O que foi 32? Paulo Bomfim Foi a soma dos sonhos e do sacrifício de um povo, a confraternização de raças e condições sociais no batismo das trincheiras; o esforço das indústrias, o despreendimento do comércio, a grandeza de uma causa, a generosidade dos moços, a participação dos cabelos brancos, o entusiasmo das crianças, a força que vem da mulher-terra paulista, o verbo dos poetas e dos tribunos, dos jornalistas e dos sacerdotes; a sacralidade da lei, o fuzil ao lado do livro, a trincheira continuação da escola, a caserna dependência do lar, o campo de batalha, sementeira da justiça! O que foi 32? Foi bandeira que voltou do passado, passado que se transformou em bandeira, bênção de Anchieta e de Frei Galvão, vigília de João Ramalho, grito de guerra de Tibiriçá, inspiração de Bartira, presença dos que partiram, convocação do amanhã, cocar-capacete de aço, gibão que virou farda cáqui, canoa monçoeira transformada em trem blindado, mortos e vivos marchando, igreja, escola, oficina em batalhões rezando a mesma oração, prece de amor e esperança, holocausto e clarinada, asa de glória gravando no sangue das gerações: Enquanto houver injustiça, Enquanto houver sofrimento, Enquanto a terra chorar, Enquanto houver pensamento, Enquanto a história falar, Enquanto existir beleza, Enquanto florir paixão, Enquanto o sonho for sonho, Enquanto o sangue for sangue, Enquanto existir saudade, Enquanto houver esperança, Enquanto os mortos velarem, É sempre 9 de julho! O poeta Paulo Bomfim é membro da Academia Paulista de Letras
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CARTA AO LEITOR Desde o início do segundo mandato do presidente Lula, quando foi anunciado o PAC - Programa de Aceleração do Crescimento, o empresariado e especialistas estão alertando sobre o risco de falta de energia. Recentemente, o presidente da Companhia Vale do Rio Doce, Roger Agnelli, afirmou que não há como a mineradora programar novos investimento após 2012, por conta da falta de horizontes na área de geração de energia elétrica. Outros setores estão prevendo um apagão mais cedo, entre 2009 e 2010. Na reportagem de capa, o professor José Goldemberg, um dos maiores especialistas em energia do País, diz acreditar em um apagão ainda no governo Lula, mas afirma que São Paulo será salvo pela biomassa, com a produção de energia térmica proveniente da queima de bagaço da cana-deaçúcar. Em relação ao anúncio do governo em apostar na energia nuclear, com a construção de Angra 3, o professor Goldemberg alerta que a iniciativa deverá sofrer muita resistência, dentro e fora do governo, com ações impetradas na Justiça e manifestações populares. Na sua opinião, o Brasil tem uma vocação para hidrelétricas e outras energias renováveis, como o etanol - o País já é chamado de "Arábia Saudita verde". Os 75 anos da Revolução Constitucionalista é outro destaque desta edição. No dia 9 de julho de 1932, São Paulo pegou em armas para defender a democracia. Em 1930, o presidente Washington Luís foi deposto, assumiu o poder uma junta governativa, liderada por Getúlio Vargas, que nomeou interventores em todos os Estados. Desde o início de 1932, manifestações em São Paulo exigiam a autonomia do Estado e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. A Associação Comercial de São Paulo teve papel fundamental no movimento. A entidade foi responsável pelo controle de receitas e despesas da revolução, forneceu apoio material e logístico. Já o ex-ministro do Planejamento Antonio Delfim Netto faz uma análise sobre o crescimento econômico e o setor público. Na sua opinião, o Brasil vive hoje o verdadeiro milagre econômico, não por apresentar um extraordinário crescimento, mas por estar crescendo sem motivos concretos. Trazendo análises comparativas de indicadores internacionais, Delfim Netto mostra que a posição brasileira não é confortável: temos a maior carga tributária para países com renda per capita semelhante, o Índice de Desenvolvimento Humamo (IDH) é muito baixo, tem havido uma violação crescente à propriedade física e intelectual e em construção de infraestrutura, a nossa posição é a 79ª, entre 125 países. O economista Ulisses Ruiz Gamboa, do Instituto Gastão Vidigal, da ACSP, mostra em seu artigo como foi realizado a reforma previdenciária no Chile, que teve início no governo do ditador Augusto Pinochet. Por essa razão, muitos setores da sociedade rejeitam a aplicação do modelo chileno por motivos puramente ideológicos, sem conhecê-lo profundamente.
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Reprodução
ÍNDICE Paulo Pampolin/Hype
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O Brasil será a Arábia Saudita verde? Entrevista
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Crescimento econômico e setor público Antonio Delfim Netto
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O legado do constitucionalismo, no Jubileu de Diamante Renato Pompeu
Alex Ribeiro/DC
Energia e meio ambiente no Brasil José Goldemberg e Oswaldo Lucon
Reprodução
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9 de julho de 1932: o dia em que São Paulo lutou pela democracia
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Um herói que saiu das fileiras da ACSP
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Agliberto Lima/DC
Reforma previdenciária chilena: Impactos macroeconômicos e lições para o caso brasileiro Ulisses Ruiz de Gamboa
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Bento XVI no Brasil de todos os santos Domingos Zamagna
Para derrotar Hitler, EUA ocuparam o Iraque Rodrigo Garcia Reprodução
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Tesouro histórico soterrado Cássio Schubsky
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Revolução de 32 e a democracia em perigo Ives Gandra da Silva Martins
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O Brasil será a Arábia Saudita verde?
O
professor José Goldemberg é um dos maiores especialistas em energia no Brasil. Foi secretário de Ciências e Tecnologia e ministro da Educação no governo Collor e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo no governo de Geraldo Alckmin. Atualmente, ele coordena a Comissão Especial de Bioenergia na Secretaria de Desenvolvimento do governo paulista. O professor Goldemberg visitou a Associação Comercial de São Paulo e concedeu uma entrevista exclusiva para a revista Digesto Econômico. Na sua opinião, se nada for feito agora, ainda no governo Lula teremos um novo apagão, agora de energia, como em 2001. Em relação à energia nuclear, o professor prevê muitas dificuldades na construção de Angra 3, por conta dos protestos e das ações que devem ser impetradas na Justiça. Digesto Econômico - Temos assistido a um crescimento da economia, não tanto quanto nos outros países em desenvolvimento, mas um crescimento. Haverá energia para sustentar isso? José Goldemberg - Para sustentar o crescimento, seria preciso que a produção de energia crescesse de 3 a 4 milhões de kilowatts por ano. O sistema
O Brasil planta 3 milhões de hectares de cana-de-açúcar, a maioria no Estado de São Paulo.
Epitácio Pessoa/AE
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brasileiro atual é 100 milhões de kilowatts, precisaria crescer de 3% a 4 % ao ano. E do jeito que as coisas vão, existe um grande ceticismo do que vai ocorrer, porque têm os problemas ambientais travando parte das discussões, mas não são só eles. Eu acho até que os problemas ambientais têm sido usados como desculpa para não fazer certas coisas.
Eu acho que vai ter apagão sim. Não no Estado de São Paulo, pois o bagaço de cana vai nos salvar."
José Goldemberg
Paulo Pampolin/Hype
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O que há é que a incerteza regulatória é grande e os investidores se perdem. DE - O senhor avalia que o País vai ter um novo apagão, como o de 2001? JG - Eu acho que vai ter apagão sim. Não no Estado de São Paulo, pois o bagaço de cana vai nos salvar. Mas no resto do Brasil, acho que vai ter problemas em três, talvez quatro anos. O governo Lula vai tentar empurrar para frente. Mas para isso, alguma coisa tem de ser feita rapidamente. O governo precisa destravar estas coisas que estão segurando os investimentos na área de energia. DE - O País já virou exportador de usinas de etanol. A Dedini, de Piracicaba, tem vendido tecnologia para o mundo todo e não consegue dar conta dos pedidos. Criou-se até o "turismo da cana", em que investidores visitam usinas e ficam sabendo que 80% da produção já está vendida. Eles chamam o Brasil de Arábia Saudita verde. Qual a sua opinião sobre isso? JG - Há um componente de exagero nesta imagem que fazem do Brasil. A produção brasileira de etanol é aproximadamente igual ao dos Estados Unidos, só que lá eles usam o etanol de milho, que não é tão bom quanto o etanol da cana-de-açúcar. Somando as duas produções, o etanol hoje substitui apenas 3% da gasolina no mundo. Mas aqui no Brasil é diferente, o etanol substitui 40% da gasolina, com a vantagem da baixa emissão de gás poluente, combatendo o efeito estufa. Estamos servindo de exemplo, tanto pelo combate ao aquecimento global, quanto pelo modelo eficiente que criamos, com preços baixos. A grande pergunta que se faz é a seguinte: esses 3% podem subir para quanto? E aí temos de olhar os números. A produção de cana-deaçúcar voltada para a etanol no Brasil é de aproximadamente 3 milhões de hectares, a maioria em São Paulo. Para que o Brasil se torne uma Arábia Saudita do etanol, precisaria aumentar muito essa área; e dá para aumentar, mas temos limitações. Aqui em São Paulo já se está usando um bocado de terra para a cana-de-açúcar. Outros Estados poderiam também produzir, mas alguns têm limitações. Eu acredito que o máximo que se poderá conseguir no Brasil é aumentar a produção para um fator 10, ou seja, aumentar em dez vezes a produção. DE - Atualmente, usamos 80% do etanol produzido. Com um fator 10 significa que sobraria para a exportação? JG - Sobraria. Ao invés de usar 3 milhões de hectares para a produção do etanol, o máximo que eu vejo aqui no Brasil é aumentar isso para 20 a 30 milhões. Isso não é nenhuma Arábia Saudita. O que vai acontecer com isso é que a gente vai substituir talvez 10% a 20% da gasolina no mundo. Este é um
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cenário que poderia ocorrer em 10 anos. DE – Além de São Paulo, as terras viáveis seriam de onde? JG - Já estão ocorrendo licitações para Minas, Goiás e Mato Grosso. São Paulo se tornou o grande centro produtor, pois aqui temos condições privilegiadas, já que a cana-de-açúcar cresce sem irrigação. Quando se começa a colocar irrigação, como ocorre no Nordeste, os custos passam a ficar mais altos. DE - E a qualidade da cana do Nordeste é a mesma? JG - A qualidade é a mesma, mas o rendimento por hectare é menor, a produtividade é mais baixa. Então, essa imagem de Arábia Saudita verde tem suas limitações. A gasolina representa 1/3 do petróleo produzido mundialmente. O mundo consome 80 milhões de barris para a gasolina, outro 1/3 vai para o óleo diesel e 1/3 para outros derivados. A expansão previsível e otimista do álcool é substituir 10% da gasolina, e não 10% do petróleo. DE - O Proinfa, programa do governo federal para o uso de fontes alternativas de energia, criado em 2002, ainda não decolou. O Ministério das Minas e Energia admite que os projetos estão bastante atrasados. Qual a sua opinião em relação ao Proinfa? JG - O Proinfa é uma boa iniciativa. Ele é baseado em experiências bem-sucedidas de outros países, sobretudo da Alemanha. A idéia do programa é a seguinte: o governo decide que um determinado tipo de energia alternativa é boa, então ele se compromete a comprar tudo o que for produzido. Na Alemanha, eles chamam isso de "Feed Law". Lá, se alguém decidir instalar máquinas para produção de energia alternativa, o governo banca. No Brasil não existe desta forma, aqui o governo compra até 1 milhão de kilowatts. Os projetos estão atrasados, pois o governo brasileiro tem a mania de regulamentar detalhes. Os burocratas lá do ministério fazem alguns cálculos e dizem que compram uma determinada quantidade de energia e estipulam o preço, só que o empreendedor não tem essa mesma visão. O governo diz então que a iniciativa privada está esperando a situação se agravar para começar a investir... o que o governo quer que o setor privado faça? DE - O governo ameaça trocar parte da matriz por energia nuclear, como o senhor vê isso? JG - Essa é uma ameaça do tipo que a gente faz com crianças, para colocar medo. Mesmo que o governo decida abraçar a opção nuclear em grande escala, por exemplo consolidando a construção de Angra-3 amanhã, levaria de 7 a 8 anos para ficar pronta, isso se a promotoria pública não entrar com uma ação contra essa iniciativa, que é uma tra-
dição no mundo todo, não só do Brasil. Em todo o mundo, a construção de usinas nucleares tem sido atrasada por ações populares. DE - Mas nós temos condições para construir hidrelétricas em número suficiente? JG - Foi usado no Brasil apenas 30% do potencial de hidrelétricas. Naturalmente, os melhores lugares já foram ocupados. Em São Paulo não há mais nenhum grande aproveitamento. Então, as opções agora são as seguintes: em primeiro lugar, uma maior quantidade de usinas pequenas e médias. As pequenas a gente chama de PCH (Pequenas Centrais Hidrelétricas), cada uma delas não fornece muita energia, e aí é preciso muitas. Mas do ponto de vista do empresário isso até que é bom, porque o empreendedor pode fazer uma PCH sem grandes investimentos. O maior problema está nas obras médias, que não estão andando por motivos que não são somente ambientais, mas pela falta de confiança dos investidores no marco regulatório. Os grandes consumidores, que são empresas como a Votorantim e outras, estes resolveram a vida deles. Você acredita que 30% da energia é comprada diretamente da fonte, não vai para o mercado, não vai para leilão, são contratos cativos e são baratos? O que vai para os leilões é energia para o público e aí eles ficam inseguros acerca do preço, por mais que o governo tenha se esforçado.
Dida Sampaio/AE
DE - Como o senhor avalia a política energética do atual governo? JG - Eu acho que esse modelo que o governo Lula tentou implementar, ele não vai muito bem, mas fica claro o seguinte: o governo Fernando Henrique não conseguiu completar o processo de privatização, então acabou ficando uma coisa híbrida. O que foi privatizado no governo Fernando Henrique foi a distribuição, todas as estatais permaneceram. Há um claro movimento de mudança estatizante no atual governo e o setor privado então fica inseguro. O próprio presidente Lula declarou que gostaria que a Eletrobrás fosse como a Petrobras. Com isso, o setor privado fica mais arredio e eu acredito que no começo do governo, o presidente Lula pensou seriamente em desfazer algumas privatizações, mas optou por focar na segurança geral de todos os contratos firmados. Mas na prática eu gostaria, e acho que muitos concordam, de uma grande presença estatal nessa área, como é no petróleo, só que não há dinheiro para isso. Passaram a querer controlar o setor, enfraquecendo as agências reguladoras para tentar ter mais poder de intervenção. E isso acaba resultando na desconfiança do empresário. DE - Além da desconfiança, também há problemas ambientais. Como o senhor vê esta questão? JG - Os problemas ambientais existem, mas a experiência que eu ganhei na Secretaria de Meio AmUsineiro faz queimadas para limpar a terra, poluindo o ar. Muitos também queimam o bagaço, ao invés de usá-lo na geração de energia.
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biente daqui de São Paulo mostra que não se deve ter posições "xiitas". O caso do Rodoanel, por exemplo. Do ponto de vista ambiental é um trecho complicado, porque tem uma população enorme morando lá perto, a energia está lá, é perto dos mananciais e tem aldeias indígenas. Por tudo isso, a obra vai ficar 20% mais cara, mas é o custo a ser pago pela sociedade. O setor privado resiste muito aos aumentos de custos das exigências ambientais. É preciso ser claro: ou paga ou não sai. No governo federal ainda há um outro problema. Muitos ambientalistas, que foram encorajados a vida toda a serem do contra, agora fazem parte do governo e estão no exercício da atividade de licenciamento, e naturalmente não sabem lidar com essas situações. DE - Há recursos próprios para fazer as hidrelétricas ou será necessário recorrer ao Banco Mundial, que tem uma política muito rigorosa em relação ao meio ambiente? JG - Eu acho que é inevitável recorrer ao BID e ao Banco Mundial, pois são investimentos muito grandes e que demoram para terem um retorno. Não há o hábito aqui no Brasil de investimentos que retornam em 10 ou 20 anos. Agora, com a situação econômica melhorando, já há empréstimos mais atraentes. Antigamente, não se conseguia empréstimos. Em relação ao Banco Mundial, eles não são "xiitas" na consideração ambiental, mas são rigorosos, vi
O Brasil tem vocação para hidrelétricas, uma energia limpa e renovável. Na foto, Itaipu.
André Dusek/AE
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muitos projetos serem devolvidos. O que acontece é que dentro das organizações não-governamentais têm grupos muitos radicais. Essas brincadeiras que fazem acerca dos bagres, do problema dos peixes, isso tem em tudo quanto é hidrelétrica do mundo. As pessoas aprenderam a fazer hidrelétrica. DE - Quais são outros problemas que atrapalham o crescimento energético do País? JG - Existem 10 milhões de kilowatts em construção espalhados pelo Brasil. O governo precisaria de uma "Swat" para destravar esses projetos. Os obstáculos para esses 10 milhões de kilowatts não são apenas de natureza ambiental, há outros problemas burocráticos. Às vezes é o empreendedor que está interessado, às vezes ele não está interessado ou então ele não tinha cacife para conduzir uma obra daquele tamanho, e ele vai diminuir o ritmo. Isso inclui muitas obras do Proinfra, que são subsidiadas pelo governo. Porque existe uma figura nesses setores de energia no Brasil que é a do despachante. Ele pega uma autorização para uma usina, mas ele não tem dinheiro e depois ele vende aquela autorização para alguém. Isso ocorreu com usinas de álcool. Eu me lembro de um cidadão que apareceu lá e colocou, sem licenciar, um pedido de uma usina de álcool para construir. E há uma exigência burocrática, que diz que no momento que entra um pedido, ele é obrigado a publicar em três
Celso junior/AE
jornais importantes. São uns 50 mil reais e ele estava reclamando que não tinha dinheiro para pagar. Eu falei: "Escuta, qual é o problema? Essa usina vai custar, no mínimo, 100 milhões de reais e o senhor não tem 50 mil para publicação em jornais?" Ele falou: "Não. Eu queria a licença para vender".
