o desenho do distrito são as Assembléias Legislativas estaduais. A proposta do deputado Madeira atribui esta responsabilidade à Justiça Eleitoral. Nos Estados Unidos, os Estados têm larga autonomia. No Brasil, a legislação tende a ser mais uniforme e a Justiça Eleitoral goza de grande credibilidade. O importante é começar a mudar de maneira concreta e correta. No próximo ano, o voto distrital se aplicaria à eleição para vereadores, na eleição seguinte se estenderia aos deputados estaduais e, mais tarde, aos deputados federais. Nesta abordagem processual, sempre haverá tempo de avaliar e mudar de rumo se a experiência não estiver dando certo. Em política nada é garantido. Mas a inércia, certamente, não é resposta para nada. Para sintetizar e concluir, reafirmo: nosso objetivo é o fortalecimento do processo democrático no Brasil. O desafio não se circunscreve ao sistema de voto. O problema de fundo é o déficit de governabilidade produzido pelo sistema atual de representação proporcional e uninominal, que fragmenta os partidos e dificulta a solidariedade das bancadas. Por trás disso, temos um problema ainda mais grave,

que é a crise de legitimidade do sistema político. A população cada vez acredita menos no valor da representação, o que abre o caminho para visões plebiscitárias que, no fundo, são demagógicas e autoritárias. Por todas essas razões, precisamos de uma proposta de mudança clara e vigorosa. A iniciativa não pode ser só do Congresso. Ou a sociedade participa ativamente, como participou de movimentos cívicos como as Diretas Já, ou será muito difícil avançar. Se nada acontecer, corremos o risco do aprofundamento, com o tempo, do processo de desgaste das instituições até seu ponto de ruptura e retrocesso. Por trás de tudo está, repito, a necessidade de revigorarmos não só a mecânica, mas a alma do sistema. A cultura política democrática tem que começar pelo respeito à lei. Não há democracia sem o respeito ao devido processo legal. Distorções e desvios requerem punição. Não é tolerável que irregularidades sejam apuradas e nada aconteça. A impunidade desagrega valores e corrói a democracia. Não havendo punição e nem respeito à lei, não é difícil imaginar que, num dado momento, possamos nos ver diante de situações fora de controle. No mundo contemporâneo, as mudanças não começam necessariamente pelo centro do sistema. Podem ocorrer em qualquer ponto, inclusive na margem. Um PCC, por exemplo, começa a fazer baderna, a população se exaspera, alguém grita "vamos botar ordem na casa" e fecha-se o Congresso. Não estou prevendo que isto vá acontecer. A crise pode não vir de maneira tão dramática. Estou chamando a atenção para os riscos inerentes ao processo contínuo de desgaste do sistema político. Temos de tomar a iniciativa de uma pregação democrática e aproveitar o debate sobre a reforma eleitoral para realmente decidirmos, de uma vez por todas, romper com o nosso passado, que é autoritário, feito de patrimonialismo, privilégios e mordomias. Espero que sejamos capazes de fazer o que Portugal e Espanha fizeram na Europa: romper com o passado e entrar no mundo das regras, do respeito à lei, das instituições. Ou avançamos nesta direção, que é o caminho da democracia, ou corremos o risco de voltar, como se dizia no passado, à barbárie. Como tenho horror à barbárie, o meu voto é pelo voto distrital.

Precisamos de uma campanha pública, cívica, que não seja de um partido, mas sim orientada por uma visão de fortalecimento da democracia em um país com a complexidade do Brasil. Uma reforma que não seja um "truque" ou um expediente conjuntural (...)

Temos de tomar a iniciativa de uma pregação democrática e aproveitar o debate sobre a reforma eleitoral para decidirmos, de uma vez por todas, romper com o nosso passado, que é autoritário (...)

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Agliberto

Lima/DC

Lutar é nosso dever como cidadão

Jorge Bornhausen Senador por duas vezes pelo Estado de Santa Catarina, foi ministro da Educação, ministro-chefe da Secretaria do Governo, embaixador do Brasil em Portugal e ex-presidente do PFL

P

retendo ir direto ao assunto. Em primeiro lugar, queria me colocar a favor da tese da reforma eleitoral. Não pensem que o que eu vou dizer é justificativa ou motivo para não apoiar este movimento. Acho que a melhor solução é o voto distrital. Mas sou obrigado a fazer um retrospecto de tudo que ocorreu em matéria de tentativa de reforma política, para depois apresentar as minhas conclusões em relação às possibilidades do voto distrital. O primeiro mandato do presidente Fernando Henrique foi um mandato de reformas, que mudou o Brasil. Dando seqüência ao Plano Real, as reformas prioritárias foram a econômica, a previdenciária e a administrativa. No segundo mandato, era de se esperar que a reforma política entrasse na pauta. Por isso mesmo, como presidente do partido na ocasião, formei em 1999 um grupo de estudos sobre a reforma política antes de me dirigir ao presidente da República, já que fazíamos parte da coligação vitoriosa. Esse grupo debruçou-se sobre um trabalho realizado pelo Senado Federal, que teve uma comissão presidida primeiramente pelo senador Humberto Lucena e depois pelo senador Francelino Pereira, tendo como relator o então senador Sérgio Machado. E chegou-se a uma série de conclusões, das quais eu aprovaria 99%. Para discutir a parte prática do funcionamento do Congresso, nos reunimos — eu, o então vice-presidente Marco Maciel e o senador José Agripino. E chegamos à conclusão de que se fôssemos pelo caminho das reformas constitucionais, avançaríamos muito pouco. A primeira etapa deveria ser através de mudanças que requeriam apenas maioria simples. Essa foi a nossa intenção, conversamos sobre ela com o presidente Fernando Henrique e demos entrada, o PSDB e o PFL conjuntamente, numa série de projetos "fatiados", ou seja, cada um modificava um determinado artigo da lei, para não somar adversários. E assim foi feito. O primeiro projeto estabelecia a fidelidade por filiação, que impedia por quatro anos que quem saísse de um partido político pu-

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desse ser candidato pela nova legenda, o que faria com que houvesse uma diminuição relevante na questão do "troca-troca". Houve uma grande discussão sobre o voto distrital e o distrital misto, mas acabamos optando por um projeto do senador Roberto Requião de listas mistas, que seria o primeiro passo para chegarmos ao voto distrital misto. Evidentemente, era mais fácil porque não entrava na questão da reforma constitucional. Como lembrou muito bem o presidente Fernando Henrique, com o parecer do senador José Flávio Marinho, da Comissão de Constituição e Justiça, isso permitiria avançar no caso do distrital misto. O terceiro projeto era o financiamento público de campanha. Não existe para o político coisa pior do que pedir recursos de campanha. Acho que essa é parte mais desagradável da vida pública. Mas, no atual sistema, não há como ter financiamento público de campanha. Que presidente de partido vai assumir a responsabilidade perante a Justiça Eleitoral das contas de campanha e distribuir o dinheiro aos candidatos? Isso é impossível. O financiamento público de campanha requer fidelidade e partido. Ou se faz pelo sistema distrital ou se faz pelo sistema de lista. O quarto projeto estabelecia a proibição das coligações. Vou contar um fato recente. Abri o jornal e soube que, infelizmente, o deputado Gerônimo Adefal, do PFL de Alagoas, havia falecido, e que o seu suplente era do PTB e irmão do PC Farias. Nós não fomos desfalcados apenas do deputado. Tivemos que pagar essa conta perante a sociedade, porque se faz coligações que não condizem com a realidade dos partidos. Faz-se através de negociação com o próprio cartório, por isso a dificuldade na renovação. Considero esse ponto fundamental para ser colocado no debate. Como havia na ocasião uma discussão muito forte em relação aos partidos históricos, optamos por aprovar as federações de partidos, que somados cumpririam a cláusula de desempenho. Isso ocorreu no período entre 1999 e 2001. A proibição de coligações em eleições proporcionais foi aprovada em


Celso Júnior/AE

07/12/1999, a federação partidária Essa era a nossa expectativa. em 07/06/2000, as listas mistas em Já estávamos com nove partidos, 30/06/2000 e a fidelidade por filiao PPS formando por fusão o décimo ção e o financiamento público de partido, o quadro político-partidácampanha em 03/05/2001. rio estava delineado e aí sim, achei Esses projetos foram para a Câque estávamos prontos para avanmara — não vou esconder a realidaçar, independentemente de vontade de aqui — e tiveram o apoio do predo governo. Poderíamos chegar a sidente da República e do seu partivários consensos para avançarmos do. Aí tivemos a eleição para presina reforma política. dência da Câmara dos Deputados e Entretanto, o Supremo lembrouAugusto César Farias faz juramento de posse. uma disputa entre os deputados se depois de onze anos de uma ADIN Inocêncio de Oliveira, então do PFL, que estava lá para ser julgada e dee Aécio Neves, do PSDB. E os dois assumiram o compromisso pois dos partidos políticos fazerem suas estratégias com base na de não votar a reforma política para obter o voto daqueles que lei em vigor, ele derrubou a cláusula de desempenho. Como não se consideravam prejudicados. Prejudicado foi o País, que não existe segurança jurídica nesse País, nem na questão de partidos, fez a votação numa época em que era possível, porque o pretivemos na seqüência o Tribunal Superior Eleitoral derrubando sidente da República era a favor. a distribuição do Fundo Partidário e inventando uma nova fórLamento realmente, mas não posso deixar de consignar esse mula, que rateava 42% dos recursos entre todos os partidos. fato, que é uma história dentro do Parlamento. Quando da eleiMesmo uma legenda que não tem sequer um deputado passaria ção do presidente Lula, seu primeiro pronunciamento, três dias a receber R$ 146 mil por mês. Que desastre, não é? após o segundo turno, apresentou cinco reformas, incluindo a Na realidade, estamos diante de um quadro que o Tribunal reforma política. O que me alegrou, porque era simples, bastava legisla. Acabou de legislar agora sobre o tempo de televisão, retomar a parte referente à urgência e marcar a votação. retirando um pedaço dos partidos políticos e dos programas Fui visitado pelo então presidente do PT e perguntei se iríaestaduais. Obrigou os partidos, sem lei que o diga, a transformos votar a reforma política de acordo com o pronunciamento mar seus institutos em fundações para serem fiscalizadas pelo do presidente. Ele disse: "Não, vamos fazer uma comissão". Aí Ministério Público. Não faz sentido você fazer uma reunião pegam cento e tantos projetos numa comissão que vai debanuma fundação política com a fiscalização do Ministério Pútendo, debatendo e, no final, juntam num projeto só, somando blico. Estamos diante desse quadro. os adversários e aniquilando a reforma política! A derrubada da cláusula de desempenho e a continuidade Alguma coisa estava por trás e apareceu. Era o Valdomiro Dida infidelidade partidária, com mudanças diárias de partido, niz, comandando a formação de uma base parlamentar através dão a mim a certeza de que não haverá reforma. Pelo menos, de vantagens lícitas ou não. O que ocorreu nesta mesma ocasião, não vamos sonhar com ela nesses próximos quatro anos. Sou quando a revista Época publicou a obrigado, depois de dois mandatos Valter Campanato/ABr matéria, foi uma reunião na Federade senador, depois de estar há 14 Na disputa da ção das Indústrias do Estado de São anos à frente de um partido político, presidência Paulo. O Aloysio Nunes Ferreira rea dizer essa dura verdade. da Câmara, presentava o PSDB, eu o PFL, o RoContinuar na campanha, lutar, é o Aécio Neves e berto Freire o PPS e o José Genoíno o nosso dever, é dever de brasileiro, de Inocêncio de PT. Evidentemente, naquele momencidadão. Por isso acompanho a tese Oliveira to de constrangimento, o deputado do presidente Fernando Henrique e assumiram o Roberto Freire propôs que os presida Associação Comercial, já endoscompromisso dentes de partidos presentes assusada pelo Guilherme Afif. Mas quede não votar a missem a responsabilidade de pedir ro dizer que hoje sou um pouco mais reforma urgência para votar a reforma política otimista do que o deputado Arnaldo política. e todos concordaram. Saiu? Não. Madeira, que diz que temos apenas Sergio Dutti/AE O processo de tramitação não an100 deputados na oposição — eu didou e passamos esse período de ria que são 120, mas com esses nós quatro anos sem a menor possibilinão vamos conseguir barrar o rolo dade de votar a reforma política, compressor do governo, nem fazer mas sempre com uma esperança. reforma constitucional. Essa esperança era a aplicação da Desculpem a franqueza, mas é o cláusula de desempenho. Com isso, meu dever me manifestar dessa manaturalmente se reduziria o númeneira com o maior respeito, amizade ro de legendas e permitiria um diáe reconhecimento como brasileiro logo entre os partidos políticos soque tenho pelo presidente Fernando bre onde a reforma deveria avançar. Henrique Cardoso.

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Avanço somente com mobilização social Lim

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José Eduardo Cardozo Mestre e doutor em Direito, está no segundo mandato como deputado federal pelo PT, foi vereador de São Paulo entre 1995 e 2003

David Boily/AFP

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Paul Barker/AFP

As eleições no Canadá (esq.) e na Inglaterra (dir.): no Canadá, em 1993, o partido mais votado fez dois deputados, enquanto que o menos votado fez nove. Na Inglaterra, em 2005, a diferença de votos entre Trabalhistas e Conservadores foi de 3%, mas a de número de cadeiras foi de 44%.

S

eria irrelevante dizer que a reforma política é um dos temas principais da conjuntura brasileira, e não é de hoje. E quando se fala deste tema, há duas questões que nos vêm à mente. A primeira é qual o sistema ideal? Creio que há um largo consenso de que o atual sistema não serve e que precisa ser alterado com urgência. A segunda pergunta é por que não se alterou nada até agora? Quais são os obstáculos? Quais são os óbices a que esta transformação possa ocorrer? Quanto à primeira questão, qual o sistema ideal — e quero deixar bem claro que falo aqui em nome pessoal e não em nome do meu partido —, sou um defensor, embora não dogmático, pois quero ouvir e refletir, do voto distrital misto, que é a feição que mais me agrada. Concordo em larga medida com algumas ponderações feitas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Porém, para mim, o voto distrital puro traz distorções, já citadas pelo presidente, que são graves. Se falarmos no sistema ideal, que capte a dimensão demográfica efetiva da sociedade, acho que temos que pensar em todos esses aspectos. Talvez não exista um sistema ideal, mas alguns talvez consigam ser menos imperfeitos do que outros. Que óbices podemos colocar ao voto distrital puro? Em primeiro lugar, já mencionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, há a possibilidade de, com este sistema, excluir da representação parlamentar as minorias. É possível, por exemplo, que tenhamos um segmento que obtenha 49% dos votos em todos os distritos e não tenha nenhum parlamentar que represente aquela posição. Isto é um problema grave. Da mesma forma, não falo de uma realidade européia, estou falando da realidade atual brasileira, em que os partidos, em larga medida, são legendas que não têm uma caracterização ideológica. Assim, partindo de um sistema como

o nosso, da forma como ele se apresenta, este sistema não promoveria, creio eu, o fortalecimento de partidos políticos na dimensão que acredito que a democracia precisa, mas sim a relação pessoal entre eleitor e representante. Se por um lado há uma dimensão boa, como disse o presidente Fernando Henrique Cardoso, de outro lado ele minimiza um pouco a dimensão política, efetiva, ideológica do problema. Às vezes, a simpatia e o charme pessoal, que são importantes na política, podem se sobrepor a outras dimensões também importantes. Portanto, o voto distrital pode descaracterizar o debate político ideológico, tão indispensável na formação parlamentar. Um outro dado é que o voto distrital tira, de certa maneira, a captação da dimensão político-partidária na representação. Temos alguns exemplos históricos: uma eleição pelo voto distrital no Canadá, em 1993, foi muito curiosa. O partido

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mais votado obteve 16% dos votos e fez 2 deputados; o parA outra pergunta é por que não conseguimos fazer nada no tido que teve a menor votação, 7% dos votos, fez 9 depunosso país em relação à mudança. Acho, em primeiro lugar, tados; e o partido intermediário, que não foi o mais votado que é muito difícil um poder constituído se auto-reformular. e nem o menos votado, fez 54 deputados. Isso mostra que o Isso é uma verdade que vale para qualquer poder. Mudar as voto distrital não capta a dimensão política, ideológica, regras que o instalaram é uma das coisas mais difíceis de partidária da representação e do embate, o que é ruim num acontecer na história da política. país como o Brasil, que necessita efetivamente de partidos As pessoas e os poderes tendem a se perpetuar a partir das fortes para que essa representação seja captada. regras que os consolidaram na sua existência. Aliás, o nosso Na Inglaterra, em 2005, houve outra curiosidade, uma dissistema político tem algo que foi importante na história bratorção. Os Trabalhistas tiveram 35,3% dos votos e conquissileira, tem um lado bom e um lado ruim. A nossa transição taram 356 cadeiras (62% do Parlamento); os Conservadores da ditadura militar para a realidade que vivemos hoje se detiveram 32,3% e obtiveram 198 cadeiras (34%). Portanto, esse cidiu de forma pacífica e negociada. A expressão maior disso é um problema efetivo, porque não capta a dimensão do parfoi o processo constituinte, que gerou a Constituição de 1988. tido. Eu pessoalmente considero que isso é de fundamental Claro, existiram conflitos, mas a Constituição de 1988 não foi importância para a democracia. Outro ponto é que o voto distrital favorece a dimensão paroquial do deputado e do deRafael Neddermeyer/AE bate político. Esse é outro problema grave. O Parlamento é formado por situações de representações, que ultrapassam o território. Tome-se, por exemplo, a questão ambiental, a questão dos direitos humanos ou a questão de política de segurança, não importa. Quando se tem a dimensão territorial colocada como critério de definição da representação, aquele eleitor que tem na questão ambiental, na questão dos direitos humanos, na questão da segurança o mote de sua razão para a ação, não terá no distrito condição para colocar no voto o que ele considera ser o principal desafio para a nação. Ou seja, eu posso ser um ambientalista e não ter no meu distrito um ambientalista para votar. Isto não permite captar o principal cenário democrático político num certo momento histórico do Brasil. Além disso, o voto distrital força a situa"Posso ser um ambientalista e não ter um ambientalista para votar". ção paroquial ao colocar a localidade no centro das ações e perspectivas das pessoas. Temos assistido no Brasil uma distritalização de fato do voto, especialmente nas Câmaras Municipais. Vejo isso na Câmara Municipal de São Paulo. O voto paroquial faz com que a pessoa tenha feita por uma Assembléia Nacional Constituinte. Foi o Concomo centro do mundo a sua paróquia. Uma cidade como gresso Constituinte escolhido pelas regras que então exisSão Paulo, quando for discutir saneamento básico, plano tiam que formulou a Constituição, avançada em muitos pondiretor ou políticas tributárias deixará tudo condicionado tos. Mas o sistema político refletiu a realidade daquela comao distrito daquela pessoa, que depende da sobrevivência posição congressual. Não tivemos grandes inovações no sispolítica daquele bairro. Isso tira a dimensão maior do detema político brasileiro no período que se segue o bate político, que julgo indispensável para a condição dos rompimento da ditadura militar, porque quem fez a Constientes federativos. tuição é quem tinha sido escolhido por aquelas regras. E muPessoalmente, acho que o voto distrital misto tenderia a dá-las por quem foi por elas eleito, cujo poder é fruto delas, é compensar essas deficiências. Ele tem as vantagens que o muito difícil de acontecer. presidente Fernando Henrique coloca e agrega a dimenOra, temos hoje esse mesmo problema. No meu segundo são partidária, agrega a formação de outras características mandato, participei da discussão da reforma política desde o que minimizam esse processo, representa uma ajuda que primeiro dia. Entendia que era uma discussão fundamental poderia ser gerada pelo voto distrital. Mas essa é uma para o País. As dificuldades que levam o senador Jorge Borquestão de ideais, ou seja, refletir, pensar para encontrar o nhausen à desesperança só podem ser superadas por uma sistema mais adequado. grande pressão social, como disse o presidente Fernando

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uma ação social nessa direção ou não teremos reforma política. E não é simples ter ação social. Em primeiro lugar, porque a atual sociedade brasileira não conhece o nosso sistema e tem uma dificuldade imensa de entendê-lo. O eleitor não sabe que votando em José Aníbal poderá estar elegendo uma outra pessoa, ele não entende esse sistema. Aliás, ele é mesmo incompreensível, vamos ser sinceros. Mas é a realidade. A dificuldade de entender o atual sistema torna mais difícil a necessidade de debater. E quando se debate com a população o voto distrital ou o voto distrital misto, a incompreensão é total. Para termos a força social sobre o Congresso, temos que vencer o desconhecimento. Isso não é fácil de ser feito. Em segundo lugar, nós, agentes políticos entre os quais me incluo, temos uma dificuldade horrorosa de fazer pactos políticos. Estamos sempre pensando no imediato, no nosso interesse localizado, específico. Temos bons políticos e poucos esAlessandro Costa/AE tadistas no Brasil. Ou seja, quando vemos um alinhamento das discussões no Congresso Nacional, o que está em debate não é o que a pessoa pensa para a sociedade, mas como será mais fácil ela se reeleger. A partir daí, o Brasil tem uma agenda política que eu diria irracional, porque temos disputa de dois em dois anos, saímos de uma eleição e já entramos em outra. Então, a dificuldade de fazer pactos é imensa, porque nunca, como se diz no jargão, alguém quer colocar a azeitona na empada do outro. Se penso que o outro vai ter vantagem nisso, então não faço pactos, entro numa irracionalidade infantil e mesquinha de disputa que incapacita os agentes políticos para enfrentar um problema que é maior do que todas as nossas respectivas existências políticas. Esta falta de maturidade política das nosManifestação pelo desarmamento: pequenos grupos ameaçados. sas lideranças e da classe política, na qual eu me incluo, faz o senador Jorge Bornhausen ter uma grande dose de razão quando se mostra desesperançado. No entanto, sou um desesperançado que tem esperança. Pode parecer dialético demais, mas sou às vezes um desesperançado mexer na Constituição, me pareceu que taticamente era o caesperançoso, porque acho que é possível que tenhamos a caminho adequado para se implantar o financiamento público pacidade de nos organizar e ter um diálogo com a sociedade de campanha e fazer um rompimento com esta posição. E, napara dotar este País de um sistema de governo que permita o quele momento, vi o meu partido defendendo majoritariaseu desenvolvimento com racionalidade. mente, mas não totalmente, este projeto junto com o PSDB e o Não há possibilidade nos marcos da nossa sociedade de terPFL. Naquele momento, os pequenos partidos eram contrámos uma ação governamental previsível, um Congresso que rios. Fiz um cálculo aritmético e vi que seria fácil aprovar o seja Congresso, um Executivo que seja Executivo, um Judiciáprojeto. Ingenuidade de marinheiro de primeira viagem! Firio que seja Judiciário, se nós não fizermos essa reforma. É dicou claro que as forças políticas que davam sustentação ao gofícil, é quase impossível, mas temos que vencer essa batalha. verno colocaram uma faca no pescoço do meu partido, que tiPortanto, cumprimento a iniciativa que aqui se coloca e espero nha a responsabilidade de governar, e disseram: "Olha, se que essa desesperança do senador Jorge Bornhausen seja mais aprovarem isso, o governo ficará só com o PT na situação". Aí resultado da realidade de constatação e que possamos, a partir o governo, na perspectiva da governabilidade, não pôde imdela, projetar uma energia renovadora, superando nossas diplementar uma ação naquela linha. ferenças político-partidárias e defendendo aquilo que é meTemo que isso se repita agora e que se repetirá em outros lhor para o povo brasileiro. governos, sempre por essa dinâmica terrível. Portanto, ou há Henrique, que motive os agentes políticos a superarem suas próprias contradições e deixarem de ver o mundo como se os seus respectivos umbigos fossem o centro do universo. Diante dessa possibilidade, não teremos a reforma política. Ou há uma energia de fora ou não acontecerá. É curioso o que vivenciei na Câmara dos Deputados. Nós tivemos uma comissão que aprovou o projeto que foi relatado pelo deputado Ronaldo Calhado e do qual participou o deputado Aloísio Nunes. Eu via naquele projeto não o sistema que eu defendo, mas um avanço na perspectiva do voto distrital misto que eu defendo. Não considero o voto em lista algo bom em si, mas o considero um rompimento com o atual sistema e um caminho para aquilo onde eu gostaria de chegar. Como não é necessário

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Não devemos temer o bom debate Agliberto Lima/DC

Bolívar Lamounier

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econheço que existem algumas discordâncias quanto ao formato e até quanto à necessidade de uma reforma política, mas quero aqui reiterar o que venho dizendo há muitos anos: a meu juízo, a reforma é imprescindível ao desenvolvimento político do Brasil. Vejo com muito bons olhos a proposta de implantação do voto distrital, por seus méritos intrínsecos, mas também, a curto prazo, pela retomada e o novo vigor que ela pode trazer ao debate. Como ressaltaram o presidente Fernando Henrique e o deputado José Eduardo Cardozo, a idéia do voto distrital pode ser a ignição de que necessitamos para repor a questão na agenda política. A proposta é polêmica, sem dúvida, e é natural que o seja. E tem, a meu ver, o mérito adicional de ser apreendida com relativa facilidade pela maioria dos eleitores. O deputado José Eduardo Cardozo manifestou sua preferência pelo voto distrital mis-

to. Devo confessar que essa sempre foi também a minha posição. Trabalhei muito pelo sistema misto desde antes da Constituinte, como membro da Comissão Afonso Arinos (198586). De lá até hoje, me convenci, porém, de uma coisa. Se é difícil implantar no Brasil o voto distrital puro, mais difícil ainda é implantar o modelo misto. A impressão de um consenso crescente em torno do sistema misto deve-se à percepção assaz equivocada de que ele concilia princípios opostos, de que seria uma combinação harmoniosa e indolor dos princípios proporcional e majoritário. Mas não é nada disso. O misto, se levarmos a sério a concepção e a mecânica do sistema alemão, equivaleria na verdade a uma reforma bastante radical do sistema político brasileiro. Ele seria mais radical inclusive porque sua implantação exigiria alterações importantes na Constituição. Feitas essas observações iniciais, eu gostaria agora de retomar o fio das discussões, ana-

Milton Mansilha/AE

Paulo Pampolin/Digna Imagem

Doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia, escritor, pesquisador, foi fundador e primeiro diretor-presidente do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp)

Assim como passamos do voto em papel para a urna eletrônica, alguns acham que o sistema político que aí está vai melhorar com o tempo, sem passar por reformas.

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lisando dois argumentos freqüentemente esgrimidos contra, não só o voto distrital, mas qualquer reforma. O primeiro pode ser chamado o argumento da inércia: "O sistema político vai melhorar com o passar do tempo, portanto não há necessidade de reformas". Vejam bem, nesse caso não se afirma que o sistema é bom. Afirma-se que o tempo se encarregará de melhorá-lo. Uma variante familiar é a de que, bem ou mal, o sistema atual está implantado, e toda mudança implica em custos. Com igual facilidade, podemos argumentar que, sem reformas, o sistema vai piorar ao longo do tempo. Ou por outra: assim como há custos em mudar, há custos em não mudar. Não vou me estender muito neste ponto, o que eu quis salientar foi a debilidade desse tipo de argumento. Mas há um outro argumento que me preocupa. Por tudo o que observo, tendo a pensar que, no Brasil, o governo precisa agregar vontades e interesses, a fim de enfrentar diversas questões abrangentes e profundas que permanecem na agenda pública. Mas noto, e isso para mim é no mínimo um paradoxo, que algumas pessoas discordam desse ponto de vista, não por ignorância dos graves problemas a que fiz alusão, mas por entenderem que democracia e desenvolvimento político se medem pelo grau de pulverização do poder. O poder diluído, liquefeito: eis a idéia de democracia implícita ou explícita em algumas posições. Curiosamente, essa visão aproxima dois extremos. De um lado, os políticos menos ideológicos, clientelistas, mensaleiros etc. De outro, os mais ideológicos, como certa esquerda doutrinária, aparentemente muito preocupada com suas teses abstratas e muito pouco com as questões políticas que há por resolver. Nesses dois pólos, por interesse e por dogmatismo ideológico, a democracia passou a significar liquefação ou castração do poder. Eu não entendo dessa forma. Para mim, a democracia é uma "poliarquia", um convívio competitivo entre vários pólos de poder, de modo a assegurar, por um lado, uma adequada agregação dos interesses e, por outro, os direitos do indivíduo e dos grupos sociais. De um lado, capacidade de governar; de outro, a liberdade. A não ser pelos anarquistas, aqueles que se assumiam como tais no século 19 e nas primeiras décadas do século 20, eu desconheço uma corrente teórica ou filosófica digna de atenção que defenda essa idéia de democracia como pulverização de poder. Mas é exatamente isso o que estou tentando dizer: uma parcela da intel-

ligentzia brasileira parece fascinada com uma concepção anárquica. Anarquismo bovarista, nefelibático, é bem verdade, mas anarquismo. O presidente Fernando Henrique mencionou o projeto de reforma política da OAB. Muito bem lembrado, mas acho que deixou de fora um ponto importante. Os mentores do projeto queriam implantar o recall norte-americano, aquele plebiscito revocatório pelo qual os eleitores podem, em tese, "deseleger" um parlamentar que haja perdido a sua confiança. Ora, salta aos olhos que esse mecanismo pressupõe o voto distrital puro. Não há como associá-lo ao sistema proporcional, e menos ainda à modalidade de voto proporcional praticada no Brasil. Confrontados com essa objeção, os nobres integrantes do ConseFábio Pozzebom/ABr

lho Federal da OAB tomaram uma estranha decisão. Em vez de se engajarem na defesa do voto distrital, que seria o caminho lógico, resolveram instituir um mega-recall, aplicável ao presidente da República e à totalidade do Congresso Nacional. Não sei se me fiz bem entender. A OAB propõe que o eleitorado, por meio de uma iniciativa popular de legislação, possa requerer a realização de um plebiscito revocatório, com o objetivo de revogar mandatos eletivos no atacado, "deselegendo" simultaneamente o presidente da República e todo o Congresso Nacional ! Eis aí um exemplo do clima de opinião "bovarista" que parece estar ganhando terreno numa parte da elite intelectual brasileira. Preocupado com o agravamento de certos problemas, desde logo o desgaste das instituições políti-

O então presidente da OAB entrega ao ministro Tarso Genro proposta de recall de políticos, mas não há como associar esta prática ao nosso sistema proporcional.

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cas, dos partidos e do Congresso Nacional, eu me confesso estupefato. Diferentemente dos adeptos daquele primeiro argumento antireforma que mencionei no início, penso que as instituições não estão paradas, como um casal que repete indefinidamente a mesma dança, no mesmo lugar. Num país como o Brasil, se as instituições não estão melhorando, provavelmente estarão piorando. Desde o Império ou pelo menos desde a primeira República, o Brasil nunca ficou sem um bom debate no que se refere a reformas políticas. Não podemos perder esse fato de vista neste momento. É imprescindível retomar os debates sobre tais reformas, e penso que a proposta do voto distrital poderá ser muito importante também nesse sentido. Não gostaria de encerrar sem fazer algumas considerações de conteúdo sobre o voto distrital em si. Em termos bastante abstratos, a questão da exclusão das minorias, levantada pelo ilustre deputado José Eduardo Cardozo, faz sentido. Mas a exclusão não ocorre como um efeito automático do sistema eleitoral. A existência de tal sistema no país A ou B não produz diretamente a exclusão. Não estamos falando de leis físicas e sim de processos políticos. Se, em determinado distrito, as lideranças e os diferentes segmentos de opinião não quiserem ou não conseguirem negociar a fim de escolher um candidato amplamente representativo, tudo bem, é intransigência ou incompetência delas. Vista do alto ou só pelas estatísticas, pode parecer que um candidato venceu o outro e as forças que o apoiaram foram derrotadas. Mas essa não é necessariamente a realidade. Muitas vezes essa aparência é fruto da incapacidade ou do dogmatismo político a que há pouco me referi. Há também a questão da desproporção entre votos e cadeiras. Sem dúvida, isso pode acontecer. Um partido pode ter X% dos votos e (X-Y)% das cadeiras. Mas quem disse que fatos desse tipo não ocorrem no Brasil? Poucos anos atrás, o PT obteve muito mais votos do que o PFL, mas ficou com menos cadeiras, com menos deputados. Se os defensores do modelo proporcional desejam sinceramente harmonizar aquelas duas proporções — votos e cadeiras — devem então começar pela reforma da Fe-

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deração. A desproporção entre as populações e o tamanho das bancadas dos diferentes Estados leva a isso. Outro ponto importante, já comentado pelo presidente Fernando Henrique, é o "gerrymandering", vale dizer, a fixação maliciosa de fronteiras distritais a fim de obter vantagens eleitorais. Expressão instigante essa: "gerrymandering". Os adversários do voto distrital parecem atribuir-lhe poderes miraculosos. Infelizmente, é uma palavra bastante antiga, do século 19, e já não diz o que realmente gostaríamos de saber. Qual é a extensão do problema? Qual é a freqüência e a gravidade das distorções de fronteiras distritais? Notem bem: eu não estou dizendo que o fato jamais ocorra. Nos Estados Unidos ocorre, e não é difícil compreender a razão. A "distritação", vale dizer, o desenho geográfico dos distritos, sofre naquele país, ainda hoje, uma forte influência das assembléias estaduais. São elas a instituiUm ção incumbida de traçá-los. Dos anos partido pode 70 (se não me falha a memória) para cá, a Suprema Corte federal tem acoter X% dos lhido impugnações e exigido revivotos e sões, mas basicamente o sistema é o (X-Y)% das que descrevi. cadeiras. Mas Na Inglaterra, o processo é iniciado pela Boundary Comission (Comisquem disse são de Limites). Tive, alguns anos que fatos atrás, oportunidade de visitá-la e disdeste tipo ... cutir o problema. O que ouvi não me surpreendeu. Quando ocorre uma distorção mais séria, faz-se um grande estardalhaço, mas a solução adotada não é posteriormente debatida com o mesmo entusiasmo. Fato é, porém, que se trata de uma ocorrência pouco freqüente, seja porque não se redesenhe distritos todo ano, seja porque há todo um trabalho prévio, feito com muita transparência. A comissão técnica propõe um plano, ele é divulgado, o público tem tempo para questioná-lo e a Justiça pode mandar fazer tudo de novo. Portanto, o problema é bem menor do que se tem tentado fazer crer. Na Alemanha, menor ainda, provavelmente porque a Corte Federal tem um papel mais ativo. No Brasil, como seria? Ora, devemos de início lembrar que temos uma Justiça Eleitoral, uma área judiciária especializada no processo eleitoral e responsável por tudo o que lhe diz respeito do ponto de vista processual.


Acrescente-se que o País dispõe de órgãos técnicos altamente qualificados, de um sistema estatístico confiável e, não menos importante, que estamos na área da informática e não na época do governador Elbridge Gerry (aquele que desenhou um distrito em forma de salamandra, de onde veio o trocadilho "gerrymandering"). Vistas as coisas por este ângulo, é óbvio que certos críticos estão desinformados ou fazendo tempestade em copo d’água. Para concluir, eu gostaria de fazer uma breve menção ao localismo e ao predomínio da máquina partidária, receios amiúde mencionados em conexão com o voto distrital. Em última análise, todo sistema eleitoral tem a ver com a escolha de indivíduos que irão exercer funções públicas. Entidades supra-individuais não existem, ou pelo menos não disputam votos. Não existe "povo" em abstrato. Pois bem, a escolha de tais indivíduos é filtrada por algum critério geográfico (região, distrito, como ocorre no voto distrital) ou por segmentos da sociedade (corporações profissionais, partidos etc, que são, no fundo, as verdadeiras minorias, cuja representação se deseja assegurar no sistema proporcional — geralmente em detrimento dos partidos). É uma coisa ou outra. O domínio da máquina partidária é um risco? Sem

... não ocorrem no Brasil? Poucos anos atrás, o PT obteve muito mais votos do que o PFL, mas ficou com menos cadeiras, com menos deputados. Se os defensores do modelo proporcional desejam harmonizar as duas proporções, devem começar pela reforma da Federação.

dúvida. Mas o do sindicato também é. Um grupo de empresas, uma organização religiosa, enfim qualquer segmento pode ser um risco. Mas o segmento social tem mais probabilidade de o ser, porque não precisa negociar. Ele tende a ser excludente, pois quer se fazer representar como tal, ou seja, eleger um metalúrgico, um professor, um empresário de determinado ramo, o ex-presidente de um diretório estudantil. E não precisa de maioria, precisa de uma pequena fração do voto total. No voto distrital dá-se o oposto. O candidato da localidade ou da região é obrigado a negociar previamente, na verdade incessantemente, com os diferentes grupos organizados, do contrário será um candidato minoritário e estará liquidado. Outra coisa, agora saindo um pouco do assunto. Costuma-se dizer que o deputado distrital só vai tratar de questões locais. Mas existem mesmo questões locais no Brasil? Saúde, saneamento, educação, são questões locais? Existe, em tese, uma diferença, mas não é essa. No sistema proporcional, como vimos, a tendência (repito: em tese) é o deputado representar um segmento social, sem necessidade de negociação. No distrital, ele representa a localidade, portanto todos ou vários segmentos, a fim de formar a maioria. O mais provável, então, é que o representante distrital defenda um certo consenso, uma média das preferências da região — média tomada sobre o conjunto dos problemas acima exemplificados. Ele não vai ser o deputado "sindicalista", "estudantil", o que quer construir a ponte, e por aí afora. Não, ele vai levar um conjunto de problemas, numa perspectiva mais geral, mais articulada com a problemática nacional. Isso faz bem aos partidos, aprimora-os, pois eles é que têm a obrigação de agregar demandas e propostas . Estou seguro de que muitos ou todos os argumentos "anti-localistas" ou "anti-distritalistas" podem ser revertidos, pois no fundo trazem elementos favoráveis ao voto distrital. Esta observação me anima e espero que o mesmo aconteça com todos os aqui presentes, em relação à campanha que estamos iniciando. Não devemos de forma alguma temer o argumento do "localismo". Ao contrário, devemos mostrar a relevância do voto distrital para o distrito, se me permitem a redundância; mostrá-la à região ou localidade onde de fato vivem as pessoas que vão votar, com seus interesses e seus valores. São esses os pontos que queria trazer como contribuição para o debate.

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Corbis

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Qual o tipo de reforma que o País precisa?

Miro Teixeira Advogado e jornalista, iniciou a carreira política como deputado federal em 1971 pelo antigo MDB, foi ministro das Comunicações e atualmente é deputado federal pelo PDT-RJ

P

arabéns pela sinceridade da pauta, presidente Fernando Henrique Cardoso, porque a pauta não é a reforma política, é o voto distrital. Se a pauta fosse reforma política, eu diria que estaríamos aqui para discutir absolutamente nada, porque não existe processo de reforma política em tramitação na Câmara dos Deputados. Existe é uma abordagem dos sistemas de eleição de deputados federais, estaduais e vereadores municipais. Não existe uma menção sequer sobre a eleição presidencial, sobre a existência de um vice-presidente eleito com o presidente, sobre os senadores e seus suplentes, sobre os governadores e seus vices. Eles se elegem pelo voto dado aos governadores, como acontece com relação aos prefeitos. Existe uma ofensiva, para o bem ou para o mal, contra o sistema eleitoral, o sistema proporcional no processo eleitoral brasileiro. Por isso, parabéns pela sinceridade da pauta. Achei que teríamos a possibilidade de discutirmos o mundo real, mas aparentemente não estamos no mundo real. O projeto que está na Câmara dos Deputados dispõe sobre pesquisas eleitorais, voto de legenda e listas partidárias préordenadas, instituição de federações partidárias, funcionamento parlamentar, propaganda eleitoral, financiamento de campanha e coligações partidárias. Mas eu vejo o senador Bornhausen falar contra a decisão do TSE, confirmada pelo STF, que reviu a cláusula de desempenho. Mas o projeto que V. Exa. defende é de 2% para a cláusula de desempenho. O PFL defendeu esse projeto. Não ficou muito claro isso no plenário. Então, vejo graves contradições entre os discursos feitos diante de plenários convidados como este e a prática. Quero dizer que as senhoras e os senhores estão diante de uma modesta pessoa que se bateu duramente contra a aprovação desses projetos no mandato passado do presidente Lula. No nosso país, se alguém é apanhado

dentro de um cofre de banco com dinheiro no bolso grita: "É de reforma política que nós precisamos". E vocês, ouvindo falar de reforma política como se ela servisse para tudo — briga conjugal, marido chegando tarde em casa — podem dizer: "É reforma política". Mas não é reforma política. Me perdoe o presidente Fernando Henrique, o projeto está aqui, V. Exa. conhece muito bem. Desafio qualquer um a indicar neste enorme avulso do projeto de lei nº 5.268, de 2001, alguma coisa, em algum momento, que signifique reforma política que não esteja estritamente colocado nos pontos que aqui afirmei. É uma discussão sobre a eleição de deputado federal, deputado estadual e vereador. É isso que está ali, dando mais poder para as burocracias partidárias. Imagine estas listas partidárias. O que faria a lista do PT, deputado José Eduardo Cardozo? V.Exa. estaria no fim da lista de São Paulo, a lista organizada pelo Delúbio, estaria em último lugar. Eu até tenho dúvidas se V.Exa. teve voto do seu partido para o Conselho de Ética. Meu partido votou em você, tenho dúvidas se o seu fez o mesmo. Partido político é um grande negócio. Rockefeller disse que o melhor negócio do mundo era um poço de petróleo bem administrado, o segundo melhor era um poço de petróleo mal administrado e o terceiro melhor era uma empresa de ônibus. Isso porque ele não conhecia partido político no Brasil. O partido político no Brasil é tempo de televisão, ter acesso a uma rede nacional todo ano. Quando chega a campanha eleitoral, tem o tempo para a campanha eleitoral. Com um sistema de coligações, as negociações são brutais, presumo eu. Mas chega de processos. Afinal, eu não consigo integrar nenhum escritório de advocacia porque os sócios ficam ocupados em me defender, ninguém quer. Sem democracia alguma, exceto um ou outro partido que tenha uma vida

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Reprodução

Rockefeller disse que o melhor negócio do mundo era um poço de petróleo (...). Isso porque ele não conhecia partido político no Brasil.

democrática formidável, e eu coloco o meu, o PDT, convenhamos que as discussões de participação no poder não se dão em torno de programas. As eleições para presidente de partido também não são normalmente cercadas por uma discussão interna. Estive viajando e perdi a discussão interna do PMDB para a eleição, não sei exatamente qual é o programa que o PMDB defendeu. Vamos falar claro: não temos projeto de reforma política em discussão nesse nosso querido Brasil. Precisamos ter, talvez. Eu defendo o voto proporcional porque, por desconhecimento de qualquer outra coisa, esse eu conheço e posso brigar para entrar na lista do meu partido, porque é uma lista aberta. É uma votação por lista também, mas é uma lista aberta, onde o cidadão escolhe quem vai se eleger. Eu brigo e depois que eu consigo entrar, se o meu partido quiser me derrotar, não quiser me dar tempo de televisão, pego um caixote, vou para a Central do Brasil de megafone na mão e digo: "Olha, o meu partido não está me dando tempo de televisão, não está me dando material e eu vim falar diretamente com vocês, porque eu queria que vocês me elegessem". Agora, imagine isso numa lista fechada, onde não existe uma discussão sobre a criação de fidelidade coisa nenhuma. A discussão é sobre obediência partidária, é como acabar com a discussão no último ambiente que aparentemente existe de discussão, que é a Câmara dos Deputados. Talvez também nas Assembléias, eu não conheço muito essa realidade. Por que será que se concentra na Câmara dos Deputados de maneira dissimulada, de maneira camuflada, a reforma

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política? E o projeto do presidente Fernando Henrique? Vou ficar na pauta negativa. Respeito a posição de todos, embora tenha achado muito estranho num certo momento a aliança entre o PSDB e o PT para apoiar a eleição por lista fechada na Câmara dos Deputados. Achei muito estranho, se pudesse receber uma explicação sobre isso seria ótimo. Reúne-se o partido de governo com um partido de oposição e, como disse o senador Bornhausen, se uniram para impedir a votação no governo Fernando Henrique. Houve isso também no governo Lula, modéstia à parte, organizada por mim. Olha que eu era líder do governo, não sei se o Fernando Henrique se lembra disso, mas liguei para o presidente por uma outra razão e ele disse: "Como líder de governo, você continua fazendo oposição". É porque é assim. Mas em compensação, V. Exa. foi meu presidente, foi muito bom exceto naqueles pontos que não vou citar para não criar outro debate. Agora, as privatizações tiveram mérito que nem o Fernando Henrique cita. É que com as privatizações, foram privatizados alguns homens públicos, você vê que as oligarquias desapareceram ou estão terminando de desaparecer, se desligam daquelas estatais e criam outro ambiente. Mas quero agora contar uma história. Vejam só a que ponto chega esse puro ambiente de debate que nos leva a certas revelações, das quais a gente possa se arrepender mais tarde, não se sabe. Mas é melhor termos arrependimento nessa fase da vida pelo que se fez e não pelo que deixou de fazer, não é? Eu soube que estavam reunidos na liderança do PTB, no gabinete do Roberto Jefferson, não só os líderes do PTB, mas


Vamos falar claro: não temos projeto de reforma política em discussão nesse nosso querido Brasil. Precisamos ter, talvez. Eu defendo o voto proporcional porque, por desconhecimento de qualquer outra coisa, esse eu conheço e posso brigar para entrar na lista do meu partido, pois é uma lista aberta.

também do PL e do PT, e talvez de um ou outro partido, para discutir a posição que tomariam contra esse projeto que esta aí, que reduz a cláusula de desempenho para 2%. Mas cheguei lá e disse: "É simples, vocês comuniquem ao governo que se o PT fizer aliança com o PSDB para essa matéria, vai ter que fazer para aprovar todas as outras ao longo do mandato". Se puderem, me poupem dessa descrição, mas me incluam e digam que estou nesse pensamento. O fato, senador Bornhausen, é que a gente não pode continuar contornando nada por causa de quórum. Se temos convicção de que é preciso uma reforma política e que ela deve ser constitucional, devemos procurar fazer por emenda constitucional e lutar pelos 3/5 do voto. Não é dando um jeito de maioria simples que vamos resolver os problemas do Brasil. Temos os 3/5 porque o presidente convocou, perdemos ali as Diretas, mas perdendo ou ganhando a luta, deve ser no ambiente dos 3/5, que é o ambiente correto, o ambiente constitucional dessa discussão. Não se deve dissimular. Vamos aproveitar essa reunião talvez para implantar alguma coisa. O presidente Fernando Henrique decide que nome dar, isso é coisa para intelectual. Nós precisamos organizar uma frente que não seja de partidos, que possa reunir pessoas de partidos contrários, com pensamentos diferentes. Será que não podemos encontrar um ponto comum? Eu sugiro logo um, a reforma tributária. Nós trabalhamos no projeto Luiz Roberto Pontes durante meio ano, em reuniões em que participou Roberto Campos e outras tantas pessoas boas. Eu passava por lá só para ter meu nome escrito entre aquelas brilhantes personalidades da vida nacional. O projeto está no site da Câmara. Não podemos pensar no Brasil sem desenvolvimento, sem crescimento, todo o resto é uma discussão vazia. O projeto existe e não pode ser jogado fora. É uma base, precisa ser atualizado. Por que não nos unirmos em torno disso, por que não criamos uma pauta não apenas de

Deixo aqui um protesto sobre as coligações no sistema proporcional. Sou a favor desse sistema, mas desejo um sistema proporcional sadio, com o fim das coligações.

debate, mas de ação? Eu, por exemplo, saí do projeto da OAB defendendo o plebiscito no âmbito municipal e estadual. Se nós pudéssemos partir disto, da reforma tributária e caminharmos para o seguinte: será que não é a reforma política a profissionalização dos servidores públicos, acabar com a farra da nomeação de DAS? E as medidas provisórias? Há um excesso ou não, devemos acabar com elas? Não, mas devemos ordená-las. Deixo aqui um protesto sobre as coligações no sistema proporcional. Sou a favor desse sistema, mas desejo um sistema proporcional sadio, com o fim das coligações — tenho um projeto do deputado Pompeo de Mattos, do PDT, neste sentido. Eu acho que a nossa democracia é como esses sites que estão sempre em construção. E a nossa será a democracia, a democracia que está se ajustando no mundo permanentemente. Há discussões enormes na França sobre essa questão. Há dez anos, combateram a esquerda e a direita, a democracia pareceu enfraquecida, mas estão lá. Há intervenções enormes até no domínio da imprensa, com a demissão de editores a mando de denunciantes. Nos Estados Unidos, a discussão dos direitos humanos é grande. Não devemos desconsiderar tudo aquilo que permitiu a conquista da nossa democracia: eu quero liberdade, quero partidos políticos que não sejam opressores, quero candidaturas independentes, não quero essa chamada fidelidade como disposto, porque isso é obediência partidária e há até reserva de mercado para se saber, com quatro anos de antecedência, quem pode ser candidato. Com isso, os partidos vão se desfigurando, se descaracterizando, entrando cada vez mais no mandonismo. Acho que devemos estar dedicados ao livre pensar e à liberdade absoluta de ação. Estas são as minhas opiniões, espero que, com estas minhas palavras, não tenha perdido a oportunidade de ser convidado outras vezes para discutir este assunto.

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Multidão se concentra na Praça da Sé no dia 25 de janeiro de 1984, aniversário da cidade, em um comício para exigir eleições diretas para presidente da República. O movimento ficou conhecido como Diretas Já.