DE - Como o senhor avalia a questão do gás natural? JG - Eu me lembro que, quando eu estava na Comgás, há muitos anos, a Petrobras naquela época não dava importância para gás, não quiseram autorizar a construção de um gasoduto para trazer gás encanado para São Paulo. Para a Comgás de São Paulo foi uma luta e a razão é muito simples: eles achavam que o gás não era importante. Para a Petrobras, a prioridade era o petróleo... e queimavam gás, são os flares. Agora diminuiu um pouco, mas continuam queimando. Com esse problema com a Bolívia, ficou uma situação difícil e a solução disso é naturalmente cara. Pensa-se em importar o gás, há navios especiais que transportam gás liqüefeito, mas é preciso baixar a temperatura e usar pressão, é um processo complicado. Esta é uma opção, mas há outra que eu acho que inclusive vai salvar São Paulo da crise energética, que é a produção da eletricidade a partir do bagaço da cana. Como o programa do etanol está A energia eólica, que se utiliza da força dos ventos, ainda se expandindo muito, há um excedente é pouco usada no País. Muitos projetos estão no Proinfa, de bagaço, que está lá na usina e tem programa do governo que ainda não decolou. custo zero. O usineiro usa o bagaço para gerar energia. Muitos estão fazendo. É claro que no começo não deu muito certo, por um motivo cultural. Aqui no Brasil, as usinas mas. Um deles é o bagaço da cana e ele está sensível eram empresas familiares, mas agora elas estão fiao fato de que 70% da cana hoje é queimada e isto cando mais profissionalizadas, estão colocando geestá criando problemas para as cidades vizinhas às rentes profissionais, e esse pessoal percebeu logo usinas. Então, o governador José Serra está prepaesta oportunidade. rado medidas governamentais, decretos ou leis para encorajar as usinas a produzirem energia térmiDE - Uma produção significativa de energia elétrica a ca. As questões técnicas são simples de se resolver. partir do bagaço da cana seria uma alternativa viável Atualmente, queima-se o bagaço para produzir vaainda no governo Lula? por na preparação do etanol. Se queimar em caldeiJG - O governo Lula ainda não acordou para isso, ras de alta pressão, tem suficiente vapor para tocar quem acordou foi o governo do Estado de São Pauum navio ou uma locomotiva, é uma tecnologia lo e a iniciativa está nas mãos do setor privado de que já existe. Alguns usineiros me procuraram e energia. Toda a produção do etanol também está disseram primeiro que queriam financiamento. Isnas mãos do setor privado. Como vocês sabem, sou so não é problema, pois o BNDES financia bem escoordenador de uma comissão de bioenergia do Este tipo de projeto. Mas na realidade, o que eles quetado de São Paulo, cuja função é propor medidas riam era uma redução na alíquota do ICMS e aí surque o governador adote para resolver os problegiu um problema regulatório. Então, o diabo está
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nas entrelinhas. Um outro problema surgiu com a companhia de eletricidade. O usineiro coloca uma caldeira para produzir eletricidade, que é transmitida por cabo até a porta da propriedade - é como nas casas, dentro é sua responsabilidade, do relógio para fora é da companhia de eletricidade. Mas esta não quer construir uma linha para carregar a eletricidade da porta da usina até os troncos, pois as usinas estão cada uma num canto. Este é um problema antigo e para resolvê-lo, alguém vai ter de pagar a conta e pode ser a população, com os custos embutidos nas tarifas. DE - Qual a sua opinião sobre os relatórios que estão sendo divulgados sobre aquecimento global? JG - O efeito é real, eu acho que o período de dúvidas já passou. Estes estudos estão sendo feitos desde 1988 e a probabilidade de que eles estejam errados é nula. O efeito existe, o que podemos agora é discutir a gravidade do cenário. Eu particularmente fiquei aborrecido com o nosso presidente, porque ele perdeu uma boa oportunidade de ajudar na discussão, na reunião do G8 na Alemanha. Eu acho que a situação dos Estados Unidos está evoluindo, vários Estados já se dissociaram da política federal. Lá, os Estados podem fazer mais coisas do que aqui. Por exemplo, o Estado da Califórnia decidiu que ele vai reduzir as emissões e ponto final. Eu perguntei isso aqui para pessoa da área jurídica, se o Estado de São Paulo tinha autoridade semelhante. A resposta foi não, que isso não tem valor internacional algum, ninguém vai comprar os créditos daqui de São Paulo. DE - Até que ponto essa pressão por medidas que minimizem os efeitos do aquecimento global irá prejudicar os países em desenvolvimento? JG - A China é o segundo emissor mundial de gases que causam o efeito estufa, a emissão da China é bem maior que a do Brasil. Os Estados Unidos emitem 23% e a China emite 17%, mas ela está crescendo rapidamente e dentro de cinco anos ela vai ultrapassar os Estados Unidos. A situação real é que estamos no mesmo barco e todo barco está afundando, e temos de trabalhar juntos. Mas o senado americano diz: nós não vamos tomar medidas sérias enquanto os países em desenvolvimento, como a China, não tomarem uma atitude. A China usa exatamente o mesmo argumento e o Lula é o advogado. Eles estão poluindo há mais tempo, mas o entendimento científico de que essas emissões causam danos é recente. Isso só se confirmou nos últimos 20 anos. Não era possível, em 1950, os Estados Unidos ou a Inglaterra não terem utilizado o carvão, com a preocupação ambiental. Então não adianta o argumento que o Lula usou — "vocês poluíram no passado, agora
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nós temos o direito de poluir". Nosso argumento devia ser outro, nós devemos ser compensados de alguma forma pelo estrago no planeta. Nós temos bons argumentos, pois estamos nos desenvolvendo de uma maneira muita mais limpa do que eles, nós utilizamos hidroelétrica, álcool e bagaço de cana. O nível do programa de etanol brasileiro é muito melhor do que qualquer outro que está sendo feito em outros países. Ou seja, nós já damos uma contribuição positiva. E essa idéia de que você só se desenvolve usando as tecnologias poluentes, que foram usadas no desenvolvimento nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha cem anos atrás, é incorreta; você pode se desenvolver mesmo porque a tecnologia evoluiu extraordinariamente. O presidente Lula deveria dizer: "Nós vamos conservar a floresta Amazônica, que é importante para todos, mas vocês terão de pagar por isso. DE - A presidência não possui uma assessoria científica para alertar o presidente sobre esses fatos, de forma que ele não perca essas oportunidades nos fóruns internacionais? JG - Eu e meus colegas nos perguntamos isso constantemente, eu acho que tem alguns componentes, como o Itamaraty com o Samuel Pinheiro Guimarães, que tem uma visão ideológica anti-americana notória e portanto, há sempre um jogo de nós contra eles. Então, o Brasil se associa automaticamente com os países em desenvolvimento. Há também outro componente ideológico, como a de Fidel Castro, de que a utilização do etanol vai provocar fome no mundo. Não é verdade. A razão pela qual existe fome no mundo é a distribuição inadequada de alimentos. Não é problema de suprimento, há excesso de alimento no mundo. Nós estamos usando 3 milhões de hectares, podemos chegar a 60 milhões, e não é isso que irá provocar fome no mundo. Eu acho que nós estamos vivendo uma situação difícil, porque o Brasil de fato poderia exercer um papel de liderança, mas esta posição que o País está tomando legitima o que a China está fazendo. Os chineses estão esgotando os recursos naturais numa velocidade muito grande e emitindo poluentes que não prejudicam somente eles, mas todo o planeta. DE - Os Estados Unidos estão procurando outras fontes de energia por razões além do meio ambiente, eles sabem que quando compram o petróleo do Oriente Médio, principalmente da Arábia Saudita, o dinheiro acaba nas escolas islâmicas que formam os terroristas. A maior aposta é no etanol de milho. JG - Os Estados Unidos colocaram uma sobretaxa para proteger os produtores de etanol de milho. Mas esta situação não vai perdurar muito tempo, porque a produção de milho é limitada, o mi-
lho é usado para alimentação e outros produtos. Eu acho que os Estados Unidos vão ter necessidade de mais etanol e essa taxa deve cair e vai haver então incentivo, um bom incentivo, uma pressão muito forte para aumentar a produção aqui. Há colegas meus que fizeram estimativas se seria possível expandir a produção de cana para um fator muito grande, um fator 30, por exemplo. O número que eu citei anteriormente é um número mais conservador, porque eu acho que aumentar mais de 10 vezes a produção vai acabar se chocando com problemas ambientais e até com outras prioridades. Além de que a terra não é tão boa quanto a de São Paulo. São Paulo não exige irrigação. Então eu acho que o esforço que nós devemos fazer aqui em São Paulo é o de aumentar a produtividade da cana nas áreas em que elas já se encontram, isso é possível fazer, e naturalmente a grande expectativa é uma tecnologia de segunda geração, que não usaria a cana, usaria qualquer coisa, como celulose. DE - Se o Lula souber que pode fazer álcool com celulose, acaba com os nossos jornais... JG - Nos EUA também estão dando uma grande ênfase a pesquisas nesta área. Estão sendo feitas pesquisas aqui em São Paulo também. A Fapesp tem um programa para produzir álcool de celulose. Os Estados Unidos estão muito otimistas de que vá funcionar rapidamente, mas eu não acredito. Essa tecnologia de etanol a partir da celulose é conhecida, há experiências de laboratório com
plantas pilotos, mas a gente não consegue ter uma idéia de custo real com planta piloto. DE - As outras alternativas de energia são irrevelantes? JG - Elas vão contribuir nas bases. A União Européia entendeu claramente a mensagem, ela decidiu que no ano de 2020, 20% da energia que eles consomem serão renováveis, englobando etanol, aquecimento solar e todas outras tecnologias que já estão aí no mercado. Existem dois problemas neste ponto, pois algumas dessas tecnologias são muito caras e as outras têm problemas de distribuição. Na Alemanha, o governo cria um mecanismo que encoraja o setor privado a entrar e aos poucos o governo vai saindo. Isso eles estão fazendo com várias tecnologias. O aquecimento de água com energia solar é uma ótima idéia, na China está pegando, mas aqui no Brasil, que é um país ensolarado, pouca gente faz. Em Israel, não se consegue o habite-se se não tiver o coletor solar. E o Kassab está introduzindo uma Lei na Câmara Municipal para incentivar este tipo de energia. Uma coisa que está pegando no Japão são as células fotovoltaicas. Eles cobrem o telhado com estas células, durante o dia a casa exporta eletricidade para a rede e de noite ela compra. Existem 20 a 30 mil casas no Japão que não pagam pela eletricidade. À medida que estas energias vão entrando, o preço vai caindo. Agora, nós ainda vamos precisar dos combustíveis fósseis por um bocado de tempo, mas a quantidade vai diminuir. Placas fotovoltaicas para captura de energia solar: tecnologia vem sendo usada no Japão, onde milhares de casas não pagam energia elétrica.
Biblelife.org
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ENERGIA E MEIO AMBIENTE NO BRASIL
I– Introdução: Energias renováveis e sustentabilidade
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Luludi/LUZ
E
nergia, ar e água são ingredientes essenciais à vida humana; nas sociedades primitivas seu custo era praticamente zero. A energia era obtida da lenha das florestas, para aquecimento e atividades domésticas, como cozinhar. Aos poucos, porém, o consumo de energia foi crescendo tanto que outras fontes se tornaram necessárias. Durante a Idade Média, a energia de cursos d’água e a dos ventos foi utilizada, mas em quantidades insuficientes para suprir as necessidades de populações crescentes, sobretudo em cidades. Após a Revolução Industrial, foi preciso usar mais carvão, petróleo e gás, que tem um custo elevado para a produção e transporte até os centros consumidores. O consumo de água também aumentou consideravelmente, tanto que se tornou necessário cobrar pelo seu uso para pagar os custos para sua purificação e transporte até os usuários. Se, e quando, uma colônia terrestre for instalada na Lua (que não tem atmosfera) será preciso pagar – e muito – pelo ar consumido pelos seres humanos, que terá de ser transportado até lá. No ano 2003, quando a população mundial era de 6,27 bilhões de habitantes, o consumo médio total de energia era de 1,69 toneladas equivalentes de petróleo (tep) "per capita". Uma tonelada de petróleo equivale a 10 milhões de quilocalorias (kcal) e o consumo diário médio de energia é 46.300 kcal por pessoa. Como comparação, vale a pena mencionar que 2.000 kcal é a energia que obtemos dos alimentos e que permite nos mantermos vivos e funcionando plenamente. O restante é usado em transpor-
Paulo Pampolin/Hype
José Goldemberg Coordenador da Comissão Especial de Bioenergia de São Paulo Helvio Romero/AE
Oswaldo Lucon Assessor técnico da Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo
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Tabela 1
te, gastos residenciais e industriais e perdas nos processos de transformação energética. Os padrões atuais de produção e consumo de energia são baseados nas fontes fósseis, o que gera emissões de poluentes locais, gases de efeito estufa e põem em risco o suprimento de longo prazo no planeta. É preciso mudar esses padrões, estimulando as energias renováveis e, nesse sentido, o Brasil apresenta uma condição bastante favorável em relação ao resto do mundo. A Tabela 1 mostra qual a contribuição percentual das diversas fontes de energia e a energia total consumida no Brasil e no mundo em 2003. Energias renováveis representavam 41,3% do consumo total no Brasil, ao passo que no mundo eram apenas 14,4%. O consumo médio de energia no Brasil é de 1,09 tep por habitante por dia, um pouco abaixo da média mundial. O consumo médio não representa adequadamente o que ocorre no mundo: em Bangladesh ele é 11 vezes menor e nos Estados Unidos 5 vezes maior. O consumo total de energia no Brasil em 2004 foi de cerca de 216 milhões de tep (Mtep), ou 2% do consumo mundial, que foi de 11.223 Mtep. O Brasil possui uma forte base hidráulica em sua matriz elétrica (Box 1). Contudo, o estímulo a outras fontes "modernas" de energias renováveis é ainda bastante incipiente, comparado à média mundial, apesar dos esforços feitos pelo governo federal através do Proinfa - Programa de Incentivo a Fontes Alternativas de Eletricidade. Além disso, o País é um paradigma mundial pelo seu vigoroso programa de biomassa moderna no setor de transportes baseado no etanol (Box 2). O consumo de lenha, biomassa tradicional, ainda é elevado.
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Entretanto, a posição relativamente confortável que o País possui em sua matriz energética pode ser colocada em risco, uma vez que há diferentes posicionamentos sobre os rumos que o País deve seguir nessa área. II – Retrospectiva da produção e consumo de energia no Brasil e no mundo Após a época do "milagre econômico", ocorreu no Brasil uma forte desaceleração nos crescimentos do Produto Interno Bruto (PIB), da produção de energia primária e do consumo de eletricidade. Nos últimos 30 anos, o aumento da produção de energia primária no Brasil tem acompanhado de perto o crescimento do PIB, mas o consumo de eletricidade tem aumentado mais rapidamente, devido à eletrificação crescente do País e à instalação de indústrias eletro-intensivas, como as de alumínio e outros tipos de metais. A Tabela 2 permite estabelecer comparações entre o Brasil, o mundo e os blocos dos países industrializados e aqueles em desenvolvimento. O modelo tradicional estabelecido de 1940 a 1960 colocou nas mãos do governo federal e governos estaduais, empresas estatais responsáveis pela grande parte da produção e distribuição de eletricidade, petróleo e gás. Petrobras, Eletrobrás e inúmeras empresas estaduais foram criadas para tal fim, inclusive o planejamento energético. Este modelo funcionou bem até meados da década de 80, mantendo baixos os custos da energia e promovendo com isso o desenvolvimento econômico, mas criou também sérios problemas, tais como:
Fabio Motta/AE
ELETRICIDADE
BOX 1
A
geração de eletricidade no Brasil cresceu a uma taxa média anual de 4,2% entre 1980 e 2002. Sempre a energia hidráulica foi dominante, uma vez que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo em recursos hídricos. Por outro lado, é modesta a contribuição do carvão, já que o País dispõe de poucas reservas e elas são de baixa qualidade. A capacidade instalada de hidroeletricidade é de cerca de 70.000 megawatts (MW, milhões de watts) e existem 433 usinas hidrelétricas em operação. Destas, 23 têm capacidade maior do que 1000 MW e representam mais de 70% da capacidade total instalada. Existe ainda um potencial considerável - cerca de 190.000 MW ainda não utilizadas, principalmente na região da Amazônia e, portanto distante dos grandes centros consumidores do Sudeste. O custo de produção de 1 kW em uma usina hidroelétrica é de aproximadamente US$ 1.000. O potencial para reforma e melhoria das grandes usinas construídas há mais de 20 anos (com capacidades instaladas especialmente entre 1000 e 8000 MW) é de 32.000 MW. Isso pode ser obtido a um custo de US$100-300 por kW instalado, sendo portanto significativo. Entre as outras tecnologias geradoras de eletricidade utilizadas no País estão a termonuclear, as termelétricas a gás natural e a óleo diesel, mas nenhuma delas contribui com uma porcentagem maior do que 7% do total. A introdução da biomassa, energia nuclear e gás natural reduziu a porcentagem da hidroeletricidade de 92% em 1995 para 83% em 2002. A geração de eletricidade com biomassa (resíduos vegetais e bagaço de cana) em 2002 provinha de 159 usinas, com uma capacidade instalada de 992 MW, ou 8% da energia elétrica de origem térmica do País. A grande maioria dessas usinas (com cerca de 952 MW) está localizada no Estado de São Paulo e usa bagaço de cana, um subproduto da produção de açúcar e álcool. O Proinfa, Programa de Incentivo a Fontes Alternativas de Eletricidade, foi instituído pela Lei nº 10.438/2002 no sentido de estimular a geração de eletricidade por fontes eólica, de biomassa (como bagaço de cana e gás de aterro) e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). A primeira fase do Proinfa estabelecia a geração de 3.300 MW mor meio dessas fontes. A segunda fase do programa estabelecia uma meta de 10% dessas mesmas fontes em toda a matriz elétrica do País em 20 anos, mas foi abandonada. A Lei 10.762/2003 revisou o Proinfa e não menciona a Fase 2.
Bagaço de cana na Usina Santa Cruz (RJ).
BIOMASSA
BOX 2
U
Divulgação
Hidrelétrica Itaipu Binacional: a maior usina do mundo.
ma característica particular do Brasil é o desenvolvimento industrial em grande escala e a aplicação das tecnologias de energia de biomassa. Bons exemplos disso são: a produção do etanol a partir da cana-de-açúcar, o carvão vegetal oriundo de plantações de eucaliptos, a co-geração de eletricidade do bagaço de cana e o uso da biomassa em indústrias de papel e celulose (cascas e resíduos de árvores, serragem, licor negro etc.). A utilização de biomassa no Brasil é resultado de uma combinação de fatores, incluindo a disponibilidade de recursos, mão-de-obra barata, rápida industrialização e urbanização e a experiência histórica com aplicações industriais dessa fonte de energia em grande escala. Cerca de 75% do álcool produzido é proveniente do caldo de cana (com rendimento próximo de 85 litros por tonelada de cana). Os restantes 25% têm origem no melaço resultante da produção de açúcar (rendimento próximo de 335 litros por tonelada de melaço). Em 2004, a produção total de bagaço ficou próxima de 110 milhões de toneladas, gerando um excedente de 8,2 milhões de toneladas para usos não energéticos. Os produtos energéticos resultantes da cana contribuíram com 13,5% da matriz energética brasileira de 2004. A utilização da lenha no Brasil é ainda significativa, principalmente nas carvoarias para produzir carvão vegetal e na cocção de alimentos nas residências. Em 2004, o setor residencial consumiu cerca de 26 milhões de toneladas de lenha, equivalentes a 29% da produção. O consumo tem crescido nos últimos anos devido ao aumento dos custos do seu substituto direto, o gás liquefeito de petróleo (GLP), vendido em botijões. Na produção de carvão vegetal foram consumidas cerca de 40 milhões de toneladas (44% da produção), em razão principalmente do forte crescimento da produção de ferrogusa e substituição do carvão mineral. Os restantes 17% representam consumos na agropecuária e demais setores da indústria. A lenha e carvão vegetal representaram 13,2% da matriz de 2004, resultado 0,3% acima de 2003.
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Tabela 2
1. Tarifas artificialmente baixas para eletricidade, como aliás foi feito com quase todas as tarifas de serviços públicos pelo governo federal, num esforço vão de controlar a inflação; 2. O uso político das empresas de produção e distribuição de gás e eletricidade, envolvendo gerenciamento incompetente e a construção de inúmeras usinas hidrelétricas para obter benefícios políticos, sem os recursos necessários para completálos, o que garantiria um mínimo de retorno econômico.
O sistema regulatório brasileiro, com a ANP (Agência Nacional de Petróleo) e a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) se tornou pouco realista e a rigor as duas agências deveriam ser substituídas por um órgão regulador único da área de energia como um todo.
Para enfrentar tais distorções, em meados da década de 90 foi promovida a desestatização parcial do sistema, seguindo o procedimento adotado anteriormente pelos países da Europa Ocidental.
No setor de petróleo, o controle continua basicamente nas mãos da Petrobras (apesar da presença de empresas multinacionais no setor) e os esforços se concentraram na busca da auto-suficiência na produção, explorando os recursos nas profundidades da plataforma continental brasileira (Box 3). Mais recentemente, a estatal passou também a valorizar o gás natural, antes um subproduto da exploração do petróleo que era lançado para a atmosfera em queimadores (flares). Em relação ao petróleo, o que se pode dizer é que a busca pela auto-suficiência é uma política tradicional do setor energético brasileiro, baseada na necessidade de reduzir gastos financeiros com importação. Entretanto, à medida que o problema da importação perdeu importância graças à grande produção interna de petróleo, é apropriado considerar outros fatos. O investimento em petróleo consome boa parte da renda disponível no País e uma redução nesse investimento poderia liberar recursos para outros fins economicamente mais produtivos e que poderiam gerar produtos e serviços para exportação. Além disso, a auto-suficiência não é garantida no longo pra-
a) Desverticalização da produção/geração, transmissão e distribuição de energia; b) A introdução de competição na produção/geração, transmissão e distribuição de energia, bem como o livre acesso à rede; c) Adoção de agências reguladoras independentes e privatização das empresas públicas. Tradicionalmente, as projeções do governo tratam o setor do petróleo de forma independente do setor de eletricidade, mas esta tradição está sendo rompida devido ao fato de que o gás produzido ou importado pela Petrobras é um insumo importante, não só para usos residenciais, industriais e veiculares (onde combustíveis líquidos são dominantes), mas também para a produção de eletricidade.
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III. A auto-suficiência em petróleo e a questão do gás natural para o Brasil
Ricardo Stuckert/PR
Presidente Lula molha as mãos no petróleo extraído da plataforma P50, da Petrobras. Ao lado, obras do gasoduto Urucu-Manaus, com 662 km.