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Fernando Santos/Folha Imagem

Uma mobilização

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ntre as coisas que eu mais admiro está o de ver o debate na Câmara dos Comuns, o famoso debate entre o primeiro ministro e os parlamentares. Cada um tem um minuto para falar e consegue. Por quê? Porque são focados. A questão principal que atrapalha para avançarmos no Brasil é que nós perdemos o foco. É verdade, temos que focar. A razão pela qual eu aceitei, e junto com o Afif resolvemos fazer este debate, é que queremos dar foco, porque senão vamos nos perder em muitos temas. O Miro Teixeira percebeu isso, não é? Essa reforma que está no Congresso, o melhor que se faz é não votar. Não votar! Isso não é reforma, isso é uma camuflagem para fingir dar atenção aos vários reclames da sociedade e compor interesses locais. E tem dentro dessa reforma um verdadeiro "cavalo de tróia" que é a lista fechada feita pelas lideranças partidárias. Isto realmente sufoca. E apenas 2% para a cláusula de desempenho mata tudo. Vamos

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fortalecer a oligarquia partidária como nunca na história. Então, isso não deve ser votado! Não se trata aqui de uma discussão sobre esta proposta, que é um "no-starter", que não sai do lugar, não pode sair. Nós temos que ter outras idéias. Muito bem, eu aqui defendi coisas simples, como o Afif. Ou seja, não dá para resolver tudo de uma vez só. O que pode ter efeito em cadeia? Acho que o sistema de voto pode levar a mudanças. Ninguém garante isso, mas pode. As grandes modificações que são absolutamente necessárias, como o sistema partidário, a seleção dos candidatos, tudo isso tem de ser mexido, mas precisa ter um foco e um ponto de partida. Eu acho que a proposta do voto distrital ajuda neste sentido. Segundo: vocês viram que fui relativamente prudente ao defender o voto distrital puro, porque ele é o de mais fácil de compreensão. Aí vêm os inconvenientes e até pode-se chegar a outras fórmulas. Sou contra uma opinião dogmática e


Agliberto Lima/DC

nem acho que se possa fazer algo a partir de um todo fechado. Tem que haver negociação, tem que haver discussão. Se nós discutirmos o voto distrital puro, vão aparecer alguns inconvenientes. Não vai aumentar o paroquialismo? Não vai dificultar uma porção de outras questões? Não vai também distorcer a representação? Vamos discutir a partir de um foco. O sistema proporcional nominal que aí está, por várias razões já despendidas por quase todos aqui, não serve. O único que defendeu a proporcionalidade pura foi o deputado Miro Teixeira. Mas eu conheço o deputado há muitos anos, ele acaba se convencendo da realidade. E ele até ajuda nas provocações que faz: para dar o gosto de ver como seu espírito brilhante nos leva a ter de reagir de uma maneira mais adequada a certas questões. Vamos ver de que maneira o voto distrital vai se configurar. Temos a proposta do deputado Arnaldo Madeira, que é o voto distrital puro. Acho que deveríamos começar pelo voto nos municípios com eleição de dois turnos para ver se funciona. Além do mais, isso diminuirá os argumentos relativos ao paroquialismo, como disse o deputado José Eduardo Cardozo. Isso tem que ser feito com objetividade, pois

no ano que vem tem eleição. Uma proposta vaga não chega a nada. Tem que ser alguma coisa que possa mobilizar. Também é preciso buscar sempre brechas para os candidatos que furem as listas partidárias, que furem os partidos. Sou cada vez mais favorável a que se dêem válvulas à própria sociedade, para que ela se manifeste de uma maneira mais aberta. Nós não podemos ficar amarrados em nenhum caso: é fácil isso, não é fácil aquilo, é difícil... Vamos ter que partir de um sistema de eleição primária, um tipo de eleição aberta para a composição das listas, sobretudo no voto distrital, porque senão você vai ter de novo a burocracia partidária mandando. Tem que haver modificações dessa natureza também. Eu não me referi a elas porque queria focar. E, por fim, há uma questão fundamental, que foi levantada por várias pessoas. Em vez de falar de minoria, quis falar de grupos discriminados, como as mulheres e os negros. Mas como é que se faz isso? O Bornhausen fez uma descrição absolutamente realista do que aconteceu e todos os demais repetiram as dificuldades do Congresso, que só vai andar se houver um movimento de pinça. Não pode ser sem o Congresso, nem só com o Congresso.

Fernando Henrique Cardoso

como as Diretas Já Araúdo/Folha Imagem

Luíz Inácio Lula da Silva, na época presidente do PT, e o governador André Franco Montoro participam do comício das Diretas Já na Praça da Sé, que reuniu mais de 300 mil pessoas.

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Por isso, a importância de ver se a sociedade está disposta efetivamente a se jogar em alguma coisa e como se jogar. Um dos "comos" é aqui. Esta Associação tem capilaridade. Não há causa sem que haja defensores dessa causa e se os que aqui estão se dispuserem a fazer uma pregação, a sociedade pode se mobilizar. É preciso que alguém pregue. Como é que foi feita a campanha do voto direto? Se dizia que era impossível. Eu era presidente do PMDB de São Paulo na época e a Executiva que eu presidia foi contrária a se convocar uma reunião das Diretas Já na Praça da Sé. Eu e o governador Montoro procuramos outros partidos, inclusive o PT. Ninguém quis. O PT queria fazer isso sozinho e ninguém quis fazer por mil razões, porque é difícil romper, não temos recursos, ninguém vai, vai ter repressão, não é a hora... esses argumentos todos. O Montoro insistiu e fez. Ele bancou e nós levamos um susto, porque chegamos na Praça da Sé e não havia microfone para cobrir o conjunto de pessoas que lá estavam, porque nós nunca imaginamos que teria tanta gente presente. E aí começou um processo de mudança, porque não é de qualquer maneira que a sociedade muda. A sociedade muda dessa forma. Às vezes é gradual e de repente dá um curto-circuito e a coisa avança. E a questão mais importante do Brasil é a da reforma eleitoral, a reforma política? Não sei, francamente não sei, porque há tantas questões importantes — combater a pobreza, crescer a economia, tem muitas questões importantes. Eu não acho que essa seja a única, mas acho que nesse momento pode mobilizar alguns setores. O governo só será mobilizado se houver pressão de fora, porque o governo está amarrado com a lógica do sistema. Qualquer governo, não é só esse, está amarrado pela lógica do sistema. Podem cobrar de mim porque não fiz a reforma eleitoral. Não fiz no primeiro mandato porque deliberei não fazer. Porque achava que se eu fosse começar por aí não saía dela, não teria feito as outras reformas. Então usei a lógica: vamos fazer a reforma econômica, quebrar os monopólios, avançar, para depois, no segundo mandato, fazermos um brand new system, pouco a pouco. Eu dei apoio a algumas medidas. Hoje, diante da desmoralização de tudo, existe uma crise de legitimidade. Não há mais escapatória se quisermos pensar, não para esse governo, mas a longo prazo. Ou damos uma chacoalhada nisso ou em algum momento o sistema político vai sofrer um estresse, vai se estatelar, vai se despedaçar por algum demagogo. Não vai mais haver golpe militar, não

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A sociedade muda dessa forma. Às vezes é gradual e de repente dá um curto-circuito e a coisa avança. (...) O governo só será mobilizado se houver uma pressão de fora, porque o governo está amarrado com a lógica do sistema.

tem mais Guerra Fria, não é por aí. Mas nada nos livra de um demagogo, de um "que se vayam todos", como se diz na Argentina, contra tudo o que está aí. Agora não, pois a economia está indo razoável. Mas é só ocorrer num momento em que a economia não esteja tão favorável que a tese do "que se vayam todos" vem. A questão já aconteceu mesmo no Brasil: um outsider vem, ganha e resolve de uma maneira que não é democrática. Acho que o momento é importante para estadistas. Não estamos aqui discutindo o eleitoralismo, quem vai ganhar com isso ou aquilo, esse partido ou aquele, isso não dá. Mas se não tivermos uma visão mais ampla, uma visão ancorada na sociedade e com reflexo no parlamento — senão também não adianta —, não vamos nos prevenir para o futuro. Eu não sou catastrofista, nunca fui na minha vida, mas tenho experiência de vida e de leitura, as coisas acontecem. O nosso sistema está esgarçado, quem não vê isso? Ele está esgarçado e comecei mencionando a questão da cultura cívica. Nós não acreditamos na lei, nós não acreditamos que a lei seja igual para todos, porque ela não é, isso cria um clima muito negativo. Acho que é possível focar, avançar, ver qual é o mecanismo que mais se adequa aos nossos objetivos, que são ganhar legitimidade, em primeiro lugar, fazer as pessoas acreditarem no voto, em quem vão votar. Como é que se aperfeiçoa, como é que se evita que em algum outro sistema, como o assistencialismo, progrida, porque ele realmente pode progredir. Vejam, nós estamos assistindo neste momento o assistencialismo progredindo a partir dos instrumentos que foram criados por um propósito oposto, que era levar para a base da sociedade a reivindicação da cidadania. E, de novo, isso virou uma relação de um presidente todo-poderoso, que dá para o povo e o povo recebe e ainda paga com o voto. Estamos assistindo ao sistema mais amplo possível de clientelismo, usando instrumentos que foram criados por um propósito oposto, mas nada evita que o assistencialismo possa ocorrer. E evitar o assistencialismo não é uma questão de cultura política, é mais amplo do que isso. É que há muito mais mudanças e no mundo de hoje nada muda sem mídia, vamos ser claros. Nossa sociedade é uma sociedade de massa, depende de um sistema de comunicação. Ou nós ganhamos a mídia para alguma tese, ganhamos os formadores de opinião, ou a tese não caminha. Eu sei que os formadores de opinião não vão decidir o voto, deu para ver nesta última eleição. Mas não é isso, nós não estamos tratando de vo-


to, estamos tratando aqui de uma engenharia institucional e essa precisa de apoio, precisa de debate, precisa de compreensão. Se tivermos instituições, do tipo da Associação Comercial e outras mais que podem a nós se juntar, repetindo no Congresso e de maneira direta através da mídia porque é melhor o voto distrital — e daí o exemplo, que é melhor do que qualquer teoria — começar onde ele não vai mexer com interesses muito complexos, que é no município, implantálo nos municípios com dois turnos, eu acho que daremos um passo adiante. O que vai acontecer depois, quem é que sabe? Se isso vai dar, se vai haver muita briga na hora da distribuição do desenho do distrito. Eu concordo com o Bolívar, hoje as brigas do desenho dos distritos nos Estados Unidos são menores, na Inglaterra também. Aqui vai haver alguma briga, política é briga, vai ter conflito de interesses. Mas é mais fácil você dar o exemplo a partir do município. Finalizo dizendo o seguinte: se houver um grupo razoável de pessoas que apóia, que quer por causa da democracia, então temos que nos mobilizar para fortalecer a nossa proposta. Se esse grupo existe, que comece a se reunir e que se reúna independentemente de partidos. Não há nada contra os partidos, sou presidente de honra de um, aqui todos nós temos partidos. Mas não podemos atar essa discussão ao interesse de cada um dos nossos partidos. A minha geração está no fim, mas ainda há a dos intermediários, a dos jovens que estão aqui para is-

so e têm tempo para poder avançar. Nós não vamos responder a todas as questões de uma vez só. Quando comecei falando do Império, que durou pouco tempo a experiência e depois houve essa mudança para o sistema com três deputados, lembrei que no Chile é assim, tem dois deputados. Todos os sistemas eleitorais têm uma porção de inconvenientes, mas eu falei do Império para mostrar que isso não é uma coisa que se vê e acaba, isso é um processo. E eu termino, para agradar, citando Miro Teixeira, que dizia o seguinte: "A democracia é um processo em marcha". Não existe uma coisa fechada. Isto é a democracia, não é dizer que este é o voto correto. É um processo aberto, mas por ser aberto, não pode ser parado, não pode ficar olhando enquanto as coisas vão se desorganizando, se desfigurando. É aberto, mas nós temos que ter um pensamento que leve à concentração dos núcleos que tomem decisões respeitadas. A democracia que toma decisões e não é respeitada é anarquia, e da anarquia vem a tirania. Sem ver fantasmas, precisamos nos prevenir, não agora, mas para uma tirania futura. Mas como não sou pessimista, estou convencido de que nós vamos sair daqui com vontade de continuar a brigar, a debater, a discutir esses temas e sobretudo a fazer com que o Congresso tome mais a liderança desse processo de transformação e leve o governo, quem sabe, a se mobilizar nessa direção. Acho que se a sociedade der um passo forte nós podemos avançar.

Jarbas Oliveira/Folha Imagem

Crescimento do assistencialismo: a relação que estamos vendo é de um presidente todo-poderoso que distribui benefícios para a população, o povo recebe e paga com voto.

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Vamos começar a mudança pelas capitais

UZ

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Lulu

Guilherme Afif Domingos Secretário do Trabalho do Estado de São Paulo

P

rocurarei ser muito breve. Em primeiro lugar, gostaria de retribuir a gentileza do meu amigo Miro Teixeira com a citação para o desafio da reforma tributária. Gostaria de pedir o seu apoio, como o de todos os que têm mandato, para um projeto apelidado De Olho no Imposto, que foi aprovado na comissão no Senado, para daí seguir para a Câmara, que é a regulamentação do artigo 170 da Constituição, que estabelece que o povo tem o direito de saber o imposto que paga quando compra um bem ou serviço. O que a gente pretende com isso? É trazer o povo para o debate, com espírito cívico efetivo, a consciência de "tax payer", a consciência de pagador de impostos; porque todas as imperfeições do sistema caem exatamente no bolso do povo. E como a parte mais sensível do organismo é o bolso, tenho certeza de que teríamos condições de mobilizar a sociedade para as mudanças necessárias, para que possamos ter um país eficiente e com menos gastos.

Mas voltando ao assunto presente, acho que um ponto fundamental é que a discussão do voto distrital é, ao mesmo tempo, algo tão árido para efeito de compreensão da população e também algo simples. O problema é o efeito demonstração. Outro dia, eu estava assistindo a uma palestra sobre o problema da teorização e um sujeito me deu para ler um manual de como amarrar o sapato. Li o manual e não entendi como amarrar o sapato. Agora, se me mostrarem como se amarra, a coisa é mais simples! Entre a descrição e a demonstração, a demonstração é muito mais rápida e didática. É o caso do voto distrital misto ou puro. Convivendo no Congresso, tenho a nítida

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impressão que há uma unanimidade, ou quase unanimidade, a respeito da introdução do voto distrital. Mas lá para o ano de 2060 ou 2070. Ou seja, ninguém tem a coragem de mudar coisa alguma que possa afetar o seu planejamento de curto prazo. Então, vamos ficar sempre postergando. Eu gosto muito de prazo. Eu e o Samuel Klein (Casas Bahia), porque ele diz que a prazo tudo se vende. Tudo o que nós colocarmos a longo prazo, mas se formos céleres na sua direção, acho que conseguiremos, desde que haja o efeito demonstração eficiente. Portanto, é importante esta sua tese, meu caro presidente Fernando Henrique, de que devíamos ter um efeito demonstração, não nas pequenas cidades, mas nas capitais, municípios que tenham dois turnos, por terem mais de 200 mil eleitores. Dentro desta linha, teríamos condições de dar um primeiro passo sem as repercussões indesejadas em nível nacional, porque quem resolve isso é sempre em nível nacional e não queremos introduzir o voto distrital de cima para baixo. Na verdade, deveríamos introduzi-lo de baixo para cima, assistindo as imperfeições, fazendo as correções necessárias, mas seguindo firmes. Se isto não for possível dentro do sistema atual, onde a alteração da Constituição é feita pelo Congresso, que tem outros interesses, por que não fazer então um plebiscito para a convocação de uma Constituinte exclusiva, única e exclusivamente para apresentar e votar um projeto de reforma do sistema representativo como base? Se de dentro para fora não sai, de fora para dentro com certeza vai sair, porque é importante. Nós estamos aqui, modestamente representando uma comunidade muito presente no território nacional. A ela se somam outras redes e acho que está na hora de levarmos a essas redes esse debate. Mas, devemos começar com simplicidade, nos municípios que tenham dois turnos, para que tenhamos então o efeito demonstração. Dentro desta linha, acho que valerá a pena lutar, até porque tenho certeza que haverá uma forte participação da sociedade ao entender que existe alguma luz no horizonte.

Se o Congresso tem outros interesses, por que não fazer um plebiscito para a convocação de uma Constituinte para votar um projeto de reforma do sistema representativo como base?

Dida Sampaio/AE

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Projeto do voto distrital tramita no Congresso

Agliberto Lima/DC

Arnaldo Madeira Deputado Federal pelo PSDB (SP), sociólogo, administrador de empresas e professor universitário; autor do projeto de emenda constitucional para instituir o voto distrital puro

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A

tese do voto distrital é algo que está muito longe da cabeça dos políticos e das pessoas. De um modo geral, não é algo que faça parte da reflexão política brasileira. Solicitei um levantamento na Câmara dos Deputados sobre projetos de reforma política e encontrei somente uma emenda constitucional, a do deputado Expedito Oliveira, de 1995, sobre o voto distrital, e um projeto de lei do senador José Sarney, de 1977. Mas são projetos que falam do voto distrital misto e cuidam de diferentes aspectos da questão eleitoral. Como deputado, há muito tempo reflito sobre esse tema. Durante muito tempo também defendi o voto distrital misto. Nessa última campanha eleitoral, resolvi fazer um debate sobre o tema reforma política e reforma eleitoral, especificamente. No embate, fui ao encontro de diferentes platéias e percebi que o voto distrital misto é de tão difícil compreensão quanto o sistema atual, que as pessoas tampouco conhecem. Os parlamentares não entendem muito bem e as pessoas menos ainda. Concluí que o nosso sistema está exaurido, mas também percebi essa dificuldade de compreensão do que é o voto distrital misto. Acho que a exaustão do sistema eleitoral atual é consenso, pois é difícil encontrar alguém que o defenda e essa é uma razão, talvez a mais importante, para o desgaste das nossas instituições políticas perante a opinião pública. De um lado, temos o atual sistema eleitoral absolutamente desgastado, e do outro, um sistema complexo, que as pessoas não entendem. Por isso, acho que precisamos de um

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tratamento de choque na área política. Durante muitos anos como parlamentar, atuei na linha de tiro exposta pelo senador Jorge Bornhausen — vamos fazer a cláusula de barreira, depois extinguir as coligações nas eleições proporcionais, ir mexendo aos poucos para reformar o sistema. A cláusula de barreira foi aprovada, trabalhei para implantá-la durante dez anos e deu no que deu. Encontramo-nos numa situação em que o deputado não sabe quem o elegeu e o cidadão não sabe quem é o seu representante. Minha reflexão conduziume à seguinte conclusão: precisamos de um sistema muito simples, que as pessoas entendam e que preserve a nossa tradição cultural — em essência, as pessoas costumam dizer que não votam em partidos, mas em pessoas, embora não saibam que ao votar em pessoas, votam nos partidos e que podem até eleger uma outra pessoa que desconhecem. Na busca de um sistema dotado de simplicidade, comecei a testar a proposta do voto distrital na campanha eleitoral, falando para diferentes auditórios. Percebi que, quando se coloca a proposta: "Você terá um deputado que será o representante do bairro, o representante do distrito", as pessoas entendem com muita clareza, é uma proposta de muito fácil compreensão. Ela também leva o deputado a saber exatamente quem ele representa, quem é seu público, a quem ele deve prestar contas, com quem ele deve estar em contato permanente. Outro aspecto que o voto distrital favorece é a governabilidade. Isso é algo muito criticado no Brasil, tanto assim que


Sergio Dutti/AE

quando alguém ganha o governo tem que sair negociando para garantir um mínimo de governabilidade. Ora, um partido para estar organizado nacionalmente em 513 distritos precisa estar inserido na sociedade. Em cada distrito haverá uma disputa para decidir quem será o candidato de cada partido. Os partidos vão procurar gente que tenha expressão na região e é aí que a briga partidária vai estar concentrada. O sistema distrital tende a fortalecer os partidos na escolha da representação local. O deputado eleito por um distrito passa a representar não apenas os que votaram nele, mas o conjunto da comunidade. Até mesmo para a reeleição, ele tem que procurar se inserir o máximo possível na comunidade e aprofundar o seu relacionamento com ela. O terceiro argumento a favor do voto

distrital é a falta de representação das áreas metropolitanas nas Assembléias Legislativas e na Câmara Federal. As áreas metropolitanas são hoje muito mal representadas, se é que se pode dizer que tenham representação. É muito difícil com o atual sistema desenvolver uma consciência local nas áreas metropolitanas. Tomemos o exemplo de São Paulo. Com o voto distrital, um distrito como Itaquera elegerá um deputado federal. Isso muda qualitativamente a percepção do eleitor e sua disposição de refletir sobre quem ele elegerá para ser seu representante no Congresso Nacional. Hoje, as áreas metropolitanas viraram terra de ninguém, qualquer um ganha um voto aqui, outro voto acolá e nenhum representante é eleito. Isso é flagrante em São Paulo. Temos regiões enormes, com dois ou mais milhões

O voto distrital muda qualitativamente a percepção do eleitor e sua disposição de refletir sobre quem ele elegerá para ser seu representante.

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de eleitores, sem que se possa dizer que haja um deputado estadual ou federal que represente aquele segmento, aquela parte da cidade, aquela área da região metropolitana. São essas as reflexões que me fizeram evoluir para o sistema distrital. Não é que eu ache que o sistema distrital seja o ideal, isso não existe. Todos os sistemas eleitorais têm problemas, defeitos e falhas. Parto do exame do sistema atual e do que seria necessário para dar um choque e mudar a qualidade da representação política e, principalmente, fortalecer a relação entre representante e representado. Pode-se também dizer que uma boa parte do Congresso já é eleita por distritos. No fundo, acredito que o voto distrital tenha maior facilidade para ser debatido e aprovado do que o distrital misto, que é muito mais complexo e que deixará 40%, 50% ou outro percentual de cadeiras a ser eleito por listas fechadas nas mãos da direção partidária. O meu sentimento, com base nestes anos todos que estou lá, é que é mais difícil aprovar o voto misto na Câmara dos Deputados. Acho que é preciso mudar. O fato de boa parte do parlamento ser eleita por distritos é algo que facilita se criarmos um clima favorável na sociedade. Vimos nas exposições feitas que não tivemos reforma nenhuma, que tudo vai continuar do jeito que está. Pelo quadro atual, a perspectiva é passarmos mais quatro anos sem aprovar absolutamente nada, a não ser que haja uma mobilização da sociedade. Senão, o governo dificilmente entrará nisso. O meu sentimento é que o governo vai jogar a reforma eleitoral e política para o segundo plano, ele não está preocupado com esta reforma ou talvez com nenhuma outra. Lá no plenário da Câmara, vejo a disposição do governo em aprovar apenas duas matérias relevantes: a Lei do Gás e as agências reguladoras. Portanto, acho que a tendência é de ficar de fora. Sou uma pessoa muito conciliadora, mas neste tema sou a favor de uma radicalização do tema. Ou conseguimos criar um clima favorável para discutir o voto distrital, o que ele significa para a organização partidária, ou vamos partir de uma posição de fragilidade. Vamos experimentar nas eleições municipais, ver no que que dá. Mas temos

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O fato de boa parte do parlamento ser eleita por distritos é algo que facilita se criarmos um clima favorável na sociedade.

A disposição no plenário da Câmara reflete, em grande medida, o que a mídia pede. Hoje, você tem a mídia dirigindo as coisas e o que é colocado na pauta acaba, de certo modo, sendo objeto da preocupação dos parlamentares.

que chegar com uma posição de força, por uma mudança radical do sistema político brasileiro. É fácil? Não, é muito difícil, porque esse não é um tema que esteja na cabeça das pessoas ou que preocupe os políticos. Vocês ouviram a exposição do Bornhausen, do Miro Teixeira e do José Eduardo Martins Cardozo, todos relatando que fizeram acordos, mas que quando chega no plenário a coisa não avança. E não avançará nunca se nós não tivermos um grande processo de mobilização da sociedade, principalmente da mídia. Na verdade, e cito o Fernando Gabeira, atualmente a disposição no plenário da Câmara reflete, em grande medida, o que a mídia pede. Hoje, você tem a mídia dirigindo as coisas e o que é colocado na pauta acaba, de certo modo, sendo objeto da preocupação dos parlamentares. Lembro que em 1999, quando a crise externa nos levou a votar uma série de medidas numa convocação extraordinária do Congresso, só conseguimos aprovar projetos que pareciam absurdamente impossíveis porque havia uma pressão da mídia em favor de mudanças. De certa forma, medidas sobre a economia acabam sendo mais fáceis de votar, porque envolvem agentes econômicos. O caso do sistema eleitoral não afeta as pessoas diretamente, não afeta diretamente interesses econômicos, então a coisa fica assim mais vaga. O deputado Miro Teixeira falou sobre quais são as medidas de reforma política. Mas não ouvi ele falar sobre um novo sistema de eleição para a Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores. É preciso focar nesta questão. O Senado tem o problema de suplentes que precisa ser resolvido. Mas nos outros níveis as eleições já estão definidas: prefeito, governador e presidente da República têm eleição direta, senadores têm eleição majoritária. Precisamos resolver agora a questão das eleições legislativas. Hoje, a Câmara dos Deputados, as Assembléias Legislativas e as Câmaras de Vereadores são a questão central do sistema eleitoral. Me permito dizer, na presença do ministro Fernando Haddad, que o problema da educação é o ensino fundamental. Resolvendo o problema da qualidade do ensino fundamental, você resolverá o resto até por pressão. Isso é o


que eu chamo focar. Tenho para mim que precisamos vender a idéia de que é preciso mudar a forma da representação parlamentar. Quero ver um deputado eleito por um determinado distrito voltar lá depois de um escândalo nos moldes do "mensalão" o ou das "sanguessugas", porque aí o cidadão vai ter mais claro quem é que o representa, quem representa aquele município, aquele distrito. Na vida parlamentar e nas campanhas você acaba aprendendo muito com as pessoas. Em Itapecerica da Serra, um município da Grande São Paulo, num lugar bem pobre chamado Jardim Jacira, conversei com um grupo de mulheres, defendendo minhas teses de campanha. Uma senhora tomou a palavra e falou de uma forma muito singela, mas bem clara: "Deputado, sabe qual é o problema? Aqui no município a gente conhece o prefeito, o atual e o anterior, o governador a gente vê todo dia na televisão, nos jornais e no rádio, o presidente da República também. Agora, o deputado só a cada quatro anos". No fundo é isso mesmo. O deputado disputa o mandato, pega voto pelo Estado afora, como eu e outros fizemos, e a questão da representação, de quem você representa, fica esquecida. Como só haverá eleição daqui a quatro anos, dá para trocar de partido e para fazer tudo o que a população critica. Lembro o que o deputado José Eduardo Cardozo falou sobre a paróquia na política. Na Câmara, o deputado atua hoje como representante de paróquias. Como deputado federal, minha primeira experiência foi na Comissão de Orçamento. Na primeira reunião a que eu fui ouvi as intervenções e concluí: "Bom, voltei à Câmara Municipal de São Paulo". Porque é a mesma coisa, não tem nenhuma diferença. Os deputados que pensam em temas, em teses, são exceção. Não sei dizer exatamente quantos são, talvez, sendo otimista, de 80 a 100. A grande maioria é da paróquia, isso já está no nosso sistema, não faz diferença. Outro argumento contra o voto distrital é que pessoas com bandeiras terão dificuldades para se eleger. Eu contesto e digo o seguinte: um cidadão que quiser ser candidato terá que encontrar o seu distrito. Num sistema distrital, eu imagino que o Gabeira, por exemplo, seria eleito por um distrito da Zona Sul do Rio de Janeiro, cujos

eleitores teriam muito orgulho em dizer: "Olha, o Gabeira é nosso representante". Não falta espaço para gente de expressão nos distritos, nos bairros os mais diversos. Tanto isso é verdade que a experiência de outros países é que grandes líderes saíram de distritos, talvez até mais após terem perdido em seu distrito original e disputado em outro. Essa conversa de que a tônica será só paroquial e que personalidades marcantes não terão possibilidade da representação não é o que mostra a história de outros países. Para sintetizar minha opinião, tenho a convicção que estamos em uma situação em que certamente a sociedade não está preocupada com esse tema, está anestesiada para este e para outros assuntos. Mas tenho também a convicção de que o sistema atual se esgotou e que o voto distrital misto é de muito difícil compreensão, gerando uma confusão generalizada. Acho que a forma mais eficiente de mobilizar e sensibilizar a sociedade para a mudança é o voto distrital puro, que permita que você fale: "Olha, eu sou o representante do seu bairro, do seu distrito". Precisamos de uma proposta de rápida compreensão e capaz de dar um tratamento de choque para recuperar a legitimidade do Parlamento, tirá-lo da vala comum. Não tenho dúvidas disso: a tendência do nosso sistema de representação parlamentar é ficar cada vez pior. Diria até que a luta para implantar o voto distrital puro é quase uma luta desesperada para recuperar a credibilidade do Parlamento neste País. É dessa forma que eu vejo e é por essa razão que apresentei projeto de emenda constitucional, instituindo o voto distrital puro. O projeto está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara esperando uma definição do relator, mesmo sabendo que a possibilidade de aprová-lo hoje é quase zero. Mas lembro que já votamos emendas constitucionais partindo do zero e que conseguimos sensibilizar e mobilizar a opinião pública, políticos, jornalistas e entidades de classe. Fico feliz que a iniciativa desse debate seja do Instituto Fernando Henrique Cardoso, mas fico ainda mais feliz com a participação da Associação Comercial, que pode ser um pólo importante de mobilização sobre o tema. Esta é a forma como me coloco hoje neste debate.

Precisamos de uma proposta de rápida compreensão e capaz de dar um tratamento de choque para recuperar a legitimidade do Parlamento, tirá-lo da vala comum. (...) a tendência do nosso sistema de representação é ficar cada vez pior.

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Uma árdua batalha a ser travada e vencida berto

Agli

/DC

Lima

Antonio Octávio Cintra Cientista político e consultor legislativo da Câmara dos Deputados

M

uitas pessoas citaram, por várias vezes, a necesaos governos têm feito a sua parte, tendo como resultado que o sidade de mobilização da sociedade com relasistema brasileiro não apresente grandes diferenças com relação à reforma política. Um argumento muito ção a sistemas como os parlamentaristas de vários países euroimportante do deputado Madeira é o da simpeus, que também necessitam de coalizões, porque têm sisteplicidade de compreensão do sistema distrital pelo eleitor. É mas multipartidários. Essa visão tão otimista, o professor Lapreciso, contudo, quando pensamos em campanha e mobilimounier já a chamou, em alguma ocasião, lembrando-se do zação para um tema como o sistema eleitoral, não omitir um personagem de Voltaire, o doutor Pangloss, uma visão panglosfato: um segmento muito importante para o esclarecimento e siana. Para Pangloss, tudo ia bem no melhor dos mundos posdifusão das idéias relativas à mudança do sistema eleitoral e de síveis, pois fechava os olhos para as catástrofes que iam aconoutros aspectos do sistema político é a oposição da própria cotecendo, uma delas o fatídico terremoto de Lisboa. O otimismo munidade acadêmica dedicada ao estudo da Ciência Política. anti-reformista tende a esconder ou jogar para debaixo do taLamentavelmente, grupos bastante importantes e influentes pete uma série de coisas negativas que estão acontecendo. Uma de nossos cientistas políticos descartam mudanças maiores das coisas que acho fundamental, por exemplo, é a maneira de em nossas instituições, a começar pelo se construir coalizões no Brasil em anos Voltaire, que criou o personagem sistema eleitoral, sendo às vezes até mais recentes. Não estou aqui pensando dr. Pangloss, para quem tudo ia bem. abertamente hostis à idéia. simplesmente no mecanismo, que é leMinimizam-se os numerosos e evigal, das emendas ao orçamento — Ferdentes problemas que temos experinando Henrique, no seu livro "A Arte da mentado em nossa política e se vê o sisPolítica", trata do assunto e faz considetema como funcionando bastante bem. rações sobre isso —, mas nos meios pouTomam-se alguns indicadores desse co ortodoxos, para dizer o mínimo, de inbom funcionamento, por exemplo, a inchar a base de apoio ao governo. corporação cada vez mais maciça da poÉ uma pena, pois, verificar que uma pulação à participação política, mesmo campanha como a que se está propondo que feita por legendas do tipo que se tem em favor de modificar o sistema eleitochamado — preconceituosamente, na ral não terá condição de contar com uma visão de alguns desses cientistas polítiboa parte da nossa Ciência Política. Ela cos — legendas de aluguel. Dizem seestá ficando uma ciência conservadora, rem esses partidos instrumentos de inque prefere o status quo às mudanças, corporação da grande periferia geográpondo, no prato da balança em que estas fica brasileira à política nacional. figuram, um enorme peso de terríveis Da mesma forma, o presidencialismo conseqüências que, conforme se anunbrasileiro não seria um sistema ruim. Ao cia, piorariam o que temos. Ora, se não contrário, nessas avaliações, tem-se pudermos mudar, é melhor nos conformostrado capaz de funcionar. Os partimarmos com o que temos e descobrirdos têm disciplina, as coalizões de apoio lhe as qualidades. É o que se tem feito. Reprodução

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Não quero deixar de mencionar que, como consultor legislativo, fico um pouco desconfortável diante das reações ao projeto que está em pauta na Câmara, o PL 2.679/2003, o projeto das listas fechadas, do financiamento público, das federações de partidos e outros aspectos que eu consideraria de importância comparativamente menor. Na verdade, tive ocasião de acompanhar, pari passu, a sua elaboração. Entendam bem, o consultor legislativo não constrói o projeto. O deputado pergunta se algo é viável, se tem antecedentes que possam inspirar-nos. Fazemos um estudo, uma pesquisa, apresentamos os resultados ao parlamentar, que opta, quando não tem ainda uma opção inicial, por alguma das idéias ou modelos que lhe apresentamos. Curiosamente, por exemplo, quando nós expusemos o uso, em boa parte dos sistemas eleitorais de tipo proporcional, das listas fechadas, pré-ordenadas, a idéia pareceu esdrúxula a muitos dos parlamentares da comissão especial encarregada da reforma. Eu mesmo tive ocasião de expor a um deputado do PSDB o que era o voto em lista fechada. Comecei a explicar e notei que seu semblante começou a demonstrar preocupação. Não estava gostando daquilo e o expressou: "Isso é muito problemático". Um dos problemas do voto em lista é que, de fato, o modelo inicialmente choca. Presenciamos isso na comissão. O relator, o presidente, outros parlamentares, começaram mostrando estranheza, mas depois se entusiasmaram com a idéia. Conversando muito tempo depois com o deputado Ronaldo Caiado sobre o assunto — um colega e eu estávamos fazendo uma pesquisa, de natureza acadêmica, para a Comissão de Agricultura — ele explicou seu ponto de vista, exemplificando com a própria composição da comissão, que precisa de gente que conheça o assunto, que seja especializada. Para o deputado, a lista fechada permite ao partido, no Estado, ser seletivo na escolha de quem ele vai patrocinar, quem vai constar da lista e em que ordem de precedência. O partido impri-

me a sua marca na chapa eleitoral, a lista fechada, colocando nela pessoas expressivas, representantes dos segmentos de apoio e também qualificados em termos dos assuntos de relevo para o partido. Sim, o sistema é oligárquico, mas a oligarquia já existe no modelo que praticamos. Eu fiz essa objeção quando o Bolívar Lamounier propunha, alguns anos atrás, o sistema misto, distrital e proporcional, num seminário realizado aqui em São Paulo. Lembrei a ele que, no componente proporcional de lista fechada, havia o problema das oligarquias estaduais que a lista reforçaria e ele me retrucou, com sua experiência prática de uma campanha como candidato, alguns anos atrás, que havia experimentado na carne a força das chefias partidárias. Se queremos partidos, recordemos que os partidos são organizações, com controle e hierarquia. Se falamos no partido como sendo importante para o bom funcionamento da democracia, não se pode omitir esse aspecto do problema: organização significa tendência à oligarquização. Mas, cientes dos problema, as organizações têm meios para diminuir a força de suas oligarquias. Creio, porém, ser uma injustiça para com o projeto das listas fechadas quando se propaga que vão ser feitas de maneira truculenta. Na verdade, não precisa ser assim. O projeto de lei da Comissão Especial da Câmara não pôde ir muito longe no que diz respeito a especificações de como os partidos devem fazer as suas listas. Isto porque a Constituição Federal assegura a autonomia partidária, ou seja, trata-se de assunto de economia interna dos partidos. Mas pelo menos nele há dispositivos que estipulam um processo democrático de determinar a ordem dos nomes na lista, mediante votação dos convencionais. Sem dúvida, alguns partidos serão mais fechados, mais oligárquicos, outros mais abertos, igualitários, mas isso é uma realidade presente hoje também, sem a lista fechada. Se o eleitor acha um partido oligárquico, que não vote em sua lista.

Dida Sampaio/AE

Para o deputado Ronaldo Caiado, a lista fechada permite ao partido, no Estado, ser seletivo na escolha de quem ele vai patrocinar, quem vai constar na lista e em que ordem de precedência.

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Por que estou falando sobre lista fechada numa discussão tes. Por que me parece extremada e errônea essa perspectiva? sobre o voto distrital? Porque na realidade acho que, tanto no Porque não há nada que diga que seja pouco democrático obrisistema proporcional, quanto no sistema distrital, queremos garmos as várias nuances de opinião a se agregarem, vendo o ter partidos mais sólidos, capazes de negociar, cumprir acorque elas têm em comum. O sistema majoritário força essa agredos no funcionamento parlamentar, ter um mínimo de disgação. Seja com um turno de maioria relativa, seja com dois ciplina interna e dar apoio ao governo ou a ele fazer oposição turnos, força as pessoas a procurarem os seus pontos comuns, legítima. É preciso aceitarmos que haja organização partidáas suas "comunalidades", para usar o termo estatístico, em vez ria e esta vai sempre supor alguma hierarquia interna. Essa de só os pontos que as separam. Só assim se forma uma maioidéia de lista fechada se articula também com uma outra idéia ria. Aliás, se muitos partidos se unem para formar uma base de muito importante, a do financiamento público. Financiagoverno, esta necessita de uma pauta comum, que já poderia mento público só pode operar bem com a lista fechada, que vir construída das eleições, por força do sistema eleitoral. obrigará a campanha a ser partidária. Porque se há uma lista O Bolívar Lamounier chamou a atenção para essa questão flexível, ou seja, aquela em que o partido ordena seus candida maioria, que elege um representante num distrito, repredatos, mas o eleitor pode mexer na ordem proposta, dando senta apenas um interesse limitado, em detrimento dos invoto a um ou outro candidato para melhorar sua posição na teresses da minoria — que pode, contudo, ser uma minoria lista, como o colega Jairo Nicolau propõe, o deputado que substancial — ou se essa maioria pode representar uma gaquer ter um voto pessoal vai obviamente fazer uma campama mais diversa de interesses. Em resposta à objeção do denha para ele e lutar pelo próprio financiamento. É problemáputado José Eduardo Cardozo, de ser o sistema distrital tica essa convivência, na lista, da ordem predefinida com a uma forma de ignorar muitos interesses no distrito, por se flexibilidade de poder o eleitor mudar essa ordem. eleger só um representante, o da maioria, que se supõe que E o voto distrital? Assim como o deputasó defenderá os interesses desta, Lamoudo José Eduardo Cardozo e vários outros, eu nier assinalou que o candidato, para convejo no horizonte o sistema misto, mas conquistar a maioria de um distrito, tem que cordo que haja essa estratégia de começar compor mais, tem que incorporar mais asEssa idéia de lista radicalizando com a idéia do sistema distripectos, mais problemas e mais visões à sua fechada se articula tal majoritário. É preciso discutir seriamencampanha. Do contrário, vai radicalizar te esse sistema, eliminando as visões prenuma linha que pode ser minoritária no também com uma outra conceituosas sobre ele. distrito e não terá chances de ganhar a eleiidéia muito importante, a O Projeto de Emenda Constitucional ção. Portanto, a seu ver — e concordo com do financiamento (PEC) do deputado Madeira de introdução essa perspectiva — não há por que temer o público. O do voto distrital puro entre nós apresenta voto distrital na pressuposição de que se igfinanciamento público só um pequeno problema. É que ele estipula norarão interesses relevantes. que a decisão sobre quem ganhou a eleição, Outra objeção comum é a sobre a despropode operar bem com a no distrito, seja baseada no critério majoriporcionalidade do sistema distrital. Na lista fechada, que tário, mas não especifica se se trata de maioverdade, num primeiro momento, ele vai obrigará a campanha a ria relativa ou absoluta. É uma distinção imser um sistema desproporcional, em partiser partidária. portante. O sistema britânico e norte-americular se o critério for o da maioria relativa. cano, por exemplo, é o da maioria relativa. É Porém, quando a gente olha os dados comum sistema que induz à concentração parparativos internacionais, aparecem coisas tidária. Se é necessário ter maioria absoluta, inesperadas. O sistema norte-americano, em geral se impõe um segundo turno. Mas o distrital puro, com eleição pelo critério da sistema que permite o segundo turno convimaioria relativa, é mais proporcional nos O sistema norteve bem com o multipartidarismo. Os partiseus resultados globais do que muitos sisamericano, distrital dos se coligam para o segundo turno, mas temas proporcionais. Se a gente observar, no primeiro turno proliferam os candidapor exemplo, o sistema espanhol ou o sistepuro, com eleição tos. Se o PEC não especificar o critério, vama grego, que tem distritos que a gente capelo critério da mos precisar então de uma lei posterior, inracteriza, na literatura técnica, como sendo maioria relativa, é fraconstitucional, e a decisão pode-se arrasdistritos de pequena magnitude — ou seja, mais proporcional tar por muito tempo. em cada distrito elegem-se poucos deputanos seus resultados O sistema distrital vai enfrentar, na camdos pelo sistema proporcional —, nota-se panha que se fizer para defendê-lo, muita que esse sistema acaba sendo, no fundo, globais do que oposição. O País embarcou, entre importanmenos proporcional do que o sistema dismuitos sistemas tes segmentos da academia e dos meios jortrital puro tipo norte-americano. Os dados proporcionais. nalísticos, no que eu chamo "fundamentalisanalisados pelo cientista político Richard mo proporcionalista", a idéia de que o sisteRose o demonstram. ma tem que ser proporcional e representar Outra coisa importante a observar é que todas as infinitas nuances de opinião existeno eleitor aprende a lidar com o sistema de

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forma estratégica. Ao cabo de algumas eleições, o eleitor so que haverá em algum momento de se fazer uma lista, que aprende que o sistema maximiza a maioria, ou seja, produz sofrerá as mesmas objeções que hoje se opõem à lista fechada uma maioria parlamentar inequívoca, o que aumenta a cado PL 2.679/2003. pacidade governativa e também permite ao eleitorado saber O sistema alemão, como tem funcionado e tem sido adoquem ganhou a eleição e que governo pode esperar da maiotado em outros países, tem realmente méritos e já dura na Aleria assim constituída, porque ela fez compromissos na cammanha mais de 50 anos. Concordo com o deputado Madeira e panha e tem de cumpri-los. com os outros que sustentam ser um sistema de compreensão Outro ponto crucial é ser o sistema distrital muito sensível a mais complicada, os próprios dados alemães mostram isso. pequenas mudanças no clima de opinião. Se a preferência pelo Mas há também muita gente na Alemanha que não sabe ser o partido majoritário de hoje cai, digamos, dois, três pontos persistema de governo lá vigente o parlamentarista. O cientista centuais, essa pequena mudança na opinião pública pode trapolítico Klaus von Beyme, num livro recente, mostra esse daduzir-se, em termos de cadeiras parlamentares, numa perda do, que causa perplexidade: as pessoas não saberem, lá na substancial e o partido perde a maioria. E o partido adversário, Alemanha, que o sistema de governo é parlamentarista. É ganhando uns poucos pontos percentuais na preferência geral, uma coisa curiosa, porque o sistema está funcionando há tanpode lograr uma robusta maioria de cadeiras parlamentares e to tempo como parlamentarismo. Então, temos de concluir tornar-se, no caso parlamentarista por exemplo, a nova base do ser um ônus inevitável de qualquer sistema não ser totalmengoverno. O partido que era a maioria vai, então, para a minoria, te compreendido pela população. Vejam o caso brasileiro: e desempenhará as funções de oposição democrática. num sistema eleitoral como o nosso, que encontra tantos deO outro aspecto para o qual o deputado Madeira chamou a fensores, as pessoas ficam perplexas de saber que votam no atenção é exatamente que o sistema majoritário distrital não Enéas Carneiro e elegem cinco outros candidatos, com votarompe com o voto pessoal. Na literatura recente isso tem sido ção mínima. Não se consegue entender isso, nem mesmo denmuito enfatizado. Duas autoras, Susan Rose-Ackerman e Jana tro da chamada classe política. Kunikova, escreveram um recente artigo analisando as relaLogo depois da eleição do deputado Enéas, em São Paulo, ções entre sistemas eleitorais e corrupção e mostraram que o fiz projetos para deputados que, assustados com aquilo, provoto personalizado protege mais a política da corrupção. Mas, punham um sistema que na verdade acabava sendo um sisquando se lê o artigo, vê-se que não é qualquer voto pessoal. tema majoritário, do tipo que, tecnicamente, chamaríamos Não é certamente o voto pessoal à brasileira, que é um voto feimultinominal. Os votos excedentes do candidato A — uma to na escala errada. Vota-se na pessoa, mas numa escala de tal vez conquistado, por ele, o quociente eleitoral — não se ordem — a escala de um "distritão", que é o Estado — e com transfeririam para os candidatos B, C e D, do seu partido. Exuma tal inundação de candidatos, como lembrou o Fernando pliquei aos deputados que isso implicaria mudar a natureza Henrique, que é impossível haver um controle do eleito por do sistema eleitoral, que deixaria de ser proporcional, conum eleitorado específico, localizado. As pesquisas de opinião forme estipula a Constituição. mostram que, dois meses depois da eleição, um grupo muito Enfim, gostaria também de lembrar ao deputado Madeira pequeno de eleitores se lembra do candidato em quem votou e que na sua proposta há um aspecto a ser enfrentado, o das Asisso é um ponto muito importante a se considerar. Então, o vosembléias Legislativas. Se o número de deputados estaduais to pessoal na escala distrital, ou seja, um distrito dentro do Esfosse, simplesmente, um múltiplo dos deputados federais, não tado, e não o Estado todo, é a escala correta, porque ali o eleitor haveria problema. Cada distrito para deputado federal se diconsegue identificar quem é o seu representante, ademais nuvidiria em dois, três, o que fosse, para fazer distritos destinados ma eleição em que, gradativamente, concorà eleição dos deputados estaduais. Mas a reSusan Rose-Ackerman: artigo rerão menos candidatos. gra para calcular o número de deputados à analisando a relação entre Eu conversava com minha amiga Sílvia Assembléia Legislativa não permite essa sosistema eleitoral e corrupção Lauandos e ela mencionava exatamente lução simples. Até 12 deputados federais, o um problema aqui em São Paulo: que hoje número de deputados estaduais é o triplo. em dia, as pessoas não pensam mais no veCom 12 deputados federais, teremos 36 estareador como uma pessoa que representa alduais. A partir de 36, a representação à Asguém, não têm a quem se queixar, vão diresembléia será de 36 deputados, mais tantos to à autoridade executiva, porque a Câmara quanto forem os deputados federais acima deixou de ter esse papel de representação, a de 12. Como dividir, então, os distritos "fedepessoa não sabe quem é o representante da rais" para eleger os deputados estaduais? É sua área, da sua região. O voto distrital reum problema a ser enfrentado. solveria esse problema. Talvez deva também o deputado Madeira Entendo que o voto distrital é um sistema incorporar uma cláusula de transição na sua mais simples de ser explicado, entendo a esproposta, relativa a começar o sistema distritratégia de radicalização, mas penso que, tal pelas eleições municipais nas cidades em num horizonte futuro, a gente não devia que haja eleição de dois turnos. É uma proabandonar a idéia do distrital misto aleposta que foi levantada por várias pessoas e é mão. E havendo a idéia do voto misto, pendigna de consideração. Reprodução

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Argumentos contrários são insustentáveis

Bolívar Lamounier

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odos os debates realizados neste encontro são riquíssimos e gostaria de dizer que concordo plenamente com a opinião do deputado Arnaldo Madeira, assim como a do Antonio Octávio Cintra. Eu participei em 85/86 da Comissão Afonso Arinos e fui um feroz defensor do sistema distrital alemão. Intelectualmente, eu continuo sendo, acho que para que o sistema seja eficiente e representativo isso requer a lista fechada. Ele pode ser de difícil compreensão, mas isso é um mal menor diante das suas vantagens. Porém, eu não sou uma pessoa utópica, sei quando as coisas se tornam inviáveis. A profundidade da reforma constitucional que o voto distrital misto exigiria, o abalo que causaria nas práticas de entendimento político no Brasil, é muito maior que o sistema puro. A resistência que eu percebo, nem sempre concordando com ela, é em relação à lista fechada. Então, por todas essas razões, eu passei a me sentir pressionado entre duas alternativas: ou escolher a minha segunda preferência, que é o sistema puro, ou ficar sem causa nenhuma. Prefiro apoiar a minha segunda preferência. O voto distrital puro é um regime perfeitamente viável e eu concordo com o que o deputado Madeira disse: a simplicidade certamente ajuda na governabilidade, concordo que ele mais auxilia os partidos do que os enfraquece. Como já foi expressado por alguns palestrantes, vejo que as coisas estão mal aparadas no Brasil do ponto de vista institucional. Eu entendo que elas estão caminhando com dificuldades crescentes. Eu não identifico de forma alguma uma possível melhoria incremental diante deste quadro, assim com não creio na ajuda de Deus que os palacianos têm visto. A situação está ficando mais complexa e seria

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(...) algumas fantasias precisam ser exorcizadas. Uma delas é de que a democracia tem a ver com distribuição de poder. Isso é uma preposição sem nexo, que está presente em todo debate brasileiro cada vez mais, de um sentimento de que a democracia é uma espécie de anarquia ufanista (...)

surpreendente se não estivesse, Todo país que alcança uma dimensão populacional metropolitana muito maior do que o agravamento das tensões da sociedade, estressam o sistema político, do contrário seria notável. Então, é evidente que se a capacidade de respostas do sistema político, se a sua legitimidade, a sua respeitabilidade, a compreensibilidade não melhoram, é difícil imaginar que as coisas permaneçam equilibradas. Eu penso que estão piorando, acho que a preocupação, por exemplo, com a questão da corrupção é tamanha, que eu não me lembro de termos vivido igual situação no Brasil. Eu não sou exatamente um adolescente, observo isso há algum tempo, então eu acho que é preciso nesse momento que nós tentemos iniciar uma discussão de reforma política para revigorar alguma discussão de maior substância, e quando eu digo de maior substância, eu quero dizer que as últimas propostas que eu andei lendo não possuem essa característica. Então, eu espero que nos voltemos para a substância. Para isso me parece que algumas fantasias precisam ser exorcizadas. Uma delas é de que democracia tem a ver com a distribuição de poder. Isso é uma preposição sem nexo, que está presente em todo debate brasileiro cada vez mais, de um sentimento de que a democracia é uma espécie de anarquia ufanista e que o consenso surge espontaneamente, que os fins não colidem, basta a vontade política de convocar as pessoas para a troca de idéias, um consenso se realiza e alguém ou uma máquina abstrata o implementa. Cada vez mais eu vejo este pensamento em pronunciamentos de entidades de vários setores, às vezes até de instituições importantes em nível nacional, como a dos advogados. Eu acho o contrário, a pretensão de negar a neces-


sidade do poder, de exorcizar a política da vida humana, é uma das preposições mais idiotas que o pensamento político conseguiu produzir em 2.500 anos desde Aristóteles e Platão. É simplesmente espantoso que isso ainda exista e aconteça até em documentos num país como o Brasil, onde o poder central não consegue governar a cidade do Rio de Janeiro, onde o exército nacional teve 12 fuzis roubados à luz do dia e teve de negociar com traficantes. Então, a carência e a pulverização do poder são fatos que ocorrem de maneira preocupante e em vez de tentar frear esse processo, vejo gente tentando acelerá-lo, o que me parece suicídio. A primeira sugestão que faço para a discussão dessa possível campanha que vamos fazer é: vamos voltar um pouco à realidade, vamos voltar um pouco à simplicidade, como faziam os democratas. Dava certo em grande parte, porque preservavam a capacidade de governar. Nunca houve democracia que deu certo porque adotou um sistema totalmente plebiscitário anárquico ou algo do gênero, isso simplesmente não existe. A segunda questão que eu queria ressaltar, antes de entrar nos meus comentários de substância, é a fantasia de que em algum país todos os extratos da sociedade compreendem o processo político no mesmo grau, ou aproximadamente no mesmo grau. Isso absolutamente não é verdade. Nós podemos pegar a Suécia, a Alemanha, qualquer país, e ver que isso não existe. A diferença de conhecimento entre as pessoas é grande e quando se trata de questões

institucionais e de regras de procedimentos eleitorais, o distanciamento é abismal. Se alguém imagina que o teste para se verificar se uma reforma é boa é ela ser 100% compreendida pelo eleitorado, isso é simplesmente colocar para um país analfabeto, pobre, onde a maioria do eleitorado é semi-analfabeta, um padrão que não se cumpriria nem na Suécia. Eu faço um apelo veemente para que nós prestemos bem atenção nisso e não coloquemos como critério de uma boa proposta, de um bom encaminhamento, de uma boa reforma, uma fantasia que em lugar nenhum do mundo se cumpre. Quero comentar dois pontos que foram levantados, um pelo Octávio Cintra e outro pelo deputado Madeira. O primeiro, que é muito pertinente, foi muito bem observado pelo deputado, é que a grande maioria teme não apenas o voto distrital, mas toda reforma; eles hostilizam a idéia de reforma. É claro que filosoficamente, em nível abstrato, a gente consegue argumento para qualquer coisa. Com freqüência ouço das pessoas que são contrárias à reforma o argumento de que o voto distrital invalidaria intrinsecamente a qualidade democrática de um país, que este seria um modelo antidemocrático. O ponto nevrálgico seria o processo de formação das autoridades. Neste ponto eu só tenho a dizer o seguinte: se isso for verdade, então todos os países de origem anglo-saxão, que falam inglês, não são democráticos, porque todos eles praticam o voto distrital puro desde tempos imemoriais; desde que

O poder central não consegue governar a cidade do Rio de Janeiro, onde o exército nacional teve 12 fuzis roubados à luz do dia e teve de negociar com traficantes.