PETRÓLEO E GÁS NATURAL
BOX 3
A
s reservas provadas de petróleo no Brasil de 11.243 milhões de barris, equivalentes a cerca de 20 anos da atual produção, asseguram uma situação confortável para o País no curto e médio prazos. Para os países da OCDE as reservas equivalem a cerca de 10 anos da produção, enquanto que a média mundial é de 40 anos. As reservas provadas de gás natural, de 326,1 bilhões de m³ são 33% superiores às de 2003 e equivalem a 19 anos da atual produção. Para os países da OCDE as reservas equivalem a cerca 14 anos da produção, enquanto a média mundial é de 60 anos. O País atingiu a autosuficiência na produção de petróleo em 2006. Entre janeiro e setembro desse ano, a Petrobras produziu 1,763 milhão de barris por dia, volume 5% superior ao do ano anterior. A meta de produção é de 1,88 milhão de barris/dia. Contudo, as vendas internas de combustíveis só cresceram 2%. O País exporta 450 mil barris/dia de petróleo. Segundo a Agência Internacional de Energia, o consumo mundial de petróleo deve crescer 1,1% em 2006. A produção de gás natural foi de 46,5 milhões metros cúbicos por dia (Mm³/d) em 2004, montante 7,5% superior ao de 2003. As importações da Bolívia somaram 22,2 Mm³/d, montante 60% superior ao de 2003. Em 2004, o principal uso do gás natural continuou sendo no setor industrial, com 20,7 Mm³/d e crescimento substancial de 13,7%. O crescimento do uso na cogeração de energia elétrica foi também significativo, já re-
Euzivaldo Queiroz/AE
presentando um terço do uso na geração. O uso de gás natural no transporte veicular tem também crescido muito. O gás natural contribuiu com 9,4% da matriz energética brasileira de 2005, contra 3,3% em 1995. Em 2003 o governo adotou uma política de incentivo ao consumo de gás natural, visando ocupar a capacidade do gasoduto Bolívia-Brasil e escoar o gás da Bacia de Campos. O energético era bastante atrativo por sua eficiência, menores emissões e preços atrativos. Contudo, em 2006 a Bolívia decidiu nacionalizar (isto é, estatizar) o setor de gás, revendo sua política de preços e causando instabilidades no mercado brasileiro. O preço atual do gás natural corresponde a 56% do preço do óleo combustível, mas essa relação deve passar para 80% (um aumento de 42%), segundo a Empresa de Pesquisa Energética. A Petrobras busca uma saída na Bacia de Santos, onde deverá investir US$18 bilhões em dez anos.
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Tabela 3
gás natural liquefeito da Argélia, Trinidad-Tobago e outros países seriam uma opção a analisar, mas que também têm custos consideráveis. O Brasil depende e dependerá por muito tempo de petróleo e gás e precisa buscar alternativas que reduzam seu consumo. IV. A reestruturação do setor elétrico nacional e seus equívocos
zo: a relação entre as reservas provadas e a produção atual é da ordem de 20 anos. Mesmo com novas descobertas, os investimentos são crescentes. A substituição da gasolina pelo álcool contribuiu significativamente para atingir a auto-suficiência em petróleo, objetivo perseguido há décadas. Vale dizer também que a auto-suficiência é física, não econômica: o nosso petróleo não é de boa qualidade e são necessárias ainda importações. A conta-petróleo do País apresentou até agosto de 2006 um déficit comercial de US$ 3,2 bilhões (só de óleo bruto, o déficit atingiu US$ 2,22 bilhões). O movimento reflete, principalmente o forte aumento dos preços do petróleo no mercado internacional, que têm anulado os efeitos do aumento da produção interna. Enquanto o Brasil pagou cerca de US$ 77,62 por barril que comprou no exterior em agosto, o barril exportado saiu pelo equivalente a US$ 57,44, o que dá uma diferença de US$ 20,18 por cada barril. A Petrobras, que controla 98% do petróleo refinado no Brasil, tem de importar óleo leve (mais caro) para processar nas suas refinarias. A auto-suficiência não se aplica ao gás natural, apesar de terem sido identificadas nos últimos anos grandes reservas de gás natural no Sudeste. Para viabilizar seu uso, grandes investimentos precisam ser feitos nos sistemas de transportes do produto (como gasodutos e compressores). Existe a possibilidade de usar e até mesmo ampliar o fornecimento de gás da Bolívia, onde a Petrobras já fez investimentos consideráveis, mas há dúvidas sobre a estratégia de importarmos gás desse país, considerando os recentes problemas políticos lá ocorridos. Além de maior volume, tem havido aumento nos preços da matéria-prima importada do país vizinho. As compras de gás natural da Bolívia atingiram US$ 986 milhões nos oito primeiros meses de 2006, com aumento de 63% sobre igual período de 2005. A definição do interesse na importação não é determinada apenas pelo risco de suprimento. Ela tem que ser tomada considerando aspectos econômicos ligados à energia e ao desenvolvimento dos dois países. No caso da Bolívia, é necessário considerar as opções econômicas do país e decidir se há possibilidade desta nação mesmo renunciar à sua exportação para o Brasil. A redução nas exportações de gás da Bolívia reduzirá a capacidade de seu desenvolvimento, ampliando tensões sociais e reduzindo sua disposição de importar produtos brasileiros. Alternativas como importar
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A desestatização do setor elétrico foi apenas parcialmente realizada: ocorreu em cerca 70% da capacidade de distribuição, mas em apenas 30% da geração. Isso levou a um colapso parcial do planejamento e à crise do "apagão" de 2001, uma vez que os investidores privados, preocupados com incertezas regulatórias, se mantiveram arredios a novos investimentos. A partir de 2000, um novo modelo foi adotado pelo governo federal a fim de tentar reduzir o risco dos investidores. Isto foi feito dividindo o mercado gerador de eletricidade em dois segmentos, um composto de consumidores livre e outro de consumidores cativos. Os consumidores livres poderiam escolher seus supridores entre produtores independentes, através de contratos bilaterais. Os cativos seriam atendidos pelas empresas que formariam uma câmara de transações. Este modelo foi modificado em 2002, com a criação de EPE (Empresa de Planejamento Energético, vinculada ao Ministério de Minas e Energia), que coloca em leilão os empreendimentos que considera necessários para atender a demanda nos próximos cinco anos, baseando-se em projeções futuras da demanda. Contudo, as projeções da EPE para o consumo de eletricidade até o ano 2015 não passam de um exercício de macroeconomia, em que são feitas hipóteses simplistas sobre o crescimento do mercado, baseadas em expectativas de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) e a elasticidade na demanda. Nestes estudos se assumem para o período entre 2005 e 2015 taxas de crescimento do PIB entre 4,2% (cenário de trajetória alta) e 5,8% (trajetória baixa) ao ano, tendo 5,2% ao ano como cenário de referência, isto é, mais provável para o crescimento. Todos estes cenários são extremamente otimistas, considerando que o PIB brasileiro está crescendo a uma taxa de menos de 3 % ao ano, como mostra a Tabela 2 . O novo modelo do setor elétrico é baseado em simulações de computador que partem de premissas equivocadas, o que claramente não está funcionando como mostram os últimos "leilões de energia" amplamente discutidos na imprensa. Um dos resultados perversos desses leilões foi o de que a maioria da energia comercializada é de usinas térmicas, o que não só deve encarecer a energia, como vai agravar problemas ambientais. Em outras palavras, o "novo modelo" do setor elétrico está levando o País a abandonar sua vocação natural, que é o uso de seu abundante potencial hídrico, uma energia mais limpa e renovável. Dessa forma, é claro o contraste entre a sustentabilidade ambiental e as alternativas que o "novo modelo" privilegiou em nome da urgência. Como exemplo, a Tabela 3 apresenta o resultado do último leilão da EPE. Construir usinas a carvão, uma fonte altamente poluente, tornou-se um bom negócio no País. Além das unidades já con-
Ulisses Job/Diário Catarinense
ções não-governamentais. Há um motivo evidente para esse conflito: os grandes impactos ambientais que projetos como Tucuruí e Balbina apresentaram no passado. Na ânsia de aprovar os projetos, considerados urgentes pelos modelos da EPE, freqüentemente os órgãos de licenciamento ambiental são apontados como os obstáculos ao desenvolvimento, impedindo a construção de usinas hidrelétricas e levando os leilões de energia a privilegiarem outras fontes. Essa é uma visão distorcida da realidade, por uma série de razões:
Carbonífera Belluno, em Siderópolis (SC).
CARVÃO
BOX 4
O
carvão mineral em uso no Brasil tem duas origens: o carvão vapor (energético), que é nacional e tem cerca 90% do seu uso na geração elétrica e o carvão metalúrgico, importado para produzir o coque, especialmente usado na indústria siderúrgica. O carvão nacional é de baixa qualidade com impurezas de óxidos de enxofre que podem atingir até 7%. O carvão mineral manteve em 2004 a participação de 6,7% na matriz energética brasileira, sendo um quarto desse total de origem nacional.
tratadas, a EPE habilitou 43 usinas a diesel e a óleo combustível para o próximo leilão, que ocorreu em outubro. Isto representa 4.070 MW, ou 20% da capacidade instalada total oferecida neste leilão. Duas térmicas a carvão devem entrar no leilão com 1.192 MW, mesmo sendo problemática a qualidade do carvão nacional (Box 4). Parece claro, portanto, que o Brasil está na contramão da história, já que o resto do mundo vem procurando alternativas para diminuir a participação de fontes poluentes na matriz energética. Além da sua contribuição ao "efeito estufa", as impurezas de carvão provocam um fenômeno conhecido há mais de um século nas grandes cidades, o "smog" – camada de névoa escura altamente tóxica que provoca problemas respiratórios. O óleo combustível também tem os mesmos problemas, ainda que em menor proporção. A vocação do País está nas hidrelétricas e há grandes potenciais ainda não explorados. É o caso do complexo de usinas no Rio Madeira (6.450 MW, R $20 bilhões em investimentos) e da usina de Belo Monte (11.000 MW, R$ 7,5 bilhões), pontos de grande conflito entre o Ministério de Minas e Energia com determinados setores da sociedade, principalmente as organiza-
- Muitos empreendedores (e até setores governamentais) têm a visão de que o licenciamento ambiental é uma mera formalidade, esquecendo-se dos preceitos constitucionais e das leis em vigor no País; - Freqüentemente se iniciam as obras antes de se iniciar o licenciamento ambiental nos órgãos competentes; - Muitos dos estudos de impacto ambiental são incompletos, que o próprio interessado demora em concluir; - Há aspectos macroeconômicos, como as altas taxas de juros, que levam o empreendedor a privilegiar projetos de construção mais rápida; - Certos empreendedores procuram agilizar o licenciamento de um projeto sem querer realizá-lo, apenas para vender um "pacote pronto". O que se impõe é que os órgãos ambientais encontrem saídas para o complicado processo de licenciamento das usinas hidrelétricas – a vocação natural do País. A solução passa por compensações ambientais, pelas quais o empreendedor deve alocar pelo menos 0,5% do valor total da implantação de seu projeto na criação de novas unidades de conservação ou na manutenção das existentes. Além disso, outras medidas são indispensáveis, como o reassentamento adequado das populações atingidas pela construção das usinas. Economizar nessas medidas é o que mais contribui para atrasar a expansão do setor hidrelétrico. É preciso procurar um equilíbrio entre os interesses contrariados dos que são atingidos pelos empreendimentos e os interesses de populações muito maiores dos que se beneficiam deles a grandes distâncias do local onde o empreendimento é implantado. V. A conservação de energia no Brasil Toda a área de racionalização do uso de energia não tem recebido prioridade. Nos países da OCDE o consumo de energia seria 49 % maior do que é atualmente se não fossem as sérias medidas de racionalização e eficiência energética adotadas após as crises do petróleo da década de 1970 (Figura 1). Num país em desenvolvimento como o Brasil, o consumo de energia "per capita" ainda é pequeno e não se poderia esperar
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Figura 1
que medidas de eficiência energética tivessem tanto impacto como na OCDE, já que é indispensável que o consumo de energia cresça para promover o desenvolvimento (Figura 2). No entanto, nada impede que o uso de tecnologias modernas e eficientes sejam introduzidas logo no início do processo de desenvolvimento, acelerando com isso o uso de tecnologias eficientes. Esse é o chamado efeito leapfrogging, que se contrapõe ao pensamento de que para haver desenvolvimento é preciso que ocorram impactos ambientais. Isso pode ser concretizado por meio de políticas e ações relativamente simples e muitas vezes economicamente atrativas. Novas tecnologias, mais eficientes em refrigeradores, aparelhos de ar-condicionado, motores e lâmpadas já são produzidas e/ou comercializadas no País. A conservação de eletricidade reduz o consumo e posterga a necessidade por investimentos em expansão da capacidade instalada, sem comprometer a qualidade dos serviços prestados aos usuários finais. A eficiência energética é, sem dúvida, a maneira mais efetiva de ao mesmo tempo reduzir os custos e os impactos ambientais locais e globais. Além disso, a conservação diminui a necessidade de subsídios governamentais para a produção de energia. Estimativas recentes feitas por um grupo da Universidade de Campinas (Unicamp) indicam que na área de eletricidade seria viável obter uma redução de 38% no consumo de eletricidade a ser atingido em 2020. Contudo, é preciso tomar certos cuidados com "modelos", tanto os da EPE quanto os da Unicamp. Da mesma forma que projeções otimistas do crescimento do PIB levam a conclusões superestimadas sobre a expansão
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da geração de eletricidade, cenários prospectivos com resultados exagerados de conservação de energia em relação às políticas em vigor acabam sendo rotulados de "manifestações de desejos". Quando essas diferentes visões se encontram, em geral há conflitos entre os "wishful thinkings" desenvolvimentistas e conservacionistas. A forma de se resolver essa questão está nas políticas que fomentam as melhores formas de conservação e geração de energia. O planejamento energético não pode ser um debate entre cenários. O Brasil possui hoje dois programas específicos para a promoção da conservação da energia e racionalização do seu uso, que são essencialmente voltadas para a disseminação de informações e a conscientização da população para a importância do uso mais eficiente de energia: - O Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica (PROCEL), coordenado pela Eletrobrás e que promove ações de educação, etiquetagem, gestão energética municipal, iluminação pública, gestão de eletricidade na indústria e em edificações e saneamento ambiental; e - O Programa Nacional de Racionalização do Uso dos Derivados do Petróleo e do Gás Natural (CONPET), coordenado pela Petrobras e que promove ações de etiquetagem de produtos e em transporte. Há porém dois poderosos instrumentos legais pouco utilizados atualmente que poderiam ser ativados para promover tecnologias mais eficientes: - A Lei nº 9.991 de 24/7/2000 estabelece que as concessio-
Figura 2
nárias e permissionárias de serviços públicos de distribuição de energia elétrica ficam obrigadas a aplicar, anualmente, o montante de, no mínimo, 0,75% de sua receita operacional líquida em pesquisa e desenvolvimento do setor elétrico e, no mínimo, 0,25% em programas de eficiência energética no uso final. - A Lei nº 10.295 de 17/10/2001 determina que o Poder Executivo estabelecerá níveis máximos de consumo específico de energia, ou mínimos de eficiência energética, de máquinas e aparelhos consumidores de energia fabricados ou comercializados no País, com base em indicadores técnicos pertinentes. IV – Conclusão Projeções do consumo futuro de energia dependem criticamente do tipo de desenvolvimento e crescimento econômico que o País terá. Por essa razão, os diversos exercícios que tem sido feitos, tanto por órgãos do governo, como por grupos universitários, refletem visões diferentes do futuro e dão portanto resultados diferentes. As decisões de um país na área de energia não podem ser calcadas em meros modelos. A matriz energética brasileira depende dos rumos que o desenvolvimento econômico do País vai seguir. A necessidade de uma política energética, que reconheça este fato fundamental é crescente, visto que parte do sistema energético foi privatizado e depende portanto de investimentos não-governamentais, que não ocorrerão a não ser que regras claras sejam estabelecidas. Em todos os casos, o licenciamento ambiental de empre-
endimentos deve ser obedecido. É possível mitigar muitos dos impactos e, com políticas corretas e prévio e transparente estudo de impacto ambiental, proceder a compensações ambientais justas. Há muito espaço para ampliar a gestão governamental no setor de energia, visto que ainda são modestos os resultados das ações pela maior eficiência no uso final de energia. Além disso, não se podem deixar de lado aspectos de segurança no fornecimento, criação de empregos e de sustentabilidade ambiental. Por exemplo, a utilização de biomassa, além de ser competitiva comercialmente com o petróleo, é mais limpa, renovável e permite gerar muito mais empregos. A reativação da "Fase 2" do Proinfa, que estabelece uma meta tangível nas novas fontes renováveis de geração de eletricidade, é um poderoso estímulo aos agentes de mercado. Programas de eficiência energética, baseados na adoção de padrões mandatórios, estimulam o setor de serviços, reduzem a poluição e prolongam a vida das reservas de petróleo e gás. Este fato, apesar de ser politicamente relevante e reconhecido, não é considerado explicitamente nos programas de expansão energética. Além disso, a definição do perfil industrial brasileiro tem grande impacto na quantidade e tipo de energia final que teremos que produzir. Historicamente, o País é um grande produtor de produtos intensivos no uso de energia, como papel e celulose, ferro e aço e alumínio. A mudança desse perfil para produtos menos energo-intensivos pode alterar, no longo prazo, a demanda de energia no País e adicionar valor à nossa produção e exportações.
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Crescimento econômico José Paulo Lacerda/Ag.Pixel
Antonio Delfim Netto Economista, ex-ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento
D
esde o final da Segunda Guerra até a crise do petróleo em 1979, o crescimento econômico brasileiro foi muito elevado, um dos mais pujantes do mundo. A partir dessa data praticamente estagnou. A tabela abaixo indica a evolução do PIB real e do PIB per capita: Visto de outro ângulo, o PIB per capita brasileiro, em PPP, ocupava em 1980 o 40º posto, numa amostra de 93 países, enquanto que em 2005, no mesmo conceito, havia caído para 46º * Nesta geração, o Brasil patinou enquanto outros países, 64 dos 93, apresentaram crescimento superior ao nosso (2005 relativo à média dos anos 1980/82). No Gráfico 1 são mostradas as diferenças percentuais de crescimento do PIB per capita de cada país em relação ao Brasil. Fomos muito mal. Na América Latina, o Chile teve o melhor desempenho: 158% de crescimento do PIB per capita (96% maior do que o desempenho brasileiro). No período, o crescimento do PIB per capita do Brasil foi de 31%, enquanto os da Costa Rica, Colômbia e Uruguai foram, respectivamente, de 55%, 54% e 37%. Não há dúvida de que fatores como hiperinflação, valorização cambial e política monetária superconservadora contribuíram para este desempenho modesto. São causas que podem ser corrigidas por medidas macroeconômicas, num tempo relativamente curto. Há um outro fator, porém, de natureza política, que nos últimos 20 anos tem dificultado o nosso crescimento: o comportamento do setor público. A experiência mostra que no processo do crescimento econômico, o Estado desempenha um papel fundamental na prestação de bens públicos e na correção de eventuais imperfeições do mercado.
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Corbis
* Em 2005, num total de 125 países, o PIB per capita do Brasil aparece em 58% (PPP). Na comparação acima foi necessário reduzir o número de países para 93, em virtude da disponibilidade de informações estatísticas.
e setor público
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Há quase dois séculos e meio, Adam Smith observou historicamente e teorizou, adequadamente, que o desenvolvimento econômico, ou melhor, a "riqueza das nações", depende de umas poucas coisas: Um Estado que tribute levemente seus súditos e utilize eficientemente tais recursos para:
2) Garantir a propriedade privada; 3) Proporcionar um razoável grau de justiça; 4) Construir uma adequada infra-estrutura e 5) Manter um comportamento amigável com relação ao setor privado e aos mercados, mas que estimule duramente a competição.
1) Assegurar a paz interna pelo monopólio da força;
Adam Smith estava longe de ter uma crença ingênua nas virtudes do regime de concorrência pura e na amoralidade da atividade econômica. Reprodução
Quando isso se realiza, o crescimento econômico acontece quase por gravidade: será o resultado da ação dos empresários em busca do lucro e do comportamento dos consumidores na busca de melhor e maior satisfação de suas necessidades. Elas se harmonizam pela liberdade de escolha de cada um, através do sistema de preços dos fatores de produção e dos bens de consumo estabelecido pelo mercado. O velho Smith estava, entretanto, longe de ter — como alguns ainda pensam — uma crença ingênua nas virtudes do regime de concorrência pura e na amoralidade da atividade econômica. Este desvio foi resultado do trabalho de alguns economistas entre 1850 e 1950 quando, mimetizando os modelos da física clássica e inventando uma
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psicologia conveniente, construíram uma "ciência econômica" que repudiava os juízos de valor. 1883 foi o anno humanae salutis dos economistas. Ele viu morrer um (Marx) e viu nascer dois (Schumpeter e Keynes) dos maiores contestadores desse científismo inconseqüente, que ainda infesta alguns dos nossos brilhantes "neoliberais". Talvez seja um exercício útil, mas assustador, como o passeio por um "túnel de horror" de alguns parques de diversão, comparar a simplicidade do processo descrito por Adam Smith e a confusão que se armou na sociedade brasileira nos últimos 20 anos. Vamos lá. 1) Tributação leve e eficiência no seu uso: o Gráfico 2 fala por si. Temos a maior carga tributária para países com a nossa renda per capita e um medíocre crescimento, revelado pelos números dentro dos pequenos círculos do Gráfico 2. Quanto à eficiência dos gastos públicos, o Brasil é 119º classificado em 125 países examinados pelo World Economic Forum de 2006, como se vê no Gráfico 3. O índice de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil também está muito abaixo
dos países que tem tributação semelhante. É uma outra indicação que sugere a baixa eficiência das despesas públicas. Estamos gastando mal, em lugares errados e prestando serviços de baixa qualidade à população, particularmente educação e saúde, como se vê no Gráfico 4. 2) Paz interna: já faz muito tempo que a insensatez de governos locais transacionou o monopólio da força com o jogo, a droga e a bandidagem no Rio de Janeiro. Hoje, pelo menos lá, em São Paulo e em Pernambuco, há dois "Estados": um legal e outro marginal. Só agora parece nascer a vontade política apoiada, infelizmente, em recursos ainda "a definir", de eliminar o "Estado-Marginal" que controla a periferia dos grandes centros urbanos. O Gráfico 5 mostra uma situação muito ruim em relação ao crime organizado, uma das manifestações mais sérias contra a tranqüilidade. 3) Garantia da propriedade privada: tem havido violação crescente e cada vez mais freqüente à propriedade física e temos respeitado pouco a propriedade intelectual.
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Mesmo assim, a classificação do Brasil (62º entre 125 países), como mostra o Gráfico 6, é animadora, quando comparada com os outros indicadores. 4) Razoável grau de justiça: o Gráfico 7 revela que, lamentavelmente, somos o 92º país entre 125 com relação à independência do Judiciário, segundo a avaliação do World Economic Forum de 2006. 5) Construção de infra-estrutura: nossa posição no mundo ocupa o 79º lugar entre os 125 países analisados pelo World Economic Forum de 2006, o que mostra a necessidade imperiosa da rápida execução do PAC no setor de energia, transportes etc. O Brasil é um país com uma fronteira agrícola que se expandiu de forma fantástica. A competitividade no mercado externo desta atividade depende fortemente do transporte rodoviário e dos custos portuários. A qualidade deles é fundamental. Infelizmente, ela deixa muito a desejar pelo baixo investimento público dos últimos 20 anos. Os Gráficos 8 e 9 mostram nosso ranking em relação ao mundo.
6) Comportamento amigável com o setor privado: aqui temos um desastre. O Brasil é o 124º colocado entre os 125 países analisados pelo Fórum com relação ao "Peso da Regulação Governamental". E o 119º colocado entre 155 países analisados no Doing Business 2005 do Banco Mundial com relação à "Facilidade de Produzir". A burocracia tem ampliado o seu espaço e criado as próprias regras. Haja visto as dificuldades recentes com os projetos de energia e da utilização de novas variedades de sementes na agricultura, geneticamente modificadas, e que apresentam maior produtividade e menor custo. Mesmo esquecendo a maior taxa de juro real e a moeda mais valorizada do mundo, os fatos acima sugerem que o Brasil está "bombando" sem causa... Parece que, agora sim, estamos vivendo um verdadeiro milagre. Todos sabemos que o crescimento econômico é um "estado de espírito" apoiado em condições objetivas. O primeiro existe pela soma de um aumento virtuoso do crédito e uma ação divina, que eliminou a vulnerabilidade externa; o segundo não! A dúvida é até quando ele durará se não atendermos às lições de Adam Smith...
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Guy Christian/hemis.fr
Reforma previdenciária chilena Impactos macroeconômicos e lições para o caso brasileiro MAIO/JUNHO 2007 DIGESTO ECONÔMICO
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1. Introdução Paulo Pampolin/Hype
Ulisses Ruiz de Gamboa * Economista do Instituto Gastão Vidigal, Associação Comercial de São Paulo. Professor da FEA/USP e da Faculdade de Economia da Fundação Armando Álvares Penteado.
D
urante as décadas de setenta e oitenta, o Chile realizou uma série de reformas estruturais, que diminuíram o tamanho do Estado na economia, transformando o setor privado, principalmente o setor exportador, no motor do crescimento econômico. Dentre as principais reformas estruturais realizadas pelo governo do general Augusto Pinochet, estão a abertura da economia, a reforma fiscal, a autonomia do Banco Central, a liberalização financeira interna e externa, a privatização e a reforma da previdência. De fato, a partir do momento em que várias dessas reformas passaram a surtir efeito, a taxa de crescimento do PIB chileno se elevou, alcançando uma média de 4,9% durante o período 1981-2005 1. No caso brasileiro, embora o Plano Real tenha realizado um importante ajuste fiscal e tenha aprofundado a abertura financeira e comercial e o processo de privatização, o que assegurou uma melhora substancial dos fundamentos da economia, ainda não existe consenso sobre como reduzir o déficit da previdência. Em 2006, esse déficit alcançou a cifra de R$ 42,1 bilhões, representando um aumento de 11,9% em relação a 2005. Em breve, se iniciará um Fórum para discutir alternativas de redução desse desequilíbrio financeiro, sem que, no entanto, exista nenhuma proposta ou modelo formal de reforma. Por outro lado, muitos setores da sociedade rejeitam a aplicação do sistema previdenciário chileno por motivos puramente ideológicos, sem que se conheça devidamente todos seus alcances. Por esse motivo, seria importante analisar a experiência da reforma previdenciária realizada no Chile a partir de 1981, cujo êxito converteu seu sistema em um novo paradigma para o resto do mundo. Assim, além de identificar os principais efeitos macroeconômicos da reforma, o presente artigo também pretende examinar o funcionamento do sistema previdenciário chileno, mostrando sua situação atual e suas perspectivas futuras.
2. A reforma previdenciária chilena O antigo sistema previdenciário chileno assemelhava-se ao "clássico" sistema de repartição, onde os trabalhadores ativos financiam as pensões dos inativos, sem que haja relação estreita entre as contribuições realizadas e os benefícios previdenciários. O sistema era caótico, conformado por um conjunto de mais de cem regimes de previdência diferentes ("Cajas de Previsión"), cujas regras variavam caso a caso, resultando em diferentes níveis de contribuição e de benefícios. O sistema era intrinsecamente injusto, com trabalhadores que podiam aposentar-se após completar 40 anos, enquanto outros deviam manter-se ativos até depois dos 60 anos, para assegurar seu direito a uma pensão mínima 2. Além disso, o nível de pensões pagas era baixo, sendo quase 70% pensões mínimas em 1979, e seu valor real era extremamente flutuante, como demonstra Wagner (1991). Outro problema era o elevado nível das contribuições, que alcançavam 26% dos salários brutos, o que as transformava num imposto implícito ao trabalho, desalentando a participação no setor formal e o cumprimento das obrigações previdenciárias. A administração ineficiente do sistema e sua estrutura caótica resultaram em déficits crescentes. Assim, no final da década de setenta, o sistema acumulou déficits de quase 3% do PIB, estimando-se que seu crescimento, em ausência de qualquer mudança, teria sido explosivo, alcançando um nível superior a 20% do PIB em 2000 3. A partir de maio de 1981, o governo chileno realizou uma reforma radical do sistema previdenciário, transformando o sistema estatal de repartição anterior num sistema privado de capitalização individual. Para os trabalhadores que a partir de então ingressassem no mercado de trabalho existia a obrigatoriedade de vincular-se ao sistema novo, enquanto que os trabalhadores ativos, que já contribuíam no sistema antigo, podiam decidir se permaneciam nele ou se migravam para o novo. No caso dos inativos, estes permaneceram no sistema de repartição. A perda de contribuições para o financiamento das pensões do sistema antigo de previdência,
* O autor agradece os valiosos comentários e sugestões de Alfonso Serrano, um dos economistas diretamente responsáveis pela reforma previdenciária chilena.
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Guilherme Werneck/Folha Imagem
Reuters
mais o montante de contribuições realizadas nesse sistema pelos trabalhadores que migraram para o sistema privado, geraram passivos para o Estado, chamados de "títulos de reconhecimento", provocando um elevado "déficit de transição", que alcançou a 7% do PIB nos primeiros cinco anos após a reforma. A existência de um "déficit de transição" como conseqüência de mudar o sistema de repartição para um de capitalização é um tema bastante discutido no caso brasileiro. Uma das principais lições do caso chileno foi justamente utilizar o ajuste fiscal como forma de minimizar o impacto desse déficit, promovendo cortes de despesas, aumentos de impostos e privatizações, que contribuíram para gerar um superávit fiscal primário de 3,5% a 4% do PIB durante toda a década de oitenta. De qualquer forma, a política fiscal austera praticada permitiu obter uma importante redução do "déficit de transição". 3. Como funciona o sistema de previdência chileno? Os trabalhadores chilenos devem contribuir compulsoriamente com aproximadamente 12,5% do seu salário para um fundo que cobre
pensão, invalidez e falecimento, existindo também a possibilidade de poupança voluntária, que tem adquirido importância crescente nos últimos anos. Ao redor de 80% desse total vai para um fundo de capitalização individual, de propriedade do trabalhador, que é administrado por empresas privadas, as chamadas AFP Administradoras de Fundos de Pensão, cujo capital próprio está totalmente separado dos fundos de capitalização, mesmo em caso de quebra 4. Dos 20% restantes da contribuição, 7% é destinado a seguros por invalidez e por falecimento, enquanto os 13% restantes corresponde ao pagamento de gastos administrativos e comissões cobradas pelas AFP. O trabalhador pode escolher livremente a empresa que administrará suas contribuições, com alternativas de aplicação restritas a cinco fundos de investimento, cuja escolha dependerá da idade do contribuinte, ficando os mais jovens com aplicações em fundos de perfil mais "agressivo" que os de maior idade. O funcionamento das AFP é supervisionado por uma agência reguladora, a chamada Superintendência das AFP, que está subordinada ao Ministério do Trabalho e Previdência Social. O Estado também participa, de forma subsidiária, garantindo uma pensão mínima para os contribuin-
No alto, palácio de La Moneda, sede do governo chileno; acima, o general Augusto Pinochet, que entre as mudanças estruturais do Chile, promoveu uma bem-sucedida reforma previdenciária.
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Andres Gomez/AFP
Os trabalhadores só têm acesso aos fundos de pensão na idade de aposentadoria, 65 anos para homens e 60 para as mulheres. Na foto, Porto de Valparaiso.
tes das AFP, desde que tenham contribuído durante pelo menos 240 meses e, logicamente, garantindo pensões assistenciais aos inativos, cuja renda não tenha sido suficiente para seu ingresso ao sistema de capitalização. Os trabalhadores somente podem ter acesso aos fundos de pensão no momento em que alcançam a idade de aposentadoria (65 anos para os homens e 60 para as mulheres). Outra alternativa é a aposentadoria antecipada, a partir de 55 anos, que é concedida se os fundos acumulados são suficientes para gerar uma renda que seja superior à metade da média das rendas obtidas nos últimos dez anos ou maior a 110% das pensões assistenciais concedidas pelo Estado. Uma vez que os trabalhadores tenham acesso às suas contas de capitalização, podem continuar trabalhando, sem necessidade de realizar novas contribuições ao sistema previdenciário. Também existe a opção de escolher a forma de pagamento dos benefícios previdenciários: retiradas programadas das contas, anuidades ou uma combinação de ambos. Entretanto, seja qual for a modalidade de pagamento escolhida, os benefícios são reajustados de acordo com a evolução do Índice de Preços ao Consumidor e incluem provisões para cobertura em caso de falecimento do contribuinte. 4. Efeitos macroeconômicos da reforma previdenciária Os efeitos macroeconômicos da reforma da previdência realizada no Chile não se restringem ao mero impacto fiscal e suas conseqüências sobre a poupança interna. De fato, de acor-
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do com Corbo e Schmidt-Hebbel (2003), os efeitos macroeconômicos da reforma da previdência chilena podem ser apreciados a partir de três canais fundamentais: os efeitos sobre a poupança interna e o investimento produtivo; os efeitos sobre o mercado de trabalho (níveis de emprego e de produtividade da mão-de-obra); os efeitos sobre o mercado de capitais (desenvolvimento do mercado de capitais, profundidade financeira e produtividade total dos fatores). Evidentemente, a reforma da previdência no Chile foi realizada em forma conjunta com outras mudanças estruturais, tal como foi mencionado, e existe um consenso em que há uma importante relação de complementaridade entre as diferentes reformas efetuadas. De qualquer forma, os referidos autores levaram em consideração a existência dessas outras reformas, "limpando" (controlando) os resultados obtidos de seus possíveis efeitos. A poupança interna de um país pode ser afetada pela reforma da previdência a partir de quatro canais: I) a mudança na poupança pública total, considerando o "déficit de transição", mencionado anteriormente, e a resposta fiscal a esse déficit; II) a resposta da poupança privada à mudança na poupança pública; III) a nova poupança obrigatória das famílias nas AFP; e IV) a resposta da poupança voluntária das famílias à nova poupança previdenciária obrigatória. Os resultados de Corbo e Schimdt-Hebbel (2003)5 apontam, em média, para uma queda da poupança pública total de 1,3% do PIB durante 1981-2001, decorrente do "déficit de transição", financiada com emissão de títulos. Com relação à resposta do setor privado, os resultados parecem indicar que o maior endividamento público foi compensado, pelo menos em parte, pela maior poupança privada, que aumentou, em média, em 0,6% do PIB no mesmo período. Em termos de poupança obrigatória, as estimativas apontam para um aumento médio de 4,6% do PIB durante 1981-2001. O aumento da poupança obrigatória provoca, em geral, uma diminuição da poupança voluntária das famílias, que, no extremo, poderia até anular esse aumento, deixando inalterada sua poupança total. No caso chileno, no entanto, e à semelhança de países como o Brasil, muitas famílias não dispõem de capacidade de poupança, ou sequer de acesso ao crédito, o que minimiza a queda da poupança voluntária, estimada, em média, em 1,4% do PIB durante 1981-2001, não anulando, portanto, o aumento da poupança obrigatória. O efeito total da reforma previdenciária sobre a poupança interna é, final-
mente, a soma dos efeitos anteriores. Assim, de acordo com essas estimativas, a poupança interna teria aumentado, em decorrência da reforma previdenciária realizada, em 2,5% do PIB ao longo do mesmo período considerado. De fato, tal como pode ser apreciado no Gráfico 1, a taxa de poupança da economia chilena apresentou tendência crescente a partir de 1981, com elevação permanente a partir de 1988. Esse aumento da poupança interna redundou, como era de esperar-se, numa maior oferta de recursos financeiros, gerando um aumento da taxa de investimento, que segundo os mesmos autores, alcançou, em média, a 1,3% do PIB durante o período 1981-2001. Além disso, a existência de uma maior poupança interna também reduziu a vulnerabilidade externa do Chile, ao diminuir a dependência em relação aos capitais financeiros externos, o que praticamente "isolou" sua economia dos efeitos das crises financeiras internacionais ocorridas na segunda metade da década de noventa. A redução da alíquota de contribuição, ocorrida a partir da mudança do sistema previdenciário, reduziu o imposto implícito ao trabalho, o que provocou vários efeitos positivos: um aumento do emprego formal e a conseqüente diminuição do emprego informal; um aumento da oferta de trabalho total ao aumentar os salários dos setores formal e informal 6; um aumento do emprego total; uma diminuição do desemprego estrutural e um aumento da produtividade média do trabalho, devido ao aumento do emprego no setor formal, que é mas produtivo que o emprego informal. Além disso, a reforma previdenciária diminuiu os incentivos da aposentadoria precoce, pois o valor futuro dos benefícios está diretamente relacionado com o montante acumulado nas contas de capitalização, que aumenta com a quantidade de anos trabalhados. Os referidos autores estimam que durante 1981-2001, em média, hou-
ve uma expansão do emprego formal de 2,4%, enquanto que o emprego informal apresentou redução de 1,2%, com aumentos do emprego total, salário do setor formal e salário do setor informal de 2,4%, 0,6% e 3,6%, respectivamente, e diminuição na taxa de desemprego de 1,3%. A reforma previdenciária também provocou uma expansão da produtividade média do trabalho equivalente a 0,2% do PIB de 2001, enquanto que 0,49% do emprego total de 2001 poderia dever-se à maior participação de trabalhadores de maior idade. Por outra parte, um dos efeitos da reforma previdenciária chilena menos discutidos no Brasil, mas paradoxalmente um dos mais importantes, foi sua influência sobre o desenvolvimento do mercado de capitais local. O Gráfico 2 mostra a evolução da participação dos fundos das AFP em relação ao PIB durante o período 1981-2005, podendo-se apreciar sua tendência marcadamente ascendente, passando de 0,8% em 1981 a 59,3% em 2005. As evidências sugerem que a acumulação de uma grande quantidade de fundos nas AFP e companhias de seguro 7 a partir da reforma parece ter sido acompanhada de aumentos da qualidade da regulação e de uma maior transparência no mercado financeiro, além de melhoras na governança corporativa das empresas de capital aberto 8. Esse maior volume de ativos administrados também parece ter incrementado a eficiência na tomada de decisões de investimento, incentivando, ao mesmo tempo, o contínuo surgimento de novos instrumentos financeiros. Um exemplo disso foi o surgimento dos fundos de desenvolvimento de empresas, que permitem reduzir os custos de capital de empresas de médio porte, que não têm acesso a transacionar seus títulos na Bolsa de Valores. Outro efeito atribuível em grande medida ao surgimento das AFP é o notável crescimento do mercado de capitais chileno durante a década de oitenta. Acuña e Iglesias (2000) sugerem que o maior impac-
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Pablo Porciuncula/AFP
to do novo sistema previdenciário tenha se manifestado a partir do aumento da oferta de fundos de longo prazo, do desenvolvimento do mercado de créditos hipotecários e do maior aprofundamento do mercado de ações. De fato, Corbo e Schimdt-Hebbel (2003) concluem que durante 1980-2001 a participação do fluxo de poupança previdenciária sobre o desenvolvimento financeiro chileno oscilaria entre 31% e 46%. Por sua vez, o desenvolvimento do mercado de capitais ocorrido em decorrência da reforma previdenciária possibilitou uma melhor utilização dos recursos na economia, permitindo que eles fossem empregados nos setores de maior rentabilidade, o que elevou a produtividade total dos fatores, em média, em 0,27% durante o período 1980-2001, segundo os referidos autores. Finalmente, o maior investimento produtivo, aliado aos aumentos do emprego total, da produtividade média do trabalho e da produtividade total dos fatores, que ocorreram devido à reforma da previdência, resultaram numa significativa contribuição ao crescimento econômico do Chile. Corbo e Schimdt-Hebbel (2003) estimam que todos esses efeitos considerados permitiram aumentar a taxa de crescimento econômico, em média, em 0,5% durante 1981-2001, o que corresponderia, também em média, a 5,4% do PIB de 2001.
A presidente Michelle Bachelet afirmou que o modelo previdenciário estava em crise.
de retorno real pelas contribuições realizadas durante o período 1981-2005 9. Essa foi exatamente a conclusão do Conselho Assessor Presidencial para a Reforma Previdenciária, convocado no ano passado pela própria presidente:
5. Problemas atuais e perspectivas futuras No período anterior às últimas eleições presidenciais do Chile, a candidata eleita, Michelle Bachelet, afirmou que "o modelo previdenciário chileno está em crise". No entanto, essa afirmação, utilizada repetidamente durante a campanha eleitoral, carece absolutamente de fundamento, e após completar seu jubileu, o sistema previdenciário chileno está muito longe de enfrentar algum tipo de crise, entregando, em média, 10,3%
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"O regime de capitalização individual criado pela reforma de 1981 não está em crise. Este funciona de acordo com o previsível: as contribuições dos trabalhadores dependentes são efetuadas com regularidade; as AFP cumprem com suas obrigações legais; os participantes têm seus fundos assegurados; somente em dois anos os investimentos produziram rentabilidades negativas, e em 25 anos de funcionamento do sistema não se tem notícia de fraudes nem falência de nenhuma AFP" 10.