Publius Vergilius/Folha Imagem

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se começou a fazer eleições, eles nunca praticaram outro modelo. Nos Estados Unidos houve aquele problema do Gerrymandering, de se manipular os desenhos dos distritos, das assembléias legislativas estaduais em delimitar as áreas, coisa que no Brasil acho que faríamos um trabalho bem mais caprichado. A questão da resistência dos acadêmicos à proposta de reforma, não creio que se deva levar isso muito a sério. Eu acho que nós, cientistas políticos em geral, precisamos ter uma certa modéstia sobre a nossa importância. Na Alemanha, quando fizeram a reforma, eles não pediram muita opinião aos cientistas político. Se reuniram num pequeno grupo e combinaram um sistema que fosse mutuamente aceitável, não pediram muita assessoria de acadêmicos. Já o De Gaulle, na França, também, quando fez a reforma dele, quando muito solicitou alguma coisa àquele jurísta, o Debret, que escreveu o artigo 16 da constituição francesa, que aliás existe até hoje. Nos Estados Unidos, volta e meia a gente faz encontros intermináveis, mas a constituição americana foi escrita por 14 pessoas a porta fechada. Aqui no Brasil seria um escândalo de tal ordem que todos os acadêmicos iriam para as ruas para tentar derrubar o governo. Então, as coisas não são bem do jeito que a gente quer ver, acho que é preciso ponderar bem isto. Mas o ponto mais importante que eu quero colocar é o do paroquialismo. Eu acho que o deputado Madeira colocou muito bem o problema, o que se passa no Congresso e o caráter

paroquial em grande parte da composição da Câmara. Eu quero ir um pouco mais longe, dizendo que este termo é intrinsecamente preconceituoso e vem do século 19, quando ele surgiu para combater o interior de todos os países, onde em geral predominava o regime de latifúndio. Então, elites intelectuais e pequenos grupos nas capitais ironizavam essas representações políticas. Eça de Queiroz escreveu "O Conde de Abranhos", que é justamente ironizando este segmento da sociedade. Isso vem da luta dos liberais, das elites da cidade contra o interior e os latifundiários. Uma maneira mais fácil de argumentar seria dizer que o País mudou, que a população mudou, as cidades do Oeste de São Paulo, Oeste de Minas Gerais, Mato Grosso não estão numa situação como no passado. De uma maneira benevolente, pode-se argumentar dizendo que este é um raciocínio antiquado. Mas ele não é somente antiquado, é um preconceito contra o interior dos países, como se o trabalho e as atividades econômicas ligadas à terra tivessem menos legitimidade do que aquelas que se passam nas cidades. E de onde saiu isso? Isto é um preconceito ideológico, que fazia todo o sentido no tempo da 3ª Internacional Socialista, durante o fascismo, mas nós não podemos continuar com isso. No Brasil, qualquer pessoa que tenha razoável conhecimento histórico há de convir que a contribuição do interior, desde o século 19, para a construção da democracia e da economia foi extraordinária. Eu estou tocando neste ponto pelo seguinte:

Há um preconceito contra o interior, como se as atividades ligadas à terra tivessem menos legitimidade do que aquelas que se passam nas cidades. Isso é um preconceito ideológico do fascismo.

Ana Rojas/Folha Imagem

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acho que nós, toda vez que argumentamos sobre o voto distrital, nos posicionamos na defensiva, como se nos coubesse justificar estarmos propondo um sistema que traria um mal de origem, um pecado original. Isto não tem o menor cabimento. É uma coisa absolutamente própria de uma falha da ideologia européia. Eu acho justamente o contrário. Eu creio que o pior, o efeito mais grave no sentido de fragmentar partidos, individualizar em excesso o processo político é não mudar. Adotamos o modelo proporcional com votação pessoal, dividido em 27 Estados, com partidos extremamente fracos. Então nós estamos cumprindo à risca até hoje um projeto político que foi ocupado pela ideologia de 1932, cujo objetivo foi fazer exatamente acoplar a representação subordinada, consentida a um governo vertical, de cima para baixo. Reprodução

A constituição americana foi escrita por 14 pessoas a porta fechada. Aqui no Brasil seria um escândalo.

Eu acho exatamente o oposto, acho que no momento o poder Executivo, as instituições federais, precisam responder mais. Eu acredito que, uma vez implantado o sistema distrital, o candidato de um distrito, que não será mais um candidato de um segmento, de uma corporação, de um sindicato, de um diretório estudantil, mas será daquela região, ele será representante de todos e terá de negociar com todos os segmentos. E ali sairá uma agenda substantiva. Com a combinação destas propostas que surgirão no distrito é que será construído a legitimamente do partido. Por tudo isto que eu coloquei, sou completamente favorável ao que está sendo proposto, tanto pelo conteúdo — acho que demos um passo adiante —, quanto pelo efeito que poderá ter na conjuntura de marasmo, de debate institucional em que nos esposamos.

Amaury de Souza

G

(intervenção)

ostaria de fazer dois comentários, reforçando a linha de argumentação contra a acusação de paroquialismo ao voto majoritário que o Bolívar fez. Lembro-me muito de uma lição de um artigo do mestre, James Q. Wilson, que tem uma das peças mais brilhantes sobre o problema do paroquialismo no sistema distrital norte-americano, onde ele faz paralelos de diversas carreiras. Mas eu me lembro particularmente de William Fulbright, que foi eleito e reeleito no mesmo distrito parlamentar do sul do Arkansas. Ele era um feroz racista dentro do seu distrito, um defensor das políticas discriminatórios no plano nacional. Entretanto foi uma das figuras que teve maior impacto como parlamentar individual numa oposição internacionalista da política externa norte-americana. Portanto, me parece um pouco infantil considerar que a atenção a questões locais, mesmo aquelas que no plano mais cosmopolita das relações internacionais seriam considerados paroquiais, impedem o parlamentar de atuar de forma que nós chamamos preconceituosamente de ideológica, em contraposição a uma política clientelista. Vale lembrar que estas distinções são elas mesmas ideológicas, superadas e que vêm na verdade de uma concepção prófascista, que dominou a intelectualidade brasileira, que é a celebração de um presidencialismo forte e a desmoralização repetida do Congresso Nacional, como este sendo o foco de representação de interesses particularistas, contra a defesa dos interesses nacionais por um presidente ungido pelo voto plebiscitário. Acho que é preciso superar essa etapa de pensamento pró-fascista, em grande parte esposado pela esquerda, e passarmos a discutir realmente quais são os problemas efetivos da construção do aperfeiçoamento constitucional no Brasil, que passa fundamentalmente pelo reequilíbrio dos poderes, de maior independência, mas sobretudo de equipotência dos poderes. Acho que um passo fundamental no voto distrital é fortalecer o deputado através da sua maior ligação com as bases, de tal maneira que ele possa enfrentar o Executivo. O que deveríamos lutar para impedir que aconteça neste País são as formas plebiscitárias do poder presidencial. Nesse sentido o voto distrital dá uma colaboração fundamental para outorgar poderes ao deputado federal, de forma que ele possa insurgir contra o comando da Presidência da República. Uma pergunta, deputado Madeira, que eu gostaria de fazer é a seguinte: no seu projeto existem quatro critérios para delimitação de distrito. Como estaremos discutindo essa questão logo a seguir, eu lembraria igualdade populacional, antigüidade, o terceiro integração viária, mas o quarto me deixa um pouco perplexo, que é a integração geoeconômica. Isso me parece deixar a porta aberta para que a delimitação dos distritos seja feita utilizando considerações além daquelas que são as legítimas, isso é, aquelas de natureza política e parece que isso abre a porta para que o IBGE possa vir a discutir a importância de montar os distritos eleitorais em cima de microrregiões. Por exemplo, é realmente necessário que tenhamos um grau de integração econômica dentro de um distrito para fazer dele limitações de suas fronteiras?

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É preciso a mão da ganhar o apoio da

E

u queria começar agradecendo as observações feitas, tivemos algumas importantes e que estarão contribuindo para o debate. Mas a minha posição, como colocado, foi levar a questão para discussão na Comissão Especial, porque evidentemente uma preocupação desse tipo seguramente receberá lá uma série de contribuições, tornando possível fazer as alterações necessárias para finalmente fazer o debate na Comissão. Temos um problema sério para compatibilizar os distritos para as eleições para a Câmara de Deputados e para a Assembléia Legislativa. Solicitei a um grupo de geógrafos amigos meus que fizesse testes de modelos em São Paulo. É difícil, porque temos 94 deputados estaduais e 70 deputados federais. Já me foi apresentada uma solução que não é difícil tecnicamente: fazer uma superposição de áreas — por exemplo, numa determinada área será eleito um deputado federal e dois estaduais. É possível equacionar o problema no decorrer do debate. Vamos ter que analisar a situação de cada Estado para poder aprofundar esse tema. O fato é o seguinte: estou convencido de que não há limitações técnicas que impeçam a implantação do voto distrital. O importante é ganhar o conceito e assimilar a ele os detalhes que foram mencionados aqui e que terão seguimento em outros debates. Quero também comentar a questão do paroquialismo, pois ela é freqüentemente abordada. Na verdade, acho que ela tem a ver com certo preconceito contra o deputado que veio lá de uma pequena região e a sua preocupação é se irá conseguir verba para o posto de saúde, para pavimentar uma estrada. No fundo, acho que todas as questões locais acabam sendo questões nacionais, porque dizem respeito a uma grande demanda por pavimentação, infra-estrutura, saneamento básico, que são questões nacionais. Se você somar isso, o que se vai discutir no orçamento é quanto dinheiro vamos botar para fazer a infra-estrutura no município. Tive um longo percurso até chegar ao voto distrital,

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porque eu também tive uma formação de esquerda, com um enorme preconceito sobre o assunto. Lembro-me daquela história da França, com o De Gaulle usando o distrito para tirar força do Partido Comunista. É um processo de aprendizado chegar lá, mas eu aprendi na vida que precisamos ter a cabeça aberta para ir percebendo as coisas e mudando, se possível, para melhor. Acho que as intervenções foram muito oportunas, porque nos permite enfrentar essa questão do preconceito contra a paróquia, contra a representação local. Eu queria dizer uma coisa sobre essa questão de plebiscitos. Acho que o Brasil tem uma prática de plebiscitos que eu não considero boa. Todo partido, todo país, tem sua elite. E elite ou é elite ou abre mão do seu poder de decisão. Estou imaginando alguém tentando fazer um plebiscito: "Qual é o sistema eleitoral que você prefere, o voto distrital misto com 50% - 50% ou com 30% - 70%?" Acho que não é isso. Trata-se de fazermos uma discussão sobre o que é melhor para fortalecer a representação, para fortalecer a relação representante/representado, que é a maior lacuna que temos e que causa essa fragilidade política. Deputado hoje é uma pessoa fraca, fragilizada, porReprodução

De Gaulle usou o distrito para tirar força do Partido Comunista


mídia para opinião pública Arnaldo Madeira que sabe que na próxima eleição vai precisar de uma série de coisas que não estão ao seu alcance. O voto distrital vai fortalecer a cobrança da população sobre o representante, mas vai fortalecer também o poder do deputado diante do Estado e da mídia. Porque o deputado vai ter que estar preocupado com o seu distrito, por mais que ele pense nacionalmente, pense grande. O deputado vai estar preocupado com o seu distrito e ampliar sua identificação com os vários segmentos que compõem o distrito. No caso dos Conselhos Municipais — participei da Câmara Municipal como relator da Lei Orgânica — a idéia foi criá-los nas Subprefeituras como Conselhos Distritais, como pólos de poder local. A dificuldade aqui é sempre a dificuldade constitucional e da própria Câmara dos Vereadores, que prefere ficar com a decisão sobre o conjunto da cidade e não ter que lidar com a força dos conselhos locais. Essa é uma discussão complexa. Hoje eu sou claramente defensor do voto distrital puro. Por que discuto o voto distrital misto? Porque é colocado na mesa. Nós tivemos uma reunião há pouco tempo na bancada de deputados federais do PSDB sobre esse tema e há um confronto entre o voto distrital misto e puro. Eu gostaria de participar de um movimento claro: "Olha, é o voto distrital puro e ponto". Vou enfrentar o debate, mas na perspectiva de ganhar as lideranças políticas para a tese. Falei aqui sobre a mídia e até mencionei o Fernando Gabeira, que me ensinou algumas coisas nesta área. Acho que a mídia também precisa ser ganha para a tese. E quando falo de mídia, estou falando de editoriais de jornais, de comentaristas no rádio e na televisão, que podem ajudar muito, até porque a mídia está o tempo todo vendendo idéias, teses etc. Isso é absolutamente fundamental. No fundo, a questão é a seguinte: como ganhamos mentes e corações para a tese do voto distrital? É preciso dizer que o Brasil vai melhorar do ponto de vista político, com outro tipo de representação na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras de Vereadores. Quero falar da Câmara de Vereadores e das coisas que estão acontecendo lá. Hoje, todo mundo que lida com os vereadores sabe o que está acontecendo no município.

Quero ver como o vereador vai se relacionar com o prefeito na hora em que passar a representar o distrito. A qualidade da relação será outra, porque o prefeito terá que se preocupar com as questões que aquela região da cidade tem a resolver com a Prefeitura. Nossa estratégia deve ser usar uma comunicação muito simples, buscando ganhar a mídia e a opinião pública para o voto distrital. Cada um tem a sua experiência pessoal. Nessa última campanha, fiz 108 viagens, visitei 60 municípios e na grande maioria das reuniões coloquei a questão do voto distrital. E percebi que as pessoas entendem muito rapidamente do que se trata. É um sistema simples e fácil de ser compreendido, ao contrário do voto em lista, que é tão ou mais difícil que o sistema que nós temos hoje. Creio que abordei as questões básicas que foram apresentadas. Quero, dizer que temos que criar um movimento a favor do voto distrital puro e enfrentar o debate sobre o distrito, porque no fundo há hoje um consenso de que o sistema atual está esgotado. Talvez tenha mais gente defendendo-o na academia do que quem está na prática na política, mas são poucos os que ainda defendem o sistema atual. O problema é o que vai ser colocado em seu lugar. Precisamos ter um grupo muito ativo, voltado para a defesa do voto distrital, que fale sobre suas vantagens sem plebiscito ou referendo. O Congresso Nacional precisa assumir a responsabilidade da decisão e não fazer referendo sobre armas, sobre sistema de governo. Senão, vamos cair no democratismo, achar que todo mundo entende perfeitamente tudo. A sociedade não é assim, temos que ter isso presente. Portanto, vamos à luta nos meios de comunicação, na opinião pública e no Congresso Nacional para que a Câmara decida autonomamente sobre essa questão.

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Proposta necessita de ações práticas Agliberto Lima/DC

Amaury de Souza Cientista político e sócio-diretor da MCM Consultores Associados

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uero discutir três questões que estão estreitamente vinculadas à implantação do voto distrital. Delas decorrem conseqüências para o próprio projeto de lei do deputado Arnaldo Madeira, que já tramita no Congresso Nacional. As três questões são como delimitar os distritos eleitorais; quem delimitará esses distritos; e como mobilizar apoio para o voto distrital. Esta será também uma apresentação plural, pois reflete as contribuições decisivas que vários colegas têm feito para esse esforço. Não temos todas as respostas e estamos longe de termos um sistema à prova de críticas para a distritalização no País. Mas o ponto de partida é que precisamos passar de uma discussão mais genérica sobre o voto distrital para ações concretas. E o fator fundamental no eventual sucesso da implantação do voto distrital é a delimitação dos distritos. Nenhum político apoiará a idéia do voto distrital se ele não tiver clareza sobre quem ganha e quem perde com sua implantação. Sobretudo, se não souber se ele mesmo ganha ou perde. Nesse sentido, precisamos olhar os dados que existem sobre a geografia do voto no Brasil — entender os padrões espaciais de competição eleitoral, os vários tipos de políticos e as estratégias que eles usam Ao lado da mobilização da opinião pública, teremos necessariamente que trabalhar o Congresso e lá fazer escolhas. É um ponto polêmico na definição dos distritos eleitorais, mas precisamos considerar os redutos informais já existentes. Como Nelson Carvalho tem indicado em seus estudos, metade da Câmara Federal é eleita em redutos eleitorais e é preciso trazer essa dimensão para a discussão. Uma discussão sobre a definição e delimitação dos distritos eleitorais que parta da idéia de que cabe ao IBGE ou à Justiça Eleitoral cuidar disso não leva a nada. O que há de fundamental na definição de distrito eleitoral é que se trata de uma tarefa essencialmente política e que deve ser conduzida dessa forma.

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Dito isto, deixem-me trazer algumas considerações — e dúvidas — à nossa discussão. O primeiro dilema é como delimitar os distritos eleitorais. A discussão que tivemos até agora foi riquíssima. Mas o eventual sucesso do projeto do voto distrital uninominal — distritos com um único representante eleito pelo voto majoritário — depende do que serão esses distritos: onde estarão localizados, que tamanho terão, quais serão seus limites, onde serão os locais de votação. Depende até de perguntas triviais, como se os candidatos de um distrito deverão ter alí o seu domicílio eleitoral, se os eleitores terão de se recadastrar nas seções eleitorais englobados pelo novo distrito etc. Existem várias questões, mas uma das mais importantes é a seguinte: como será fixado seu tamanho? Isto é, qual o número de eleitores requerido para formar um distrito? U s a re m o s o p r i n c í p i o d e " u m h omem/um voto" ou faremos o cálculo em função da atual distribuição de cadeiras por Estado? A pergunta é crucial e de difícil resposta, mas uma indicação poderá nos ajudar a pensar o problema. Se adotarmos a fórmula "um homem/um voto" significa que fixaremos o tamanho dos distritos eleitorais em escala nacional, dividindo o número de eleitores pelas 513 cadeiras existentes na Câmara Federal. Temos hoje no Brasil aproximadamente 126 milhões de eleitores, o que dá distritos eleitorais com cerca de 245 mil eleitores cada um. A primeira vítima de tal decisão será o princípio da "justiça federativa", a idéia de que Estados pouco populosos devem ser super-representados na Câmara de Deputados, como é hoje. Mais do que isso, significaria restituir a São Paulo um terço a mais das cadeiras a que sua população tem direito numa distribuição estritamente proporcional de cadeiras na Federação. E tirar cadeiras dos Estados hoje super-representados na Câmara. Convenhamos que isso representa um enorme problema político. (Gráfico 1) No geral, as perdas não seriam tão grandes, pois metade dos Estados teria pequenos acréscimos, nenhuma mudança ou pe-


quenas perdas. Mas o fato é que perder até um único deputado será amargamente ressentido por esses Estados. Os grandes perdedores seriam os territórios que foram transformados em Estados pela Constituição de 1988, com garantia de um mínimo de oito deputados, independentemente de sua população, e alguns Estados, como Goiás e Tocantins, que não tiveram a relação cadeiras/população atualizada após sua divisão. Na minha opinião, é chegado o momento de vitimizá-los. Não há razão para garantirmos a eleição de políticos com pouquíssimos votos em Estados como Amapá e Roraima em detrimento do Sudeste ou mesmo do Nordeste. Mas se não for possível ter uma fórmula nacional para o tamanho do distrito, o cálculo terá que ser estadual, com todas as conseqüências acarretadas pelas desigualdades na alocação de cadeiras. São Paulo, por exemplo, passaria a ter distritos eleitorais de 400 mil eleitores ao passo que os do Amapá teriam 45 mil eleitores. Isto é, um deputado federal pelo Amapá continuaria a se eleger com dez vezes menos votos do que um deputado por São Paulo. É uma questão para a qual, repito, não existem respostas fáceis. Outro aspecto a ser ressaltado são os critérios para delimitar os distritos. Três critérios, pelo menos, destacam-se de imediato: igualdade populacional, contiguidade de área e integridade municipal, já incluídos no projeto do deputado Arnaldo Madeira. O primeiro critério exige que os distritos de um Estado tenham o mesmo número de residentes, permitida uma pequena margem de erro. No caso dos Estados Unidos, a margem de tolerância pode ser de até 5% dado que o próprio censo populacional tem margem de erro de 2% a 3%. O censo brasileiro terá um pouco mais, mas não muito mais. É preciso lembrar o seguinte: a cada censo decenal, dois processos deveriam ocorrer. O primeiro é a realocação de cadeiras pela população encontrada; pois alguns Estados crescem e outros perdem população. Essa questão deveria ser colocada na mesa a cada dez anos. Não é o que ocorre no Brasil. Aqui, um Estado ganha sua cota de cadeiras e a mantém pela eternidade, sejam quais forem as mudanças de população. Nos Estados Unidos, dá-se a esse processo o nome de apportionment. O segundo processo é o da redistritalização propriamente dita. Como há também mudanças de população dentro dos Estados, nos municípios, é necessário rearrumar as fronteiras de cada distrito eleitoral a cada dez anos. Precisaremos de critérios claros para fazer isso. Os outros dois critérios são auto-explicativos. Contiguidade de área significa que não se permitirá a definição de distritos que agreguem áreas localizadas em diferentes partes de um Estado para beneficiar algum partido ou candidato. À propósito, é bem conhecida a expressão gerrymandering como sinônimo de manipulação de critérios para desenhar distritos destinados a assegurar a vitória eleitoral de um determinado partido. O que é bem menos conhecido é o desenho original de um desses distritos que deu origem à expressão. Elbridge Gerry foi governador de Massachussets e nas eleições de 1812 montou, com seus partidários, um distrito que lembrava uma salamandra, unindo áreas onde seu partido era dominante. Vem daí a expressão gerrymandering, a salamandra de Elbridge Gerry. Integridade municipal é outro critério que segue a mesma

lógica: municípios não poderão ser divididos entre distritos. Poderão ser agrupados, quando pequenos. Município de capitais ou de grande tamanho poderão ser subdivididos em distritos com igual população. Mas as fronteiras de um município não poderão ser violadas, destinando-se os pedaços a diferentes distritos. A questão da integridade municipal nos leva a considerar outras decisões. O projeto do deputado Arnaldo Madeira inclui também o critério de integração geoeconômica. É fácil entender um critério como o de interligação viária para a delimitação de distritos. Devemos agrupar em um mesmo distrito eleitoral uma parte do município que fica deste lado da Serra da Cantareira e outra que fica do lado de lá? Obviamente, haverá certa artificialidade, porque essas partes não se comunicam. O critério de integração geoeconômica, entretanto, é menos óbvio e levanta sérias dúvidas. É melhor ter distritos eleitorais homogêneos, do ponto de vista geoeconômico, ou distritos heterogêneos, congregando pobres e ricos, municípios mais desenvolvidos e municípios mais atrasados? Outra característica do caso norte-americano merece consideração. A primeira é a noção das "comunidades de interesse". Em 1962; o Congresso aprovou lei e a Suprema Corte confirmou em Gráfico 1