Também carece de fundamento a afirmação de que o ainda existente "déficit de transição" represente um problema para a solvência do Estado chileno, que de acordo com Soto (2005) alcançaria a 3% do PIB em 2007, e, segundo projeções realizadas por Valdés (2005), desapareceria a partir de 2030. Em um trabalho mais recente, Valdés (2006) também demonstra que os gastos públicos associados à concessão de pensão mínima não constituem uma ameaça ao equilíbrio orçamentário fiscal. Entretanto, o sistema de previdência chileno apresenta alguns problemas, que devem ser enfrentados, o que exige seu aperfeiçoamento. Em primeiro lugar, apesar da tendência crescente observada na participação, como pode ser visualizado no Gráfico 3, o sistema de capitalização não foi capaz de prover cobertura universal, garantindo participação a 62% da força de trabalho e 68% dos trabalhadores empregados 11. Esses resultados contrastam com o sistema norte-americano, cuja taxa de cobertura alcança a 96%, mas são bem superiores ao caso brasileiro, onde se estima que pelo menos 50% dos trabalhadores se encontrem na informalidade, sem qualquer cobertura. Contudo, essa não universalidade do sistema não necessariamente reflete falhas em seu desenho, estando bastante associada à dinâmica própria do mercado de trabalho chileno. Com efeito, no sistema atual, a participação dos trabalhadores por conta própria, geralmente de baixa renda e informais, é voluntária, levando a que mais de 93% deles não contribuam nos fundos de pensão. Estima-se que no caso chileno esse tipo de trabalhadores corresponda a 30% do emprego total. Além disso, cerca de 40% dos trabalhadores não contribuem regularmente no sistema por conta de desemprego temporário ou mesmo por não cumprimento com a lei, o que reduz a possibilidade de acumular um mínimo de 240 meses de contribuição, condição necessária para ter acesso à pensão mínima estatal. Outro fator que explica a baixa cobertura é o aumento da participa-
ção da mulher no mercado de trabalho (que aumentou de 28,7% em 1986 para 37,2% em 2005 12), num contexto em que a gravidez e condicionantes sócio-culturais chilenos fazem com que a regularidade e o montante de suas contribuições sejam inferiores ao caso dos homens, sendo sua expectativa de vida maior. Outro problema diagnosticado é a existência de um relativo poder monopólico por parte das AFP que, após um longo processo de fusões e aquisições, somam somente seis empresas, sendo que três delas concentram a maior parte do capital acumulado. Essa situação decorre das barreiras à entrada geradas pelas economias de escala presentes no setor e pela própria regulação implementada. Esse poder monopólico se traduz em comissões e tarifas bastante elevadas cobradas pelas AFP, que, inclusive, praticam discriminação de preços entre seus contribuintes. Soto (2005) estima que ao redor de 50% da acumulação potencial foi diluída por comissões e tarifas administrativas cobradas 13. Por outra parte, como foi mencionado, uma das características mais importantes do sistema previdenciário chileno, do ponto de vista social, é a existência de uma garantia de pensões mínima e assistencial para aqueles que não sejam capazes de financiar sua aposentadoria com contribuições ao sistema de capitalização. Evidentemente, essa política de bem-estar representa um encargo adicional para o Fisco. Hoje em dia, estima-se que 11% dos contribuintes aposentados tenham pensão mínima garantida pelo Estado, com um custo de 0,1% do PIB. Calcula-se que o envelhecimento da população, decorrente da menor taxa de natalidade e do aumento da expectativa de vida, eleve durante os próximos 20 anos a proporção de contribuintes que recebem pensão mínima e assistencial a aproximadamente 50%, o que equivaleria a 1,5% do PIB 14. Devido a esses problemas, e em caráter absolutamente pró-ativo e não reativo, como habitualmente ocorre em nosso país, a Pre-
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O Brasil poderia se beneficiar com a experiência chilena de reforma previdenciária, que carece de uma sintonia fina, mas o governo não pretende voltar ao sistema antigo. Na foto, vista de Santiago do Chile.
Divulgação
sidenta Bachelet formou o citado Conselho Assessor Presidencial para a Reforma Previdenciária, cujos trabalhos foram realizados durante o ano passado. Assim, após congregar 15 especialistas na área, independentemente de sua filiação política, e realizar um amplo diagnóstico da situação atual e futura do sistema previdenciário, o conselho elaborou 70 propostas de reforma, que visam solucionar os problemas anteriores. As reformas são de caráter microeconômico, ampliando a concorrência entre as AFP e aumentando a cobertura geral, efetuando uma "sintonia fina" do sistema 15. Em nenhum momento se pretende voltar ao sistema antigo de repartição, cujos resultados para o país e para a população seriam com grande probabilidade muito inferiores. De fato, Cerda (2006) realiza o exercício contrário a Corbo e Schimdt-Hebbel (2003), estimando os efeitos macroeconômicos de haver seguido com o sistema de repartição no Chile durante o período 1981-2004, com e sem aumento da idade mínima de aposentadoria. Os resultados obtidos apontam para um déficit previdenciário equivalente a 20% do PIB, uma redução do estoque de capital de 11% e diminuições dos salários reais, do emprego e do PIB per capita em 2,4%,10% e 10%, respectivamente. 6. Conclusões e lições para o caso brasileiro Que lições podem extrair-se para o caso brasileiro, a partir da experiência acumulada no Chile durante mais de 25 anos de existência do
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novo sistema previdenciário? Em primeiro lugar, a realização de uma reforma previdenciária efetiva, que combinasse em algum grau a participação estatal com um sistema de capitalização, ao redundar na geração de um "déficit de transição", requer a geração de superávits fiscais primários, que viabilizem a transição para o novo sistema sem comprometer a solvência do Tesouro. No caso brasileiro, a realização de uma política fiscal cada vez mais expansionista por parte do atual governo, consubstanciada na redução do superávit primário que acompanhará a implementação do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) reduziria progressivamente a viabilidade dessa reforma. Em segundo lugar, uma reforma da previdência que introduz um sistema de capitalização tende a produzir no médio prazo efeitos macroeconômicos positivos não só na redução do déficit previdenciário, mas também em termos de aumentar a poupança, o investimento produtivo, o emprego formal, a produtividade do trabalho, os salários e a taxa de crescimento do PIB. Além disso, a maior disponibilidade de poupança interna permite desenvolver o mercado de capitais, o que possibilita reduzir o custo de capital das empresas e famílias, melhorar o uso dos recursos da economia, aumentando sua produtividade e reduzir a vulnerabilidade externa da economia. No caso do Brasil, é muito provável que uma reforma previdenciária nos moldes chilenos também produza os efeitos anteriores, o que permitiria reduzir a carga tributária e contar, ao mesmo tempo, com uma taxa de juros real mais baixa, única via para produzir um importante aumento da taxa de crescimento do PIB. Em terceiro lugar, a experiência chilena mostra que uma reforma previdenciária baseada exclusivamente em aumentos da idade mínima de aposentadoria, como a que se esboça no Brasil, embora tendam a reduzir o déficit previdenciário, são de caráter paliativo, tornando o financiamento do sistema previdenciário insustentável frente aos efeitos da transição demográfica que ocorre naturalmente nos países. Além disso, ao manter um sistema de repartição, o País perde a oportunidade de beneficiar-se a partir dos efeitos macroeconômicos anteriores. Por último, qualquer sistema previdenciário deve ser aperfeiçoado através do tempo, para aumentar sua margem de cobertura frente ao envelhecimento da população e à maior participação da mulher no mercado de trabalho, fenômenos de caráter global nos dias de hoje. De qualquer forma, na comparação com o sistema previdenciário chileno, a despesa com nosso sistema de repartição equivale a 12,2% do PIB,
enquanto que no caso do primeiro, inclusive levando-se em consideração os cenários mais pessimistas, que mantém a situação atual sem nenhuma modificação, as despesas previdenciárias alcançariam a 4,5% do PIB (soma das projeções do "déficit de transição" e das despesas com pensões mínima e assistencial). Além disso, num sistema previdenciário de capitalização, as economias de escala presentes e a própria regulação realizada podem gerar importantes barreiras à entrada, o que reforça a necessidade de assegurar as condições competitivas desse mercado, em benefício dos contribuintes do sistema e da sociedade em geral.
Bibliografia Acuña, Rodrigo e Iglesias, Augusto (2000): "Chile´s Pension Reform After 20 Years", Social Protection Discussion Paper nº 0129, World Bank, Washington. Cifuentes, Rodrigo; Desormeaux, Jorge e González, Claudio (2002): "Capital Markets in Chile: From Financial Repression to Financial Deepening", Documentos de Política Económica nº 4, Banco Central de Chile, Santiago do Chile. Corbo, Vitorio e Schmidt-Hebbel, Klaus (2003): "Efectos Macroeconómicos de la Reforma de Pensiones en Chile", Latin American Econometric Society Annual Meeting, Panamá, agosto.
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Banco Central do Chile. Piñera (1991) menciona que o sistema previdenciário chileno antigo era regido pelo impressionante número de 11.395 leis, das quais 10.532 foram ditadas para atender às necessidades de grupos de interesse específicos. 3 Ver Wagner (1983), Acuña e Iglesias (2001) e Cerda (2006). 4 Até o presente momento não se registrou nenhum caso de quebra ou fraude no sistema previdenciário chileno. 5 Os autores construíram vários cenários alternativos, que variaram de acordo com os diferentes coeficientes de resposta das variáveis consideradas à reforma previdenciária. Os resultados apresentados no presente artigo tomaram a média aritmética dos resultados contidos nos diversos cenários considerados. 6 Os salários do setor informal aumentaram em decorrência da maior formalização do mercado de trabalho chileno, ocorrida a partir da reforma previdenciária, que reduziu a quantidade de trabalhadores disponíveis nesse setor, elevando seus rendimentos. 7 O mercado de seguros chileno conheceu uma apreciável expansão a partir da reforma previdenciária, pois como foi mencionado anteriormente, as contribuições também contemplam aportes para assegurar situações de invalidez ou falecimento do trabalhador. 8 Para mais detalhes, ver Cifuentes, Desormeaux e Gonzáles (2002) e Walker e Lefort (2002). 9 Soto (2005). 10 Ministerio del Trabajo y Previsión Social (2006), p.5. A tradução é nossa. 11 Soto (2005). A taxa de exclusão do sistema de previdência chileno equivalente a 50% assinalada em entrevista recente ao Estado de São Paulo pelo Ministro da Previdência Social, Nelson Machado, não corresponde à situação atual do sistema, e, sim, a uma projeção para 2026 realizada pelo citado Conselho Assessor Presidencial para a Reforma do Sistema Previdenciário. 12 Ministerio del Trabajo y Previsión Social (2006), p.6. 13 Contudo, o mesmo autor reconhece que esses encargos têm apresentado tendência decrescente, que deverá seguir devido à maturidade do sistema e aos ganhos de escala presentes. 14 Ministerio del Trabajo y Previsión Social (2006), p.7 e Soto (2005). 15 Para mais detalhes, ver "Ministerio del Trabajo y Previsión Social (2006), p. 17-31. 2
Ministerio del Trabajo e Previsión Social (2006): "El Derecho a una Vida Digna en la Vejez - Informe del Consejo Asesor Presidencial para la Reforma del Sistema Previsional, Santiago do Chile, julho. Piñera, José (1991): DEL CASCABEL AL GATO: LA BATALLA POR LA REFORMA PREVISIONAL, Ed. Zigzag, Santiago do Chile. Soto, Mauricio (2005): "Chilean Pension Reform: The Good, The Bad and The In Between", Issue in Brief nº 31, Center for Retirement Research, Boston College, Boston, junho. Valdés, Salvador (2005): "A Chilean Economist’s Comment on Larry Rohter´s Reporting on Chilean Pensions Appeared in The New York Times January 27, 2005", Santiago do Chile. Texto não publicado. Valdés, Salavador (2006): "Política Fiscal y Gasto en Pensiones Mínimas y Asistenciales", Seminario de Política Fiscal y Gasto en Pensiones Mínimas y Asistenciales, Centro de Estudios Públicos, Santiago do Chile, junho. Wagner, Gert (1983): "Estudio de la Reforma Previsional, Efectos en la Industria y en el País", Instituto de Economia, Pontifícia Universidad Católica de Chile, Santiago do Chile. Wagner, Gert (1991): "La Seguridad Social y el Programa de Pensión Mínima Garantizada", Estudios de Economía vol. 18, Pontifícia Universidad Católica de Chile, Santiago do Chile, junho. Cerda, Rodrigo (2006): "Pensiones en Chile: ¿Qué Hubiese Ocurrido sin la Reforma de 1981?", Documento de Trabajo nº 310, Instituto de Economia, Pontifícia Universidad Católica de Chile, Santiago do Chile, maio. Walker, Eduardo e Lefort, Fernando (2002): "Pension Reforms and Capital Markets: Are There Any (Hard) Links?", Social Protection Discussion Paper nº 0201, World Bank, Washington.
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A Revolução de 32 e a Reprodução
A Revolução Paulista de 9 de julho de 1932 quis impor uma autêntica democracia no País, com os governantes servindo o povo, e não como nos dias atuais, em que a Constituição é permanentemente violada.
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sistema presidencial brasileiro — como de resto em toda a América Latina — não vai bem. Não representando, o presidente da República eleito em 2º turno, senão a maioria circunstancial da população do País e não tendo aprendido, o povo brasileiro, a valorizar o Congresso Nacional, elegendo representantes que, em grande parte, não estão em condições de corresponder às necessidades e ideais da sociedade. Dessa forma, o Brasil convive com um misto de demagogia eleitoreira, denuncismo paralisador e hipocrisia governamental, em que os alicerces da democracia, embora ainda sólidos, começam a ser minados. Os sucessivos elogios de Lula e de seu partido a dois aprendizes de ditador, que são Hugo Chávez e Evo Morales, sinalizam que, se o País não tivesse os anticorpos democráticos que ainda possui, possivelmente poderiam estar em andamento ações monopolistas do poder semelhantes àquelas que são vistas na Venezuela e Bolívia, com censura à imprensa, não renovação de concessões de serviços de radiodifusão sonora e de som e imagens aos que ousassem fazer críticas ao governo, proibições de manifestações estudantis — cujas
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Paulo Pampolin/Digna Imagem
democracia em perigo Gervásio Baptista/ABr
Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e das Escolas de Comando e Estado Maior do Exército-ECEME e Superior de Guerra-ESG, presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio e do Centro de Extensão Universitária - CEU
passeatas terminam por ser impedidas, sob o fraco argumento de que as autorizações não foram requeridas a tempo. O desrespeito a contratos, de que é exemplo a "gatunagem moraliana" das instalações da Petrobras, a que o Brasil foi obrigado a se submeter, entregando por preço pífio duas refinarias, assim como a costumeira convicção marxista de que o inimigo não tem que ser vencido apenas, mas eliminado, contaminam o continente ao ponto de Sua Santidade, Bento XVI, alertar para esta nova forma de autoritarismo, que avança, neste lado do Ocidente. É o avanço do retrocesso, em que a manipulação das massas é a única moeda capaz de amortecer as reações do povo desejoso da democracia. No Brasil, inclusive, a insegurança jurídica domina a sociedade e é denunciada por professores de Direito, nas diversas áreas. A ameaça de "grampeagem" de todos os cidadãos, pondo em xeque a privacidade das comunicações, e o pouco respeito ao direito à imagem, cláusulas pétreas da Constituição, têm levado magistrados, que também são professores de Direito, a temer conversar ao telefone com seus alunos orientandos de cursos de pós-graduação, diante do risco de se tornarem suspeitos de atuação irregular. Temem, também, conceder li-
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Os ideais da Revolução de 1932 ainda são atuais, quando o povo bandeirante lutou por uma constituição democrática, em oposição ao golpe getuliano de Estado, obrigando Vargas a promulgar a Constituição de 1934.
minares, em ações cautelares, mandados de segurança ou "habeas corpus", mesmo em face do Direito líquido e certo do cidadão, que busca a prestação jurisdicional. Uma conversa considerada suspeita pode gerar uma prisão temporária para averiguações, com busca e apreensão de todos os arquivos e bens dos cidadãos, que podem revelar segredos pessoais — de nenhum interesse para a polícia — desventrando a intimidade da pessoa, que a Constituição proíbe. A carga tributária indecente leva, muitas vezes, o contribuinte a não poder pagar o que deve, tornando-se um criminoso, enquanto nenhuma providência é tomada para conter os notórios e inúteis desperdícios do governo na acomodação de aliados, mediante a criação de ministérios, secretarias, cargos e funções, criticados pela imprensa local e mundial, como um dos grandes entraves para o crescimento maior do Brasil. Quem muito trabalha e não pode pagar a confiscatória carga tributária é um criminoso. Quem pouco trabalha e desperdiça recursos públicos com mordomias, viagens, secretos cartões de crédito e multiplicação de exigências burocráticas sobre o povo, é considerado herói entre seus pares. O Judiciário acuado; o Legislativo mais interessado nos seus próprios benefícios; o Executivo desperdiçando o elevado nível de tributos (o dobro da média mundial dos países emergentes) que arranca do cidadão brasileiro, a custa de ameaças de prisão e blitz; o Ministério Público dedicado a ajudar a exigir que o cidadão suporte um iníquo nível de imposição tributária; e as Polícias Federal, Estadual e Municipal, mais voltadas em atingir a denominada "elite" empresarial, do que em combater o crime organizado e o narcotráfico, que dominam a nação; são o retrato de um país que, com os sinais trocados, perde a batalha do progresso para os principais concorrentes, entre os países em desenvolvimento. Estou convencido de que, na nação, quem tem poder, interessa-se mais por mantê-lo a qualquer custo, anestesiando o povo com operações cinematográficas para desviar a atenção de seus principais problemas: "excesso de governo e escassez de cidadania". O governante, de tudo se beneficia, e o cidadão, que deve sustentá-lo, vive em constante incerteza, pois é chamado apenas a pagar tributos e obedecer. Por esta razão, há nuvens sobre a democracia latino-americana, que começam a ser deslocadas para o território brasileiro. Neste contexto, são ainda atuais as lições da Revolução de 1932, em que o povo bandeirante lutou para que se elaborasse
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Em um gesto simbólico, São Paulo resistiu, durante três meses, sem meios e sem armas.
uma constituição democrática e cidadã, objetivando contrapor-se ao golpe getuliano de Estado. Seu gesto simbólico de resistir durante três meses, sem meios, sem armas, nem aviões (eram 6 aviões paulistas contra 44 do governo federal), e sua rendição obrigaram Getúlio a promulgar a Constituição de 1934. Infelizmente, no novo golpe de Estado, de 10/11/37, foi ela revogada pela Lei Suprema de 1937, outorgada pelo mesmo Getúlio e escrita por Francisco Campos, a quem os juristas da época chamavam de "Chico Ciência" e do qual diziam: "Quando as luzes de sua inteligência acendem, provocam curto-circuito em todos os fusíveis da democracia". A Revolução Paulista de 9 de julho de 1932 objetivou, de rigor, impor uma autêntica democracia no País, com os governantes servindo o povo, o verdadeiro destinatário das ações do Estado. E, não, como nos dias atuais, em que a Constituição é permanentemente violentada, para gáudio dos governantes, no que diz respeito a direitos fundamentais, sem que o acuado Poder Judiciário sinta-se com a coragem e a independência necessárias para resguardá-los. Em matéria tributária, são constantes as violações da lei suprema pelos governos que, incapacitados de conter as suas enormes despesas por inchaço da máquina adaptada à recepção dos aliados de ocasião, exigem "tributos" legais e ilegais, sob o beneplácito da Justiça, em que
se nota nítido receio dos magistrados de se tornarem "suspeitos" de "beneficiar" contribuintes, quando apenas os protegem contra tais excessos. Pela primeira vez, uma constituição brasileira falou em ampla defesa administrativa e judicial (art. 5º, inc. LV) e que qualquer pessoa só pode ser considerada culpada mediante o trânsito em julgado de decisão condenatória (art. 5º, inc. LVII). No entanto, nunca a defesa foi tão restrita, inclusive com a aplicação de sanções políticas, desfigurando a imagem de pessoas expostas pelas autoridades administrativas e policiais, com respaldo do Judiciário, como agora. São Paulo, em 1932, lutou para que o Brasil tivesse uma constituição democrática, a preservar o domínio do povo sobre os governos. Os governados, na Constituição de 1934, eram os que dominavam e não os detentores do poder. Hoje, que acontece o oposto, tais ideais têm de ser resgatados, para que nós, cidadãos, possamos viver num real Estado democrático de Direito e não apenas num "Estado democrático de aparência", que na sua essência é autoritário, policialesco e norteado, apenas, pela desmedida ambição dos governantes, orientados pela máxima "o poder pelo poder". Que falta faz, em 2007, a voz patriótica e vibrante de Ibrahim Nobre, o arauto da Revolução de 1932!!!
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té que ponto estão vivas, 75 anos sob pena de incorrer em punições previstas depois, as idéias formuladas peem leis e códigos de leis — um dos objetivos los que levaram adiante a Revoluda Revolução de 1932, que hoje está aceito coção de 1932? A mais importante, o mo a situação que deve prevalecer. As maniconstitucionalismo, hoje não é negada por festações ordeiras, segundo a lei, não podem praticamente ninguém no Brasil, a não ser ser reprimidas, muito menos com violência. uns poucos extremistas isolados. A idéia, enParece até difícil de crer que essa situação de fim, de que a sociedade e seu governo devem normalidade tenha sido alguma vez contesreger-se pelo império da lei e da ordem, restada no passado. Mas que o regime constitupaldado por uma Carta aceita por todos e cional nem sempre foi unanimidade é mosque proporcione garantias a cada cidadão trado pela carta de 17 de fevereiro de 1931, de frente aos poderes do governo, que não pode várias entidades, tendo à frente a Associação ser discricionário e nem arbitrário, mas tem Comercial de São Paulo, em que se exige do de seguir o que está previsto em uma conschefe do governo federal provisório, Getúlio tituição e em leis aprovadas por congressos, Vargas, "a volta do nosso País, no mais breve assembléias e câmaras eleitos por sufrágio prazo, ao regime constitucional". universal, está pleOutra idéia da namente vitoriosa. Revolução de 1932 É inconcebível que está plenamenhoje que volte a te consagrada é a da ocorrer a situação unidade nacional prevalente em São brasileira; ou seja, Paulo nos primeisegundo a palavra ros meses de 1932, de seus líderes, enem que os soldados fatizada no encerrado governo federal mento do manifesto provisório instituído governo paulista do após a Revoluque reconheceu a ção de 1930 e que derrota militar, regovernava através digido pelo profesde decretos, "marsor de Direito Valchavam por São demar Ferreira: Paulo dando tiros "Deu São Paulo tudo para o alto em dequanto podia dar ao monstração de poBrasil! Tudo por São A Liga Pró-Constituinte, da der e se serviam de Paulo! Tudo pelo Braqual a ACSP fazia parte, lojas e restaurantes, sil!" —, nunca se deconvocou a população para saindo sem pagar as fendeu o separatiso comício dia 24 de despesas", segundo mo, apesar da profevereiro na Praça da Sé. artigo de Lúcia Hepaganda em contrálena de Camargo no rio do governo Especial 9 de Julho federal provisório. do Diário do Comércio, em 2004, além do É verdade que havia uma ínfima minoria de que investiram violentamente diversas veseparatistas em São Paulo, mas eles não adezes contra manifestantes pacíficos, inclusive riram à Revolução Constitucionalista, que foi com mortes. na verdade um movimento para isolar os seDesse modo, hoje, os corpos armados, neparatistas e para consagrar a unidade naciocessários para garantir a lei e a ordem, têm em nal brasileira, pois a constituição almejada princípio de auto-restringir-se às suas funera para todos os brasileiros, respeitadas as ções específicas, segundo regras que proteautonomias estaduais, não só de São Paulo, gem os direitos individuais e a incolumidade como de todos os Estados da Federação. dos cidadãos, além do que as atividades da Afinal, a própria bandeira paulista, em nosociedade civil, como o comércio — fundame da qual os constitucionalistas lutavam, mental para a vida das pessoas —, precisam traz em seu quartel principal o mapa íntegro ter a sua vigência e sua segurança garantidos. do País. A unidade nacional brasileira hoje Quem obtém artigos em lojas, ou toma refeinão é posta em xeque por praticamente ninções em restaurantes, tem de pagar por isso, guém. Que o movimento de 1932 não era se-
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Renato Pompeu é jornalista e escritor, autor do romance-ensaio 'O mundo como obra de arte criada pelo Brasil', Editora Casa Amarela
Que o movimento de 1932 não era separatista está escrito no próprio discurso em que o desembargador Ibrahim Nobre (ao lado) fez em 25 de janeiro na Praça da Sé (abaixo). Em 20 de julho, em plena Revolução Constitucionalista, a ACSP redigiu um texto negando a acusação de separatismo. Um outro grande comício foi realizado na Praça da Sé no dia 24 de fevereiro, organizado pela Liga Pró-Constituinte.
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paratista está dito no próprio discurso em que o desembargador Ibrahim Nobre o inaugurou, a 25 de janeiro, na Praça da Sé, ao lembrar a saga dos bandeirantes: "Fogos da minha Terra! Lume da Lareira Paulista! Em torno de ti, ao lucilar das tuas fagulhas, ao anseio ascendente da tua flama, na terra estreme, sob a telha vã, quanta hora fluiu plácida e mansa, quanta hora de límpida esperança, quanta dor de mulher, de mãe, de esposa, chorando à espera de alguém que se alongara adentro pelo Sertão e que em busca da fortuna ia encontrar a Morte, e ao encalço da sorte fundia uma Nação!" Outro trecho de Ibrahim Nobre que celebra a unidade nacional brasileira: "Da tua carne massapé e honesta, do teu ventre de Mãe, fecundo e são, veio a alma que realizou a nacionalidade, imprimindo-lhe o sentido da Independência". Mais um: "Tu deste geografia ao Brasil. Essa terra toda, que aí se estende, e se esparrama e se perde por esse mundo grande de Deus, tudo isso tem os seus limites demarcados, não apenas pelos rios que se vadearam, pelas grimpas transpostas, pelas florestas vencidas! Mas sobretudo pelas sepulturas dos teus filhos, minha Terra". Como se vê, ao contrário de separatista, o paulistismo da Revolução de 1932, aos olhos de seus mentores, era encarado como uma garantia e uma reafirmação, com raízes no passado remoto, da unidade nacional brasileira; afinal, Nobre se refere à "América Brasileira", em grande parte criada pelos esforços seculares dos bandeirantes em particular e dos paulistas em geral, e à "Brasilidade, a que deste, numa permanente renúncia, as mãos, o ouro, o sangue!" E ele bradou: "Foste para o Brasil, em todas as suas Horas, O Clarim! A Clareira! O Clarão!" Onde se pode enxergar separatismo nisso? Hoje praticamente ninguém discute a unidade nacional brasileira, e esse legado é em parte do movimento de 1932, que paradoxalmente foi acusado de separatismo, a ponto de que a 20 de julho, em plena Revolução Constitucio-
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Um legado importante da Revolução de 1932 é que foi uma das primeiras vezes na história do Brasil em que as mulheres, os negros e os índios tiveram participação relevante. A Legião Negra era composta de negros e também índios.
As mulheres tiveram participação ativa no movimento. Elas eram responsáveis por costurarem as fardas, produzirem as rações e atuavam como enfermeiras. O reconhecimento veio na Constituição de 1934, com o direito ao voto.
nalista, numa reunião na Associação Comercial de São Paulo, foi redigido um texto negando essa acusação, de que o movimento pregava o separatismo, num Manifesto à Nação, ou seja, ao Brasil, assinado por dezenas de entidades. Mas a idéia de unidade nacional brasileira defendida pela Revolução de 1932 tinha outro aspecto que permaneceu como herança e que hoje também ninguém discute: o da autonomia da população de cada Estado da Federação para escolher seus governantes e legisladores regionais. Na época, os Estados eram governados por interventores nomeados pelo governo federal provisório, muitas vezes nem mesmo residentes no Estado que administravam. Isso hoje é inconcebível, mas a autonomia dos Estados da Federação hoje vigente e indiscutível é em parte mais um legado do movimento constitucionalista. Outro legado importante da Revolução de 1932, vigente ainda hoje, é que ela foi uma das primeiras vezes na história do Brasil em que as mulheres, os negros e os índios tiveram participação relevante. Pois, além de costurarem fardas e produzirem rações e de atuarem como enfermeiras, mulheres como a cozinheira negra Maria José, conhecida como Maria Soldado, também participaram dos combates, em especial na Legião Negra, composta também de índios. Afinal, foi a principal conquista do movimento de 1932, a Constituinte de 1934, que garantiu pela primeira vez às mulheres no Brasil o direito ao voto. Por isso mesmo duas mulheres, Maria Soldado e Nicota Pinto Alves, estão sepultadas no Mausoléu do Soldado Constitucionalista, a lembrarem às mulheres de hoje que sua maior e crescente participação na sociedade está, em parte, ligada ao movimento de 1932. Assim, o maior legado da Revolução Constitucionalista é a unanimidade em torno da vigência de uma constituição democrática, para assegurar, afinal, uma vida civilizada.
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Em 16 de junho de 1932, a ACSP organiza recepção ao interventor Pedro de Toledo e ao seu secretariado, com a participação de membros da Frente Única Paulista.
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quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em outubro de 1929, trouxe conseqüências nefastas para a economia mundial, inclusive a brasileira — diversas fábricas fecharam e a cotação do café, principal produto de exportação, despencou no mercado internacional. O resultado foi uma profunda crise econômica, com altos índices de desemprego e miséria da população. Foi este cenário que serviu como pano de fundo para a eleição presidencial de 1º de março de 1930, que tinha como candidatos Júlio Prestes, apoiado pelo presidente Washington Luís, e Getúlio Vargas, líder da Aliança Liberal, formada por Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba. Era a época da política café-com-leite, em que São Paulo e Minas Gerais se alternavam no poder. Washington Luís era o representante da oligarquia paulista, o que significava que o candidato apoiado por Minas Gerais deveria ser o próximo presidente. Mas em meio a denúncias de fraudes em vários níveis, venceu Júlio Prestes, que ganhou, mas não levou. O assassinato do governador da Paraíba, João Pessoa, em 26
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de julho de 1930, foi o estopim de uma insurreição armada no início de outubro do mesmo ano, articulada pelos Estados do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba. No dia 24 de outubro cai o presidente Washington Luís e Júlio Prestes é exilado. Assume o poder uma junta governativa, composta pelos generais Tasso Fragoso e Menna Barreto e pelo almirante Isaías de Noronha. Em 3 de novembro, Getúlio Vargas assume a chefia do governo provisório e promete uma nova constituição para o País. Em São Paulo, duas forças dominavam o cenário político, o Partido Republicano Paulista (PRP), que representava a oligarquia local, e o partido Democrático (PD). Getúlio Vargas afastou os antigos líderes do PRP do governo estadual e os substituiu por políticos do PD. Mas a insatisfação era geral, já que o País atravessava uma grave crise econômica. A situação se agravou quando Vargas nomeou João Alberto Lins de Barros, um militar pernambucano, interventor em São Paulo. Os democratas não aceitaram e exigiram a nomeação de um novo interventor, que fosse paulista e civil.
Descontentes, em fevereiro de 1932, membros do PD se uniram ao PRP e formaram a Frente Única Paulista (FUP), em oposição ao governo provisório, cujos principais lemas eram a constitucionalização do País e a autonomia de São Paulo. Diante da pressão popular, Vargas vai cedendo (ele teria dito: "Vamos dar um bife ao tigre, para que ele não tente devorar o domador") e em 2 março nomeia o exembaixador Pedro de Toledo novo interventor de São Paulo. Com 73 anos de idade e já cansado, Getúlio Vargas esperava que Toledo fosse ponderado, pacífico e manobrável. Em maio de 1932, Vargas também chegou a marcar nova eleição para o próximo ano, mas naquele momento a medida não surtiu efeito para conter os ânimos, que já se exaltavam. No dia 23 de maio, uma multidão ocupou ruas, praças e janelas de edifícios, alimentados por discursos inflamados de oradores como o promotor público Ibraim Nobre, José Lefevre, Gomes Martins, Dario Ribeiro Filho, Pereira Lima e outros. O povo lotou a Praça do Patriarca, seguiu pelo Viaduto do
Chá, Conselheiro Crispiniano e chegou ao Palácio dos Campos Elíseos. A ACSP conclamava o comércio a fechar suas portas e a se juntar à multidão. Na noite do mesmo dia, manifestantes reunidos na Praça da República resolveram invadir a sede da Legião Revolucionária, entidade tenentista transformada no Partido Popular Progressista, dirigido pelo general Miguel Costa. Tiros foram disparados para dispersar a multidão. No final trágico, sobre a calçada, ficaram os corpos de quatro jovens estudantes — Martins, Miragaia, Draúzio e Camargo, que ficaram conhecidos pela sigla MMDC. No dia 9 de julho, o movimento ganhou as ruas da capital e do interior de São Paulo, e no dia 10, Pedro de Toledo, exinterventor, é aclamado pela massa, concentrada diante do Palácio dos Campos Elíseos, governador de São Paulo. As rádios conclamaram voluntários para defender o Estado. Foi a maior mobilização militar do País no século 20, envolvendo no total mais de 135 mil homens, dos quais apenas 35 mil eram paulistas As tropas federais bloquearam as fronteiras e
No dia 10 de julho, Pedro de Toledo é aclamado governador de São Paulo pela massa, diante do Palácio dos Campos Elíseos.
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Manifestantes reunidos na Praça da República tentaram invadir a sede da Legião Revolucionária e são recebidos a tiros. Morrem os jovens Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo, que ficaram imortalizados pela sigla MMDC. Abaixo, aviões foram usados nas batalhas.
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atacaram o interior. A violência dos combates foram cruéis: cidades eram abandonadas pelos moradores, saques e incêndios se alastravam pelas fazendas, comércios e indústrias. Bombardeios aéreos ocorreram em cidades como Campinas, provocando pânico e protestos. Conta-se que, ao saber que aviões estavam sendo usados para bombardear cidades, Santos Dumont, o "pai da aviação", caiu em profunda depressão e, aos 59 anos, no dia 23 de julho, cometeu suicídio, se enforcando com uma gravata no Grande Hotel de La Plage, no Guarujá, litoral paulista. Com a guerra civil em marcha, a Associação Comercial de São Paulo articula-se rapidamente com as demais entidades de classes e com o governo paulista, buscando desenvolver um programa de ação para garantir a normalidade da população, a eficiência dos serviços de assistência civil e do alistamento ao Exército Constitucionalista. O presidente
A ACSP se articula com outras entidades e com o governo paulista, buscando desenvolver um programa de ação para garantir a normalidade da população, a eficiência dos serviços de assistência civil e do alistamento ao Exército Constitucionalista.
da ACSP, Carlos de Souza Nazareth, e demais membros da diretoria assumiram diversas tarefas em prol do movimento. A entidade foi responsável pelo controle de receitas e despesas da revolução, forneceu apoio material e logístico para as tropas e desenvolveu campanhas importantes, como "Capacetes de Aço para os Soldados Constitucionalistas" e a "Campanha do Ouro para o Bem de São Paulo" (veja matéria pág. 67). A inferioridade bélica dos paulista era muito grande e desde logo a situação se mostrou insustentável. Os governos do Rio Grande do Sul e Minas Gerais, embora fossem favoráveis à campanha pela constitucionalização, decidiram apoiar a força militar do governo federal. Isolados, os paulistas não tiveram condições de manter por muito tempo o movimento. Em 1º de outubro de 1932 assinaram a rendição. O saldo foi trágico: o confronto deixou 830 mortos, dos quais 630 paulistas e 200 soldados das tropas federais. Por outro lado, os ideais que iluminaram o Movimento Constitucionalista não se apagaram. Dois anos depois do fim do conflito, Getúlio Vargas convocou a Assembléia Constituinte defendida por São Paulo.
Bandeira que ficou hasteada no Largo São Francisco durante a Revolução de 32 e que hoje está na sede do jornal O Estado de S. Paulo. Fotos: Reprodução
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O mapa ilustra as batalhas travadas entre o Exército Constitucionalista e as tropas federais. Foi a maior mobilização militar do País no século 20, envolvendo no total 135 mil homens. Desde o início ficou evidente a desvantagem de São Paulo. O confronto deixou 830 mortos, dos quais 630 paulistas.
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Um herói que saiu das fileiras da ACSP Reprodução
Carlos de Souza Nazareth (esq.), na época presidente da ACSP, foi um líder destacado da Revolução de 1932. Acima, comício na Praça da Sé, no dia 24 de fevereiro, que reuniu mais de 100 mil manifestantes.
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Associação Comercial de São Paulo (ACSP) teve um papel relevante no Movimento Constitucionalista, em particular pela corajosa atuação de seu presidente na época, Carlos de Souza Nazareth, que assumiu o comando da entidade em 11 de fevereiro de 1932. O Brasil passava por uma profunda crise econômica e política, com o País sendo dirigido por um governo provisório, chefiado por Getúlio Vargas, que adiava o processo de reconstitucionalização do País para se manter no poder. A ACSP articulou um amplo movimento, chamado Liga Paulista PróConstituinte, que serviu de apoio à Frente Única Paulista (FUP), fruto da união entre membros do Partido Republicano Paulista (PRP) e Partido Democrático (PD), que tinha como principais reivindicações a autonomia de São Paulo, a nomeação imediata de um interventor no Estado que fosse paulista e civil (no que foi atendido) e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte. A Liga congregava dezenas de entidades representativas do Estado, que assinaram um manifesto em que se comprometeram a não pagar impostos federais e estaduais até que as reivindicações fossem atendidas. Ela também organizou um gigantesco comício na Praça da Sé, no dia 24 de fevereiro do mesmo ano, que reuniu mais de 100 mil manifestantes. As atas das reuniões da ACSP mostram a preocupação do seu presidente com a situação do Estado. Foram várias as correspondências trocadas na época com Getúlio Vargas: 19 de maio de 1932 - "Sua Excelência Senhor Dr. Getúlio Vargas, Chefe do Governo Provisório. As Associações representativas do comércio, indústria e da lavoura do Estado de São Paulo têm a honra de vir à presença de Vossa Excelência, a fim de pedir a sua esclarecida atenção para a grave situação deste Estado, que está com sua vida em suspenso diante da crise, já excessivamente prolongada de sua administração (...) Traduzindo as apreensões gerais, as corporações das classes conservadoras apelam para V. Excelência no sentido do interventor Pedro de Toledo (...) ser autorizado a dar à presente crise a solução
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urgente que ela reclama, organizando sem demora o seu Secretariado definitivo. Carlos de Souza Nazareth." 20 de maio de 1932 - "Senhor Carlos de Souza Nazareth, Presidente da ACSP. Acuso recebimento vosso telegrama, que tomei na melhor consideração, informando-vos que o assunto nele tratado será resolvido ainda esta semana e para facilitar-lhe a solução pedirei ao interventor ouvir seus signatários, representantes do comércio, indústria e lavoura de São Paulo, os quais não lhe negarão certamente a sua colaboração. Cordiais saudações. Getúlio Vargas." É indiscutível a relevância da atuação da ACSP junto ao governo provisório até a intervenção do embaixador Pedro de Toledo, que embora há muito tempo afastado do Estado, mereceu o apoio da FUP e acabou aderindo ao movimento constitucionalista. No dia 22 de maio, Getúlio Vargas envia o seu ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, para se reunir com o interventor Pedro de Toledo. Temia-se que a intenção era pressionar a formação de um secretariado tenentista, alinhado com a ditadura de Vargas. Várias manifestações ocorreram na cidade. No dia 23 de maio o movimento ganhou proporções gigantescas. A ACSP conclamou o comércio a fechar suas portas e a se juntar à multidão. O povo ocupou ruas, praças e janelas de edifícios, ouvindo discursos inflamados de oradores, como o promotor público Ibraim Nobre, José Lefevre, Gomes Martins, Dario Ribeiro Filho, Pereira Lima e outros. A multidão lotou a Praça do Patriarca, dirigiu-se ao Viaduto do Chá, Conselheiro Crispiniano, até chegar ao Palácio dos Campos Elíseos. Nesta mesma noite, manifestantes reunidos na Praça da República tentam invadir a sede da Legião Revolucionária, uma entidade pró-Vargas. Foram recebidos a tiros. Morreram os jovens Martins, Miragaia, Dráuzio e Camargo, imortalizados pela sigla MMDC. Pedro de Toledo se alinhou com os paulistas e formou seu secretariado com base em nomes sugeridos pelo promotor Ibraim Nobre. No dia 16 de junho, a ACSP organiza uma recepção ao interventor
Reprodução/AE
Arquivo pessoal
Os principais líderes da Revolução de 1932 foram presos e levados pra a Casa de Correção do Rio de Janeiro. Na primeira foto da página, Carlos de Souza Nazareth está em pé na segunda fileira, é o primeiro da direita para a esquerda. Juntamente com outras lideranças do movimento, Nazareth foi deportado para Portugal a bordo do navio Pedro I. Ele está de pé, na primeira fileira, é o primeiro da esquerda para a direita.