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pelo menos seis julgamentos um princípio que mute pelo processo de urbanização e que tendem a dou em profundidade a prática de delimitação ser subcontadas no período decenal. Como se dos distritos eleitorais. Trata-se da representavê, há muito para ser aprofundado na discusção de minorias raciais nos distritos eleitorais, são sobre delimitação de distritos. que é de uma certa forma a idéia de uma cota Infelizmente, o que impera sempre é a distrital. Assegurar a representação das mipreocupação com a questão da manipulanorias negras nos distritos, é isso a que se reção. Concordo com o Bolívar de que do séfere a comunidade de interesse. A noção da culo 19 para cá diminuiu enormemente a comunidade de interesse pode ser mais ampossibilidade de manipulação do desenho pla. No caso brasileiro, será difícil ter distritos de distritos eleitorais nos Estados Unidos, que não contenham grande heterogeneidade principalmente porque essa questão foi judisócio-econômica em cidades como o Rio de Jacializada. A Suprema Corte e as cortes estaneiro e provavelmente Salvador e Recife, entre duais hoje fiscalizam de perto o processo do apoutras. Mas deveríamos privilegiar a representação portionment a cada dez anos. de que minoria dentro dos distritos: os ricos ou os poA segunda grande questão que devemos responbres? Há méritos e há também problemas em ambas as definider é a seguinte: quem delimitará os distritos eleitorais? Teções. Tudo depende do resultado político que se queira obter. mos a tendência, refletida em outros projetos de lei, de sempre Os critérios de equidade no tocante à geografia e popupensar ou na Fundação IBGE ou na Justiça Eleitoral para cuilação para a formação de dar do problema; sem consiReprodução distritos levam a outra quesderar se essas instituições estão. No caso norte-americatão aptas para a tarefa. Obn o , u m d o s c r i t é r i o s f reviamente, o IBGE deverá forquentemente adotados é a necer os dados do censo de manutenção de uma linha população e os mapas digide continuidade com o desetais, sobretudo em nível de nho dos distritos já existendistrito censitário. A Justiça tes. Não é possível aceitar Eleitoral deve contribuir que se redesenhe um districom a delimitação das seções to eleitoral por inteiro a cada eleitorais e, se for o caso, das dez anos. Isto quebra a cozonas eleitorais. Mas isso é munidade que alí se formou insuficiente para se dar o poali, contrariando a idéia que der, em princípio, à Justiça preside a formação de disEleitoral ou ao IBGE para detritos que é precisamente a finir os distritos. de criar uma comunidade Os Estados Unidos, mais de eleitores. Essa discussão uma vez, podem exemplificar pode ir longe. Um pequeno a dificuldade de se designar exemplo bastará. Os Estaum orgão adequado para indos Unidos adotam um procumbir-se da tarefa de delimicesso extremamente elabotação dos distritos. Lá, a tarefa Gerrymandering: em 1812, Elbridge rado para o desenho dos distem sido tradicionalmente Gerry, governador de Massachussets, tritos eleitorais, utilizados confiada às Assembléias Lemontou um distrito que lembrava uma salamandra. em praticamente todos os gislativas dos Estados. Mas raEstados, que garantem as ramente se vê hoje em dia uma fronteiras dos distritos já deAssembléia Legislativa trabalimitados para ter continuidade no censo decenal. lhando em isolamento. Há pressão da Justiça, a crescente presenConsidere-se o Código 2001 do Estado de Idaho. A seção ça de quadros técnicos e das comissões bipartidárias, formadas 42.4 apresenta uma definição do "grau de compactação", um por igual número de membros de cada partido, com a eleição incritério a ser utilizado na delimitação do distrito. Esse grau de dependente de um presidente para desempatar os impasses. compactação do distrito é medido pelo valor absoluto da diNo caso brasileiro, provavelmente a Assembléia Legislativa ferença entre o comprimento e a largura, longitude e latitude, também deverá ser considerada o órgão adequado para cuidar de cada distrito, de sorte que se possa ter uma noção do quanto da delimitação dos distritos. Pode-se argumentar que isso é a população está efetivamente agrupada ao redor de um cenuma loucura, porque as Assembléias são dominadas pelos gotróide. É um conceito tradicional de geografia utilizado para vernadores e farão os distritos que quiserem. Mas o fato é que impedir um fenômeno que era comum no passado — a sobrenão temos outras instituições tão próximas da realidade do Esrepresentação de áreas rurais. São áreas de grande território e tado para fazer este trabalho. Mas temos, como foi acentuado pouca população, sujeitas a mudanças rápidas, principalmenpor vários debatedores, uma Justiça Eleitoral operosa, respei-

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tada e com credibilidade para acompanhar de Tabela 1 perto este trabalho. É uma questão a ser ponderada, mas a minha opinião é que essa tarefa não deveria ficar de forma alguma com algum órgão do poder Executivo. A distritalização deve ser um processo de descentralização política, destinado a fortalecer a Câmara Federal e as Assembléias Legislativas contra os respectivos Executivos. Digo contra não no sentido de adversário ou antagonista, mas no intuito de contrabalançar a excessiva concentração de funções legislativas nas mãos dos executivos por via de medidas provisórias, iniciativas de legislação, orçamentos autorizativos etc. São inúmeras as perguntas que requerem resposta no processo de distritalização. Por exemplo, o eleitor terá que ser registrado no distrito eleitoral onde reside? E os candidatos? Essa é a parte mais interessante. Na Inglaterra, os candidatos não são obrigados a residir no distrito eleitoral pelo qual se elegem, o que tem permitido aos partidos ingleses manter uma cota de distritos para elegerem candidatos mais ideológicos, que não se vinculam tão estreitamente às demandas dos distritos que representam. Isso nos leva à terceira grande questão: como mobilizar apoio para o voto distrital? Em primeiro lugar, acho que todos concordamos que seria sensato adotar etapas para sua implantação: 2008, para vereadores de cidades com segundo turno; 2010, para deputados estaduais; e 2014, para deputados federais. É uma sugestão, mas parece ser o caminho mais realista. A delimitação dos distritos deve incluir um critério político. Esse será possivelmente o critério mais polêmico, pois significa preservar, onde possível, os redutos existentes na delimitação dos novos distritos. Para discutir com proveito essa questão, é preciso impedir que nossos vícios mentais prevaleçam sobre os dados de realidade. Sempre que falamos em redutos eleitorais pensamos num "coronel" e seu "curral eleitoral", um "senhor de baraço e cutelo" que obriga o eleitorado pobre e analfabeto dos grotões a lhe entregar o voto. Tudo se passa como se ainda vivêssemos na República Velha. Quero lembrar que o estudo do Nelson Carvalho sobre a geografia do voto no Brasil mostra que o PT tem sólidos redutos eleitorais na área metropolitana de São Paulo. Isso transforma os deputados do PT em "coronéis"? O quadro político brasileiro é muito mais complexo do que isso, existem redutos eleitorais do Sul ao Norte. Portanto, é um erro impugnar de saída a idéia de preservarmos redutos existentes. Até porque o apoio dentro da Câmara de Deputados dependerá da correlação de forças entre os que têm a ganhar e os que têm a perder com a adoção do voto distrital. Felizmente, os dados do estudo de Nelson Carvalho mostram que a Câmara, pelo menos desde 1998, está quase que igualmente dividida entre deputados que são eleitos por redutos eleitorais, por "distritos informais", e deputados que se beneficiam do atual sistema proporcional, disseminando sua votação por todo um Estado. (Tabela 1) No início desta apresentação, referi-me à necessidade de dados confiáveis e abundantes para a delimitação dos distritos elei-

torais. Temos dados de sobra no Brasil, mas que não são necessariamente compatíveis entre si. Ora, compatibilidade de dados é uma questão essencial. Os resultados das votações são organizados por urnas, que por sua vez são agregadas em seções eleitorais; as seções eleitorais, entretanto, não coincidem com os distritos censitários do IBGE, base para a organização de dados demográficos e sócio-econômicos georreferenciados. Esse é um trabalho que exige muito afinco e as soluções raramente são óbvias ou fáceis. Um exemplo é a tentativa de Orjan Ólsen, da Analítica, de distritalizar o município de São Paulo (veja o folder destacável que vem nesta edição). A base mais compatível para fazê-lo são os distritos administrativos em que se divide o município. Eles têm limites geográficos definidos e correspondem, a grosso modo, à composição das áreas censitárias. Mas existem quase o dobro de distritos administrativos do que de vereadores no município! Como agregá-los para formar os distritos eleitorais? Ao lado da atuação junto aos atuais parlamentares, a mobilização popular é um elemento fundamental para o sucesso da adoção do voto distrital. Gostaria de encerrar mostrando a campanha De Olho na Câmara, da Associação Comercial de São Paulo. O site www.deolhonacamara.org.br contém o mapa digital elaborado por Ólsen. Basta clicar nos distritos administrativos para acessar um ampla base de dados sobre todos os vereadores do municipio de São Paulo. Existem informações sobre quem ele é, os projetos que apresentou, o "caixa um" de sua campanha etc., além de uma seção de notícias sobre a Câmara Municipal de São Paulo e até uma enquete sobre o voto distrital. Esse site foi concebido como um instrumento para facilitar a compreensão do público sobre como funciona um sistema de distritos eleitorais, relacionando os vereadores eleitos à sua área de residência. Quando um cidadão clica o distrito administrativo onde está o seu bairro, a sua rua, ele sabe de imediato quais foram os vereadores mais votados naquele distrito e entrará na base de dados para fazer um contato direto com eles. Há obviamente muito ainda a fazer. Mas vamos acumulando aos poucos a experiência necessária para enfrentar as dificuldades que encontraremos pela frente.

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Atuação no Congresso e campanha popular

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meu ângulo de abordagem em relação à reforma eleitoral é o de quem quer conduzir o processo na Câmara dos Deputados e sente alguma dificuldade. Evidentemente, como foi apresentado, eu discutiria a questão do voto distrital, mas marginalmente. O que o Bolívar falou do preconceito contra o paroquialismo é uma discussão ampla, mas importante, porque existem sim distritos com uma perspectiva nacional e internacional. Acho que o voto distrital puro, como apresentado, seria uma segunda saída melhor, como foi dito aqui, mas não creio que o voto distrital misto seja mais difícil de ser aprovado. O que eu sinto na Câmara dos Deputados e também no Senado, mas mais na Câmara, como fator de maior resistência à reforma política, é o medo das burocracias partidárias. Se você tem a possibilidade de ter deputados eleitos num distrito e outros eleitos em todo o Estado, você desfaz um pouco esse medo da força da burocracia partidária, que irá praticamente definir os eleitos num sistema apenas de lista fechada. Não conheço o livro do professor Nelson Carvalho, mas conheço a tese, pelo menos o que foi sintetizado na mídia. Não sei se ele mantém a proposta até hoje, mas a proposta dele seria mais fácil de ser aceita, uma solução mediterrânea. Na Grécia, e acho que na Espanha e Portugal também, há um número maior de candidatos eleitos pelo distrito. Isto, no meu entender, além de proporcionar algumas facilidades, pode desfazer o medo da burocracia partidária e

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determinar outros caminhos. Do ponto de vista da atuação na Câmara dos Deputados e no Senado, tenho a impressão que o primeiro passo não é fazer um estudo dos projetos existentes. O projeto do expresidente Fernando Henrique Cardoso é muito bom, talvez seja um dos melhores projetos apresentados lá sobre este tema, é um projeto no qual dificilmente a gente alteraria alguma coisa. O segundo ponto é como vamos transformar isso numa campanha popular ou transformar isso em algo que a população entenda como importante. Eu acho que não basta, pura e simplesmente, acionar a imprensa. A imprensa também coleciona algumas derrotas, campanhas que ela tentou levar adiante e não

Celso Junior/AE

Não basta simplesmente acionar a imprensa. Ela também coleciona algumas derrotas.


Fernando Gabeira Deputado federal pelo PV-RJ e jornalista

Agliberto Lima/DC

conseguiu, campanhas que ela levou adiante e foi derrotada. Talvez a gente tenha que pensar num outro contexto, como associar esse projeto à luta contra a corrupção. Evidentemente, poderemos encontrar outros elementos semelhantes, menos abstratos. Por exemplo, a velha aspiração do "um homem, um voto" que restabeleceria uma certa justiça aqui em São Paulo, é abstrata demais para as pessoas aceitarem, ao passo que a luta contra a corrupção é mais concreta, se nós conseguirmos mostrar que um processo de corrupção pode ser, se não resolvido, pelo menos atenuado. Também, a partir da reforma política, essa luta passa a ganhar uma força maior. Evidentemente, talvez não se poderia dizer que é uma reforma política, mas através de fatos concretos que vão se desenrolando poderemos chegar à conclusão de que a reforma política melhoraria esse processo. São essas as preocupações que tenho. A primeira é de como conduzir a questão na Câmara dos Deputados de forma que essa grande desconfiança em relação à burocracia partidária não seja um obstáculo ao nosso trabalho. E a outra é como traduzir uma coisa tão abstrata como a reforma política, um processo tão complexo como esse, em algo que a população sinta como um avanço no sentido de melhorar a sua representação na luta contra a corrupção. Acredito que seria interessante também pensarmos na questão, muito mencionada quando se fala em voto distrital, da proximidade com o candidato, da possibilidade de cobrar. Fazer

uma campanha que perguntasse quantas vezes você viu o seu candidato ao longo de quatro anos. Na verdade, quase todas as pessoas que votam só vêem o candidato nas eleições e depois nas próximas eleições. O máximo que vêem é na televisão, para quem tem acesso à televisão. Neste contexto, acho que poucos teriam acesso à televisão. A possibilidade de a pessoa ver o seu candidato, pedir as coisas, cobrar, teria também que ser desenvolvida em termos de campanha. A possibilidade de você ter alguma influência sobre o mandato do deputado. Nos Estados Unidos isso se faz de forma mais organizada, mas temos que colocar a questão que o voto distrital significará uma influência maior do eleitor, na medida em que ele tenha a possibilidade de contatar o seu deputado e questioná-lo. São esses elementos que deveríamos pensar numa campanha. Se chegarmos aqui a um entendimento sobre o voto distrital puro ou se um projeto de voto distrital puro correr na Câmara dos Deputados, eu apóio. Se aparecer algum projeto de voto distrital misto ou um projeto que dê expressão à tese, ao insight do professor Nelson Carvalho, eu apóio também. O nosso problema já não é mais discutir qual é o sistema mais perfeito, porque nem todas as construções teóricas perfeitas são as que têm mais chances de aprovação. O problema central, acho que isso foi dito pelo Amaury, é o de tornar a questão prática. Qualquer um desses projetos vai colocar uma discussão específica, como essa que

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Patrick Kovarik/AFP

Eleições na França: o país vem rediscutindo os distritos, que sempre é uma questão política bastante delicada.

estamos iniciando agora, de como aprovar o voto distrital puro. Acho que não devemos subestimar também a capacidade de resistência dos deputados. Eu já vi questões em que a mídia foi dirigida em peso para o tema e eles resistiram. Porque o que eles temem na mídia é perder votos, e quando a proposta da mídia os leva à conclusão de que vão perder mais votos ainda, aí eles resistem. Evidentemente, eles não têm uma obediência ou uma relação assim tão submissa com a mídia. Eles analisam onde está o seu interesse. Se pudermos, e isso eu acho interessante, mostrar que no Brasil existe um movimento de defesa do voto distrital e se pudermos desfazer as dúvidas de cada um dos deputados, seria um avanço enorme. Precisaríamos falar com cada um, explicar a cada um, convencer a cada um. Fazer, de um lado, uma campanha popular e, de outro, um trabalho intenso com cada um dos deputados e senadores. Acho que muitos deles ainda não sabem, e muitos só intuitivamente percebem, que o

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distrito vai confirmar sua situação. Esses 50% que já são eleitos em bases distritais possivelmente não têm noção do que isto vai significar para eles. Eles ainda não são aliados e nem descobriram que são potencialmente aliados, essa é a questão. Para os outros que vão temer o distrito, podemos ir progressivamente desfazendo o medo. Quem tem um medo muito grande são os chamados deputados ideológicos, mas acho que é uma ilusão no Brasil pensar que alguns temas são totalmente impermeáveis. Tive essa experiência agora, na última eleição. Eu trabalhava muito com determinados temas e tinha uma influência importante num certo lugar, mas à medida que outros temas surgiram, a influência se esparramou, sinal de que em cada distrito há potencialmente a capacidade de votar com um olhar local, nacional e internacional. Fico muito preocupado com isso, até mencionei ao Bolívar, porque embora a gente tenha o costume de condenar qualquer preconceito contra o paroquialismo, existem situações na Câmara dos Deputados que são abertamente paroquiais. O nosso interesse pela questão internacional é crescente, cada vez mais temos que discutir questões internacionais. A interpenetração do Brasil e do mundo é maior. No entanto, na Câmara dos Deputados, votamos e aprovamos


Paulo Pinto/AE

O voto distrital ajudaria na formulação de políticas com temas biorregionais, mesmo em locais como a Serra da Canastra

projetos e acordos internacionais muitas vezes sem ler e muitas vezes lendo sem entender. Evidentemente que isso é um perigo para o Brasil, precisamos ter um Congresso capaz de entender os porquês desses acordos internacionais e de pensar nos detalhes, de estar cada vez mais atento. Agora, isso não se resolve com a reforma política, resolve-se com uma outra estrutura na própria Câmara dos Deputados. De certa maneira, os deputados americanos também são paroquiais. No entanto, eles têm uma ampla estrutura para orientá-los na votação dos acordos internacionais. É isso que a gente tem que resolver na Câmara dos Deputados. O meu grande medo nessa questão "paroquial" é o desprezo que existe pela política internacional no momento em que os laços são cada vez mais evidentes, que a dependência, no bom sentido, das relações internacionais é cada vez maior. É um grande medo que eu tenho, mas acho que uma discussão baseada em fatos já existentes no mundo vai poder nos levar a um processo para resolver esse problema. A minha idéia é apoiar, lutar a favor e tentar resolver os problemas que vão surgindo. Tenho a impressão que agora, na França, estão rediscutindo os distritos. É uma situação política bastante delicada.

Acho que a definição dos distritos é uma questão política bastante árdua e que tem que ser feita. Do ponto de vista do meu trabalho, vejo também uma grande vantagem na questão distrital, que não foi mencionada ainda. É que existe uma demanda cada vez maior, sobretudo dos grupos de trabalho de geografia, de uma política espacial, uma política mais voltada para o território, mais voltada para os problemas de organização e reorganização dos territórios. Isso já surgiu no Brasil, existem até propostas de fazermos não só o zoneamento econômico e ecológico do campo, mas também das cidades. Nesse sentido, o voto distrital ajudaria muito a passarmos a ter o espaço geográfico como um elemento que determinaria parcialmente a formulação das nossas políticas. Seria um grande passo. Trabalho com esse tema em termos biorregionais, até em biorregiões muito, digamos, grosseiramente determinadas, como é o caso da Serra da Canastra, mas acho que seria um avanço muito grande para os políticos terem a possibilidade de incorporar o espaço não como pano de fundo da sua política, mas como um elemento ativo.

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rto libe Ag

Na prática, voto por distrito já é realidade C a/D Lim

Nelson Rojas de Carvalho Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, doutor e mestre em Ciências Políticas e especialista em sistemas eleitorais

N

os países mediterrâneos há uma modalidade de distritamento chamada "distritos de média magnitude", que tem por base um sistema de distritos que elege, em média, cinco representantes cada. Esse sistema tem efeito redutor sobre o número de partidos, concentra o poder e acarreta os mesmos efeitos de proximidade entre representado e representante associados ao voto distrital uninominal. Embora esse sistema pareça aos meus olhos como um sistema mais viável, mais plástico à realidade política de hoje, vejo com muito bons olhos o movimento pela reforma de nosso sistema eleitoral na direção a uma modalidade qualquer de sistema majoritário. No nosso caso, um ponto fundamental levantado pelo Amaury de Souza, é que esta reforma eleitoral só se viabiliza com o interesse das partes em não perder seus mandatos. Por isso, a minha opção preferencial pelos distritos de média magnitude, pois a possibilidade de acomodação dos perfis políticos dos nossos deputados a distritos de média magnitude é, em princípio, maior do que ao voto distrital majoritário ou ao voto distrital misto. A implementação do voto distrital nas cidades com dois turnos me parece ser absolutamente exeqüível. No caso do Rio de Janeiro, existem os vereadores dos centros sociais, cujo custo do mandato não é transparente. Ter uma distritalização da eleição de vereadores

conferiria transparência a uma série de práticas que o eleitor desconhece, por exemplo, como aquele sujeito está sendo eleito. Muitos dos vereadores de reduto, no caso do Rio de Janeiro, hoje consolidam suas bases em grandes comunidades e favelas a partir dos polêmicos centros sociais. É uma espécie de distrital clandestino, já que tais centros e suas práticas assistenciais não são do conhecimento do conjunto dos eleitores dessas áreas. O voto distrital certamente traria à superfície, emprestaria maior visibilidade a essas e outras práticas, tornando as eleições mais claras e mais legítimas. Entrando no sentido prático da apresentação do distritamento, é preciso saber como opera de fato o sistema proporcional no Brasil. No nosso sistema, o primeiro ponto a salientar é a existência de uma sub-representação expressiva das áreas urbanas no Congresso, em benefício dos chamados grotões. Hoje, 23% dos eleitores residem nas capitais, mas estas elegem uma porcentagem muito menor de deputados. Nesta última eleição, esse percentual caiu, na média, de 16% para 13%. Caso existisse o sistema de distritamento, as capitais enviariam uma bancada de pelo menos 50 deputados para a Câmara (ver a Tabela 1). A fenômeno da subrepresentação das capitais se estende igualmente às áreas metropolitanas do País. Tal como ocorre nas capitais, essas áreas se vêem sistematicamente subrepresentadas na Câmara dos Deputados. Em

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2006, das 100 maiores cidades do país, 72 não elegeram nenhum representante. Não é um fenômeno recente. Em 1994, 64 cidades também não o fizeram, apesar do tamanho expressivo desses colégios eleitorais. E por que isso? (Ver a Tabela 2) Essas são áreas predadas por deputados que têm base no interior, são colchas de retalhos e se tornam áreas de predação. Somando-se o déficit de representação das capitais ao dessas cidades, há 20% do total de deputados que poderiam ser eleitos nas áreas urbanas, podendo até constituir uma bancada Tabela 1

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de 100 deputados, caso houvesse o distritamento. Está claro que as áreas mais pobres e menos urbanizadas (os grotões) são as mais representadas. A sobre-representação dessas áreas no Brasil se dá em detrimento das áreas mais predadas. Em termos de geografia eleitoral, um deputado tem a sua votação representada numa dimensão horizontal e numa dimensão vertical. Na dimensão horizontal, sua votação pode ser concentrada num número pequeno de municípios ou dispersa num número maior de municípios. Em 2002, mais ou


menos 46% de deputados tinham votação concentrada e 54% votação dispersa, a divisão meio a meio a que o Amaury se refere. Na última eleição, os percentuais foram, respectivamente, 40% e 60%. A outra dimensão é vertical (dominante ou não-dominante). Um deputado como Fernando Gabeira concentra sua votação no município do Rio de Janeiro, mas não domina a cidade, dado o tamanho deste colégio eleitoral. Essas dimensões permitem fazer uma tipologia de quatro padrões de votação no nosso sistema eleitoral. Primeiro, um deputado pode concentrar a votação e dominar esses redutos ou distritos informais. Ele pode ser um deputado eleito por Ribeirão Preto ou São Gonçalo e ter pelo menos 50% de votos daquela localidade. A atual Câmara tem 11% de deputados dessa extração, a qual é comumente identificada com o mandonismo local. Observe-se, porém, que este padrão é mais característico do Sudeste. Em

outra modalidade, o deputado pode ter uma votação mais dispersa pelo Estado, mas dominar diversas municipalidades. Esse é um padrão mais nordestino que caracteriza 27% dos deputados. Terceiro, os deputados que têm uma votação espalhada por vários municípios, mas não dominam nenhum, constituem 33% da Câmara. O restante, finalmente, tem uma votação concentrada, mas não-dominante (29%). A Tabela 3 traz a distribuição dos deputados da atual legislatura nesses dois eixos. As coalizões para a adoção do voto distrital têm que ser feitas a partir da realidade desses distritos informais. O impacto do distritamento será limitado, pois quase metade da Câmara já é eleita com votação de redutos, de modalidade distrital. Mas, ainda assim, olho para os distritos de média magnitude como tendo uma possibilidade maior de acomodação dos interesses eleitorais dos deputados.

Tabela 2

Tabela 3

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Robert Shafer/Jupiterimages

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Modelos internacionais mostram os desafios Agliberto Lima/DC

Jairo Nicolau

A Suprema Corte dos Estados Unidos (à esq.) não reconhece como um problema os partidos no poder manipularem os distritos. Abaixo, eleições na Alemanha, que alguns consideram um sistema distrital misto, mas que outros classificam como proporcional.