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O Obelisco do Ibirapuera é um monumento em homenagem aos heróis da Revolução de 1932. No seu interior há um mausoléu, onde se encontram os restos mortais de Carlos de Souza Nazareth.
federal e ao seu secretariado, com a participação de membros da Frente Única Paulista. Em seu discurso, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, o presidente Carlos de Souza Nazareth disse: "(...) em torno do nosso governo, que não é hoje somente uma expressão da sociedade politicamente organizada, mas também um símbolo da dignidade paulista, congregam-se todos os que aqui nasceram e que aqui vivem, todos os que pensam, trabalham e produzem animados pelos mesmos ideais. Já agora não sois somente o delegado do governo provisório, sois também o mandatário do povo, que vos outorgou, de modo inequívoco, os poderes que só a ele pertencem nas democracias fundadas no direito e na sociedade (...)" Dois dias depois, 18 de junho, o presidente da ACSP é homenageado no Clube Comercial, solenidade que reuniu cerca de 300 pessoas, entre representantes do governo, da Liga PróConstituinte, associações de classe, centros e grêmios acadêmicos. Em seu discurso, Nazareth enfatizou: "(...) De São Paulo, meus senhores, deve partir o grande gesto de paz, a palavra de transigência e de concórdia, para a maior grandeza do Brasil. Cabe à nossa terra a grandiosa missão de serenidade. Se os paulistas demonstraram o seu valor cívico sabendo ser soldado quando foi preciso, também sabe persuadir quando é mister congraçar e justo quando deve julgar. Meus amigos, São Paulo exige que todos os seus filhos estejam unidos. São Paulo unido será forte, forte será livre e livre será feliz. Que a nossa sociedade anatematize aqueles que pretendem romper essa união." Em 9 de julho de 1932 estoura a Revolução Constitucionalista. Carlos de Souza Nazareth e os membros da diretoria da ACSP
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assumiram inúmeras tarefas para auxiliar o movimento. Foram responsáveis pelo controle de receita e despesa, além de serem um importante elo de comunicação entre governo e entidades de classe, comércio, indústria e agricultores. A ACSP foi a responsável pelas campanhas de produção de capacetes e de doação de ouro (Ouro para o Bem de São Paulo). Nazareth chefiou pessoalmente o Departamento de Abastecimento e dirigiu outros serviços, que tinham o objetivo de promover a assistência à frente de combate e retaguarda, incluindo o auxílio às famílias dos voluntários. O presidente da ACSP chegou a fazer um apelo pela Rádio Educadora Paulista aos comerciantes e às indústrias para que não aumentassem os preços dos produtos e que garantissem o emprego e os salários dos empregados que desejassem alistarse ao movimento. Tudo isso para evitar que a população fosse penalizada ainda mais com a situação. Em discurso transmitido pela Rádio Sociedade Record, Carlos de Souza Nazareth afirmou: "Não foi senão para restituir ao País a tranqüilidade de que o fizera órfão a ditadura que São Paulo deixou a alavanca - utensílio da paz - e apanhou o fuzil - utensílio da guerra. Se havia de mandar emissários ao Rio, para insistir naquele jogo inútil de conferências, que a nenhum resultado prático chegavam, preferiu enviar seus filhos para as trincheiras, com autoridade para negociar ao som dos canhões da liberdade, o único acordo possível: o acordo da vitória!" Entre agosto e setembro os combates foram ferozes e a desvantagem dos paulistas frente às forças federais era evidente. Soldados de Minas Gerais atravessaram a fronteira e ameaçavam as cidades de Cruzeiro e Campinas; tropas federais tomam Itapira (próximo a Mogi Mirim), Pinheiros, Lavrinhas e outras cidades do Vale do Paraíba. A última batalha foi em torno de Campinas, que foi bombardeada. Em 1º de outubro é assinado
o armistício, com o fim da guerra. Após a rendição dos paulistas, Carlos de Souza Nazareth, juntamente com outros líderes do movimento, foi preso, enviado à Casa de Correção do Rio de Janeiro e depois exilado em Portugal, onde ficou por dois anos até o País restabelecer o regime democrático. Da prisão, após saber que seria deportado, Nazareth enviou uma mensagem por telégrafo para a diretoria da ACSP, concluída com a célebre frase, que tornou-se o seu lema: "Não esmorecer para não desmerecer". Ao regressar ao Brasil, Carlos de Souza Nazareth assumiu a presidência da Companhia de Armazéns Gerais e mais tarde foi eleito deputado na assembléia Estadual Constituinte até 1937. Deixou a política e se dedicou às atividades relacionadas com o comércio e a indústria. Foi presidente da Bolsa de Mercadorias de São Paulo (BMSP, que em maio de 1991 foi incorporada à BM&F). Carlos de Souza Nazareth faleceu no dia 28 de março de 1951 por problemas cardíacos. Seis anos depois, seus restos mortais foram transferidos para o mausoléu no Obelisco do Ibirapuera da Revolução de 1932. Em 19 de agosto de 2003, o governador Geraldo Alckmin, por meio do Decreto Nº 48.033 oficializou a criação do Colar Carlos de Souza Nazareth, instituído pela Associação Comercial de São Paulo, que tem por objetivo homenagear personalidades brasileiras ou estrangeiras, que por seus méritos pessoais e relevantes serviços prestados a tudo quanto diz respeito à cidadania, tenham-se tornado dignas de reconhecimento público. Trata-se de uma cruz de Malta esmaltada de amarelo e perfilada de ouro, com 75 mm de extremo a extremo de seus ramos, com a efígie de Carlos de Souza Nazareth, de perfil oitavado e no reverso um disco trazendo o emblema da Associação Comercial de São Paulo.
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A fachada do prédio Ouro para o Bem de São Paulo, reproduz a bandeira paulista tremulando. Acima, placa fixada no hall.
TESOURO HISTÓRICO
SOTERRADO Alex Ribeiro/DC
A
Campanha "Doe Ouro para o Bem de São Paulo" é um episódio relevante da História do Brasil. Mas ficou sempre relegada a segundo plano pela historiografia, a notas de rodapé, ao limbo. Há, sem exagero, várias centenas de livros escritos sobre a Revolução Constitucionalista de 1932. Sobretudo relatos do front, dos chamados heróis de guerra. Já sobre a Campanha do Ouro, nada, ou quase nada. É, no mínimo, intrigante... Afinal, trata-se de uma mobilização cívica que, durante várias semanas, envolveu dezenas de milhares de participantes, com organização extremamente sofisticada e com expressivos resultados numéricos (seja em quantidade de doadores, ou em volume de recursos arrecadados). Há emoção nisso tudo. Lances pitorescos de sobra. Crime, inclusive – como se verá adiante. Um verdadeiro tesouro histórico. Soterrado pelo esquecimento. Bem, comecemos nossa história pelo princípio. Quando resolvi mudar a Editora Lettera.doc para o centro da cidade, em fins de 2005, encantou-me, desde logo, o prédio Ouro para o Bem de São Paulo, localizado no Largo da Misericórdia, a duas quadras do Páteo do Colégio. A placa fixada no hall de entrada chama a atenção pelos dizeres: "Irmandade da Santa
Alex Ribeiro/DC
Casa de Misericórdia de São Paulo – este edifício foi construído com o ouro angariado para o bem de São Paulo em 1932". Engenhada pelo escritório de arquitetura Severo e Villares, sucessor de Ramos de Azevedo, a fachada do prédio, com suas formas recurvadas, reproduz a bandeira paulista tremulando. Farejei: "aí tem história". E, já com a Editora Lettera.doc instalada no prédio, pus-me a pesquisar. Eu já ouvira falar na Campanha do Ouro de 32 e sabia da confusão que reinava entre ela e sua congênere, a campanha "Doe Ouro para o Bem do Brasil", organizada por Assis Chateubriand e seus Diários Associados em prol do golpe civil-militar de 1º de abril de 1964. Era tudo que eu sabia. Clica em sites de busca na internet daqui; consulta bibliotecas e livrarias dali; enfim, concluí, depois de algumas semanas de pesquisa, que o assunto era muito maltratado pela historiografia. Já estava desistindo de encontrar qualquer livro específico, quando, por obra do destino, deparei, em um sebo, exemplar, em dois grossos volumes, com detalhadas informações sobre a Campanha do Ouro de 1932. Quis o livreiro vultosa quantia. Negociante, ele já se acostumara com minha presença de curioso, pois
Cássio Schubsky Diretor Editorial da Editora Lettera.doc, bacharel em Direito pela USP e em História pela PUC/SP, autor de Advocacia – a trajetória da Associação dos Advogados de São Paulo e co-autor de A heróica pancada – Centro Acadêmico XI de Agosto: cem anos de lutas cassio@letteradoc.com.br
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Fotos: Reprodução
A campanha do ouro foi iniciada a partir de uma reunião na ACSP, em 8 de agosto de 1932. Já em 12 de agosto, começam os trabalhos de arrecadação de recursos, que se alongam até setembro. Cerca de 450 kg de ouro foram destinados ao Tesouro do Estado de São Paulo para a compra de artefatos militares e à luta revolucionária. Percebendo a supremacia das tropas federais, em 23 de setembro o excedente é doado à Santa Casa de Misericórdia. Temia-se perder o dinheiro arrecadado.
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Agliberto Lima/DC
eu vivia a importuná-lo, de tempos em tempos, em busca do ouro perdido... Ele ameaçou: "Compre logo, ou ficará sem. Chegou hoje. Trata-se de uma raridade, vou vender rápido". Agradeci, "comovido", e resolvi dar uma busca extra em bibliotecas. Acabei por encontrar um exemplar da raridade na Mário de Andrade, que, como mostram os registros de consulta, mofava esquecido há décadas. Larguei, sem pestanejar, qualquer preocupação comezinha de editor e empresário, dedicando-me a ler, ávido, o achado, dias seguidos, com ganas de historiador. E os olhos foram se arregalando a cada descoberta. A edição deste Relatório das Comissões de Direção e Executiva da Campanha do Ouro e da Comissão da Campanha do Ouro da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo data de 1940 e foi publicada em livro pela Editora Revista dos Tribunais. (Curiosamente, nas minhas primeiras consultas, há cerca de um ano, a obra estava alocada na seção geral da biblioteca; em recente busca pelo livro, para checar informações para a redação do presente artigo, fui encontrá-lo, depois de um bom périplo na Mário de Andrade, na seção de livros raros).
Assina o relatório Synesio Rangel Pestana, um dos três representantes nomeados pela Associação Comercial de São Paulo para integrar a Comissão Executiva da Campanha do Ouro e produzir o inventário dos episódios relativos a ela. Os outros dois membros eram João Maurício de Sampaio Vianna (que faleceu no decorrer dos trabalhos) e José Carlos de Macedo Soares (que se ausentou de suas tarefas). Chama a atenção, desde logo, que se passaram cerca de oito anos entre o fim da Campanha do Ouro e a publicação do relatório. O próprio autor, Rangel Pestana, esclarece as dificuldades encontradas para relatar, a contento, as atividades da Campanha. De todo modo, o relatório é um mapa da mina, que oferece pistas valiosas sobre a história do movimento de arrecadação de recursos para a Revolução de 1932 e seus desdobramentos. Na introdução, fica explicado que a Campanha do Ouro foi iniciada a partir de reunião realizada na sede da Associação Comercial de São Paulo, em 8 de agosto de 1932. Já em 12 de agosto, começam os trabalhos de arrecadação de recursos, que se alongam até setembro. Cerca de 450 Kg de ouro foram destinados ao Te-
Em outubro de 1934, a Santa Casa de Misericórdia repassa para a ACSP barras de ouro e prata fundidas com os objetos arrecadados na campanha. Essas peças fazem parte do acervo da entidade.
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souro do Estado de São Paulo para a compra de artefatos militares e suporte à luta revolucionária. Percebendo a supremacia das tropas federais no circo das operações de guerra, consuma-se, em 23 de setembro, a doação do montante excedente arrecadado para entidades filantrópicas, com destaque para a Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Temia-se que, além da guerra, os paulistas também perdessem o ouro e o dinheiro arrecadados. Com justeza, alerta o autor que, antes de a Associação Comercial de São Paulo, a sua congênere de Santos tivera a idéia de iniciar uma campanha de arrecadação de recursos. Centralizada a Campanha do Ouro na capital paulista, foram organizadas duas comissões: a Diretiva (comandada por José Maria Whitaker) e a Executiva (presidida por Antonio Prado Jr.). Esta, por sua vez, organizou dois departamentos: Direção Artística e Direção de Publicidade. A Direção Artística – capitaneada pelo artista J. Watsch – cuidou de projetar cartazes de propaganda e modelos de diplomas, medalhas e anéis comemorativos. A Direção de Publicidade – a cargo do jornalista Francisco Pati – elaborava releases diários para a imprensa sobre novidades da Campanha do Ouro.
Um concurso organizado pela Direção Artística estimulou a produção de cartazes comemorativos e de propaganda, e os três primeiros colocados receberam prêmios em dinheiro. Houve exposição dos cartazes concorrentes, na Rua Libero Badaró – "visitadíssima", segundo o relatório. Foi montada uma sofisticada estrutura logística para arrecadação, avaliação e fundição do ouro, envolvendo uma rede espalhada pelo Estado inteiro. Jóias e objetos de arte, além de dinheiro, também foram fartamente doados. No total, foram realizadas cerca de 70 mil doações, incluindo – número assombroso! – exatas 56.283 alianças de casamento, que foram trocadas por anéis de latão com a inscrição "doei ouro para o bem de São Paulo". O valor total arrecadado com a Campanha, segundo dados da Santa Casa, foi de
DC
Acima, anéis entregues pela população para a campanha 'Doe Ouro para o Bem de São Paulo'. Foram mais de 56 mil anéis doados.
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Paulo Pampolim/Digna Imagem
o Lima/
Aglibert
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Os anéis e outros objetos eram depositados em uma salva de prata (ao lado). Foram contabilizados mais de 70 mil doações.
6.648:499$010 (seis mil e seiscentos e quarenA Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de ta e oito contos, quatrocentos e noventa e noSão Paulo, como era do seu dever, propôs ação civil e ve mil e dez réis). A relação completa de doacriminal contra o criminoso, tendo obtido sentendores, com as cifras doadas por cada um, inças favoráveis, com a condenação do réu, que cumtegra uma boa parte do primeiro volume priu a pena imposta, não ressarcindo porém o pre(doadores da capital paulista) e o segundo juízo material causado, apesar de compelido por volume inteiro do relatório (com sentença passada em julgado, porque Agliberto Lima/DC os donativos do interior do não teve recursos para restituir Estado de São Paulo e de a quantia desviada". outros estados da FeRangel Pestana não deração). declina o nome do Depois que os larápio e nenhum recursos foram detalhe adicional repassados pela sobre o delito e o Associação Coc um pr im en to mercial para a da pena de reSanta Casa de clusão. Seja coMisericórdia de mo for, com o diSão Paulo, assinheiro restante nala Synesio Randa Campanha, ergel Pestana, sobregueu-se o edifício vém um fato insólito. Ouro para o Bem de Transcrevo o trecho inteiSão Paulo, ainda hoje paro (página 9 do relatório): trimônio da Santa Casa de São "A Campanha do Ouro para o Paulo, e beneficiaram-se dezenas Bem de São Paulo, tão bride outras entidades benelhantemente iniciada peficentes paulistas. las comissões da AsEnfim, há muisociação Comerto história para cial de São Paulo se contar soe levada a termo bre a Campor elas com panha do tanta felicidaOuro para o de, foi contiBem de São nuada pela coPaulo. É missão da Sanj u s t am e n t e ta Casa com o isso o que premesmo êxito até t e n d e m o s f aquase o final. Infelizzer, como resultamente, já no fim de sua tado da pesquisa que refa, uma lamentável ocordeverá ser publicada pela Quem fazia uma doação, rência veio empanar o brilho Editora Lettera.doc, na recebia em troca uma de sua gestão. forma de um livro recheamedalha ou anel de latão, Um funcionário desodo com documentos, iluscom uma inscrição nesto, iludindo a confiança trações e fotos. O tesouro atestando que havia dos membros da Comissão histórico merece ser reveparticipado da campanha. do Ouro, que nele confiaram lado. E relembrado. porque lhes foi apresentado por honrado cavalheiro, Nota do autor: A Santa porque vinha servindo à Comissão Executiva da Casa de Misericórdia de São Paulo mantém, Associação Comercial desde o início da Campaem sua sede, um museu com objetos, livros e nha e porque o nome tradicional de sua família, documentos sobre a Revolução de 1932 e a que ele tão mal usou, era para nós um penhor de Campanha do Ouro; a Associação Comercial probidade, apropriou-se, indebitamente, de uma de São Paulo possui ampla biblioteca, com miparcela da quantia obtida, correspondente mais lhares de volumes. Em nenhum dos dois loou menos a um décimo da cifra apurada na seguncais, encontrei exemplar do relatório de Syneda fase da Campanha. sio Rangel Pestana.
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Bento XVI no Brasil de todos os santos Domingos Zamagna
Alex Ribeiro/DC
Jornalista e professor de Filosofia
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O
s fatos religiosos são extensos demais, no espaço e no tempo, para serem desprezados ou ignorados. Deixar de acompanhá-los é privar-se de importante fonte de conhecimento da nossa realidade, mormente nos países latino-americanos, africanos e asiáticos. Engana-se quem pensa que possa interpretar corretamente os povos dessas nações sem levar em conta o fator religioso. Por isso, a visita do papa Bento XVI ao Brasil, entre 9 e 14 de maio, mereceu destaque na imprensa e despertou os estudiosos para as análises acerca do catolicismo brasileiro, seu passado e seu porvir. Sabidamente, o Brasil é o país com o maior número de católicos no mundo, estimados em 127 milhões, equivalentes a 74% da população. Na América Latina ele é seguido pelo México (91 milhões, 90,31%), Colômbia (38 milhões, 90%), Argentina (33 milhões, 92,22%), Peru (23 milhões, 89%) e Venezuela (21 milhões, 88, 6%). Os 38 países da América Latina, cujas populações perfazem 526 milhões de habitantes, abrigam 431 milhões de católicos.
O que chama a atenção dos observadores é que esse imenso rebanho católico vem decrescendo no Brasil, numa proporção tal que, persistindo as condições atuais, dentro de mais algumas décadas, o catolicismo poderá vir a ser uma confissão religiosa minoritária, sobretudo em relação às chamadas "seitas evangélicas". Mas o catolicismo não está sozinho nessa vicissitude, pois fenômeno análogo sucede com outras igrejas cristãs históricas, tais como o luteranismo, o anglicanismo, o metodismo etc. Para dirigir os católicos brasileiros, a Igreja dispõe de 429 bispos, 16.800 sacerdotes, 1.250 diáconos, 35 mil religiosas e meio milhão de catequistas, numa extensa capilaridade de instituições que abrange dioceses, paróquias, capelas, missões, movimentos, pastorais, creches, colégios, universidades, hospitais, editoras, jornais, revistas, rádios, televisões etc. Sempre houve quem dissesse que a diminuição dos fiéis é devida à escassez do clero. Costuma-se dizer que o número de agentes eclesiais é insuficiente para as necessidades da Igreja brasileira. Se a comparação for feita com a Itália, o Canadá, a Polônia, a Espanha...
Missa no Campo de Marte, em São Paulo: o imenso rebanho católico vem decrescendo, perdendo fiéis para seitas evangélicas.
Agliberto Lima/DC
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mento de sacerdotes para a repetição de práticas e estruturas que demonstram fadiga pastoral. Alguma providência deverá ser tomada se a Igreja desejar reverter a situação de crescente perda de fiéis. A vinda do papa Bento XVI ao Brasil se inseriu neste contexto: uma tentativa de robustecimento do catolicismo. Para isso, os estrategistas eclesiásticos tomaram algumas iniciativas. A CANONIZAÇÃO DE FREI GALVÃO O papa dispõe de um arsenal de símbolos, que muitas vezes exerceram grande poder de convencimento na história do cristianismo. Um deles é a canonização dos santos. A canonização é a proclamação de que o Evangelho, do qual a Igreja se considera guardiã, não é uma utopia; ele pode ser vivido por homens e mulheres no cotidiano. Não existe uma reserva de mercado para a santidade: escravos, soldados, crianças, casais, religiosos, bispos e papas, jovens, doentes, grandes pecadores, operários, prisioneiros... todos podem ser santos e santas. Depois de 500 anos de cristianismo, já era hora de o Brasil também produzir os seus santos. Frei Galvão é o primeiro de uma lista de espera que já passa de trinta. Não deixa de ser um estímulo, os brasileiros também poderão receber as honras dos altares. Mas vai depender deles, isto é, se viverem o Evangelho, como é pregado pela Igreja. O ENCONTRO COM OS JOVENS
Já era hora de o Brasil também produzir os seus santos. Frei Galvão é o primeiro de uma lista de espera, que já passa de trinta.
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o número de sacerdotes e religiosos é realmente pequeno. Pequeno e extremamente mal distribuído pelo território nacional. Mas a Igreja brasileira ainda é muito reticente ao trabalho dos leigos, que se sentem marginalizados. A promoção dos leigos é vista por certas lideranças católicas como perigosa e competitiva com o clero. Clero nem sempre bem preparado intelectualmente, tantas vezes aquém das exigências que o mundo moderno requer das lideranças, inclusive as religiosas. Ora, dado o sistema centralizador que caracteriza a pragmática do catolicismo, é impossível qualquer renovação eclesial sem uma renovação do próprio clero. Parece ser insuficiente o au-
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O nosso país é constituído por uma população jovem e pobre. O papa quis encontrá-los em duas ocasiões: no estádio do Pacaembu e na Fazenda da Esperança. No primeiro encontro, o papa falou sobre os valores, pregando um cristianismo vigoroso, sem concessões ao hedonismo, às licenciosidades. Repetiu a doutrina clássica da Igreja: relações sexuais reservadas ao âmbito do casamento; condenação aos contraceptivos, ao aborto, aos homossexualismos; proteção da infância, valorização da família e da educação religiosa dos filhos. Um encontro, contudo, reservado a convidados, portanto a jovens católicos já motivados e de certo modo em sintonia com o que o papa lhes dizia. O segundo encontro foi com os assistidos pela pastoral especializada na recuperação de dependentes de drogas. Mais importante que tudo foi o papa ter ido até lá, dando visibilidade a uma obra de grande sucesso, com métodos terapêuticos alternativos, com especial ênfase para o trabalho, os esportes, a solidarie-
Alex Ribeiro/DC
dade e a oração. O papa deixou uma mensagem forte (para quem conhece a linguagem religiosa) de condenação ao narcotráfico, essa forma de criminalidade covarde, que envenena os adolescentes e jovens, destrói famílias e institucionaliza a violência numa extensa cadeia, desde a produção até a distribuição e o consumo dos tóxicos, deixando um saldo de corrupção, doença e morte. É sabido que as Igrejas todas podem dar uma grande contribuição, sobretudo na educação e prevenção contra o uso das drogas. BENTO XVI E AS AUTORIDADES BRASILEIRAS Por uma série de eventos de ordem histórica, o sucessor do discípulo de Cristo, o humilde pescador Pedro, tornou-se também um chefe de estado; estado minúsculo, mas reconhecido por quase todas as nações do mundo. É sabido que a Santa Sé, através do Estado da Cidade do Vaticano, desenvolve intensa ação diplomática no mundo. E o Vaticano sempre teve grande relacionamento com o Brasil. Embora o papa tenha vindo em missão pastoral, não teria sentido não ser recebido pelas autoridades da República, nem poderia ele deixar de retribuir-lhes os gestos de cortesia em nome da nação brasileira. Ao presidente da República, o papa solicitou duas coisas: a possibilidade da introdução do ensino religioso nas escolas públicas e uma agilização para os vistos de entrada destinados a religiosos estrangeiros que venham trabalhar com populações pobres e marginalizadas. Essas práticas já existem em muitas nações do primeiro mundo, sem causar qualquer tipo de atrito. Mas o papa teve de ouvir do presidente da República o que seus assessores certamente lhe sopraram aos ouvidos: o Brasil é uma República laica! Coisa que o papa já sabia, como professor de universidade alemã, antes que o atual presidente da República atingisse o uso da razão. Talvez, se houvesse ensino religioso — católico, judaico, protestante, muçulmano, budista etc. — nas escolas, obviamente voluntário e sem onerar os cofres da nação, a República não tivesse chegado ao descalabro em que se encontra em matéria de corrupção do Executivo, Legislativo e Judiciário. A ABERTURA DO V CELAM Bento XVI chegou a se reunir com os bispos brasileiros na catedral da Sé, num momento de oração. Mas apresentou-lhes um discurso quase burocrático, uma aula de porte médio,
Agliberto Lima/DC
resumindo matéria que até os seminaristas conhecem de cor. Assim também aconteceu no encontro com os representantes das religiões não-católicas; tão rápido, não houve diálogo algum. Talvez tenha se poupado para a reunião seguinte. Com efeito, parte importante da visita papal foi a abertura da V Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe. Não somente os olhos da América Latina e do Caribe, mas os do mundo inteiro se voltaram para a reunião no santuário nacional de Aparecida-SP. Desde a reunião de Medellín (1968) esses encontros passam em revista a situação do nosso continente, sempre precedidos de amplas consultas e discussões entre as comunidades das diversas nações. No discurso de abertura da conferência, enquanto falava Bento XVI, pudemos entrever o antigo teólogo Joseph Ratzinger, perito do
Bento XVI desfila de papamóvel na Missa campal na Basílica de Nossa Senhora Aparecida. Acima, encontro com o presidente Lula e o governador José Serra.
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Jonne Roriz/AE
No santuário nacional de Aparecida, missa campal, que reuniu milhares de fiéis, e a abertura da V Conferência Episcopal da América Latina e do Caribe.
Concílio Vaticano II, com uma teologia arejada, uma visão ampla dos problemas do mundo, agora aplicados ao nosso continente. Apenas um escorregão, e grave, quando minimizou a violência perpetrada pelos conquistadores cristãos sobre as nações indígenas. A correção desse deslize precisou ser imediatamente providenciada na primeira vez que concedeu audiência pública, após seu retorno a Roma. O documento final do V Celam, de 121 páginas, já foi concluído. Mas para se tornar oficial precisa ainda ser aprovado por Bento XVI, o que deve acontecer dentro de mais algumas semanas ou meses. Quando isso for feito, poderemos analisá-lo detalhadamente, confrontando o original com as eventuais correções, supressões ou censuras promovidas pela Santa Sé. O FUTURO DA IGREJA CATÓLICA
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Quem esperava de Bento XVI uma forma de energização para reverter a situação do catolicismo, deve estar decepcionado. Os católicos brasileiros gostam do papa, de qualquer papa. Seus contatos com o povo foram breves, porém, carinhosos, emotivos, reverenciais. Dentro de mais alguns meses tudo poderá até ser esquecido. Não é a presença física do papa que muda a realidade. Ele pode estimular, propor, contagiar as comunidades com um espírito, o que certamente ele fez. Há, porém, algo que causa grande ruído na Igreja católica brasileira. Existe nela uma aparente unidade, mas na prática, extensa divisão. Não se trata daquela divisão que conduz à separação, à heresia, ao cisma. Mas de qualquer forma, dispõe os católicos em fileiras distantes umas das outras, causando certa corrosão, desgaste, dispersão. A Igreja está toda distribuída entre grupos que não se entendem, encastelados e envaidecidos de suas conquistas ou horrorizados de suas derrotas. Isso se verifica entre os bispos, entre os sacerdotes, entre os leigos. Faz lembrar uma frase do apóstolo Paulo, quando criticava as divisões na Igreja: "Eu sou de Paulo, eu sou de Pedro, eu sou de Apolo..." Os católicos passam pelo que Mindy Fullilove chamou de "root shock" (um choque de raízes). Essa análise surgiu no contexto da destruição das casas dos ne-
Valéria Gonçalvez/AE
gros em nome do desenvolvimento urbano: suas comunidades foram dispersas, fragilizou-se o ecossistema emocional, instauraramse forças dissipativas. Um dos efeitos do choque de raízes é o desejo de só viver com pessoas que pensam como você próprio, surgindo daí a insuficiência para lidar com as diferenças e a desestabilização dos relacionamentos. O choque de raízes que os católicos vivem é a perda da casa. Não se sentindo em seu ambiente, procuram um outro espaço, migram para religiões diversas, à procura do lar perdido. A
difícil missão do papa é fazer urgentemente que todos se sintam em casa, que não precisem procurar outras demoras, que a Igreja é um espaço de diálogo e não de exclusão. Sem a sincera e efetiva prática do diálogo fica difícil vislumbrar o futuro da Igreja. É o diálogo que desata os nós, refaz os liames e promove a comunhão (comum-união) das pessoas. Que a visita de Bento XVI contribua para uma nova etapa da vida da Igreja em vista do diálogo e que, unida, ao lado das demais religiões, seja capaz de melhor servir ao povo.
O papa visitou a Fazenda da Esperança, projeto social do frei Hans Stapel, voltado para a recuperação de dependentes químicos.
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Para derrotar EUA ocup Rodrigo Garcia
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Um Pequeno Guia para o Iraque: livro produzido pelo Depto. da Guerra e da Marinha traz conselhos práticos e muitas ilustrações.
nviar soldados aos Iraque já faz parte da tradição norte-americana. Em menos de 60 anos, os Estados Unidos já ocuparam o território iraquiano em três ocasiões. Esta, iniciada em 2003, é a terceira vez. A segunda foi nos anos 90, na primeira guerra do Golfo. A primeira, com mais êxitos, ocorreu a partir de 1942 e, como a atual ,também tinha, segundo a Casa Branca, um objetivo nobre: evitar que tropas aliadas a Adolf Hitler controlassem o Iraque. Dessa ocupação, há um livro produzido pelos Departamentos da Guerra e da Marinha dos Estados Unidos, “Um Pequeno Guia para o Iraque”, com informações sobre o país e como os militares americanos deveriam agir. Ao lê-lo, percebe-se que, em mais de 65 anos, a retórica dos Estados Unidos sobre o Iraque e os iraquianos mudou muito pouco. Escrito em 1942, o guia tem 40 páginas, com um mapa do Oriente Médio e muitas ilustraReprodução
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ções didáticas. Seu principal objetivo era mostrar como o soldado americano deveria se comportar no país que estava protegendo de um possível ataque das tropas alemãs. Freqüentemente o texto é igual ao de um guia turístico tradicional destinado a norteamericanos, com informações sobre história, geografia, cultura, clima, moeda e como dizer algumas frases básicas em árabe. Também há muitos conselhos práticos. Aliás, existe um capítulo só com dicas: “Alguns Importantes Faça e Não Faça” (veja o box). Esses conselhos podem ser resumidos em um só: “Sobretudo, use o bom senso em todas as ocasiões. E lembre-se de que todo soldado americano é um embaixador não-oficial da boa vontade.” Logo na introdução, entretanto, Washington lembra a seus soldados que eles não são simples turistas: "Você foi enviado ao Iraque como parte da ofensiva mundial para derrotar Hitler." Você vai entrar no Iraque tanto como um soldado quanto como um indivíduo, porque no nosso lado um homem pode ser tanto um soldado, quanto um indivíduo. Essa é a nossa força – se formos inteligentes o suficiente para usá-la. Essa pode ser a nossa fraqueza, se não formos. Como soldado, suas obrigações lhe serão ditas. E como indivíduo, o que você faz por sua conta é o que importa – e importa bem mais do que você imagina. O sucesso ou o fracasso americano no Iraque pode depender muito se os iraquianos (como as pessoas são chamadas) vão gostar dos americanos ou não. Talvez não seja assim tão simples. Mas, novamente, poderá ser. Herr Hitler sabe que estará derrotado se as
Hitler, aram o Iraque pessoas contra ele se unirem com firmeza. Então é muito óbvio o que ele e sua máquina de propaganda estão tentando fazer. Eles estão tentando espalhar a desunião e a insatisfação entre seus opositores sempre que podem. Então qual a solução? Ela deve ser bastante óbvia também. Uma de suas grandes missões é evitar que os agentes de Hitler façam o trabalho sujo deles. A melhor maneira que você pode conseguir isso é entender-se com os iraquianos e torná-los seus amigos. E a melhor maneira de dar-se com qualquer povo é entendê-lo bem. Este guia é para isso. Para ajudá-lo a entender as pessoas e o país, a fim de que você possa fazer melhor e mais rápido a missão de mandar Hitler de volta para de onde ele veio.” A primeira parte do guia termina de uma forma bem otimista: “E, em segundo lugar, você como ser humano terá uma experiência que poucos norte-americanos têm sido sortudos o suficiente para ter. Anos vão se passar e você estará contando a seus filhos e talvez netos histórias começando assim: Quando eu estive em Bagdá...”
As habilidades militares dos iraquianos também foram ressaltadas: “Aquele homem usando uma bela túnica, que você verá em breve, com barba e cabelo longo, é um guerreiro de primeira classe, muito especializado na luta de guerrilha. Poucos guerreiros em qualquer país, de fato, o supera nesse tipo de situação. Se ele for seu amigo, pode ser um aliado leal e valioso. Se ocorrer de ele ser seu inimigo – cuidado! Lembra-te de Lawrence da Arábia? Bem, foi com homens como esse que ele escreveu a história na Primeira Guerra Mundial.” O guia também chama a atenção para as possibilidades de a Alemanha usar as divisões internas dos iraquianos para vencer a guerra: “Os iraquianos têm algumas diferenças religiosas e tribais entre eles mesmos. Hitler tem tentado usar essas diferenças para seus próprios fins. Se você conseguir ganhar a confiança e a amizade de todos os iraquianos que conhecer, você fará mais do que acha possível para ajudar a trazê-los juntos para nossa causa comum.
O livro traz mapas, informações sobre história, cultura, clima, moeda e como dizer algumas palavras em árabe.
O alto comando militar americano fez questão de explicar, de forma bem resumida, a importância geopolítica do Iraque: “O Iraque é uma parte estratégica da grande 'ponte de terra' entre a Europa e a Índia – o caminho que Hitler TEM A ESPERANÇA de usar para unir as mãos com seus aliados que apunhalam pelas costas, os japas. Também o Golfo Pérsico é uma importante porta de serviço para nós entregarmos suprimentos a nossos aliados russos. E ainda mais, o Iraque tem grande importância militar por causa de seus campos petrolíferos, com seus oleodutos para o Mar Mediterrâneo. Sim, o Iraque é um ponto importante por vários motivos.”
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ser manobrado para fazer declarações que poderiam ser interpretadas como críticas a nossos aliados. Sua melhor atitude é ficar fora completamente de qualquer discussão política ou religiosa. Ao entrar nela, você só vai ajudar aos propagandistas nazistas, que estão tentando criar problemas entre os iraquianos.”
Desnecessário dizer, Hitler também vai tentar usar as diferenças entre nós mesmos e os iraquianos para causar problemas. Mas nós temos uma arma para derrotar esse tipo de coisa: um simples e geral bom senso. Vamos usá-lo. O jogo de Hitler é dividir e conquistar. O nosso é unir e vencer!” Durante todo o texto, há um enorme esforço dos comandantes em alertar os soldados americanos sobre as diferenças entre os dois países e, sobretudo, que elas têm de ser respeitadas: “Diferenças? Claro que há diferenças. Diferenças de costume. Diferenças de alimentação. Diferenças de hábitos e de crenças religiosas. Diferentes atitudes em relação às mulheres. Diferenças abundam. Mas e daí? Você não está indo ao Iraque para mudar os iraquianos. Justamente o contrário. Nos estamos travando esta guerra para preservar o princípio de 'viva e deixe viver'. Talvez isso pareça como um monte de palavras quando você estava em casa. Agora você tem a chance de demonstrá-lo para você mesmo e para os outros. Se você conseguir, será um mundo melhor para se viver para todos nós.” As autoridades de Washington expressam enfaticamente que os soldados devem evitar entrar em qualquer tipo de conflito com os iraquianos: “É uma boa idéia, em qualquer país estrangeiro, evitar qualquer discussão política ou religiosa. Isso é ainda mais verdadeiro no Iraque do que em outros países, porque ocorre que aqui os próprios muçulmanos estão divididos em duas facções, algo como nossa divisão entre católicos e protestantes – então não meta o nariz quando os iraquianos discutirem sobre religião. Também há diferenças políticas no Iraque, que têm confundido diplomatas e estadistas. Você não vai ajudar de forma nenhuma ao participar delas. Além disso, se você discutir política externa com os iraquianos, você pode
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Em vários trechos, “Um Pequeno Guia para o Iraque” explica quais procedimentos o soldado americano deve ter em relação às mesquitas: “Os iraquianos são muito devotados à sua religião e não gostam que um 'infiel' (para eles, você é um 'infiel') chegue perto de suas mesquitas. Geralmente, você pode reconhecer uma mesquita por sua torre alta. Fique longe das mesquitas. Mesmo que você tenha visitado mesquitas na Síria ou no Egito, não se pode entrar nas mesquitas no Iraque. Se tentar entrar em uma, você será expulso, provavelmente com muita violência. Os muçulmanos iraquianos até se ressentem caso os infiéis cheguem perto das mesquitas. Se você ficar perto demais de uma mesquita, afaste-se rapidamente antes que os problemas comecem. A religião muçulmana exige que um homem reze cinco vezes por dia. O que é feito na direção da cidade sagrada de Meca e com uma série de prostrações. Não olhe fixamente para ninguém que esteja rezando e, sobretudo, não zombe. Respeite a religião deles e eles respeitarão a sua.” Já sobre as muçulmanas, o guia chama muito a atenção para cuidados especiais: “As mulheres muçulmanas não se misturam livremente com os homens. A maior parte do tempo elas passam em casa, com sua família. Nunca aborde uma mulher ou tente chamar sua atenção nas ruas ou em outro local público. Não fique perto quando elas estiverem fazendo compras. Se ocasionalmente uma mulher deixar cair o véu durante as compras, não fique olhando para ela nem sorria. Olhe para o outro lado. Essas regras são extremamente importantes. Os muçulmanos vão desgostar de você imediatamente e haverá problemas se você não tratar as mulheres de acordo com as normas e costumes deles. Essas regras são aplicadas tanto nas cidades, quanto nas vilas e nos desertos. As mulheres da vila e do deserto saem mais sem véu do que as das cidades e parecem ter mais liberdade. Mas as regras ainda são restritas. Qualquer abordagem de sua parte vai significar problemas, muitos problemas. Até quando estiver falando com um iraquiano, nenhuma menção deve ser feita às mulheres da família dele. Os próprios iraquianos seguem esse costume e ficarão ressentidos se alguém, principalmente um estrangeiro, não fizer o mesmo. Repetindo: Não tente paquerar nenhuma mulher muçulmana ou haverá problemas. De qualquer modo, você não conseguirá nada com isso. As prostitutas não andam pelas ruas, elas vivem em bairros especiais das cidades.”
Mas, sete páginas depois, no capítulo de dicas de saúde, o alto comando adverte: “Há muitas doenças venéreas por aí, então não corra o risco.” O guia também trata do que se pode fotografar no país, pois há muitas restrições por causa da grande quantidade de iraquianos que têm medo do 'mau-olhado'. “Muitos iraquianos acreditam no 'mauolhado'. Isso está na mente deles, como pôr um 'feitiço' está na mente do povo de algumas regiões do nosso país. Se você olhar fixamente para as pessoas, especialmente crianças, alguém pode achar que você possui um 'mauolhado' e que está tentando lançar uma maldição em quem você está olhando. Alguns iraquianos acham que a lente de uma câmara também é um 'mau-olhado' e você fará inimigos ao fazer fotos de rosto e possivelmente vai acabar com uma faca nas costas. Paisagens gerais e cenas de ruas não vão causar problemas. Com exceção das mesquitas. Não tente fotografar as mesquitas.” Em alguns trechos, o guia dá conselhos muitos pessoais, por exemplo, sobre o que fazer quando precisar ir ao banheiro: “Banheiros como os dos Estados Unidos são muito raros. Você terá de se acostumar a se aliviar ao ar livre em qualquer local conveniente. Certifique-se que está longe das principais ruas e bem distante das mesquitas. E fora da vista de alguém o quanto for possível. Você terá de carregar seu próprio estoque de papel higiênico. Os muçulmanos não permitem que outras pessoas os vejam despidos. Não urine na presença deles. Eles fazem isso acocorados e não gostam de ver outras pessoas urinando em pé. Essas coisas podem parecer triviais, mas são importantes se você quiser entender-se bem com os iraquianos.”
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Atuais soldados parecem que não leram o guia
Goran Tomasevic/Reuters
Fabrizio Bensch/Reuters
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om as imagens praticamente diárias dos ataques, até a mesquitas, no Iraque e os maus-tratos que os soldados norte-americanos impõem aos prisioneiros iraquianos, tem-se a impressão que os militares dos Estados Unidos não leram “Um Pequeno Guia para o Iraque”. Ou, se leram, não estão seguindo seus conselhos, principalmente os que dizem respeito a não entrar em discussões políticas e ser bem-educado. As tropas norte-americanas, no país desde 2003, também estão realizando projetos para a reconstrução e o desenvolvimento do Iraque, como melhorias na infra-estrutura, programas de educação e outras questões, procurando o apoio dos civis iraquianos. A secretária de Estado norte-americana, Condoleezza Rice, justificou a importância desses projetos: “Acredito que aprendemos uma importante missão durante nossa temporada no Iraque – nós não queremos construir e ajudar os iraquianos a construírem uma sociedade
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Os militares norteamericanos que ocupam o Iraque desde 2003 não leram esse guia publicado em 1942, e se leram, não estão seguindo os seus conselhos. AFP Photo
democrática estável só de cima para baixo, mas também de baixo para cima”. Entretanto o que mais chama a atenção do mundo e até dos Estados Unidos são as cenas de tortura e de violência entre as várias facções. Pois, ao derrubar Saddam Hussein, um sunita, os americanos passaram a ser vistos como aliados dos xiitas, descumprindo um dos principais pontos do guia: não se intrometer na política interna. Após quatro anos de ocupação e mais de 7 mil soldados americanos mortos , o projeto do presidente George W. Bush de democratizar e pacificar o Iraque parece distante e, segundo muitos especialistas em geopolítica, as tropas americanas ainda vão ficar em território iraquiano por muito tempo. O próprio presidente Bush, que deseja mais verbas para as Forças Armadas, tem declarado: “Rejeito qualquer prazo artificial para a retirada do Iraque e/ou a tentativa de políticos de Washington (referindo-se aos congressistas) tentarem dizer àqueles que vestem a farda como fazer seu trabalho.”