Cientista político, professor e pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), da Universidade Cândido Mendes (UCAM), autor do livro Sistemas Eleitorais

Michael Urban/AFP

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STR/AFP

esejo primeiramente comentar um pouco sobre algumas dificuldades relacionadas ao voto distrital. Quero comentar o que disseram os três mestres da mesa anterior, o Amaury, o Bolívar e o Antônio Octávio, sobre uma certa aversão da Ciência Política brasileira à reforma. Acho que eles não devem ficar tão aflitos e preocupados, pois isso não é dominante. Primeiro, porque os cientistas políticos que se dedicam a este assunto provavelmente não devem passar de 15 no Brasil. Segundo, é uma tendência internacional. Acabei de ler um artigo muito interessante, um estudo internacional com dezenas de cientistas políticos do mundo inteiro especializados em sistemas eleitorais. Perguntaram a eles qual o sistema que preferiam e por quê. Apareceram nove variantes de sistemas eleitorais e o preferido de todos era o sistema de combinação, tipo o distrital misto da Alemanha. Aparece depois a lista flexível e outros, mas nenhum com mais de 20% das preferências. É bom que no Brasil tenha um debate desse tipo. A gente não pode se assustar com fundamentalismos, pois a radicalização de uma posição existe dos dois lados. Há alguns que são hiper-reformistas, acham que tem de haver reformas e que elas têm de ser profundas; outros são hiperconservadores, na direção de defenderem o estatuto constitucional brasileiro, como se tivesse sido criado e desenhado para gerar só efeitos positivos. A gente conhece a história e sabe que não é isso. Nesse debate, ao qual me dedico academicamente, procuro sempre fazer uma separação. Estudo, escrevo, mas tentando manter um pouco de distanciamento. Não sou defensor de nenhuma causa, não vou a público e raramente escrevo um artigo para defendê-la — por coincidência, escrevi um recentemente, sob encomenda, defendendo uma proposta de reforma. Tento entrar no debate como crítico, trazendo elementos internacionais para deixar bem claro a minha posição. Sou talvez o único defensor brasileiro do sistema proporcional de lista flexível, que é tão bizarro, tão estranho, que eu sequer falo em público sobre isso. Mas, enfim, não traria muitos elementos para o debate, porque os cientistas políticos têm sua preferências, seus sistemas eleitorais de estimação e por aí fica. Não vou chegar aqui e defender uma posição do tipo "sou contra o voto distrital", não faria essa descortesia com as pessoas depois deste seminário tão intenso e tão simpático, não é essa a minha idéia. O meu ob-

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O Reino Unido elege os deputados da Câmara dos Comuns pelo sistema distrital clássico.

Quando a gente passa do âmbito de recortar o Brasil em distritos de um representante para o debate do voto distrital misto, não é só uma discussão semântica, é uma mudança completa de parâmetros.

jetivo é justamente trazer elementos da comparação dos estudos internacionais, da literatura mundial sobre experiências de países que usam o sistema majoritário distrital. Vou começar com um comentário muito simples: o termo "voto distrital" não é bom, ainda que seja o possível para uma campanha que a Associação Comercial e setores do PSDB e do PFL, pelo menos até onde eu entendo, querem levar adiante. Na verdade, todos ou quase todos os argumentos que ouvi são mais em defesa da circunscrição eleitoral de um representante, dos méritos de ter um território recortado para que o eleitor tenha um representante, do que em defesa de um sistema eleitoral, porque num recorte de um representante você pode ter vários sistemas eleitorais: pode ter sistema de dois turnos à francesa, pode ter o que a gente chama aqui no Brasil de distrital. Talvez fosse melhor chamar de "majoritário". Num âmbito distrital, de um distrito de um representante, existe uma variação muito interessante da Austrália. O fato de ter um representante por distrito não significa que você faça uma escolha por um determinado sistema eleitoral. Ora, quando se acrescenta ao debate o distrital misto, aí a confusão aumenta. Quando a gente passa do âmbito de recortar o Brasil em distritos de um representante para o debate do voto distrital misto, não é só uma discussão semântica, é uma mudança completa de parâmetros. Já um sistema distrital puro, vou chamar assim para facilitar, pressupõe uma emenda constitucional. A Constituição é clara, a representação é proporcional para eleição para a Câmara, Assembléia e Câmara dos Vereadores. Enquanto o sistema misto, dependendo do modelo — por exemplo, se a gente adotasse o improvável modelo misto alemão, que é um sistema de correção — poderia tranqüilamente ser aprovado. Só classifiquei a Alemanha como sistema misto no meu livro para facilitar o debate, porque a maioria dos cientistas políticos classifica a Alemanha como sistema proporcional. É um sistema proporcional, com parte dos deputados alocados nos distritos por representação. Acho que antes de ir para a rua é preciso esclarecer: é um sistema tal como o proposto pelo deputado Arnaldo Madeira? Essa é a versão que a gente chama aqui distrital à inglesa, então está bem, não se fala mais em misto, deixa o misto para lá. Se é misto, qual misto? Porque o misto de correção alemão é uma coisa, o sistema misto que é proposto aqui no Brasil geralmente é a versão


russa, vamos chamar assim, em que a metade dos representantes é eleita pelo proporcional e metade pelo distrital, sem que uma coisa tenha a ver com outra. Na Alemanha não é assim, apesar de muita gente achar. O primeiro ponto que eu quero chamar a atenção é com relação à semântica que vocês vão adotar: "é voto distrital ou majoritário distrital, ponto e acabou". Porque acrescentar mais a isso é confusão. O segundo aspecto é o seguinte: a gente está preso a uma lógica que vem da República e da Constituição de 46, que é a idéia de que as escolhas institucionais no âmbito nacional se repliquem nos Estados e Municípios. Ainda que tivesse variação, por exemplo, entre 1945 e 1964 alguns Estados tinham governadores com cinco anos de mandato e outros com quatro, havia mais liberdade do temos hoje. De qualquer modo, estamos presos a esta lógica, mas nada impede que a gente tenha imaginação e pense em sistemas eleitorais diferentes para âmbitos diferentes. Por que temos que adotar lista dos Estados, como a gente tem hoje? Inclusive, pelo fato de o argumento do sistema distrital majoritário no âmbito municipal fazer muito mais sentido. Tenho um amigo proporcionalista que me disse tranqüilamente (não posso revelar o nome, porque vocês se surpreenderiam que ele tenha dito isto) que o voto distrital no âmbito local é diferente. Uma coisa é um vereador para tratar os temas do bairro, da localidade. Mas faz sentido a gente pensar num representante desse tipo para a Câmara dos Deputados? Acho que a gente tem que ter essa flexibilidade e pensar. Vou dar um caso conhecido de todo mundo que é o Reino Unido, quer dizer, a matriz de toda a invenção do sistema majoritário — esse movimento que se quer copiar no Brasil é do Reino Unido. Bem, lá atualmente eles elegem seus representantes para o Parlamento Europeu pela lista fechada. Como todos os países da Europa, elegem os deputados da Câmara dos Comuns pelo sistema distrital clássico, que nós conhecemos, elegem os parlamentares regionais da Escócia, da Irlanda do Norte e agora de Londres pelo sistema proporcional, com vários formatos. Na verdade, é uma país conhecido por usar o voto majoritário. Mas quando teve de adotar sistemas eleitorais para outros cargos, não replicou o modelo da Câmara dos Comuns em todos os âmbitos. Então, a gente tem que pensar com grandeza se não é hora de quebrar esse hábito e inventar talvez o sistema misto que sirva para um âmbito estadual, a lista fechada para cima e o voto distrital em baixo. A gente não precisa estar amarrado para sempre a essa armação. O terceiro ponto tem a ver um pouco com a

premissa do contato entre representados e representantes. O sistema majoritário tem duas virtudes inquestionáveis quando comparado com outros. A primeira é a simplicidade. Num dos livros clássicos sobre o sistema eleitoral, o autor diz: "Para explicar para meus alunos como funciona o sistema eleitoral majoritário distrital, levo trinta segundos. Para explicar o sistema misto, levo uma aula, porque é muito mais complexo". Então, acho que a simplicidade do sistema é uma bandeira inequívoca, é o sistema mais simples de votar, simples de contar os votos e simples das pessoas entenderem, sobretudo porque ele já é usado nas prefeituras com menos de 200 mil eleitores, porque o que se vai explicar para as pessoas é simples: você vai eleger os deputados como elege o prefeito nas cidades com menos de 200 mil habitantes, o mais votado vira deputado. A segunda virtude do sistema majoritário distrital é permitir que os eleitores identifiquem com mais facilidade quem é o seu representante. Quer dizer, o bom sistema é aquele que me dá a capacidade de identificar o meu representante — vou lá, posso cobrar, posso ligar para ele, eu sei quem ele é, se ele for um bom deputado eu mantenho, se não for eu puno. Mas acho que isso não pode ser levado ao extremo, e alguns discursos me pareceram um pouco idealizados, porque os dados que eu tenho sobre outros países mostram que as pessoas raramente ou com muito pouca freqüência contatam os seus representantes mundo afora. Vou dar um dado para vocês: segundo uma pesquisa internacional, o país em que os eleitores têm mais contato é o Canadá, com 22% dos eleitores. Outro país conhecido, os Estados Unidos, só 12% dos eleitores têm contato com seu representante. Agora, há países como Israel, por exemplo, ou a Noruega, que são países de representação proporcional, em que o contato dos eleitores é maior. Por exemplo, Israel tem 16%; Noruega, 15%; Portugal, que tem um sistema de lista fechada, só 7% das pessoas procuram o representante e para o eleitor português isso não é importante. Converse com o eleitor português, ele não lembra em quem votou e não acha que isso é uma virtude. Ele acha esquisitíssimo você lembrar, porque lá é um sistema de lista fechada, você tem que lembrar o partido, não o nome do candidato, porque eles têm outra concepção de representação política. Então, o sistema realmente confere a capacidade de contato, eu não seria cínico a ponto de achar que a minha teoria de representação deve ser a majoritária. Acho que a minha concepção de representação é que o bom sistema pode ser aquele no qual os eleitores não procu-

A gente está preso a uma lógica que vem da República e da Constituição de 46, que é a idéia de que as escolhas institucionais no âmbito nacional se repliquem nos Estados e Municípios. (...) mas nada impede que a gente tenha imaginação e pense em sistemas eleitorais diferentes para âmbitos diferentes.

Converse com o eleitor português, ele não lembra em quem votou e não acha que isso é uma virtude. Ele acha esquisito você lembrar, porque lá é um sistema de lista fechada, você tem que lembrar o partido, não o nome do candidato (...)

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ram o deputado, aquele em que se delega, se confia no representante. Mas a versão dominante aqui é que o bom sistema é aquele em que eu procuro o deputado. Como se as pessoas realmente tenham tempo e disposição para ficar procurando deputado e se é de fato importante que o deputado seja procurado. Enfim, eu não quero trazer essa discussão para cá, simplesmente porque acho que isso é uma idiossincrasia da minha teoria da representação, mas é inevitável que esse tema apareça. Um ponto que não foi colocado, por isso não vou explorar, é a idéia de que o sistema majoritário distrital reduz a fragmentação partidária. Curiosamente esse tema não apareceu aqui. Estou ouvindo com a maior atenção todos os argumentos em defesa do voto distrital e ninguém, até onde eu me lembre, falou claramente sobre o tema clássico. Quando você pergunta ao inglês por que ele defende o voto distrital, ele é claro: porque é o sistema que favorece a governabilidade, eu sacrifico a representação em nome da governabilidade. Aqui não, aqui o argumento é: o sistema bom é aquele em que eu posso controlar, em que eu esteja mais perto do meu representante. O argumento da governabilidade não seria garantido, porque os países que têm sistema distrital têm que ter um sistema partidário nacionalizado. Os Estados Unidos e o Canadá e a Índia (em termos) conseguem que os candidatos, os adversários, se repliquem em todos os distritos no âmbito nacional. Há a experiência muito interessante da Rússia. A parte majoritária da Rússia é um caos, a parte da lista fechada, que é o sistema misto, elege 6 deputados. Na parte do voto distrital tem 30, porque eles não têm um sistema partidário nacional. Cada Estado da Federação Russa é controlado por um partido, cada região tem um partido. Nada impediria, como nós não temos um sistema partidário nacionalizado, que isso acontecesse no Brasil. Então o PSB, por exemplo, ganha três, quatro distritos no Pernambuco, dois, três no Rio; o PDT três quatro no Rio, dois, três no Sul; e isso vai se replicando de modo que você não garante uma redução da fragmentação partidária, porque não temos um sistema partidário nacionalizado. Óbvio que a longo prazo isso pode acontecer, mas o argumento da governabilidade a curto prazo pela mão do sistema distrital não seria garantido. Passo para o último ponto rapidamente, com relação ao distritamento. Ao contrário dos meus colegas, não acho que o distritamento seja um problema sério. A gente tem aí hoje tanto o IBGE, o TSE e uma porção de instrumentos para distritar mais ou menos o País sem graves manipula-

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ções. Agora, quanto ao caso americano, vale a pena acrescentar alguns elementos que não foram tão enfatizados. O primeiro deles é que o sistema americano é majoritário em tudo: eleição majoritária, eleição presidencial, bicameralismo, a lógica do sistema é majoritária, salvo num quesito em que eles são rigorosamente proporcionalistas: a distribuição das cadeiras da Câmara entre os Estados. Desde 1965, essa distribuição é rigorosamente proporcional e depois de cada censo é feita uma redistritalização automática entre os Estados. Agora mesmo nesse último redistritamento, Massachussets, o Norte, está perdendo população e o Sul está ganhando. Então Texas ganhou dois representantes, a Flórida ganhou mais um, Massachussets perdeu, Nova York perdeu, isso é automático. A cada dez anos, cada Estado vai ter que decidir: perdemos dois representantes, vamos ter que redesenhar o distrito para diminuir dois representantes; ganhamos dois, vamos ter que recortar de novo. E nos Estados isso é feito tecnicamente. Tanto o Bolívar quanto o Amaury chamaram bem a atenção, que as manipulações do século 19 acabaram, mas isso não quer dizer que elas não existam de uma maneira mais sutil. De que maneira? Cinco Estados têm comissões técnicas: Arizona, Havaí, Montana, Nova Jersey e Washington. Os outros 45 Estados operam com comissões políticas das Assembléias, como foi dito aqui. Bom, as Assembléias nos Estados em que a bancada da Câmara é do mesmo partido, por exemplo, a Flórida que é hoje majoritariamente republicana, o que acontece? A manipulação tem sido freqüente na direção dos deputados que lá estão e a Suprema Corte Americana não reconhece como um problema que os partidos no poder manipulem os distritos de modo a se favorecer politicamente. É interessante, é obvio que tem que manter todos os princípios, mas não é um grave problema para a Suprema Corte Americana. Vocês sabem qual é a taxa de reeleição numa eleição americana, da última? Dos que concorreram, 98,8%, quase 100%, e muitos estudiosos reconhecem que uma das razões, mas não só essa, é a possibilidade de desenhar o distrito para os favorecer. Um último ponto que existe nos Estados Unidos, que pode ser iluminador também para a experiência brasileira: desde 1982, existem os distritos criados para proteger minorias. Outra decisão da Suprema Corte Americana desde os anos 60 é o distritamento dos Estados. Cada distrito tem que ter a mesma população do outro, com pequenas distorções. Nisso as cortes estaduais são rigorosas: cada distrito tem que ter 300 mil, um pode ter 301 mil e outro 299 mil, é pro-

Vocês sabem qual é a taxa de reeleição numa eleição americana? Dos que concorreram, 98,8%, quase 100%, e muitos estudiosos reconhecem que uma das razões, mas não só essa, é a possibilidade de desenhar o distrito para os favorecer.


Celso Junior/AE

blema da Assembléia como resolver isso. O que são os distritos para proteção de minorias? A Suprema Corte entendeu que é possível você criar uma "gerrymander", um distrito manipulado para proteger minorias. Então, você pode fazer um recorte territorialmente bizarro para pegar as áreas onde moram majoritariamente negros. De três distritos clássicos recortam um novo distrito para os negros terem um representante. Existem hoje 24 distritos com essa configuração; 15 deles com negros, afro-americanos, como eles chamam, e 9 com hispânicos. O que é inesperado é que só 24 são distritos do Partido Democrata. O que os Democratas não imaginavam é que os distritos de origem, os distritos que perderam minoria, viraram distritos seguros dos Republicanos. Quer dizer, os outros 24 viraram distritos Republicanos porque as minorias às vezes davam votos para os Democratas. Agora não, as minorias saíram e eles viraram distritos brancos, majoritariamente conservadores Republicanos. Isso poderia ser tranqüilamente pensado para o Brasil, ainda que aqui o tema da divisão étnica racial não tenha o mesmo contorno americano. Último ponto: trazendo essa discussão para o Brasil, se adotarmos o distritamento de um representante, se a representação é desse tipo mesmo, passada a emenda constitucional, é preciso enfrentar a distorção da representação dos Estados na Câmara que, como foi bem colocado, é sobretudo um problema que afeta São Paulo, mas não só. Desde 1986, não é feita uma reconfiguração dos Estados. Foi feito porque a Constituição deu dez deputados a mais para São Paulo, a Câmara tinha 503, passou para 513 e ficou nisso. Agora, nos outros Estados as distorções internas não foram corrigidas. Goiás perdeu todo o seu Norte e ficou com a mesma bancada, criou-se um Estado no Norte de Goiás e a bancada de Goiás ficou igual, ela está sobrerepresentada há muito tempo. Então há uma série de distorções, porque a migração externa continua e isso não é corrigido. Recentemente, li os debates da Constituinte e vi o esforço feito pelos oradores, que encaminharam a votação para as dez cadeiras de São Paulo: Mário Covas, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Franco Montoro e mais uns quatro ou cinco deputados e senadores. Sabe por que o argumento? Todos os opositores, o Ricardo Fiuza, um dos que eu me lembro, o Nordeste inteiro em peso, diziam: São Paulo ganhou dez, mas os territórios aumentaram, então tudo bem. Recolocar essa discussão, ainda que doutrinariamente seja o melhor dos mundos, politicamente a gente sabe que ela não tem passagem hoje. Se isso não é colocado dessa maneira, você vai criar distritos

com essa configuração das bancadas estaduais. O problema aparece hoje de maneira velada, porque esse sistema brasileiro é cheio de distorções, isso fica meio escondido, e só aparece quando suplentes do Clodovil ou do Enéas são eleitos com votações insignificantes. Que sistema seria esse? Os distritos do Acre, de Roraima, vão ter 30 mil eleitores, ou 25 mil, não sei, e de São Paulo vão ter 300 mil. O deputado vai chegar na Câmara majoritariamente com 15 mil votos, isto será institucionalizado. Acho que, do ponto de vista da representação política, a solução americana é melhor. Você corrige tudo, cria os distritos com eleitorado semelhante. Mas adotar o distrital sem corrigir a desigualdade da representação dos estados na Câmara dos Deputados não dá. Com a correção, o tema da representação do território passa a fazer sentido. Espero não ter trazido desânimo para vocês, mas sim elementos para sofisticar o projeto, para fazer a campanha ir para a rua com um pouco mais de proteção e densidade.

O sistema eleitoral brasileiro é cheio de distorções, isso fica meio escondido e só aparece quando suplentes do Clodovil ou do Enéas são eleitos com votações insignificantes.

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Os s o l u c á t obs Agliberto Lima/DC

Raul Jungmann Deputado Federal pelo PPS (PE), foi presidente do Incra e ministro do Desenvolvimento Agrário

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ntes de apresentar duas ou três observações, eu queria fazer dois comentários a respeito de coisas que foram faladas anteriormente. Primeiro, o deputado Arnaldo Madeira, não sei se dirigindo-se a mim diretamente, disse que nossas elites costumam abrir mão de suas prerrogativas e fazem consultas populares a torto e a direito. Eu fui fazer as contas. Madeira, em 108 anos de República nós não tivemos três consultas. Ganhei uma certa expertise nessa coisa de consulta popular através do referendo sobre as armas. A outra observação é a respeito do aprendizado que tive aqui, de que paróquia ou paroquialismo é progresso. Fiquei realmente pensativo, e pelo andar da carruagem, a gente vai acabar descobrindo que a Rebelião Praieira, na verdade, foi em Ding Ding, na Serra Talhada; que a Revolta dos Alfaiates aconteceu em Quixeramobim, e que a Revolta da Chibata foi num afluente do rio Pajeú ou do rio Parnaíba, e não na Baía da Guanabara! E digo isso porque acabamos de vir de um processo muito doloroso, muito sofrido, que foi a CPI dos escândalos. E o que víamos lá? Aqueles deputados todos, cujos nomes eram estranhos para nós — Alcebía-

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o h n i m a no c a m r o f e r da Prédio do Supremo Tribunal Federal: para Jungmann, batalhas jurídicas são inevitáveis.

Rafael Neddermeyer/AE

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Na periferia, as escolhas são feitas a partir da confissão religiosa, não são escolhas cidadãs. A escolha se dá em larga medida da mesma maneira como se escolhe uma roupa ou o que comer.

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des, Asdrúbal, Eratoquides, por aí afora. Qual é a extração desses deputados? Aqui não vai nenhum viés de discriminação, mas eles vêm basicamente de duas grandes regiões. Primeiro, dos grotões; e, segundo, das periferias das cidades, das periferias mais vulneráveis, mais sofridas, que são em larga medida organizadas pelas seitas e suas correlatas. Então, que progressismo é esse que a paróquia passou a ter agora, onde ele está? Não estou aqui querendo indexar, mas é claro que é exatamente aquele deputado que tem o mínimo controle. No espaço do grotão a cidadania não se exerce em toda a sua plenitude, porque existe uma dependência, muitas vezes da máquina do governo, da prefeitura, seja o que for. Na periferia, as escolhas são feitas a partir da confissão religiosa, não são escolhas cidadãs. A escolha se dá em larga medida da mesma maneira como se escolhe uma roupa ou o que comer. Evidentemente, eu estou exagerando um pouquinho. Então, o que acontece com esse representante? Ele, ao chegar ao Congresso Nacional, entrega lato sensu o seu mandato ao líder e o líder tem uma relação de troca com ele — chega lá cinco horas da tarde, aperta um botão e acabou a participação dele ao longo do dia, daquela plenária, daquele esquema de votação. Basicamente, ele vai trocar ou vai fazer uma adjudicação do seu mandato em troca de algo para a sua paróquia. Daquilo que nós chamávamos no passado, mas que hoje deve ser políticamente incorreto, de clientelismo. Li há pouco tempo uma entrevista do Fernando Limongi em que ele diz que o clientelismo não existe mais no Brasil. Que seja, mas tenho que me apoiar nisso pelo menos para poder transmitir aquilo que me parece ser a idéia a partir da qual essa troca é feita. Se o deputado pega o voto e passa para o líder, o líder, por sua vez, adjudica isso a quem? À mesa que, por sua vez, continua o processo de adjudicação. Por isso, cada vez mais o Congresso, e particularmente a Câmara dos Deputados, perde o seu poder de agência. Exemplo disso são as medidas provisórias. A Constituição diz com absoluta clareza: publicada a medida provisória, imediatamente instala-se uma comissão mista para a sua análise. Sabem quantas vezes isso foi feito? Das centenas e centenas e centenas de medidas provisórias, uma vez, uma única vez, e só depois da mudança da legislação. É o exemplo mais claro de que, mesmo sendo um direito líquido e certo, ninguém no Congresso entra com um mandato de segurança reivindicando aquilo

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que é um direito nosso, deputados, e também da própria Casa. Vamos pegar uma carona no nosso assunto, a partir disso. O voto distrital vai mudar isso, essa realidade? Não estou entrando no mérito da questão de maior ou menor governabilidade, mas o fato é que as maiorias são constituídas dentro do Congresso Nacional a partir de instrumentos que cerceiam a vontade da maioria, ou seja, emenda parlamentar, liberação de recursos e cargos. Hoje, nossas maiorias são feitas assim. Isso vai mudar? O voto distrital vai possibilitar mudança, alguém poderia responder a essa questão? Porque eu quero chamar a atenção sobre esse primeiro ponto. Há um conforto com esse status quo e não me parece que, chamemos ou não de paróquia, vamos dissolver ou desconhecer essa realidade. Essa é uma realidade confortável e os deputados — sejam de CPIs, sejam do "Vale de los Caídos", sejam dos que fazem a maioria, sejam aqueles 30 ou 40 que em alguma medida representam lideranças e dão o tom — todos estão confortáveis com esse sistema. É só ver a resistência a mudanças, por exemplo, na forma de elaborar e fazer o orçamento ou na própria constituição das comissões que vão votar tudo isso. Minha primeira observação é que, com exceção de uma certa elite, não sinto por parte daqueles que estão na casa um desconforto. Pelo contrário. Se o voto distrital representar um choque com esse sistema de formação de maiorias, baubau, tchau. Não vejo como se possa fazer essa mudança, porque a formação de maioria vai continuar sendo feita desse jeito, a crônica dos escândalos e da corrupção permanecerá. Entra aqui o segundo ponto. Geralmente, e o Jairo Nicolau mencionou isso, a questão do voto distrital vem acompanhada da questão da governabilidade, da formação de maiorias. Portanto, talvez isso tenha um pouco a ver com um certo simbolismo, uma certa má fama da idéia do distrital. É que foi sobretudo durante da ditadura que foi tentada várias vezes a implantação do voto distrital, partindo do princípio de que isso levaria a uma certa compactação do quadro partidário, uma certa convergência ao centro e acabaria com a fragmentação. Isso representaria, portanto, uma fuga do nosso plebiscitarismo presidencialista e obviamente também uma redução de certas tensões que nos levaram no passado, dizem alguns, a determinados impasses institucionais.


Celso Junior/AE

Isso não foi falado aqui, mas a verdade é que o tema do voto distrital é hoje relançado sob duas outras óticas: a questão da proximidade com o eleitor e a questão do combate à corrupção. Se esses são os tema dominantes ou determinantes, então houve uma mudança, uma espécie de deslizamento semântico. Antes, a questão era a governabilidade, embora eu desconheça pesquisas efetivas que indiquem uma correlação entre crises institucionais e números de partidos. Sei que estou falando aqui em uma arena meio complicada. Como vamos proceder essa reforma, proceder no sentido de qual instrumento usar?. Acho incontrastável o que o artigo 45 da Constituição diz e tentar fazer a mudança para o voto distrital misto, nem falo do distrital puro, irá desaguar numa questão no TSE e no Supremo. Acho absolutamente inevitável uma batalha jurídica em torno disso. Do distrital puro já nem falo, pois é claro que precisa de emenda constitucional, é o que o Miro Teixeira já afirmou. Ele tem toda razão e não vejo como fazer essa mudança sem enfrentar essa batalha. Acho também que vamos ter, não uma, mas muitas outras batalhas judiciais no que diz respeito à distritalização. Aí vocês se preparem. Considerando os últimos resultados, não direi atordoantes, mas algo surpreendentes do nosso TSE e mesmo do Supremo, imaginem o que isso vai representar.

Após a CPI dos 'Sanguessugas', achávamos que a reforma política viria, pois não havia mais saída. Mas bastou uma nova eleição para constituir a maioria que aí está.

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Cada distritalização, cada exclusão vai demandar todo um período de adaptação do novo sistema. Nós achávamos, quando fizemos a primeira, a segunda e a terceira CPI, como a dos Sanguessugas, que mandou 72 parlamentares para a Comissão de Ética, que tínhamos chegado no osso, que não era mais possível, que a reforma política viria porque não tinha mais saída, o governo não tinha mais como formar maiorias com aqueles instrumentos que foram colocados no índex pela opinião pública. Foi verdade? Claro que não. Bastou ter uma nova eleição, bastou constituir a maioria que aí está — que seja infinita enquanto dure, ou enquanto durarem os cofres públicos. Mas enquanto ela durar, o que vemos aí? Que esse tema desapareceu e em momento algum tivemos a coincidência da crise com a reforma. A reforma foi pautada antes. O que aconteceu no episódio do Aécio e do Inocêncio demonstra a fragilidade da idéia: dois adversários pela presidência da casa se unem e bloqueiam a questão. Quando de novo se tentou ensaiar uma mudança, três partidos — o PT, o PTB e o PL—, bloquearam essa questão. O Miro estava operando, mas não podia fazer nada pois não tinha com quem contar. Então, não acho plausível a expectativa de auto-reforma dentro do sistema. E também por fora, nas ruas. Digo, às vezes brincando, que o sentimento que tenho é que acabo de sair de uma eleição. Basta abordar muitas vezes o tema da reforma política e o que sinto é que as pessoas querem "zapear", fazer zap, trocar, sair. Evidentemente, isso cria uma dificuldade também para defender a tese da mídia. Mas talvez o carimbo dessa coisa começando numa junção de partido político com associação — com todo respeito, sem nenhuma discriminação —, não sei se seria algo difícil de ser combatido. Ví de perto o que foi o referendo. Tínhamos a melhor idéia, tínhamos 82% de apoio etc. etc. e vimos como essa argumentação foi desmanchada com uma facilidade absurda, simplesmente porque não atendia ao pré-requisito básico de assegurar que aquela mudança aumentaria a segurança da população barbarizada e achando que o Estado não cumpria sua parte. E ela dizia: "Por que vou me desarmar?" E fomos para o brejo. Pensem no tipo de argumentação contrária que pode ser usada, a não ser que provemos dois por dois que iremos reduzir a corrupção através desse modelo. Para concluir, eu diria o seguinte: da minha primeira para minha segunda eleição eu me transformei,

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me permitam a pretensão, num deputado "rousseauniano", ou seja, num deputado que expressa a vontade geral. Fui eleito em terceiro lugar em Recife sem ter um único vereador ao meu lado. Tive talvez a quinta maior votação na região metropolitana do Recife. De quase 200 prefeitos do meu Estado, eu tive o apoio de um, exatamente um. Ou seja, eu caminhei numa direção, me sinto cobrado, me sinto largamente cobrado, me sinto largamente comprometido e faço um mandato intensamente comprometido sem ter proximidade com o eleitor. Não tenho proximidade com o eleitor, o meu eleitor é um eleitor que eu rigorosamente desconheço. E, por acaso, o meu mandato é ruim? O meu mandato está distante, desfocado, deslocado em termos daquilo que eu busco fazer? Não sei, vocês avaliem. Isso evidentemente não significa indexação em sentido contrário, de que aquele que está próximo representa o mal, representa o reprovável, representa o negativo ou representa o fragmentário, ou seja o que for. Não, não há exclusão aqui. Mas gostaria de chamar a atenção para esse qualificativo. Caminhei na direção de me transformar numa espécie de parlamentar — valha-me Deus! — da vontade geral num Estado como é Pernambuco, com todas as dificuldades que isso representa. E não acho que deva regredir, até por que para regredir é preciso ter um contato maior e dar alguma coisa em troca, em termos materiais. Pelo menos de onde eu venho. E eu não tenho absolutamente nada a dar, eu não freqüento corredor de ministério há anos, eu não freqüento sala e ante-sala de autoridade alguma há anos, e isso é o que me permitiu enfrentar determinadas questões, ter portanto uma atuação mediada pelos meios de comunicação, e tanto quanto possível nacional e sintonizada com questões gerais. Quero dizer ao final que, apesar de problematizar ao máximo, defendo o voto distrital misto. Mas gostaria de dizer que esse espaço não é só meu, é de muitos outros, e que eu gostaria de vê-lo preservado. Eu me sinto cobrado, comprometido, desconheço meu eleitor, mas presto conta 24 horas por dia daquilo tudo que eu faço. Quando disputei a candidatura a prefeito, fui o primeiro a colocar as contas na internet e no programa eleitoral. A gente botava lá o que recebeu e pagou. Mas neste episódio aconteceu um pequeno problema: a produtora não queria colocar, porque a gente pagava tão pouco que ela tinha vergonha de veicular o valor.

Apesar de problematizar ao máximo, defendo o voto distrital misto. Mas gostaria de dizer que esse espaço não é só meu, é de muitos outros, e que eu gostaria de vê-lo preservado. Eu me sinto cobrado, comprometido, desconheço o meu eleitor, mas presto conta 24 horas por dia daquilo tudo que eu faço.


O

que eu pediria neste momento, e falo aqui como um empresário médio, é que por favor, senhores intelectuais, deputados, vocês que têm o poder de convencer a sociedade, que indiquem qual o caminho a seguir. O que eu vejo hoje é que a sociedade está desorientada, em busca de caminhos que assegurem que sua vontade, quando expressa nas urnas, seja respeitada. Os senhores acenderam uma luz, mas como foi dito pela manhã, aquele que veio em busca de solução, sai de certa forma desesperançado ao constatar que muito se precisa mudar e que a mudança é muito difícil. De qualquer forma, temos um ponto de partida, com base nas discussões aqui realizadas. O que não podemos é transmitir a impressão de que, por serem difíceis as mudanças, tudo irá continuar como está. Também não podemos permitir que, a pretexto de mudar a situação atual, algum espertalhão, como muitos que já tivemos no Brasil, procure se aproveitar disso, para atender seus interesses pessoais. Foi muito contundente a palavra do presidente Fernando Henrique Cardoso e muito enriquecedores todos os debates realizados. Na medida em que ainda existem dúvidas, e que é grande a desmotivação da população, precisamos não apenas esclarecer à sociedade, como motivá-la para que pressione a classe política por mudanças no sistema eleitoral, que assegurem o respeito ao voto e o controle dos eleitos pelos eleitores. É preciso que a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, que são os representantes da sociedade, reconheçam a gravidade da situação de desesperança e descrença da população, e coloquem os interesses do País acima dos corporativos e pessoais e promovam as mudanças necessárias. Falo isso como empresário e como cidadão. Talvez seja pedir muito, mas é preciso pedir. Sei que ainda persistem dúvidas sobre o que fazer no tocante à reforma política, apesar da profundidade dos debates realizados neste evento. É o voto distrital puro? É o misto? É a mudança de toda legislação eleitoral ou apenas de alguns tópicos? A reforma tributária vem antes da política, ou é possível fazer a tributária sem a reforma política? Se há dúvidas para os senhores, imaginem então para a sociedade, que está tão desinformada, ou mal informada! Isto, no entanto, não deve servir de pretexto para que se continue a postergar as reformas e manter o eleitor frustrado por ver que seu voto, no geral, acaba sendo ignorado por aqueles a quem elegeu com base em determinadas bandeiras ou propostas, que, após a eleição, são simplesmente abandonadas. É preciso restaurar a confiança da sociedade no sistema político e na democracia. Agradeço de coração a todos vocês, que cederam os seus preciosos tempos para enriquecer este debate

Agliberto Lima/DC

Plantar dúvidas para colher esperanças

Muito obrigado.

Alencar Burti Presidente ACSP

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Sistema eleitoral brasileiro:

A

O Brasil é uma República e adota o Presidencialismo, sistema em que o presidente da República é, ao mesmo tempo, o chefe de Estado, que simboliza a nação, e o chefe de governo, responsável pela administração do País. O sistema político brasileiro foi baseado no modelo norte-americano, com o Poder Legislativo dividido entre Senado Federal (que representa os Estados) e Câmara dos Deputados (representante do povo). No total, são 513 deputados e 81 senadores (três de cada Estado e o Distrito Federal), perfazendo 594 parlamentares. O número de cadeiras que cada Estado tem direito na Câmara varia de 8 a 70, dependendo do número de eleitores. São Paulo, por exemplo, tem 70 deputados federais. O sistema eleitoral adotado no Brasil é complexo e a grande maioria dos eleitores não o conhece na sua totalidade. Para cargos do Executivo (como presidente, governador e prefeito) e senador, a eleição é majoritária, ou seja, ganha o candidato com maior número de votos. Nos cargos para o Executivo, pode haver segundo turno, se nenhum dos candidatos tenha obtido a maioria absoluta (50% mais um dos votos válidos). No caso de prefeito, somente haverá segundo turno nos municípios com mais de 200 mil habitantes. Nas eleições para cargos do Legislativo, o sistema adotado é o proporcional — a representação política é distribuída proporcionalmente entre os partidos concorrentes. Neste caso seguese a seguinte regra: 1) Calcula-se o número de votos válidos para o cargo em disputa; 2) Calcula-se o Quociente Eleitoral, que é o resultado da divisão dos votos válidos pelo número de vagas disponíveis para aquele cargo; 3) Calcula-se o Quociente Partidário, que é o resultado da divisão da soma dos votos válidos de cada partido político (ou coligação) pelo Quociente Eleitoral. O resultado indica o número de vagas que o partido (ou coligação) obteve. As vagas são preenchidas pelos candidatos que obtiveram o maior número de votos dentro do partido ou coligação. Caso o resultado for menor que 1, o partido (ou coligação) não elegerá candidato nenhum; 4) Caso ainda haja vagas não preenchidas pela aplicação do Quociente Partidário, elas serão distribuídas da seguinte forma: a) Só participam desta distribuição os partidos ou as coligações que obtiveram o Quociente Eleitoral, segundo o item 3; b) Divide-se o número de votos válidos atribuídos a cada partido ou coligação pelo número de vagas já obtidas mais 1 (um), cabendo a vaga ao partido ou à coligação que obtiver a maior média;

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c) Repete-se a operação até a total distribuição das vagas; d) A vaga será preenchida obedecendo a ordem de votação do partido ou coligação dos seus candidatos, entre aqueles que não obtiveram a vaga pelo Quociente Partidário. Principalmente em relação às eleições para deputado (federal e estadual), o número de votos que o candidato precisa ter para ser eleito é tão grande, já que o colégio eleitoral é todo o Estado, que ele fatalmente precisará fazer uma grande e dispendiosa campanha, com um forte apoio financeiro e divulgação em grandes veículos de comunicação. Dessa forma, o que


complexo e ineficiente. o foram. Usando esta lógica, muitos partidos de pequena expressão procuram filiar artistas somente para alavancar a legenda e dessa forma conseguir mais cadeiras no Legislativo.

ocorre na prática é que, ao invés de estar comprometido com os seus eleitores, o candidato estará mais atrelado aos interesses dos financiadores de sua campanha. A maioria dos eleitores acha que vota em pessoas e não em partidos, o que não é verdadeiro. Um caso muito comentado por ser bem ilustrativo foi o do falecido deputado Enéas Carneiro (PRSP) nas eleições de 2002, quando o seu partido era o Prona. Na época, ele foi eleito deputado federal com cerca de 1,8 milhão de votos, o que fez com que o seu partido tivesse direito a seis cadeiras na Câmara pelo cálculo do Quociente Eleitoral. Assim, um candidato do Prona com cerca de 300 votos foi eleito, enquanto que candidatos com mais de 100 mil votos de outros partidos não

VOTO DISTRITAL É dentro deste contexto que florece a idéia do voto distrital. O voto distrital puro é aquele em que é eleito um representante de cada distrito, ganha quem tiver o maior número de votos. Há também o voto distrital misto, onde os eleitores de cada distrito têm direito a dois votos: um nominal e outro na legenda — dependendo do número de votos que o partido recebeu, ele terá direito a determinado número de cadeiras. O partido monta então uma lista com nomes que preencherão estas vagas. Veja alguns países que adotaram o sistema de voto distrital: Alemanha O sistema adotado é o distrital misto. Os deputados são eleitos pelos distritos, ganhando aquele com maior número de votos. Mas os eleitores também votam em partidos, que seria o voto na legenda. Este voto das listas, como é chamado, serve para calcular o espaço a que cada partido terá direito no Parlamento. Cada partido monta uma lista com nomes de candidatos que gostaria de ver no Parlamento. Itália O país mudou o seu sistema de eleição em 1993. Até então, o voto era proporcional, como no Brasil. Depois da reforma, o modelo adotado é baseado no sistema Alemão, mas com diferença nas listas dos partidos. Na Alemanha, há uma lista nacional para cada partido, enquanto que na Itália, há uma lista para cada uma das 26 circunscrições em que os distritos são organizados. Estados Unidos Os Estados Unidos, em que o Brasil se inspirou para montar o seu sistema político, utiliza o voto distrital puro. As unidades federativas são divididas em distritos com cerca de 100 mil habitantes cada. Para cada distrito, os partidos registram um candidato, eleito de maneira majoritária pela população daquele distrito. A Câmara dos Representantes possui 435 membros. Cada distrito elege um deputado por maioria simples. Os parlamentares têm mandato de dois anos. Reino Unido Os 651 membros do Parlamento britânico são eleitos por voto distrital com maioria simples, como nos Estados Unidos. A diferença é que o mandato é maior, de cinco anos, e pode ser interrompido se o primeiro-ministro convocar eleições. França O sistema de voto é o distrital puro, mas há dois turnos na eleição dos deputados. No primeiro, ganha quem conseguir mais da metade dos votos, desde que a votação seja equivalente a pelo menos 25% do eleitorado inscrito. No segundo turno, só concorre quem teve pelo menos 10% dos votos no primeiro e ganha o mais votado.

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Principais fatos da história do voto no Brasil

A

primeira eleição que se tem notícia no Brasil ocorreu em 1532, para eleger o Conselho Municipal da Vila de São Vicente. Neste período, as únicas eleições eram para escolher as governanças locais. Com o crescimento econômico do País, as pressões populares passaram a exigir uma participação mais efetiva de representantes brasileiros nas decisões da Corte. Assim, em 1821 foram realizadas eleições gerais para escolher os deputados que iriam representar o Brasil nas Cortes de Lisboa. Essas eleições se arrastaram por vários meses, principalmente pelas suas inúmeras formalidades, e algumas províncias sequer chegaram a eleger seus deputados. A primeira lei eleitoral no Brasil data de 3 de janeiro de 1822 e foi assinada pelo então príncipe regente D. Pedro de Alcântara, que convocou eleições para a Assembléia Geral Consti-

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tuinte e Legislativa, formada pelos deputados das províncias. A eleição se deu em dois graus. Não votavam em primeiro grau os que recebessem salários e soldos e para a eleição de segundo grau, exigia-se "decente subsistência por emprego, indústria ou bens". O cálculo do número de eleitores era feita a partir do número de fogos da localidade. Por fogo, entendia-se a casa, ou parte dela, em que habitasse independentemente uma pessoa ou família, de maneira que em uma mesma edificação poderia se ter dois ou mais fogos. Após a Independência, em 25 de março de 1824, D. Pedro I outorgou a primeira Constituição brasileira, que estabeleceu que o Poder Legislativo seria exercido pela Assembléia Geral, formada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, determinou eleições indiretas e em dois graus e estabeleceu o voto censitário e a verificação dos poderes.


Reprodução

Meses antes da Independência, o então príncipe regente D. Pedro de Alcântara assinou a primeira lei eleitoral no Brasil, convocando eleições para a Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, formada por deputados das províncias.

Reprodução

A primeira lei eleitoral do Império, de 1824, manda proceder à eleição dos deputados e senadores da Assembléia Geral Legislativa e dos membros dos Conselhos Gerais das Províncias. A votação foi feita por lista, assinada pelos votantes, que continha tantos nomes quantos fossem os eleitores que a paróquia deveria dar. O voto era obrigatório e no caso de algum impedimento, o eleitor enviava o seu procurador com a sua lista assinada e reconhecida por tabelião. O voto por procuração só deixou de existir em 1842, época em que se estabeleceram as juntas de alistamento, formadas por um juiz de paz do distrito (que era o presidente), um pároco e um fiscal.

Em janeiro de 1881, D. Pedro II sanciona a Lei Saraiva. As eleições passam a ser diretas, com o fim do colégio eleitoral censitário.

Fatos relevantes do Império 19 de agosto de 1846. A Assembléia Geral Legislativa decreta e o Imperador D. Pedro II sanciona a Carta de Lei nº 387, que "regula a

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Título de 1933 Primeiro título

Título de 1881

maneira de proceder as eleições de Senadores, Deputados, Membros das Assembléias Provínciais, Juízes de Paz e Câmaras Municipais". Também conhecida como "Lei regulamentar das eleições do Império do Brasil", é a primeira sobre eleições, que não é originária do governo Imperial, sendo elaborada em cumprimento de dispositivo constitucional. Regulamenta as eleições do Império do Brasil assegurando, até quanto possível, a regularidade no registro e qualificação dos eleitores. Esta lei, revogando todas as anteriores, condensa as instruções para eleições provinciais e municipais e estabelece, pela primeira vez, uma data para eleições simultâneas em todo o Império. Foi um grande avanço no sentido da legitimidade da representação e uma tentativa da Câmara dos Deputados para moralizar o sufrágio popular. Continua o sistema indireto (colégio eleitoral censitário) ou a denominada "eleição de dois graus". Estas instruções vão perdurar até a Nona Legislatura – 1853/1856. Com esta lei dá-se o restabelecimento das incompa-

Urna em Madeira Brasil Império 1822 - 1889

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tibilidades, a restituição ao Senado do direito de verificação de poderes de seus membros, os recursos de qualificação aos Tribunais de Relação (início da Justiça Eleitoral) e a qualificação dos elegíveis. As Leis dos Círculos 19 de setembro de 1855. O decreto elaborado pela Assembléia Geral Legislativa e assinado pelo Imperador D. Pedro II, ficou conhecido como Lei dos Círculos, porque estabelecia o voto por distrito ou Círculos Eleitorais. Era escolhido um só representante para cada distrito eleitoral e eleição também dos seus suplentes, interiorizando as eleições e dando força às influências locais. Chamado de voto distrital puro, o sistema esperava melhorar a representação urbana. Continua o sistema indireto (colégio eleitoral censitário) ou a denominada "eleição de dois graus". Realizadas as eleições, essa lei sofreu severas críticas, entre elas a de ter contribuído para o enfraquecimento dos partidos. Por isso, antes de novo pleito, foi revogada.

Urna em Madeira Brasil República

Urna de madeira do início do século 20


Título de 1945

Título de 1978

18 de agosto de 1860. A Assembléia Geral Legislativa decreta e o Imperador D. Pedro II sanciona o Decreto nº 1.082, que "altera a Carta de Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846, e o Decreto nº 842, de 19 de setembro de 1855, sobre eleições". Chamada de a "Segunda Lei dos Círculos", ela estabeleceu a eleição de três deputados por distrito eleitoral e exigiu que as autoridades se descompatibilizassem de seus cargos seis meses antes dos pleitos. Quinze anos depois, ela foi substituída pela Lei do Terço, que determinou que as eleições para deputados à Assembléia Geral e para membros das assembléias legislativas fossem realizadas por províncias. A Lei do Terço determinava, ainda, que os partidos ou coligações vitoriosos preenchessem dois terços dos cargos, e o restante fosse ocupado por partidos minoritários. 9 de janeiro de 1881. A Assembléia Geral Legislativa decreta e o Imperador D. Pedro II sanciona a Carta de Lei nº 3.029, que reforma a legislação eleitoral. É a última reforma elei-

Urna de votação de madeira nas eleições de 1932, 1934 e 1937 Urna de

Votação em lona branca de 1950 a 1974

Título de 1986

toral do Império e fica conhecida como "Lei Saraiva". Esta lei vai perdurar até a 20ª Legislatura – 1886/1889. As nomeações dos senadores e deputados para a Assembléia Geral Legislativa, membros das Assembléias Legislativas Provinciais e quaisquer autoridades eletivas passam a ser feitas através de eleições diretas, antes escolhidos por colégio eleitoral censitário. O voto é secreto e o alistamento preparado pela Justiça. A lei regulamenta as imunidades, impõe penalidades rigorosas contra as fraudes eleitorais e expande o voto aos naturalizados, católicos e libertos (escravos livres). Passam a tomar parte nas eleições todos os cidadãos brasileiros alistados eleitores e que se acharem no gozo dos direitos políticos. É o retorno às eleições distritais com as províncias sendo divididas em tantos distritos eleitorais quantos forem os seus deputados à Assembléia Geral Legislativa, restabelecendo os distritos com um só deputado. O Deputado Rui Barbosa de Oliveira (BA) é um dos destaques na elaboração desta lei.

Urna de Votação em lona ou nylon marrom a partir de 1974

Urna Eletrônica – Sistema de Votação Informatizado

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O deputado Rui Barbosa de Oliveira é um dos destaques na elaboração da Lei Saraiva

ral. Um dos primeiros atos do governo provisório foi a criação de uma comissão de reforma da legislação eleitoral, cujo trabalho resultou no primeiro Código Eleitoral do Brasil. O Código Eleitoral de 1932 criou a Justiça Eleitoral, que passou a ser responsável por todos os trabalhos eleitorais — alistamento, organização das mesas de votação, apuração dos votos, reconhecimento e proclamação dos eleitos. Além disso, regulou em todo o País as eleições federais, estaduais e municipais. O código introduziu o voto secreto, o voto feminino e o sistema de representação proporcional, em dois turnos simultâneos. Pela primeira vez, a legislação eleitoral fez referência aos partidos políticos, mas ainda era admitida a candidatura avulsa. O interessante é que esse código já previa o uso de uma "máquina de votar", o que só se efetivaria com a urna eletrônica, nas eleições municipais de 1996.

A República A Proclamação da República em 1889 inaugurou um novo período da legislação eleitoral, que passou a inspirar-se no modelo norte-americano. A primeira inovação eleitoral trazida pela República foi a eliminação do "censo pecuniário" ou "voto censitário". Em 1890, o Marechal Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório, promulgou o regulamento eleitoral organizado por Aristides Lobo, o Decreto 200-A, considerado a primeira lei eleitoral da República e que tratava unicamente da qualificação dos eleitores. Porém, faltava ainda uma lei que presidisse a eleição dos constituintes, marcada para setembro desse mesmo ano. Em 23 de junho de 1890, ela foi publicada e ficou conhecida como "Regulamento Alvim", em referência ao ministro e secretário de Estado dos Negócios do Interior, José Cesário de Faria Alvim, que a assinou. Justiça Eleitoral Em 1916, o presidente Wenceslau Bráz, preocupado com a (falta de) seriedade do processo eleitoral, sancionou a Lei 3.139, que entregou ao Poder Judiciário o preparo do alistamento eleitoral. Por confiar ao Judiciário o papel de principal executor das leis eleitorais, muitos consideram essa atitude o ponto de partida para a criação da Justiça Eleitoral, que só viria a acontecer em 1932. A Revolução de 1930 tinha como um dos princípios a moralização do sistema eleito-

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O Marechal Deodoro da Fonseca promulgou o Regulamento Alvim em 1890



Os eleitos pelo voto distrital refletem o DNA do distrito que os elegeu. Como células, os eleitores os escolhem para resolver os problemas específicos a seus distritos. A relação eleitor-eleito é nova, e muito mais produtiva.



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